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Psicologia Jurídica

PSICOLOGIA JURÍDICA
Autoria
Denise Gonçalves Moura Pinheiro /
Maria Helena Rodrigues Campelo
Expediente
Reitor: Ficha Técnica
Prof. Cláudio Ferreira Bastos Autoria:
Denise Gonçalves Moura Pinheiro /
Pró-reitor administrativo financeiro: Maria Helena Rodrigues Campelo
Prof. Rafael Rabelo Bastos Supervisão de produção NEAD:
Francisco Cleuson do Nascimento Alves
Pró-reitor de relações institucionais:
Prof. Cláudio Rabelo Bastos Design instrucional:
Antonio Carlos Vieira
Pró-reitora acadêmica:
Profa. Flávia Alves de Almeida Projeto gráfico e capa:
Francisco Erbínio Alves Rodrigues
Diretor de operações:
Diagramação e tratamento de imagens:
Prof. José Pereira de Oliveira Ismael Ramos Martins
Coordenação NEAD: Revisão textual:
Profa. Luciana Rodrigues Ramos Antonio Carlos Vieira

Ficha Catalográfica
Catalogação na Publicação
Biblioteca Centro Universitário Ateneu

PINHEIRO, Denise Gonçalves Moura / CAMPELO, Maria Helena Rodrigues. Psicologia ju-
rídica. / Denise Gonçalves Moura Pinheiro e Maria Helena Rodrigues Campelo. – Fortaleza:
Centro Universitário Ateneu, 2020.

108 p.

ISBN:

1. Histórico da psicologia jurídica no mundo e no brasil 2. Contribuições teóricas e práti-


cas da psicologia para o direito. 3. Atuação do psicólogo no âmbito familiar . 4. A psico-
logia na proteção de grupos específicos. Centro Universitário Ateneu. II. Título.

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ção escrita do possuidor da propriedade literária. Os pedidos para tal autorização, especificando a extensão do que
se deseja reproduzir e o seu objetivo, deverão ser dirigidos à Reitoria.
SEJA BEM-VINDO!

Prezado(a) estudante,

Iniciaremos nossa jornada de conexão entre a Psicologia e o Direito.


Nesse percurso, dialogaremos sobre as interfaces e interações sobre essas
ciências do conhecimento, bem como as aproximações e distanciamentos
sobre essas áreas de atuação.

O interesse desse estudo é viabilizar uma compreensão sobre


as pessoas, considerando que no âmbito do sistema jurídico, mediante
processos e procedimentos legais e normativos, atuamos com o atendimento
aos indivíduos. São os sujeitos sociais, o público máximo por excelência das
demandas e encaminhamentos do sistema judiciário, é para esse indivíduo
em relação com a família, as instituições, a comunidade e a sociedade em
geral, que despertamos nosso olhar e compreensão.

Dessa forma, em nosso caminho, poderemos conhecer sobre a


constituição subjetiva, sobre o funcionamento psíquico e as contribuições da
psicologia jurídica para o sistema judiciário.

Bons estudos!
Estes ícones aparecerão em sua trilha de aprendizagem e significam:

ANOTAÇÕES

CONECTE-SE

REFERÊNCIAS
SUMÁRIO

HISTÓRICO DA PSICOLOGIA JURÍDICA NO


MUNDO E NO BRASIL
1. Notas sobre a psicologia enquanto ciência.............. 8
2. A relação entre a psicologia e a justiça.................... 9

01
3. Direitos humanos como
foco da psicologia jurídica.......................................... 12
4. A psicologia social e a sua interface com
o campo jurídico..................................................... 16
5. A recepção da criminologia no brasil e os
"peritos da subjetividade”........................................ 20
Referências................................................................ 27

CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS E
PRÁTICAS DA PSICOLOGIA PARA O DIREITO
1. A prática do psicólogo no campo jurídico............... 30
2. Análise do sistema penitenciário: atuação da

02
psicologia no sistema prisional............................... 31
3. A proteção à criança e ao adolescente.................. 34
3.1. A atuação do psicólogo com crianças e
adolescentes em conflito com a lei......................... 42
4. O psicólogo que atua em projetos de lei:
uma área emergente.............................................. 44
Referências................................................................ 46
ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO
ÂMBITO FAMILIAR
1. A psicologia da família e suas
contribuições teóricas............................................. 48
2. As concepções de família e

03
a legislação vigente................................................ 51
3. A atuação do psicólogo nas
varas de família...................................................... 60
4. A adoção de crianças e adolescentes:
perspectivas psicológicas e jurídicas...................... 64
4.1. O trabalho do psicólogo na adoção................. 67
5. A atuação do psicólogo com crianças e
adolescentes que sofrem violência......................... 67
Referências................................................................ 81
A PSICOLOGIA NA PROTEÇÃO DE
GRUPOS ESPECÍFICOS
1. Políticas públicas de prevenção, atendimento e
garantia de direitos das mulheres........................... 84
2. Violência de gênero, violência doméstica,
violência familiar..................................................... 86
3. Atuação de psicólogos/as com a atenção às

04
mulheres em situação de violência......................... 92
4. A atuação do psicólogo nas delegacias
especializadas de atendimento
às mulheres (deams).............................................. 94
5. A psicologia no combate ao racismo...................... 99
6. A psicologia e a diversidade sexual..................... 102
7. A proteção à pessoa idosa e às
pessoas com deficiência....................................... 104
8. A atuação com usuários de
álcool e outras drogas.......................................... 107
Referências.............................................................. 108
Denise Gonçalves Moura Pinheiro /
Maria Helena Rodrigues Campelo

Unidade

01 Histórico da psicologia
jurídica no mundo e no brasil

Apresentação
Nesta unidade, você vai conhecer como a psicologia se instituiu
enquanto ciência e, principalmente, a sua relação com o campo jurídico.
Esta história é perpassada por muitos autores que, no campo psicológico,
tiveram grande influência na compreensão do fenômeno psicológico.

A psicologia é uma ciência que estuda o comportamento humano


em diversos contextos e para isso se aprofundou em algumas áreas, por
exemplo, a psicologia jurídica, que inicia suas atividades a partir do contexto
político e histórico vigente.

Nesta relação entre psicologia e direito ainda discutiremos esta relação


pelo viés dos direitos humanos e como a psicologia jurídica compreende os
fenômenos sociais, éticos e políticos.
OBJETIVOS DE
APRENDIZAGEM
• Compreender o contexto do surgimento da psicologia jurídica;
• Analisar criticamente a interlocução da psicologia na interface com o direito;
• Compreender os requisitos éticos e técnicos preconizados pelo Conselho Fe-
deral de Psicologia no âmbito jurídico.

1. Notas sobre a psicologia


enquanto ciência

A psicologia inicia na Alemanha, em meados no século XVIII, quando


os profissionais começaram a discutir acerca de assuntos que antes estavam
fora do circuito científico. Influenciados por diversas ideias de Descartes,
Darwin, Broca, Charcot, Pavlov, entre tantos outros que tiveram o seu auge
de acordo com o zeitgeist vigente, a psicologia vai crescendo e se difundindo
no mundo.

A profissão de psiquiatra surge na metade do século XIX e tinha como


objetivo fornecer laudos psicológicos no âmbito da psicopatologia. Vive-se
um tempo obscuro no qual o homem ou é louco ou é normal. A curiosidade
acerca dos transtornos percorreu diversas áreas como a filosofia e a educação.
Havia uma necessidade também de compreender os processos psíquicos
independentemente das psicopatologias e, então, os cursos de medicina
foram preenchidos com professores filósofos (LAURO; MARCELLOS, 2012).

A psicologia não era uma disciplina, não se falava dela a não ser
que fosse atrelada à filosofia. Dentro das universidades, ela estava dentro
dos cursos de filosofia e tinha grandes dificuldades em sair deste lugar.
Somente após a construção do Laboratório de Wundt, na Universidade
de Leipzig, os seus experimentos foram capazes de tornar a psicologia
uma verdadeira ciência e, dessa forma, separando-a do lugar que ocupava
anteriormente. Os experimentos de Wundt atraíram muitos estudantes
americanos que estiveram em seu laboratório para conhecer essa nova
ciência que estava surgindo.

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A influência de Sigmund Freud e seus estudos acerca da estrutura
psíquica trouxe a definição do inconsciente como algo revolucionário para
as pesquisas acerca dos transtornos mentais. Freud estudou com Jean
Martin Charcot, em Viena, e utilizou-se da hipnose nos seus tratamentos,
acompanhado do seu colega Josef Breuer. Em certo tempo, após utilizar-
se de tal técnica, ele observou que os conteúdos que eram acessados por
meio da hipnose não eram resolvidos quando o paciente estava acordado.
Dessa forma, ele começou a ouvir seus pacientes acordados sobre suas
dificuldades diárias e como eles lidavam com elas. Pouco tempo depois,
Freud abandonou a hipnose e manteve o tratamento por meio da fala com
seus pacientes.

A psicologia pós-Freud passou por diversas formulações e perspectivas


teóricas no estudo da mente, discutido por Freud, ou do comportamento,
como foi discutido por B. F. Skinner. A “revolução cognitiva” promovida por
Aaron T. Beck criticava o modelo freudiano da mente e o skinneriano de
comportamento operante. A crítica dos cognitivistas estava principalmente
na psicanálise em relação ao método utilizado. Eles defendiam que a falta
de experimentação dos casos dificultava os pesquisadores terem conclusões
que fossem possíveis serem replicadas.

Essas notas sobre a construção da psicologia exigem ainda um


aprofundamento acerca de cada um dos pesquisadores e cientistas aqui
descritos. Recomenda-se um aprofundamento acerca das teorias de cada
um para que você possa compreender melhor como esta ciência se construiu
e se efetivou no estudo do comportamento humano.

2. A relação entre a psicologia e a justiça


No final do século XIX, iniciou-se uma aproximação entre a psicologia e
o direito por meio da psicologia do testemunho, com o objetivo de oferecer
uma fidedignidade ao relato do indivíduo (ALENCAR, 2018). Observa-se,
portanto, a existência de um conhecimento muito restrito da profissão, que
estava atrelado a uma ideia de que o psicólogo poderia indicar se alguém estava
mentindo ou não. Collin et al. (2012) conta que a profissão de psicólogo
somente foi instituída entre 1919 e 1920, após a 1ª Guerra Mundial, devido à
necessidade do conhecimento psicológico para recrutamento e seleção dos
soldados, algo bastante explorado pela psicologia organizacional, nascida
neste período. Ainda assim, a psicologia encontrava-se enraizada na filosofia,
sendo aquela uma formação para os últimos.

PSICOLOGIA JURÍDICA | 9
O marco inicial da psicologia jurídica no mundo, o livro de Myra e Lopes,
conhecido como o Manual de Psicologia Jurídica, chega ao nosso país em
1955. A primeira inserção do psicólogo na área jurídica, fora do Brasil, ocorreu
com o reconhecimento da profissão na década de 1960, de forma muito lenta,
muitas vezes de maneira informal e por meio de trabalhos voluntários (LAGO
et al., 2009). Em nossas terras, a psicologia jurídica teve sua inserção inicial
com profissionais no estado do Rio de Janeiro (ROVINSKI, 2009), surgindo
aqui como um conhecimento independente na academia e com sua própria
regulamentação da profissão.

Em 1920, no Brasil, Waclaw Radecke criou o Laboratório de


Psicologia da Colônia de Psicopatas de Engenho de Dentro, incorporado
posteriormente à Universidade do Brasil, atualmente conhecida como a
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. No início, havia uma
preocupação acerca da personalidade do criminoso, a função da punição e
a influência do sistema penal na recuperação do indivíduo (ROVINSKI, 2009).

Na década de 1940, a psicologia tinha bastante força no âmbito


educacional, filosófico e médico. Os interessados em compreender o
comportamento criminoso passavam seu tempo aplicando testes e
produzindo relatórios para diagnósticos (ALENCAR, 2018; ROVINSKI, 2009).
Esta perspectiva ainda é marcante para os operadores do direito, que ainda se
fixam em diagnósticos os quais não são mais tão válidos como antigamente.

O professor Elizier Schineider foi um grande expoente no estudo da


personalidade do criminoso no Brasil. Ele ingressou no Instituto de Psicologia
UFRJ em 1941 e começou a produzir laudos e fazer a aplicação de testes
(ALENCAR, 2018) como era difundido mundialmente (ROVINSKI, 2009). A
aplicação dos testes tinha como objetivo compreender os processos internos
com vias de tornar passível o comportamento em ação jurídica (ALTOÉ,
2003).

Os laudos eram bastante taxativos e como a psicologia se encontrava em


lugar de um saber psicológico autônomo, não havia muitos questionamentos
a priori. A aplicação de testes, na verdade, acabava por excluir todos os outros
contextos relacionados ao conjunto de comportamentos que derivariam
do crime. Ao mesmo tempo, sendo os testes uma atividade exclusiva da
profissão, cada vez mais os psicólogos eram convidados a contribuir com
laudos que apenas replicavam os valores deterministas da sociedade vigente
(ALENCAR, 2018).

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A diferença entre o professor Schineider e outros profissionais foi
ele buscar outras perspectivas para explicar a criminalidade (ROVINSKI,
2009). Ele desenvolveu seu trabalho no Manicômio Judiciário e quando
a profissão de psicólogo foi regulamentada, em 1962, conseguiu expandir
o seu campo de atuação. Em 1963, havia no Brasil três unidades prisionais
que contavam com o Setor de Terapêutica Criminal, no qual ocorriam as
perícias (ROVINSKI, 2009).

Na década de 1970, o profissional de psicologia passa a compor as


equipes de perícias criminológicas, que tinham como objetivo a valorização
humana e a reabilitação do indivíduo. Na década de 1980, ocorreu a
implantação do Serviço de Psicologia no Tribunal de Justiça, em São Paulo,
com profissionais voluntários e estagiários (ALENCAR, 2018; ROVINSKI,
2009), porém, as atividades possuíam um caráter clínico e colaborativo com
o Serviço de Atendimento às Famílias (ROVINSKI, 2009).

Cinco anos depois, os profissionais foram efetivados e seu trabalho


deveria ajudar na reestruturação das famílias e na manutenção das crianças
em casa como forma de prevenir a internação (ROVINSKI, 2009). Este
modelo se propagou para o Distrito Federal e a função dos profissionais era
contribuir nos processos de pais divorciados. Na década de 1990, o psicólogo
jurídico é inserido no Poder Judiciário do Rio de Janeiro, que até então
contava somente com profissionais do serviço social, para contribuir na Vara
da Infância e Juventude (ROVINSKI, 2009).

O percurso supracitado apenas apresenta um pouco da história da


relação entre a psicologia e o direito no Brasil. Podemos observar que,
no início, a psicologia jurídica estava preocupada em traçar o perfil do
criminoso, das crianças e adolescentes que estavam envolvidos com algum
tipo de crime. Havia ainda essa perspectiva biológica na relação do homem
com o crime, trazida pelos estrangeiros que por aqui passaram e deixaram
o seu legado. Em certo momento surge a preocupação com a conduta
humana, porém, perpassada pelo modelo biológico existente. Ainda assim,
a psicologia jurídica estava interessada na reincidência criminal e em
conhecer a dinâmica da produção do crime (ROVINSKI, 2009).

Na década de 1990, o psicólogo


jurídico é inserido no Poder Judiciário do
Rio de Janeiro...

PSICOLOGIA JURÍDICA | 11
A psicologia jurídica é, portanto, uma das denominações da relação da
psicologia com o âmbito jurídico. Em outros países, como na Argentina, ela
é conhecida como “Psicologia Forense”, na Espanha “Psicologia Jurídica”,
na Associação Europeia de Psicologia e Lei é “Psicologia e Lei” (FRANÇA,
2004). E assim, há algumas definições acerca da psicologia jurídica trazidas
por Bernal (2009):

a. Psicologia da lei tem como objetivo compreender os processos


psicológicos, analisando as leis como produto intencional de um
consenso coletivo. Ela estuda a idade da responsabilidade criminal,
a segregação racial ou a função social da punição;

b. Psicologia no direito é responsável por compreender como as


normas legais são consideradas estímulos sociais produtores de
determinados comportamentos;

c. Psicologia para o direito, que é mais identificada como Psicologia


Forense, utiliza a psicologia para compreender o comportamento
humano.

No Brasil, é mais comum denominarmos de psicologia jurídica. O


objeto de estudo desta área é o comportamento humano no âmbito jurídico,
considerando também as manifestações da subjetividade, as consequências
das ações jurídicas sobre o indivíduo, os impactos das práticas jurídicas sobre
a subjetividade, indo para além das demandas deste setor (FRANÇA, 2004).

3. Direitos humanos como


foco da psicologia jurídica

A psicologia possui “dívidas históricas” com a sua atuação no âmbito


dos direitos humanos e está sendo sempre convocada para o compromisso
social. Os direitos humanos é uma questão discutida não apenas no Brasil,
mas também nos países em desenvolvimento. Em nosso país, a psicologia
somente começou a se posicionar após o Golpe Militar, de 1964, quando
os profissionais questionavam qual seria o seu papel na conscientização e
organização junto à maioria da população (LANE, 2005). A partir da década

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de 1970, havia uma demanda de estudos sobre o posicionamento da
psicologia frente ao compromisso social. Neste período, a psicologia clínica
era predominante e suas abordagens teóricas tinham como foco somente o
indivíduo, desconsiderando o contexto sócio-histórico em que as pessoas
estavam envolvidas (YAMAMOTO, 2006).

Foi a partir do contexto supracitado que a atuação dos profissionais


de psicologia no Brasil foi construída por meio de uma necessidade de
compromisso social, que costuma ir além da concepção psicopatológica
daquele que é louco e de quem não é. Durante toda a sua construção
enquanto ciência, a psicologia entendeu que não se pode ajustar os
indivíduos às normas societais. Dessa forma, esta ciência compreende que
a saúde mental é um modo de viver e é direito de todos e isso implica uma
série de questões não apenas no âmbito psicológico, mas também social,
educacional, monetário, institucional, relacional, familiar etc. A psicologia
possui um papel político no desenvolvimento da sociedade, já que ela é
capaz de compreender os sistemas nos quais o homem está inserido.

Pensar as ações da psicologia jurídica significa compreender a


perspectiva da constituição dos sujeitos em diversos contextos, isso
inclui refletir sobre a construção dos direitos humanos. Considera-se que
toda pessoa tem direitos inerentes à sua natureza humana, isso inclui o
respeito a liberdade, a dignidade e a oportunidade de uma vida plena e o
desenvolvimento saudável. Afirma-se que os princípios históricos elencados
como direitos humanos visam o respeito ao outro e a busca pela paz, a
igualdade, a justiça, a cidadania, a solidariedade e a democracia.

Ao ratificar os principais instrumentos internacionais de direitos


humanos, o país incorpora os princípios, diretrizes, obrigações ao
ordenamento nacional. Isso inclui medidas para o desenvolvimento nacional,
a erradicação da pobreza, redução das desigualdades, a promoção do bem-
estar, a eliminação das diversas formas de preconceitos e discriminação.

No Brasil, a inclusão e o avanço dessa perspectiva no ordenamento


social, político e jurídico são reflexos e resultados de mobilizações históricas,
materializadas na efetivação da Constituição Federal de 1988. Anteriormente,
o marco da Declaração Universal dos Direitos Humanos (10 de dezembro
de 1948) pautou novas formas de relações sociais para convivência humana,
fundamentada em pactos, tratados e convenções internacionais.

PSICOLOGIA JURÍDICA | 13
Atualmente, existe um arcabouço internacional sobre a proteção aos
direitos humanos. Em 1993, houve uma atualização sobre os conceitos
fundamentais desses instrumentos com a Conferência de Viena (ONU),
reconhecendo e legitimando os postulados da universalidade, indivisibilidade
e interdependência; reforçando e recomendando a atuação dos Estados
Nacionais na garantia dos direitos, através de políticas, planos, programas,
projetos. Essa abordagem se concretiza na elaboração do primeiro Programa
Nacional de Direitos Humanos – PNDH I (1996). O segundo constituiu uma
revisão e atualização, foi lançado em 2002, o Programa Nacional de Direitos
Humanos – PNDH II. A terceira versão do Programa Nacional de Direitos
Humanos – PNDH-3 ampliou ainda mais a referência da garantia dos direitos
e do compromisso das políticas públicas.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH, em


conjunto com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e seus dois
Protocolos Opcionais e com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais e seu Protocolo Opcional, formam a Carta Internacional
dos Direitos Humanos. Os tratados internacionais que expandiram o
direito internacional dos direitos humanos: Convenção para a Prevenção e a
Repressão do Crime de Genocídio (1948); Convenção Internacional sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965); Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
(1979); Convenção sobre os Direitos da Criança (1989); Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência (2006).

De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu


art. 1º: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns
aos outros com espírito de fraternidade”. Esse princípio primordial caracteriza
a condição humana dos indivíduos.

Já o art. 2º do documento estabelece: “Todo ser humano tem


capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta
Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo,
idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou
social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Esse princípio
estabelece a condição de sujeitos sociais, regula a vida em sociedade sem
discriminação e preconceito de qualquer natureza.

14 | PSICOLOGIA JURÍDICA
E o art. 3º da referida declaração afirma: “Todo ser humano tem
direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Esse princípio amplia a
possibilidade para os seres humanos de viver em condições adequadas.

Um dos questionamentos principais, considerando os direitos humanos


é: como ser “normal” em uma sociedade adoecida? Se corrige o sujeito
ou se corrige a sociedade? A psicologia se interessa pela condição humana
que é compreendida pelo comportamento, desenvolvimento ou subjetividade.
Cada uma dessas variáveis possui estudos bastante densos capazes de
ajudar a nortear o trabalho do psicólogo.

Na defesa da dignidade humana, a psicologia deve orientar as


suas práticas e produções. É imprescindível considerar que situações de
opressão, segregação é algo natural, pois não é. O psicólogo deverá nortear
seu trabalho pelo princípio democrático e da universalidade dos direitos
humanos, independente do caso que lhe é apresentado. A ação humana é
inerente de autonomia, liberdade e pluralidade. A dignidade humana é degrada
pela autossuficiência, precariedade, privilégios e opressões. Todas essas
condições afetam mais pessoas e as colocam em posição de sobrevivência
e para tanto acabam por tornarem-se aquilo que muitas vezes não querem.

O campo do sistema judiciário apresenta uma demanda por


intervenção interdisciplinar e intersetorial, com diálogos entre as políticas
públicas sociais e o sistema jurídico. Nessa área, são possíveis a atuação
e a perspectiva de diálogos entre a psicologia e o direito. O trabalho
interdisciplinar é caracterizado pela complementaridade, na qual há a
presença de profissões que produzem conhecimentos independentes, mas
que são necessários para uma melhor compreensão do problema, dessa
forma cada saber irá contribuir com sua especificidade, não anulando, mas
complementando o trabalho de outros profissionais.

A interdisciplinaridade consiste num trabalho comum, no qual se


considera a interação das disciplinas científicas, de seus conceitos, diretrizes,
de sua metodologia, e de seus procedimentos. A interdisciplinaridade se
caracteriza pela intensidade das trocas entre os especialistas, pelo grau de
interação real das disciplinas.

Fonte: https://bit.ly/2Q5TgRz.

PSICOLOGIA JURÍDICA | 15
4. A psicologia social e a sua
interface com o campo jurídico
As teorias que serão apresentadas a seguir servem para que
você, estudante, possa entender que a perspectiva da compreensão do
comportamento humano se eleva em diversos níveis. A psicologia enquanto
ciência e que atua no âmbito jurídico se apropria de diversos saberes
acerca do fenômeno apresentado. A relação entre a psicologia social e a
psicologia jurídica perpassa um histórico que envolve estudos com grupos,
o tempo histórico envolvido, a relação com a política vigente e os grupos
marginalizados.

Considerando o contexto no qual a psicologia foi construída, surge a


necessidade de uma psicologia brasileira, como uma ciência crítica capaz
de indagar a realidade que era afirmada hegemonicamente como natural
(FERNANDES, 2012). Para tanto, surge a psicologia social nos Estados
Unidos em uma forma psicológica de psicologia social ou como chamamos de
psicologia social psicológica. Uma das teorias mais influentes foi a Teoria
de Identidade Social, de Henri Tajfel, e a Teoria das Representações
Sociais, de Serge Moscovici (FAAR, 1996).

Entende-se por identidade social a forma como nos olhamos,


comparamos, identificamos e nos categorizamos em diversos contextos.
Tajfel explicava que a identidade social possuía um significado emocional e
havia uma avaliação deste pertencimento para o indivíduo. É dessa forma que
existem diversos grupos nos quais as pessoas se identificam ideologicamente,
na vestimenta, na alimentação, nos valores, nas crenças etc. (FAAR, 1996).

A teoria da identidade social desenvolvida por Tajfel e Turner, na


década de 1970, possui três características: a categorização social, no qual
o indivíduo se organiza no mundo em categorias; a identificação social,
o indivíduo se inclui em algumas dessas categorias, o que aumenta a sua
autoestima, e a comparação social, no qual o indivíduo se compara com
outros grupos e favorita o grupo atual.

A primeira característica possui uma dimensão cognitiva que está


ligada à necessidade dos indivíduos em lidarem com o excesso de informação
e assim produzem arranjos com o objetivo de simplificar a sua realidade,
obtendo informação adicional relativamente a cada elemento do grupo. As
outras suas características possuem uma dimensão motivacional ligada
à necessidade dos indivíduos a manterem a sua autoestima por meio da
inserção em grupos sociais.

16 | PSICOLOGIA JURÍDICA
A Teoria das Representações Sociais, de Serge Moscovici, deriva da
ideia de Émile Durkheim quando discutiu a “representação coletiva” que
explica a relação do pensamento social ao pensamento individual. Moscovici
se preocupava com interrelação entre sujeito e objeto, de como ocorre o
processo de construção do conhecimento, ao mesmo tempo individual e
coletivo, na construção das representações sociais, um senso comum. De
acordo com o autor, as relações sociais que os indivíduos estabelecem no
seu dia a dia são produto de representações que são facilmente aprendidas.
A representação social apresenta-se com duas dimensões, que são o sujeito
e a sociedade, e situa-se no limiar de uma série de conceitos sociológicos e
psicológicos. Essa teoria tem como objetivo o conhecimento da construção
do senso comum, que permite aos indivíduos interpretarem o mundo e
orientarem a comunicação entre eles, permitindo ainda que ao entrar em
contato com um determinado objeto, eles o representam e de certa forma
criam uma teoria orientativa para as suas ações e comportamentos.

Gabriel Tarde é tido como o pai da psicologia social sociológica.


Essa perspectiva de compreensão dos fenômenos psicológicos é a ligação
entre a sociologia, a psicologia social e a etnologia. Esta psicologia social
possui influência da Escola de Chicago e do interacionismo simbólico,
ambas de tradições sociológicas. A Escola de Chicago é uma sociologia
urbana, influenciada por Durkheim e Tarde. O interacionismo simbólico foi
elaborado por Hebert Blumer e emergiu sob a influência de Sheldon Stryker
(1924-2016) e Erving Goffman (1922-1982). De acordo com o interacionismo
simbólico, os seres humanos atuam no mundo e o interpretam amparados nos
significados que lhe são apresentados. Estes significados são provenientes
da interação social ou provocados por ela e se mantêm com as demais
pessoas e os significados são manipulados por um processo hermenêutico
utilizado pelo agente ao se relacionar com os elementos que ele entra em
contato (pessoas, ambiente, cultura etc.).

Na tese de doutorado de Coimbra (1995), ele realizou um levantamento


de algumas práticas vigentes da psicologia a partir dos anos 70, no qual os
profissionais anulavam a historicidade do fenômeno psicológico. O autor
identificou que os profissionais utilizavam técnicas de tortura justificadas pelos
testes psicológicos para explicar o desajuste do indivíduo e comprometida
com os presos políticos. Tais fatos remetem à reflexão da interface da
psicologia com os direitos humanos, no qual é necessário um diálogo com
outras áreas (FERNANDES, 2012).

PSICOLOGIA JURÍDICA | 17
Considerando ainda que o Brasil é um país localizado na América
Latina, cujas características se diferem de outros países, a necessidade
desta psicologia emerge priorizando tais características para compreender
os fenômenos psicológicos. Toma-se, portanto, Ignácio Martin-Baró,
assassinado em novembro de 1989, em El Salvador, e a sua revisão acerca
da psicologia social inspirada na Teologia da Libertação, trazida por Silvia
Lane para o Brasil, como o grande expoente da disseminação de novas ideias
e concepções sobre a psicologia vigente.

Martin-Baró (1996) afirma que é função do psicólogo participar nas


transformações da sociedade, principalmente no que tange à compreensão
acerca das condições opressivas em que vivem às populações. É
responsabilidade da psicologia, segundo ele, ser capaz de produzir o
desvelamento das desigualdades sociais produzidas historicamente pela
sociedade e atender aos grupos que vivem em situação de vulnerabilidade
seja ela de qualquer ordem.

Foi por esta perspectiva que ele explicou os diversos problemas da


psicologia no seu tempo, a saber:

a. a psicologia se apropriou de teorias importadas, das quais


mereciam uma análise crítica e sua adequação teórica à realidade
da América Latina;

b. a psicologia deveria adotar uma epistemologia a partir da


perspectiva do dominador;

c. a psicologia encontrava-se com foco em falsos dilemas e polêmicas


que respondem às questões da realidade da América Latina.

Considerando essa análise, a psicologia estava estagnada e incapaz


de contribuir com a melhoria das condições da vida das populações
marginalizadas. Cabia, portanto, a esta ciência ajudar a superar os problemas
destas populações. Martín-Baró propôs a psicologia da libertação, que
partia da realidade latino-americana, definindo suas questões a partir dos
problemas populares visando transformar a realidade social (MARTÍN-
BARÓ, 2011).

18 | PSICOLOGIA JURÍDICA
Martín-Baró (2011) foi um grande estudioso sobre a violência. Segundo
ele, todo ato é caracterizado por uma causa exterior e converte o indivíduo
em um instrumento para um agente externo e este ato é marcado pela
violência (MARTIN-BARÓ, 1964). Ele questionou ainda o papel do cristão
face à injustiça estrutural, considerando que a participação na construção
das revoluções sociais contra situações de pobreza, fome, miséria deveriam
ser algo urgente e admite que o uso da violência revolucionária poderia ser
feito contra a violência produzida pelas estruturas sociais injustas.

A injustiça institucionalizada e a desordem legalizada – na qual


somente uma ínfima minoria pode ser verdadeiramente humana, enquanto
grandes massas de seres humanos se debatem na mais infame miséria –
não admitem dúvidas ou demora. Em nossa sociedade, existe uma violência
permanente, amparada por uma legislação injustificável. Assim, a revolução
é uma exigência insubstituível e, talvez, a primeira coisa exigida para esta
revolução é uma tomada de consciência por todos (pobres e ricos) de sua
absoluta necessidade. (MARTÍN-BARÓ, 1968)

Para o autor, a existência de desigualdades sociais que são


produzidas pela estrutura social são as causadoras da violência como
conhecemos, porém, pouco se havia falado sobre as pessoas que vivem
dentro deste contexto de exploração e opressão social. A violência para
o autor, pode ser justificada quando existe um estado de injustiça e há uma
colisão do valor justiça com o valor amor ao próximo. Ele defende ainda que
existem diferentes tipos de violência no qual esta se transforma de acordo
com os interesses de determinados grupos e classes sociais.

Considerando tais aspectos, a ciência deverá ser convertida em um


instrumento capaz de orientar a ação política, tornando o Estado mais
democrático a partir das contribuições da psicologia. Se a ciência é tomada
como um instrumento orientador da ação estatal, ela poderá também ser
reconhecida como algo capaz de arbitrar quando a violência repressiva do
Estado é racional ou não.

Dessa forma a psicologia social se entrelaça com a psicologia jurídica


para compreender diversos fenômenos para além do direito, da sociologia e
da etnologia. Ela se apropria de grupos, da sociedade vigente, das normas,
dos valores, das crenças, da pobreza, da miséria, do gênero e tantos outros
vieses capazes de conversar com o seu campo de atuação. A perspectiva

PSICOLOGIA JURÍDICA | 19
da ciência psicológica e sua interface com os direitos humanos considera
as pessoas em situação de vulnerabilidade como produtoras de violência
devido à opressão da sociedade, e estas para sobreviver, precisam de um
espaço para serem compreendidas. É função do psicólogo que atua nesta
área considerar os indivíduos envolvidos nos processos para além do que
está descrito nos autos do processo.

5. A recepção da criminologia no brasil e os


"peritos da subjetividade”
Michel Foucault (1999) desenvolve sua teoria sobre as relações
de poder elaborando conceitos sobre o saber e o poder, que permitem
entender as contradições e desigualdades que perpassam as instituições
na sociedade. Procuramos aproximações, situando os discursos sobre as
relações de poder no sistema legal e normativo, localizando conexão entre as
referências teóricas no campo da psicologia e do direito.

Foucault (1999) expõe sobre as relações de poder, os discursos


e práticas presentes na interface do saber e do mecanismo de poder nas
instituições, das estratégias de controle relativos aos dispositivos sociais,
busca como método as instâncias de produção discursivas. Contextualiza a
construção dos discursos, mecanismos e dispositivos do saber, do poder e
do prazer. Sua análise considera o surgimento da sociedade burguesa, os
discursos no âmbito da sociedade capitalista.

Segundo Foucault (1999), até o fim do século XVIII havia três códigos
que regiam as práticas sexuais: o direito canônico, a pastoral cristã e a lei
civil, que se centralizavam nas relações matrimoniais e nas regras sobre a
sexualidade. A partir do século XIX, emergem discursos sobre “outros” da
sexualidade, situações à margem da norma. O autor cita quatro elementos
que contribuem para transformações sobre a sexualidade que repercutem
nas famílias:

I. Consideremos as velhas proibições de alianças consanguíneas e


a condenação do adultério com sua inevitável frequência; e por
outro lado, os recentes controles através do quais foi atacada
a sexualidade das crianças e foram perseguidos seus hábitos
solitários” (p. 42). [...];

20 | PSICOLOGIA JURÍDICA
II. Esta nova caça às sexualidades periféricas provoca a incorporação
das perversões e nova especificação dos indivíduos”. [...];

III. Mais do que as velhas interdições, esta forma de poder exige


para se exercer presenças constantes, atentas e, também,
curiosas; ela implica em proximidades; procede mediante exames
e observações insistentes; requer um intercâmbio de discursos
através de perguntas que extorquem confissões e de confidências
que superam a inquisição”. [...];

IV. Daí os dispositivos de saturação sexual, tão característicos do


espaço e dos ritos sociais do século XIX. Diz-se, frequentemente,
que a sociedade moderna tentou reduzir a sexualidade ao casal
(FOUCAULT, 1999, p. 42-45).

Com estes elementos, Foucault (1999) explica que a família do século


XIX se constituiu numa “célula monogâmica e conjugal”, mas também numa
“rede de prazeres-poderes”, articulados segundo múltiplos pontos e com
relações transformáveis. A família é o lugar onde se efetiva a lei, onde se
materializa o afeto, os sentimentos; a família reflete a sexualidade. Em
suas palavras, “[...] uma rede complexa, saturada de sexualidades múltiplas,
fragmentárias e móveis” (FOUCAULT, 1999, p. 46). O autor enfatiza que o
dispositivo familiar pode e foi usado como mecanismo de poder, servindo de
suporte às grandes manobras pelo controle malthusiano da natalidade, pelas
incitações populacionistas, pela medicalização do sexo e a psiquiatrização de
suas formas não genitais. (FOUCAULT, 1999, p. 95).

Para Foucault (1999, p. 89), poder é o nome dado para uma situação
estratégica complexa numa sociedade determinada, o que nos leva a
considerar que não corresponde a uma instituição ou estrutura, mas uma
força onipresente, porque se produz constantemente em toda relação,
encontra-se em todos os lugares, revela-se como correlação de forças,
com contradições e dinâmicas, como possibilidades e resistências. Assim, o
autor explica em detalhes este conceito: primeiro, como a multiplicidade de
correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas
de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes
as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força
encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou ao contrário,
as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias
em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma
corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais.
(FOUCAULT, 1999, p. 88-89).

PSICOLOGIA JURÍDICA | 21
Desta forma, compreende-se que o poder se exerce em relações
desiguais, nas quais as relações de poder constituem: [...] os efeitos
imediatos das partilhas, desigualdade e desequilíbrios que se produzem
nas mesmas e, reciprocamente, são as condições internas destas
diferenciações; [...] que o poder vem de baixo; [...] as correlações de força
múltiplas que se formam e atuam nos aparelhos de produção, nas famílias,
nos grupos restritos e instituições, servem de suporte a amplos efeitos de
clivagem que atravessam o conjunto do corpo social; [...] que as relações
de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas; [...] que lá
onde há poder há resistência e, no entanto, esta nunca se encontra em
posição de exterioridade em relação ao poder. [...]; existem resistências
ao poder, casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas,
selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis,
prontas para compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por
definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações
de poder (FOUCAULT, 1999, p. 89-91).

Foucault localiza, no século XVIII, a emergência de quatro estratégias


que desenvolveram dispositivos específicos de saber e poder sobre o sexo,
eles influenciam as relações de poder nas famílias, quais sejam: “histerização
do corpo da mulher; pedagogização do sexo da criança; socialização das
condutas de procriação; psiquiatrização do prazer perverso” (FOUCAULT,
1999, p. 99).

Diante destes elementos, o autor destaca que no século XIX, quatro


personagens se tornaram objetos privilegiados do saber: “a mulher histérica,
a criança masturbadora, o casal malthusiano, o adulto perverso” (FOUCAULT,
1999, p. 100). Sob este parâmetro, Foucault (1999) considera que a família,
valorizada no século XVIII, permitiu que nos eixos principais, marido-mulher
e pais-filhos, fossem desenvolvidos os principais elementos do dispositivo da
sexualidade.

O autor complementa que “a família é o permutador da sexualidade


com a aliança, transporta a lei e a dimensão do jurídico para o dispositivo da
sexualidade, e a economia do prazer e a intensidade das sensações para
o regime de aliança” (FOUCAULT, 1999, p. 103). Podemos compreender
a família como o lugar de expressão destas relações de poder. O autor
comenta sobre a relação entre o dispositivo da aliança e o dispositivo da
sexualidade nas famílias e constata “que a família tenha se tornado, a partir
do século XVIII, lugar obrigatório de afetos, de sentimentos, de amor; que a
sexualidade tenha, como ponto privilegiado de eclosão, a família; que por
esta razão, ela nasça incestuosa” (FOUCAULT, 1999, p. 103).

22 | PSICOLOGIA JURÍDICA
Foucault (1999) apresenta a constituição da família, presente na
atualidade, na qual o dispositivo da sexualidade se vincula, se estreita e se
intensifica cada vez mais à sua estrutura, substituindo os vínculos iniciais do
dispositivo da aliança. O autor constata que na família, os pais, os cônjuges,
tornam-se “[...] os principais agentes de um dispositivo de sexualidade que
no exterior se apoia nos médicos e pedagogos, mais tarde psiquiatras, e que,
no interior, vem duplicar e logo psicologizar ou psiquiatrizar as relações de
aliança” (FOUCAULT, 1999, p. 104).

Neste contexto, aponta que emergem novas personagens no


cenário familiar: a mulher nervosa, a esposa frígida, a mãe indiferente ou
assediada por obsessões homicidas, o marido impotente, sádico, perverso,
a moça histérica ou neurastênica, a criança precoce já esgotada, o jovem
homossexual que recusa o casamento ou menospreza sua própria mulher.
Todos os exemplos apresentados demonstram a aliança desviada e a
sexualidade anormal, exigindo das famílias a resolução de interferências, o
que leva o filósofo e historiador francês a concluir que “a família é o cristal no
dispositivo da sexualidade: parece difundir uma sexualidade que de fato reflete
e difrata” (FOUCAULT, 1999, p. 105). A família constitui para o dispositivo da
sexualidade um fator central de sexualização, quando as mulheres são alvo
desta investida.

Sobre a família, Foucault (1999) assinala que se constitui como


instância de controle e ponto de saturação sexual. Segundo o autor, foi
na família burguesa ou aristocrática que, inicialmente, a sexualidade das
crianças ou dos adolescentes foi problematizada, onde foi medicalizada a
sexualidade feminina; onde a mulher foi alertada para a patologia possível
do sexo, a urgência em vigiá-lo e a necessidade de inventar uma tecnologia
racional de correção. A perspectiva delineada por Foucault (1999) sobre as
relações de poder, a construção do saber e os discursos nos possibilita refletir
sobre as desigualdades e contradições na sociedade contemporânea.

Foucault (1999) instaura uma mudança de paradigmas ao compreender


o conceito de sexualidade, distanciando-se da noção básica, aproximando-
se da evidência familiar. O autor explica que o uso do termo sexualidade
surgiu no início do século XIX, ocorreu devido a outros fenômenos: o
desenvolvimento de campos de conhecimento diversos; a instauração de
um conjunto de regras e normas que se apoiam em instituições religiosas,
judiciárias, psicológicas e médicas, como também as mudanças nas quais os
indivíduos são levados a dar sentido e valor a sua conduta.

PSICOLOGIA JURÍDICA | 23
Foucault (1999) situa a sexualidade como uma experiência
historicamente singular, a qual dispõe de instrumentos suscetíveis de
análise em seu caráter e em suas correlações, considerando os três eixos
de sua constituição: “a formação dos saberes que a ela se referem, os
sistemas de poder que regulam sua prática e as formas pelas quais os
indivíduos podem e devem se reconhecer como sujeitos da sexualidade”
(FOUCAULT, 1999, p. 10). Para Foucault, essa experiência da sexualidade
aponta para uma genealogia a partir do século XVIII, ao “(...) analisar as
práticas pelas quais os indivíduos foram levados a prestar atenção a eles
próprios, se decifrar, se reconhecer e se confessar como sujeitos de desejo”
(FOUCAULT, 1999, p. 10).

Em síntese, o autor visava pesquisar nessa genealogia como


os indivíduos exerciam sobre eles mesmos e sobre os outros uma
hermenêutica do desejo, a qual o comportamento sexual desses indivíduos
se constituía. Buscava compreender de que maneira o indivíduo moderno
podia fazer a experiência dele mesmo enquanto sujeito de uma sexualidade,
assim, seria indispensável distinguir como o homem se reconheceu como
sujeito de desejo.

Foucault (1999) aponta o dispositivo de sexualidade, compreendida


como relações estratégicas de poder. A partir do século XVIII, surgiram as
ciências sexuais, expressas como disciplinas e saberes que visam o controle
dos corpos e sexualidades, produzindo subjetividades, no período histórico
da sociedade capitalista. Foucault (1999) explica e diferencia as abordagens
sobre a sexualidade, passando da hipótese repressiva de poder de uma
visão jurídica universal do poder reprimindo a sexualidade, deslocando para
uma concepção e poder que nega uma lei simbólica universal, pois se
expressa como multiplicidade de relações e forças que visa criar dispositivos
discursivos disciplinares de produção de novas formas de sexualidade.

Foucault (1999) considera que os modos de subjetivação e sexuação


são determinados historicamente, portanto, construídos e resultantes de um
jogo de poderes e discursos. Indica um modelo de poder, considerado uma
estratégia complexa de jogos de forças, cujos dispositivos de saber e poder
produzidos e validados repercutem sobre as famílias na sociedade.

...o autor visava pesquisar nessa genealogia


como os indivíduos exerciam sobre eles mesmos e
sobre os outros uma hermenêutica do desejo...

24 | PSICOLOGIA JURÍDICA
PRATIQUE
1. Explique como a psicologia se construiu dentro do campo jurídico.

2. Explique como a psicologia social compreende os fenômenos psicológicos.

3. Explique a teoria de Martin-Baró sobre a violência.

4. A partir da discussão de Martin-Baró sobre violência, faça uma discussão com


outra teoria de sua escolha que poderá ser pesquisada livremente por você.

5. Descreva as atividades que são executadas pelo psicólogo no âmbito jurídico.

PSICOLOGIA JURÍDICA | 25
RELEMBRE
Nesta unidade, você estudou como a psicologia se estabeleceu como
um campo científico de estudo do comportamento. A psicologia era, até então,
uma disciplina da filosofia e os seus defensores queriam a separação de ambas,
considerando que esta ligação dificultava o desenvolvimento da primeira.
A psicologia iniciou na Alemanha, no século XVIII, sob influência de René
Descartes, Charles Darwin, Jean Martin Charcot, Ivan Pavlov, entre outros.
Cada um destes influenciou na compreensão do comportamento humano.
Dentre os autores, no campo da psicologia jurídica, discute-se bastante sobre
Sigmund Freud e sua teoria do desenvolvimento sexual. Uma das grandes
contribuições de Freud foi a nova perspectiva que ele trouxe no tratamento
dos transtornos psicopatológicos. Foi a partir dos estudos de Freud que os
profissionais começaram a ouvir o que os pacientes com transtornos tinham
a dizer sobre suas vidas.
A psicologia jurídica surge no mundo devido à psicologia do testemunho,
que discutia se um depoimento era verídico ou não. O marco desta área de
atuação está no livro “Manual de Psicologia Jurídica” de Myra e Lopes, que
somente chegou ao Brasil em 1955.
A profissão de psicólogo somente é instituída em 1962, porém, antes
disso, já haviam profissionais que atuavam em nosso país produzindo laudos e
aplicando testes psicológico para presos. Este início deste campo de atuação
no âmbito jurídico trouxe alguns problemas para os profissionais que durante
muito tempo tiveram que lutar contra a psicopatologização do crime.
A psicologia social é também uma área de atuação da psicologia que
possui sua interface com o mundo jurídico. É por meio dela que se elevam os
níveis de compreensão da construção da sociedade, dos grupos da cultura, da
violência, entre outros. Ela torna-se importante dentro do contexto jurídico pois
é capaz de compreender os comportamentos de forma coletiva, trazendo novas
perspectivas para o entendimento do ser humano. A psicologia social pode ser
psicológica ou sociológica e cada uma delas expõe uma forma particular de
compreender os fenômenos existentes. Entre os tipos de psicologia social, a
mais conhecida no Brasil é a psicologia social sociológica, que norteia bastante
o trabalho dos psicólogos jurídicos nos mais diversos setores.

26 | PSICOLOGIA JURÍDICA
Ignácio Martin-Baró foi um grande disseminador da psicologia social
sociológica, que ele denominou de psicologia da libertação e considerava que
era função do psicólogo promover mudanças sociais e analisar a sociedade
por meio da opressão que viviam os grupos marginalizados. Para que isso
ocorresse, era necessária uma psicologia que se apropriasse da sua própria
realidade e não utilizasse de modelos teóricos estrangeiros que não serviam
à América Latina.

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