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Planejamento na Encruzilhada:
uma pós-graduação em Saúde Coletiva a partir de um relato de si
Rio de Janeiro
2020
3
Planejamento na Encruzilhada:
uma pós-graduação em Saúde Coletiva a partir de um relato de si
Rio de Janeiro
2020
4
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha mãe, Maria Lucineide, e ao meu pai, José Wanderley, pelo
amor imenso e inabalável, por terem me criado como uma mulher de fé,
principalmente em mim mesma;
À minha tia Nena, pelo amor, força e sabedoria com que cuida de todas e
cada pessoa de nossa família;
À Dora, minha irmã de alma e no mundo, que me inspira e desafia a ser mais
e melhor, por todas visões e revisões, por me ensinar o que é parceria na vida e ser
meu fechamento que “não abre nem pro trem passar”;
À Keylla, Luís, Maíra, Maykel e Yumi, por serem minha família sudestina que
no momento anda espalhada pelo mundo em busca dos sonhos e do caminho para
o reencontro;
À Cíntia Guedes, agradeço por ser amiga, professora, inspiração, por mais
uma vez aceitar compor a banca de defesa, mas principalmente por ser uma
companheira na tarefa tão solitária de inventar novos modos e mundos;
À Elaine Rabello, por novamente ter aceitado o convite para ser ledora da
minha escrita antes da defesa e também participar da banca, assim como por tudo
que aprendi com ela e com Martinho Braga ao compartilhar um importante período
para mim no Comitê de Ética do IMS;
Ao André Mendonça por acolher e confiar no meu olhar, pela liberdade que
me proporcionou nessa orientação;
RESUMO
específicas que ocorreram durante o período de seis anos em que foram cursados
do mundo.
10
ABSTRACT
This study aimed to investigate the places and subjective trajectories of the
course in Public Health in the city of Rio de Janeiro. The thesis brings contributions
to the field of Collective Health while discusses the reproductions of colonial power
path in graduate studies is taken, reporting specific situations that occurred during
the six-year period in which she received a master's and doctorate in Public Health
at the Institute of Social Medicine of the University of the State of Rio de Janeiro.
These situations are called crossroads episodes. They explain the physical and
world, and elaborating the body's senses and feelings in the world. The planning
referred to in the title and thesis is about the act of recognizing oneself and the whole
that is done when faced with a crossroads. Planning as choice and creation of paths.
The effort to think of the World, which takes place over the seven episodes presented
at the crossroads, culminates in the final chapter in which possibilities for crossing
LISTA DE ABREVIATURAS
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
SUMÁRIO
3. ENCRUZILHADAS 17
4. EPISÓDIOS-ENCRUZILHADAS 20
5. A CABEÇA 21
6. O SEQUESTRO 25
7. O SILÊNCIO 28
8. A NOTA 34
9. A CAMINHADA 45
10. A SURPRESA 49
11. A DURA 57
12. CONJURO 61
13. EPÍLOGO 64
13. REFERÊNCIAS 63
1
esse “fora” era o centro, visto que estava à margem de onde os lugares de estudos
eram reconhecidos e respeitados no Brasil.
Alguns anos depois de ter saído de Fortaleza, tomei conhecimento da história
de minha bisavó Alice, que entendi ser também a história da família. Sua mãe ficou
viúva, morando em Quixeramobim, sertão central do Ceará, e foi persuadida pelo
padre da cidade a casar com um homem mais velho, que se tornou padrasto de minha
bisavó, a quem causava inúmeros maus tratos, inclusive não deixando nem que
dormisse em redes armadas “para não gastar as paredes”. Para escapar disso, minha
bisavó arranjou para ela e para sua irmã mais nova casamentos com dois ferroviários
também irmãos e, casados, fugiram para Fortaleza.
Eu fugi para não me casar, minha bisavó se casou para fugir. Em tempos e
situações muito diferentes - a mim foram dadas opções e nunca sofri maus tratos, pelo
contrário, sempre fui amada e sei que meus pais estavam sempre dando tudo que
tinham para fazer o melhor que podiam na minha criação1 - existe a performance da
fuga que se repete, na tentativa de escapar das imposições e limitações de um sistema
patriarcal.
Logo que terminei a graduação em Psicologia, fui para Campinas, em São
Paulo, me especializar em Saúde Mental em Saúde Coletiva e trabalhar na então rica
rede de assistência à saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS) da cidade.
Depois de três anos sobrevivendo numa cidade2 sem mar e certa de que havia mais
da vida para mim, resolvi vir fazer mestrado no Rio de Janeiro, que “continua lindo e
opressor” (PASSARELLI, Matheusa. 2017), novamente usando o estudo como veículo
de fuga.
Chegando ao final dos dois anos de mestrado no Instituto de Medicina Social
(IMS), ainda que já reconhecesse algumas opressões sofridas e perpetradas por mim
nesta cidade, quis continuar morando aqui, no Rio de Janeiro. Mais interessada na
possibilidade que se apresentava para continuar no Rio do que no trabalho em si,
aceitei a proposta de meu orientador, André Mendonça, de continuar pesquisando no
IMS, “emendando” o começo do doutorado no final do mestrado.
1
Modéstia à parte, acho que fizeram muito bem.
2
Campinas, São Paulo
3
A proposta de André era irrecusável para mim, pois tinha o molde de um cheque
assinado em branco. Combinamos que o projeto inicial feito para a seleção de
doutorado poderia mudar completamente se assim eu quisesse - e de fato quis.
Durante o percurso do doutorado tive oportunidade de participar de mesas,
oficinas, cursos e trocar experiências com autoras e atoras de diversos segmentos, em
especial das artes contemporâneas, que têm discutido questões de gênero, raça,
classe e colonialismo - que muito me interessam enquanto psicóloga, sanitarista e
gente - de forma mais avançada do que a própria Saúde Coletiva.
Essas trocas, que se deram também em espaços acadêmicos, mas
principalmente nas ruas e outros espaços afetivos, entendo como pilares de minha
escrita e futura tese. Tendo o que aprendi a partir dos estudos em Saúde Coletiva
como orientação, acredito que a diversificação de vozes é condição sine qua non para
uma compreensão mais ampla e pertinente da saúde.
Escrever o que quero escrever, como quero escrever e sendo quem sou -
mulher, cisgênera, branca, nordestina, psicóloga - dentro de um lugar como o Instituto
de Medicina Social da UERJ - acadêmico, patriarcal e médico, conforme desenvolverei
ao longo desta tese - tem um custo para o meu corpo que não é trivial. Como quem
nada contra a corrente, me custa imenso conseguir manter a posição, que dirá
avançar. Mas devo, preciso e quero avançar e para isso conto com forças que me
precedem, sucedem e atravessam, num fluxo de tempo e energia que não é linear.
Cíntia Guedes me disse na ocasião da qualificação desta tese: “Isso que você escreve
tem lastro!”. Nesse lastro estão os trabalhos da própria Cíntia Guedes (2015, 2016,
2017a, 2017b, 2018a, 2018b), os de Elton Panamby (2015, 2017), os de Jota
Mombaça (2015, 2016, 2017), Camila Bacellar (2016a, 2016b, 2017a, 2017b, 2019),
Angela Donini (2010, 2014a, 2014b, 2016, 2017), Dora Moreira (2017, 2018), Fátima
Lima (2014, 2018, 2019), Tiago Coutinho (2019), Andrey Chagas (2018a, 2018b),
Walla Capelobo (2019a, 2019b), dentre muitas3 outras4 que têm ocupado a academia
3
Utilizo sempre o plural feminino em referência a “pessoas”, numa tentativa de driblar as regras
patriarcais de nosso idioma colonial.
4
Aqui falo de afeto no sentido literal, do substantivo encontrado no dicionário, qual seja: sentimento de
imenso carinho que se tem por alguém. O afeto foi uma dimensão fundamental na construção dessa
tese, as pessoas citadas aqui são aquelas com quem compartilho um laço de afeto, além de algumas
4
com seus corpos desviantes do padrão cis-hétero branco e produzido trabalhos que
ultrapassam essa mesma academia em espaço e gramáticas.
Usamos artifícios e técnicas na produção desses trabalhos que não são aquelas
forjadas pelo método científico hegemônico - leia-se: eurocêntrico -, logo, são
contestados e acusados de “não confiáveis”. O seu valor e robustez, que tem
fundamento, ancestralidade e abrangência, não podem ser mensurados com a mesma
métrica branca e patriarcal que calcula quantos dólares custa uma vida ou um povo5,
entendemos que números não servem para tudo, que valor não se resume a dinheiro
e que sonhos - uma das técnicas a que me refiro - podem ser exatos e confiáveis.
Essas pessoas e seus trabalhos têm em comum um olhar crítico para o mundo
colonial e os atravessamentos desta situação nas vidas e corpos colonizados. Além do
olhar crítico, tentamos ultrapassar a análise para a ação, de forma que esses textos,
assim como a própria (re)existência são transgressões à ordem colonial
de suas respectivas produções acadêmicas às quais tive acesso e que me foram caras na construção
deste trabalho.
5
A matéria de 11 abril de 2018 da sessão de Investimentos da CNBC “Goldman Sachs asks in biotech
research report: ‘Is curing patients a sustainable business model?’” (Goldman Sachs pergunta em
relatório sobre pesquisa biotecnológica ‘Curar pacientes é um modelo de negócios sustentável?’) expõe
a que ponto de cinismo chegam os cálculos bancários quando concluem que em relação a terapias
crônicas “cures could be bad for business in the long run” (curas podem ser ruim para os negócios a
longo prazo).
5
6
Ver também a recente antologia Para além do pós(-)colonial de Michel Cahen & Ruy Braga (2018).
7
Este evento está relatado em ata pública da reunião.
8
Aponto aqui alguns exemplos que já foram citados em sala de aula, conferências ou reuniões como
referências fundamentais do planejamento: Mario Testa (1990), Carlos Matus (1993), Eduardo Lecovitz
(1997), Ruben Mattos (2000), Gastão Wagner Campos (2006), Tatiana Wargas Baptista (2003),
Eduardo Fagnani (2005).
9
Classifico como “tradicionais” pelo fato de essas mesmas referências serem reiteradamente citadas
nas produções de um pólo importante de estudo e produção de conhecimento como o IMS.
6
O encaminhamento conduzido a partir desta pauta foi que se faria uma análise
das teses e dissertações já defendidas no departamento, para que fosse verificada
proporção de trabalhos que estavam adequados ou não às designações do
departamento. Não foi determinado, no entanto, qual seria, ou mesmo se haveria
alguma sanção aos trabalhos que porventura fossem vistos como não pertinentes.
Assim como também não foram explicitados os critérios para tal avaliação, tornando
implícito, então, que caberia ao avaliador, um dos professores que trouxe a pauta, o
próprio crivo do exame.
Fatalmente, foi criado um clima de insegurança e persecutoriedade entre
estudantes, principalmente aqueles que haviam defendido dissertações e estavam
desenvolvendo o doutorado sob orientação do professor filósofo, como era o meu caso.
objetividade científica, no entanto não rompe ele mesmo com a ciência que
questiona.10
A citação de Fanon acima fala sobre a debilidade dos intelectuais colonizados
frente à complexidade da realidade e em comparação à perspicácia do povo. Essa
diferença se tornou gritante para mim quando, numa mesa que precedeu a Oficina
Resistências Feministas na Arte da Vida, na fala de Elton Panamby, fui apresentada
ao texto de Carolina Maria de Jesus.
10
Ver mais em Gabriela Barreto (2016)
11
Uma amiga me perguntou no final de 2019 sobre o que era minha tese dizendo “minha mãe sempre
pergunta e eu não sei responder, digo só ‘é uma coisa aí de saúde coletiva”. A mãe dela é sanitarista e
8
eu falei “ah, amiga, o que eu estudo não tem muito a ver com o que normalmente se entende por “Saúde
Coletiva””, numa tentativa de mudar de assunto pois estávamos numa festa e eu não queria falar sobre
trabalho. Então ela falou “Minha mãe também não, ela estuda o discurso das mulheres negras que
sofrem violência obstétrica”. Eu poderia talvez dizer que minha tese é sobre a Saúde Coletiva no Brasil
ter chegado num ponto em que alguém acha que o discurso de mulheres negras que sofrem violência
obstétrica não é Saúde Coletiva.
12
Sobre o impacto do racismo no acesso à saúde pública ver LEAL, GAMA e CUNHA, 2005; GOES et
al., 2020; BATISTA e BARROS, 2017.
9
13
Não farei aqui uma reconstrução conceitual do termo, para tanto ver LIMA, Fátima, 2018.
14
Notas de aula.
15
A pesquisa André Faro (2013) sobre estresse e estressores na pós-graduação mostra de forma ampla
fatores de risco à saúde mental de estudantes, dentre eles, ser do gênero feminino e ter menor renda
familiar.
10
que só conseguiu escrever a tese quando aprendeu a rezar, por ser esse o tempo que
não podem nos roubar.
Vi as velas queimarem até o final, enquanto rezava para que só fossem levados
os de lá, que nós de cá ficássemos vivas e fortes. Pedi que minhas angústias e medo
queimassem com aquelas velas.
Uma parte importante desta tese é a própria forma como ela está sendo
desenvolvida. O “estilo narrativo, mais até do que meramente ensaístico, do texto”,
como foi apontado por meu orientador, é fundamental para o que quero ao fazer este
trabalho.
O que está em disputa? O que precisará ser renunciado
para conseguirmos libertar a capacidade criativa radical
da imaginação e dela obtermos o que for necessário para
a tarefa de pensar O Mundo outramente? Nada menos
12
Pensar O Mundo outramente é o que quero com este trabalho e o que Denise
Ferreira da Silva indica é a direção que escolho tomar. Neste sentido vale dizer que
uma das características deste texto é que todas as numerosas citações são diretas 16.
O que trago de outras autoras para este trabalho, o faço com intuito de conversar com
essas ideias e não de redizer o que já foi dito.
Ainda que haja uma inevitável perda na extração de uma fração de seu contexto,
acredito que a reprodução das palavras escolhidas por suas autoras seja mais
vantajosa no intuito de libertar a capacidade criativa radical.
As formulações dos estudos com os quais dialogo aqui não serão, nem
poderiam ser, apenas fagocitadas sem que haja reflexão, crítica e possíveis
contradições com o que pretendo produzir, mas atuarão como importantes
fundamentos na construção desta tese.
16
Transcrição literal do texto consultado.
13
Por isso, e por “uma questão de coerência com a minha alma”17, trago para este
trabalho conceitos e teorias que me são muito caras, mas também contribuições
artísticas como relatos de performances, excertos de literatura, música e poesia que,
para além da inspiração, serão também materiais na construção de sentidos desta
produção.
17 “Não é uma questão de ser feliz ou triste, é uma questão de coerência com a minha alma” (Fragmento de carta enviada por
Paulo Cesar Pereio, quando esteve internado em hospital psiquiátrico, à sua amada. Do livro “Por Que Se Mete Porra”).
14
Entendo, como Lucía Egaña Roja disserta acima e como foi discutido por Jota
Mombaça no curso Submetodologias Indisciplinares, que toda metodologia é uma
15
Aqui arrisco colocar-me como sujeita que age no mundo que pretendo
compreender. O risco em questão diz respeito a posição vulnerável em que se coloca
qualquer coisa exposta. Quando declaro meus movimentos, revelo-me. Daí a
vulnerabilidade, o risco.
Agora entendo por que foi tão difícil por tanto tempo responder a pergunta “o
que você estuda?”. Uma tradução em termos acadêmicos para essa frase poderia ser:
“qual o seu objeto?” e essa pergunta não se aplica aqui. Minha tese começa a partir
de algumas recusas, sendo que a primeira e principal é: eu não quero um objeto. Eu
não tenho um objeto. A tese não tem um objeto. A tese é sobre mim e eu não sou um
objeto. Ninguém é um objeto ou, pelo menos, não deveria ser.
17
ENCRUZILHADAS
Encontrar o tema e os objetivos deste estudo tem sido um esforço que desde o
início do doutorado, e muito antes, me fez caminhar por diferentes rotas, buscando
outras formas de pensar e produzir, pois as que até então eu conhecia não mais faziam
sentido. Muito felizmente posso contar com um grupo de orientação que me apoia e
incentiva nos desejos e nas errâncias.
Desde então passei a dizer a quem perguntava que “meu objeto de estudo no
doutorado sou eu”, mas sem ainda ter o discernimento ou a coragem para apontar o
quê em mim seria isso ou como transformar essa escavação em algo que passasse
como uma tese de doutorado.
Nesse encontro comigo mesma e com uma escrita possível, Cíntia Guedes e
Dora Moreira, com suas palavras e seus afetos, foram exemplos e guias. As memórias
dos episódios-encruzilhadas me apareceram depois do susto de um incêndio que não
aconteceu, enquanto eu lia a tese de Cíntia “NADA (É) RAZOÁVEL” e sentia o cheiro
de queimado em minha casa19.
18
Assim, com uma torção para o feminino na palavra, eram chamadas as situações em que nos
encontrávamos semanalmente para desenvolver a oficina.
19
Dora tinha esquecido um ovo cozinhando por horas, quando cheguei em casa o ovo e a panela
tinham queimado. Não era a primeira vez que, entre nós duas, uma fazia o feitiço e a outra recebia a
magia.
18
EPISÓDIOS-ENCRUZILHADAS
Talvez seja esse o melhor que uma tese pode fazer a uma pesquisadora: realocá-
la diante do mundo (GUEDES, Cíntia, p.14, 2018). Não quero que o final desta tese
seja um tratado de mea culpa, o intuito não é refinar ou maquiar as ruínas, mas, ao
contrário, reconhecer a brutalidade e aprender a habitar o inóspito.
21
A CABEÇA
20
Para o histórico de luta das domésticas sob olhar decolonial ver BERNARDINO-COSTA, 2015.
22
ele defendia tinham sido aventadas pelas elites da época contra a abolição da
escravidão, que seria um baque econômico insustentável e que quem mais sofreria
com isso seriam as pessoas negras então escravizadas, que ficariam sem o “sustento”:
a senzala e os restos de alimentos.
O clima de espanto que tomou a sala foi rapidamente interrompido pelo professor
que elevando o tom de voz me chamou de “burra” e disse que eu deveria “abrir a
cabeça para a inteligência” (sic). O choque então foi meu; não era a primeira e nem
seria a última vez que um homem me ofendia por não concordar com ele, mas essa
forma de desenhar a violência era nova para mim. Naquela situação eu não queria
abrir, muito menos a cabeça, e menos ainda para aquela inteligência, mas ali ficava
claro21 que o privilégio que eu acessava fazendo uma pós-graduação de nível máximo
no país trazia custos cobrados no corpo.
A cobrança a que me refiro não se trata de qualquer tipo literal de incisão, mas
de uma invasão subjetiva que se impunha sobre mim. Naquele momento estavam
colocados os meus traços de mulher, duelando com uma voz masculina que se
projetava a partir de um lugar de centro e de poder intelectual muito diferente do meu,
sentada como aluna vinda do nordeste, periferia do Brasil. Mas havia também uma
identificação entre nós: repetidas vezes, em outras aulas, o professor havia contado o
feito de ter alfabetizado a sua babá, e eu, apesar de não ter tido esse “mérito” da
alfabetização de minha cuidadora, também fui criada por uma mulher pobre que foi
contratada para isso por um salário irrisório durante meus primeiros 11 anos de vida.
Quem é Eco?
21
Utilizo aqui o termo “claro” e não “nítido” ou “explícito” propositalmente, pois entendo que o que fica
explícito são os sinais da branquidade.
23
Não ter que saber, / é um privilégio / que nem todos nós temos.
Procurei minhas amigas para chamar para irmos embora dali, mas só encontrava um
amigo. Nesse momento, um dos homens donos do local aparecia e me entregava um
pequeno pacote e dizia sorrindo “Eu gostei de você, você é radiante!”. A sensação de
desconfiança persistia mesmo com aquela tentativa de agrado, eu olhava então para
o presente, nele estava escrito “kit tortura” e quando o abria via que eram umas
pequenas hastes de alumínio, e na hora eu entendia que era um instrumento a ser
acoplado num pênis para causar ainda mais dor num estupro e daí entendia que aquele
gesto de me oferecer um instrumento que eu especificamente não poderia usar e que
servia para violentar corpos como o meu era, em si, uma tortura, assim como tinham
sido todos os momentos naquele lugar: torturantes. Falei então para meu amigo que
precisávamos sair dali imediatamente, a qualquer custo.22
Me chama a atenção nesta parte do sonho o gesto de sedução do homem que
me elogia e presenteia, justamente no momento em que eu pretendia me retirar do
território de privilégios. Entendo que esse gesto se configura como um convite
fraudulento, posto que impossível, para o “lado de lá”. Como se os benefícios do pacto
de branquitude estivessem totalmente acessíveis para mim. Como se eu pudesse fazer
parte do consenso branco23 gozando plenamente apenas dos privilégios.
A partir da cena onírica que descrevi pude saber o que há muito sabemos como
propõe Grada Kilomba. O consenso branco é um véu que pretende ocultar as
engrenagens e parafernálias de opressões do mundo colonial, mas que só serve a
quem pode não as enxergar. O meu entendimento no sonho sobre o instrumento
escancara o meu marcador de gênero, posicionando-o como uma limitação, na medida
em que determina quem tortura e quem é torturado.
22
O sonho não terminou aí, irei retomá-lo mais adiante no episódio-encruzilhada O Silêncio
23
Utilizo o termo consenso branco em referência ao trabalho de Grada Kilomba citado, mas é válido
também apontar a conexão com o trabalho de Maria Aparecida da Silva Bento (2002) no qual disserta
sobre o pacto social da branquitude.
25
O SEQUESTRO
24
e quando nós falamos estamos com medo / nossas palavras não serão ouvidas /nem bem vindas /
mas quando estamos em silêncio / nós continuamos com medo / Então é melhor falar / Lembrando /
Não éramos supostas sobreviver. (Tradução de Dora Moreira e Jessica Oliveira)
26
sinais indicando a quem deveria ser passado o microfone, mas eu ignorei e ele,
provavelmente sem querer interromper a fala da mesa, não disse nada no momento.
Quando os professores da mesa terminaram, eu anunciei o sequestro.
Essa cena, assim como todo o evento, foi filmada e está disponível25 no canal do
YouTube oficial do instituto, IMS TV, de forma que pude revê-la, e já o fiz algumas
vezes. Quando assisto o vídeo me vejo inquieta e tenho a lembrança nítida das
sensações naquele momento em que segurava o microfone antes de falar. Lembro
pouco do que de fato falei e, quando ouço novamente, penso que deveria ter dito mais,
outras coisas, de forma diferente, mas uma frase me arrebata: “Eu vi a necessidade
de tomar a palavra”.
25
https://www.youtube.com/watch?v=k-m_NxVU6Q8&t=173s
27
Ali não poderia a subalterna falar, nem os senhores ouvirem, pois não se trata de
conversa ou, parafraseando Fanon, não é com uma máquina dialógica que lidamos, o
supremacismo não quer papo, quer submissão silenciosa.
28
O SILÊNCIO
Pela total falta de respeito que essa violência impõe a todos os servidores da
Universidade, a qual somos intransigentemente contrários, a comunidade do IMS se
sente de luto.
De luto, porque a violência acaba com o diálogo;
De luto, porque a violência impede o debate;
De luto, porque a violência sufoca a criatividade;
De luto, porque a violência provoca a desarmonia;
De luto, porque a violência bloqueia o conhecimento;
De luto, porque a violência só gera violência.
NÃO À VIOLÊNCIA, NÃO AO VANDALISMO, NÃO À AGRESSÃO FÍSICA
30
Esta nota (Quadro 2) foi escrita por pessoas que participavam do coletivo de
estudantes do IMS em 2015, inclusive eu, em resposta ao primeiro texto (Quadro 1),
escrito por professores do IMS, mobilizados pelas consequências de manifestações
ocorridas na UERJ.
No primeiro semestre do mesmo ano, no período anterior às Olimpíadas que
foram realizadas no Rio de Janeiro, aconteceram diversas manifestações de protesto
em relação ao desmonte da UERJ, que se fazia explícito pelo não pagamento dos
salários de funcionários terceirizados e concursados. Uma dessas manifestações
culminou no apedrejamento das portas de vidro da reitoria. Ato que causou comoção
na comunidade acadêmica, mesmo entre os docentes mais “críticos” e de “esquerda”.
A nossa nota foi escrita, porém nunca publicada; como uma carta não enviada.
Após a confecção da nota, nos reunimos na nossa recém montada e entregue sala de
estudantes, com dez baias e computadores de última geração e uma mesa grande
para estudos e reuniões, para discutirmos o texto, fazermos ajustes e deliberarmos
sobre sua publicação.
Na reunião travamos uma discussão intensa sobre como nos posicionarmos em
relação ao debate que já estava sendo feito pelo corpo docente e que tomava uma
direção que a maioria de nós discordava.
Um único colega era contra a publicação de nossa nota, não por, segundo ele,
concordar com o tom de julgamento do corpo docente sobre o que estavam chamando
de “atos de vandalismo”, mas por desacreditar na potência de escrever notas ou cartas
do tipo.
Também nesta época, o coletivo de estudantes do IMS passava por uma “crise
de representatividade”, que acredito nunca ter sido superada. A crise se dá não só por
estudantes que não participam das atividades do coletivo e/ou discordam de seus
posicionamentos, mas pelo próprio corpo do coletivo, que ainda quando consegue
debater e formar opiniões, não se sente apto a publicizar ou assumir posicionamentos
enquanto grupo.
Na nossa nota tentávamos falar de portas abertas que não seriam quebradas,
num clamor ingênuo de quem não percebe as portas fechadas dentro de si mesma. A
barreira da comunicação nesse episódio não se deu por um outro corpo falante que
32
impõe um silenciamento, mas por algo que em nós mesmas já fora plantado, como
uma erva daninha que desmobiliza, sabota e cala a própria voz.
Voltarei agora no sonho que comecei a relatar no episódio-encruzilhada A
Cabeça, retomando o relato do ponto em que foi interrompido:
Logo que entendemos que precisávamos fugir, eu e meu amigo percebemos
que estávamos encurralados pelos donos do local, que nos perseguiam. Eu, então,
falei para meu amigo que não havendo saída do local, a melhor solução seria nos
matarmos, pois sabia que o que eles iriam fazer conosco era muito pior. O condomínio
ficava no alto de uma colina de onde caía uma cachoeira em direção ao mar, eu sugeri
que pulássemos de lá, imaginando que seria a melhor maneira de morrer, ao que meu
amigo concordou. No entanto, no caminho para lá os homens nos encontraram e nós
precisamos correr em outro sentido, entrando num prédio com muitos corredores, lá
achamos uma panela de ferro e resolvemos que seria uma arma possível. Começamos
a golpear um ao outro na cabeça alternadamente e foi ficando evidente que alguém
morreria antes, ou seja, só um se salvaria dos homens. Percebia que meu amigo já
estava ferido e resolvi que seria ele, pois estava mais fácil. Consegui então quebrar
seu crânio, mas ainda assim ele não morreu, foi preciso que eu arrancasse pedaços
de seu cérebro, aí sim ele cambaleou, vomitou uma massa branca e desfaleceu. Logo
em seguida um dos homens nos encontrou e eu implorei a ele que me matasse, ele
disse que não poderia e mostrou que havia alguns produtos de limpeza ali ao alcance,
o que entendi como uma forma de empatia de sua parte. Corri para ingerir um Veja e
enquanto estava bebendo os outros homens chegaram e riram muito ao me ver,
perguntando de onde eu tinha tirado que aquilo me mataria, o primeiro homem que me
encontrou disse rindo que ele que havia insinuado e todos o congratularam. Nesse
momento eu estava ajoelhada, em pânico, rodeada por todos aqueles homens que
gozavam do meu desespero e acordei.
Quando levei esse sonho para a análise minha analista apontou que em muitos
momentos do sonho eu entendia alguma coisa. No episódio-encruzilhada em que
comecei a relatar esse sonho falei sobre a potência dos entendimentos, mas agora
pondero que esses muitos entendimentos podem ser também uma armadilha. Estaria
eu entendendo demais e agindo “de menos”?
33
O impacto macropolítico que uma carta como esta teria seria provavelmente
pífio, mas de qualquer forma, acredito que conjecturas nestes termos sejam
irrelevantes. A dúvida que fica é: no que acarretaria para nossos corpos e vidas esse
instante de portar e projetar nossas vozes?
34
A NOTA
Uma palavra
Início de uma reza
Palavra o vento leva
Mas fica sempre a intenção
Mateus Aleluia
Figura 1 - “VAI TER PRETO SIM” Imagem que acompanha a postagem da nota de
repúdio
37
Esta nota foi redigida coletivamente por nós, estudantes, que já estávamos
aborrecidos com posturas e falas de alguns docentes que estavam contrariados com
a promulgação da lei estadual n. 6.914/2014 que tornou obrigatórias as cotas raciais
nas seleções de pós-graduações de instituições públicas fluminenses. Um desses
docentes chegou a dizer em reunião de colegiado que uma solução para um suposto
decréscimo no nível intelectual dos egressos seria “arrochar na prova de línguas” (sic).
O elitismo atrelado ao racismo dessa fala que parece querer delimitar quem pode
fazer ciência e com quais instrumentos, não foi, no entanto, o que nos fez urgir para
uma reunião e posteriormente redigir a tal nota. O que marcou esta motivação foi a
pichação (Imagem 1) com a qual nos deparamos na semana seguinte à finalização do
processo seletivo para 2016.
A pichação - que, até onde sei, não foi feita por estudantes do coletivo -, em seu
devir disruptivo e impositivo, entendemos como uma acusação, mas longe de uma
condenação e ao contrário de um silenciamento, agiu nos interpelando, convocando
vozes.
Certas de que nada havia de difamatório no texto, mas temerosas do que poderia
acarretar em nossas vidas de pós-graduandas tais ameaças, redigimos um novo texto
(Quadro 3) explicitando que falávamos de racismos estrutural e institucional.
38
cotas estão de acordo com a Lei Estadual, não sendo decididas pela UERJ), a frase
passa ao largo da ideia de não participação dos discentes e do suposto caráter
“desastroso” da seleção.
A nota, finalmente, insiste, de forma acertada, na necessidade de ampliação do
debate em torno do racismo institucional, que certamente precisa ir além da simples
adequação burocrática às novas regras para cotas.
A segunda nota do Coletivo é um passo correto na construção de um espaço de
discussão aberto e leal entre todos os que fazem parte do IMS, embora, até o dia 25
de fevereiro, ela não tenha sido publicada na página do Coletivo no Facebook.
É de se esperar que, em nome da honestidade intelectual que deve orientar o
debate, isso venha a acontecer, junto com a publicação desta nota dos professores.
Redes sociais são um novo espaço de troca de ideias e mobilização política. Mas
para que avancemos juntos – discentes, técnicos e docentes – em nosso
aperfeiçoamento como um coletivo de fato, é preciso insistir em trazer a
discussão para o interior da instituição. É preciso sempre buscar os caminhos que o
tornem possível – e produtivo. Se os canais existentes são insuficientes, então é
preciso criar juntos novas alternativas.
41
O coletivo vem, por meio desta, explicar alguns aspectos da nota publicada por
nós em 29 de janeiro. Aquela não se trata de uma denúncia pessoal a qualquer membro
ou instância da comunidade do Instituto de Medicina Social. Propusemos na nota, mais
uma vez, como desde 2014, o debate ampliado sobre a incorporação das cotas no
nosso programa e na pós graduação brasileira, assim como das questões estruturais
e sistêmicas que nos afetam.
Também é preciso referir que o processo de seleção de mestrandos e
doutorandos do Instituto de Medicina Social para o ano de 2016 incorporou as cotas e
não impôs qualquer empecilho deliberado aos candidatos que se inscreveram por elas.
Acompanhamos o processo e, apesar de não ter tido uma construção ampliada, houve
a adequação do edital à incorporação das cotas, de acordo com as normas da UERJ.
A nosso ver, este processo de adequação levou em conta apenas aspectos
burocráticos. É sobre isso que diz a nota e é aí que se evidencia a questão que
quisemos problematizar: tratar a incorporação das cotas como um aspecto burocrático
é reproduzir aquilo que as instituições brasileiras e seus marcos normativos
reproduzem há séculos. Entendemos a incorporação das cotas não apenas como um
meio institucional de "permitir" a entrada de negras e negros nas instituições, mas de
42
uma ação que faz emergir, entre outras coisas, o debate sobre algo fundamental, que
é estruturante da nossa sociedade e que está naturalizado entre nós: o racismo
institucional. Sobre este assunto devemos debater, debate que desejamos fazer assim
que possível, de forma ampliada.
43
Revendo essa imagem da pichação que diz “VAI TER PRETO SIM” penso em
outra nuance desse episódio-encruzilhada: a força dessa afirmação. Hoje temos não
só um número muito maior de estudantes negras no IMS do que havia nessa época,
mas também o Coletivo de Estudantes Negrxs do IMS, cujo significado e potência não
se podem estimar em números.
A pichação em si durou pouquíssimos dias e as paredes logo foram pintadas de
cinza novamente, quem passa por lá atualmente vê na parede apenas “o canto mais
limpo”, mas vê também, corpos negros nos corredores e salas. Ainda muito menos do
que o socialmente justo e enfrentando o forte racismo institucional no IMS, que age
escancaradamente nos processos seletivos e diariamente nas aulas, bancas e
orientações.
O Coletivo de Estudantes Negrxs, no entanto, reinventa formas de resistir e
transformar. Logo que se organizou já iniciou as atividades de um curso preparatório
para a seleção de mestrado e doutorado do IMS e já no primeiro ano teve 7 estudantes
aprovadas.
Ao entoar e repetir “Parem de nos matar!” em seus shows, a cantora Luedji Luna
anuncia que “Isso não é um pedido, é um ebó de boca”26. Assim como a frase da
cantora, nas palavras pichadas nas escadas do IMS - um ebó27 de muro? - havia uma
imposição, muito mais que um questionamento, não houve espaço para dúvidas ou
recusa e, assim sendo, tá tendo preto sim!
26
O poema recitado por Luedji Luna é de Felipe Estrela.
27
Sobre este conceito trago as palavras de Luiz Rufino “A compreensão do ebó enquanto sacrifício
perpassa diretamente as dimensões do movimento, da transformação, do inacabamento e das
dinâmicas de compartilhamento, transmissão e multiplicação das forças vitais. Não coincidentemente,
é Exu o mantenedor e dinamizador do axé de Olorun, como é também ele o responsável pela
comunicação simbólica e ritual entre todas as forças existentes. Essa comunicação entre os diferentes
seres e suas respectivas tempo-espacialidades é possível a partir das operações advindas dos
ebós/sacrifícios. Assim, o ebó opera também como um princípio tecnológico, uma vez que é a partir dele
que se estabelecem as comunicações, trocas e invenções de possibilidades.” (2019, p. 87)
45
A CAMINHADA
28
Versos da música “Fala Mal de Mim” de Ludmilla.
47
Uma semana antes da data que combinamos para fazer a caminhada, algumas
de nós que naquele momento já éramos mais próximas estávamos numa festa na Casa
Nem29, que estava lotada. Enquanto dançávamos um homem, que já nos incomodava
com olhares constrangedores, passou a mão na minha bunda. Possessa, me virei para
ele gritando e imediatamente as pessoas que estavam perto de mim se juntaram de
forma a levá-lo para longe e expulsá-lo da casa. Fui até a entrada explicar para as
pessoas que estavam trabalhando na bilheteria o que tinha acontecido e sem
questionar elas logo disseram “fica tranquila que ele não entra mais, vai curtir sua
festa!”. Quando voltei para a pista e perto das amigas, Violeta, que também participava
das encontras, falou no meu ouvido o que para mim foi uma prece: “Mana, a caminhada
já começou!”
29
A Casa Nem é um espaço de acolhimento para pessoas trans que nos anos de 2016 e 2017 sediou
festas para custear a manutenção da casa que ficava na Rua Moraes e Vale, no bairro da Lapa, Rio de
Janeiro.
48
A SURPRESA
porte ela já estivesse saindo de casa? Fui até ela perguntar se ela tinha feito a cirurgia,
ao que ela respondeu “Lógico! Você quer ver?” e imediatamente virou de costas,
levantou a saia e se curvou, mostrando sua cuceta (Figura 3).
51
Figura 3 – A Cuceta
Sua instalação era muito generosa para possíveis debates acadêmicos entre os
estudiosos do Instituto, mas o que foi mais notável após o evento foram as
controvérsias sobre sua nudez dentro dos muros do Instituto. Os professores mais
conservadores ficaram chateados não apenas pela nudez, mas pela publicação dessa
imagem no perfil do Instagram do instituto.
Entendo que esta “violência absoluta” proposta por Fanon se conecta com a
ideia de redistribuição desobediente da violência de Jota Mombaça que na
performance de Tertuliana toma forma como uma existência radicalmente
comprometida com a expressão de si mesma.
O artigo “Ecos do Puta Dei: precisamos falar sobre isso” escrito pela professora
Jane Russo e pelo professor Sergio Carrara, publicado no site do Instituto, mostrou
(acredito) uma tentativa de guiar as controvérsias em torno da nudez em uma direção
mais interessante e profícua.
A DURA
Fui revistada por uma dupla de policiais militares do Centro Presente que
chegaram numa moto segundos depois de eu ter acendido e apagado o cigarro
enrolado em papel seda. Apaguei porque Rafael, homem cisgênero negro, que me
acompanhava, assim recomendou. Quando os policiais nos abordaram, muito
educadamente, ele estava tranquilo, impávido. Eu tremia e estava ainda mais branca,
pálida. Assim que abriram minha bolsa encontraram o tal cigarro e um dos policiais
perguntou “é tabaco?”. Eu respondi que sim, mas continuei tremendo, e eles
continuaram procurando, revistando também a bolsa do Rafael, que não tinha nada
incriminante.
No meio da cena percebi que Rafael era o único em risco ali, ainda que o artefato
suspeito estivesse na minha bolsa, era para ele que os corpos, as palavras e a câmera
dos policiais estavam voltados. Agora me parece óbvio que essa percepção deveria
ter se dado antes de acender o cigarro, que aquele fogo colocou Rafael em risco, um
risco que meu corpo nunca correu, nem correrá, mas que só naquele momento foi de
fato sentido.
Edith Piza (2002) diz que quando a branquitude percebe sua racialização, é como
se batesse a cara numa porta de vidro. Rafael e eu já tínhamos compartilhado cigarros,
praças, noites, manhãs e uma dura, mas foi só nesta última que percebi a porta de
vidro que nos separava. Cíntia Guedes me ensinou que o racismo não age somente
contra as pessoas negras e a favor das brancas, mas atua também impossibilitando
as relações entre diferentes.
O mundo colonizado é um mundo cortado em dois. A linha de
corte, a fronteira, é indicada pelas casernas e pelos postos
58
A cena vista pelos policiais de uma mulher cisgênera branca de roupas brilhosas
sentada numa praça ao lado de um homem negro de chinelo e bermuda só poderia ter
uma interpretação para eles, e não era a de um casal num encontro romântico.
Revistando minha bolsa, os policiais encontraram também formulários da Faperj
em que constava minha função de pesquisadora e o valor de minha bolsa de
R$3.160,00. Percebi que aquelas informações eram alquímicas e misturadas ao tom
claro de minha pele, transformavam o cigarro do que quer que fosse antes em tabaco
de fato. Isso me deu coragem de aproveitar a minha tremedeira que não cessava para
usar da performance de vulnerabilidade e falar em branquês com os policiais.
Menti dizendo que estava nervosa daquele jeito pois de fato fumava maconha e
tinha medo de que naquela bolsa grande tivesse alguma “ponta” perdida. Eu sabia que
não tinha, mas precisava oferecer alguma coisa que coubesse na gramática
necropolítica pela qual operavam. Se o “negro criminoso” não estava presente, talvez
a “mulher tola” e “branca inocente” servisse. E serviu.
“Raça” não pode ser separada do gênero nem o gênero pode ser
separado da “raça”. (...) Construções racistas baseiam-se em
papéis de gênero e vice-versa e o gênero tem um impacto na
construção de “raça” e na experiência do racismo. O mito da
mulher negra disponível, o homem negro infantilizado, a mulher
mulçumana oprimida, o homem muçulmano agressivo, bem
como o mito da mulher branca emancipada ou do homem branco
liberal são exemplos de como as construções de gênero e de
raça interagem. (KILOMBA, Grada, 2019a, p. 94)
Ao ter performado a “branca inocente”, posso ter sim livrado Rafael daquela
abordagem específica – e, principalmente, a mim, pois nunca mais fui interpelada por
policiais novamente –, mas estava ao mesmo tempo ratificando a opressão
machista/racista que sofrem as mulheres negras. Mesmo sem estar fisicamente
representado neste episódio, este grupo recebe o rejeito da fabricação e manutenção
do privilégio do qual eu pude me utilizar naquele momento.
“O que significa, pra branquitude, se racializar?” (NASCIMENTO, Tatiana, 2019)
esta pergunta lançada em redes sociais me parece fundamental para mobilizar
reposicionamentos de nossa parte, pessoas brancas, para lugares e movimentos que,
ainda que não desmontem a maquinaria racista no mundo, pelo menos não forneçam
mais lubrificação para que as engrenagens funcionem plenamente.
Todos os artigos e notícias que li sobre abuso policial, genocídio de jovens negros
e racismo estrutural não foram suficientes para que eu me antecipasse àquela
violência, para que eu não contribuísse na lógica de hipersexualização de mulheres
negras, nem na exposição de Rafael à abordagem de uma polícia cuja função
primordial, naquele momento fora inclusive a única, é de exterminar, matando ou
encarcerando, corpos negros.
Eu poderia ter ido àquele encontro com ou sem o tal cigarro, a questão é que eu
não pensei sobre isso, eu pude não pensar. Entendo que a própria possibilidade de
não precisar pensar sobre isso é a manifestação de minha branquitude. Me antecipar
não significa evitar, visto que está muito longe do meu alcance a erradicação da polícia
60
militar no Rio de Janeiro, a antecipação a que me refiro é à parte que me cabe nesse
latifúndio, à minha performance nessa cena que não escapou da coreografia branca.
O que me faltou naquele momento não foi saber o que acontece com jovens
negros, foi me lembrar que eu sou branca e saber de onde vem e para onde vai essa
branquitude.
61
CONJURO30
“Vivemos antes.
Vamos viver novamente.
Seremos seda,
pedra,
mente,
estrela.
Estaremos espalhados,
reunidos,
moldados,
testados.
Viveremos e serviremos a vida.
Daremos forma a Deus
e Deus nos moldará novamente,
sempre outra vez,
para sempre.”
Lauren Olamina
30
“Imprecação mágica na qual se evocam o demônio ou as almas do outro mundo.” (HOUAISS, 2001)
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Depois disso eu voltava a me deitar na rede e ato contínuo aparecia outra cobra
também vindo em minha direção, sendo esta marrom com a cabeça verde e bem
maior, me parecia ser venenosa, no entanto eu não sentia medo como da primeira vez
e me aprumava na rede, me preparando para o “bote”.
Acordei.
“Sabia que tudo que é imaginado existe? Existe e é e tem.” (ESTAMIRA, 2006).
O que foi imaginado através desse sonho existiu oniricamente e existe em vigília: o
estranhamento (medo) com a aproximação da cobra, a coragem que se seguiu ao
primeiro bote, o discernimento em meio ao pânico de perceber que sobrevivi à picada,
o ímpeto de levantar da rede e buscar a faca, a certeza do que fazer com a cobra.
Tudo isso existe agora, na produção desta tese.
O apocalipse deste mundo parece ser, a esta altura, a única
demanda política razoável. Contudo é preciso separá-la da
ansiedade quanto à possibilidade de prever o que há de sucedê-
lo. É certo que, se há um mundo por vir, ele está em disputa
agora, no entanto é preciso resistir ao desejo controlador de
projetar, desde a ruína deste, aquilo que pode vir a ser o mundo
que vem. Isso não significa abdicar da responsabilidade de
imaginar e conjurar forças que habitem essa disputa e sejam
capazes de cruzar o apocalipse rumo à terra incógnita do futuro,
pelo contrário: resistir ao desejo projetivo é uma aposta na
possibilidade de escapar à captura de nossa imaginação
visionária pelas forças reativas do mundo contra o qual lutamos.
Recusar-se a oferecer alternativas não é, portanto, uma recusa
à imaginação, mas um gesto na luta para fazer da imaginação
não uma via para o recentramento do homem e reestruturação
do poder universalizador, mas uma força descolonial, que libere
o mundo porvir das armadilhas do mundo por acabar.
(MOMBAÇA, 2017, p. 16)
“Eu vou escrever uma tese que já está escrita” foi uma frase que falei em análise
e repeti muitas vezes para amigas. Mais esmiuçado seria dizer eu vou trazer para as
palavras uma tese que já havia num campo invisível e inaudível ou, mais
sinteticamente, eu conjurei uma tese.
Me estranhar. Me perceber, reconhecer o medo, a fraqueza, a agressividade, a
potência, a memória. Perceber o mundo, os perigos, as armadilhas, as alianças, os
instrumentos, a história. Levantar, usar a força, a voz, a escuta, descansar, começar
de novo e sempre.
Aqui termina um fim. Abram-se novos começos. Amém.
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EPÍLOGO
Na semana seguinte ao envio da primeira versão final desta tese para a leitura
pré-banca, no começo de março de 2020, tiveram início no Brasil as quarentenas
devido à pandemia da COVID-19 causada pelo alastramento do coronavírus no país.
Os estados tomaram medidas diferentes, em diferentes momentos, mas todos
determinaram alguma medida de distanciamento social para evitar a multiplicação do
contágio pelo vírus.
A partir de então muitas e drásticas mudanças aconteceram no país, assim como
no mundo, entendo que não caiba aqui detalhá-las, mas dizer que o mais premente é
o gravíssimo acirramento das desigualdades sociais e opressões que tentei expor
nesta tese, o racismo, o machismo, o elitismo, a lesbo-homofobia, a transfobia, todas
as manifestações violentas do colonialismo.
Entendo que não cabe enumerar os eventos transcorridos durante a pandemia,
pois é preciso construir algum sentido que nos sirva como resistência e não apenas
reproduzir fatos. Afinal, é o que tenho me esforçado para fazer ao longo de todo este
trabalho. Para esta construção de sentido, trarei trechos do texto ficcional publicado
por Jota Mombaça como interlocução e auxílio.
We’ve been around for a while – at least for the last three
quarantines. But never in the same place. We’re constantly
on the move. Our protection spells are fragile and don’t last
indefinitely. It’s no small thing to make such a big group
vanish amidst the forms of social control that are used these
days. Today is not like the early 2020s, though most of us
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31 Estamos por aqui há um tempo - pelo menos nas últimas três quarentenas. Mas nunca no mesmo
lugar. Estamos constantemente em movimento. Nossos feitiços de proteção são frágeis e não duram
indefinidamente. Não é fácil fazer com que um grupo tão grande desapareça em meio às formas de
controle social usadas hoje em dia. Hoje não é como o início da década de 2020, embora a maioria de
66
nós nem se lembre tão bem da década de 2020. Com exceção de Massela e eu, todos aqui crescemos
durante a Era do Lockdown, então as únicas memórias de um mundo sem quarentena vêm de nossas
memórias compartilhadas ou das antigas mídias em nossos arquivos.
Hoje, muitas pessoas não se lembram do que era a liberdade de movimento e, aqueles que se lembram,
lembram de como sempre foi uma construção fictícia. As fronteiras e postos de controle podem ter se
multiplicado nas últimas três décadas, mas foram inventadas e armadas muito antes.
[...]
Nós tentamos nos preparar, mas 2020 nos invadiu. Estávamos tão despreparados quanto todo mundo.
Fomos separados pelas circunstâncias. Quando as fronteiras começaram a fechar e os fechamentos se
multiplicaram, eu não corri para o nosso ponto de encontro. Massela estava lá se preparando para minha
chegada. Nosso plano era permanecer juntos, mas o colapso mudou nossos horizontes: fomos
assolados pela indeterminação, confinados a um estado de exceção biopolítico, fisicamente separados
por quilômetros ...
E, no entanto, de alguma forma, ainda podíamos sentir uma a outra.
[...]
Gritei para Massela: 'Você precisa acordar e organizar todos agora!'
'Eu sei! Estou tentando…! Mas tem muita gente aqui, muita ansiedade... estou me afogando...'
'Não! Respira!'
Continuei queimando os milicianos, mas o ataque não parava até que todos fossem derrotados. Os tiros
foram esmagadores. Eu não era forte o suficiente sozinha. Eu precisava que Massela e os outros
lutassem ao meu lado.
‘Você precisa gritar! Você precisa incorporar duas mil vozes e gritar…!
É a única maneira…!
E você precisa fazer isso agora.
Agora Massela! AGORA! Você pode soar como duas mil?' (Tradução minha).
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REFERÊNCIAS
CAHEN, Michel e BRAGA Ruy (org.). Para além do pós (-) colonial. São Paulo:
Alameda: 2018.
DONINI, Angela. Escavações nas ruínas do corpo vivo. In: Livia Flores; Michelle
Sommer. (Org.). Cadernos Desilha. 1ed.Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2017, v. 1,
p. 131-146.
DONINI, Angela. Processos Escavatorios para habitar o corpo. In: Ines de Araujo.
(Org.). Indícios. 1ed.Rio de Janeiro: UERJ, 2016, v. 1, p. 18-33.
ESTAMIRA. Direção de Marcos Prado. Rio de Janeiro: Europa Filmes, 2006. 121 min.
FERREIRA da SILVA, Denise. A Dívida Impagável. Casa do Povo, São Paulo: 2019.
___________. Can You Sound Like Two Thousands? The Contemporary Journal 3,
abril de 2020. Disponível em: https://thecontemporaryjournal.org/issues/sonic-
continuum/can-you-sound-like-two-thousands Acesso em: 15/05/2020.
MOMBAÇA, Jota e MATTIUZZI, Michelle. Carta à Leitora Preta do Fim dos Tempos.
In: FERREIRA da SILVA, Denise. A Dívida Impagável. Casa do Povo, São Paulo:
2019.
PIZA, Edith. "Porta de vidro: entrada para branquitude". In: CARONE, Iray & BENTO,
Maria Aparecida da Silva (orgs.). Psicologia Social do Racismo: estudos sobre
branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. Companhia das Letras: São Paulo, 2001.
RUSSO, Jane e CARRARA, Sérgio. Ecos do Puta Dei: precisamos falar sobre isso.
Disponível em: http://site.ims.uerj.br/2017/06/14/ecos-do-puta-dei-precisamos-falar-
sobre-isso/ Acesso em 03/03/2020.
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