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PIERRE BOURDIEU QUESTOES DE SOCIOLOGIA “O autor reine nesia compllagio vinte € um textos que Sie todos eles trazos de paayras ditas, soba forma de confertncits, comunicagées e intervengies em coloquios, ou entrevistas daelas a diversos jornais. Ligeiramente retoca: ‘dos, estes textos guardam as virtues da orabelade:a complexidade das dei- nigGes e das anilises constr6i Operirosexpeilzaos ou qulifcados porn pa xeriio de wins eet ngs w mat enero neanicamenes peri (hl eT) 2 Centrais sindicais francesas,respectivamente Confédénation générale di travail (Confederecio Geral doTebulo) ¢ Codon fama dino Staal (Confedergie Bunce: Democrsica do Tiabalha}.NdoT) 1s 8 organizagdes, descobriciamos os eftitos de relagies diferentes com 6 sistema escolar que se retraduzem muitas vezes sob a forma de conflitos de geragSes, Mas para se precisarem estas intuigSes seria necessitio proceder a andlites empfricar que nem sempre sio posiveis P. Como se poderi constituir uma oposicao 4 imposicao dos valores dominantes? ~Correndo 0 risco de o surpreender, responderei com uma citagao de Francis Ponge: “E entio que ensinar a arte de resistir as palavres se torna dtil, a arte de no se dizer senio o que se quer dizer. Ensinar a cada um a arte de fandar a sua propria retérica é uma obra de salvagio piblica.” Resistir as palavras, no se dizer senio © que se quer dizer: falar ein vex de ser falado por palavras de empréstimo, carregadas de sentido social (como quando se fala por exemplo de um “encontro de iipula” entre dois respon siveis sindicais ou quando 0 Libfnation fala dos "*nosses” navios a propésito do Normandie © do France), ou flado por porta-vores que sio eles proprios falados, Resistie 48 palavras neutralizadas, ‘eufemizadas, banalizadas, em suma a tudo o que faz a solenidade ca da nova retdrica dos altos responsiveis administrativos, mas também 3s palavras gastas, repisadas, até ao siléncio, das mogoes, resolugdes, pltaformas ou programas. Toda a linguagem que & produto do compromisso com as censuras, interiares ¢ exteriores, exerce um efeito de imposicio, imposigio de impensado que desencoraja o pensamento Houve quem se servisse demasiadas vezes do alibi do realismo ou da preocupacio demagagica do ser-se “‘compreendido pelas ‘massas” para substituir 0 slagan 4 andlise. Penso que acabam por ter de se pagar todas as simplificagdes, todos os simplismos, ou por fazer com que os paguem os outros. + No original, réthorque émerchigue, gue serve para designar a retorica da Bal nationale d’adovinicration (eujasigla € ENA, de onde o adjective énarhigue ‘ou “enarea") que se destina a formar os quadres cuperiores da administragio © € ama das mais célebres “grandes escalas” de elite (ged foes) do ensina superior em Franga, (N, do) 20 P. Os intelectuais tém entio um papel a desempenhar? — Sim, evidentemente. Porque a auséncia de teoria, de anilise tedrica da tealidade, coberta pela lingaagem de aparelho, faz nascer monstros. © slogan e 0 anitema conduzem a todas as formas de terrorismo, Nao sou tio ingénuo que pense que a existéncia de uma andlise rigorosa ¢ complexa da realidade social baste para por ao abrigo de todas as formas de desvio terrorista ou totali- tirio. Mas tenho a certeza de que a auséncia dessa anilise Ihes deixa 0 campo livre. E por isso que, contra o amticientismo que anda no ar do rempo ¢ do qual os novos idedlogos se alimentarn abundantemente, defendo a ciéncia e até mesmo a teoria quando sta tem por efeito proporcionar uma melhor compreensio do mundo social. Nao temos de escolher entre © obscuraatisme € 0 Gieutismo. “Entre dois males”, dizia Karl Kraus, “reeuso-me a escolher © menor” © facto de nos darmos conta de que a ciéneia se tomou um instrumnento de legitimagio do poder, que 03 novos dirigentes governam em nome da aparéncia de ciéneia econdmico-politiea adquirida em Sciences Po* ¢ nas Businessschools, nio deve condu- Zit-nos a um anticientismo romintico e regressivo, que coexiste sempre, na ideologia dominante, com o professar do culto da ncia, Trata-se antes de produzir as condigées de um novo expirito cientifico ¢ politico, libertador porque liberto das census. P. Mas nao ha assim o risco de se recriar uma barreira de linguagem? —O meu objectivo é contribuir para impedir que se possa dizer seja 0 que for sobre 0 mundo social. Schoenberg dizia um dia que compunha para que as pessoas deixassem de poder escre- ver miisica. Escrevo para que as pesoas, ¢ antes do mais aqueles que tém a palavra, os porta-vozes, deixem de poder produzir, a propésito do mundo social, um ruido que tem as aparéncias da misica, * Quseja, Hele de Sciences Politiques (Escola de Ciénciss Politics), oucra das mais presigisdas grandes doles jf referidhs na nota de teadugio anterior. (Ndr) Quanto a dar a cada um 9s meios de fandar 2 sua propria retérica, como diz Francis Ponge, de ser 0 seu préprio porta-voz verdadeiro, de falar em lugar de ser falado, tal deveria sera ambi- so de todos os porta-vozes, que seriam sem davida coisa com- pletamente diferente do que sio se se dessem 0 projecto de tri- balhar pela Sua propria extinclo. A verdade é que podemos sonhar. por uma vez. 2 UMA CIENCIA QUE INCOMODA* P. Comecemos pelas questées mais evidentes: as ciénicias sociais, ea sociologia em particular, serio verdadeiramente ciéncias? Por que razio voce experimenta a necesidade de reivindicar a cien- tificidade? — A sociologia parece-me ter todas as propriedades que defi- nem wma ciéncia, Mas em que grau? A questio é essa. E a resposta que se lhe pode dar varia muito segundo os socidlogos. Eu ditia apenas que hi muitas pessoas q e que confesso ter certa dificuldade em reconhecer como tais, Ent sociologia aiu da pré-historia, quer dizer da época das grandes teorias da filosofia social com que os profinos muitas vezes a identificam. © conjunto dos socidlo~ 08 dignos desse nome pée-se de acordo em torno de um capital comum de aquisi¢ vetificagio. Resta 0 facto de, por razdes sociolagicas evidentes = entre outras porque desempenha mnitas vezeso papel de disci- c dizem & se eréem socidlogos todo 0 caso, hi muito que <, conceites, métodos, procedimentos de plina refiigio —, a sociologia ser uma disciplina muito disposa (no sentido estatistico do termo) ¢ isto de diferentes pontos de vista © que explica que 2 sociologia dé 3 aparéncia de uma disciplina dividids, mais préxima da filosofia que das outraé ciéacias. Mas © problema no esti af: se se manifestam tantos escripulos acerca da cientificidade da sociologis, @ porque 3 sociologia incomoda, + Entrevista com Piesre Thuillier. Lr Rechovhe, a." 112, Junho de 1980, ppT3E 7. P. Voeé nio é levado a par-se questdes que objectivamente se pdem 4s outras ciéncias, embora os cientistas nfo tenham, concretamente, de as por? — A sociologia tem o triste privilégio de se confrontar inces- santemente com a questio da sua cientificidade. B-se mil vezes menos exigente para com a histéria ou a etnologia, para ji no Galarmes da geografia, da filologia ou da arqueologia. Incessante- mente interrogado, 0 socidlogo intetroga-se € interroga inces- santemente. © que faz com que se acredice num imperialismo sociolégico: © que & esta ciéncia incipiente, balbuciante, que se permite submeter a exame as outtas ciéucias! Estou a pensar, cvidentemente, na seciologia da cigncia. De facto, a seciologia info Faz mais que por is out de maneira particularn nite agu critica, talvez seja por estar & prépria numa posigie iti A's0- ciologia constitui problema, como costunna dizet-se. Sabe-se por exemplo que The foi imputado Maio de 1968. Contesta-se nto 56 a sua existéncia enquanto cine pura e simples. Neste momento sobretudo, emt que alguns que tém infolizmente o poder de 0 conseguir, trabalham no sentido da sua destruiga meios 2 “sociologia” edificante, estilo Institut Auguste Comte ou Sionees Po. O que é amas também a sua existncia . Ao mesmo tempo que reforgam por todos os fo em nome da ciéneia, ¢ com a cumpli cidade activa de certos “cientistas" (no sentido trivial do termo). P. Por que azo sociologia constitui um problems particular? — Porqud? Porque desvela coisas eccondidas ¢ por vezes recal- cadas como 2 correlagio entre 0 sucesso escolar, que é identifi- cado com 2 “inteligéncia’”, ea origem social ou, melhor, o capital cultural herdado da familia. Sio verdades que os tecnocratas, os epistemocratas — quer dizer bom niimero dos que Iéem a socio- logia e dos que a financiam —nao gastam de ouvir. Outro exer plo: mostrar que © mundo cientifico € lugar de uma concorrén- cla que. orientads pela busca de ganhos especificos (prémios, Nobel ¢ outros, prioridade da descoberta, prestigio, ete.), e con duzida em nome de interesses especificos (quer dizer irredutiveis 24 20s interesies econémicos sob a sua forma comum e percebidos por isso como “desinteressados"), é pdr em questio uma hi grafia cientifica da qual participam muitas vezes os cientistas € da qual tém necessidade para acreditar naguilo que fazem. P. Deacordo: a sociologia parece agressiva ¢ ineémoda. Mas por que razio 0 discurso socioligico terd de ser “cientifico”? Os jomalistas também pdem questdes incémodas; ora nem por isso se reclamam da ciéncia. Por que é decisive que haja uma fronteira entre a sociologia € um jornalismo critico? = Porque hi uma diferenga objectiva, Nao é uma questio de ponto de honra, Hi sistemas coerentes de hipéteses, conceitos, métodos de verificagao, tudo 0 que comummente se associa 4 ideia de ciéncia. Por conseguinte, por que nao dizermos que ela € uma cigncia se é de facto uma? Tanto mais que a parada em jogo ¢ muito importante: uma das maneiras de pér de lado ver- dades incémodas é dizer adizer que so “politicas” a “paixio”, portanto relativas ¢ relativiziveis. ue nio so cientificas, 0 que equivale quer dizer suscitadas pelo “interesse”, P. Se se pe § sociologia a questio da sua cientificidade, sera também por ela se ter desenvolvido com um certo atraso em relagio as outras ciéncias? — Sem diivida, Mas isso deveria fazer ver que esse “atraso” se liga ao facto de a sociologia ser uma ciéneia especialmente dificil, especialmente improvivel. Uma das dificuldades maiores reside no facto de os seus objectos serem paradas em jogo de Incas; coisas que se escondem, que se censuram, pelas quais ha quem esteja disposto 2 morrer. O que é verdade para o proprio inves- tigador que esta em jogo nos seus préprios objectos. E a dificul- dade particular que hi em fazer sociologia liga-se muitas vezes 20 facto de as pessoas terem medo daquilo que vio encontrar. Asociologia confronta sem parar aquele que a pratica com reali- dades rudes; desencanta. E por isso que, contrariamente a0 que se cré muitas vezes, tanto dentro como fora dela, nio oferece nenhuma das satisfagOes que 2 adolescéncia procura muitas vezes no cometimento politico, Deste ponte de vista, situa-se inteica mente no pélo opasta dar cigneias ditas “puras” que, como a arte € muito especialmente a mais “pura” de todas, a musica, io em parte, sem diivida, refiigios para onde nos retiramos para es quecer o mundo, universos depurados de tudo 0 que consttut problemapcomo a sexualidade ou a politica. E por isso que os espiritos formais ou formalistas fazem em geral uma sociologia mediocre. P. Vocé mostra que a sociologia intervém a propésito de questdes socialmente importantes. O que pde 0 problema da sua “neutralidade”, da sua “objectividade”. O socidlogo poders ficar fora ca salvo da confusio, em posigio de obsecvador imparcial? — O socidlogo tem por particularidade ter por objecto cam- pos de lutas: nio s6 0 campo das hutas de classe, mas 0 proprio campo das lutas cientifieas. E 0 socidtogo ocupa uma posigio nestas lutas em primeiro lugar enquanto detentor de um cerco econémico ¢ cultural, no campo das elasies; em seguida, janto investigador dotado de um cesto capital especifico no campo da produgio cultural e di sociologia. Trata-se de um aspecto que ele deve ter sempre presente no espirito, pars tentar controlar tudo 0 que a sua pritica, oque d preeistmente, no subcampo vé e nio vé, 0 que ele faz ¢ nio faz — por exemplo ox objectos que escolhe estudar—, deve 4 sua posi¢io social. E por isso que a sociologia da sociologia nfo 6, para mim, uma “espe- Cialidade” entre outras, mas ums das condigdes primeiras de uma sociologia cientifica. Parece-me com eftito que uma das casas principais do erro em sociologia reside numa relagio incontrolada como objects. Qu mais exactamente na ignorincia de tudo 0 quea visio do abjecto deve ao ponto de vista, quer dizer & pasicie ocupada no espaco social e no campo cientifica As oportuntdades de se contribuir para produzir a verdade parecem-me com efeito depender de dois factores prineipais, que estio ligados 4 posigao ocupada: o interesse que se tem em saber e-em fazer saber a verdade (ow, inversamente, em a ewonder € em a esconder a st préprio) ea capacidade que se tem de pro- 26 duzi-la. E conhecida a afirmacio de Bachelard: “Sé hi ciéncia do que esti escondide.” O socidlogo estara tanto melhorarmado pera des-cobrir ese escondido quanto melhor armado estiver cientificamente, quanto melhor utilizar 0 capital de conceites, de métodos, de técnicas acumulado pelos seus predecessores, Marx, Durkheim, Weber, e muitos outros, e quanto mais “critico” for, quanto mais for subversive a inten¢io consciente ou inconsciente que o anima, quanto mais interesse tiver em revelar 0 que € censurado, recalcado, no mundo social. E se a sociologia nio avanga mais depressa, como @ ciéncia social em geral, talvez seja, em certa medida, porque os dois factores tendem a variar em razio inversa. Seo socidlogo consegue produzir um pouco que seja de ver- dade, nio apeser de cer interesse em producir essa verdade, mas porque tem interesse nisso ~ 0 que é muito exactamente o inverse do discurso um tanto estupidificante sobre a “neutralidade”’. Este interesse pode consistir, como em qualquer outro lugar, no desejo dese ser 0 primeiro a fazer uma descoberta ¢ de se apropriar de todos os dircitos a tal associados ou na indignagio moral ou a Fevolta contra certas formas de dominagio ¢ contra aqueles que as defendem no interior do campo cientifico, Em suma, nio hi imaculada concei¢io; aio haveria muitas verdades cientificas se tivéssemos de condenar esta ou aquela descoberta (basta pensar na ““dupla hélice”) a pretexto de as intengdes ou 0s procedimentos dos seus autores nio terem sido i muito puros. P. Mas no caso das cigncias sociais, o “interesce”, a “paixio", ‘0 “empenhamento”, aio poderio conduzir 4 cegueira, dando assim razio aos defensores da “neutralidade"? =De facto, ¢ ¢ isso que constitui a dificuldade particular da sociologia, esses “interesces”, essas “paixdes", nobres ou igndbeis, nio conduzem 5 verdade cientifica a nio ser na medida em que se acompanhem de um conhecimento cientifico daquilo que os esque impdem a0 conhecimento, Por exem- determina, ¢ dos li plo, todos sabemos que o ressentimento ligado ao fracasso s6 torna quem o experimenta mais lticido em relagio so mundo social cegando-o ao mesmo tempo em relacio ao proprio principio dessa lucidez. Mas isto ngo € tudo. Quanto mais ayangada é uma ciéncia quanto mais importante € o capital de saberes acumulados nel, anais as estratégias de subversio, de critica, sejam quais forem as suas “motivagSes”, devem, para ser eficazes, mobilizar um saber importante. Em fisica, € dificil triunfar sobre um adversario recorrendo 0 argumento de autoridade ou, como ainda acon— tece em sociologia, denunciando o contetido politico da sua teoria As arma: da critica devem sernela cientificas para serem eficazes Em sociologia, pelo contrério, toda a proposigio que contradiga as ideias feitas se expe a ser suspeita de preconceito ideologico, de tomada de partido politica, Fere interesses sociais: os interes sex dos dominantes que sio cdmplices do-siléncio, ¢ do “bom senso” (que diz que aquilo que ¢ deve ser, ou nao pode ser de outra maneita); os interesses dos porta-vozes, dos altifalantes, que tam necessidade de ideias simples, simplistas, de esteredti- pos. E por isso que lhe so pedidas mil yezes mais provas (0 que esti, com efeito, muito bem) que 20s porta-vores do "*bom senso”. E cada descoberta dla ciéneia desencadeia um imenso trabalho de “critica” retrograda, que tem a seu favor toda a ordem social (os créditos, 05 postos, as honras e, portanto, a crenga) e que visa recobrir © que tinha sido descoberto. P. Hai pouco, citou de um mesmo folego Marx, Durkheim ¢ Weber. O que equivale a supor que as respectivas contribuigdes sio curmulativas. Mas as suas abordagens sto, de facto, diferentes Como conceber que haja uma ciéncia tinica por tras dessa diver- sidade? ~ HA mais que um caso em que nfo podemos fazer avangar a ciéncia a nie ser na condigio de fazermos comunicar teorias opostas, que muitas vezes se consticuiram umas contra as outras Nijo se trata de operar essas falsas sinteses eclécticas que pulularam em sociologia. Diga-se de passagem, a condenacao do cclectismo tem servido muitas veees de alibi A incultura: € to facil e tio confortivel cncerrarmo-tios numa tradicae: 0 marxismo, infeliz 28 . mente, preencheu em grande medida esta fungio de teanquiliza~ ‘lo preguicosa. A sintexe ndo é possivel sendo ao prego de uma posigio em questio radical que conduz ao principio do antago- nismo aparente, Por exemplo, contra a regressio comum do marxismo no sentido do economicismo, que sd conhece a econo mia no sentido restrito da economia capitalista e que explica tudo pela economia assim definida. Max Weber alarga a analise econémica (num sentido generalizado) a terrenos habitualmente abandonados pela economia, como a religiZo. Assim eecae a Igreja, por meio de uma férmula magnifica, como detentora eoeaesle da manipulagio dos hens de salvacio. Convica a uum materialismo radical que investiga as determiinantes econdmicas, (no sentido mais amplo) em terrenos onde reina a ideologia do “desinteresse”, como a arte ou a religizo. [A mesma coisa se passa com a nogio de legitimidade. Marx rompe com a representario corrente do mundo social fazendo ver que as relagdes “encantadas” — as do paternalismo por exem- plo—escondem telacdes de forga. Weber aparenta contradizer tadicalmente Marx: lembra que a pertenca ao mundo social im- plica uma parte de reconhecimento da legitimidade, Os pro! sores — cis um belo exemplo de efeito de posigao ~retém a dife- renga. Preferem opor os autores a integri-los. £ mais cGmodo para claborar licdes claras: primeira parte Marx, segunda parte Weber, terceira parte cu proprio... Ao passo que a Kigica da investigagio conduz a superar a oposigo, remontando a maiz comum. Marx evacuou do seu modelo a verdade subjectiva do mundo social contra a qual estabeleceu a verdade objectiva dese mundo como relagie de forgas, Ora, se 0 mundo social se reduzisse sua verdade de relagio de forgas, se nio fosse, em certa medida, reconhecido como legitimo, as coisas nfo funcionariam. A repre sentaZo subjectiva do mundo social como legitimo faz parte da verdade completa desse mundo. P, Por outras palavras, vocé esforga-se por integrar num mes— mo sistema conceptual contributos teéricos arbitrariamente sepa tados pels Histéria ou pelo dogmatismo 2 ~ Durance # maior parte do tempo, o obsti conceitos, os métodes ou as téenicas de comunicar nio é logico sulo que impede os mus socioligico. Os que se identificaram com Marx (ou com Weber) no podem apoderar-se do que Ihes parece sera stia negacio sem terem 2 imprescio de se negar, de se renegar (nio devemos esqueter que para muitos dizerem-se marxistas nao € mais que uma profissio de fe—ou um emblema totémico). © que vale tam- bbém para as relaces entre “teéricos” e “empiristas”. entre defen- sores da investigaeio dita “fundamental” € da investigacio dita “aplicada”. & por isso que a sociologia da ciéncia pode ter um feito cientifico. P. Deveri entender-se que uma sociologia conservadora esti condenada a ser superficial? ~ Os dominantes véem sempre com maus olhos ¢ socidlogo, ou 0 intelectual que faz as suas vezes quando a disciplina ainda nao esti constituids ou nio pode fancionar, como hoje na Unss, Sio cimplices do silencio porque nada tén a replicar ao mundo que dominam ¢ que, por isso, [hes aparece como evidente, como “Sbvio social que podemos fazer depende da relagio gue mantemos com © mundo social, € portanto da posigio que ocupamos nesse mundo, . O mesmio € dizer, uma ver mais, que 0 tipo de ciéncia Mais precisamente, esta relagio com 0 mundo tradue-se na fungao que 0 investigador atribui consciente ou inconseientemente a sua pritica ¢ qu objectes escolhiddos, métodos usados, ete. Pode ter-se por fim compreender 0 mundo social, no sentido de compreender para compreender. Podem-se procurar, pelo contririo, técnicas que governa as suas estratégias de investigagio: permitam manipuli-lo, pondo assim a sociologia 20 servico da \gestao da ordem estabelecida. Para que se compreenda melhor, um exemplo simples: a sociologia religiosa pode identificar-se com uma investigagio de destino pastoral que toma por objecto os leigos, as determinantes sociais do praticar ou do nio-praticar, uma espécie de estudos de mercado permitindo racionalizar as estratégias sacerdotais de venda dos “bens de salvacic pode 30 pelo contrario dat-se por objecto compreender 0 fimcionamento do campo religioso, do qual os leigos so apenas um aspecto, ocupando-se por exemplo do funcionamento da Igreja, das estea- téias através das quais ela se reproduz ¢ perpetua 0 seu poder —e entte a quais se deve consar 09 inquéritos sociclegicos (otiginalmente levados a efeito por um cénego). ‘Uma boa parte dos que se designam como socidlogos ou econo Inistas Go engeniciros sociais que t8m por fangao fomecer receitas a0s ditigentes das empresas privadas ¢ das administragées. Oferecem uma racionalizagio do conhecimento pritico ou semi-instruido que os membros da classe dominante tém do mundo social. Os governantes tém hoje necessidade de uma ciéneia capaz de raciona- lizar, no duplo sentido, a dominagio, eapaz 20 mesmo tempo de reforgar os mecanismos que a asseguram e de a legitimar, £ Gbvio que esta cigncia encontra os seus limites nas suas fungdes priticas: 10 entre os engenheires sociais como entre os dirigentes da economia, nunca pode operar uma posigio em questio radical Por exemplo, a ciéncia do presidente do conselho deadministragao da Compagtie bancaire, que & grande, muito superior sob certos aspectos a de muitos socidlogos ¢ economistas, encontra 0 sett limite no facto de ter por fim Gnico ¢ indiseutido a maximizac3o dos ganhos desta instituicio. Exemplos desta “ciéncia” parcial, a sociclogia das organizagdes ou a “ciéncia politica”, conforme sio ensinadas no Instituto Auguste Comte ou em “Seienves Po", com ‘0s seus instrumentos dé predilecgio, como as sondagens. P._ A distingao que vocé fiz entre os tedricos ¢ 0s engentheiros sociais nio port a ciéncia na situagio da arte pela arte’ = De maneira nenhuma. Hoje, entre as pessoas das quis de- pende 2 existéncia da sociologia, sfo cada vez mais as que per- guntam para que serve 2 sociologia. De facto, a sociologia tem tantas mais probabilidades de frustrar ou contrariar os poderes quanto melhor preencher 2 sua funedo propriamente cientifica. Esta funcio nio servir alguma coisa, quer dizeralguém. Pedir 8 sociologia que sirva alguma coisa é sempre uma mancira de se The pedir que sirva o poder. Ao passo que a sua fungio cientifica 34 compreender © mundo social, a comegar pelo poder, Opera (Go que nio ¢ socialmente neutra e que preenche sem dévida alguma uma fungio social. Entre outras razdes porque no hi poder que nio deva uma parte — e nio.a menor ~ da sua eficicia a0 descenhecimento dos mecanismos que 0 fandarn. P. Gostaria agora de abordar 6 problema das relagdes entre a sociclogia e a8 ciéncias vizinhas. O seu livro sobre A Distingio comega com 2 seguinte frase: Jogia se assemelhe canto a tima psicanilise social como quando se confronta com um objecta como 0 gasto.”” Seguem-se quadros estatisticos, relatorios de investigagoes, mas também anilises de tipo “literirio”, como as encontramos em Balzac, Zola ou Proust. Como se articulam estes dois aspectos? =O livro ¢ 0 produto de um esforgo por integrar dois moos de conhecimento,.a observagio etnogrifica, que nio pode apoiar- -se seni num pequeno niimero de casos, ¢ a anilise estatistica que permite estabelecer regularidades e situar os casos observa~ dos no universo dos casos existences. E por exemplo a descrigia contrastada de uma cefeig2o popular ¢ de uma refeigio burguesa, reduzidas aos seus tragos pertinentes, Do lado popular, temos 0 prinado declarado da func, que se encontra em todos 0s const mos: quet-se que alimento sejasubstancal, que “figue no corpo”, Hii poucos casos em que a socio- como se pede a0 desporto, com © culturismo por exemplo, que dé forga (os mésculos aparentes). Do lado burguts, temos © pri- mado da formu ou das formas (“formas a observar") que implica uma espécie de censura ¢ de recalcamento da fiungao, uma este icizagio, que se encontrar por toda a parte, tanto no erotiamo enquanto pernografia sublimada ou denegada como na arte pure que se define pr detrimento da fungio. De facto as anilises declaradas “qualitati- vas" ou, pier, “literirias Jsamente pelo facto de privilegiar a forma em sio capitais para se compreender, quer dizer explicar completamente 0 que as estatisticas se limitam 2 semelhanga sob este aspecto do que fazem as estatisticas de pluviometria. Conduzem ao principio de todas as pritica: observadas, nos mais diferentes dominios. constatar, 32 P. Para volta com a psicologia, a psicologia social, ete? — A ciéncia social no tem parado de tropecar no problema do individuo e da sociedade. Na realidade, as divisoes da ciéneia social em psicologia, psicalogia social e sociologia constituiram- se, em meu entender. em torno de um erro de definigio inicial. “A evidéncia da individuacao biolégiea impede de ver que a socie- dade existe sob duas formas insepariveis: de um lado as insticui- Ses que podem revestir a forma de coisas fisicas, monumentos, livros, instrumentos, etc.; do outro as disposigdes adquiridas, as maneiras duradouras de ser ou de fazer que encarnam em corpos (ea que eu chamo os habitus). © corpo social se chama 0 individuo ou a pessoa) mio se opie a socicdade: uma das suas formas de existéncia minha pergunta, quais slo as suas relagSes do (aquilo a que P. Noutros termos, a psicologia estaria entalada entre a bio- logia de um lado (que fornece nentais) © 9 sociologia do outro, que estuda a maneira como essis invariantes se de de tudo, até mesmo daquilo a que se chama a vida privada, a amizade, 0 amor, a vida sexual, etc ~ Absclutamente, Contra a representagio comum que consiste em associ wariantes fund: cnvolvem, E que se encontra portanto habilitada a tratar sociologia ¢ colectivo, devemos lembrar que 0 eolec- tivo esti deposto em cada individuo sob 3 forma de disposigdes dara douras, como as estruturas mentais. Por exemplo, er A Distingao, esforgo-me por estabelecer empiricamente a relagio entreas classes sociais © 0: sistemas de classificagio incorporados que, produzidos na histéria colectiva, do aquisigSes na histéria individual, essas por exemplo que o gosto aplica (pesado/leve, quente/frio, bri- Thante/baco, etc.) P. Mas entio, o que é 0 bioldgico ou © psicologice para a sociologia? A sociclogia toma © bioldgico ¢ © psicolégico como um dado. E esforca-se por estabelecer como o utilira o munde social, © transforma, o transfigura: O facto deo homtem ter um corpo, 33 de esse compo ser mortal, pBe aos grupos problemas dificeis. Estow 4 pensar to livro de Kantoroviteh, Os Dois Corpoe do Rei, em que 0 autor analisa os subterfigios socialmente aprovados através ddos quais se arranja mancita de afirmar a existéncia de wma realeza sranscendente relativamente ao corpo real do ret, por intermédio do qual sobrevém a imbecilidade, 2 doenga, a fraqueza, a morte. “OQ rei morreu, viva o rei.” Nao podia deixar de pensar nele P. Voce fala também de descrigdes etnogriticas... ~ A distin¢io enue emologia ¢ sociologia & tipicamente uma falsa fronteira, Como tento fazer ver no meu tltimo livro, © Sen- tide Pritico (Le sens pratique), & um puro produto da hist6ria (colo~ nial) que nio com qualquer espécie de justificagio légica. P. Mas nio haverd diferengas de atitudes muito marcadas? Em etnologia temos a impressdo de que o observador permanece exterior a0 seu objecto © que regista, no limice, aparéncias cujo sentido nio conhece. O socidlogo, pelo seu lado, parece adoptar © ponte de vista dos sujeitos que estuda. — De facto, a velagio de exterinridade que voce descreve, ¢ a que chamo objectivisea, é mais frequente cm etnologia, sem davida porque corresponde & visio do esteangeira, Mas certos etnologos Jogaram também 0 jogo (0 duplo jogo) da participagio nas repre sentagées indigenas: 0 etndlogo enfeitigado ou mistico, Seria até mesmo possivel inverter a sua afirmagio. Certos socidlogos, porque trabalham as mais das vezes através da pessoa interposta dos inquiridores ¢ nunca tém contacto directo com os inquiridos, tendem mais para o objectivismo que os etndtogos (cuja primeita virtude profisstonal ¢ a capacidade de estahelecerem uma relagio real com os inguiridos). Ao que vem somar-se a distincia de classe, que nio é menos podeross que a distincia cultural. E por isso que nfo hi, sem diivida, ciéncia mais inumana que a produ- zida para os lados de Columbia, sob a férula de Lazarsfeld, e na qual a distincia produzida pelo questionirio ¢ pelo inguiridor interposto € redobrada pelo formalismo de uma estatistica coga. Aprende-se muito sobre uma ciéncia, sobre os seus métodos, os 34 seus contetides, quando se far como 2 sociologia do trabalho, ma espécie de descricio de posto. Por exemplo, 0 socidlogo burocritico trata 2¢ pessoas que estuda como unidades escatfsticas intercambiavais, submetidas a questbes fechadss e idénticas para todas. Ao passo que o informador do exnélogo ¢ um personagem eminente, longamente frequentado, com o qual se fazem entre- vistas aprofundadas. P. Vocé opde-se, portanto, 4 abordagem “objectivista” que substitui o modelo 4 realidade; mas também a Michelet, que via resusiar' oa Saree, que quer aprender ite oct meio de uma fenomenologia que the parece, a si, arbitriria ponmExactamente. Por excmpio, dado que wma das fungdes dos rituais sociais € dispensar os agentes de tudo 0 que pomos de- baixo do termo de “vivido”, nada & mais perigoso que por 0 vido” onde o nio hi, por exemplo nas priticas rituais. A ideia de que ado ha nada de mais generoso que projectar o proprio “vivido” na consciéneia de um “primitivo”, de uma “feiticeira proletirio” parecew-mte sempre ligeirimente etnocén~ far 08 efel~ ou de rica. O melhor que © socidlogo pode fazer & object tos incvitaveis das tenicas de objectivagio que & obrigado a empregar, escrita, diogramas, planos, mapas, modelos, etc. Por exemplo, em ( Seutide Pritico, tento mostrar que, 4 falta de terem apreendido os efeitos da situagio de observador ¢ das técnicas que empregam para captar 0 seu objecto, os etnologes consticuiram rimitivo" como tal porque nio souberam reconhecer nele © aque eles priprios sio assim que param de pensar cientificamente, quer dizer na pritica. As logicas ditas “primitivas” sto muito simplesmente Iogieas pritieas. como a que nés aplicamos para ajuizar de um quadro ou de um quarteto. P, Mac nio seri possivel descobrir 2o mesmo tempo a logica de tudo isco e conservar 0 “vivid”? Ny concepyde de Michelen.a hisebsia visava,com eftita "a ressnrreigao ineegral do passado”.(N-do“T) ~Hé uma verdade objectiva do subjective, sinda quando contradiz a verdade objectiva que deve ser construfda contra ele. A ilusio nio é, enquanto tal, luséria, Seria trair a objectividade fazer como se os sujeits sociais nlo tivescem representacao, expe- riéncia das realidades que a ciéncia conste6i, eome por exemplo as chases Sociais. E necessirio, portanto, aceder a uma objectivi- dade mais elevada, que da lugar a essa subjectividade. Os agentes tém um “vivido” que nio é a verdade completa daquilo que f1- zem e que faz, contudo, parte da verdade da sua pritica. Tomemos por exemplo um presidente que declara “esti abertaa sessio" ou um sacerdote que diz “eu te baptizo”. Por que é que esta lin- guagem tem um poder? Nao sio as palavras que agem, através de umm espécie de poder magico, Acontece que, em condigdes sociais dacs, certs terms tém forga. Tram a sua forga de urna institu que tem a sua Idgica propria, of titulos, o arminho © a toga, a catecira, o verbo ritual, a crenga do articipantes, ete. A sociolo- gia lembra que mio & a palavet que age, ema pessoa, intercam- brivel, que a pronuncia, masa instituigio. Mostea as condigSes objectvas que devem estar reunidas para que a eficdcia desta ou daquela pratica social se exerea, Mas nao pode fiear por ai, Nio deve esquecer que part que isso fancione é necessirio que o actor ¢reia que esti no principio da eficdcia da sua acgio, Ha sistemas que funcionam inteicamente a crenga ¢ nio hi sistensa ~ nena sequer a economia ~ que nio deva em parte i crenga 0 facto de poder fancionar, ¥. Do ponto de vista da ciéneia propriamente dita, come preendo ben a sua eperacio. Mas o resultado & que desvaloriza © “vivido” das pessoas. Em nome da ciéncia, arrisca-se a tirar as pessoas ay suas ravdes de viver. O que & que Ihe di o direito (se assim se pode dizer) de as privar das suas ilusdes? —Também me acontece perguntar-me se 0 universo social completamente transparente ¢ desencantado que seria produrido por uma ciéneia social plenamente desenvolvida (¢ largamente difuindids, se & que tal € possivel) ndo seria invivivel. Creio, apesar de tudo, que as rcligdes soviais seriam muito menos infelizes se 36 as pessoas controlassem pelo menos os mecanismos que as deter- minam a contribuir para a sua propria ee ee talver a finica fingio da sociclogia seja fazer ver, tanto pelas suas lacunas visiveis ‘como pelas suas aquisigSes, 0s limites do conhecimento do mundo social ¢ tornar assim dificeis todas as formas de profetismo, 4 comegar evidentemente pelo profetismo que se reclama da ciéncia P, Tratemos das relagdes com a economia, ¢ em particular com certas anilises neoclissicas como as da Escola de Chicago. De facto, 0 confronto é interessante porque permite ver como Poderio encontrar-se deseavolwimentos complementares em: P. Bour- cntilique”, Ade dels recherche en sions sociales, 2-3, Junho LOM; "Le langage autor. Note sur les conditions de efficacité res de la recherche en scence soles, 5-6, 1975, vif Les eelations entre "histoire rife et Thistoire incorporée”, Actes dele cherie en scones sociales, 32-33, Abrl-Junho de 1980, pp. S14. O SOCIOLOGO EM QUESTAO* P. Por que que emprega um jangio particular e particular- mente dificil que torna muitas vezes 0 seu discutso inacessivel 10 profino? Nao haverd uma contradigao em denunciar 0 monopélio que os cientistas se outorgam ¢ cm restauri-lo no discurso que 0 denuncia? Basia muitas vezes deixar-se falara linguagem comum, aban donarmo-nos a0 laisierfeire linguistico, para accitarmes sem 0 sabermos uma filosofia social, © dicionirio esti pejado de mito- logia politica (estou a pensar, por exemplo, em todos os pares de adjectivos: brilhante-sério, alto-baixo, raro-comum, ete.). Os amigos do “bom senso” peixes na Agua e que, em matéria de linguagem como noutras smatérias, rém as estruturas objectivas do seu lado, podem (ressal~ que estio na linguagem comum como vados os eufemismos) falar uma linguagem clara como agua de rocha dar guerra ao jargio. Pelo contririo, as ciéncias sociais devem conquistar tudo 0 que dizem contra as ideias feitas que veicula a linguagem comum e dizer 0 que conquistaram numa Tinguagem predisposta a dizer outra coisa inteiramente diferente. Quebrar os automatismos verbais no é criar artificialmente uma diferenga distinta que ponha © profine 4 distincia; & romper = Ess pergunus si as que mc pareceram mais importntes entre 26 que sme foram erst Faquentemente postarno decorrer de diferentes dixansiee aque ve recentemente em Pai (Eile plyteigue), em Lyon (ma Unwver= sidade Popular) .em Grenoble (na Faculdade de Letzas),em Troyes (xo Institut universities ce technologie), © em Angers [ma Faculdeds de Lema) a com 2 filosofia social que se encontma inscrita no diseursa espon- tineo. Par uma pslavea por outra é muitas vezes operar uma transformagio epistemolégica decisiva (que corre de resto 0 isco de passar desapercebida), ‘Mas nao se trata de escapar aos automatismas do bom senso Para cair nos automatismos da linguagem critica, com todas as palavras que funcionaram demasiadas vezes como estere6tipos ‘ou palavras de ordemt, todos os enunciados que serve nio para ‘enunciar o real mas para tapar os buracos do conhecimento (tal muitas vezes a fungio dos conceitos com mai proposigSes que introduzem, ¢ que muitas vezes pouco mais io que profisses de f por meio das quais o crente reeonhece 0 crente), Estou a pensar nesse “basic imnanism”, como diz Jear -Claude Passcron, que floresceu no decorrer dos dltimos anos scula & das cem Franga: essa linguagem automitica, que se move porsi propria, mas no vazio, permite falar de tudo economicamente, com um pequenissimo niimero de conccitos simples, mas sem que se pense grande coisa. O simples fieto ds conceptializagao exerce muitas veres unt efeito de neutraliz A linguagem sociolégica nio pode ser nem jo, senio de denegacao. neutea” nem “clara”. O termo de classe nunea seri um termo neutro enquanto 1 existéncin ou da nio-existéncia das classes & uma parada em jogo da luta entre as classes. trabalho de escrita que & necessirio para se chegar a um uso rigoroso € controlido da linguagem s raramente condur aquilo a que se chama clareza, quer dizer o reforco das evidencias de bor senso ‘ou das certezas do fanatismo. Por contraste com uma investigagio literdria, a busea do rigor conduz quase sempre a sicrificar a bela formula, que deve a sua forca ea sua clareza ao facto de simplificar ou falsificar, a uma expressio mais ingrara, mais pesada mas mais exacta, mais con- trolada, Assim a dificuldade do estilo provém muitas vezes de codos os matizes, todas as cortecces, todos as adverténcias, sem falar ds reiteracdes de definigBes, de prinetpios, que sto necessirias ara que o discurso veicule em si préprio todas as defesas possiveis contra os desvins e as versdes distorcidas. A aten¢do a estes signos houver classes: 2 questio 2 aiticas €, sem divida, directamente proporcional & vigilancia, © portanto & comperéncia, do leitor — 0 que faz com que as adver- ‘téncias sejam tanto melhor percebidas por um leitor quanto mais jniteis so para ele. Podemos esperar apesar de tudo que desen- corajem © verbalismo e ecolalia Mas a necessidade de recorrer a uma linggnagem antifcial talvez 2 imponha 4 sociologia mais fortemente que a qualquer outra cigncia. Para romper coma filosofia social que assombra os termos correntes e também para exprimir coisis que linguagem comum nao pode exprimir (por exemplo tudo 0 que se situa na ordem do iss0-€-dbvio). 0 sociélogo tem de recorrer a termos forjados = ¢ por isso protegidos, pelo menos relativamente, contta as pro- jeccdes ingénuas do sentido comum, Este; tanto melhor do desvio quanto mais a sua " 3 predisponha a resistir ds leit que evoca a aquisigao, ou até mesmo a propricdade, 0 capital) ¢ sobretude talvez na medida em que se insiram, se integrem numa rermos defendem-se iatureza Linguistica ws apressadas (€ 0 caso de habitus, rede de relagSes que acarretam as suas imposigdes ldgicas: por exemplo alodoxia, que diz de ficto uma coisa dificil de dizer ou até mesmo de pensar em poucas palaveas — 0 facto de se tomar uma coisa por outa, de crer que uma coisa é diferente daquilo gue &, etc. ~ & um termo que se insere na rede das palavras com a mesma maiz, doxa', doxéfo, ortodoxia, heterodoxia, paradoxo. Dito isto, a dificuldade da transmissio dos produtos da inves tigacdo sociolégica est muito menos associada do que se cré a dificuldade da linguagem. Uma primeira causa de mal-entendido reside no facto de of leitores, até mesmo oy mais no terem mais que uma ideia muito aproximativa das condiyoes de producio do discurso de que tentam apropriar-sc. Por exemplo, ° A dave € a opiniio por contraste com o saber on discurso racional, Esta ‘epusigio terminologies entre dave ¢ loos corresponde, porém, pomeadamente va filosofia platdnics, 2 uma oposicso oncolégicx entre o mundo do devir (accesariamente imperfeito ¢ deficiente) 2 0 dominio dis Ietas (subtraias 20 tempo do devir 6,56 eas, pasiveis de verdidciro conhecimento ou saber Proprismente ligiea). No uo que fa de dnva, Pierre Bonediew entende-a sobrerude como © dominio do sentido imadizto endo reflectido que dssco- hece a sa prépris génese 2 tania de ser. (N. de!) B ha uma leitura “flosdfiea” ou “teérica” dos trabalhos de ciéucias sociais que consiste em reseras “teses”, as “conclusdex™, indepen dentemente da operagao da qual sio 0 produto (quer dizer, conere~ tamente, crn “saltar” as analises empiticas, os quadros estatisticos, as indicagdes de método, etc,), Ler assim é ler uin outro livro, Quando “condenso” a oposigio entre as classes populares ¢ a classe dominance na oposigdo entre o primado dado 4 substincia (ow i fungio) ¢ 0 primado dado 3 forma, pode haver quem ovga um discurso filosdfico quando é preciso ter presente que uns comem feijdes © outros alface, que as diferengas de consumo, nnulas ou fiacas em matéria de roupa de dentro, sio muito fortes em matéria de roupa de fora, etc. E verdade que as minhas analises sio © produto da aplicagio de esquemas muito abstractos a coisas muito concretas, estatisticas de consumo de pijamas, de slips ov de calgas, Ler estatisticay de pijamas a pensar em Kant nio é li nuuito evicente... Toda a aprendizagem escolar tende a impedir de pensar em Kant a propésito de pijamas au a impedir de pensar em pijamas 20 ler Marx (digo Marx porque quanto a Kant voces concender-mo-do demasiado fieilmente, ainda que, deste ponto de vista, seja a mesma coisa). Ao que actesce o facto de muitos leitores ignorarem ou recusa- tem os proprios principios do modo de pensamento socioldgico, xplic Durkheim, que & muitas veres percebida como uma ambi¢io imperialista, Mas, mais simplesmente, a iguorincia da estatistica ou, melhor, a falta de habituagio ao modo de pensamento estatis- tico, conduzem a confiindir 0 provavel (por exemplo a relagio entre a origem social ¢ 0 sucesso escolar) com 0 certo, 0 necessiti. De onde todas as espécies de acusagées absurdas, como a deniincia do fatalisma, ou das objecgdes sem objecto, como 0 insucesso de uma parte dos fillos da classe dominante que é, muito pelo con- tririo, um elemento capital do modo de reprodugio estatistico (um “sociélogo”, membro do Institue, dispendeu grandes ener como a vontade de © social pelo social”, nos termos de 2 Teats-se do Insite Auguste Comes, vomado aqui como emblenitico da sociolowa oficsl,a que Bourdieu charna por vezes “huroceitica"’ (N do°T) “4 gas na demonstracao de que nem todos os files de diplomados pela Ecole polytechnique acabavam diplomades pela mesma esco- ial). ‘Mas a principal origem de mal-entendidos reside no facto de, comummente, quase nunca se falar do mundo social para dizer o que ele & e quase sempre para dizer 0 que ele deveria ser O discurso sobre o mundo social é quase sempre performativo: contém desejos, exortardes, acusagdes, ordens, etc. Segne-se que 2 discurso do socidlogo, embora se esforce por ser constativo, tem todas as probabilicades de ser recebido como performative. Se digo que as mutheres respondem menos frequentemente que os homens is perguntas das sondagens de opiniao ~ tanto menos quanto mais “politica” é a natureza da pergunta—, haverd semi~ pre alguém para me acusar de excluir as mulheres da politica. Porque, quando digo 0 que é, entende-se: ¢ esté bem que seja ‘assim, Do mesmo modo, deserever a classe operiria como ela éincorrer na suspeita de querer encerri-la no que é como num destino, de queter afindé-la ou de querer exalté-la, Assim, a cons- tatagio de que, a maior parte do tempo, os homens (e sobretudo. as mulheres) das classes culturalmente mais desprovidas de meios confiam as suay excolhas politicas ao partido da sua escolha e, na ocorréncia, 20 Partido Comunista, foi compreendida como uma exortagdo a entrega ao Partido. De facto, na vida comum, nia se ra considerar mata descreve uma refeigio popular a nio ser p: vilhosa ou repulsiva; nunca para se compreender a sua lgic: dar dela rizio, compreendé-la; quer dizer darmo-nos os meios dea tomar como 6, Os leitores sem a sociologia com os éculos do seu habitus, E alguns descobririo um reforgo do seu racismo de classe na mesma descriio realista que outros achario suspeita de sev inspirada pelo desprezo de classe. Hi aqui o principio de um mal-entendido estrutural na comu- nicagio entre 0 socidlogo ¢ o seu leitor. P. Nao pensa que, dada a maneira come se exprime, sé pode ter intelectuais como leitores? Nao serd um limite 4 eficdcia do seu trabalho? ~ A infelicidade do sociélogo & que, a maior pares do tempo, as pessoas que tm os meios tGenicos de se apropriarem do que cle diz rio tém a menor vontade de se apropriarem, © menor interesse em se apropriarem do que ele diz, tendo até mesmo interesses poderosos na sta recusa (0 que fiz com que pessoas sob outros aspectos muito competentes possam revelar-se intel ramente indigentes no que se refere 4 sociologia), a0 passo que aqueeles que teriam interesse em apropriar-se do que ele diz nao posstem os instrumentos de apropriagao (cultura teérica, ete.) © discurso sociolégico suscita resistencias que sao inteiramente analogas na sua Logica ¢ nas suas manifestagdes Aguclas com que depara o discurso psicanalitico. As pessoas que em que hi uma correlagio doy nuseus tém todas as probabilidades de frequencarem ox mu~ seu adores de ari¢ prontos a mosrer por amor da arte, de viverem o seu encontro com a arte como um amor puro, que s incendiow 4 primeira vista, ¢ de oporem intimeros siste- mas de defess 4 objectiva to forte entre o nivel de inscrugao a frequéncia de serem| (0 cientifica, Em suma, ay leis da difusio do discurso cientifico fazem com que, apesar da existéneia de instineias de transmissio e de media probabilidades de cheyar “la e muito poucas pro- dores, a verdade cientifica tenhs todas. 205 que estio menos dispostos a ae babilidades de aleangar aqueles que teria mais interesse em rece bé-la, No entanto, pode pensar-se que bastaria fomecer aos segu- dos uma linguagem ma qual se reconhegam ou, melhor, na qual se sintam reconhwcidas, quer dizer aceites, justificados de existie como existem (0 que necessariamente Ihes oferece toda a bea sociologia, ciéncia que, enquanto tal, dé razde), para provocar uma trinsformagio da sua relagio coms aguilo que sia, © que sena necessirio dimnlear, disseminar, &0 olhsr cientifico, esse olhar ao mesmo tempo objectivante © compreensivo, que, virado sobre s proprio, permite a cada um assumitete @ até mesmo, se assim posso dizer, reivindicar-se, reivindicar o direite a ser-se © que se é. Fstow a pensar em palavras de ordem como “Black is Beautiful” dos negros americanos e na teivindicacio do direito a0 natural look, & aparéncia “natural”, das ferninistas. Acusaram-me 16 de empregar por vezes uma linguagem pejorative para falar de todos aqueles que impSem necessidades novas ¢ de sacrificat assim uma imagem do homer que faz pensar no “homem de natu reza", mas numa versio socializada. De facto; nio se trata de encerrar os agentes sociais num “ser social original” tratado como jum destino, uma natureza, mas de Ihes oferecer a possibilidade de assumirem © seu habitus som culpabilidade nem softimento. Eo que se deixa ver bem no dominio da cultura em que a miséria vem muitas vezes de um despojamento que nio pode assumit- se. O que se trai sem dtivida na minha maneira de falar de todos os estetas, dietistas, conselheiros conjugais e outros vendedores indignagio contra essa forma de exploracio da miséria que consiste em impor normas impossivels para vender em seguida meios ~as mais das veres ineficazes — de preencher a distincia entre essas normas e as possibilidades reais que hi de as, realizar. Neste terreno, que ¢ completamente ignorado pela analise politica, embora seja lugar de uma ac¢ao objectivamente politica, 9s dominados sto deixados apenas com as suas préprias armas; estio absolutamente desprovidos de armas de defesa colectivas com que enfrentar os dominantes ¢ os seus psicanalistas do poly Ora, seria ficil mostrar que a dominacio politica mais tipica : por exemplo, na Distin- (9, eu queria abrir o capitulo sobre as relagSes enire a cultura € de necessidades, mente politica atravessa também estas v politica com uma fotografia, que acabei por nio indir, receando que fosse mal lida, cm que se viam Maire © Séguy* sentados numa cadeira Luis xv diante de Giscard, ele proprio sentado num canapé Luis xv. Esta imagem designava, da maneira mais evi- dente, através da mancira como extavam sentados, como cnbam, 35 mios, em suma de todo 0 estilo corporal, aquele dos partici- antes que tem do seu lado a cultura, quer dizer 0 mobiliirio, o cenirio, a5 cadeirss Lufs xv, mas também as maneiras de usar tudo isso, a maneira de estar, aquele que € © possuidor desta > Secrevirios-geris das Centra sindicals franceers CFDT ¢ CGT. res ‘ivamente ¢ na altura da eseritura da obra. (N. do T) 2 cultura objectivada ¢ aqueles que sie possufdos por esta cultura, em nome desta cultura. Se, diante do patrio, 0 sindicalista se sente, no fundo, “embaragado”, como coscumma dizer-se, € em parce pelo menes porque dispde apenas de instrumentos de anilise de auto-andlise, demasiado gerais e demasiado abstractos, que nio Ihe dio qualquer possibilidade de pensar ¢ de controlar a sua relagio com a linguagem ¢ com © corpo. E este estado de aban dono em que o deixam as teorias e as andlises disponiveis é pa ticularmente grava — ainda que o estado de ahindono em que se encontea a sua mulher, na sua cozinha de um apartament de bairro econdmico, frente 3s imposturas das apresentadoras da 272 ou de Europe também deva ser levado cm conta, porque ha uma quantidade enorme de gente que vai falar por seu intermé- dio, © porque é pela sua boca, pelo set: corpo, que vai passar a palavra de um grupo inteire, © porque as suas reacgoes assim generalizadas poderao ter sido determinadas, sem que ele 0 saiba, pelo seu horror aos meninos mimados que tsamn 0 cabelo com- prido ow aos intelectuais com dculos, P. A sua sociologia nao implicard uma visio deverminista do homem? Qual é a parte deixada a liberdade: humana? = Como toda a ciéneia, a sociologia aceita o principio do determinismo encendido como uma forma do principio de razio suficiente. A cigneia que deve dar rezdo daquilo que é postula por isso mesmo que nada é sem razio de se centa social: sem razio de ser proptiamente social. Perante uma ‘O socidlogo acres- distribuigio estatistica, postula que existe um, ictor social que explica esta distribuigio e se, tendo-o encontrado, hi um residao, postula a existineia de um outro factor social, ¢ assimn por diante. (E 0 que faz erer por vezes num imperialisme sociolégico: de facto, & de boa guerra ¢ toda a ciéncia deve dar conta, com 0s seus meios proprios, do maior nfimero de coisas possiv fo que inclui coisas que so aparentemence ou realmente explicadas por outras ciéncias. B sob esta condiedo que pode pdr is outras cién cins — ea si propria ~ verdadeinas questiies, e destruir explicagies aparentes ou pér claramente o problema da sobredeterminagic.) 48 e Dito isto, confiinde-ce muitas vezes sob 0 termo de deter minismo dias coisas muito diferentes: a necessidade objectiva, inscriea nas coisas, ¢a necessidade “vivida”, aparente, subjectiva, o sentimento de necessidade ou de liberdade. © grau em que o mundo social nos parece determinado depende do conhecimento qne dele temos, Pelo conttirio, o grau em que ¢ mundo € real mente determinado nio € uma questo de opiniao; enquanto soci Jogo, ndo renho de ser “pelo determinismo” ou “pela liberdade” mas de descobrir a necessidade, se existe, onde ela se cneontra. Pelo facto de todo 0 progresso no conhecimento das leis do mundo social elevar 0 grau de necesidade perecbida, € natural que a Giéncia social, quanto mais avangada estiver, mais seja acusada de “determinismo”. Mas, contrariando as aparéncias, ¢ clevando o grau de neces sidade percebida ¢ dando um melhor conhecimento das leis do mundo social, que a ciéneia social di mais liberdde, Todo © progresso no conheeimento da necessidade € tim progresso na liberdade posstv da necessidade encerra uma forma de reconhecimento da ne divida a mais absoluta, a mais toral, uma vez que se ignora como tal, o conhecimento da necessidade no implica de mancita nenhu- maa necessidade desse reconhecimento. Pelo conttitio, faz cer a possibilidade de excolha que esti inscrita em toda a rel: do tipo setemos isto, entdo teremos aquilo: a libercade que consiste Enqusnto o desconhecimento wsidade, € sem em escolher aceitar o s¢ ou recusi-lo é desprovida de sentido enquanto se ignorar a relagio que 6 une a um entay, O expor & luz do dia as leis que supdem o laisser-faire (quer dizer a aceitagao inconsciente das condicdes de realizagio dos efeitos previstos) estende 0 dominio da liberdade. Uma let ignorada é uma natu~ reza, um destino (@ 0 caso da relagio entre o capital cultural herdado ¢ sucesso escolar); uma lei conhecids aparece como possibilidade de uma hberdade. P. Nio & perigoso falar de lei? Sim, sem diivida alguma. E evito 0 mais possivel fazé-lo. Os que tém interesse no laisser-faire (quer dizer em que nao se 4“ modifique o se) véern a “lei” (quando a véem) como um desti- no, uma fatalidade inscrita na natureza secial (so, por exemplo, as leis de bronze das oligarquias dos neo-maquiavélicos, Michels ou Mosca). De faeto, 2 lei social ima lei histérica, que se per- petua enquanto se detea que fincione, quer dizer enquanto agueles que serve (por vezes sern que eles 0 saibam) estio em medida de perpetuar as condigdes da sua eficdcia. (O que devemos perguntar é aquilo que se faz quando se enun- ‘cia uma let social até entao ignorada (por exemplo a lei de transmis- so do capital cultural). Pode-se pretender fixar uma lei eterna como fazem os socidlogos conservadores a propésito da tendén- ia pata @ concentragio do poder. Na realidade, a ciéncin deve saber que nito faz mais que registat, sob a forma de leis tendenciais. a logica que € caracterfstica de um certo jogo, nuns certo momento, gue joga a favor dos que, dominando 0 jogo, esto em condicdes de definir de facto ou de direito as regras do jogo. Dito isto, a partir do momento em que € enunciada, a lei pode tormar-se unsa parada cm jogo de Iutas: lnta para a conservar conservando as suas condigdes de funcionamento; uta para a 3. O expor i luz do dia as leis tendenciais & a condigao de sucesso das acces que visam desmenti_las, Os dominantes estio cometides com a lei, ¢ portanto com uma interpretagio Fisicalista da lei, que a faz regressar 20 estado de mecanismo infraconsciente. Pelo conttirio, 08 domi- nados esto cometidos com a descoberta da lei enquanto tal, quer dizer enquanto lei histérica, que pode ser abolida se vierem a ser abolidas as condigdes do seu fancionamento. © conhecimento 4a lei di-thes uma oportunidade, uma possibilidade de contrariar os efeitos da lei, possibilidade que nio existe enquanto a lei é desconhecida ese exerce sem que o saibam aqueles que a sofrem. Em suma, do mesmo modo que desnaturaliza, a sociologia des fataliza também, transformar transformando estas condi P. Um conhecimento cada vez mais avan¢ado do social no se arriscari a desencorajar toda a aco politica de transformagio do mundo social? 50 — O conhecimento do mais provivel é 0 que torne possivel, em fangio de outros fins. 2 realizacio do menos provavel. E jo gando Conscientemente com a logica do mundo secial que se podem fazer advir os possiveis que nao parecem inscritos nessa legica ‘A verdadeira accio politica comsiste em servirmo-nos do conhe- cimento do provavel para reforgar as oportunidades do possivel. Opde-se 20 utopismo que, semelhante nisso 3 magia, prevende agir sobre o mundo por meio do discurso performativo. O que ¢ proprio ds acco politica ¢ exprimir ¢ explorar, muitas vezes mais inconsciente que conscientemente, as potencialidades inscritas no mundo social, nas suas contradiges ou suas tendéncias imanentes. Osocidlogo — é 0 que faz deplorar por vezes a auséncia do politico ino seu discurso ~ descreve as condigSes com as quaisa acgao politica deve contar € das quais dependerio o seu sucesso ou 0 seu insucesso (por exemplo, hoje, o desencanto colective dos jovens). Pde assim em guarda contra o erro que leva a tomar o efeito pela causa ¢ a fied ter por efeitos da acgio politica as condigdet histéricas da sua Gia, Isto sem ignorar efeito que a acgio politica pode & quando acompanha e intensifiea, pelo facto de as exprimir © de orquestrar a sua manifestagio, disposigdes que nio produz, € que Ihe preexistem. reer P, Sinto uma cerea inquietagio perante as consequéncias que se poderiam tirar, sem divida através de uma compreensio dis- da opiniao, tal como voce a mostrow. A sua anilise nio corre o risco de ter um efeito desmo~ bilizador? = Vou precisar um pouco. A sociologia revela que a ideia de opiniao pessoal (como a ideia de gosto pessoal] ¢ uma ilusio, mui que a sociologia € redutora, que desencanta, que, tirando as pessoas qualquer ilusio, as desmobiliza, Querer-se-i dizer que a mobilizagio 66 € posiivel na base de ilusSee? Se ¢ verdade que a propria ideia de opiniio pessoal € socialmente determinada, que é um produto da historia reprodu- zido pela educagdo, que as nossas opinides sio determinadas, mais torcida do que vocé diz, da natu: Conelui-se dai St vale sabé lo; € se temos alguma probabilidade de ter opinide: pessoais, € talvez na condigio de sabermos que as nessas opinides nao sio assim espontancamente 0 que slo. P. Asociologia é ao mesino tempo uma actividade académica © ums actividade critica, ou até mesmo polities. Nio seri uma contradigio? — A sociologia tal como a conhecemos nasceu, pelo menos no easo de Franga, de uma contridiggo ov de um mal-entendido. Durkheim foi alguém que fez tudo 0 que era necessétio para fazer existirs sociologia como ciéncia universitariamente recone: caida, Quando uma actividade € constituida em disciplina uni- versitéria, a questio da sua fungio e da fungao daqueles que a praticam deixam de se por: basta pensar nos arquedloges, fl6 logos, historiadores da Tdade Média, da China ov da filosofia clissica, aoy quaiy muna se pergunta para que server, para que serve aquilo gue fazem, para quem trabalham, quem tem neces sidade daquilo que fazem. Ninguém os poe em questo ¢ eles sentem-se, por isso, inteiramente juitificados ao fazer 0 que fi A sociologia no tem essa sorte... A questio da sua razio de ser pde-se tanto mais quanto mais eke se afista da definigio da pritica Cientifica que os findadores tiveram de aceitar e de impor, a de uma ciéncia pura, t3o pura como as mais puras, as mais “inciteis™ as mais “gratuitas” das ciéncias académicas— a papirologia ou os extudos homéricos ~, as que os regimes mais repressivos deixam sobreviver € mas quais se refugiam os especialistas das cigncias “quentes”. Sabe-se todo o trabalho que Durkheim teve de fazer para dar a sociologia esta apresentayio “pura” e purarente cienti- fica, quer dizer “neutra”, ser complicagées: empréstimos de ostentagio contraidos junto das eigneias da naturcza, multipli- cagio dos signos da ruptura com as fimgdes externas ¢ com a politica, como a definigio preliminar, ete Por outras palzvras, a sociologia é, desde a origem, ra sua propria origem, uma cincia ambigua, dupla, mascarada; que teve de se fazer esquecer, de se negar, de se renegar como cigneia politica ara se fazer aceitar como ciéncia universitiria. Néo é por acaso que a emologia poe muito menos problemas que a sociologia. 2 Mas a sociologis pode também usar da sua autonomia para produvir uma verdade que ninguém — entre os que estio em estado de a encomendar ou de a comanditar—Ihe pede. Pode encon- trar num bom uso da sutonomis institucional que Ihe garante 0 seu estatuto de disciplina universitiria as condigdes de umaauto- nomia epictemolégica ¢ tentar oferecer 0 que singnit naver= dade Ihe pede, quer dizera verdade sobre o mundo social, Com- preende-se que esta ciéncia sociologicamente impossivel, capar de desvendar 0 que sécio-logicamente deveria continuar mas- carado, s6 tivesse podido nascer de um ardil quanto aos fins, € que aquele que quer praticar a sociologia como wma cigncia tem de reproduzir sem parar esta fraude original, Lareais prodeo, A sociologia verdadeiramente cientifica € uma pritica social que, sécio-logicamente, nao deveria existir. A melhor prova disso E que, a partir do momento em que a ciéncia social se recusa a deixar-se encerrar na alternativa prevista, a da ciéncia pura, capa de analisar cientificamente objectos sem importincia social, ou da faka cigncia, poupande ¢ arranjando a ordem © fica ameagada na sua rcleeida, scéncia social P. A sociologia cientifica ndo pode contar com a solidarie~ dade das outras cincias? — Sim, evidentemente. Mas a sociologia, a dleima a chey a8, uma cigncia critica, de si propria e dhs outeas entre as ci as; critica também dos poderes, inclusivamente dos poderes c trabalha para conhecer asleis de produgio da ciéncia, formece no meios de dominagie, mas talvez meios de dominar a domina P. A sociologia problemas tradicionais da filosofia e em certa medida aculti-los jo procurari responder cientificamente 208 por meio de uma ditadura da ravi —Penso que isso foi verdade mac origens. Os firndadores da sociologia davam-se explicitamente exce objectivo. Por exemplo, no é por acaso que o primeiro objecto da sociologia foi a religiio: os durkheimianos ocuparam-se imediatamente do instrumento 3 por exceléncia (em certo momento) da construgio de mundo, ¢ ‘specialmente do mando social. Penso também que certas questdes tradicionais da filosofia podem ser repostas em termos cientificos (Goi o que tentei fazer com A Distingdo). A sociologia tal como a concebo consiste em transformar problemas metafisicos em probe mas susceptiveis de serem tratados cientificamente. ¢, portanto, politicamente. Dito isto, 2 sociologia, como todas as ciéncias, constrdi-se contra a ambig2o total gue éa da filosofia, ou. melhor, chs profecias, discursos que, como Weber indica, pretendem ofere- cer respostas totais a questes totais, ¢ em particular as “questoes de vida ou de morte”, Por outras palavras, a sociologia consti- tuiu-se com a ambigdo de roubar 3 filosofia alguns dos seus pro blemas, mas abandonando project profético que era muitas vezes 0 seu. Rompett com a filosofia social, © todas as questdes fltimas nas quais cla se comprazia, como as questdes do sentido da histéria, do progresso ¢ da decadéneia, do papel dos grandes homens na Historia, ete. Resta que estes iiltimos problemas, os socidlogos descobrem-nos nas opera mentares da pritica, através da maneira de pér uma questio, supondo, na forma e no proprio contetido da sua interrogacio, que as priticas so determinadas pelas condigdes de existéncia imediatas ou por toda a Historia anterior, ete. [na condi: disso € de orientarem a sia p ode terem conseigneia tica em consequéncia, que podem evitar entrar na filosofia da Historia sem 0 saberem, Por exemple, interrogar directamyente alguém sobre a classe social da qual faa parte ou, pelo contrino, tentar determinar “objectivamentel’ o seu lugar intertogando a pessoa sobre 9 seu salitio, 0 seu posto, o seu nivel de insteugao, ete., ¢ fazer uma escolha decisiva entre duas filosofias opostas da pritiea ¢ da Histaria, Escolha que no é stdadeiramente decidida, se no for posta como tal, pelo facto de se porem simultaneamente as duas questées P, Por que € que se serve sempre de palavras tia duras con- aa teoria, que parece identificar, quase sempre, cam floso- fa? De facto, voct também fiz teoria, ainda que proteste que nio. 7 —Aquilo 2 que se chama teotia, as mais das vezes, nao passa de um discurso de manual. A teorizargo nao € muicas vezes mais que uma forma de “manualizacdo”, como algures diz Queneau. (O que, para queo jogo verbal vos ndo escape, eu poderia comentar citando Marx: “A flosofia esti para o estudo do mundo real ‘como 0 onanismne para o amor sexual.” Se todaa gente em Franga soubesse que assim €, a cigncia social daria um “salto em frente”, como dizia 0 outro. Quanto a saber se cu fago ou nio teoria, ‘pasta que nos entendamos sobre as palavras. Um problema teorico a0 ser convertido em dispositivo de investigagio € posto em anda mento, torna-se de certo modo automével, propulsa-sea si proprio através das dificuldades que faz surgir, tanto como pelas solugSes i Oarsos segredos da profissio de socidlogo consiste em saber encontrar 08 objectos empiricos a propésito dos quais se podem por realmente problemas muito gerais. Por exemplo, a questio do realismo ¢ do formalismo na arte, que, em certos momen- tos, em certos contextos, se tornou uma questio politica, pode ser posta, empiricamente, a propésito da relagio entre as classes populares ea fotografia ou através da anilise das reacgdes perante certos especticitlos televisivos, etc. Mas pode também ser posta, € de resto simultaneamente, a propésito da frontalidade nos mosaicos bizantinos ou da representacio do Rei-Sol na pintura ‘ou na historiografia. Dito isto, os problemas tebricos assim postos transformados tio profundamente que os amigos da teoria jé no reconhecem neles os seus filhos. A lagica da investigacio € esta engrenagem de problemas cm que o investigador & apanhado e que o arrasta, como que contra a sua vontade. Leibniz acusava incansavelmente Descartes nas Animadversiones de pedir de mais A intuigdo, & atengio, a inteligén- cia, ¢ de nao se fiar 0 bastante nos automatismos do “pensamento cego” (Leibniz estava a pensar na dlgebra), capaz de supric as intermiténcias da inteligéncia. O que no se compreende em Franca. pais do ensaismo, da originalidade, da inteligéneia, ¢ que 0 método € a organizagio colectiva do trabalho de investigagio podem produzir inteligéncia, engrenagens de problemas ¢ de métodos mais inteligentes que os investigadores (¢ também, aum idade, a nica oniginaldade verdadeira, a que mio se procura— estou a pensar por exemplo na extraorhittiria exceprio que foi a escola dar kheimiana). Ser inteligente cientiticamente é pOr-se numa situa do geradora de verdadeiros problemas, de verdadeiras dificul- dades. Foi o que tentel fazer com o grupo de investigacao que animo: um grupo de investigacdo que funciona & uma engrenagem socialmente instituida de problemas de maneiras de os resolver, uma rede de controlos crazados, e, no mesmo lance, todo um conjunto de produgdes que, fora de qualquer imposigao de nor- mas, de qualquer ortodoxia ceérica ou politica, tém wn ar de familia, universe em que toda a gente procum a origina PQ ctnologia? ssa divisio esti irreversivel, al € a pertinéncia di distingay entre a sociologia ¢ nfelizmente insctita, ¢ sem ekivid de modo rias, quer dizer na onganiea~ is esteutucas tiniversi sao social da universidade ena organizagio mental dos univer sitirios, O meu trabalho nao teria sido possivel se eu nio tivesse tentado abordar conjuntamente problemiticas tradicionalmente consideradas como etnoldgicas ¢ problematicas tradicionalmente considendas como sociolSgicas, Por exemple, os etndloges poem. desde h3 um certo némero de anos 0 problema das taxinomias, das classiticagdes, problema que se pés na encruzilhada de um certo niimero de tneigdex da etnologia: alguns interessam-se pelos classificagdes aplicadas 46 plantas, is doengas, ete.; outros pelas taxinomias aplicadas para organizar o mundo social, sendo a ta nomia por exceléncia a que define av relagdes de parentesco. Esta tradigio desenvolveu-se em terrenos onde, dada.aindiferen lagi relativa das sociedades consideradas, 6 problema das classes iio s2 pe. Os socidlogos, pela seu lado, pier o problema das class _ mas scm se porem o problema dos sisternas de classifica cao usados pelos agentes e da relagio que mantém com as classi~ ficacdes abjectivas, O meu trabalho consistit em par em relagio de modo nao escolar (contado como estou a fazer, isto pode 56 evocar tia dessas fecundacdes académicas que se produzem no ensino) 0 problema das classes sociais ¢ 0 problema dos sistemas de classificagao. E em por questdes como as seguintes: as taxino- mias que empregamos para classificar os objectos € a8 pessoas, para julgar uma obra de arte, um aluno, chapéus, roupas, etc. = portanto para produzir classes sociais ~, ndo terdo alguma coisa aver com as classificacdes objectivas, sendo as classes sociais entent- diidas (grosseiramente) como classes de de condicdes materiais de existéncia’ (© que tento evocar ¢ um efeito tipico da divisio do trabalho cientifico: existem divisdes objectivas (a divisio em disciplinas por excmplo) que, tomando-se divisdes mentais, fincionam de maneira individuos igaday a classes a tomar impossiveis certos pensamentos. Esta anilise € uma (fo da problemitica teoriea que acabo de esbogar. As divisdes ins- titucionais, que so produto da Historia, funciona na realidad astra objectiva (por exemplo, se formo um jini com es socidlogos, seri uma texe de sociologia, exc.) sob a forma de divisdes objectivas tambérn carreins, ete. juridicamente sancionadas, inseritas hos cérebros, sob a forma de divisées mentais, de principios de divisio lagicos. Os obsticulos ao conhecimento si muritas vezes obsticulos sociolégicos. Tendo fianqueado a fronteira que separa do a por 4 etnologia uma quan~ rocamente a ctnologia da sociologia, fit le nologia nio p Hidade de questées que a oe rec P. Define a chase social pelo volume e pela estrutura do capi- nto ao capital econd~ >, die-se-ia que recorre unicamente 4s estatisiieas forneci~ pital cultural aos titulos escolares. A partir dai, poderio deveras construir-se classes sociais? ~ Trata-se de um velho debate. Explico-me sobre ele na Dis- fingio, Estamos perante a altemativa de uma teotia pura (e dura) das clases sociais, mas que no assenta em qualquer dado empirico {posicdo nas relagdes de producio, etc.) © que no tem pratica~ tal. Como define 2 espécie die capital? Qk das pelo wsee*, e quanto a0 © Instcur national des statistiques ot dee tinder Gormomiques (Instat No~ ional das Estatisacas e dos Estudos Econdimicos). (N. do)

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