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Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Centro Biomédico
Instituto de Medicina Social

Gabriela Pimentel Barreto

Planejamento na Encruzilhada:
uma pós-graduação em Saúde Coletiva a partir de um relato de si

Rio de Janeiro
2020
3

Gabriela Pimentel Barreto

Planejamento na Encruzilhada:
uma pós-graduação em Saúde Coletiva a partir de um relato de si

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Doutora, ao Programa em Saúde
Coletiva, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de concentração: Política, Planejamento e Administração em
Saúde.

Orientador: Prof. Dr. André Luís de Oliveira Mendonça

Rio de Janeiro
2020
4

DEDICATÓRIA

Para Margarida Pimentel, Marielle Franco e Matheusa Passarelli.


5

AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha mãe, Maria Lucineide, e ao meu pai, José Wanderley, pelo
amor imenso e inabalável, por terem me criado como uma mulher de fé,
principalmente em mim mesma;

À minha tia Nena, pelo amor, força e sabedoria com que cuida de todas e
cada pessoa de nossa família;

À Dora, minha irmã de alma e no mundo, que me inspira e desafia a ser mais
e melhor, por todas visões e revisões, por me ensinar o que é parceria na vida e ser
meu fechamento que “não abre nem pro trem passar”;

À Izabel e Paulo, pelo carinho compartilhado que fazem de nossa casa um


lar;

À Keylla, Luís, Maíra, Maykel e Yumi, por serem minha família sudestina que
no momento anda espalhada pelo mundo em busca dos sonhos e do caminho para
o reencontro;

Às amigas e amigos distantes geograficamente, mas sempre presentes no


carinho: Carolzinha, Darwin, Dudu, Gilmário, Guilherme, Olga, Raíssa e Coutinho,
“Quem tem saudade nunca está sozinho”;

Ao grupo de pessoas sem as quais os seis anos de IMS não seriam


possíveis: André Luiz, Beatriz, Cassiana, Catalina, Ismael, Flávia, Gerson, Joyce,
Kelly, Leandro Gonçalves, Leandro Alberto, Mariana, Roberta, Thaís e Thamires por
mostrarem na prática que não se faz saúde sem implicação, nem militância sem
cuidado;

À todas que construíram as encontras de Resistências Feministas na Arte da


Vida, especialmente à Ana, Andrey, Cassiana, Dora, Gatinha, Kênia, Nat,
Tertuliana, Violeta, e quem propôs e facilitou espaço, Ângela, Camila, Cíntia, e
6

Elton, que bancando esse acontecimento possibilitaram a descoberta de


(re)existências tão mais potentes em nossas vidas;

À Jota Mombaça, pela generosidade em compartilhar suas elaborações e


ficções visionárias que são fundamento para destruir esse mundo como o
conhecemos;

Às professoras Juliana Braga, Daniely Tatmatsu, Vládia Jucá e Rosana


Onocko, por todos os ensinamentos de vida implicada com a construção de
conhecimento e transformação da realidade;

À Roberta Gondim, pela sua participação em minha banca de qualificação,


onde exerceu papel fundamental e por continuar sendo um exemplo de atuação
acadêmica para mim;

À Cíntia Guedes, agradeço por ser amiga, professora, inspiração, por mais
uma vez aceitar compor a banca de defesa, mas principalmente por ser uma
companheira na tarefa tão solitária de inventar novos modos e mundos;

À Fátima Lima e Ângela Donini, professoras e amigas que me mostram


possibilidades e potências de furar e habitar a academia e que tão prontamente
aceitaram participar desta banca;

À Martinho Braga, pela generosidade e segurança que sempre me dispôs,


compartilhando das inquietações e topando minhas batalhas, antes como co-
orientador e agora como membro da banca;

À Elaine Rabello, por novamente ter aceitado o convite para ser ledora da
minha escrita antes da defesa e também participar da banca, assim como por tudo
que aprendi com ela e com Martinho Braga ao compartilhar um importante período
para mim no Comitê de Ética do IMS;

À Eliete Adriano e Silvia Constâncio, pela paciência e por toda a dedicação


e carinho com que conduzem a secretaria do Instituto de Medicina Social;
7

Ao André Mendonça por acolher e confiar no meu olhar, pela liberdade que
me proporcionou nessa orientação;

À Luísa, minha sócia no consultório e parceira na clínica, por todo o apoio e


as trocas que me ensinam a complexidade e delicadeza nessa arte que é o trabalho
psicoterapêutico.

À Rita, minha analista, por me ajudar a encontrar e pronunciar o meu


palavreado.

À Mãe Alana, pelos acessos ao que eu ainda nem posso ver;

A quem me vale no invisível, por tudo.


8

20 Palavras girando ao redor do sol


Feito goteira pinicando no teu quengo
Chegou a hora mostre seu palavreado
Ou então assuma seu papel de mamulengo
Cátia de França
9

RESUMO

BARRETO, Gabriela. Planejamento na Encruzilhada: uma pós-graduação em


Saúde Coletiva a partir de um relato de si. Tese (Doutorado em saúde Coletiva)
Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2020.

O presente trabalho teve por objetivo investigar os lugares e trajetórias

subjetivas da própria pesquisadora enquanto mulher cisgênera branca nordestina

numa pós-graduação em Saúde Coletiva na cidade do Rio de Janeiro. A tese traz

contribuições para o campo da Saúde Coletiva ao discutir as reproduções do poder

colonial operadas por esta especialização do saber. Como analisador é tomado o

próprio percurso da pesquisadora na pós-graduação, relatando situações

específicas que ocorreram durante o período de seis anos em que foram cursados

mestrado e doutorado em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Essas situações são chamadas de

episódios-encruzilhadas. Eles explicitam as marcas físicas e históricas enquanto

sujeita da pesquisa, discutindo o conceito de interseccionalidade como encruzilhada

ao cruzar vivências e leituras de mundo, e elaborando sentidos e sentimentos do

corpo no mundo. O planejamento de que trata o título e a tese é sobre o ato de

reconhecimento de si e do todo que se faz ao deparar-se numa encruzilhada.

Planejamento como escolha e criação de caminhos. O esforço de pensar O Mundo

outramente que se dá ao longo dos sete episódios-encruzilhadas apresentados

culmina no capítulo final em que se conjura possibilidades para atravessar os fins

do mundo.
10

Palavras-chave: Políticas, Planejamento e Administração em Saúde;

Programas de Pós-Graduação em Saúde; Relatos de Casos; Interseccionalidade.


11

ABSTRACT

BARRETO, Gabriela. Planning at the Crossroads: a postgraduate course in


Collective Health based on a self-report. Thesis (Doctorate in Collective Health)
Institute of Social Medicine, State University of Rio de Janeiro
, Rio de Janeiro, 2020.

This study aimed to investigate the places and subjective trajectories of the

researcher herself as a white northeastern cisgender woman in a postgraduate

course in Public Health in the city of Rio de Janeiro. The thesis brings contributions

to the field of Collective Health while discusses the reproductions of colonial power

operated by this specialization of knowledge. As an analyzer, the researcher's own

path in graduate studies is taken, reporting specific situations that occurred during

the six-year period in which she received a master's and doctorate in Public Health

at the Institute of Social Medicine of the University of the State of Rio de Janeiro.

These situations are called crossroads episodes. They explain the physical and

historical marks as the subject of the research, discussing the concept of

intersectionality as a crossroads when crossing experiences and readings of the

world, and elaborating the body's senses and feelings in the world. The planning

referred to in the title and thesis is about the act of recognizing oneself and the whole

that is done when faced with a crossroads. Planning as choice and creation of paths.

The effort to think of the World, which takes place over the seven episodes presented

at the crossroads, culminates in the final chapter in which possibilities for crossing

the ends of the world are conjured up.


12

Palavras-chave: Health Policy, Planning a Management; Health

Postgraduate Programs; Case Reports, Intersectionality.


13

LISTA DE ABREVIATURAS

CAPS Centro de Atenção Psicossocial

CMAHO Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica

CRS Cirurgia de Redesignação Sexual

IMS Instituto de Medicina Social

PEC Proposta de Emenda Constitucional

UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

SUS Sistema Único de Saúde

TAR Teoria Ator-Rede


14

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadro 1 Carta Aberta dos Professores do IMS ..................................... 29


Quadro 2 A Carta Não Enviada ............................................................... 30
Quadro 3 Nota de Repúdio do Coletivo de Estudantes do IMS ............... 35
Figura 1 “VAI TER PRETO SIM” ............................................................ 36
Quadro 4 Nota do Corpo Docente ........................................................... 38
Quadro 5 Tréplica do Coletivo de Estudantes ......................................... 41
Figura 2 Foto da Intervenção ................................................................. 48
Figura 3 A Cuceta .................................................................................. 51
Figura 4 Instalação de Tertuliana Lustosa ............................................. 54
15

SUMÁRIO

1. PARA ABRIR CAMINHOS 1

2. “TODA METODOLOGIA É UMA FICÇÃO” 11

3. ENCRUZILHADAS 17

4. EPISÓDIOS-ENCRUZILHADAS 20

5. A CABEÇA 21

6. O SEQUESTRO 25

7. O SILÊNCIO 28

8. A NOTA 34

9. A CAMINHADA 45

10. A SURPRESA 49

11. A DURA 57

12. CONJURO 61

13. EPÍLOGO 64

13. REFERÊNCIAS 63
1

PARA ABRIR CAMINHOS

Na minha terra tratariam essa febre com uma


simpatia que não existe aqui.
Um dia eu me tranquei no banheiro só pra falar a
palavra mãe. Saudade.
Na minha terra tem fruta que só existe lá.
Ninguém chora com aquela música, EU choro com
aquela música.
O sal não é o mesmo em todos os lugares.
Fora que é exaustivo ter que contar a sua história
toda vez que.
Alguém me pergunta de onde vim e meu olho se
enche.
Aqui, sempre me perguntam de onde vim e meu olho
se enche.
Aqui, sempre me perguntam de onde eu vim, como
que para me lembrar.
A paulista que mora ali só me pergunta isso.
Penso sempre nas hidrelétricas dando fim a cidades.
Na lama.
Terra da gente é terra da gente.
Na minha, tratariam essa febre de outro jeito.
Grace Passô

Aqui começa um fim ansiado.


O fim de um ciclo que teve início quando saí de minha terra, Fortaleza, Ceará,
Nordeste, fazendo percurso que muitas pessoas antes de mim, em condições
incomparavelmente piores que as minhas, fizeram em direção ao Sudeste.
Esse meu percurso foi traçado antes, quando comuniquei aos meus pais o
desejo de sair de casa e me deparei com o imperativo posto por meu pai “você só sai
de casa para casar ou estudar fora, de outro jeito você não volta mais”. Nessa
encruzilhada de três vias, casar, estudar ou romper com a família, a única opção viável
para mim seria estudar, e assim comecei a desenhar o sonho de “estudar fora”, no qual
2

esse “fora” era o centro, visto que estava à margem de onde os lugares de estudos
eram reconhecidos e respeitados no Brasil.
Alguns anos depois de ter saído de Fortaleza, tomei conhecimento da história
de minha bisavó Alice, que entendi ser também a história da família. Sua mãe ficou
viúva, morando em Quixeramobim, sertão central do Ceará, e foi persuadida pelo
padre da cidade a casar com um homem mais velho, que se tornou padrasto de minha
bisavó, a quem causava inúmeros maus tratos, inclusive não deixando nem que
dormisse em redes armadas “para não gastar as paredes”. Para escapar disso, minha
bisavó arranjou para ela e para sua irmã mais nova casamentos com dois ferroviários
também irmãos e, casados, fugiram para Fortaleza.
Eu fugi para não me casar, minha bisavó se casou para fugir. Em tempos e
situações muito diferentes - a mim foram dadas opções e nunca sofri maus tratos, pelo
contrário, sempre fui amada e sei que meus pais estavam sempre dando tudo que
tinham para fazer o melhor que podiam na minha criação1 - existe a performance da
fuga que se repete, na tentativa de escapar das imposições e limitações de um sistema
patriarcal.
Logo que terminei a graduação em Psicologia, fui para Campinas, em São
Paulo, me especializar em Saúde Mental em Saúde Coletiva e trabalhar na então rica
rede de assistência à saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS) da cidade.
Depois de três anos sobrevivendo numa cidade2 sem mar e certa de que havia mais
da vida para mim, resolvi vir fazer mestrado no Rio de Janeiro, que “continua lindo e
opressor” (PASSARELLI, Matheusa. 2017), novamente usando o estudo como veículo
de fuga.
Chegando ao final dos dois anos de mestrado no Instituto de Medicina Social
(IMS), ainda que já reconhecesse algumas opressões sofridas e perpetradas por mim
nesta cidade, quis continuar morando aqui, no Rio de Janeiro. Mais interessada na
possibilidade que se apresentava para continuar no Rio do que no trabalho em si,
aceitei a proposta de meu orientador, André Mendonça, de continuar pesquisando no
IMS, “emendando” o começo do doutorado no final do mestrado.

1
Modéstia à parte, acho que fizeram muito bem.
2
Campinas, São Paulo
3

A proposta de André era irrecusável para mim, pois tinha o molde de um cheque
assinado em branco. Combinamos que o projeto inicial feito para a seleção de
doutorado poderia mudar completamente se assim eu quisesse - e de fato quis.
Durante o percurso do doutorado tive oportunidade de participar de mesas,
oficinas, cursos e trocar experiências com autoras e atoras de diversos segmentos, em
especial das artes contemporâneas, que têm discutido questões de gênero, raça,
classe e colonialismo - que muito me interessam enquanto psicóloga, sanitarista e
gente - de forma mais avançada do que a própria Saúde Coletiva.
Essas trocas, que se deram também em espaços acadêmicos, mas
principalmente nas ruas e outros espaços afetivos, entendo como pilares de minha
escrita e futura tese. Tendo o que aprendi a partir dos estudos em Saúde Coletiva
como orientação, acredito que a diversificação de vozes é condição sine qua non para
uma compreensão mais ampla e pertinente da saúde.
Escrever o que quero escrever, como quero escrever e sendo quem sou -
mulher, cisgênera, branca, nordestina, psicóloga - dentro de um lugar como o Instituto
de Medicina Social da UERJ - acadêmico, patriarcal e médico, conforme desenvolverei
ao longo desta tese - tem um custo para o meu corpo que não é trivial. Como quem
nada contra a corrente, me custa imenso conseguir manter a posição, que dirá
avançar. Mas devo, preciso e quero avançar e para isso conto com forças que me
precedem, sucedem e atravessam, num fluxo de tempo e energia que não é linear.
Cíntia Guedes me disse na ocasião da qualificação desta tese: “Isso que você escreve
tem lastro!”. Nesse lastro estão os trabalhos da própria Cíntia Guedes (2015, 2016,
2017a, 2017b, 2018a, 2018b), os de Elton Panamby (2015, 2017), os de Jota
Mombaça (2015, 2016, 2017), Camila Bacellar (2016a, 2016b, 2017a, 2017b, 2019),
Angela Donini (2010, 2014a, 2014b, 2016, 2017), Dora Moreira (2017, 2018), Fátima
Lima (2014, 2018, 2019), Tiago Coutinho (2019), Andrey Chagas (2018a, 2018b),
Walla Capelobo (2019a, 2019b), dentre muitas3 outras4 que têm ocupado a academia

3
Utilizo sempre o plural feminino em referência a “pessoas”, numa tentativa de driblar as regras
patriarcais de nosso idioma colonial.
4
Aqui falo de afeto no sentido literal, do substantivo encontrado no dicionário, qual seja: sentimento de
imenso carinho que se tem por alguém. O afeto foi uma dimensão fundamental na construção dessa
tese, as pessoas citadas aqui são aquelas com quem compartilho um laço de afeto, além de algumas
4

com seus corpos desviantes do padrão cis-hétero branco e produzido trabalhos que
ultrapassam essa mesma academia em espaço e gramáticas.
Usamos artifícios e técnicas na produção desses trabalhos que não são aquelas
forjadas pelo método científico hegemônico - leia-se: eurocêntrico -, logo, são
contestados e acusados de “não confiáveis”. O seu valor e robustez, que tem
fundamento, ancestralidade e abrangência, não podem ser mensurados com a mesma
métrica branca e patriarcal que calcula quantos dólares custa uma vida ou um povo5,
entendemos que números não servem para tudo, que valor não se resume a dinheiro
e que sonhos - uma das técnicas a que me refiro - podem ser exatos e confiáveis.
Essas pessoas e seus trabalhos têm em comum um olhar crítico para o mundo
colonial e os atravessamentos desta situação nas vidas e corpos colonizados. Além do
olhar crítico, tentamos ultrapassar a análise para a ação, de forma que esses textos,
assim como a própria (re)existência são transgressões à ordem colonial

A descolonização, que se propõe a mudar a ordem do


mundo, é, como se vê, um programa de desordem
absoluta. Mas ela não pode ser resultado de uma
operação mágica, de um abalo natural ou de um
entendimento amigável. A descolonização, como
sabemos, é um processo histórico: isto é, ela só pode ser
compreendida, só tem sua inteligibilidade, só se torna
translúcida para si mesma na exata medida em que se
discerne o movimento historicizante que lhe dá forma e
conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças
congenitalmente antagonistas, que têm precisamente a
sua origem nessa espécie de substantificação que a
situação colonial excreta e alimenta. (FANON, 2015, p.
52)

Neste texto, faço a opção de usar o termo “descolonização” - e, logo, as


variações “descolonizar”, “descolonial”, etc - entendendo, como Fanon, que esse

de suas respectivas produções acadêmicas às quais tive acesso e que me foram caras na construção
deste trabalho.
5
A matéria de 11 abril de 2018 da sessão de Investimentos da CNBC “Goldman Sachs asks in biotech
research report: ‘Is curing patients a sustainable business model?’” (Goldman Sachs pergunta em
relatório sobre pesquisa biotecnológica ‘Curar pacientes é um modelo de negócios sustentável?’) expõe
a que ponto de cinismo chegam os cálculos bancários quando concluem que em relação a terapias
crônicas “cures could be bad for business in the long run” (curas podem ser ruim para os negócios a
longo prazo).
5

fenônemo é um movimento, um trabalho a ser realizado, e não apenas uma


classificação estanque de um período, como poderia ser dado a entender pelo termo
“pós-colonial”6.

Fanon argumentava que a colonização requer mais do


que a subordinação material de um povo. Ela também
fornece os meios pelos quais as pessoas são capazes de
se expressarem e se entenderem. Ele identifica isso em
termos radicais no cerne da linguagem e até nos métodos
pelos quais as ciências são construídas. Trata-se do
colonialismo epistemológico. (GORDON, 2008, p.15)

Na tentativa de romper com esse colonialismo epistemológico e estando


inteiramente de acordo com a célebre frase de Audre Lorde “Pois as ferramentas do
senhor nunca derrubarão a casa-grande” (2019, p. 137), lançarei mão de um formato
de texto pouco ortodoxo ao cânone acadêmico. Entendendo também que forma e
conteúdo não se separam, ou seja, ética, estética e política são indissociáveis.
Alguns meses antes da qualificação desta tese, aconteceu uma reunião7 do
departamento de Política, Planejamento e Administração em Saúde (PPAS), do qual
eu faço parte como doutoranda, onde foi colocado como pauta o questionamento dos
temas que estavam sendo pesquisados nas dissertações e teses do departamento.
Questionava-se se de fato elas versavam sobre política, planejamento e administração
em saúde.
Os dois professores que pautaram essa questão manifestavam discordância
acerca da pertinência dos trabalhos de cunho crítico ou mesmo que prescindiam das
referências8 mais tradicionais9 na área de planejamento em saúde. Notadamente, os
trabalhos orientados pelo único filósofo do departamento, o Prof. André Mendonça,
meu orientador.

6
Ver também a recente antologia Para além do pós(-)colonial de Michel Cahen & Ruy Braga (2018).
7
Este evento está relatado em ata pública da reunião.
8
Aponto aqui alguns exemplos que já foram citados em sala de aula, conferências ou reuniões como
referências fundamentais do planejamento: Mario Testa (1990), Carlos Matus (1993), Eduardo Lecovitz
(1997), Ruben Mattos (2000), Gastão Wagner Campos (2006), Tatiana Wargas Baptista (2003),
Eduardo Fagnani (2005).
9
Classifico como “tradicionais” pelo fato de essas mesmas referências serem reiteradamente citadas
nas produções de um pólo importante de estudo e produção de conhecimento como o IMS.
6

O encaminhamento conduzido a partir desta pauta foi que se faria uma análise
das teses e dissertações já defendidas no departamento, para que fosse verificada
proporção de trabalhos que estavam adequados ou não às designações do
departamento. Não foi determinado, no entanto, qual seria, ou mesmo se haveria
alguma sanção aos trabalhos que porventura fossem vistos como não pertinentes.
Assim como também não foram explicitados os critérios para tal avaliação, tornando
implícito, então, que caberia ao avaliador, um dos professores que trouxe a pauta, o
próprio crivo do exame.
Fatalmente, foi criado um clima de insegurança e persecutoriedade entre
estudantes, principalmente aqueles que haviam defendido dissertações e estavam
desenvolvendo o doutorado sob orientação do professor filósofo, como era o meu caso.

Mas o intelectual colonizado, no início de sua coabitação


com o povo, privilegia o detalhe e acaba esquecendo a
derrota do colonialismo, o próprio objeto da luta. Levado
no movimento multiforme da luta, ele tende a se fixar
sobre tarefas locais prosseguidas com ardor, mas quase
sempre excessivamente solenizadas. Ele não vê, o
tempo todo, o todo. Introduz a noção de disciplinas, de
especialidades, de áreas, nessa terrível máquina de
misturar e amassar que é uma revolução popular. (...) O
povo, ao contrário, adota desde o começo posições
globais. A terra e o pão: o que fazer para ter a terra e o
pão? E esse aspecto obstinado, aparentemente limitado,
encolhido, do povo, é, definitivamente, o modelo
operatório mais enriquecedor e eficaz. (FANON, 2015, p.
67)

Após algumas semanas de apreensão, o resultado da tal avaliação, a qual


prefiro chamar de inquisição, foi que a grande maioria estava sim de acordo com o
departamento, seja lá o que significasse esse acordo.
As referências tradicionais de planejamento me encantaram no início do
mestrado, mas ao final da dissertação me pareciam insuficientes, pois ao estudar o
cotidiano de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), as questões pareciam
transbordar das “caixas” oferecidas pelas diretrizes clássicas. Nesse momento, utilizei
bastante o referencial teórico da Teoria Ator-Rede (TAR), de Bruno Latour, mas ainda
assim criticamente, entendendo que se o autor faz uma crítica interessante a suposta
7

objetividade científica, no entanto não rompe ele mesmo com a ciência que
questiona.10
A citação de Fanon acima fala sobre a debilidade dos intelectuais colonizados
frente à complexidade da realidade e em comparação à perspicácia do povo. Essa
diferença se tornou gritante para mim quando, numa mesa que precedeu a Oficina
Resistências Feministas na Arte da Vida, na fala de Elton Panamby, fui apresentada
ao texto de Carolina Maria de Jesus.

11 de julho. Deixei o leito as 5 e meia. Já estava cansada


de escrever com sono. Mas aqui na favela não se pode
dormir, porque os barracões são umidos, e a Neide tosse
muito, e desperta-me. Fui buscar agua e a fila já estava
enorme. Que coisa horrivel é ficar na torneira. Sai briga
ou alguem quer saber a vida dos outros. Ao redor da
torneira amanhece cheio de bosta. E quem limpa sou eu.
Porque as outras não interessam. ...Quando cheguei na
favela estava indisposta e com dor nas pernas. A minha
enfermidade é fisica e moral. (JESUS, 1992, p. 91)

Esse trecho específico me impressionou muito pela acuidade da leitura da


situação de saúde individual e coletiva que a autora apresentou e o choque que ele
me causou se deu pelo próprio fato de ter ficado impressionada. Por que deveria ser
estranho que esta mulher soubesse tanto de si e do mundo? Por ser pobre? Por morar
na favela? Por estar em profundo sofrimento?
Nesse momento refleti que minha formação como sanitarista - recentemente
havia concluído o mestrado em Saúde Coletiva - tinha dado conta de me capacitar
para identificar fatores determinantes no impacto à saúde ao mesmo tempo em que
me fazia duvidar das pessoas e seus saberes, a quem o meu saber supostamente
interessava.
É nesse sentido que percebo a reprodução do poder colonial pela Saúde
Coletiva, ainda que a mesma se proponha a melhorar as condições de vida, ou melhor,
os indicadores de saúde das populações, o seu funcionamento promove também
silenciamentos e aniquilações11.

10
Ver mais em Gabriela Barreto (2016)
11
Uma amiga me perguntou no final de 2019 sobre o que era minha tese dizendo “minha mãe sempre
pergunta e eu não sei responder, digo só ‘é uma coisa aí de saúde coletiva”. A mãe dela é sanitarista e
8

O postulado central da biopolítica de Michel Foucault “fazer viver ou deixar


morrer” (1979) diz das relações sociais a partir das quais operam o poder sobre a vida;
já o postulado da necropolítica de Achille Mbembe fala de outro prisma: “fazer morrer
ou deixar viver” (2014; 2018). Buscando um olhar decolonial, Mbembe discorre sobre
as relações de poder que operam na aniquilação da vida, mas de certos corpos, a
saber, os corpos não hegemônicos.
A partir do conceito é possível olhar para a Saúde Coletiva, assim como para
qualquer disciplina do mundo colonial, como uma prática que mesmo em seu primor
de boas intenções estará a serviço da necropolítica, ou seja, deixando viver certos
corpos ao fazer morrer outros corpos. Fazendo morrer fisicamente ao oferecer
serviços, intervenções e posturas diferentes12 de acordo com o tom de pele, no sentido
inverso ao que propõe o princípio da equidade do SUS. E morrer subjetivamente,
quando reiteradamente, delimita pessoas como objetos, seja para pesquisa ou para
intervenções, de forma que discursos e subjetividades que não a forma do discurso
médico, branco, ocidental e cisgênero sejam planificadas e deslegitimadas.
Estando eu mesma situada institucional e financeiramente dentro da Saúde
Coletiva, sendo assim necessário que esta tese traga contribuições para o campo, me
sinto compelida a voltar minhas contribuições para a análise das reproduções do poder
colonial operadas por esta especialização do saber. Como analisador terei meu próprio
percurso na pós-graduação; as opções feitas para formatar esta análise serão melhor
explicadas mais adiante.
O título desta tese foi desenhado assim com ironia, que pode ser defesa e
ataque.
“Nós falamos um patoá, uma língua bifurcada, uma variação de duas línguas.”
(ANZALDUA, 2009, p. 307) O planejamento de que trata o título e a tese é sobre o ato

eu falei “ah, amiga, o que eu estudo não tem muito a ver com o que normalmente se entende por “Saúde
Coletiva””, numa tentativa de mudar de assunto pois estávamos numa festa e eu não queria falar sobre
trabalho. Então ela falou “Minha mãe também não, ela estuda o discurso das mulheres negras que
sofrem violência obstétrica”. Eu poderia talvez dizer que minha tese é sobre a Saúde Coletiva no Brasil
ter chegado num ponto em que alguém acha que o discurso de mulheres negras que sofrem violência
obstétrica não é Saúde Coletiva.

12
Sobre o impacto do racismo no acesso à saúde pública ver LEAL, GAMA e CUNHA, 2005; GOES et
al., 2020; BATISTA e BARROS, 2017.
9

de reconhecimento de si e do todo que se faz ao deparar-se numa encruzilhada.


Planejamento como escolha e criação de caminhos.

O meu verso se ata em tom de provocação, porém,


camaradinhas, lhes digo: sobre a linearidade histórica ou
sobre o rigor dos termos, agora pouco nos importa, o que
vale para nós aqui é o teor das flechas atiradas pela boca
ou o tamanho do tombo que levará aqueles que nos
golpeiam. (RUFINO, Luiz, 2019, p. 13)

Tive contato com o autor Achille Mbembe e seu conceito de necropolítica 13 na


disciplina da professora Fátima Lima “Bio-necropolítica - diálogos entre Achille
Mbembe, Michel Foucault e as questões raciais no Brasil contemporâneo”. Segundo
ela “a vida não é acúmulo de ganhos, a vida é perda”, mas “é possível tirar da morte a
possibilidade da vida”14.
A inquisição que relatei anteriormente teve um forte impacto em mim, pois além
do próprio transtorno que invariavelmente é causado pela sensação de perseguição,
fiquei sabendo disso no mesmo dia em que soube do suicídio de uma conterrânea de
Fortaleza, a quem não conhecia diretamente, apenas tínhamos amigas em comum,
assim como o mesmo nome, profissão (pós-graduanda) e cidade de residência, Rio de
Janeiro, necrópoles maravilhosa.
Saindo da reunião em que fui comunicada da inquisição, abalada também por
notícias muito mais graves, passei pelos corredores do IMS, no sétimo andar, ladeados
por redes de proteção e pensei com ironia que aquela era a única “política de saúde
mental para universitários” que a academia era capaz de produzir. Pelo menos a única
positiva, já que as negativas, como perseguições, pressão por produtividade e demais
assédios se multiplicam15.
Neste mesmo dia, quando cheguei em casa acendi sete velas e rezei,
lembrando das palavras de Cíntia Guedes em sua defesa de doutorado quando disse

13
Não farei aqui uma reconstrução conceitual do termo, para tanto ver LIMA, Fátima, 2018.
14
Notas de aula.
15
A pesquisa André Faro (2013) sobre estresse e estressores na pós-graduação mostra de forma ampla
fatores de risco à saúde mental de estudantes, dentre eles, ser do gênero feminino e ter menor renda
familiar.
10

que só conseguiu escrever a tese quando aprendeu a rezar, por ser esse o tempo que
não podem nos roubar.
Vi as velas queimarem até o final, enquanto rezava para que só fossem levados
os de lá, que nós de cá ficássemos vivas e fortes. Pedi que minhas angústias e medo
queimassem com aquelas velas.

Para mim, o que importa é cumprir o rito. É nesse sentido que


discuto terreiro como um espaço não exclusivamente fixo às
dimensões físicas/geográficas dos cultos de matrizes africanas.
Terreiro é o mundo reinventado a partir do que ritualizamos nele.
(RUFINO, Luiz, 2019, p. 103)

Na minha qualificação, repeti o ato de acender sete velas, mas as deixei


queimando na quina da sala, enquanto ocorria o ritual acadêmico. Assim que acendi
as velas, as luzes se apagaram e tornaram a acender alguns segundos depois. Quedas
de energia eram recorrentes na UERJ, mas por terem acontecido naquele exato
momento, entendi que não estava sozinha e agradeci.
Um professor do IMS disse em uma palestra: “eu escrevi a minha tese pensando
em quem eu queria matar com ela”. A ideia me parece sedutora, mas não é sobre isso,
aqueles que eu “gostaria de matar” vão morrer sozinhos - por suas mãos e sem
ninguém. A escrita desta tese é para criar espaço de respirar e existir, não para
reproduzir a lógica colonial da aniquilação.
Grada Kilomba afirma em seu livro Memórias da Plantação, sobre o mesmo,
“escrevi-o para entender quem eu sou”. (2019, p. 2019) Essa motivação, sim, me
parece interessante. Aprendi a rezar com minha mãe, minha tia e minha avó, o que
estou aprendendo agora é a enxergar minha conexão com meu passado, o passado
de minhas famílias e os trajetos que foram percorridos antes de mim que me trouxeram
aqui. “Retomar o corpo-território em gestos de rememoração é se lançar em uma
viagem no tempo da ausência” (GUEDES, Cíntia, p. 31, 2018). Esse trabalho é para
reafirmar, ELES NÃO VÃO NOS MATAR!, é para atravessar o tempo e uma flecha no
tempo é sempre uma prece.
11

“TODA METODOLOGIA É UMA FICÇÃO”

Tudo que você toca


Você muda.
Tudo que você muda
Muda você.
A única verdade perene
É a mudança.
Deus é mudança.
(Lauren Olamina)

Ao longo do texto, tenho usado com certa frequência (e continuarei) verbos


como crer e acreditar. Quando falo de minhas crenças pretendo declarar os valores
que me movem e o prisma por onde passa meu olhar, logo, minhas interpretações,
sobre o mundo.

Não há por que negar que temos um ponto de vista, mas


a grande vantagem de um ponto de vista é que podemos
mudá-lo (um astrônomo tem um ponto de vista limitado
em Greenwich, mas modifica sua perspectiva através de
instrumentos, telescópios, satélites). Ter um ponto de
vista não significa estar ‘limitado pela subjetividade’. Se
uma coisa suporta muitos pontos de vista é justamente
porque é altamente complexa, intrincada, bem
organizada, ‘objetivamente bela’. Não se trata de
relativismo, mas de relatividade. No trabalho de campo,
em levantamentos, pesquisas de opinião, nós ouvimos,
aprendemos, tornamo-nos competentes, mudamos
nossos pontos de vista. (ARENDT, 2008, p. 8)

Uma parte importante desta tese é a própria forma como ela está sendo
desenvolvida. O “estilo narrativo, mais até do que meramente ensaístico, do texto”,
como foi apontado por meu orientador, é fundamental para o que quero ao fazer este
trabalho.
O que está em disputa? O que precisará ser renunciado
para conseguirmos libertar a capacidade criativa radical
da imaginação e dela obtermos o que for necessário para
a tarefa de pensar O Mundo outramente? Nada menos
12

que uma mudança radical no modo como abordamos


matéria e forma. (FERREIRA da SILVA, 2019, p. 37)

Pensar O Mundo outramente é o que quero com este trabalho e o que Denise
Ferreira da Silva indica é a direção que escolho tomar. Neste sentido vale dizer que
uma das características deste texto é que todas as numerosas citações são diretas 16.
O que trago de outras autoras para este trabalho, o faço com intuito de conversar com
essas ideias e não de redizer o que já foi dito.
Ainda que haja uma inevitável perda na extração de uma fração de seu contexto,
acredito que a reprodução das palavras escolhidas por suas autoras seja mais
vantajosa no intuito de libertar a capacidade criativa radical.
As formulações dos estudos com os quais dialogo aqui não serão, nem
poderiam ser, apenas fagocitadas sem que haja reflexão, crítica e possíveis
contradições com o que pretendo produzir, mas atuarão como importantes
fundamentos na construção desta tese.

Há um drama no que se convencionou chamar de


ciências humanas. Devemos postular uma realidade
humana típica e descrever as suas modalidades
psíquicas, levando em consideração apenas a ocorrência
de imperfeições; ou, ao contrário, devemos tentar sem
descanso uma compreensão concreta e sempre nova do
homem? (FANON, 2008, p. 37)

Notadamente opto pela segunda opção, tentar incansável e concretamente


compreender os seres de forma sempre nova. Devo, no entanto, pontuar que a busca
pela novidade não diz respeito ao que de mais moderno chega na colônia. Desde a
primeira caravela, a colonialidade tenta impor os seus modos de moldar o mundo,
alegando benefícios puros. O ponto de esgotamento global de recursos naturais em
que nos encontramos, apenas para dar um exemplo, nos prova o contrário.

Sendo assim, demando uma epistemologia que inclua o


pessoal e o subjetivo como parte do discurso acadêmico,
pois todas/os nós falamos de um tempo e lugar
específicos, de uma história e uma realidade específicas
- não há discursos neutros. Quando acadêmicas/os

16
Transcrição literal do texto consultado.
13

brancas/os afirmam ter um discurso neutro e objetivo,


não estão reconhecendo o fato de que elas e eles
também escrevem de um lugar específico que,
naturalmente, não é neutro nem objetivo ou universal,
mas dominante, é um lugar de poder. (KILOMBA, 2019,
p.58)

Entendo então que nem minhas declarações, nem o estilo narrativo-ensaístico,


ou seja, nem conteúdo, nem forma, colocam a construção de conhecimento numa
posição mais vulnerável do que pesquisas que se baseiam em metodologias clássicas.
Meu trabalho está passível de ser acusado de demasiadamente subjetivo e, por isso,
condenado; não nego a acusação, mas rejeito a condenação, pois entendo que a isto
não cabe pena.

A linguagem produzida nos jogos ritualizados no


cotidiano negociam inúmeros significados e
possibilidades de diálogos. O exercício de examinar a
linguagem para buscar possibilidades de transgressão à
colonialidade nos desafia a adentrar o campo das
produções ainda não tão bem encaradas. Ressalto que
há esforços para a apresentação e o curso de outras
perspectivas epistemológicas e filosóficas, porém ainda
existem inúmeras dificuldades e desproporções no que
tange às relações horizontais entre o que é produto do
cânone moderno ocidental e as outras formas de
conhecimento possíveis. Nesse sentido, cabe cismarmos
com as respostas até então dadas e considerarmos que
grande parte dos conhecimentos orientados pelo
discurso científico moderno é limitado a saberes
etnocentrados. (RUFINO, Luiz, 2019, p. 39)

Por isso, e por “uma questão de coerência com a minha alma”17, trago para este
trabalho conceitos e teorias que me são muito caras, mas também contribuições
artísticas como relatos de performances, excertos de literatura, música e poesia que,
para além da inspiração, serão também materiais na construção de sentidos desta
produção.

17 “Não é uma questão de ser feliz ou triste, é uma questão de coerência com a minha alma” (Fragmento de carta enviada por
Paulo Cesar Pereio, quando esteve internado em hospital psiquiátrico, à sua amada. Do livro “Por Que Se Mete Porra”).
14

Por um método selvagem de construção bibliográfica,


que colecione rastros e teça redes de contrabando. Para
que a teoria não se reduza aos circuitos acadêmicos com
suas bibliotecas empoeiradas geridas por sistemas
organizacionais mecanicistas. Porque já não escrevo tão
somente para obter um título, embora esteja ciente dos
ritos institucionais a que este trabalho foi submetido em
função do meu vínculo universitário. Escrevo para fazer
correr, em circuito expandido, um saber que já transborda
as estruturações sistemáticas que procuram tangenciá-
lo; para fazer carcomer o centro pelas bordas e para
afirmar essa bibliografia selvagem, que ousa existir no
ponto cego dos arquivos oficiais. (MOMBAÇA, Jota,
2016, p. 347)

O título deste capítulo - que também poderia se chamar “Modos de Fazer” -


remonta à citação que virá a seguir. Acredito que expor os métodos e as crenças na
feitura de qualquer produção seja necessário para deixar aberta a possibilidade de que
essa produção seja explorada e reinventada.
Por isso a existência de um capítulo que equivaleria a um capítulo de
metodologia de uma tese mais ortodoxa, numa tese pouco convencional. Escolhi essa
afirmação, que me fez remexer no assento na primeira vez que a li, pois me interessa
a contundência que ela traz.

Una metodología es siempre una ficción. Como una


biografía, un cuerpo, una identidad. Cuando pienso la
figura de la metodología, específicamente la académica,
la imagino como un algoritmo, un conjunto de
instrucciones o reglas sucesivas que tienen por objetivo
eliminar la duda en torno a los procedimientos. El carácter
clausurado de las metodologías académicas me lleva a
imaginarlas como procesos fijos, estandarizados y
estables que no permiten, ni con mucho esfuerzo,
pervertir esas lógicas anquilosadas que performan la
validez, científica o institucional, a partir de la repetición.
(ROJAS, Lucía, 2012, p. 1)

Entendo, como Lucía Egaña Roja disserta acima e como foi discutido por Jota
Mombaça no curso Submetodologias Indisciplinares, que toda metodologia é uma
15

ficção, no sentido em que são construídas, montadas, projetadas a fim de um propósito


ficcional, de criar uma ilusão, para supostamente erradicar a dúvida e assim, também
supostamente, chegar numa verdade absoluta.
Reitero o caráter de suposição pois entendo que a existência de uma verdade
absoluta seja uma falácia. Ainda que uma falácia ativa e perigosa, haja vista todas as
guerras e mortes pela imposição de uma verdade universal, seja ela científica, religiosa
ou política.
Desde a consolidação do programa kantiano no contexto
pós iluminista, a física forneceu modelos para estudos
científicos sobre as condições humanas – uma tarefa
facilitada pela narrativa de Hegel sobre o tempo enquanto
a força produtiva e o teatro do conhecimento e da
moralidade. Infelizmente, esses modelos foram bem-
sucedidos justamente devido ao fato desses textos sobre
o humano como uma coisa social terem como base as
mesmas rupturas em relação à filosofia medieval,
precisamente o que sustentou a reivindicação dos
filósofos modernos por um conhecimento com certeza,
isto é, a partir de causas eficientes e demonstrações
matemáticas, que são a base do texto moderno. [...] Além
de persistir na reivindicação da certeza, seus enunciados
sobre a verdade firmam-se sobre os mesmos pilares –
separabilidade, determinabilidade e sequencialidade –
montados por filósofos modernos para sustentar seu
programa de conhecimento. (FERREIRA da SILVA,
2019, p. 40)

O relato de si - ou, melhor dizendo, relato de mim - a que se refere o subtítulo


desta tese, será o substrato de análise deste trabalho. O esforço de olhar para os
episódios, encontros e interpretações, valendo-me das minhas experiências, estudos
e sonhos, não é um empenho para criar uma verdade individual.
Concordo com Jota Mombaça e Musa Michelle Mattiuzzi quando postulam que
“Uma escavação não é um movimento rumo à interioridade.” (2019, p. 15), o intento
aqui, como dito anteriormente é de pensar o mundo de outras formas, e o faço a partir
da única perspectiva de realidade a qual tenho acesso, a minha. Escrevo de dentro
para fora, escavando minhas vivências para mundanizar o que já me foi particular.
Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido
nas coisas, minha alma cheia do desejo de estar na
16

origem do mundo, e eis que me descubro objeto em meio


a outros objetos. Enclausurado nesta objetividade
esmagadora, implorei ao outro. Seu olhar libertador,
percorrendo meu corpo subitamente livre de asperezas,
me devolveu uma leveza que eu pensava perdida e,
extraindo-me do mundo, me entregou o mundo. (FANON,
2008, p. 103)

Aqui arrisco colocar-me como sujeita que age no mundo que pretendo
compreender. O risco em questão diz respeito a posição vulnerável em que se coloca
qualquer coisa exposta. Quando declaro meus movimentos, revelo-me. Daí a
vulnerabilidade, o risco.
Agora entendo por que foi tão difícil por tanto tempo responder a pergunta “o
que você estuda?”. Uma tradução em termos acadêmicos para essa frase poderia ser:
“qual o seu objeto?” e essa pergunta não se aplica aqui. Minha tese começa a partir
de algumas recusas, sendo que a primeira e principal é: eu não quero um objeto. Eu
não tenho um objeto. A tese não tem um objeto. A tese é sobre mim e eu não sou um
objeto. Ninguém é um objeto ou, pelo menos, não deveria ser.
17

ENCRUZILHADAS

“Nunca foi sorte, sempre foi Exu!”


Emicida

Encontrar o tema e os objetivos deste estudo tem sido um esforço que desde o
início do doutorado, e muito antes, me fez caminhar por diferentes rotas, buscando
outras formas de pensar e produzir, pois as que até então eu conhecia não mais faziam
sentido. Muito felizmente posso contar com um grupo de orientação que me apoia e
incentiva nos desejos e nas errâncias.

As encontras18 das Resistências Feministas tiveram papel fundamental nesse


processo, não só pelo conteúdo trazido pelas professoras de autoras como Gloria
Anzaldua, Carolina Maria de Jesus e Silvia Cusicanqui, já muito conhecidas nos
estudos decoloniais, que eu tive o primeiro contato ali, mas também pelas
metodologias que vivenciei lá, que buscavam escavar as próprias ruínas e habitá-las.

Desde então passei a dizer a quem perguntava que “meu objeto de estudo no
doutorado sou eu”, mas sem ainda ter o discernimento ou a coragem para apontar o
quê em mim seria isso ou como transformar essa escavação em algo que passasse
como uma tese de doutorado.

Nesse encontro comigo mesma e com uma escrita possível, Cíntia Guedes e
Dora Moreira, com suas palavras e seus afetos, foram exemplos e guias. As memórias
dos episódios-encruzilhadas me apareceram depois do susto de um incêndio que não
aconteceu, enquanto eu lia a tese de Cíntia “NADA (É) RAZOÁVEL” e sentia o cheiro
de queimado em minha casa19.

18
Assim, com uma torção para o feminino na palavra, eram chamadas as situações em que nos
encontrávamos semanalmente para desenvolver a oficina.
19
Dora tinha esquecido um ovo cozinhando por horas, quando cheguei em casa o ovo e a panela
tinham queimado. Não era a primeira vez que, entre nós duas, uma fazia o feitiço e a outra recebia a
magia.
18

Os episódios-encruzilhadas que apresentei foram momentos da minha vida em


que pude me ver nos cruzamentos das avenidas, ruas e travessas “mulher”, “branca”,
“nordestina” e “cisgênera”. O número sete escolhi lembrando do que me disse Mãe
Alana “são sete saias, sete colares, sete voltas, sete vidas dessa Pomba Gira que te
acompanha”.

Uso o termo “episódios-encruzilhadas” inspirada pelo que discorre Carla


Akotirene acerca de interseccionalidade.

A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-


metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo,
capitalismo e cisheteropatriarcado - produtores de
avenidas identitárias onde mulheres negras são atingidas
pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e
classe. (AKOTIRENE, Carla, p. 14, 2018)

Em português prefiro a palavra “encruzilhada” a “interseccionalidade”, para me


referir ao conceito “intersecction” de Kimberlé Crenshaw. Para além da tradução,
acredito que seja uma questão de respeito à ancestralidade e espiritualidade.

É oportuno descolonizar perspectivas hegemônicas


sobre a teoria da interseccionalidade e adotar o Atlântico
como locus de opressões cruzadas, pois acredito que
esse território de águas traduz, fundamentalmente, a
história e a migração forçada de africanas e africanos. As
águas, além disto, cicatrizam feridas coloniais causadas
pela Europa, manifestas nas etnias traficadas como
mercadorias, nas culturas afogadas, nos binarismos
identitários, contrapostos humanos e não humanos. No
mar Atlântico temos o saber duma memória salgada de
escravismo, energias ancestrais protestam lágrimas sob
o oceano. Segundo a profecia yorubá, a diáspora negra
deve buscar caminhos discursivos em atenção aos
acordos estabelecidos com antepassados. Aqui, ao
consultar quem me é devido, Exu, divindade africana da
comunicação, senhor da encruzilhada e, portanto, da
interseccionalidade, responde como a voz sabedora do
quanto tempo a língua escravizada esteve amordaçada
politicamente, impedida de tocar seu idioma, beber da
própria fonte epistêmica cruzada de mente-espírito.
(idem, p. 15)
19

Peço a licença à Exu, aos povos traficados e assassinados pelo Atlântico e às


pessoas que ainda vivem o jugo do racismo sobre suas peles, herdeiras da sabedoria
yorubá, em que agora me amparo ao usar a palavra “encruzilhada”.
20

EPISÓDIOS-ENCRUZILHADAS

Uma galinha está sendo sacrificada


numa encruzilhada, um simples monte de
terra
Um templo de lama para Exu,
Yoruba deus da indeterminação,
que abençoa sua escolha por um caminho.
Ela inicia sua jornada.
Gloria Anzaldúa

Os episódios-encruzilhadas que irei relatar nos capítulos adiante são a maneira


que encontrei de dar forma ao que chamei de substrato de análise, o relato de mim.
Eles explicitam minhas marcas físicas e históricas enquanto sujeita da pesquisa,
discutindo o conceito de interseccionalidade como encruzilhada ao cruzar minhas
vivências e leituras de mundo, e elaborando sentidos e sentimentos do meu corpo no
mundo.

Pretendi com este trabalho investigar meus lugares e trajetórias subjetivas


enquanto mulher branca cisgênera nordestina numa pós-graduação em Saúde
Coletiva na cidade do Rio de Janeiro. Nesta investigação, tento também elaborar sobre
os movimentos que se cruzam com esses lugares: o racismo, o machismo, o elitismo
são exemplos.

O tempo limitado de um doutorado limita também a sua amplitude. O material


auto prospectado que será exposto aqui tem os limites que esse tempo possui. No
entanto sei que o trabalho de elaboração para ser feito e desfeito em cima da minha
experiência no mundo precisa ser constante e infinito.

Talvez seja esse o melhor que uma tese pode fazer a uma pesquisadora: realocá-
la diante do mundo (GUEDES, Cíntia, p.14, 2018). Não quero que o final desta tese
seja um tratado de mea culpa, o intuito não é refinar ou maquiar as ruínas, mas, ao
contrário, reconhecer a brutalidade e aprender a habitar o inóspito.
21

A CABEÇA

Me estrechó la mano y se despidió con una frase que


lo mismo podía ser un buen consejo que una
amenaza:
- Cuídese mucho.
Gabriel Garcia Marquez

O primeiro dos episódios-encruzilhadas sobre o qual quero me debruçar


aconteceu em sala de aula, durante o primeiro ano de mestrado em Saúde Coletiva no
IMS da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). A disciplina era ministrada
por um professor e intelectual considerado importante no Rio de Janeiro.
Nesta aula, especificamente, o professor abordou a discussão da Proposta de
Emenda Constitucional (PEC) 66/2012, conhecida como PEC das Domésticas, a qual
pretendia assegurar para empregadas domésticas uma jornada semanal de trabalho
de 44 horas, tendo então direito à hora extra20.
O tamanho do impacto que esta mudança teria na sociedade brasileira era óbvio
por sua grandiosidade, haja vista a enorme quantidade de famílias que empregava
domésticas que trabalhavam e moravam no local de trabalho, o que configurava uma
jornada muito maior que 44 horas semanais. A obviedade, no entanto, não contempla
a complexidade de tal impacto, que não poderia ser descrito apenas
macroeconomicamente, como pretendia o professor em sua abordagem.
Ele alegava que, se aprovada, essa PEC seria calamitosa para a economia do
país, pois certamente deixaria milhares de mulheres desempregadas, tentando
argumentar um lado “humanitário” de sua preocupação. De forma alguma estava
contrário ao projeto devido ao seu lugar e ponto de vista de quem pode contratar esse
serviço e não de quem precisa prestá-los.
Ainda que não fôssemos incentivadas para isso, eu e outras colegas na sala
tentávamos argumentar com o professor sobre os benefícios que a PEC traria em
termos de justiça social, até um ponto em que eu nomeei no debate uma questão
elementar, o nosso histórico escravista. Disse ao professor que as mesmas razões que

20
Para o histórico de luta das domésticas sob olhar decolonial ver BERNARDINO-COSTA, 2015.
22

ele defendia tinham sido aventadas pelas elites da época contra a abolição da
escravidão, que seria um baque econômico insustentável e que quem mais sofreria
com isso seriam as pessoas negras então escravizadas, que ficariam sem o “sustento”:
a senzala e os restos de alimentos.
O clima de espanto que tomou a sala foi rapidamente interrompido pelo professor
que elevando o tom de voz me chamou de “burra” e disse que eu deveria “abrir a
cabeça para a inteligência” (sic). O choque então foi meu; não era a primeira e nem
seria a última vez que um homem me ofendia por não concordar com ele, mas essa
forma de desenhar a violência era nova para mim. Naquela situação eu não queria
abrir, muito menos a cabeça, e menos ainda para aquela inteligência, mas ali ficava
claro21 que o privilégio que eu acessava fazendo uma pós-graduação de nível máximo
no país trazia custos cobrados no corpo.
A cobrança a que me refiro não se trata de qualquer tipo literal de incisão, mas
de uma invasão subjetiva que se impunha sobre mim. Naquele momento estavam
colocados os meus traços de mulher, duelando com uma voz masculina que se
projetava a partir de um lugar de centro e de poder intelectual muito diferente do meu,
sentada como aluna vinda do nordeste, periferia do Brasil. Mas havia também uma
identificação entre nós: repetidas vezes, em outras aulas, o professor havia contado o
feito de ter alfabetizado a sua babá, e eu, apesar de não ter tido esse “mérito” da
alfabetização de minha cuidadora, também fui criada por uma mulher pobre que foi
contratada para isso por um salário irrisório durante meus primeiros 11 anos de vida.

Nós não podemos / falar de Narciso, / sem falar de Eco.

Quem é Eco?

Eco é o consenso branco. / É ela quem repete, / e quem confirma


/ as palavras de / Narciso.

Ela segue-o / silenciosamente, / e cada momento / do seu


silêncio, / aplaude o discurso / de Narciso.

Eco é a personagem, / que inocentemente, / repete o que /


Narciso diz - / alegando não ter que saber.

21
Utilizo aqui o termo “claro” e não “nítido” ou “explícito” propositalmente, pois entendo que o que fica
explícito são os sinais da branquidade.
23

Não ter que saber, / é um privilégio / que nem todos nós temos.

Bem, não é só / que não se sabe. / Mas, que se tem / o poder de


não ter / que saber.

Poderíamos / chamar a isto / uma dupla ignorância: / não se


sabe, / e não se tem que saber.

Ou uma tripla ignorância: / não se sabe, / não se tem que saber,


/ e, na verdade, não se deve saber.

Uma múltipla camada de ignorâncias.

Fica então a simples questão: / qual o papel que escolhemos ter?

O papel de Narciso, que não sabe. / O papel de Eco, que não


quer saber. / A obediência de ambos, / que não se deve saber.

Ou saber, o que há muito sabemos. (KILOMBA, Grada, 2019b,


p. 19)

O que me invadia subjetivamente era a compreensão de que aquela agressão


era também um convite, uma proposta de paz branca, abrir a cabeça para a inteligência
seria seguir reproduzindo a mesma lógica colonial que me trouxe a este lugar cheio de
confortos que precisam da subjugação de outros corpos para que existam.
No dia 10 de janeiro de 2020 tive um sonho que me ajuda a pensar meu
posicionamento neste episódio-encruzilhada e no mundo. Segue o relato:
Sonhei que estava em um condomínio fechado de luxo, junto com algumas
amigas, aproveitando as mordomias do lugar, ou melhor, tentando, porque algo de
ruim sempre acontecia, por exemplo, quando íamos andar de lancha, todas
afundavam. Estávamos lá como visita, nada no lugar era nosso, de forma que causava
enorme angústia que estivéssemos causando prejuízo, pois não teríamos como pagar
por aquilo, os donos do local - todos homens cisgênero brancos e ricos - , no entanto,
não pareciam se importar e apenas riam da situação. Em certo ponto vi um homem
alto e loiro sendo assistido por várias pessoas num jardim, ele tinha um jeito muito
pueril de se portar e falar, o que causou muita estranheza quando ouvia ele dizendo
que ia apresentar seu doutorado. Comecei então a ter a sensação de que havia alguma
coisa errada ali e percebia que todas as pessoas do local eram brancas, muito brancas.
24

Procurei minhas amigas para chamar para irmos embora dali, mas só encontrava um
amigo. Nesse momento, um dos homens donos do local aparecia e me entregava um
pequeno pacote e dizia sorrindo “Eu gostei de você, você é radiante!”. A sensação de
desconfiança persistia mesmo com aquela tentativa de agrado, eu olhava então para
o presente, nele estava escrito “kit tortura” e quando o abria via que eram umas
pequenas hastes de alumínio, e na hora eu entendia que era um instrumento a ser
acoplado num pênis para causar ainda mais dor num estupro e daí entendia que aquele
gesto de me oferecer um instrumento que eu especificamente não poderia usar e que
servia para violentar corpos como o meu era, em si, uma tortura, assim como tinham
sido todos os momentos naquele lugar: torturantes. Falei então para meu amigo que
precisávamos sair dali imediatamente, a qualquer custo.22
Me chama a atenção nesta parte do sonho o gesto de sedução do homem que
me elogia e presenteia, justamente no momento em que eu pretendia me retirar do
território de privilégios. Entendo que esse gesto se configura como um convite
fraudulento, posto que impossível, para o “lado de lá”. Como se os benefícios do pacto
de branquitude estivessem totalmente acessíveis para mim. Como se eu pudesse fazer
parte do consenso branco23 gozando plenamente apenas dos privilégios.
A partir da cena onírica que descrevi pude saber o que há muito sabemos como
propõe Grada Kilomba. O consenso branco é um véu que pretende ocultar as
engrenagens e parafernálias de opressões do mundo colonial, mas que só serve a
quem pode não as enxergar. O meu entendimento no sonho sobre o instrumento
escancara o meu marcador de gênero, posicionando-o como uma limitação, na medida
em que determina quem tortura e quem é torturado.

22
O sonho não terminou aí, irei retomá-lo mais adiante no episódio-encruzilhada O Silêncio
23
Utilizo o termo consenso branco em referência ao trabalho de Grada Kilomba citado, mas é válido
também apontar a conexão com o trabalho de Maria Aparecida da Silva Bento (2002) no qual disserta
sobre o pacto social da branquitude.
25

O SEQUESTRO

and when we speak we are afraid


our words will not be heard
nor welcomed
but when we are silent
we are still afraid
So it is better to speak
remembering
we were never meant to survive24
Audre Lorde

“E num ato terrorista uma estudante sequestrou o microfone”.


Essas palavras foram ditas por mim no auditório do IMS, na ocasião da mesa
Perspectivas futuras da Saúde Coletiva composta por quatro professores eminentes
na Saúde Coletiva no Brasil, todos homens e sudestinos. A mesa era parte da
programação do evento de comemoração pelos 40 anos do instituto.
Após a fala dos quatro, a palavra foi passada para a platéia. O coordenador da
mesa inscreveu primeiramente aqueles que estavam sentados mais à frente, que eram
também eminências no campo. Quando minha mão levantada foi notada, o tempo já
estava acabando e as inscrições foram encerradas.
Eu havia me inscrito para falar justamente da falta de mulheres em cargos de
gestão na saúde, tanto no SUS quanto na academia, e vi naquela situação os próprios
meios que reproduzem esse cenário pois eu, mulher, não poderia falar ali.
Vendo que seguindo o cerimonial acadêmico a palavra nunca chegaria a mim,
resolvi burlar o caminho. Mudei de lugar e me sentei atrás do professor que fazia a
última pergunta da plateia antes que a mesa voltasse a responder e quando ele
terminou pedi o microfone discretamente. O coordenador da mesa tentou me fazer

24
e quando nós falamos estamos com medo / nossas palavras não serão ouvidas /nem bem vindas /
mas quando estamos em silêncio / nós continuamos com medo / Então é melhor falar / Lembrando /
Não éramos supostas sobreviver. (Tradução de Dora Moreira e Jessica Oliveira)
26

sinais indicando a quem deveria ser passado o microfone, mas eu ignorei e ele,
provavelmente sem querer interromper a fala da mesa, não disse nada no momento.
Quando os professores da mesa terminaram, eu anunciei o sequestro.

Um bom capoeira nunca deve mostrar tudo que sabe, ou pelo


menos deve fazer parecer que não mostrou, e para isso nem
precisa ser forte, mas estar sempre atento e esperto. Mestre
Nbanji disse que a capoeira é como uma conversa, um faz uma
pergunta de supetão e o outro tem que ter a resposta pronta, e
ganha quem faz a pergunta que o outro não sabe responder. Eu
achei isso bonito e é a mais pura verdade, cada qual tem que
inventar seu jeito de fazer perguntas, porque elas são sempre as
mesmas, assim como tem as mesmas respostas.
(GONÇALVES, Ana Maria, 2006, p. 666)

Essa cena, assim como todo o evento, foi filmada e está disponível25 no canal do
YouTube oficial do instituto, IMS TV, de forma que pude revê-la, e já o fiz algumas
vezes. Quando assisto o vídeo me vejo inquieta e tenho a lembrança nítida das
sensações naquele momento em que segurava o microfone antes de falar. Lembro
pouco do que de fato falei e, quando ouço novamente, penso que deveria ter dito mais,
outras coisas, de forma diferente, mas uma frase me arrebata: “Eu vi a necessidade
de tomar a palavra”.

Quando, em 1956, depois da capitulação de Guy Mollet diante


dos colonos da Argélia, a Frente de Libertação Nacional, num
panfleto célebre, constatou que o colonialismo só desiste com a
faca na garganta, nenhum argelino achou esses termos violentos
demais. O panfleto só dizia o que todos os argelinos sentiam no
mais profundo de si mesmos: o colonialismo não é uma máquina
de pensar, não é um corpo dotado de razão. Ele é a violência em
estado natural, e só pode se inclinar diante de uma violência
maior. (FANON, Frantz, 2005, p. 79)

Guardando as devidas proporções do contexto de luta armada descrito por


Fanon, acredito que essa conclusão pode ser transposta para pensar este episódio-
encruzilhada.

25
https://www.youtube.com/watch?v=k-m_NxVU6Q8&t=173s
27

De forma similar compreendo que a manifestação de poder patriarcal que ali


silenciava vozes femininas, é uma expressão brutal e não racional, como queriam
supor aqueles que advogavam pela “ordem de inscrição nas falas”. O que vejo como
possibilidade de enfrentamento é a redistribuição desobediente da violência, como
Jota Mombaça explica:
A premissa básica desta proposta é a de que a violência é
socialmente distribuída que não há nada de anômalo no modo
como ela intervém na sociedade. É tudo parte de um projeto de
mundo, de uma política de extermínio e normalização, orientada
por princípios de diferenciação racistas, sexistas, classistas,
cissupremacistas e heteronormativos, para dizer o mínimo.
Redistribuir a violência, nesse contexto, é um gesto de confronto,
mas também de autocuidado. Não tem nada a ver com declarar
uma guerra. Trata-se de afiar a lâmina para habitar uma guerra
que foi declarada à nossa revelia, uma guerra estruturante da
paz deste mundo, e feita contra nós. Afinal, essas cartografias
necropolíticas do terror nas quais somos capturadas são a
condição mesma da segurança (privada, social e ontológica) da
ínfima parcela de pessoas com status plenamente humano no
mundo. (MOMBAÇA, Jota, 2017, p. 10)

Ali não poderia a subalterna falar, nem os senhores ouvirem, pois não se trata de
conversa ou, parafraseando Fanon, não é com uma máquina dialógica que lidamos, o
supremacismo não quer papo, quer submissão silenciosa.
28

O SILÊNCIO

Será que nossas instituições nascem de si mesmas e se


multiplicam por si mesmas e nós somos simplesmente peões?
Será que as ideias têm origem na mente humana ou que saem
de algum limbo onde as ideias brotam sem nossa ajuda? A quem
apontamos a culpa por todo o mal estar que vemos ao nosso
redor? A nós mesmos, ao capitalismo, ao socialismo, aos
homens, às mulheres, à cultura branca?
Glória Anzaldúa
29

Quadro 1 – Carta Aberta dos Professores do IMS


“A prática da violência, como toda ação, muda o mundo, mas a mudança mais
provável é um mundo mais violento.” (Hannah Arendt)
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro vive um momento de crise e
dificuldade pelo atraso sistemático dos seus recursos orçamentários, crise que tem
impactado em graus diferentes várias unidades e instâncias da UERJ, afetando
inclusive a nossa própria autonomia. Do fechamento de unidades de ensino de
prestação de serviço, como a Clínica de Odontológica, aos trabalhadores terceirizados,
parcela mais frágil de toda a cadeia que não recebem os seus salários, o sofrimento é
amplo e irrestrito. Frente a essa “violência” que os funcionários terceirizados estão
submetidos, a comunidade uerjiana e a do Instituto de Medicina Social não está atrás,
tem reagido em buscar formas que pudessem mitigar e denunciar essa situação. De
um lado, várias unidades se cotizaram para levantar doações de alimentos e cestas
básica que foram distribuídas aos mais necessitados entre esses funcionários. De
outro, desenhou-se a necessidade de se protestar contra essa situação. Se o protesto
é uma parte legítima da construção da democracia e cidadania, a violência fruto desse
protesto é absurda e inaceitável. A violenta agressão a servidores da UERJ, ao
patrimônio público e à própria Universidade, que teve lugar no dia 13 de maio,
configura-se como um triste momento da nossa vida universitária. A violência que os
trabalhadores terceirizados vêm sofrendo, devido a decisões políticas que também
atingem a UERJ, que é vítima, e não causa, das mesmas, não justifica a agressão a
quem não é responsável pelas dificuldades que eles enfrentam. De todo modo, até
onde sabemos, esses trabalhadores não tiveram participação no lamentável
espetáculo de violência.

Pela total falta de respeito que essa violência impõe a todos os servidores da
Universidade, a qual somos intransigentemente contrários, a comunidade do IMS se
sente de luto.
De luto, porque a violência acaba com o diálogo;
De luto, porque a violência impede o debate;
De luto, porque a violência sufoca a criatividade;
De luto, porque a violência provoca a desarmonia;
De luto, porque a violência bloqueia o conhecimento;
De luto, porque a violência só gera violência.
NÃO À VIOLÊNCIA, NÃO AO VANDALISMO, NÃO À AGRESSÃO FÍSICA
30

Quadro 2 – A Carta Não Enviada


Nós, estudantes participantes do Coletivo de Estudantes do IMS/UERJ, vimos
por meio desta nota repudiar os últimos atos de violência ocorridos na UERJ e
redondezas. Muito mais do que os danos causados ao patrimônio, nos preocupam as
agressões à integridade das pessoas e aos direitos de manifestação e de ir e vir em
espaços públicos.
Precisamos analisar o contexto mais amplo da cidade e do estado do Rio de
Janeiro, em que 67 mil pessoas foram removidas de suas casas depois que o Rio foi
escolhido cidade olímpica. O que assistimos na UERJ não pode ser dissociado desta
conjuntura. Esse olimpo parece mais um inferno. A revolta popular cresce nesse
contexto de constante violação de direitos humanos.
Não somos a favor de manifestações violentas. Mas o impedimento da entrada
de membros da comunidade da UERJ e da comunidade fluminense no interior do
campus contraria a vocação pública dessa instituição e representa violação do direito
de ir e vir dos cidadãos. Nos acontecimentos de ontem, estudantes, como nós, foram
violentados, impedidos de retornarem à UERJ, após terem se solidarizado com
integrantes da comunidade Metrô Mangueira, que estavam sendo retirados à força de
suas casas. A nosso ver, os membros desta comunidade, que vive no entorno da
UERJ, também não podem ser impedidos de adentrarem o campus universitário.
Entendemos que é a serviço da população que a universidade pública deve estar. É
preciso, sim, se debruçar sobre os problemas e questões sociais que nos rodeiam.
Não somos, definitivamente, um grupo fundamentalista. Prezamos pela
diversidade de pensamentos e posições, mas somos sim radicais na defesa de uma
universidade pública e aberta a todxs a, a começar por seus membros servidores e
terceirizados da casa, e, é claro, os estudantes. Acreditamos ser necessário que outros
lados da história sejam ouvidos e que vídeos que registraram o ocorrido também sejam
assistidos e levados em conta.
Defendemos a prioridade do diálogo e das negociações pacíficas em quaisquer
espaços políticos. Não acreditamos na existência de grupos cujo objetivo seja a
destruição da UERJ. Analisamos que a depredação da UERJ vem muito mais por conta
de uma política de austeridade que penaliza os mais pobres e do contínuo descaso de
sucessivos governos do RJ em relação à universidade.
É importante que os grupos discutam o que querem da UERJ. Achamos que
para que o terror não se instaure entre nós precisamos estar dispostos a debater
coletivamente, ou seja, precisamos de uma universidade cada vez mais aberta a
discussões, reivindicações e manifestações.
Portas abertas não serão quebradas.
31

Esta nota (Quadro 2) foi escrita por pessoas que participavam do coletivo de
estudantes do IMS em 2015, inclusive eu, em resposta ao primeiro texto (Quadro 1),
escrito por professores do IMS, mobilizados pelas consequências de manifestações
ocorridas na UERJ.
No primeiro semestre do mesmo ano, no período anterior às Olimpíadas que
foram realizadas no Rio de Janeiro, aconteceram diversas manifestações de protesto
em relação ao desmonte da UERJ, que se fazia explícito pelo não pagamento dos
salários de funcionários terceirizados e concursados. Uma dessas manifestações
culminou no apedrejamento das portas de vidro da reitoria. Ato que causou comoção
na comunidade acadêmica, mesmo entre os docentes mais “críticos” e de “esquerda”.
A nossa nota foi escrita, porém nunca publicada; como uma carta não enviada.
Após a confecção da nota, nos reunimos na nossa recém montada e entregue sala de
estudantes, com dez baias e computadores de última geração e uma mesa grande
para estudos e reuniões, para discutirmos o texto, fazermos ajustes e deliberarmos
sobre sua publicação.
Na reunião travamos uma discussão intensa sobre como nos posicionarmos em
relação ao debate que já estava sendo feito pelo corpo docente e que tomava uma
direção que a maioria de nós discordava.
Um único colega era contra a publicação de nossa nota, não por, segundo ele,
concordar com o tom de julgamento do corpo docente sobre o que estavam chamando
de “atos de vandalismo”, mas por desacreditar na potência de escrever notas ou cartas
do tipo.
Também nesta época, o coletivo de estudantes do IMS passava por uma “crise
de representatividade”, que acredito nunca ter sido superada. A crise se dá não só por
estudantes que não participam das atividades do coletivo e/ou discordam de seus
posicionamentos, mas pelo próprio corpo do coletivo, que ainda quando consegue
debater e formar opiniões, não se sente apto a publicizar ou assumir posicionamentos
enquanto grupo.
Na nossa nota tentávamos falar de portas abertas que não seriam quebradas,
num clamor ingênuo de quem não percebe as portas fechadas dentro de si mesma. A
barreira da comunicação nesse episódio não se deu por um outro corpo falante que
32

impõe um silenciamento, mas por algo que em nós mesmas já fora plantado, como
uma erva daninha que desmobiliza, sabota e cala a própria voz.
Voltarei agora no sonho que comecei a relatar no episódio-encruzilhada A
Cabeça, retomando o relato do ponto em que foi interrompido:
Logo que entendemos que precisávamos fugir, eu e meu amigo percebemos
que estávamos encurralados pelos donos do local, que nos perseguiam. Eu, então,
falei para meu amigo que não havendo saída do local, a melhor solução seria nos
matarmos, pois sabia que o que eles iriam fazer conosco era muito pior. O condomínio
ficava no alto de uma colina de onde caía uma cachoeira em direção ao mar, eu sugeri
que pulássemos de lá, imaginando que seria a melhor maneira de morrer, ao que meu
amigo concordou. No entanto, no caminho para lá os homens nos encontraram e nós
precisamos correr em outro sentido, entrando num prédio com muitos corredores, lá
achamos uma panela de ferro e resolvemos que seria uma arma possível. Começamos
a golpear um ao outro na cabeça alternadamente e foi ficando evidente que alguém
morreria antes, ou seja, só um se salvaria dos homens. Percebia que meu amigo já
estava ferido e resolvi que seria ele, pois estava mais fácil. Consegui então quebrar
seu crânio, mas ainda assim ele não morreu, foi preciso que eu arrancasse pedaços
de seu cérebro, aí sim ele cambaleou, vomitou uma massa branca e desfaleceu. Logo
em seguida um dos homens nos encontrou e eu implorei a ele que me matasse, ele
disse que não poderia e mostrou que havia alguns produtos de limpeza ali ao alcance,
o que entendi como uma forma de empatia de sua parte. Corri para ingerir um Veja e
enquanto estava bebendo os outros homens chegaram e riram muito ao me ver,
perguntando de onde eu tinha tirado que aquilo me mataria, o primeiro homem que me
encontrou disse rindo que ele que havia insinuado e todos o congratularam. Nesse
momento eu estava ajoelhada, em pânico, rodeada por todos aqueles homens que
gozavam do meu desespero e acordei.
Quando levei esse sonho para a análise minha analista apontou que em muitos
momentos do sonho eu entendia alguma coisa. No episódio-encruzilhada em que
comecei a relatar esse sonho falei sobre a potência dos entendimentos, mas agora
pondero que esses muitos entendimentos podem ser também uma armadilha. Estaria
eu entendendo demais e agindo “de menos”?
33

O impacto macropolítico que uma carta como esta teria seria provavelmente
pífio, mas de qualquer forma, acredito que conjecturas nestes termos sejam
irrelevantes. A dúvida que fica é: no que acarretaria para nossos corpos e vidas esse
instante de portar e projetar nossas vozes?
34

A NOTA

Uma palavra
Início de uma reza
Palavra o vento leva
Mas fica sempre a intenção
Mateus Aleluia

O episódio-encruzilhada que descrevo a seguir teve parte de seus


acontecimentos no meio virtual, por publicações no Facebook da página Coletivo de
Estudantes do IMS. A nota (Quadro 3) que apresento a seguir foi redigida em conjunto
por estudantes do coletivo e desta vez, felizmente, conseguiu ser postada:
35

Quadro 3 – Nota de Repúdio do Coletivo de Estudantes do IMS

NOTA DE REPÚDIO AO RACISMO NA PÓS-GRADUAÇÃO DA UERJ


Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 2016
Tendo em vista o reconhecido pioneirismo dos programas de cotas da UERJ, o
Coletivo de Estudantes do IMS vem por meio desta repudiar os atuais retrocessos
ocorridos nos últimos anos e que também atingem a nossa comunidade. O racismo
velado vem se institucionalizando por um processo de intensa burocratização que cria
barreiras para o acesso de negras e negros, principalmente na pós-graduação.
Nos últimos dias, uma ação na escadaria que dá acesso ao IMS chamou nossa atenção
e nos incitou a um posicionamento: a frase “vai ter preto sim!” nos remeteu a série de
discussões que desde de 2014 o Coletivo vem traçando (a partir da aprovação da Lei
Estadual n. 6.914/2014) mas que enfrenta resistências.
Durante todo 2015, o Coletivo se empenhou em articular espaços e pessoas para
discutir a questão de cotas na pós-graduação. Propusemos a criação de um GT no
qual professores e alunos foram convidados a construir uma agenda de debates na
comunidade do IMS visando, posteriormente, uma elaboração conjunta do edital para
seleção das turmas de 2016. Além disso, no final do ano, organizamos uma mesa com
debatedores, sala e horários confirmados. Infelizmente, por falta de apoio e omissão
institucional dos professores e da comissão de pós-graduação, não aconteceu o GT,
não aconteceu a elaboração do edital conjunto, não aconteceu a mesa.
O que presenciamos, então, foi uma sucessão de erros que culminou em um
desastroso processo seletivo. Na visão do Coletivo, isto ocorreu pelo desinteresse do
IMS em discutir a cota, transformando-a em um problema burocrático e evidenciando
o racismo nas instituições de pós-graduação.
Esperamos sinceramente que o ocorrido mobilize ações efetivas acerca da questão
das cotas no IMS e reafirmamos a nossa intenção de continuar insistindo em trazer o
debate para dentro dos muros da academia, a fim de remover barreiras ao acesso e à
produção do conhecimento.
Coletivo de Estudantes do IMS
36

Figura 1 - “VAI TER PRETO SIM” Imagem que acompanha a postagem da nota de
repúdio
37

Esta nota foi redigida coletivamente por nós, estudantes, que já estávamos
aborrecidos com posturas e falas de alguns docentes que estavam contrariados com
a promulgação da lei estadual n. 6.914/2014 que tornou obrigatórias as cotas raciais
nas seleções de pós-graduações de instituições públicas fluminenses. Um desses
docentes chegou a dizer em reunião de colegiado que uma solução para um suposto
decréscimo no nível intelectual dos egressos seria “arrochar na prova de línguas” (sic).

O elitismo atrelado ao racismo dessa fala que parece querer delimitar quem pode
fazer ciência e com quais instrumentos, não foi, no entanto, o que nos fez urgir para
uma reunião e posteriormente redigir a tal nota. O que marcou esta motivação foi a
pichação (Imagem 1) com a qual nos deparamos na semana seguinte à finalização do
processo seletivo para 2016.

A pichação - que, até onde sei, não foi feita por estudantes do coletivo -, em seu
devir disruptivo e impositivo, entendemos como uma acusação, mas longe de uma
condenação e ao contrário de um silenciamento, agiu nos interpelando, convocando
vozes.

Lembrar dos desdobramentos que aconteceram depois desta publicação me


torna indulgente em relação ao sentimento de fracasso por não termos conseguido
publicar a carta citada no episódio-encruzilhada anterior. Nos dias seguintes fomos
procurados pela direção do instituto que comunicou o desagrado com a nota e exigiu
uma “retratação”, sob ameaça de processos judiciais de calúnia e difamação aos
estudantes que tivessem compartilhado a nota em suas páginas pessoais no
Facebook. O corpo docente também publicou sua nota a respeito (Quadro 2).

Certas de que nada havia de difamatório no texto, mas temerosas do que poderia
acarretar em nossas vidas de pós-graduandas tais ameaças, redigimos um novo texto
(Quadro 3) explicitando que falávamos de racismos estrutural e institucional.
38

Quadro 2 – Nota do Corpo Docente


NOTA DA DIREÇÃO, COORDENAÇÃO DA PÓS-GRADUAÇÃO E PROFESSORES
DO IMS SOBRE O TEXTO CIRCULADO NA MÍDIA PELO COLETIVO DE ALUNOS
RELATIVO AO TEMA RACISMO NA PÓS-GRADUAÇÃO DA UERJ

No dia 26 de janeiro, apareceu uma pichação em um vão fechado, entre o 7o e o 8o


andar da UERJ, com a afirmação: “Vai ter preto sim!”. Três dias depois, o Coletivo
de Estudantes do IMS publicou em sua página no Facebook uma nota fazendo
referência explícita à pichação como um mote para um posicionamento” em relação
a seu suposto significado.
A nota começa repudiando “os atuais retrocessos ocorridos nos últimos anos”, que
contrastam com o “reconhecido pioneirismo do sistema de cotas da UERJ”. Em
seguida, a nota passa a descrever a iniciativa realizada pelo Coletivo para a
discussão do tema das cotas no IMS, iniciativa essa que “enfrenta resistências”.
Essas resistências se evidenciariam na “falta de apoio e omissão institucional dos
professores e da comissão de pós-graduação”, que teriam resultado na não
participação dos mestrandos e doutorandos na elaboração do edital para seleção
das turmas de 2016 e na não realização de uma mesa de debate sobre o tema.
Como resultado de tudo isso, teria havido uma “sucessão de erros que culminou em
um desastroso processo seletivo”.
A nota denuncia, ainda, o “desinteresse do IMS em discutir a cota transformando-a
em um problema burocrático e evidenciando o racismo nas instituições de
pósgraduação”.
Em outras palavras, o IMS evidenciaria, com seu desinteresse, o
racismo que o atravessa, assim como ocorre em outras instituições.
Afirmações contundentes, que certamente suscitam e exigem um debate franco e
aberto no interior da comunidade do IMS, que envolve discentes, funcionários e
docentes. Mas para chegar lá é necessário separar, de imediato, o joio do trigo
contido na nota do Coletivo.
39

Um debate honesto sobre o racismo exige certamente contundência, mas também


requer discernimento. Exige argumentos e fatos, não apenas acusações ou
comentários apressados. A resistência à participação do corpo discente nas
atividades e órgãos colegiados do IMS, a falta de apoio e omissão dos professores
e da CPG, o desinteresse do IMS em relação às cotas, e o processo seletivo
desastroso não são afirmações quaisquer. Exigem rigor na sua explicitação. Nem
a Comissão de Pós-Graduação nem o corpo de professores do IMS reconhecem as
denúncias de que foram alvo, e estão dispostos a discutir com o Coletivo cada uma
delas, para argumentar quanto ao seu caráter intempestivo e equivocado.
Do nosso ponto de vista, não houve resistência ou omissão, muito menos qualquer
consequência negativa sobre o processo de seleção, em que pese o fato de a
novidade da introdução das cotas na pós-graduação, através da Lei Estadual
n. 6.914/2014, colocar desafios importantes ao nosso programa. Consideramos que
a participação dos discentes em todas as instâncias colegiadas do IMS tem sido
constante e fortemente incentivada.
O próprio Coletivo parece ter se dado conta disso e reviu com justeza algumas das
postulações iniciais, embora utilize outro nome para a mudança de posição.
No dia 12 de fevereiro, foi enviada uma nota “para toda a comunidade do IMS” para
“explicar alguns aspectos” da primeira nota.
Nessa segunda nota, o Coletivo diz não haver “denúncia pessoal a qualquer membro
ou instância da comunidade do Instituto de Medicina Social”. Mas os professores e
a comissão de pós-graduação, citadas na primeira nota, são, respectivamente,
membros e instância do IMS.
A nota diz que “Também é preciso referir que o processo de seleção de mestrandos
e doutorandos do Instituto de Medicina Social para o ano de 2016 incorporou as
cotas e não impôs qualquer empecilho deliberado aos candidatos que se
inscreveram por elas”. Ou seja, não parece ter havido resistências ou desinteresse
pelas cotas, como denunciado na primeira nota.
Mais adiante, a segunda nota afirma: “Acompanhamos o processo e, apesar de não
ter tido uma construção ampliada, houve a adequação do edital à incorporação das
cotas, de acordo com as normas da UERJ.” Apesar da imprecisão (as regras sobre
40

cotas estão de acordo com a Lei Estadual, não sendo decididas pela UERJ), a frase
passa ao largo da ideia de não participação dos discentes e do suposto caráter
“desastroso” da seleção.
A nota, finalmente, insiste, de forma acertada, na necessidade de ampliação do
debate em torno do racismo institucional, que certamente precisa ir além da simples
adequação burocrática às novas regras para cotas.
A segunda nota do Coletivo é um passo correto na construção de um espaço de
discussão aberto e leal entre todos os que fazem parte do IMS, embora, até o dia 25
de fevereiro, ela não tenha sido publicada na página do Coletivo no Facebook.
É de se esperar que, em nome da honestidade intelectual que deve orientar o
debate, isso venha a acontecer, junto com a publicação desta nota dos professores.
Redes sociais são um novo espaço de troca de ideias e mobilização política. Mas
para que avancemos juntos – discentes, técnicos e docentes – em nosso
aperfeiçoamento como um coletivo de fato, é preciso insistir em trazer a
discussão para o interior da instituição. É preciso sempre buscar os caminhos que o
tornem possível – e produtivo. Se os canais existentes são insuficientes, então é
preciso criar juntos novas alternativas.
41

Quadro 3 – Tréplica do Coletivo de Estudantes

Como forma de darmos andamento a busca do debate necessário sobre a


incorporação das cotas na pós graduação - e no nosso programa - e o racismo
institucional, publicamos abaixo a nota de resposta do corpo docente do Instituto de
Medicina Social a nossa nota - "NOTA DE REPÚDIO AO RACISMO NA PÓS-
GRADUAÇÃO DA UERJ", publicada em 29 de Janeiro - e a segunda nota produzida
por nós, citada na nota docente. A guisa de explicação, a segunda nota que produzimos
tem teor explicativo e foi circulada internamente, dirigida àqueles que, a nosso ver de
modo equivocado, se sentiram pessoalmente acusados pela nossa primeira nota. A
luta continua!

SOBRE A "NOTA DE REPÚDIO AO RACISMO NA PÓS GRADUAÇÃO DA UERJ"

O coletivo vem, por meio desta, explicar alguns aspectos da nota publicada por
nós em 29 de janeiro. Aquela não se trata de uma denúncia pessoal a qualquer membro
ou instância da comunidade do Instituto de Medicina Social. Propusemos na nota, mais
uma vez, como desde 2014, o debate ampliado sobre a incorporação das cotas no
nosso programa e na pós graduação brasileira, assim como das questões estruturais
e sistêmicas que nos afetam.
Também é preciso referir que o processo de seleção de mestrandos e
doutorandos do Instituto de Medicina Social para o ano de 2016 incorporou as cotas e
não impôs qualquer empecilho deliberado aos candidatos que se inscreveram por elas.
Acompanhamos o processo e, apesar de não ter tido uma construção ampliada, houve
a adequação do edital à incorporação das cotas, de acordo com as normas da UERJ.
A nosso ver, este processo de adequação levou em conta apenas aspectos
burocráticos. É sobre isso que diz a nota e é aí que se evidencia a questão que
quisemos problematizar: tratar a incorporação das cotas como um aspecto burocrático
é reproduzir aquilo que as instituições brasileiras e seus marcos normativos
reproduzem há séculos. Entendemos a incorporação das cotas não apenas como um
meio institucional de "permitir" a entrada de negras e negros nas instituições, mas de
42

uma ação que faz emergir, entre outras coisas, o debate sobre algo fundamental, que
é estruturante da nossa sociedade e que está naturalizado entre nós: o racismo
institucional. Sobre este assunto devemos debater, debate que desejamos fazer assim
que possível, de forma ampliada.
43

Essa troca de notas apaziguou as ameaças de judicialização, mas o clima entre


alguns docentes e nós do Coletivo de Estudantes continuou hostil por algum tempo.
Nesse mesmo período eu estava finalizando o mestrado e já tinha sido aprovada
para o doutorado também no instituto, precisando então defender a dissertação antes
do início do ano letivo. A banca de defesa seria composta pelos mesmos dois
professores que compuseram a de qualificação, ambos do IMS, mais uma professora
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Como pede o protocolo e o bom senso, enviei e-mail com antecedência
convidando para a banca, a professora de Campinas aceitou prontamente, dos
professores, um deles confirmou a presença, o outro não. Este que negou, não o fez
diretamente a mim, de modo que aquele e-mail enviado segue sem réplica. A resposta
foi dada a meu orientador. Depois de dias de aflição aguardando a confirmação, pois
jamais imaginava que um professor que esteve na qualificação se recusaria a estar na
defesa, fui informada pelo meu orientador que o tal professor não queria participar da
minha banca, pois estava chateado por eu ter compartilhado em minha página pessoal
do Facebook a nota do coletivo.
Apesar dessa recusa, a defesa correu bem; outra professora do IMS, a pedido do
meu orientador, e que estava favorável ao posicionamento do coletivo, se dispôs a
substituí-lo.
Eu participei da redação da nota, eu compartilhei a postagem, eu fiz o convite
para a defesa da minha dissertação. Porque, então, não foi a mim que se deu uma
explicação, ainda que negativa, mas sim ao meu orientador?
Grada Kilomba (2019a) propõe que seja elaborado sobre o que o racismo fez
com a pessoa, não só sobre o que a pessoa fez ao sofrer um ato de racismo. Ainda
que eu não seja alvo de racismo, essa sugestão me fez pensar sobre para onde eu
estava direcionando esta tese e foi fundamental para me fazer olhar para onde eu de
fato me propus a olhar, para mim. Uma das nuances que me interessa apontar neste
episódio-encruzilhada é como o machismo me silenciou nesse processo, não as
ameaças ou a recusa em si, mas o fato de que eu, com minha voz e meu desejo, fui
driblada na conversa entre os homens.
44

Revendo essa imagem da pichação que diz “VAI TER PRETO SIM” penso em
outra nuance desse episódio-encruzilhada: a força dessa afirmação. Hoje temos não
só um número muito maior de estudantes negras no IMS do que havia nessa época,
mas também o Coletivo de Estudantes Negrxs do IMS, cujo significado e potência não
se podem estimar em números.
A pichação em si durou pouquíssimos dias e as paredes logo foram pintadas de
cinza novamente, quem passa por lá atualmente vê na parede apenas “o canto mais
limpo”, mas vê também, corpos negros nos corredores e salas. Ainda muito menos do
que o socialmente justo e enfrentando o forte racismo institucional no IMS, que age
escancaradamente nos processos seletivos e diariamente nas aulas, bancas e
orientações.
O Coletivo de Estudantes Negrxs, no entanto, reinventa formas de resistir e
transformar. Logo que se organizou já iniciou as atividades de um curso preparatório
para a seleção de mestrado e doutorado do IMS e já no primeiro ano teve 7 estudantes
aprovadas.
Ao entoar e repetir “Parem de nos matar!” em seus shows, a cantora Luedji Luna
anuncia que “Isso não é um pedido, é um ebó de boca”26. Assim como a frase da
cantora, nas palavras pichadas nas escadas do IMS - um ebó27 de muro? - havia uma
imposição, muito mais que um questionamento, não houve espaço para dúvidas ou
recusa e, assim sendo, tá tendo preto sim!

26
O poema recitado por Luedji Luna é de Felipe Estrela.
27
Sobre este conceito trago as palavras de Luiz Rufino “A compreensão do ebó enquanto sacrifício
perpassa diretamente as dimensões do movimento, da transformação, do inacabamento e das
dinâmicas de compartilhamento, transmissão e multiplicação das forças vitais. Não coincidentemente,
é Exu o mantenedor e dinamizador do axé de Olorun, como é também ele o responsável pela
comunicação simbólica e ritual entre todas as forças existentes. Essa comunicação entre os diferentes
seres e suas respectivas tempo-espacialidades é possível a partir das operações advindas dos
ebós/sacrifícios. Assim, o ebó opera também como um princípio tecnológico, uma vez que é a partir dele
que se estabelecem as comunicações, trocas e invenções de possibilidades.” (2019, p. 87)
45

A CAMINHADA

“Não bata de frente, desgraça!


Não bata de frente, desgraça!
Meu bonde bagaça,
Meu bonde bagaça,
Meu bonde te amassa!”
Cronista do Morro

Logo no início do primeiro ano de doutorado, 2016, participei de um projeto de


extensão no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (CMAHO), no centro do Rio de
Janeiro, também vinculado à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO), chamado “Processos Escavatórios para Habitar o Corpo - resistências
feministas na arte da vida”. Esse projeto foi proposto por Angela Donini, Camila
Bacelar, Cíntia Guedes e Elton Panamby. No ano anterior, junto com Indianare
Siqueira, haviam realizado uma “mesa” na Casa Rui Barbosa, que melhor seria
descrito como um grande encontro de corpos e desejos desviantes do padrão,
chamada “Resistências Feministas na Arte da Vida”.
Este episódio-encruzilhada e os dos capítulos seguintes não aconteceram no
espaço do IMS estritamente falando, no entanto, é patente o entrelaçamento com a
minha vivência na pós-graduação. Faço este apontamento para destacar o que
considero uma obviedade, mas que por vezes parece um equívoco pedagógico: a
formação acontece no mundo e não só dentro de muros acadêmicos. “Vocês não
aprendem na escola, vocês copia. Vocês aprende é com as ocorrências.” (ESTAMIRA,
2006)
Antes do encontro na Casa Rui Barbosa acredito que ainda não me considerava
uma feminista. Os impactos que senti em mim, muito além desta categorização, foram
o que me levaram a participar do projeto no CMAHO.
As encontras aconteciam semanalmente às sextas feiras e envolviam muito
trabalho corporal e silencioso, além de conversas e atividades externas, sempre em
46

grupo. Uma dessas atividades externas aconteceu na Praça Tiradentes, a um


quarteirão de distância do CMAHO.
Enquanto andávamos juntas nesse quarteirão, com nossos corpos que
individualmente estariam vulneráveis ao transitar pela cidade, senti uma sensação de
segurança como se estivesse blindada de possíveis e prováveis ataques machistas e
logo ouvi alguém no grupo começar a cantar o que depois repetimos em coro: “Não
olha pro lado, quem tá passando é o bonde! Se ficar de caôzada, a porrada come!”28
Desde o início das encontras, foi proposto que ao final da oficina criássemos
alguma coisa a partir dali e quando chegou esse momento, aquela sensação da
caminhada em “bonde” no quarteirão foi algo que eu quis recuperar. Conversei com o
grupo sobre as violências que sofria andando pelas ruas da cidade e o quanto isso
tinha me afetado desde que vim morar no Rio de Janeiro.
Logo quando me mudei para cá, passei alguns meses saindo de casa apenas de
dia, eu que gosto tanto da vida noturna e urbana. Estava ciente de que esse abalo se
dava porque até então eu costumava me locomover de carro nas cidades em que
morei, Fortaleza e Campinas, que eram também cidades menores.
O grupo ouviu minhas dores e privilégios e aquilo pareceu ressoar nas pessoas,
vibrando de formas diferentes, mas de modo que fizesse sentido o que propus como
intervenção coletiva, que apenas caminhássemos do CMAHO até a minha casa, que
ficava no bairro da Glória.
Sim, somos potencialmente frágeis, mas isso não deve ser
compreendido como uma incapacidade ou inaptidão para
autodefesa. Aprender a defender-se requer a elaboração de
outras formas de perceber a própria fragilidade. Há estratégias,
técnicas e ferramentas que somente uma corporalidade e
subjetividade capaz de habitar a fragilidade consegue
desenvolver. Autodefesa não é só sobre bater de volta, mas
também sobre perceber os próprios limites e desenvolver táticas
de fuga, para quando fugir for necessário. É também sobre
aprender a ler as coreografias da violência e estudar modos de
intervir nelas. É sobre furar o medo e lidar com a condição
incontornável de não ter a paz como opção. (MOMBAÇA, Jota,
2017, p. 14)

28
Versos da música “Fala Mal de Mim” de Ludmilla.
47

Uma semana antes da data que combinamos para fazer a caminhada, algumas
de nós que naquele momento já éramos mais próximas estávamos numa festa na Casa
Nem29, que estava lotada. Enquanto dançávamos um homem, que já nos incomodava
com olhares constrangedores, passou a mão na minha bunda. Possessa, me virei para
ele gritando e imediatamente as pessoas que estavam perto de mim se juntaram de
forma a levá-lo para longe e expulsá-lo da casa. Fui até a entrada explicar para as
pessoas que estavam trabalhando na bilheteria o que tinha acontecido e sem
questionar elas logo disseram “fica tranquila que ele não entra mais, vai curtir sua
festa!”. Quando voltei para a pista e perto das amigas, Violeta, que também participava
das encontras, falou no meu ouvido o que para mim foi uma prece: “Mana, a caminhada
já começou!”

29
A Casa Nem é um espaço de acolhimento para pessoas trans que nos anos de 2016 e 2017 sediou
festas para custear a manutenção da casa que ficava na Rua Moraes e Vale, no bairro da Lapa, Rio de
Janeiro.
48

Figura 2 - Foto da intervenção

Foto tirada na frente da minha casa com as participantes da caminhada.


49

A SURPRESA

“Que as pessoas cisgeneres recuem, para que as


transvestigeneres possam avançar;
que as pessoas hetero recuem, para que as pessoas
homossexuais possam avançar;
que as pessoas brancas recuem para que as negres
possam avançar;
que as pessoas ricas recuem para que as pessoas pobres
possam avançar;
que os homens recuem para que as mulheres possam
avançar;
Indianare-se para que todos nós possamos reconhecer
nossos privilégios.
Que eu possa reconhecer meus privilégios sobre alguém
Que eu possa recuar para que a pessoa que está oprimida
pelo meu privilégio possa avançar.”
Indianare Siqueira

Conheci Tertuliana nas oficinas de Resistências Feministas. Em uma das


encontras ela compartilhou com o grupo que dentro de alguns dias ganharia uma
cuceta, a partir de um procedimento cirúrgico que seria performado por um Dr. Elton.
Quando a ouvi falando em procedimento cirúrgico minha formação biomédica
só me permitiu pensar em um ambiente tradicionalmente médico, uma mesa de
cirurgia, bisturis e hospital. Na época não tinha tanta intimidade com Tertuliana, mas
estranhei que ela estivesse tão empolgada em fazer uma cirurgia de redesignação de
sexual (CRS), assim como fiquei preocupada por saber que se tratava de uma cirurgia
complicada e já tinha ficado sabendo de relatos que os poucos cirurgiões plásticos que
faziam aquela cirurgia no Rio de Janeiro não tinham boa reputação. Tive receio que
Tertuliana não ficasse satisfeita com o resultado. Enfim, fiz todos os típicos
julgamentos que uma psicóloga cisgênera acha que pode fazer sobre o corpo e a
subjetividade de uma travesti, mas não falei nada, afinal, “seu corpo, suas regras”.
Ainda mais preocupada fiquei na semana seguinte, quando encontrei
Tertuliana na Casa Nem. Como era possível que depois de um procedimento daquele
50

porte ela já estivesse saindo de casa? Fui até ela perguntar se ela tinha feito a cirurgia,
ao que ela respondeu “Lógico! Você quer ver?” e imediatamente virou de costas,
levantou a saia e se curvou, mostrando sua cuceta (Figura 3).
51

Figura 3 – A Cuceta

Imagem retirada do artigo “Ferindo o Corpo Patologia” de Tertuliana Lustosa.


52

Foi dentro de um estado de autópsia espiritual que eu imaginei a


cuceta para o meu corpo, como artesanato do cu que
concretizaria muito sobre o meu pensamento traveco-terrorista.
O procedimento de intervenção corporal consistiu basicamente
numa tatuagem/body-modification sobre a região anal e perianal,
não se propondo a criar uma imagem de órgão sexual realista
nem humanocentrado. Não interessava a estética, porque dentro
da sua singularidade, a cuceta partia de demandas interiores que
não se relacionavam diretamente aos métodos de
transexualização ocidentais, como a CRS (Cirurgia de
Redesignação Sexual). Não se revertia nada do que sobre o meu
corpo fora designado, nem se almejava reinserir-me em alguma
polaridade homem/mulher. A modificação corpórea, conectada
ao banho de alecrim com levante, possibilitou-me torturas e
mortes que alimentam o avanço científico da medicina ocidental.
Cuceta: deriva, vasculha, interrupção, ataque, invasão,
ocupação, desocupação, prostituição, política de explosão do
universal e do colonialismo. Masculinidade não corresponde a
pênis ereto e o desrespeito das categorias de expressividade de
gênero se dá também pelos ecos desativados: o pênis como
órgão sexual feminino, o clitóris como órgão sexual masculino, a
cuceta em desordem. O corpo como arma. A palavra como
gatilho.” (LUSTOSA, Tertuliana, 2016)

No mesmo segundo em que me mostrou sua cuceta Tertuliana estilhaçou


qualquer noção de corpo, gênero, autonomia e medicalização sob as quais eu estava
operando até o momento. Inspirada por Gayatri Spivak (2010) e Grada Kilomba
(2019a) me pergunto: Pode uma sanitarista ouvir?

Para cada pessoa cisgênera que olha a si e se vê como norma,


então olha o mundo e o vê como espelho, deixo o seguinte
recado: nós vamos desnaturalizar a sua natureza, quebrar todas
as suas réguas e hackear sua informática da dominação. (...)
Nomear a norma é o primeiro passo rumo a uma redistribuição
desobediente de gênero e anticolonial da violência, porque a
norma é o que não se nomeia, e nisso consiste seu privilégio. A
não-marcação é o que garante às posições privilegiadas
(normativas) seu princípio de não questionamento, isto é: seu
conforto ontológico, sua habilidade de perceber a si como norma
e ao mundo como espelho. Em oposição a isso, “o outro” -
diagrama de imagens de alteridade que conformam as margens
dos projetos identitários dos “sujeitos normais” - é hipermarcado,
incessantemente traduzido pelas analíticas do poder e da
53

racialidade, simultaneamente invisível como sujeito e exposto


enquanto objeto. Nomear a norma é devolver essa interpelação
e obrigar o normal a confrontar-se consigo próprio, expor os
regimes que o sustentam, bagunçar a lógica de seu privilégio,
intensificar suas crises e desmontar sua ontologia dominante e
controladora". (MOMBAÇA, Jota, 2017, p. 11)

Pode uma sanitarista mulher cisgênera se estranhar?


Em junho de 2017 Tertuliana foi convidada para se apresentar em um evento
promovido pelo Instituto de Medicina Social (onde é meu doutorado) para celebrar a
Puta Dei. Sua performance aconteceu após uma mesa com outras prostitutas e
acadêmicas onde foram pautados os temas da prostituição e migração.
Em um momento de sua performance, Tertuliana perguntou se havia problema
em ficar nua, como a platéia deu permissão, ela se despiu e continuou com uma
instalação (Figura 4), dispondo no chão alguns documentos, como sua certidão de
nascimento com seu nome anterior à transição e documentos do hospital que ela
precisava ir para receber tratamento hormonal. Esses documentos mostravam que no
hospital ela é tratada como uma pessoa doente.
54

Figura 4 – Instalação de Tertuliana Lustosa


55

Sua instalação era muito generosa para possíveis debates acadêmicos entre os
estudiosos do Instituto, mas o que foi mais notável após o evento foram as
controvérsias sobre sua nudez dentro dos muros do Instituto. Os professores mais
conservadores ficaram chateados não apenas pela nudez, mas pela publicação dessa
imagem no perfil do Instagram do instituto.

Não se desorganiza a sociedade, por mais primitiva, com um tal


programa, se não se decide, desde o início, isto é, desde a
própria formulação desse programa, derrubar todos os
obstáculos que se encontrarem pelo caminho. O colonizado que
decide realizar esse programa, que decide fazer-se o seu motor,
está preparado desde sempre para a violência. Desde o seu
nascimento, está claro para ele que esse mundo encolhido,
semeado de interdições, só pode ser questionado pela violência
absoluta. (FANON, 2005, p. 53)

Entendo que esta “violência absoluta” proposta por Fanon se conecta com a
ideia de redistribuição desobediente da violência de Jota Mombaça que na
performance de Tertuliana toma forma como uma existência radicalmente
comprometida com a expressão de si mesma.
O artigo “Ecos do Puta Dei: precisamos falar sobre isso” escrito pela professora
Jane Russo e pelo professor Sergio Carrara, publicado no site do Instituto, mostrou
(acredito) uma tentativa de guiar as controvérsias em torno da nudez em uma direção
mais interessante e profícua.

O gesto de Tertuliana não valeria de nada se só provocasse


risos nervosos, rumores, rubores; se apenas motivasse o
escândalo ou o loquaz silêncio do arquear desaprovador de
sobrancelhas. Ele demanda muito mais de nós. Exige,
sobretudo, uma profunda reflexão sobre nossas práticas de
pesquisa, nossos conceitos e nossos preconceitos; e no âmbito
do UERJ Resiste, nossas formas de resistir. (...) A nudez da
Tertuliana, de fato, nos desnudou e continua a nos desnudar. E
é justamente por isso que, agradecendo aos organizadores pela
ousada seriedade do evento, e a Tertuliana pela séria ousadia
de nos expor a sua performance, consideramos fundamental
continuar a falar sobre isso. (RUSSO, Jane e CARRARA, Sergio,
2017, p. 1)
56

As autoras do artigo quiseram continuar falando sobre isso e assim o puderam,


pois possuem meios acadêmicos para fazê-lo. A foto de Tertuliana foi removida das
mídias sociais, mas o vídeo da apresentação completa está no site do Instituto,
vinculado logo abaixo do artigo. Essa permanência é fornecida por professoras e
alunas, como eu, que atuam na controvérsia e querem continuar falando e ouvindo
vozes que não têm ninho dentro da academia. Mas não é como nós, a academia,
estivéssemos brincando de esconde-esconde com esses discursos? Agora eu vejo,
agora eu não vejo.

A partir de um descentramento que conduz nossa linha-de-visão


àquele ponto até então produzido como cego, a universidade se
revela, mais bem, um espaço de violência e de geração de
conteúdos dominantes, que não cessa de produzir como
ausentes certas vozes para que ecoem outras, nublando formas
alternativas de conceber o saber e sua relação com o mundo,
para que se consolidem regimes de verdade dentro dos quais a
subalternidade só pode ser construída como lugar de impotência
– onde não há conhecimento e nem fala. (MOMBAÇA, Jota,
2015, p. 1)

A partir deste ensaio de Jota Mombaça cruzado com a performance de


Tertuliana e seus efeitos, penso sobre como as violências acadêmicas podem ter
formas mais ou menos explícitas, mas refletem a lesbo-homotransfobia e o racismo
institucionais. Infiltrado por uma articulação silenciosa, o jargão do discurso científico
consolidado concretiza uma exclusão que é mais expressa pelo não-dito do que pelo
que é realmente dito.
57

A DURA

“Você deve tá pensando


O que você tem a ver com isso
Desde o início
Por ouro e prata
Olha quem morre
Então veja você quem mata”
Mano Brown

Fui revistada por uma dupla de policiais militares do Centro Presente que
chegaram numa moto segundos depois de eu ter acendido e apagado o cigarro
enrolado em papel seda. Apaguei porque Rafael, homem cisgênero negro, que me
acompanhava, assim recomendou. Quando os policiais nos abordaram, muito
educadamente, ele estava tranquilo, impávido. Eu tremia e estava ainda mais branca,
pálida. Assim que abriram minha bolsa encontraram o tal cigarro e um dos policiais
perguntou “é tabaco?”. Eu respondi que sim, mas continuei tremendo, e eles
continuaram procurando, revistando também a bolsa do Rafael, que não tinha nada
incriminante.
No meio da cena percebi que Rafael era o único em risco ali, ainda que o artefato
suspeito estivesse na minha bolsa, era para ele que os corpos, as palavras e a câmera
dos policiais estavam voltados. Agora me parece óbvio que essa percepção deveria
ter se dado antes de acender o cigarro, que aquele fogo colocou Rafael em risco, um
risco que meu corpo nunca correu, nem correrá, mas que só naquele momento foi de
fato sentido.
Edith Piza (2002) diz que quando a branquitude percebe sua racialização, é como
se batesse a cara numa porta de vidro. Rafael e eu já tínhamos compartilhado cigarros,
praças, noites, manhãs e uma dura, mas foi só nesta última que percebi a porta de
vidro que nos separava. Cíntia Guedes me ensinou que o racismo não age somente
contra as pessoas negras e a favor das brancas, mas atua também impossibilitando
as relações entre diferentes.
O mundo colonizado é um mundo cortado em dois. A linha de
corte, a fronteira, é indicada pelas casernas e pelos postos
58

policiais. Nas colônias, o interlocutor legítimo e institucional do


colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o
policial ou o soldado. (FANON, Frantz, 2005, p. 54)

A cena vista pelos policiais de uma mulher cisgênera branca de roupas brilhosas
sentada numa praça ao lado de um homem negro de chinelo e bermuda só poderia ter
uma interpretação para eles, e não era a de um casal num encontro romântico.
Revistando minha bolsa, os policiais encontraram também formulários da Faperj
em que constava minha função de pesquisadora e o valor de minha bolsa de
R$3.160,00. Percebi que aquelas informações eram alquímicas e misturadas ao tom
claro de minha pele, transformavam o cigarro do que quer que fosse antes em tabaco
de fato. Isso me deu coragem de aproveitar a minha tremedeira que não cessava para
usar da performance de vulnerabilidade e falar em branquês com os policiais.
Menti dizendo que estava nervosa daquele jeito pois de fato fumava maconha e
tinha medo de que naquela bolsa grande tivesse alguma “ponta” perdida. Eu sabia que
não tinha, mas precisava oferecer alguma coisa que coubesse na gramática
necropolítica pela qual operavam. Se o “negro criminoso” não estava presente, talvez
a “mulher tola” e “branca inocente” servisse. E serviu.
“Raça” não pode ser separada do gênero nem o gênero pode ser
separado da “raça”. (...) Construções racistas baseiam-se em
papéis de gênero e vice-versa e o gênero tem um impacto na
construção de “raça” e na experiência do racismo. O mito da
mulher negra disponível, o homem negro infantilizado, a mulher
mulçumana oprimida, o homem muçulmano agressivo, bem
como o mito da mulher branca emancipada ou do homem branco
liberal são exemplos de como as construções de gênero e de
raça interagem. (KILOMBA, Grada, 2019a, p. 94)

Ao passo que o verbo para o homem negro é “merecer” e o adjunto “cadeia”, o


da mulher branca é “precisa” e o adjunto é “de ajuda”. Assim, depois de me deixarem
tirar tudo cuidadosamente da bolsa e verificarem que não havia nada ilegal, os policiais
devolveram meu cigarro de tabaco, desejaram boa tarde e partiram.
Para complexificar a análise deste episódio-encruzilhada trago aqui parte da
crítica de bell hooks ao documentário “Na Cama com Madonna”:
Quanto as cartas estão na mesa, a imagem que Madonna mais
explora é a “garota branca” por excelência. Para manter essa
59

imagem ela deve sempre se posicionar como uma forasteira em


relação à cultura negra. É essa a posição de forasteira que
possibilita que colonize e se aproprie da experiência negra para
seus fins oportunistas, mesmo quando tenta mascarar seus atos
de agressão racista como reconhecimento. E nenhum outro
grupo nesta sociedade vê isso tão claramente quanto as
mulheres negras. Pois nós sempre soubemos que a imagem de
inocência da feminilidade branca construída socialmente se
baseia na produção contínua do mito machista/racista de que
mulheres negras não são inocentes e nunca poderiam ser.
Fomos codificadas como mulheres “maculadas” na iconografia
cultural racista, nunca poderemos, como Madonna, trabalhar
nossa imagem como a da mulher inocente ousando ser má.
(HOOKS, 2019, p. 284)

Ao ter performado a “branca inocente”, posso ter sim livrado Rafael daquela
abordagem específica – e, principalmente, a mim, pois nunca mais fui interpelada por
policiais novamente –, mas estava ao mesmo tempo ratificando a opressão
machista/racista que sofrem as mulheres negras. Mesmo sem estar fisicamente
representado neste episódio, este grupo recebe o rejeito da fabricação e manutenção
do privilégio do qual eu pude me utilizar naquele momento.
“O que significa, pra branquitude, se racializar?” (NASCIMENTO, Tatiana, 2019)
esta pergunta lançada em redes sociais me parece fundamental para mobilizar
reposicionamentos de nossa parte, pessoas brancas, para lugares e movimentos que,
ainda que não desmontem a maquinaria racista no mundo, pelo menos não forneçam
mais lubrificação para que as engrenagens funcionem plenamente.
Todos os artigos e notícias que li sobre abuso policial, genocídio de jovens negros
e racismo estrutural não foram suficientes para que eu me antecipasse àquela
violência, para que eu não contribuísse na lógica de hipersexualização de mulheres
negras, nem na exposição de Rafael à abordagem de uma polícia cuja função
primordial, naquele momento fora inclusive a única, é de exterminar, matando ou
encarcerando, corpos negros.
Eu poderia ter ido àquele encontro com ou sem o tal cigarro, a questão é que eu
não pensei sobre isso, eu pude não pensar. Entendo que a própria possibilidade de
não precisar pensar sobre isso é a manifestação de minha branquitude. Me antecipar
não significa evitar, visto que está muito longe do meu alcance a erradicação da polícia
60

militar no Rio de Janeiro, a antecipação a que me refiro é à parte que me cabe nesse
latifúndio, à minha performance nessa cena que não escapou da coreografia branca.
O que me faltou naquele momento não foi saber o que acontece com jovens
negros, foi me lembrar que eu sou branca e saber de onde vem e para onde vai essa
branquitude.
61

CONJURO30

“Vivemos antes.
Vamos viver novamente.
Seremos seda,
pedra,
mente,
estrela.
Estaremos espalhados,
reunidos,
moldados,
testados.
Viveremos e serviremos a vida.
Daremos forma a Deus
e Deus nos moldará novamente,
sempre outra vez,
para sempre.”
Lauren Olamina

No dia 25 de abril de 2018, depois de ter jogado o tarô-cordel de Tertuliana, eu


sonhei com duas cobras.

No sonho eu estava deitada em uma rede na casa de Elton Panamby, como se


fosse a Casa 24 que ficava no Bairro de Fátima, mas era numa praia no Ceará. A rede
ficava no meio da sala, e enquanto estava deitada conversando com algumas amigas
eu via uma cobra fina e amarela vindo na direção da rede. Eu ficava com muito medo,
mas não conseguia fazer nada, me sentia paralisada de pânico. O único movimento
possível foi me “fechar” dentro da rede.

“Cabe ao subalterno enigmatizar.” (RUFINO, Luiz, 2019, p.118)

Mas me fechar obviamente não me protegia e a cobra conseguia entrar na rede


e me picava na mão, na base do dedo polegar. A picada causava muita dor - inclusive
depois acordei com a mão dolorida -, mas logo em seguida eu conseguia segurar a

30
“Imprecação mágica na qual se evocam o demônio ou as almas do outro mundo.” (HOUAISS, 2001)
62

cobra pelo “pescoço” e a enforcava. Ainda segurando-a eu me levantava da rede e ia


até a cozinha da casa, lá havia uma pia com um facão ao lado.
“A solução é o fogo. A única solução é o fogo. Queimar tudo, os espaços, os
seres e por outros seres nos espaços.” (ESTAMIRA, 2006)
Com o facão cortei a cabeça da cobra e lavei o resto de seu corpo com água
corrente da torneira, enquanto lavava a cobra e minha própria mão eu percebia que a
cobra não era venenosa e via seu corpo ficando transparente e oco, como se fosse só
pele.

Para o colonizado, ser moralista é, muito concretamente, calar a


arrogância do colono, quebrar a sua violência ostensiva, em uma
palavra, expulsá-lo simplesmente da paisagem. (FANON,
Frantz, 2005, p. 61)

Depois disso eu voltava a me deitar na rede e ato contínuo aparecia outra cobra
também vindo em minha direção, sendo esta marrom com a cabeça verde e bem
maior, me parecia ser venenosa, no entanto eu não sentia medo como da primeira vez
e me aprumava na rede, me preparando para o “bote”.

Explodir o mundo colonial é doravante uma imagem de ação


muito clara, muito compreensível e que pode ser retomada por
cada um dos indivíduos que constituem o povo colonizado.
Desmantelar o mundo colonial não significa que depois da
abolição das fronteiras, serão construídas vias de passagem
entre as duas zonas. Destruir o mundo colonial é, nem mais nem
menos, abolir uma zona, enterrá-la no mais profundo do solo ou
expulsá-la do território. (FANON, Frantz, 2005, p. 57)

Quando a cobra entrava na rede eu rapidamente a segurava antes que ela me


picasse. Mais uma vez eu me levantava da rede, ia até a cozinha, repetia o processo
e novamente o corpo da cobra virava uma pele gelatinosa e transparente.

Não há solução. A redistribuição da violência não é capaz de


parar a máquina mortífera que são as polícias, as
masculinidades tóxicas e todas as ficções de poder. É apenas
uma (das muitas) maneira(s) de lidar com o problema sem
neutralizá-lo. A redistribuição da violência não é capaz de vingar
as mortes, redimir os sofrimentos, virar o jogo e mudar o mundo.
Não há salvação. Isso aqui é uma barricada! Não uma bíblia.
(MOMBAÇA, Jota, 2017, p. 16)
63

Acordei.

“Sabia que tudo que é imaginado existe? Existe e é e tem.” (ESTAMIRA, 2006).
O que foi imaginado através desse sonho existiu oniricamente e existe em vigília: o
estranhamento (medo) com a aproximação da cobra, a coragem que se seguiu ao
primeiro bote, o discernimento em meio ao pânico de perceber que sobrevivi à picada,
o ímpeto de levantar da rede e buscar a faca, a certeza do que fazer com a cobra.
Tudo isso existe agora, na produção desta tese.
O apocalipse deste mundo parece ser, a esta altura, a única
demanda política razoável. Contudo é preciso separá-la da
ansiedade quanto à possibilidade de prever o que há de sucedê-
lo. É certo que, se há um mundo por vir, ele está em disputa
agora, no entanto é preciso resistir ao desejo controlador de
projetar, desde a ruína deste, aquilo que pode vir a ser o mundo
que vem. Isso não significa abdicar da responsabilidade de
imaginar e conjurar forças que habitem essa disputa e sejam
capazes de cruzar o apocalipse rumo à terra incógnita do futuro,
pelo contrário: resistir ao desejo projetivo é uma aposta na
possibilidade de escapar à captura de nossa imaginação
visionária pelas forças reativas do mundo contra o qual lutamos.
Recusar-se a oferecer alternativas não é, portanto, uma recusa
à imaginação, mas um gesto na luta para fazer da imaginação
não uma via para o recentramento do homem e reestruturação
do poder universalizador, mas uma força descolonial, que libere
o mundo porvir das armadilhas do mundo por acabar.
(MOMBAÇA, 2017, p. 16)

“Eu vou escrever uma tese que já está escrita” foi uma frase que falei em análise
e repeti muitas vezes para amigas. Mais esmiuçado seria dizer eu vou trazer para as
palavras uma tese que já havia num campo invisível e inaudível ou, mais
sinteticamente, eu conjurei uma tese.
Me estranhar. Me perceber, reconhecer o medo, a fraqueza, a agressividade, a
potência, a memória. Perceber o mundo, os perigos, as armadilhas, as alianças, os
instrumentos, a história. Levantar, usar a força, a voz, a escuta, descansar, começar
de novo e sempre.
Aqui termina um fim. Abram-se novos começos. Amém.
64

EPÍLOGO

“Em um Despertar anterior, ela havia decidido que a


realidade era tudo aquilo que acontecesse, tudo aquilo que
ela percebesse. Já havia lhe ocorrido (quantas vezes?) que
poderia estar insana ou sob o efeito de drogas, doente ou
ferida. Nada disso importava. Não podia importar enquanto
estivesse presa e fosse mantida impotente, isolada e
desinformada.”
Octavia Butler

Na semana seguinte ao envio da primeira versão final desta tese para a leitura
pré-banca, no começo de março de 2020, tiveram início no Brasil as quarentenas
devido à pandemia da COVID-19 causada pelo alastramento do coronavírus no país.
Os estados tomaram medidas diferentes, em diferentes momentos, mas todos
determinaram alguma medida de distanciamento social para evitar a multiplicação do
contágio pelo vírus.
A partir de então muitas e drásticas mudanças aconteceram no país, assim como
no mundo, entendo que não caiba aqui detalhá-las, mas dizer que o mais premente é
o gravíssimo acirramento das desigualdades sociais e opressões que tentei expor
nesta tese, o racismo, o machismo, o elitismo, a lesbo-homofobia, a transfobia, todas
as manifestações violentas do colonialismo.
Entendo que não cabe enumerar os eventos transcorridos durante a pandemia,
pois é preciso construir algum sentido que nos sirva como resistência e não apenas
reproduzir fatos. Afinal, é o que tenho me esforçado para fazer ao longo de todo este
trabalho. Para esta construção de sentido, trarei trechos do texto ficcional publicado
por Jota Mombaça como interlocução e auxílio.
We’ve been around for a while – at least for the last three
quarantines. But never in the same place. We’re constantly
on the move. Our protection spells are fragile and don’t last
indefinitely. It’s no small thing to make such a big group
vanish amidst the forms of social control that are used these
days. Today is not like the early 2020s, though most of us
65

don’t even remember the 2020s that well. Except for


Massela and I, everyone here grew up during the Lockdown
Era, so the only memories from a world without quarantine
either come from our shared memories or from the old media
files in our archives.
Not many people today recall what freedom of movement
was, and those who do remember what a fictional construct
it had always been. The borders and checkpoints might have
multiplied in the last three decades, but they were invented
and weaponized long before.
[...]
We tried to prepare for it, but 2020 encroached upon us. We
were as unprepared as everyone else. We were pulled apart
by the circumstances. When borders began to close and
closures multiplied, I failed to rush towards our meeting
point. Massela was there preparing for my arrival. Our plan
was to stick together, but the collapse changed our horizons:
we were besieged by indeterminacy, confined to a
biopolitical state of exception, physically separated by
miles…
And yet, somehow, we could still sense each other.
[...]
I shouted to Massela: ‘You need to wake up and organise
everyone now!’
‘I know! I’m trying…! But there are too many people here,
too much anxiety… I’m drowning…’
‘No! Breathe!’
I kept on burning the militiamen, but the attack wouldn’t stop
until they were all defeated. The gunfire was overwhelming.
I wasn’t strong enough on my own. I needed Massela and
the others to fight alongside me.
‘You need to scream! You need to embody the voices of two
thousand and scream…!
It’s the only way…!
And you need to do it now.
Now, Massela! NOW! Can you sound like two thousand?’31
(MOMBAÇA, Jota, 2020, s/p)

31 Estamos por aqui há um tempo - pelo menos nas últimas três quarentenas. Mas nunca no mesmo
lugar. Estamos constantemente em movimento. Nossos feitiços de proteção são frágeis e não duram
indefinidamente. Não é fácil fazer com que um grupo tão grande desapareça em meio às formas de
controle social usadas hoje em dia. Hoje não é como o início da década de 2020, embora a maioria de
66

No início da quarentena a pergunta latente para mim era “Como atravessar?”, a


qual entendo como uma ansiedade de chegar do outro lado, mas que outro lado?
Passaram se agora apenas dois meses – tempo excessivo para um confinamento
físico, mas muito pouco para elaborações sobre o presente – e as respostas que me
serviram melhor falam mais sobre perenidade, sobre continuar existindo.
O mundo colonial promove sucessivos sequestros. Sequestram corpos que a
necropolítica encarcera e assassina, e sequestram narrativas. No Brasil, por exemplo,
a novela protagonizada pelo presidente e seus desmandos na empreitada de se
manter no poder institucional toma uma imensa parte das conversas públicas, seja em
noticiários ou redes sociais, de tal forma que o movimento de fabulação de outras
narrativas, outros mundos, é um exercício de se esgueirar e fugir de sequestros.
Para continuar existindo é preciso se enraizar e evaporar. Adentrar subsolos e se
transmutar em vibrações.

nós nem se lembre tão bem da década de 2020. Com exceção de Massela e eu, todos aqui crescemos
durante a Era do Lockdown, então as únicas memórias de um mundo sem quarentena vêm de nossas
memórias compartilhadas ou das antigas mídias em nossos arquivos.
Hoje, muitas pessoas não se lembram do que era a liberdade de movimento e, aqueles que se lembram,
lembram de como sempre foi uma construção fictícia. As fronteiras e postos de controle podem ter se
multiplicado nas últimas três décadas, mas foram inventadas e armadas muito antes.
[...]
Nós tentamos nos preparar, mas 2020 nos invadiu. Estávamos tão despreparados quanto todo mundo.
Fomos separados pelas circunstâncias. Quando as fronteiras começaram a fechar e os fechamentos se
multiplicaram, eu não corri para o nosso ponto de encontro. Massela estava lá se preparando para minha
chegada. Nosso plano era permanecer juntos, mas o colapso mudou nossos horizontes: fomos
assolados pela indeterminação, confinados a um estado de exceção biopolítico, fisicamente separados
por quilômetros ...
E, no entanto, de alguma forma, ainda podíamos sentir uma a outra.
[...]
Gritei para Massela: 'Você precisa acordar e organizar todos agora!'
'Eu sei! Estou tentando…! Mas tem muita gente aqui, muita ansiedade... estou me afogando...'
'Não! Respira!'
Continuei queimando os milicianos, mas o ataque não parava até que todos fossem derrotados. Os tiros
foram esmagadores. Eu não era forte o suficiente sozinha. Eu precisava que Massela e os outros
lutassem ao meu lado.
‘Você precisa gritar! Você precisa incorporar duas mil vozes e gritar…!
É a única maneira…!
E você precisa fazer isso agora.
Agora Massela! AGORA! Você pode soar como duas mil?' (Tradução minha).
67

Enquanto ainda não dominamos a transmutação de corpos, os tremores


causados por pensamentos e palavras inconformes já são sentidos. Isso espero ter
demonstrado em todos os episódios-encruzilhadas narrados.
“Você pode soar como duas mil?” a pergunta final no conto de Jota Mombaça
ecoa na última provocação desta tese: nossas ideias e gritos pulsam e fazem ranger o
mundo colonial, o faremos ruir?
68

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