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TÉCNICA DE

ENTREVISTA E
ACONSELHAMENTO
PSICOLÓGICO
A entrevista na
clínica psicológica
Gleison Gomes da Costa

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Descrever a entrevista de triagem e a anamnese.


> Caracterizar a entrevista psicodiagnóstica.
> Explicar o processo de entrevista diagnóstica com crianças e adolescentes.

Introdução
Na práxis do psicólogo, especialmente o clínico, e de outros profissionais da saúde,
o uso de entrevistas é um dos principais elementos de trabalho, pois elas são,
geralmente, a porta de entrada pela qual o psicólogo inicia o estabelecimento do
rapport e conhece mais profundamente o seu paciente. Isso é feito por meio do
levantamento de dados e informações fundamentais que vão balizar a atuação
do profissional no decorrer do processo de psicodiagnóstico ou psicoterápico.
O psicodiagnóstico é um processo que surge com uma demanda que tem um
objetivo específico. O psicólogo usa técnicas e ferramentas com a finalidade de
investigar construtos psicológicos e apresentar uma resposta com base em um
planejamento específico para cada paciente, considerando as particularidades de
cada caso: se o paciente é criança, adolescente ou adulto; se há alguma limitação
(física, cognitiva, emocional), etc.
Neste capítulo, você vai conhecer os conceitos de entrevista clínica, entrevista
de triagem e anamnese. Além disso, vai estudar as principais características do
psicodiagnóstico. Por fim, vai ver os desafios e as estratégias na aplicação da
entrevista diagnóstica com crianças e adolescentes.
2 A entrevista na clínica psicológica

Entrevistas de triagem e de anamnese


Provavelmente, você já deve ter passado por algum tipo de entrevista em sua
vida: entrevista de emprego, de triagem, feita na unidade de pronto-socorro,
de anamnese, feita pelo médico, entre outras.
Para entender entrevistas de triagem e de anamnese é fundamental come-
çar pelo conceito de entrevista clínica, que difere das entrevistas realizadas
em contextos que não são relacionados à saúde, pois tem outros objetivos
e finalidades (MORRISON, 2010). Segundo Tavares (2007, p. 45), entrevista
clínica é:

[...] um conjunto de técnicas de investigação, de tempo delimitado, dirigido por um


entrevistador treinado, que utiliza de conhecimentos psicológicos, em uma relação
profissional, com o objetivo de descrever e avaliar aspectos pessoais, relacionais
ou sistêmicos (indivíduo, casal, família, rede social), em um processo que visa a
fazer recomendações, encaminhamentos ou propor algum tipo de intervenção em
benefício das pessoas entrevistadas.

É importante observar que Tavares (2007) aponta para que o entrevista-


dor seja uma pessoa treinada, pois o processo vai além de fazer com que o
paciente responda a perguntas, o que poderia ser feito perfeitamente por
uma máquina. O processo envolve perceber as hesitações, ver as nuances do
comportamento não verbal e conseguir fazer perguntas que extraiam mais
informações sobre o que foi perguntado quando ocorrerem respostas com
características de fuga ou esquiva (MORRISON, 2010).
Como já vimos o significado de entrevista clínica, vamos estudar a seguir
os conceitos de entrevista de triagem e de anamnese.

Entrevista de triagem
De acordo com Tavares (2007, p. 50), a “[...] entrevista de triagem tem por
objetivo avaliar a demanda do sujeito e fazer um encaminhamento”. Geral-
mente utilizada no contexto clínico, em hospitais e em serviços de saúde
em geral, ela é usada pelo profissional para fazer o levantamento inicial da
demanda e ver o grau de comprometimento em que o paciente se encontra
e a necessidade de atendimento de outras especialidades. Além disso, serve
para saber se aquele profissional tem as competências necessárias para
aquele atendimento (TAVARES, 2007).
Contudo, como aponta Rocha (2011), não é possível ter apenas uma única
compreensão do que é a triagem, pois as pesquisas na literatura apontam para
duas vertentes: a triagem tradicional e a triagem estendida ou interventiva.
A entrevista na clínica psicológica 3

A triagem tradicional é a mais amplamente difundida e praticada pelos


psicólogos e por outros profissionais de saúde, pois já existe há mais tempo.
Ela apresenta três objetivos básicos (Figura 1), a fim de formar um quadro
capaz de apontar um encaminhamento, interno ou externo à instituição,
adequado para cada pessoa submetida à entrevista.

Figura 1. Objetivos da entrevista de triagem tradicional.

Ainda, de acordo com Rocha (2011), o profissional deve utilizar técnicas e


instrumentos que possibilitem levantar o máximo possível de informações.
Alguns exemplos muito utilizados são as entrevistas semiestruturadas, alguns
testes psicológicos, entre outros. O importante é usar instrumentos que pos-
sibilitem a coleta dos dados que podem ser verbalizados e, ainda, dos que não
foram relatados espontaneamente pelos pacientes e que podem ser relevantes.
A triagem estendida ou interventiva, além de cumprir a função de coletar
dados do paciente, constitui-se em uma parte da intervenção, um cuidado
propriamente dito, sendo porta de entrada à escuta para o que o paciente tem
a dizer sobre as questões que o trouxeram para o atendimento (ROCHA, 2011).
Para Moraes (2016), a entrevista de triagem apresenta caráter interventivo à
medida que insere o paciente como sujeito ativo que, com auxílio do psicólogo
(ou outro profissional de saúde), vai passar a ter uma visão ampliada da própria
queixa. A partir disso, vai dialogar sobre apontamentos, observações, etc.
É importante salientar que a entrevista de triagem também é compreendida
como um processo de avaliação em que não se realiza apenas uma única
entrevista. Em alguns casos, ela pode demandar mais de um encontro entre
o profissional e o paciente. Geralmente, essas entrevistas são semiestru-
turadas, pois apresentam perguntas predeterminadas e, com o decorrer da
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interação, pode surgir a necessidade de novas questões para complementar


o entendimento (MARQUES, 2005).
Durante a entrevista de triagem, é importante que o psicólogo verifique as
expectativas e prioridades do paciente, a fim de que sejam especificadas as
possibilidades de atendimento e de que forma tal atendimento pode ocorrer
(HERZBERG, 1996; ROCHA, 2011).
No processo de triagem, o mais importante é que, ao final, o trabalho
tenha sido feito em conjunto entre psicólogo e paciente e que as decisões
tomadas tenham sido construídas pelas duas partes. Em outras palavras,
o psicólogo ou profissional de saúde deve dispor dos dados necessários,
enquanto o paciente deve compreender que aquele encaminhamento faz
sentido para ele (HERZBERG, 1996).
O entrevistador deve ter um conjunto de habilidades interpessoais que o
ajudarão na condução e no sucesso da entrevista, tendo em vista que ela é
baseada no contato social. Tavares (2007, p. 52) apresenta uma lista de 10 habi-
lidades interpessoais que todo bom entrevistador deve ser capaz de expressar:

1) estar presente, no sentido de estar inteiramente disponível para o outro naquele


momento, e poder ouvi-lo sem a interferência de questões pessoais; 2) ajudar o
paciente a se sentir à vontade e a desenvolver uma aliança de trabalho; 3) facilitar
a expressão dos motivos que levaram a pessoa a ser encaminhada ou a buscar
ajuda; 4) buscar esclarecimentos para colocações vagas ou incompletas; 5) gentil-
mente, confrontar esquivas e contradições; 6) tolerar a ansiedade relacionada aos
temas evocados na entrevista; 7) reconhecer defesas e modos de estruturação do
paciente, especialmente quando elas atuam diretamente na relação com o entre-
vistador (transferência); 8) compreender seus processos contratransferenciais; 9)
assumir a iniciativa em momentos de impasse; 10) dominar as técnicas que utiliza.

Essa lista reforça a importância do processo de formação do profissional


responsável pela entrevista de triagem. Tal formação deve ser feita para além
da sala de aula da faculdade, de forma continuada, aliando teoria e prática
(TAVARES, 2007).

Entrevista de anamnese
No processo de entrevista de anamnese, ocorre a investigação da história
de vida do examinado, buscando os aspectos de sua vida considerados re-
levantes para o entendimento da queixa (SILVA; BANDEIRA, 2016). Além disso,
procuram-se possíveis conexões entre os aspectos da vida do paciente com
o problema apresentado (TAVARES, 2007).
Considerando que se trata da investigação de fatos da história de vida
do sujeito, Silva e Bandeira (2016, p. 92) classificam como fundamental que
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o “[...] informante detenha um conhecimento sobre a própria vida ou sobre


a vida de quem está sendo avaliado, sendo necessário que ele recupere
da memória os eventos significativos questionados pelo psicólogo”. Dessa
forma, quando se tratar de crianças, é necessária a entrevista com os pais e
familiares. Com adolescentes, a entrevista pode ser realizada com o próprio
adolescente e com os pais, em momentos diferentes.
A anamnese geralmente é feita por meio de entrevista semiestruturada.
Previamente, é estabelecido um roteiro com perguntas essenciais, mas há a pos-
sibilidade de abertura para novas perguntas, promovendo alterações na estrutura
inicial. Nesse escopo, está compreendido o espaço inicial para o estabelecimento
do rapport (vínculo terapêutico) adequado, para explicar os objetivos, a duração
e o papel do entrevistador no processo (SILVA; BANDEIRA, 2016).
Como citado, a entrevista de anamnese pode ser feita com crianças, ado-
lescentes, adultos e idosos. Silva e Bandeira (2016) apontam que, para cada
uma dessas faixas etárias, as entrevistas semiestruturadas têm estruturas
diferentes entre as sessões que as compõem. Por exemplo, no caso de crianças
e adolescentes, a investigação será muito mais centrada em compreender a
convivência com a família desde a gestação e a convivência escolar, um fator
importante de socialização ao longo do ciclo vital.
Para adultos, embora seja importante pesquisar as histórias da infância,
a maior ênfase é dada à adolescência e à vida adulta, pois já estão presentes
novos contextos e vínculos (trabalho, faculdade, formação da própria família
e relações sociais) (SILVA; BANDEIRA, 2016). Esses novos contextos tornam-se
importantes, pois, ao deixar a fase de infância, em que havia grande depen-
dência dos cuidadores, as pessoas passam a assumir responsabilidades pelas
suas escolhas. Com isso, muitas mudanças ocorrem.
Silva e Bandeira (2016) também apontam a importância de observar os
aspectos da vida adulta de forma sistêmica, uma vez que os diversos papéis
desempenhados podem ser fontes de ansiedade e gerar conflito. Por exemplo,
pessoas que se dedicam muito ao âmbito profissional negligenciam aspectos
da vida conjugal e sexual ou da vida social.
Embora na entrevista de anamnese a principal fonte de informação seja
o relato verbal do próprio paciente, Silva e Bandeira (2016) apontam que é
importante, em alguns casos, investigar outras fontes de informação, como
documentos que possam ser úteis para levantar dados complementares sobre
a pessoa (exames, prontuários, registros escolares, etc.).
Quando se trata de anamnese de crianças, nem sempre será possível coletar
todas as informações dos pais com a precisão necessária, principalmente em
relação ao histórico clínico, que envolve linguagem médica e de outros profis-
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sionais da saúde. Krug, Bandeira e Trentini (2016) ressaltam a importância de o


psicólogo procurar o profissional que encaminhou a criança para atendimento, a
fim de que sejam especificados os objetivos e de que as dúvidas sejam sanadas.
Assim como na entrevista de triagem e em todas as atividades desenvolvidas
pelo psicólogo, é fundamental que o profissional que vai trabalhar com a entre-
vista de anamnese tenha conhecimento sólido sobre as técnicas psicológicas
e, ainda, conheça minimamente outras áreas do saber, como fármacos, suas
utilizações e efeitos no organismo ou questões sociológicas. Assim, ele vai
entender a importância do contexto no qual a pessoa está inserida, a fim de
facilitar a compreensão sobre os fenômenos avaliados (SILVA; BANDEIRA, 2016).

Psicodiagnóstico: principais características


De acordo com Cunha (2007a), os primeiros estudos sobre psicodiagnóstico
surgiram no final do século IX. Eles foram marcados pelos trabalhos de Galton
(estudo das diferenças individuais), Cattell (testes mentais) e Binet (exame
psicológico por meio de medidas intelectuais). Os três são conhecidos como
os pais do psicodiagnóstico.
Segundo Cunha (2007a, p. 23), o psicodiagnóstico pode ser classificado
como:

[...] um processo científico, limitado no tempo, que utiliza técnicas e testes psi-
cológicos (input), em nível individual ou não, seja para entender problemas à luz
de pressupostos teóricos, identificar e avaliar aspectos específicos, seja para
classificar o caso e prever seu curso possível, comunicando os resultados (output),
na base dos quais são propostas soluções, se for o caso.

Outro conceito é o proposto por Serafini (2016), que define o psicodiag-


nóstico como um tipo de avaliação psicológica desenvolvida no âmbito clínico
que tem início em uma queixa ou demanda e que se desenvolve por meio
de um processo com foco ou motivo específicos. Nesse tipo de diagnóstico
psicológico, o foco ou motivo são de extrema importância, pois eles que vão
guiar todo o processo. Em algumas vezes, eles não estão muito claros para o
psicólogo nem mesmo para o próprio paciente. Por essa razão, é importante
usar as entrevistas iniciais (com o paciente ou outras pessoas) para coletar o
máximo de informações possíveis que auxiliarão na definição dos objetivos.
Ter um objetivo específico vai possibilitar a elaboração de hipóteses e a
construção de um plano de avaliação.
Para Krug, Trentini e Bandeira (2016), o psicodiagnóstico é um processo
de investigação e intervenção clínica limitado no tempo, com embasamento
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científico, conduzido à luz de uma teoria psicológica e que faz uso de técnicas
e/ou testes para a avaliação de uma ou mais características psicológicas.
Como visto, a avaliação do tipo de psicodiagnóstico começa com uma demanda.
Tal demanda pode ser espontânea, quando o próprio paciente procura por uma
razão específica, ou não, quando o paciente é encaminhado por outra fonte (escola,
trabalho, médico, etc.). Geralmente, quando o paciente chega, as informações
apresentadas não são suficientes para a delimitação do foco (SERAFINI, 2016).
O plano de avaliação será definido com base nas perguntas e hipóteses
iniciais elaboradas (CUNHA, 2007a). Por isso, as entrevistas iniciais são impor-
tantes, a fim de coletar o maior número de informações possíveis e delimitar
o foco do processo de diagnóstico (SERAFINI, 2016).
Nas entrevistas iniciais, é muito importante que o psicólogo consiga colher
o máximo de informações possíveis. Nem sempre o paciente vai ter todas
essas informações. Em alguns casos, ele nem consegue entender direito a
razão do encaminhamento para o psicodiagnóstico. Logo, é fundamental que
o psicólogo faça contato com o profissional que encaminhou aquele paciente
para a avaliação, a fim de esclarecer dúvidas e certificar-se a respeito do
pedido (SERAFINI, 2016).
Serafini (2016) apresenta as etapas e diferenças básicas na coleta de
informações por meio das entrevistas iniciais com crianças, adolescentes e
adultos (Figura 2).

Figura 2. Fluxograma com as etapas da entrevista inicial.


Fonte: Serafini (2016, p. 47).
8 A entrevista na clínica psicológica

Cunha (2007a) aponta os principais objetivos da avaliação psicológica


clínica: classificação simples, descrição, classificação nosológica (baseada
em critérios diagnósticos, como a presença ou ausência de sintomas), diag-
nóstico diferencial (são testados critérios que excluem outras patologias),
avaliação compreensiva (avalia o nível de funcionamento da personalidade),
entendimento dinâmico (visão sistêmica feita pela integração de dados),
prevenção, prognóstico e perícia forense.
Assim como em outras formas de avaliação psicológica, o psicodiag-
nóstico pode ir além da visão tradicional de realizar diagnósticos. Ele pode
se tornar um processo de natureza interventiva, uma vez que a condução
dos “[...] processos de avaliação psicológica não [é] apenas para realizar
diagnósticos, mas também para oferecer feedback, visando [a] promover
efeitos terapêuticos enquanto ocorre a avaliação” (SCADUTO; CARDOSO;
HECK, 2019, p. 69).
De acordo com Scaduto, Cardoso e Heck (2019), no psicodiagnóstico inter-
ventivo o psicólogo deve assumir o papel de acolhimento, buscando ir além
da coleta informações. Ele deve gerar reflexões sobre os motivos de buscar
ajuda, sobre seu papel no contexto em que está inserido e sobre a importância
de sua participação em todo o processo de avaliação.
Cunha (2007a, p. 31) apresenta os passos necessários para um diagnóstico
baseado em um modelo psicológico de natureza clínica:

a) levantamento de perguntas relacionadas com os motivos da consulta e defi-


nição das hipóteses iniciais e dos objetivos do exame; b) planejamento, seleção
e utilização de instrumentos de exame psicológico; c) levantamento quantitativo
e qualitativo dos dados; d) integração de dados e informações e formulação de
inferências pela integração dos dados, tendo como pontos de referência as hipó-
teses iniciais e os objetivos do exame; e) comunicação de resultados, orientação
sobre o caso e encerramento do processo.

Dessa forma, o processo de psicodiagnóstico apresenta estrutura e


passos definidos, que servem para nortear o trabalho do avaliador. Contudo,
o avaliador deve estar atento para a condução das atividades de acordo
com o perfil e as necessidades de cada paciente que busca atendimento.
Ele deve elaborar um plano específico para cada um, afinal cada paciente é
dotado de subjetividades e características distintas, mesmo que os objetivos
da avaliação sejam muito próximos ou até idênticos. Por exemplo, mesmo
que o objetivo de dois processos de psicodiagnóstico sejam investigar
um possível quadro de déficit de atenção e hiperatividade, as técnicas e
estratégias utilizadas devem ser pensadas para cada um dos pacientes,
considerando seus perfis.
A entrevista na clínica psicológica 9

Existem diferenças significativas no psicodiagnóstico realizado com adul-


tos e com crianças. Essas diferenças compreendem as fontes de coleta de
informações, a forma de utilização das técnicas, a duração das sessões, o
estabelecimento do rapport, a devolutiva do resultado, etc. (SCADUTO; CAR-
DOSO; HECK, 2019). Na próxima seção, vamos estudar a entrevista diagnóstica
com crianças e adolescentes.

Entrevista diagnóstica com crianças


e adolescentes
No psicodiagnóstico com crianças ou adolescentes, os dados podem ser
obtidos por meio do autorrelato, no qual as informações são colhidas com os
próprios pacientes, ou do heterorrelato, no qual as informações são colhidas
com outras pessoas que não o paciente, ou seja, com seus pais, familiares,
médicos, professores, etc. (GIACOMONI; BANDEIRA, 2016).
As primeiras tentativas de formulação e comprovação de teorias psicoló-
gicas com crianças surgiu com Freud, quando o autor apresentou as primeiras
tentativas de auxiliar os pais a compreenderem e avaliarem o sofrimento
dos seus filhos, como no caso do pequeno Hans, em 1909. Depois, houve
Melanie Klein, que buscava a sistematização do brincar e do brinquedo como
recursos disponíveis para acessar o inconsciente infantil. Hoje, a “[...] criança
é capaz de, brincando, estruturar a representação de seus conflitos básicos
e o seu funcionamento mental e, deste modo, muitos fenômenos que não
seriam obtidos pela palavra podem ser observados pelo brincar e por meio
de expressões gráficas” (ARENALES-LOLI et al., 2013, p. 409).
Na prática clínica com adolescentes, Arenales-Loli et al. (2013) explicam que,
diferentemente da prática com a criança, não é oportuno o uso de brinquedos
ou do brincar como manejo técnico. Entretanto, o adolescente ainda não está
completamente pronto para usar a palavra para fazer referência aos seus
conteúdos internos, sendo necessária a busca por alternativas capazes de
permitir a expressão de sentimentos, pensamentos e emoções que possam
ser trabalhados nas sessões.

Entrevistas diagnósticas com crianças


No psicodiagnóstico, uma das técnicas para coletar informações com crianças
é conhecida como entrevista lúdica (hora lúdica ou hora do jogo). Ela explora
um dos comportamentos mais frequentes em crianças: o brincar. Entretanto,
10 A entrevista na clínica psicológica

isso não pode ser confundido com o brincar por brincar. Na entrevista lúdica,
o uso da brincadeira é feito de forma supervisionada, com delineamento de
alguns critérios específicos para a análise do brincar (CIOCHETTA; KROEFF, 2019).

Uma pesquisa identificou que uma das principais atividades do


psicólogo no Brasil é o atendimento de crianças. Cerca de 56,9% dos
profissionais da área escolar afirmam trabalhar com o atendimento de crianças.
Na área clínica, o percentual ficou em torno de 44,5%. Além disso, 41,7% dos
profissionais da saúde relatam trabalhar com atendimento de crianças (GONDIM;
BASTOS; PEIXOTO, 2010).

De acordo com Krug, Bandeira e Trentini (2016), é fácil perceber a influência


da teoria psicanalítica na entrevista lúdica. Contudo, é possível destacar a
existência de duas perspectivas adotadas quando se fala em entrevista lúdica:
uma relacionada ao campo da avaliação psicológica e outra ao campo da
psicanálise. Na avaliação psicológica, encontra-se maior abertura para o uso
de diversas técnicas, como testes psicológicos, com a técnica da entrevista
lúdica. No outro campo, de viés psicanalítico, a priorização é pela própria
entrevista lúdica e pelas entrevistas com os pais e outras fontes, todas de
natureza mais verbal.
A entrevista clínica realizada com crianças, segundo Krug, Bandeira e
Trentini (2016, p. 75), pode ser chamada de entrevista lúdica diagnóstica, “[...]
que se configura como um procedimento técnico utilizado a fim de conhecer e
compreender a realidade da criança em processo de avaliação”. Ela pode ser
vista como uma entrevista inicial realizada com a criança, não significando
que seja o primeiro ou único procedimento.
Werlang (2007) afirma que, no atendimento infantil, antes de ter o primeiro
contato com a criança, é fundamental entrevistar os pais, com o objetivo de
obter as informações mais abrangentes possíveis sobre a queixa e sobre a
criança (aspectos do desenvolvimento, primeiros anos de vida, comportamen-
tos em casa e em outros ambientes, fatos marcantes que possam ter chamado
a atenção, entre outros). Também deve-se explicar aos pais a importância de
eles deixarem a criança ciente dos motivos pelos quais ela está sendo levada
para aquele local (clínica psicológica).
Na prática, a entrevista lúdica consiste em “[...] oferecer à criança a opor-
tunidade de brincar, como deseje, com todo o material lúdico disponível
na sala, esclarecendo sobre o espaço onde poderá brincar, sobre o tempo
disponível, sobre os papéis dela e do psicólogo” (WERLANG, 2007, p. 98-99).
Cada entrevista é única, tanto para as crianças quanto para o psicólogo, pois
A entrevista na clínica psicológica 11

cada criança vai se manifestar no seu tempo e à sua maneira, e a interação


delas com o psicoterapeuta será diferente a cada sessão, ainda que no uso dos
mesmos brinquedos. Em geral, a postura do psicólogo é mais passiva, pois ele
vai permitir que a criança brinque livremente. Ao mesmo tempo, o psicólogo
assume o papel de um observador ativo, pois busca compreender as relações
e as representações da criança com os brinquedos, correlacionando-as com
os objetivos definidos para a análise. Também é importante fazer perguntas
sobre a brincadeira e formular hipóteses (WERLANG, 2007).
Segundo Werlang (2007) e Krug, Bandeira e Trentini (2016), além da entrevista
lúdica, outras práticas podem ser adotadas no processo de psicodiagnóstico com
crianças: entrevistas com os pais e outras fontes de informação, testes psicoló-
gicos, entre outros. Na entrevista com os pais, é importante colher informações
da forma mais ampla possível, sobre os diversos níveis de desenvolvimento
(físico, emocional, cognitivo, social), a fim de conhecer mais a criança. Também
é importante tentar compreender o funcionamento da estrutura familiar e o
suporte social que faz parte da vida da criança (KRUG; BANDEIRA; TRENTINI, 2016).
Para auxiliar os psicólogos na busca pela compreensão de conteúdos que
muitas vezes não são expressos ou que não podem ser observados direta-
mente, existem outras ferramentas que trazem informações de forma mais
sistematizada, como os testes e as escalas psicológicas. Como exemplo, veja
a seguir os citados nas obras de Borsa e Muniz (2016), Cunha (2007b), Freitas
(2007) e Freitas e Cunha (2007).

„ Children’s apperception test (CAT, ou teste de apercepção temática


para crianças): permite a investigação da personalidade e o estudo
da dinâmica significativa das diferenças individuais na percepção de
estímulos padronizados, que refletem o conteúdo latente e os proces-
sos psíquicos da criança. Ele é dividido em CAT-A (figuras de animais)
e CAT-H (figuras humanas).
„ Desenho da figura humana (DFH): utilizado para avaliação da ma-
turidade conceitual, personalidade e ajustamento emocional e até
aspectos específicos, como a ansiedade. É amplamente aceito pelas
crianças, pois trata-se do desenho de uma figura humana, além de
ser de fácil aplicação.
„ House, tree and person (HTP, ou casa, árvore e pessoa): um teste proje-
tivo que, por meio do desenho de uma casa, uma árvore e uma pessoa,
torna possível realizar análises da personalidade do sujeito, da relação
dele com ele mesmo e da inter-relação com familiares. É indicado para
crianças a partir dos 8 anos.
12 A entrevista na clínica psicológica

No site do Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (Satepsi), é


possível identificar outros testes favoráveis e de uso exclusivo dos
psicólogos. Além disso, o site traz instrumentos não privativos de psicólogos.
É importante acompanhar o Satepsi sempre que for fazer a escolha por um
desses instrumentos (CFP, 2021).

Diagnósticos com adolescentes: desafios


e estratégias
Os adolescentes estão na fase entre a oposição ao brincar, pois não se veem
como uma criança, e a oposição a responder a uma autoridade, pois buscam
independência na expressão de seus conteúdos internos e desejam que
sejam compreendidos. Assim, o profissional que vai atender o adolescente
se encontra diante de uma situação em que é preciso uma busca incessante
por mediadores que sirvam de canais para a coleta de informações em um
psicodiagnóstico (ARENALES-LOLI et al., 2013).
Alguns recursos são sugeridos por Arenales-Loli et al. (2013) para serem
utilizados como ferramentas que possibilitam a expressão das emoções no
adolescente: fotografias que contam a história dele e de sua família, cons-
trução de uma árvore genealógica, entre outros.
No contato com o adolescente na clínica, é muito difícil o uso exclusivo
da comunicação verbal. Assim, é imprescindível o uso de recursos clínicos
que possibilitem a eles expressarem suas emoções e seus sentimentos. Para
isso, Arenales-Loli et al. (2013) trazem a utilização de jogos como mediadores
desse contato. O jogo desenvolvido pela autora, o Túnel do Tempo, surge
como uma forma de suprir as lacunas deixadas pelos jogos tradicionais como
Banco Imobiliário, Jogo da Vida, entre outros. O Túnel do Tempo levanta
questões que provocarão reflexões sobre o passado, o presente e o futuro,
trazendo o adolescente como protagonista das histórias e reconstruindo
fatos significativos (ARENALES-LOLI et al., 2013).
Mesmo com os desafios enfrentados pelos profissionais em relação aos
adolescentes, existem formas de melhorar o rapport e estabelecer o vínculo
ao fazer uso de mediadores que buscam o engajamento do adolescente ao
processo de psicodiagnóstico. Vale ressaltar que autores como Serafini
(2016), Tavares (2016) e Werlang (2007) sugerem praticamente os mesmos cui-
dados no psicodiagnóstico com adolescentes e com crianças. As diferenças
estão em algumas partes, em razão das especificidades dessas diferentes
A entrevista na clínica psicológica 13

fases do ciclo vital. Por exemplo, com a criança, a entrevista inicial é feita
primeiramente com os pais; com o adolescente, o recomendado é que a
entrevista seja feita primeiro com ele e depois com os pais.
Como visto neste capítulo, a entrevista clínica é uma ferramenta muito
importante na atuação do profissional da psicologia e de diversos outros
profissionais da saúde. Ela assume um papel importante seja para avaliar
uma demanda e dar o melhor encaminhamento, como no caso da entrevista
de triagem, seja para coletar dados da história de vida da pessoa e munir o
psicólogo de informações para o melhor planejamento de um psicodiagnóstico
ou de uma intervenção. Neste capítulo, também vimos que o psicodiagnóstico
é um processo de caráter científico, limitado no tempo, com objetivos bem
definidos, baseado em uma entrada (demanda) e em uma saída (comunicação
dos resultados). Ele pode ser realizado com adultos, idosos, adolescentes e
crianças, respeitando suas singularidades.

Referências
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processo psicoterápico com adolescentes. Boletim da Academia Paulista de Psicologia,
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Leituras recomendadas
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(Satepsi). Disponível em: https://satepsi.cfp.org.br/. Acesso em: 9 set. 2021.
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