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Sumário
Introdução
Solange Simões
7
Solange Simões1
7
ordenação no Volume, ressaltaremos as convergências de temas e abordagens
centrais aos feminismos nas análises de questões específicas levantadas por cada
autor/a e capítulo.
Os feminismos plurais presentes nas CNMPs 2011 e 2016 e analisados neste
Volume refletem as transformações de gerações de ativistas e das chamadas on-
das dos feminismos no Brasil nas últimas quatro décadas. Dadas as inter-relações
entre as dimensões local e o global, as articulações entre os contextos nacionais
e os contextos internacionais são imprescindíveis para as concepções e práticas
dos feminismos das delegadas as CNPMs 2011 e 2016. No Capítulo 1, “Os mo-
vimentos feministas ontem e hoje no Brasil: desafios da sua institucionalização”,
Schuma Schumaher nos mostra como os movimentos feministas no Brasil são
constituídos e são, ao mesmo tempo, parte constitutiva do combate ao regime
militar na década de 1970, da transição para a democracia nos anos 80, da demo-
cratização do país nos anos 90, dos processos de institucionalização e formulação
de políticas públicas promovidos pelos governos petistas entre 2003 e 2016, bem
como dos contextos internacionais, especialmente as conferências mundiais sobre
mulheres, direitos humanos, racismo e população organizados pela ONU e os
respectivos acordos assinados e ratificados pelos governos brasileiros. Ao analisar
as trajetórias dos feminismos no Brasil situando-os em contextos históricos e só-
cio-políticos nacionais e internacionais diferenciados, o Capítulo 1 utiliza a noção
de “ondas” mas, ciente das limitações desta metáfora, o capítulo não apresenta
uma perspectiva de movimentos sem continuidade e sem diversidade interna. De
fato, não ignorando as críticas a metáfora das ondas, veremos que é possível utili-
zá-la para diferenciar os contextos históricos, políticos e econômicos nos quais os
direitos das mulheres e a igualdade de gênero são conceitualizados e promovidos
por uma ampla gama de atoras, organizações e movimentos. Uma “onda” pode
não significar necessariamente uma compreensão unificada ou linear do feminis-
mo, nem implicar na delimitação temporal de tipos particulares de ativismo de
gênero. Podemos utilizar a metáfora da “onda” no Brasil como correspondendo
ao “contexto” econômico, social e político mais amplo, que possibilita e ao mesmo
tempo constrange o processo da construção de identidades de gênero, das rela-
ções de gênero e o correspondente alargamento da agenda de ativismo de gênero.
Neste volume, abordagens e agendas de lutas perpassam as ondas, e as on-
das se distinguem mais pela maior centralidade, visibilidade e (re)significação que
alguns temas e atoras adquirem, mesmo mediante a permanência ou continuida-
de da relevância das várias agendas. Na minha leitura dos capítulos deste Volume,
abordagens e questões – como a relação dos contextos local e global, a relação entre
Estado e sociedade civil; o mainstreaming ou transversalidade, o sidestreaming e
a interseccionalidade – não apenas têm continuidade, mesmo que em renovadas
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concepções ou (re) significações, entre as “ondas” ou contextos históricos políti-
cos, como também aparecem interligados nos diferentes contextos onde adqui-
rem uma maior ou menor centralidade.
A relação dos contextos local e global é crucial na explicação da emergên-
cia do movimento feminista no Brasil apresentada no Capítulo 1, seja através
da experiência e exposição às ideais feministas de militantes de esquerda exila-
das que retornaram ao país, seja na organização para a participação na primeira
Conferência Mundial das Mulheres, organizada pela ONU na Cidade do México
em 1975. Ademais, o contexto internacional é fator fundamental no entendimen-
to não apenas da emergência da segunda onda do movimento feminista no Brasil,
mas também para a ampliação da agenda feminista no Brasil e no mundo. Como
argumenta Shuma Schumaher, o movimento feminista teve sua agenda ampliada
em virtude do ciclo de Conferências promovido pelas Nações Unidas, que discu-
tiram e deliberaram sobre os direitos das mulheres e igualdade de gênero (México
1995, Copenhagen 1980, Nairobi 1985, Beijing 1995) mas que também incluíram
outros temas de relevância global como o desenvolvimento sustentável e justiça
ambiental (Rio de Janeiro 1992); direitos humanos (Viena 1993); população e de-
senvolvimento (Cairo 1994); racismo, xenofobia e intolerância (Durban, 2001).
É também importante notar que a Plataforma de Beijing, resultante da
Conferencia Mundial de Mulheres da ONU de 1995, possibilitou um movimento
para além das divergências entre as prioridades defendidas por feministas dos
países do Globo Sul (principalmente econômicas e de classe) e dos países do
Globo Norte (mais centradas no direito ao aborto, sexualidade, divisão sexual do
trabalho) que marcaram a primeira Conferencia Mundial de Mulheres da ONU
em 1975. Assim a Plataforma de Ação de Beijing de 1995 ampliou a agenda do
feminismo transnacional ao adotar uma abordagem que ao demandar a trans-
versalidade já apontava também para uma agenda interseccional, resultante do
dialogo norte-sul, – antes mesmo da corrente quarta onda (como conceituada
no capítulo 2) onde a interseccionalidade adquire centralidade. E também é im-
portante notar que há uma relação recíproca entre o local e o global – os femi-
nismos brasileiros não apenas foram impactados, mas também contribuíram e
influenciaram a emergência de um feminismo transnacional crescentemente in-
terseccional. O capítulo 1 ao descrever o processo de preparação dessas conferên-
cias, o qual fortaleceu os movimentos e suas articulações no país, mostra também
como o Documento das Mulheres Brasileiras para a IV Conferência Mundial
contribuiu para a ampliação da agenda feminista transnacional ao postular que
“a luta das mulheres não pode prescindir do enfrentamento ao capitalismo, ao pa-
triarcado, racismo e homofobia – que estruturam as desigualdades –, considerando
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a diversidade regional, cultural, racial, étnica, etária, orientação sexual, deficiên-
cia, credo e inserção política de cada uma”. As relações dos contextos nacionais e
internacionais na produção de agendas feministas interseccionais – propiciando
uma maior centralidade ao questionamento da “categoria mulher” enquanto uma
categoria de gênero universal que ignora as diferenças raciais e de classe entre
as mulheres – também é analisada no capítulo 5, “Mulheres negras na institucio-
nalização de políticas contra o racismo e o sexismo: trajetórias e desafios de uma
agenda em aberto”. A autora, Johanna Katiuska Monagreda, analisa o impacto de
conferências regionais da América Latina e Caribe assim como as conferências
mundiais da ONU sobre mulheres (Nairobi 1985 e Beijing 1995) e sobre racismo
e discriminação (Durban 2001) argumentando que o momento mais importante
de reconhecimento das pautas das mulheres negras pelo feminismo nacional e
também de possibilidade de construção de uma agenda política que coloca no
centro a interseccionalidade das discriminações de gênero e raça, foi o processo
preparatório para a Conferência de Durban. Johanna Monagreda argumenta que
com suas intervenções internacionais “as mulheres negras ganharam um novo fó-
rum para levar as suas demandas, e essas demandas ganharam maior legitimidade
frente aos governos nacionais, principalmente, a partir dos acordos e planos de ação
resultados das Conferências Mundiais da ONU”. O capítulo 5 também nos ofere-
ce mais evidências para argumentarmos que a relação dos contextos nacionais e
internacionais é uma relação recíproca ou de mão dupla ao considerar as con-
tribuições das mulheres negras brasileiras à conferência de Durban através das
reivindicações preparadas pela Articulação de Organizações de Mulheres Negras
Brasileiras. Como ressalta Johanna Monagreda, podemos considerar como um
exemplo da força da participação das mulheres negras em Durban, o fato de Edna
Roland, da organização negra Fala Preta, ter sido escolhida como relatora oficial
da Conferência Mundial contra o Racismo. Ademais, como aponta o Capítulo 2
“As mulheres das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres são feminis-
tas?”, de minha autoria, no contexto do desenvolvimento do feminismo transna-
cional, há que se notar o pioneirismo das mulheres negras brasileiras no enten-
dimento da interseccionalidade, tanto enquanto teoria como enquanto práxis, ao
vivenciarem o gênero como intimamente interligado com sua identidade racial e
posições de classe.
Acentuando as conexões dos feminismos local e global, o Capítulo 2 busca
situar teoricamente e comparativamente, as definições de feminismo apresentadas
pelas mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro, em comparação com
as definições correntes e emergentes nas teorias e práxis do feminismo transna-
cional. O Capítulo 2 argumenta que os feminismos brasileiros, construídos por
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várias gerações de mulheres, tem tido uma trajetória, convergente com as dos
feminismos do norte global e do sul global, que vão do feminismo dos direitos dos
anos setenta até o atual feminismo interseccional e emancipatório, o qual vai além
da afirmação dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero, e passa a utilizar
o conceito mais abrangente de justiça social para propor igualdade para toda a so-
ciedade, e não apenas para as mulheres. Para responder a questão inicial: As mu-
lheres das CNPM são feministas?, o Capítulo 2 explora as respostas à questão sobre
as definições de feminismo criando uma tipologia dos entendimentos do conceito
de feminismo pelas delegadas que incluem as categorias 1) Radical negativo, 2)
Igualdade de gênero, 3) Direitos, autonomia e empoderamento das mulheres, e
4) Emancipatória. Ainda buscando responder a questão inicial, em um segundo e
terceiro passos na análise são incluídos indicadores adicionais do feminismo das
delegadas: a) as suas atitudes (crenças e opiniões) em relação a questões relati-
vas às desigualdades não apenas entre mulheres e homens, mas entre as mulheres,
questões sobre desigualdades e discriminação com base na raça, classe, orientação
sexual, e identidade de gênero, e b) seus também seus índices de associativismo
politico e ativismo politico potencialmente intersecionais. O Capítulo 2 conclui
respondendo afirmativamente que as delegadas as CNPMs 2011 e 2016 são ma-
joritariamente feministas, e que seus feminismos são potencialmente interseccio-
nais e emancipatórios, em sintonia com o feminismo transnacional em teoria e
práxis. O capítulo nota que os movimentos feministas no Brasil e das delegadas
das CNPMs evoluíram através de vários contextos políticos e de uma diversidade
de ativistas e ativismos que exigiram múltiplos compromissos e alianças mais am-
plas – muito além de políticas de identidade estritamente definidas. Argumenta-
se que as identidades intersetoriais e as correspondentes afiliações organizacionais
múltiplas de ativistas evoluíram para o que chamamos de feminismo interseccio-
nal, no qual as intersecções geracionais e raciais são fortemente marcadas.
Cabe chamar aqui a atenção novamente para o capítulo 5, onde a autora
ressalta o papel crucial das mulheres negras – não apenas na chamada quarta
onda, mas já sendo colocando na década de setenta – para o desenvolvimento
de abordagens intersecionais nos movimentos feministas e, de maneira recíproca,
dos movimentos feministas para abordagens feministas nos movimentos sociais
e espaços de luta das mulheres negras: “Por um lado, o próprio discurso feminista
se diversificou, assumindo para si um amplo leque de assuntos que interessam à
realidade da vida das mulheres brasileiras: questões de classe, de reforma agrária,
moradia, trabalho doméstico passaram a ser parte da agenda feminista graças ao
fato das mulheres negras o disputarem para si e para o feminismo, se deslocando o
sujeito mulher. Por outro lado, os discursos feministas circularam nos mais diversos
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espaços de luta dessas mulheres”. Como ainda mostra o capítulo 5, estas interco-
nexões entre movimento de mulheres negras e feminismo podem ser observa-
das no ativismo político e civil das delegadas negras na CNPM 2016 – os dados
do survey mostram que 48% das delegadas negras que participam de movimento
feminista também tem alguma interação com a luta antirracista, seja através de
organizações do movimento negro misto, do movimento de mulheres negras, ou
participando de atividades e encontros.
Como foi colocado brevemente acima, o Capítulo 2, ao buscar responder
se o feminismo da maioria das delegadas é um feminismo potencialmente inter-
seccional e emancipatório, analisa as atitudes das delegadas em relação à discri-
minação de gênero e de raça e em relação à inclusão de raça, orientação sexual
e identidade de gênero na agenda do feminismo e mostra como as atitudes das
delegadas são em sua grande maioria inclusivas.
Por sua vez, no Capítulo 4, “A percepção das relações de gênero e raça das
delegadas em perspectiva comparada nacional e entre elas e entre as duas confe-
rências”, Marlise Matos e Ian Prates corroboram a predominância de atitudes ou
percepções de gênero e raciais mais progressistas e destradicionalizadas entre
as mulheres delegadas das CNPMs 2011 e 2016, mas buscam também explicar
o conservadorismo de uma minoria das delegadas. Teoricamente, o Capítulo 4
aposta fortemente na possibilidade da constatação da existência de um processo
em curso de destradicionalização societária através de um movimento dinâmico
de coexistência entre tradição e destradicionalização (manutenção da tradição,
re-tradicionalização e construção de novas tradições): “Desta forma, a tradição
passa a ser compreendida como aberta aos processos de agência humana, sendo,
pois, permanentemente reconstruída, reinterpretada, reinventada”. Empiricamente,
o Capítulo 4 busca responder duas questões centrais: 1) Seria possível identificar
percepções conservadoras e também tradicionais no que tange às relações de gênero
e raça para o eleitorado no Brasil e percepções de gênero e raciais mais progressistas
e destradicionalizadas entre as mulheres delegadas da 3ª e 4ª CNPMs?, e 2) Este tipo
de percepção e de valores é afetado por algum outro tipo de variável sócio-demográ-
fica, tal como escolaridade, renda e religião, por exemplo? Como? Quais são, afinal,
as principais variáveis que condicionam estes tipos de percepção em nosso país e
também entre as delegadas investigadas nesta pesquisa?
Para responder a primeira questão, os autores comparam as respostas a
questões de percepções sobre relações de gênero e raciais de um survey nacional
de eleitores realizada em 2010 com questões do surveys das CNPMs 2011 e 2016.
Mesmo reconhecendo possíveis problemas metodológicos relativos à comparabili-
dade entre os surveys (tais como diferenças entre os contextos políticos e culturais
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e entre os enunciados das questões), os autores distinguem quatro dimensões ati-
tudinais medidas por questões incluídas nos três surveys: 1) o tradicionalismo de
gênero no espaço privado (sustento da família e divisão do trabalho doméstico);
2) a percepção sobre discriminação difusa de gênero e raça (preponderância de
preconceito e discriminação raciais); 3) o preconceito de raça focado em aspectos
cognitivos/motivação (aprendizagem e raça); e 4) a destradicionalização de gêne-
ro (homoafetividade e aborto). Nas quatro dimensões atitudinais sobre gênero e
raça, as delegadas das duas CNPMs apresentam valores percentuais com níveis
bastante superiores de destradicionalização do que a média nacional no eleitora-
do brasileiro.
Para analisar o processo de mudanças nas percepções e valores das delega-
das entre os anos de 2011 e 2016, adicionando novas questões atitudinais incluí-
das no surveys da CNPMs (mas não presentes no survey do eleitorado brasileiro
de 2010) os autores construíram dois índices: o Índice de Relações de Gênero nas
Esferas Privada x Pública e o Índice de Discriminação Difusa de Gênero e Raça.
Apesar das delegadas serem majoritariamente destradicionalizadas ou progressis-
tas nos dois índices, os autores destacam, entre outros achados, que as delegadas
das CNPMs são mais conservadoras no que tange às relações de gênero nas esfe-
ras privada x pública do que com relação à discriminação de gênero e raça.
Para responder a segunda pergunta de pesquisa sobre as causas ou deter-
minantes das percepções conservadoras ou progressistas, os autores, através de
análise multivariada, buscaram identificar os efeitos de dimensões independentes
sobre o comportamento dos dois índices. Entre 2011 e 2016 houve um aumento
do grau de destradicionalização com respeito às percepções medidas pelos dois
índices. Apesar do alto grau de destradicionalização das delegadas em geral, en-
tre os fatores explicativos, destaca-se o impacto das religiões, com as delegadas
protestantes e católicas tendo um grau um pouco mais elevado de conservado-
rismo nos dois índices tanto em 2011 quanto em 2016. No entanto, é importante
ressaltar que este e outros capítulos neste Volume nos permitem perceber uma
relação complexa entre religião e movimento de mulheres e feminismo. Como
veremos mais adiante, o Capítulo 3, “As CNPMs e a configuração do campo femi-
nista: sidestreaming e mainstreaming através do ‘feminismo estatal participativo’”,
de autoria de Marlise Matos e Sonia E. Alvarez, nos mostra que “a participação nos
movimentos religiosos é, e parece continuar a ser importante como porta de entrada,
socialmente legítima e autorizada, para fomentar e recrutar o ativismo político das
mulheres brasileiras”.
Contribuindo para as análise de valores, feminismo e religiosidade nes-
te Volume, no Capítulo 6, “O debate sobre legalização do aborto e a Inclusão de
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diferenças nas 3ª e 4ª Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres: direito ao
corpo e feminismos jovens”, Laura Martello mostra que em ambas as Conferências
as delegadas mostraram-se majoritariamente favoráveis à descriminalização do
aborto, mesmo ainda sendo este um tema controverso entre as mulheres que
construíram as políticas para mulheres. A análise dos dados das CNPM 2016 nos
mostra que a descriminalização do aborto em todos os casos é a posição de mais
de 57% das delegadas, enquanto 28% é favorável a manutenção da lei como ela
se encontra atualmente. Se analisamos o posicionamento das mulheres mais jo-
vens, vemos uma diferença ainda maior, já que mais de dois terços das mulheres
até 24 anos são favoráveis a descriminalização do aborto em todos os casos. O
pertencimento religioso mostrou ser um fator de grande influência nas atitudes
em relação ao aborto, com as posições mais conservadoras sendo mais presen-
tes entre protestante e católicas do que entre as mulheres de outras religiões ou
ateias. As protestantes são as que mostram a maior taxa de apoio à manutenção
da lei como está (30% em 2011 e 44% em 2016), mas ainda há uma proporção
significativa que também é favorável a descriminalização em todos os casos (28%
em ambas as CNPMs). As católicas são majoritariamente favoráveis à descrimi-
nalização do aborto em todos os casos (38,3% em 2011 e 54% em 2016), seguido
pela manutenção da lei como está. Ao verificar que o posicionamento favorável à
criminalização em todos os casos apresenta uma taxa muito baixa, inclusive, entre
as católicas e as protestantes, Laura Martello argumenta que “a perspectiva social
das mulheres, enquanto grupo, ainda pesa mais que o seu pertencimento religioso”.
Reforçando esta interpretação dos dados, os resultados dos surveys mostram que
a autodeclaração como “feministas” e a participação em grupos de mulheres são
os fatores que mais influenciam as atitudes favoráveis ou contrárias a descrimina-
lização do aborto
No Capítulo 6, Laura Martello também vai acrescentar o fator geracional
à análise das percepções e feminismo e o articula com a crescente intersecciona-
lidade da quarta onda argumentando que ao transpassar as diversas estruturas e
espaços no campo do feminismo, e devido as suas forte orientação ao presente e
às experiências concretas, “a articulação das jovens feministas se dá na interseção
com outras categorias sociais, estando presentes suas experiências como jovens ne-
gras, jovens rurais, jovens lésbicas, jovens de origem popular e a partir da identifi-
cação com grupos culturais e ideológicos”. Contrariamente ao discurso recorrente
de que as mulheres jovens não se interessam pelo feminismo, na sua análise dos
dados do survey 2016, Laura Martello aponta que a totalidade das delegadas mais
jovens – de 18 a 44 anos – se consideram feministas. O Capítulo 6 também dis-
cute como os feminismos jovens se mobilizam intensamente em prol dos direitos
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sexuais e reprodutivos e, em especial, em defesa do aborto legal, seguro e gratuito.
Como Laura Martello relata, no contexto dos empasses sobre as decisões relativas
ao aborto durante a 4a CNPM, foram feministas jovens que performaticamente
entraram na plenária, “a maioria com os seios desnudos, entoando cantos em defesa
da autonomia da mulher sobre o próprio corpo – impactando uma votação aparen-
temente empatada e levando o texto que versava sobre a legalização do aborto a ser
incluído na versão final das deliberações”. De maneira convergente, o Capítulo 1,
por sua vez, ao analisar as ondas do feminismo, não apenas afirma que A Marcha
das Vadias (um movimento internacional liderado por jovens feministas) revigo-
rou os feminismos, mas também ressalta a interessante continuidade de agendas
feministas da quarta e segunda ondas argumentando que nas Marchas das Vadias
“diferentes reivindicações de diferentes gerações de mulheres se encontraram nas
ruas, recuperando a irreverência que havia marcado a segunda onda feminista e re-
tomando palavras de ordem como ‘nosso corpo nos pertence’ ou ‘meu corpo, minhas
regras’ fazendo ecoar no presente as duras batalhas dos anos 1970”. Ressaltando a
importância das concepções e práxis renovadoras, no capítulo 6 Laura Martello
também chama a atenção para o fato da participação dos feminismos jovens nas
CNPMs 2011 e 2016 ter se dado através de um número muito reduzido de dele-
gadas. A autora desenvolve argumentos e análises que alertam para as consequên
cias da subrepresentação das feministas jovens para as políticas para mulheres.
A relação entre Estado e sociedade e a relação feminismo e Estado (ou au-
tonomia e institucionalização) são temas que também perpassam vários capí-
tulos deste volume. Ressalta-se que o período de 2003 a 2016 foi marcado pelo
fortalecimento institucional da igualdade de gênero no país – a criação da SPM
– e a formulação de políticas por meio das Conferências e Planos Nacionais de
Políticas para as Mulheres criando uma nova relação de movimentos de mulheres
e feministas com e dentro do Estado – o surgimento do “feminismo estatal parti-
cipativo”. Uma das principais hipóteses de estudo é que esse novo processo brasi-
leiro – reconhecido internacionalmente como um dos projetos mais amplos para
a implementações das recomendações da Plataforma de Ação de Beijing sobre
desenvolvimento institucional e formulação de políticas – transformou a integra-
ção anterior de questões de gênero naquilo que Marlise Matos definiu no volume
1 como feminismo participativo de Estado. Nessa nova forma de feminismo e em
sua articulação com o Estado, houve uma participação de baixo para cima na de-
finição de questões, recursos, implementação e processos de monitoramento. No
período de 2003 a 2016, o Estado desempenhou um papel central na criação de
mecanismos participativos institucionais para promover a igualdade de gênero,
reunindo movimentos e organizações autônomas e promovendo sua participação
na tomada de decisões e políticas públicas.
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O contexto internacional e, mais especificamente a Plataforma de Ação que
resulta da IV Conferência Mundial das Mulheres em Beijing 1995, também vai
ter um papel central na promoção da transversalidade (ou mainstreaming) dos
feminismos brasileiros. A noção de mainstreaming proposta em Beijing, envolve
fluxos “verticais” de atuação das feministas e dos seus discursos e práticas em
direção aos partidos, ao Estado e às instituições intergovernamentais, às arenas
onde se formulam, disputam e implementam projetos políticos e políticas públi-
cas. O capítulo 1 nos mostra como o governo Fernando Henrique Cardoso, com
o objetivo de implementar a Plataforma de Ação, firmou uma série de protoco-
los de cooperação com os Ministérios da Justiça, do Trabalho, da Educação e da
Saúde e elaborou, com a contribuição dos conselhos estaduais e municipais, as
estratégias para promover a igualdade. Contudo, a articulação “ideal” do contexto
internacional de promoção da transversalidade com o contexto político nacional
se dá apenas nos governos petistas (na terceira onda do feminismo na concepção
de Shuma Schumaher, ou quarta onda, na concepção de Marlise Matos), espe-
cialmente com a criação da Secretaria Especial de Políticas Para Mulheres, com o
status de ministério. É neste momento que a adoção da transversalidade e inicia-
tivas para a despatriarcalização do Estado se intensificaram com a criação de no-
vos mecanismos institucionais e formulação de políticas públicas para mulheres
com ampla participação da sociedade civil, com novas propostas de relação entre
Estado e sociedade, e entre feminismo e Estado.
No Capítulo 3, “As CNPMs e a configuração do campo feminista: sidestrea-
ming e mainstreaming através do ‘feminismo estatal participativo’”, Marlise Matos
e Sonia E. Alvarez buscam avançar uma posição teórica que reconhece interações
complexas entre Estado, sociedade política e sociedade civil, entre as próprias or-
ganizações dos movimentos e da sociedade civil em geral (dentre elas o feminis-
mo), e entre as formas mais institucionalizadas de organização política (sindi-
catos, entidades profissionais, por exemplo). O capítulo 3 traça as trajetórias, os
principais caminhos políticos trilhados e as formas de participação e articulação
das delegadas as CNPM 2011 e 2016, e delineia as relações das organizações que
elas representavam com outras entidades na sociedade civil e política e, também,
com variadas instâncias do Estado. Com isto, o capítulo analisa como o mains-
treaming ou fluxos verticais (em direção aos partidos e às instituições do Estado,
inclusive aquelas “híbridas”, como os conselhos, que tem representantes da socie-
dade civil e do Estado) se vinculam ao sidestreaming ou fluxos horizontais “para
configurarem um setor significativo do campo feminista brasileiro atual, cujos refe-
rentes principais são o Estado e as arenas de políticas públicas”.
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As instituições/organizações que tramam a rede do sidestreaming feminista
das delegadas entrevistadas nessa pesquisa incluem as organizações do associati-
vismo comunitário (e sua diversidade temática que aparece através das distintas
questões com as quais lida: mulheres, moradia, bairro, donas de casa etc.), o mo-
vimento estudantil, o movimento negro, o movimento LBTG, o movimento de
juventudes, o movimento indígena, o movimento rural, além das organizações
sindicais e também das ONGs. E como exemplos de organizações que tramam
a rede do mainstreaming feminista as autoras incluem os conselhos (instituições
híbridas, mas que são viabilizadas pelo Estado), os partidos políticos, as entidades
de classe (tais como a OAB e o CRM), e as organizações do próprio Estado (seja
no Poder Executivo, no Legislativo ou no Judiciário).
O capítulo 3 analisa a multidimensionalidade das articulações entre sides-
treaming e mainstreaming mapeando quatro tipos de redes: 1) redes de trajetórias
(que identificaram o caminho das trajetórias do ativismo político das delegadas
entre as organizações e/ou movimentos dos quais elas participam); 2) redes de
participação (que representaram as formas organizativas dessa participação poli-
tica das delegadas); 3) redes de articulação (que descrevem graficamente as formas
como as organizações e movimentos nos quais as delegadas participam se articu-
lam entre si), e, finalmente; 4) redes de fluxos (que visaram mapear a direção dos
materiais e recursos que são produzidos pela organização/movimento do qual as
delegadas declararam participar).
As Redes de Trajetórias e suas interações mostram que quando as delegadas
chegam aos movimentos de mulheres, elas já passaram por outras formas de ati-
vismo anterior. Os movimentos feministas e de mulheres não se constituem nas
principais “portas de entrada” para a maioria das delegadas, mas estão presen-
tes nas trajetórias delas principalmente como seus elos intermediários. O mesmo
ocorre, em parte, com a participação em Conselhos que algumas vezes são elos
intermediários e em outros momentos também aparecem como pontos de chega-
da das trajetórias.
Outra descoberta central do Capítulo 3 foi que a principal base política
formadora do ativismo político das delegadas nas CNPMs brasileiras foi a parti-
cipação em movimentos estudantis e nos movimentos ligados à religião. Mas, ar-
gumentam as autoras, “talvez, o principal elemento analítico de significância que
precisa ser destacado sobre essas trajetórias refere-se à atuação das delegadas nos
movimentos negros e também no ativismo de redes de mulheres negras. Para 2016,
este ativismo se conformou em um ‘ponto de chegada’ das trajetórias das delegadas
da 4ª CNPM. Isso demonstra a inequívoca importância do ativismo das mulheres
negras na ocupação mais recente desses espaços das CNPMs”. Cabe lembrar aqui,
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como é ressaltado no capítulo 5, que em ambas as Conferências, a participação de
mulheres negras (pretas e pardas) é percentualmente maior que o das delegadas
brancas além de ser superior, em termos percentuais, à distribuição de mulheres
negras no Brasil. Ademais, mais de dois terços em 2011 e mais da metade em 2016
das delegadas negras nas CNPM o fizeram como representantes da sociedade civil
(movimentos, redes, sindicatos etc.).
No caso das redes de Participação política, de maneira similar ao observa-
do para as redes de trajetórias e das interações entre as trajetórias, as principais
organizações de participação das delegadas são mais uma vez o movimento de
mulheres e feminista e movimentos relacionados à igreja/religião, mas aparecendo
no centro dessas redes a participação em partidos políticos. Merece aqui saliência
a força de interação entre os movimentos de mulheres e feminista e as redes de
mulheres negras, tanto em termos da quantidade maior das interações, quanto da
força dessas interações.
Em se tratando das redes de Articulação, as autoras destacam o fato de ter
sido constatada menor densidade das articulações de rede para o ano de 2016 em
comparação a 2011. Em 2011, a rede das articulações institucionais se estabeleceu
centralmente entre os movimentos de mulheres e feministas, associativismo comu-
nitário, movimento negro e conselhos. Já em 2016, apesar da trama de articulações
ser menor, ela se deu através das interações com o poder executivo, o associati-
vismo comunitário, os movimentos de mulheres e feministas e o movimento negro.
No caso das redes de Fluxos de materiais, de acordo com o survey 2011
assim como o de 2016, os movimentos feministas e de mulheres dos quais as de-
legadas participam produziram material para outros movimentos feministas e de
mulheres e a organização no 2º lugar para quem se produziu mais materiais ou
ações foi o movimento negro,
As autoras concluem que análises das redes reforçam alguns limites do ati-
vismo estatal participativo: “ele não pareceu alcançar formas de articulações que
pudessem funcionar como centrais para promover transformações substantivas nos
padrões hierárquicos e verticalizados das relações de gênero a partir do Estado”.
Os dados analisados pelas autoras no Capítulo 3 confirmam assim a sua
formulação de que “as ideias feministas hoje no Brasil realmente se articulam e
viajam ao longo de múltiplas teias organizacionais e a partir de matrizes discursivas
nas quais as delegadas das CNPMs fazem/fizeram parte. Elas certamente consti-
tuem e organizam o ‘subcampo’ do ativismo feminista no Estado, vislumbrando o
‘sidestreaming via mainstreaming’ e vice-versa das questões relacionadas a gênero,
mulheres e feminismo nas políticas públicas”.
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É relevante também observar que ao analisar o sidestreaming feminista, o
Capítulo 3 reforça e vai além das análises recorrentes nos outros capítulos deste
volume sobre a interseccionalidade das práxis e agendas das delegadas das confe-
rências, e oferece uma contribuição inovadora e detalhada das trajetórias de cons-
trução das interconexões entre instituições, movimentos e organizações nos quais
as delegadas participaram e participam.
Em uma outra contribuição as reflexões sobre as relações entre feminismo
e Estado, o Capítulo 7, de Breno Cypriano, “Divisão sexual do trabalho e usos do
tempo: a inserção temática e o feminismo acadêmico na SPM e as percepções das
mulheres participantes das CNPMs no Brasil”, analisa mais especificamente a im-
portância do feminismo acadêmico e sua complexa relação com a construção do
Estado brasileiro e a formulação das políticas públicas do feminismo participativo
de estado que vigorou em 2003 – 2016. Como mostra Breno Cypriano, “no Brasil,
a Secretaria de Política para as Mulheres a partir das demandas das duas primeiras
Conferências de Políticas para as Mulheres, empenhou-se para que as estatísticas
oficiais brasileiras incorporassem quesitos referentes a sexo”. E aqui, mais uma vez,
se ressalta também a importância das articulações dos feminismos brasileiros com
o feminismo transacional, pois é a Plataforma de Ação de Beijing que demanda
dos Estados signatários a coleta de dados através da metodologia dos usos do
tempo, “a qual melhor permite a mensuração do ‘não trabalho’ realizado por mulhe-
res no ambiente doméstico, e a demonstração empírica da subordinação econômica
feminina”. Entre as perguntas do survey de 2016 analisadas por Breno Cypriano
que abordam a divisão sexual do trabalho, destaca-se a pergunta estimulada sobre
as iniciativas da Secretaria de Politica para as Mulheres para tentar superar os
vários motivos que levam as mulheres a terem uma posição inferior aos homens
no mercado de trabalho. Os principais motivos apontados pelas delegadas foram,
em primeiro lugar, apoiar “projetos que visam desnaturalizar a divisão sexual do
trabalho que estrutura as desigualdades na vida das mulheres”. Breno Cypriano
conclui, a partir desta e outras análises que apresenta no capítulo 7, “que a dis-
cussão sobre o público e o privado, o cuidado, a divisão sexual do trabalho e os usos
do tempo quando verificadas empiricamente são cruciais para o entendimento da
política e das formas das mulheres de atuarem politicamente enquanto atoras políti-
cas, tornando-se fatores imprescindíveis para a elaboração e formulação de políticas
públicas.”
Cabe notar aqui que o capítulo 5, “Mulheres negras na institucionalização
de políticas contra o racismo e o sexismo: trajetórias e desafios de uma agenda em
aberto”, acrescenta a perspectiva racial às considerações sobre o público e o pri-
vado nas abordagens e agendas feministas: “Enquanto o feminismo refletia sobre a
19
divisão sexual do trabalho que designava às mulheres o lugar do privado-doméstico/
reprodutivo e aos homens o lugar público-político/produtivo, e sobre a necessidade
de romper com essa divisão, esquecia que a ocupação do espaço público por parte
das mulheres brancas (educação, trabalho, militância política) era possível porque
outras mulheres racializadas ocupavam esse lugar do cuidado graça à divisão sexual
e racial do trabalho doméstico”. As interligações entre gênero, classe e raça certa-
mente são fundamentais nas distinções entre as esferas do privado e do público
no patriarcado racial vigente na sociedade brasileira. Assim, a autora também ar-
gumenta como a participação de mulheres negras nas CNPM dá centralidade a
demandas raciais históricas e resulta em diretrizes, tais como garantia de direitos
trabalhistas para empregadas domésticas, na formulação de políticas de igualdade
de gênero.
Após esta breve exploração de temas centrais aos capítulos deste Volume
– como os contextos históricos e políticos, nacionais e internacionais nos quais
agendas feministas emergem se transformam e se (re)significam, as relações en-
tre os feminismos locais/nacionais e o feminismo transnacional ou translocal, a
interseccionalidade, as interconexões entre movimentos de mulheres e feministas
com outros movimentos e organizações identitários e de classe, e as relações entre
feminismo e Estado, entre outros – encerramos aqui esta introdução ao Volume
2 convidando as/os leitores/as a ler e explorar as indagações e reflexões específi-
cas levantadas e proporcionadas por cada capítulo. Nesta introdução buscamos
apenas apontar, mesmo que de maneira bastante sucinta, temas e questões cen-
trais que perpassam os vários capítulos e suas análises de elementos centrais ao
feminismo estatal participativo brasileiro, construído por mulheres e feministas de
todo o Brasil representadas pelas delegadas as CNPM de 2011 e 2016.
20
Os movimentos feministas ontem e hoje no Brasil:
desafios da sua institucionalização
Schuma Schumaher1
21
Ao abordar esse período levarei em conta o refluxo na movimentação feminista,
durante e pós-ditadura Vargas.
A segunda onda teve início no final dos anos 1960 num momento de crise
da democracia brasileira. Além de batalhar pela igualdade, pela valorização do
trabalho da mulher, o direito ao prazer e contra a violência sexual, também lutou
contra a ditadura militar. O novo feminismo estava apoiado, principalmente, nas
ideias da escritora francesa Simone de Beauvoir, expressas em seu livro O segundo
sexo, publicado pela primeira vez em 1949.
A passagem para a terceira onda, nas últimas décadas do século XX, quan-
do a sociedade brasileira vivia um momento importante na política, foi recheada
de muitas críticas e polêmicas, especialmente pelas mulheres negras que questio-
navam o discurso da mulher universal, considerando-o excludente, uma vez que
as opressões atingem de maneira diferenciada as mulheres. É nessa década que
esquentam o debate e as tensões sobre a incorporação da questão racial na agenda
feminista, sobre o conceito de gênero e seu binarismo e sobre a institucionalização
do feminismo com o surgimento de várias ONGs e a implantação de mecanismos
de políticas para as mulheres na estrutura do Estado. Judith Butler se destaca nes-
se período ao problematizar os binarismos, particularmente ligados a discussões
sobre corpo, gênero e sexualidade. Foi também nesse período que o movimen-
to feminista teve sua agenda ampliada em virtude do ciclo de Conferências pro-
movido pelas Nações Unidas, como a Eco 92 – Conferência das Nações Unidas
para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1992; a Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos, Viena, 1993; a Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento, Cairo, 1994; a IV Conferência Mundial da Mulher,
Beijing, 1995; e a Conferência Mundial sobre Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Correlata, Durban, 2001.
Considerado por muitos estudiosos o movimento social mais importante
do século XX, o feminismo entrou no século XXI trazendo velhas questões, como
por exemplo, a modesta presença das mulheres nos espaços de decisão e poder,
além do acirrado debate sobre gênero na sociedade. Judith Butler se destaca nes-
se período ao problematizar os binarismos, particularmente ligados a discussões
sobre corpo, gênero e sexualidade. Uma quarta onda feminista, iniciada com a
Marcha das Vadias somada à potente Marcha das Mulheres Negras e Primavera
Feminista, emergiu e cresceu num cenário de acirramento das posições funda-
mentalistas contrárias à autonomia das mulheres, do debate sobre intersecciona-
lidade e trazendo novas estratégias de resistência através das tecnologias virtuais
e retomada das ruas.
22
A primeira onda feminista
23
também ensinavam a rezar para afastar os “maus pensamentos”. Na primeira es-
cola normal do país, criada em 1835, em Niterói, não eram admitidas matrículas
de moças. Manter meninas e escravos no berço da ignorância justificava-se com
preconceituosos ditos populares: “Mulher que sabe latim não tem marido nem
bom fim” e “Escravos que sabem ler acabam querendo mais do que comer”.
Contudo, escrever era uma ferramenta importante para as mulheres da
época, embora a produção jornalística e literária das brasileiras se mantivesse
confinada às páginas dos diários secretos. Indignadas, algumas corajosas pionei-
ras dispuseram seus talentos, suas inteligências e criatividade para desafiar o con-
servadorismo de sua época. As primeiras vozes levantadas timidamente no acaso
do século XIX levaram a uma irretroagível insurreição feminina.
Nísia Floresta, intelectual nascida no Rio Grande do Norte, é personagem
marcante desses tempos, cem anos antes da conquista do voto para as mulheres.
Escrevia sobre a escravidão, o sofrimento dos índios e a qualidade do ensino. Mas
escrevia acima de tudo sobre a mulher. Suas ideias contestatórias foram publica-
das no jornal pernambucano Espelho das Brasileiras, em 1931. Os textos de Nísia
afirmavam que as mulheres tinham tanto direito quanto os homens a uma educa-
ção plena. Em 1832, lançou o primeiro de seus 14 livros – Direitos das mulheres e
injustiça dos homens, tradução adaptada à realidade brasileira do livro Vindication
of the Rights of Woman, da inglesa Mary Wollstonecraft, publicado em 1792. A
defesa da emancipação feminina através da educação a levou a fundar um colégio
para meninas com proposta curricular avançada, tornando-se precursora dos ide-
ais de igualdade e autonomia das mulheres.
Úrsula, escrito pela negra maranhense Maria Firmina dos Reis em 1859,
é considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro escrito por uma mu-
lher. Foi em São Luís que Maria Firmina fundou uma escola mista e gratuita para
crianças pobres – iniciativa considerada ousada para a época –, na qual lecionou
até aposentar-se, em 1881.
As publicações do período, escritas e dirigidas por mulheres, tratavam dos
mais variados assuntos e alcançavam um diversificado público leitor. Um traço
comum a essa imprensa era não se ater apenas aos temas da culinária, da etiqueta
e da moda, mesclando reflexões sobre assuntos fervilhantes, ousando defender
a abolição da escravatura, a queda da monarquia, o acesso das mulheres às uni-
versidades, o divórcio e o direito ao voto. Ou seja, revolucionando a imprensa da
época!
Das lutas enfrentadas pelas mulheres para conquistar o acesso à educação,
o ingresso nos cursos superiores representou uma das mais difíceis batalhas. Em
1875, Maria Augusta Generoso Estrela e Josefa Águeda Felisbela Mercedes de
24
Oliveira que, embora aptas, tinham sido recusadas no curso de Medicina, deci-
diram “exilar-se” nos Estados Unidos para seguir sua vocação. A decisão ganhou
grande repercussão na imprensa e debate na sociedade, que acompanhou pas-
so a passo a trajetória delas em terras norte-americanas através da publicação
A Mulher, produzida por ambas e distribuída periodicamente aos principais jor-
nais do Brasil.
Eram exceções. As jovens estudantes brasileiras foram obrigadas a esperar
até 1879, quando finalmente o governo imperial se rendeu e permitiu, condicio-
nalmente, a entrada das mulheres nas faculdades. Entretanto, as solteiras deve-
riam apresentar licença de seus pais. As casadas, o consentimento escrito por seus
maridos.
As duas primeiras Constituições Brasileiras, a de 1824 e a republicana de
1891, não chegavam nem a mencionar as mulheres no rol dos excluídos ao voto.
No entanto, foram necessários mais de 40 anos de luta para conquistar esse direito.
As mulheres sempre enfrentaram severos preconceitos na vida social e po-
lítica brasileira. Em 1910, Leolinda de Figueiredo Daltro ocupou ousadamente a
cena pública com suas ideias vanguardistas em defesa das mulheres e dos índios.
Ao ter seu alistamento eleitoral recusado, fundou no Rio de Janeiro o Partido
Republicano Feminino, cujo objetivo era mobilizar as mulheres pelo direito ao
voto. A essa rebeldia estratégica se somaram dezenas de mulheres que, numa mar-
cha memorável, tomaram as ruas da cidade.
A proteção à maternidade e à infância torna-se tema de atuação pública
das mulheres, assim como as difíceis condições no mundo do trabalho também
começaram a fazer parte da pauta de suas preocupações nas primeiras décadas do
século XX. Desvalorizada, desqualificada, a força de trabalho feminino era explo-
rada a preços muito inferiores aos pagos ao trabalhador adulto do sexo masculino
e, diante das restrições e das condições injustas, surgiram os primeiros protestos.
Anarquistas como Tereza Fabri e Teresa Carini tiveram destaque em São Paulo na
elaboração de um manifesto convocando as costureiras – um grande contingente
de operárias na época – a lutar pela redução da jornada de trabalho para oito
horas diárias.
A participação das operárias têxteis foi significativa na greve geral de 1917.
Fortalecidas, dois anos depois, elas organizaram paralisação histórica noticiada
pelo Jornal do Brasil como a “greve das abelhas de luxo”. O movimento foi lide-
rado por Elvira Boni de Lacerda, uma das fundadoras da União das Costureiras,
Chapeleiras e Classes Anexas. As trabalhadoras também puderam contar com o
envolvimento da militante comunista Laura Brandão, que durante anos escreveu,
discursou e panfletou nas portas de fábrica defendendo as causas das operárias.
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E em 1936, a mineira radicada em Santos (SP) Laudelina de Campos Melo,
indignada com o racismo presente, especialmente no mundo do trabalho, deci-
diu criar uma Associação de Empregadas Domésticas para defender a categoria,
composta majoritariamente de mulheres negras, que eram preteridas na hora das
contratações em favor de uma trabalhadora branca, e tornar públicas as péssimas
condições de trabalho.
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, com as mulheres “voltando para
casa”, a proteção ao trabalho da mulher passou a ser preocupação dos homens
públicos em nível internacional. O Tratado de Versalhes pioneiramente recomen-
dou salário igual para trabalho igual, sem distinção de sexos. Abriu-se, assim,
grande avenida para um movimento que desaguaria numa das mais importantes
mudanças ocorridas no século passado: o movimento feminista. A partir de 1920,
batizados de Ligas para o Progresso Feminino, grupos de mulheres se formaram
em todo o país. Dois anos depois, a líder dessa emergente e triunfante corrente
sufragista, a bióloga paulista recém-chegada da Europa, Bertha Lutz, organizou
no Rio de Janeiro o I Congresso Internacional Feminista. Consolidou-se assim a
criação da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, unindo em torno de
si as ligas estaduais e exercendo papel central na mobilização das mulheres, na
ocupação de espaços na imprensa, na montagem de estratégias para a conquista
do sufrágio feminino.
Porém, as feministas foram constatando, com indignação, que o engaja-
mento na luta política e suas conquistas no campo da educação não foram su-
ficientes para que os poderes constituídos reconhecessem seus direitos de cida-
dãs. Lideradas por Bertha Lutz, Carmem Portinho, Josefina Álvares de Azevedo,
Maria Eugênia Celso e tantas outras, iniciaram uma campanha aguerrida em vá-
rias frentes e cidades. A fim de pautar o debate público e convencer os parlamen-
tares, criaram diversas estratégias voltadas para a sociedade e para o Legislativo.
Publicações, cartas à imprensa, seminários, manifestações artísticas e até panfle-
tagem aérea eram armas de mobilização da opinião pública, dos congressistas e
da população.
A pedagoga mineira Maria Lacerda de Moura, colaboradora na fundação
da Federação pelo Progresso Feminino, questionou o discurso “ameno e refor-
mista” das sufragistas e optou por maneiras mais contundentes de atuar na cena
política. Adepta do amor livre e plural, aproveitou todas as oportunidades para
manifestar-se a favor da educação sexual e contra a moral vigente e as posições da
Igreja. Reconhecia que as relações mantidas pelas mulheres com seu corpo, com
os homens, na família e no trabalho eram temas mal discutidos pela sociedade.
Reivindicava a inclusão no currículo de todas as escolas femininas da disciplina
“História da mulher, sua evolução e missão social”.
26
Musa do Modernismo, a escritora e ativista política Patrícia Galvão, a Pagu,
escandalizou a sociedade tradicional com suas roupas extravagantes, seus cabelos
curtos e chapéus, com o cigarro entre os dedos num tempo em que fumar em pú-
blico era imperdoável para uma moça de família. Numa época em que as mulhe-
res em geral viviam e se vestiam de forma recatada e discreta, Pagu foi símbolo de
atrevimento – feminista assumida, escreveu romances, crônicas, poesias e dirigiu
peças teatrais. Na sua mistura de militância comunista com defesa dos direitos das
mulheres, Pagu, à frente do seu tempo, é ainda hoje ícone das lutas pela emanci-
pação feminina. Seu nome batiza diversas iniciativas feministas contemporâneas.
Com habilidade política e capacidade de articular alianças, as sufragistas
foram conseguindo adesões em vários espaços e cidades. Até que, em 1927, a lei
eleitoral do Rio Grande do Norte concedeu direito de voto às potiguaras. Ao ser
eleita para governar a cidade de Lage (RN), Alzira Soriano se tornou, um ano
depois, a primeira prefeita da América Latina.
Com a brecha aberta pelas norte-rio-grandenses, ainda que seus votos te-
nham sido cassados, as mulheres continuaram insistindo no desejo de exercer
esse direito. Um abaixo-assinado contendo 2 mil assinaturas foi entregue aos par-
lamentares com o objetivo de pressioná-los a aprovar o projeto de lei que tramita-
va no Congresso. O documento, amplamente divulgado pela imprensa e hoje pre-
servado no Arquivo Histórico do Senado Federal, era um retrato da realidade das
brasileiras de então. “Desde que uma só exista, não há motivo para que não sejam
eleitoras todas as mulheres habilitadas do Brasil”, argumentavam as signatárias:
Reclamando esses direitos, não fazemos mais do que fizeram e estão fazen-
do as mulheres de todos os países civilizados. É princípio do regime demo-
crático, universalmente reconhecido, que, aqueles que obedecem às leis e
pagam impostos, assistem o direito de colaborar, direta ou indiretamente,
na elaboração dessas mesmas leis e votação desses mesmos impostos. [....]
A economia doméstica e a organização da família estão inteiramente ligadas
à organização social e econômica do país. São problemas coletivos que não
toleram mais as situações individuais. Não podem deixar indiferentes as do-
nas de casa, as mães de família, cujos filhos, na frequência diária de jardins
da infância, escolas, oficinas, academias e cinemas, se acham expostos às
vicissitudes do meio ambiente. O nosso Código Civil, afastando-se de ou-
tros menos liberais, deu à mulher brasileira uma situação privilegiada, con-
siderando a esposa como companheira do marido e não como sua inferior,
não lhe exigindo na sociedade conjugal obediência, mas sim colaboração.
Sendo a mãe a tutora natural dos filhos, dotada de pátrio poder, elevou-se
legalmente ao nível dos homens, cujas responsabilidades políticas está ha-
bilitada a compartilhar. (LUTZ et al., 1927 apud SCHUMAHER; VITAL
BRASIL, 2000, p. 220).
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O texto segue discorrendo sobre a evolução das conquistas das mulheres
em outros países e termina assinado pela presidenta da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino Bertha Lutz, suas diretoras e outros destacados nomes da
sociedade brasileira.
Em meio a tantas polêmicas e embates no Congresso Nacional, em 24 de
fevereiro de 1932, as mulheres concretizaram a maior conquista do século XX: o
direito de votar e serem votadas.
Na conturbada e efervescente agitação dos anos 1930, outro desafio esta-
va colocado: promover a candidatura das feministas para a Assembleia Nacional
Constituinte de 1933. Entre os 254 votantes, contabilizando os eleitos e os repre-
sentantes classistas, duas vozes eram de mulheres: Carlota Pereira de Queiroz,
médica eleita por São Paulo, que se tornou a primeira deputada federal do Brasil,
e a advogada alagoana, ativista feminista negra Almerinda Farias Gama, que, atra-
vés de uma estratégia bem-sucedida da Federação pelo Progresso Feminino, re-
presentou o Sindicato das Datilógrafas e Taquígrafas do Distrito Federal. É dela a
foto introduzindo o voto na urna, em julho de 1933, estampada em várias publi-
cações desde então.
A fim de se preparar para enfrentar as eleições gerais de 1934, a Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) voltou à cena patrocinando acirrada
campanha nacional para eleger mulheres comprometidas com a agenda de di-
reitos. Nessa fase, a FBPF dava os seus primeiros passos no sentido de se tornar
o principal canal de representação política do movimento feminista no Brasil.
Reunidas suas integrantes em Salvador, por ocasião da 2ª Convenção Feminista
Nacional, a Federação traçou o novo plano de ação para a entidade, cujas di-
retrizes eram a organização de filiais nos estados onde ainda não existisse uma
Federação e instituir um novo desenho hierárquico, composto por uma líder na-
cional, uma presidente estadual e várias secretárias regionais. A reestruturação da
FBPF previu, também, a existência de dois tipos de sócias, as ativas e as colabora-
doras voluntárias.
Desse encontro resultaram também mudanças nos rituais da FBPF, com
o uso de símbolos que caracterizassem a identidade, bandeira, hino e cores pró-
prias, além da formulação do Decálogo Feminista, que passou a ser divulgado
no Boletim – periódico editado pela entidade a partir do seu primeiro número,
datado de outubro de 1934, com dez princípios. Diz esse que toda mulher deve:
28
triunfo dos seus ideais; 8) Votar somente em quem for feminista; 9) Bater-
se pela conquista e pleno exercício de seus direitos sociais e políticos; e 10)
Trabalhar pelo aperfeiçoamento moral, intelectual, social e cívico da mu-
lher. (SCHUMAHER; VITAL BRASIL, 2000, p. 223).
29
de creches e bibliotecas infantis públicas, e a campanha pela independência na-
cional. Dentre as principais iniciativas das mulheres de cunho nacionalista figura
a campanha “O Petróleo é Nosso”, bem como as campanhas contra a carestia. O
vigor da luta contra a carestia pode ser avaliado pela criação pelo Governo da
Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab), como resposta às seguidas
manifestações das mulheres nos anos 1950.
A Liga Feminina da Guanabara teve seu auge de atuação no ano de 1961,
quando reuniu um manifesto com 100 mil assinaturas contra a alta do custo de
vida. Uma caravana de associadas levou o documento a Brasília. No mesmo ano
realizou-se, no Rio de Janeiro, o II Encontro Latino-Americano de Mulheres, que
contou com representantes de organizações feministas de diversos países.
Os grupos de mulheres de tendência conservadora foram estimulados pelas
elites que queriam derrubar o governo João Goulart. Uma das mais significativas
organizações nessa linha foi a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde).
Depois da reviravolta política, com a implantação da ditadura militar, as organi-
zações de mulheres, mesmo as de vertentes conservadoras, praticamente sumiram
do cenário político.
Contudo, as organizações de mulheres progressistas acabaram por se frag-
mentar pelas divergências políticas e terminaram sendo extintas com a chegada
dos militares ao poder, em 1964, interrompendo o sonho da participação política
popular no Brasil. Sindicatos, associações e partidos seriam fechados ou “coopta-
dos” pelo estado ditatorial. A cultura e a liberdade de expressão também seriam
duramente perseguidas com a instituição da censura.
No mundo ocidental, os anos 1960 foram marcados pela luta das chama-
das “minorias” pelos direitos civis. Nos Estados Unidos, paralelamente à luta dos
negros americanos por cidadania plena e os movimentos políticos contrários à
guerra do Vietnã, viu-se o ressurgimento do movimento de mulheres. Essa nova
“onda feminista” distanciava-se da sua primeira versão da luta pelo direito ao voto
em fundamentos teóricos e em propostas de luta. O feminismo dessa segunda
onda estava apoiado, principalmente, nas ideias da escritora francesa Simone de
Beauvoir, expressas em O segundo sexo, publicado na França em 1949. Referência
durante décadas para a nova organização internacional do movimento de mu-
lheres, Simone questionava as relações sociais, estruturadas hierarquicamente e
naturalizadas, que sustentaram durante séculos as desigualdades entre homens e
mulheres.
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Sob a frase “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, a filósofa francesa
promoveu a primeira separação entre sexo e gênero, sem a qual, para muitas, não
haveria feminismo possível. Ao retirar da biologia o caráter determinista do com-
portamento feminino, Simone de Beauvoir abriu espaço para as discussões sobre
a igualdade das mulheres na sociedade e para o surgimento do que hoje se chama
de estudos de gênero.
Nos EUA, a nova fase do movimento de mulheres teve como ponto de
partida a publicação, em 1963, do livro A mística feminina, de Betty Friedan, no
qual ela denuncia as inúmeras estratégias de confinamento das mulheres na es-
fera doméstica e propõe novas formulações para a reorganização do feminismo.
Ela busca explicar o que chamou de “o mal que não tem nome”, representando a
angústia do eterno feminino, da mulher sedutora e submissa, cujas possibilidades
de realização eram a família, a maternidade e o lar.
Com o surgimento da pílula anticoncepcional, a prática sexual ganhou no-
vos contornos – e possibilidades! –, começando assim um lento processo de sepa-
ração entre sexo e reprodução. O uso de contraceptivos mais seguros possibilitou
às mulheres planejar quando e quantos filhos queriam ter e viver sua sexualidade
sem associá-la à gravidez. O novo método interferiu diretamente nas relações en-
tre homens e mulheres, uma vez que podia ser usado sem o conhecimento dos
pais, do marido ou de quem quer que fosse. Se por um lado as mulheres esta-
vam “liberadas para o prazer”, sua condição legal ainda era bastante restritiva. Até
1962, o Código Penal brasileiro tutelava as mulheres casadas aos desejos e deci-
sões de seu marido. A lei não permitia que a mulher trabalhasse fora nem viajasse
sem o consentimento do “chefe da casa”.
A difusão do novo pensamento feminista contribuiu para acirrar a insatis-
fação das mulheres com o tradicional papel que desempenhavam na sociedade.
Alimentadas por novas informações, norte-americanas, italianas, francesas, ingle-
sas e suecas ganharam as ruas para entoar palavras de ordem como: “Nosso corpo
nos pertence!”, “O privado também é político!” e “Diferentes, mas não desiguais!”.
Essa perspectiva marca uma ruptura com o modelo anterior que associava
diretamente papéis e comportamentos das mulheres às diferenças sexuais e orgâ-
nicas, aportando novos elementos para as discussões sobre a questão da opressão
das mulheres e a superação do sistema capitalista. De certa forma, estavam “li-
vres” dos “orgânicos” valores morais que tanto oprimiam. A famosa história da
“queima do sutiã” é bastante simbólica dessa busca de rompimento. Verdade ou
mito, está colocada para a história da luta das mulheres como uma ruptura com
os condicionantes representados no corpo das mulheres: “Se for cultural, vamos
desconstruir!”.
31
Como resposta à intensa mobilização de mulheres, a Organização das
Nações Unidas (ONU) instituiu o ano de 1975 como o Ano Internacional da
Mulher, promovendo, na Cidade do México, uma grande conferência interna-
cional com a presença de delegações de diversos países. No Brasil, esses acon-
tecimentos causaram enorme repercussão. Tanto a Conferência da Cidade do
México, como a instituição da Década da Mulher pela ONU, deram alento à re-
estruturação do movimento feminista em novas bases. A despeito de o momento
político nacional estar marcado pelo cerceamento das liberdades democráticas,
sendo, portanto, impossível promover qualquer organização social sem o risco
do confronto com os militares; sob o manto protetor da instituição internacional
tornou-se possível a organização de seminários nos quais as mulheres puderam
discutir os problemas comuns.
Foi nesse contexto de crise da democracia, mas também de construção de
novos modelos sociais, que emergiu o feminismo organizado dos anos 1970. Se
por um lado a nova onda feminista lutou contra a ditadura militar, por outro ba-
talhou também contra a supremacia masculina, a violência sexual e o direito ao
prazer.
As mulheres integrantes dos diversos grupos que se formaram na época
vinham, quase na sua totalidade, dos agrupamentos de esquerda. A confluência
de ideias entre as feministas, as mulheres dos movimentos populares, aquelas que
priorizavam os partidos políticos e as donas de casa não se deu sem conflitos.
O debate político nesse momento foi caracterizado pela polarização de posições
entre luta geral, luta específica e a desconstrução do papel tradicional de mães
e guardiãs da família. A segunda metade dos anos setenta foi, em grande parte,
consumida por essa discussão, necessária e imprescindível, para se chegar na dé-
cada de 1980 com inúmeros grupos de mulheres espalhados pelo país, num amplo
leque de posições feministas cujos rótulos eram por vezes reais, por vezes pejo-
rativos. Havia as separatistas, as intelectuais, as pequeno-burguesas preocupadas
com sexo, as proletárias preocupadas com a união entre luta geral e específica, as
“estrangeiras” – ex-exiladas influenciadas pelo movimento feminista europeu –, as
defensoras do movimento autônomo...
No bojo dessa efervescência política nasceu o Movimento Feminino pela
Anistia, que alcançou rápida repercussão por todo o país e teve como uma das
suas principais articuladoras a advogada Therezinha Zerbini e a imprensa alter-
nativa. O jornal Brasil Mulher, editado a partir de 1975, primeiramente no Paraná
e depois transferido para a capital paulista, funcionou como um porta-voz do
Movimento Feminino pela Anistia. Aos poucos, a agenda feminista tomou con-
ta de suas páginas. Logo depois veio o Nós Mulheres, publicação paulista que
32
circulou de 1976 a 1978. Já no primeiro editorial afirmava suas intenções: “fazer
este jornal feminista para que possamos ter um espaço nosso, para discutir nossa
situação e nossos problemas”. Distribuído nacionalmente, durou oito exemplares.
Inúmeros grupos e diversos jornais eram criados com o propósito de de-
núncia da subordinação da mulher na sociedade. Dessa nova leva, destacava-se o
jornal Mulherio, lançado em março de 1981, que nasceu e contou com o suporte
da equipe de pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas e foi leitura obrigatória
das feministas brasileiras por mais de cinco anos. Outros periódicos regionais
seguiram o exemplo: Libertas, editado por um grupo de mulheres de Porto Alegre
(1981); o Chanacomchana, publicado pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista
de São Paulo entre 1981 e 1987; e o Maria Maria, publicado pelo grupo Brasil
Mulher, de Salvador, a partir de 1984.
Com isso, o impacto da mudança de comportamento das mulheres, re-
sultado da luta feminista, chegou também à grande mídia. Em maio de 1979 a
Rede Globo de Televisão estreou o seriado Malu Mulher, protagonizado pela atriz
Regina Duarte. O primeiro episódio exibia a separação entre Malu e seu marido
– a lei do divórcio acabara de ser promulgada. Daí em diante, durante um ano e
meio, o público assistiu à personagem principal batalhar sozinha por sua sobrevi-
vência e pelo cuidado com a filha. Socióloga, Malu trocou sua condição de esposa
pela de pesquisadora, engrossando, na ficção, as estatísticas da vida real: os anos
1980 registram 10 milhões de mulheres empregadas no país, número que cresceu
para 25 milhões em pouco mais de 20 anos, quando um terço das trabalhadoras
tinha pelo menos o segundo grau completo.
Durante seis anos, entre 1980 e 1986, o programa TV Mulher, que ia ao ar
diariamente na parte da manhã, mudava a abordagem sobre os temas femininos
na TV – começam a sair de cena os cuidados com a família, trocados por conse-
lhos da sexóloga Martha Suplicy e da feminista Irede Cardoso. Nas páginas das
revistas para o público feminino, a jornalista Carmen Silva, autora desde 1963 da
coluna “A arte de ser mulher”, publicada na revista Claudia, incentivava suas lei-
toras a ingressar no mercado de trabalho e a questionar as relações de poder em
que os homens são os beneficiários.
As publicações de mulheres ganhariam reforço, a partir da década de 1990,
com o lançamento da Revista de Estudos Feministas (REF), iniciativa de um grupo
de mulheres da Universidade Federal do Rio de Janeiro que, na linha de teóricas
norte-americanas e europeias, levaram para a academia as discussões sobre gêne-
ro, cultura e sociedade. Pioneira, a REF é uma das muitas publicações acadêmicas
à época que se mantêm destinadas ao tema, e leitura obrigatória para conhecer
uma boa parte da teoria feminista brasileira.
33
Portanto, não é de hoje que as mulheres, através de centenas de publica-
ções e coletivamente, verbalizam as desigualdades e injustiças de gênero presentes
na sociedade e expõem outra lógica de ver e viver o mundo e seus movimentos.
Poderíamos destacar diversas contribuições de mulheres, as quais promoveram de
distintas formas rupturas de paradigmas dominantes e ocuparam espaços que até
então lhes eram negados pelos cânones tradicionais.
34
No meio do movimento das mulheres brancas eu sou a criadora de caso,
porque elas não conseguiram me cooptar. No interior do movimento havia
um discurso estabelecido com relação às mulheres negras, um estereótipo.
As mulheres negras são agressivas, criadoras de caso, não dá para gente
dialogar com elas, etc. E eu me enquadrei legal nesta perspectiva aí, porque
para elas a mulher negra tinha que ser antes de tudo, uma feminista de
quatro costados, preocupadas com as questões que elas estavam colocando.
[...]. O feminismo não terá cumprido sua proposta de mudança dos valores
antigos, se ele não levar em conta a questão racial. (GONZALEZ, 1991).
35
A efervescência desse encontro levou a que as feministas abraçassem essa
estratégia de aproveitar o espaço anual da SBPC para realizar paralelamente os
encontros nacionais feministas. Assim, em 1981, com a realização da SBPC na
Bahia, o grupo feminista Brasil Mulher de Salvador organizou o 3º Encontro
Nacional Feminista, cuja pauta prioritária era o enfrentamento da violência con-
tra as mulheres, uma vez que acabava de ser criado, em São Paulo, o primeiro
SOS Mulher. Participaram do encontro 20 grupos de mulheres, no total de 120
ativistas feministas. A partir de então, concomitantes com as reuniões da SBPC,
as organizações feministas passaram a convocar regularmente encontros nacio-
nais, cabendo aos grupos locais a responsabilidade da produção dos encontros.
Foram organizados dessa forma: o 4º Encontro Nacional Feminista, em Campinas
(SP), 1982; o 5º Encontro Nacional Feminista, na capital federal Brasília (DF),
1983; o 6º Encontro Nacional Feminista, em São Paulo (SP), 1984; o 7º Encontro
Nacional Feminista, em Belo Horizonte (MG), em 1985. O crescente interesse das
mulheres em participar desses espaços fez que a convocação e realização dos en-
contros posteriores acontecessem fora do âmbito da SBPC, inaugurando um novo
formato, novas metodologias de integração, ampliação dos dias de debates e um
espaço comum de convivência das participantes. Assim, o 8º Encontro Nacional
Feminista foi realizado no interior do Nordeste, em Garanhuns (PE), em 1986;
o 9º Encontro Nacional Feminista, em Petrópolis (RJ), em 1987; 10º Encontro
Nacional Feminista, em Bertioga (SP), 1988; 11º Encontro Nacional Feminista
em Caldas Novas (GO), em 1991; 12º Encontro Nacional Feminista em Salvador
(BA), em 1997; o 13º Encontro Nacional Feminista em João Pessoa (PB), em 2000;
e o 14º Encontro Nacional Feminista, Porto Alegre (RS), em 2004.
Foi nesse período que, diante das notícias de vários assassinatos de mu-
lheres por seus companheiros, a luta contra a violência doméstica explodiu. O
que antes eram pequenas notas nos jornais ganhou as primeiras páginas com a
indignação e denúncia do movimento feminista. As mortes de Ângela Diniz (RJ),
Maria Regina Rocha e Eloísa Ballesteros (MG), e Eliane de Gramont (SP) tiveram
enorme repercussão e tornaram-se exemplos de que o silêncio protegia os assas-
sinos. O slogan “Quem ama não mata”, gritado inicialmente pelas mineiras, ecoou
por todo Brasil.
As passeatas, as denúncias públicas e os grupos de atendimentos aca-
bam impulsionando a criação das Delegacias Especializadas no Atendimento às
Mulheres Vítimas de Violência. A primeira foi implementada na capital paulista,
em 1985, e em pouco mais de 15 anos contabilizavam-se mais de trezentas de-
legacias em todo Brasil. Em 1988, a TV Globo lançou a minissérie Delegacia de
Mulheres, levando para a mídia um debate que havia sido impulsionado pelas
feministas 10 anos antes.
36
As reivindicações que envolviam os direitos reprodutivos estavam centra-
das na fecundidade das mulheres e no acesso aos métodos contraceptivos, com
o Estado e os organismos internacionais posicionados numa perspectiva de con-
trole da natalidade em detrimento da autonomia das mulheres. Um dos desafios
para o movimento feminista foi enfrentar esse debate, enfatizando que o tema da
saúde sexual e reprodutiva das mulheres deveria ser entendido na perspectiva dos
direitos humanos.
As discussões sobre a saúde da mulher já faziam parte da agenda feminista,
mas o assunto pegou fogo com o regresso das mulheres exiladas, que pertenciam
ao Círculo de Mulheres Brasileiras de Paris. Trouxeram na bagagem o polêmico
tema do aborto, legalizado na França em 1975 e um dos eixos de luta do movi-
mento internacional de mulheres. Em 1980, quando a polícia carioca “estourou”
uma clínica clandestina no bairro de Jacarepaguá e prendeu duas mulheres pela
prática do aborto, as feministas organizaram um protesto e, pela primeira vez,
foram a público reivindicar o direito de escolha. O silêncio que envolvia o assunto
estava definitivamente rompido e, desde então, ecoam as vozes das mulheres em
defesa do direito à autonomia reprodutiva, com palavras de ordem como “meu
corpo, minhas regras”, “pela vida das mulheres”.
37
propostas a serem apresentadas aos candidatos a governador. Em São Paulo, as
feministas se dividiram no apoio a dois candidatos e as discussões se acirraram
quando o grupo que apoiava o candidato do PMDB, junto com um programa
de governo, propõe também a criação de um órgão específico, responsável pela
proposição e defesa de políticas públicas relativas aos direitos das mulheres, na
estrutura do Estado.
Assim nasceram, em 1993, os dois primeiros Conselhos Estaduais dos
Direitos da Mulher do Brasil: o de São Paulo e de Minas Gerais.
38
Por outro lado, a “esquerda”, agora dividida e segmentada em vários mati-
zes, volta seu olhar para a tal “questão da mulher”. Assim, a partir de 1982, parla-
mentares de diversos partidos se manifestam publicamente a favor de reivindica-
ções feministas. No famoso 8 de março, passa a ser praxe a aprovação de moções
de congratulação e apoio às mulheres no “seu dia”, por parte dos legislativos, que
agora, além do mais, contam com algumas feministas em suas fileiras. E o femi-
nismo avança no seu reconhecimento público!
Albertina de Oliveira Costa, no ensaio É viável o feminismo nos trópicos?
– Resíduos de insatisfação apresentado no Seminário “Feminismo no Brasil” –
NEIM/UFBA, 1988, aponta: “A questão da mulher é suficientemente ampla, su-
ficientemente em evidência e suficientemente legítima, para que os partidos de
esquerda comecem a se interessar por ela.” Ainda segundo Albertina, fica também
evidente “...a controvérsia que vai durar anos entre feministas e femininas. Entre
a boa e a má luta da mulher.”
Com o vespeiro aberto em São Paulo em 1982, em função da criação do
Conselho da Condição Feminina, abrem-se no país novas vertentes para a discus-
são sobre a institucionalização das demandas feministas.
Desde então vários Conselhos e Organismos de Políticas para as Mulheres
(OPMs), vinculados ao poder Executivo e de natureza jurídica diversa –
Secretarias, Coordenadorias, Subsecretarias, Superintendência –, nasceram para
atender a uma forte reivindicação dos movimentos de mulheres e feministas; ten-
do como atribuição assessorar, formular, fomentar e monitorar as políticas públi-
cas para as mulheres. Salvo exceções, padeceriam de falta de estrutura e escassez
de recursos para a implementação da política e manutenção de seu quadro técni-
co, dependendo da “boa vontade” do governo e ou prefeito para a institucionali-
zação da agenda de gênero nos âmbitos municipal e estadual.
39
jeito”, na opinião de algumas feministas, uma vez que os passos dessa articulação
se davam sem prévia discussão com os grupos de mulheres e sem o reconfortante
consenso que pautava a maioria das ações do movimento feminista.
Temores e comentários se espalharam pelo movimento de mulheres do
país, passando por questões que iam desde a polêmica participação num governo
não legitimado pelo voto direto até as conversas ao pé do ouvido sobre a compo-
sição do órgão, para muitas um colegiado de “notáveis”.
Foi no 7º Encontro Nacional Feminista, ocorrido em Belo Horizonte em
1985, que essa discussão ganha dimensões nacionais e pega fogo diante da pro-
posta de criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher – CNDM. Muitas
feministas presentes no encontro buscavam o apoio do conjunto do movimen-
to para essa proposta. Outras, naquele momento, criticando a atuação dos cinco
conselhos existentes, vislumbravam nessa proposta uma grande ameaça à autono-
mia do movimento. O Estado não merecia confiança e o sistema nos ameaçava:
As teias do poder apareciam como uma intrincada rede repleta de “obscuras” e
“malignas” intenções. O “Estado” e o “Sistema” se mostravam como grandes en-
tidades alheias à nossa existência. “Estamos conscientes de que o sistema, através
dos órgãos oficiais do Estado, reconhecendo a importância e o alcance das ideias
feministas e de nossa militância e não podendo mais ignorar-nos, vem por isso
assumindo nosso discurso ideológico.” ... “Sabemos entretanto, que é uma uto-
pia acreditar que as ideias feministas sejam assumidas pelas entidades oficiais do
Estado...” (Carta de B.H. – abril/1985).
No entanto, ao final do 7º Encontro Nacional, “coerentes com esta postura”,
segundo o documento, e reafirmando o repúdio à formalização do CNDM como
se apresentava na proposta, as signatárias apresentam suas exigências: criação do
CNDM mediante projeto de lei, como forma de garantir ampla participação da
sociedade civil e das mulheres; garantia de dotação orçamentaria própria; iden-
tificação do órgão com a luta contra a discriminação e opressão das mulheres;
qualquer parlamentar que venha a ocupar cargo no conselho deveria licenciar-se
de seu mandato; viabilização da participação do movimento de mulheres na ela-
boração, execução e acompanhamento das políticas oficiais; o conselho deveria
expressar as reivindicações do movimento de mulheres e das feministas, sem pre-
tender representá-lo ou substitui-lo; e, finalmente, exigiam que o critério de com-
posição do conselho fosse baseado na trajetória feminista de suas participantes.
A polêmica instalada e as suspeitas de algumas feministas em relação ao
Estado e de suas múltiplas possibilidades de cooptação não inviabilizam a cria-
ção do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher que se dá em agosto de 1985,
através de projeto de Lei nº 7.353, aprovado pela Câmara Federal. O projeto trazia
40
em seu enunciado que a finalidade básica do órgão seria a formulação de políticas
com vistas à eliminação da discriminação da mulher. Esse objetivo foi desdobrado
em algumas modalidades de ação específica, ali explicitadas, tais como formu-
lação de diretrizes, elaboração de projetos de lei, assessoria ao poder Executivo,
emissão de pareceres, acompanhamento da elaboração e execução de programas
de governo e apoio ao desenvolvimento de pesquisas sobre a condição da mulher.
Vinculado ao Ministério da Justiça, o CNDM nasce com autonomia admi-
nistrativa e financeira e sua estrutura “híbrida” era composta por um Conselho
Deliberativo – com a função de controle social, cujas integrantes eram repre-
sentantes de diferentes setores do feminismo nacional, e uma estrutura de ges-
tão, composta por uma Assessoria Técnica, Diretoria de Articulação Política e
Secretaria Executiva. Na mesma Lei foi criado o Fundo Especial de Direitos da
Mulher, para onde serão enviados os recursos orçamentários.
A primeira presidente, escolhida dentre as conselheiras, foi a deputada Ruth
Escobar (que se licenciou do mandato) e, depois, a socióloga e militante feminista
Jacqueline Pitanguy. O corpo técnico era composto, na sua expressiva maioria,
por feministas autônomas vindas de diversas regiões do país e trazendo na baga-
gem não só o pioneirismo, mas, sobretudo, o grande desafio de abrir espaço na
estrutura política do governo, ser um canal de interlocução com os movimentos
de mulheres, além da formulação e monitoramento de políticas públicas.
Nessa primeira gestão, que vai de 1985 a 1989, o Conselho apostou em dife-
rentes frentes e muitas foram as ações desenvolvidas. Investiu nas áreas de saúde,
educação, trabalho (rural e urbano) violência, combate ao racismo, políticas de
creche e legislação.
A preocupação das feministas com a institucionalização de suas deman-
das e a possibilidade de descaracterização das propostas tornaram-se um desafio
para o CNDM, que inaugurava a chegada das feministas na estrutura do governo
federal.
41
dos movimentos feministas e de mulheres e os respectivos conselhos na campa-
nha e no processo.
Paralelamente, o CNDM investiu numa campanha publicitária que incluía
TV, outdoors, publicações e outros recursos de comunicação, e organizou em
todo país debates, encontros e seminários para discussão e formulação de propos-
tas, culminando na realização de um Encontro Nacional, em agosto de 1986, que
elaborou e aprovou a Carta das Brasileiras aos Constituintes e lançou a segunda
fase da campanha: “Constituinte pra valer tem que ter direitos da mulher”.
Nas eleições de 1986 a representação feminina no Congresso Nacional foi
mais que triplicada, passando de 8 deputadas federais para 26 deputadas consti-
tuintes, num total de 559 parlamentares eleitos. Numa forte conjugação de obje-
tivos comuns, o CNDM, centenas de grupos de mulheres, conselhos, sindicatos
e a bancada feminina juntaram esforços para que as propostas contidas na Carta
das Brasileiras fossem incorporadas na nova Constituição que ia ser elaborada. E
assim, defendeu propostas feministas no Congresso Nacional, algumas contra o
próprio governo do qual faziam parte, como a licença-maternidade de 120 dias e
a legalização do aborto, entre outras.
A Carta das Brasileiras foi entregue solenemente ao presidente do Congresso,
deputado Ulisses Guimarães, e também lançada em todas as Assembleias
Legislativas Estaduais de maneira a evidenciar a organização articulada das mu-
lheres e o caráter nacional de suas propostas. Estava dada a largada. A estratégia
passava a ser, então, visitar gabinete por gabinete e tentar convencer os deputados
e senadores da legitimidade e importância das reivindicações das mulheres.
“O que estão querendo as mulheres?”, provavelmente pensaram alguns de-
putados que se apressaram em tentar desvalorizar o trabalho do Grupo, chaman-
do-as de “Lobby do Batom”. Mas as mulheres não se intimidaram nem perderam o
humor com essa provocação. Conseguiram transformar, estrategicamente, aquilo
que pretendia ser uma afronta em mais um elemento da mobilização e força po-
lítica das mulheres e da bancada feminina. O apelido foi parar nos jornais, mas
não com a conotação pejorativa dos que subestimavam a força e a organização
das mulheres.
Daí nasce forte e decisivo o Lobby do Batom. Impossível dizer sua com-
posição e seus limites, em número de pessoas. Todo mundo ajudava a telefonar,
consultar, contatar, redigir, reproduzir, expedir, visitar gabinetes e persuadir inde-
cisos. No Congresso, até o mais distante dos parlamentares esbarrava no recado:
“Constituinte, as mulheres estão de olho em você!!!”.
As integrantes do CNDM, a Bancada Feminina do Congresso Nacional e
inúmeras organizações feministas participaram de todas as etapas do processo
42
constitucional, nas subcomissões, nas comissões temáticas, na apresentação de
emendas, na análise dos trabalhos do relator, na discussão dos anteprojetos e do
projeto. Realizaram-se várias manifestações e vigília para acompanhar a votação
final. Mantiveram um canal permanente com os Conselhos, com as feministas,
com os grupos de mulheres, as categorias profissionais específicas, como as tra-
balhadoras domésticas e rurais, com o movimento de mulheres negras, indíge-
nas, lésbicas, informando do andamento das propostas e transformando-se em
um verdadeiro lobby nacional – o Lobby do Batom –, considerado um dos dois
maiores grupos da sociedade civil organizada na Constituinte. Cerca de 80% das
propostas das mulheres foram incorporadas no texto final.
Para a pesquisadora Marlise Matos (2013):
Regina Céli Pinto (2013) reforça as palavras de Matos (2012), ao dizer que
a “carta foi o documento mais completo e abrangente produzido na época [...] e
trouxe várias conquistas para as brasileiras” (p. 75).
Registram-se dois grandes embates travados nas Comissões temáticas da
Câmara no que diz respeito à autonomia das mulheres: um referente ao direito ao
aborto (objeto de emenda popular), que o texto final não menciona, e outro, que
era garantir explicitamente no texto a proibição da discriminação em razão da
orientação sexual – embora essa demanda tenha sido pautada pelos movimentos
LGBT e apoiada pelos movimentos de mulheres, também não foi incorporada por
pressão dos parlamentares conservadores.
Até a constituição do CNDM, o Estado não possuía política pública especí-
fica para a mulher, salvo alguns programas na área da saúde. A política do CNDM
provocou, portanto, alterações no cenário nacional. Se foram pequenas, pontuais
e fragmentadas, ainda assim, fazem parte do processo histórico. Podemos lem-
brar o nascimento de vários Conselhos Municipais e Estaduais, Delegacias de
Mulheres, Casas Abrigo, creches nos locais de trabalho e mudança na legislação,
entre outros avanços.
De natureza híbrida, o CNDM foi marcado pela dualidade de sua atuação.
Analisando sua curta trajetória, pode-se dizer que, nesse primeiro período, esteve
muito mais voltado para a articulação com os movimentos de mulheres do que
com o próprio Governo. Teve mérito de não haver jamais atuado partidariamente
43
ou de ter se transformado em “cabide de empregos”. Tampouco foi “maternalista”,
na medida em que sempre devolveu aos grupos de mulheres a responsabilidade
de apontar suas prioridades.
Vítima do sucesso, não foi capaz de garantir sua permanência, nos moldes
originais, dentro do aparelho estatal. Em janeiro de 1989, o ministro da Justiça
Oscar Dias Corrêa faz uma declaração à imprensa de que o CNDM já havia
cumprido sua função, pois havia conquistado 80% das reivindicações na nova
Constituição Brasileira e deveria passar por um enxugamento proporcional e ser
transformado em apenas um órgão deliberativo.
Ao cortejo das ações visando minar a atuação do órgão, em julho do mes-
mo ano, mais uma medida arbitrária surpreende as integrantes do Conselho e o
movimento de mulheres com a nomeação de 12 novas conselheiras, sem identi-
dade com o movimento de mulheres, provocando a renúncia coletiva da equipe
técnica e integrantes do Conselho.
Com a credibilidade abalada e para completar o estrago causado, logo em
seguida, na “Era Collor”, uma Medida Provisória, n° 150 de 15/8/1990, acaba com
sua autonomia administrativa e financeira.
Em 1994, impulsionado pelo Fórum Nacional de Presidentes de Conselhos,
uma nova proposta foi apresentada aos candidatos à Presidência da República –
tratava-se da criação do Programa para Igualdade e Direitos das Mulheres, alo-
cado na Casa Civil da Presidência da República, cuja estrutura contaria com um
Conselho Deliberativo e uma Secretaria Especial.
Com a posse de Fernando Henrique Cardoso em 1995, contrariamente ao
esperado, o novo Governo reativou o CNDM sem estrutura administrativa, sem
orçamento próprio e, usando de suas prerrogativas, decidiu sobre a composição
do colegiado e nomeou a nova presidente sem consulta formal aos movimentos
organizados de mulheres. A presidente Rosiska Darcy de Oliveira e as conselhei-
ras assumiram os seus cargos com o compromisso de realizar as mudanças consi-
deradas necessárias no interior desse mecanismo.
Com o objetivo de implementar a Plataforma de Ação, resultante da IV
Conferência Mundial sobre a Mulher, firmou uma série de protocolos de coo-
peração com os Ministérios da Justiça, do Trabalho, da Educação e da Saúde e
elaborou, com a contribuição dos conselhos estaduais e municipais, as estratégias
para promover a igualdade.
Em 1997, durante a reforma administrativa do Estado, apesar de ter alcan-
çado uma maior visibilidade nos meios de comunicação e implementado uma sé-
rie de ações como, por exemplo, o Programa Nacional de Promoção da Igualdade
e Oportunidade na função pública, desenvolvido em parceria com o Ministério
44
da Administração, o CNDM foi rebaixado dentro da hierarquia do Ministério da
Justiça.
Considerado um mecanismo institucional frágil e desproporcional à sua
missão política, em 1999, mais uma vez, as articulações e redes nacionais se mo-
bilizam para pressionar o governo com intuito de abrir o debate sobre a reformu-
lação desse organismo. Nesse mesmo ano, uma nova presidente, Solange Bentes,
e colegiado tomam posse. Em 2002, no último ano desse mandato, foi criada a
Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, subordinada ao Ministério da Justiça.
Sua competência e estrutura não foram definidas pela lei que o instituiu.
Enquanto isso, o movimento feminista, longe do governo, estava cada
vez mais revitalizado. Um exemplo do seu vigor foi a realização, no Congresso
Nacional, em 2002, da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras com mais
de 2 mil participantes. Precedido pela realização de conferências estaduais, o en-
contro nacional aprovou a Plataforma Política Feminista, documento que levanta
desafios para a reconstrução da sociedade, do Estado, das relações inter-raciais,
interpessoais e de gênero. Sobretudo, deixou registrado um jeito diferente de fazer
política, garantindo espaço democrático onde as diferentes forças coletivas pude-
ram se expressar.
Ao mesmo tempo, as mulheres tiveram sua agenda de ação ampliada com
um ciclo de conferências promovido pelas Nações Unidas. O marco inicial foi a
realização da ECO-92, na cidade do Rio de Janeiro, da qual as brasileiras parti-
ciparam ativamente do processo e construção do Planeta Fêmea, espaço privile-
giado dentro do Fórum das Organizações Não Governamentais da conferência,
que promoveu o encontro de representantes de vários países e culturas e possibi-
litou a elaboração da Agenda 21 das Mulheres. Seguiram-se as conferências sobre
Direitos Humanos (Viena, 1993) e População e Desenvolvimento (Cairo, 1994),
ambas tratando de assuntos de interesses da agenda feminista. O auge desse pro-
cesso de integração internacional da luta das mulheres se deu com a realização da
IV Conferência Mundial da Mulher (Beijing, 1995).
O processo de preparação dessas conferências fortaleceu os movimentos e
suas articulações em todo o mundo e, no Brasil, a Conferência Mundial da Mulher
abriu a oportunidade para a criação da Articulação de Mulheres Brasileiras
(AMB), reunindo fóruns estaduais e articulações já existentes, estimulando a
criação de novos espaços de debate em todo o país. Nessa agenda envolveram-
-se grupos de mulheres, organizações feministas, sindicalistas, associações pro-
fissionais e de bairros, representantes de partidos políticos, centros acadêmicos,
além de outras organizações da sociedade civil que, também preocupadas com a
cidadania e qualidade de vida das mulheres brasileiras, consideravam importan-
tes os temas da IV Conferência. Foram realizadas mais de 90 atividades durante
45
o processo, que envolveu aproximadamente 700 grupos de mulheres e produziu
22 documentos estaduais contendo diagnóstico sobre a situação das mulheres
e propostas, que sistematizados foram colocados em discussão na Conferência
Nacional de Mulheres rumo a Beijing, realizada em junho de 1995, na cidade
do Rio de Janeiro, com a presença de feministas de todos os estados brasileiros.
Como resultado dos debates foi aprovado o Documento das Mulheres Brasileiras
para a IV Conferência Mundial, que frisou fortemente que a luta das mulheres
não pode prescindir do enfrentamento ao capitalismo, ao patriarcado, ao racismo
e à homofobia – que estruturam as desigualdades –, considerando a diversidade
regional, cultural, racial, étnica, etária, orientação sexual, deficiência, credo e in-
serção política de cada uma.
A forte articulação do movimento feminista e de mulheres, estabelecida
no processo preparatório, e a consequente presença de centenas de brasileiras em
Beijing, somada à capacidade de incidência e pressão junto às delegações oficiais,
foi fundamental para uma postura progressista do governo brasileiro, que liderou
as negociações e muito contribuiu para os avanços conquistados na Declaração
e na Plataforma de Ação aprovada pelos representantes dos países participantes.
A Plataforma de Ação de Beijing traz três inovações dotadas de grande poten-
cial transformador na luta pela promoção da situação e dos direitos da mulher: o
conceito de gênero, a noção de empoderamento e o enfoque da transversalidade.
A ação internacionalizada seguiu no século seguinte: em 2001, organizações
de mulheres negras se mobilizaram para participar da Conferência Mundial so-
bre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban/
África do Sul), resultando na fundação de duas grandes redes nacionais: em 2002,
a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e, em
2004, o Fórum Nacional de Mulheres Negras.
Sonia E. Alvarez (2014) destaca que:
46
Um novo ponto de partida
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políticas públicas que atendessem às principais demandas das mulheres. O I Plano
de Políticas para as Mulheres veio a se complementar nas duas edições seguintes,
após a II e III Conferências Nacionais, com a inserção de novos eixos: autonomia,
igualdade no mundo do trabalho e cidadania; educação inclusiva e não sexista;
saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; enfrentamento à
violência contra as mulheres; participação das mulheres nos espaços de poder e
decisão; desenvolvimento sustentável no meio rural, na cidade e na floresta, com
garantia de justiça ambiental, inclusão social, soberania e segurança alimentar;
direito à terra, moradia digna e infraestrutura social nos meios rural e urbano,
considerando as comunidades tradicionais; cultura, comunicação e mídia não
discriminatórias; enfrentamento ao racismo, sexismo e lesbofobia e enfrentamen-
to às desigualdades geracionais que atingem as mulheres, com especial atenção
às jovens e idosas. Para um maior detalhamento dos Planos e suas respectivas
agendas, ver o Capítulo 4, escrito por Marlise Matos e Isabella Lins, no primeiro
volume desta coletânea.
Os compromissos de implementação da legislação nacional e a garantia de
aplicação dos tratados internacionais que visavam ao aperfeiçoamento dos me-
canismos de enfrentamento à violência contra as mulheres foram mantidos em
todas as edições do Plano.
Desse modo, propostas antigas e permanentes nas lutas das mulheres e fe-
ministas tornam-se políticas de governo, em torno das quais se ordenam progra-
mas e ações, através da transversalidade com outros Ministérios e órgãos gover-
namentais pra sua execução. Isso fez que o debate de gênero entrasse na órbita do
Orçamento Governamental (Plano Plurianual) e de outras políticas e planos de
ação do Governo Federal, com a mobilização de diferentes setores dentro do go-
verno e fora dele. As mulheres, em suas especificidades, saíram da invisibilidade!
Em 2005, foi criado, pelo Decreto 5.390, o Comitê de Monitoramento do
Plano, com o objetivo de acompanhar e avaliar periodicamente o cumprimento
dos objetivos, ações e metas definidos no PNPM. Alterado em 2013, pelo Decreto
nº 7.959, que acrescentou mais onze vagas para representantes dos órgãos de
governo, ampliando sua capacidade de articulação e de monitoramento. Com a
ampliação, o Comitê passou a contar com 32 órgãos governamentais e três repre-
sentantes da sociedade civil do CNDM, garantindo-se, assim, a transversalidade
em todas as fases do Plano. O Comitê cumpriu, até o golpe de 2016 (SANTOS,
2014), um importante papel na introdução da perspectiva de gênero nos Órgãos
Federais, dando suporte à criação de Mecanismos de Gênero na estrutura desses
órgãos, fortalecendo, assim, a institucionalização da igualdade da agenda feminis-
ta nas ações governamentais.
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Muitos debates e conquistas foram possíveis, à época, e isso se deveu, tam-
bém, à articulação permanente entre governo e sociedade civil, juntos e cada um
jogando seu papel. As mulheres brasileiras passaram a dispor de uma Central de
Atendimento (Ligue 180); de uma lei para o enfrentamento e combate à violência,
a Lei Maria da Penha; de equipamentos articulados em redes de enfrentamento
e atenção à violência doméstica e sexual; de acesso a programas de redução da
pobreza, ao Bolsa Família e à Minha Casa, Minha Vida. Muito embora as desi-
gualdades permaneçam renitentes, programas sociais importantes foram imple-
mentados e consolidados para o enfrentamento da desigualdade social e o surgi-
mento de um número expressivo de Organismos de Políticas para as Mulheres e
Conselhos dos Direitos das Mulheres em vários estados e municípios.
Nesses treze primeiros anos do “novo CNDM”, ele funcionou mais como
um espaço de consulta e monitoramento do que como propositor de políticas
públicas. Os fatos de o CNDM não ter uma estrutura própria, recursos orçamen-
tários garantidos, de se reunir com muito pouca frequência, ter grandes dificulda-
des de propor sua própria pauta, ter pouquíssima visibilidade na sociedade aca-
baram por atuar de maneira discreta e pouco incidente. Ainda assim, na minha
solitária avaliação política, ele se comportou bem.
Sua harmônica existência com as diferentes gestões da SPM facilitou bas-
tante a atuação do CNDM, quase exclusivamente voltada e colada nas ações e po-
líticas desenvolvidas pela Secretaria como, por exemplo, a coordenação das quatro
Conferências de Políticas para as Mulheres, participação na Comissão Tripartite
para revisar a legislação punitiva sobre o aborto, acompanhamento do processo
de formulação da Lei Maria da Penha e, ainda que timidamente, no GT de acom-
panhamento do Plano de Políticas para as Mulheres, entre outras.
O papel desempenhado pelas conselheiras do CNDM nas Conferências foi
fundamental para se garantir um debate amplo, envolver os poderes, os partidos,
as categorias profissionais e estudantis e a participação do movimento feminista e
suas diferentes expressões.
Não podemos esquecer que, em qualquer avaliação sobre os caminhos e
descaminhos dos Organismos de Políticas para as Mulheres e dos Conselhos, de-
vemos levar em conta a conjuntura política e o governo do qual eles fazem par-
te. Se por um lado, a criação dos Organismos e Conselhos trouxe e traz para o
cenário nacional o debate público sobre os direitos das mulheres e a questão da
igualdade, por outro, seu poder de intervenção efetiva mostrou não dar conta de
permear de forma efetiva a estrutura do Estado para a implantação de políticas
mais permanentes.
49
Vivemos na pele essa realidade com o impeachment que depôs a presiden-
ta Dilma, em meio a vários ataques misóginos, na mídia, nas redes sociais e no
Congresso Nacional, que através de uma coalizão de forças políticas antagônicas
promoveram o que tem sido chamado por juristas, lideranças dos movimentos
sociais e representantes dos partidos de esquerda “um golpe parlamentar-jurídi-
co-midiático, um ataque à institucionalidade democrática”. Desde que assumiu o
poder, o governo interino vem cumprindo um programa ultraliberal, que requen-
ta boa parte do programa eleitoral da coalizão derrotada nas últimas eleições pre-
sidenciais e promove, de maneira ilegítima, mudanças ministeriais que represen-
tam uma brutal desestruturação de políticas públicas voltadas para a garantia de
direitos, sinalizando o aprofundamento de retrocessos nas políticas de educação,
seguridade social, promoção da igualdade racial e nas políticas públicas para as
mulheres, começando pelo desmonte da rede de enfrentamento à violência contra
as mulheres. E para completar, acabou com o Ministério das Mulheres (e o da
Igualdade Racial), transformando-os em Secretarias e nomeando para as pastas
pessoas com posturas contrárias, por exemplo, aos direitos sexuais e reprodutivos,
agenda historicamente defendida pelas feministas.
Historiadores como Eric Hobsbawn (1995) reconhecem que a revolução
cultural promovida pelas mulheres alterou a face do século XX, promovendo mu-
danças de comportamento, transformando os padrões familiares e abrindo espaço
para a liberalização dos costumes, no bojo dos quais vieram outros movimentos
reivindicatórios, como o de gays e lésbicas. Apesar de todo o preconceito que
ainda envolve o feminismo, não há como negar que este foi o movimento mais
bem-sucedido do século XX. A socióloga Bila Sorj (2015) diz que “está na hora
de revermos essa narrativa profundamente inconsistente na qual não gostamos
das santas, mas apreciamos o milagre”. Diferentemente dos demais movimentos
políticos – como o fascismo, o nacionalismo e o comunismo –, o feminismo pro-
moveu mudança de comportamentos sem utilizar a força e sem derramar uma
gota de sangue.
50
leis que visam limitar o acesso a métodos contraceptivos, transformar o aborto
– em qualquer circunstância – em crime, aumentando a punição àquelas que a
ele recorrem, colocando em risco a vida de milhares de mulheres por todo o país.
Soma-se a essas ameaças uma perigosa alquimia que menospreza os direitos das
mulheres e ações de grupos extremistas que buscam abolir da literatura educacio-
nal e das expressões culturais qualquer referência à perspectiva de gênero.
A crise democrática que assola o país, o avanço do conservadorismo nas
instituições e na sociedade, o desembarque de uma grande parcela das feministas
do Governo, as novas perspectivas teóricas sobre o conceito de gênero fazem que
o feminismo brasileiro viva um intenso momento de transformação. A presença
de novas sujeitas e a abertura a uma perspectiva interseccional têm contribuído
para ampliar a democracia no interior do movimento, reconhecer a diversidade,
o multiculturalismo e a defesa dos diferentes protagonismos, da autonomia, da
defesa do corpo enquanto território e da necessidade da redistribuição do poder
e dos recursos para enfrentar as desigualdades de classe, raciais, étnicas, identitá-
rias, de orientação sexual, geracionais e de cosmovisão.
Indignadas com a tragédia da violência de gênero que os fatos apresen-
tavam e a culpabilização das mulheres pela violência sexual, e estimuladas pe-
las mobilizações em outros países, em 2011, teve início no Brasil a Marcha das
Vadias. Os protestos fazem parte de um movimento internacional nascido no
Canadá, quando um oficial de segurança, ao proferir palestra na Universidade de
Toronto, sugeriu que as mulheres “não se vestissem como vadias” como medida
de segurança para evitar o estupro. A declaração causou revolta, pois mais uma
vez o pensamento sexista transfere a culpa da violência sexual para a vítima, insi-
nuando que, de alguma forma, são as mulheres que provocam o ataque.
Ao longo de 2011 e 2012, diversas cidades brasileiras realizaram suas mar-
chas, convocadas, através das redes sociais, por movimentos autônomos e es-
pontâneos e, em protesto à culpabilização das mulheres pelo estupro, pelo fim
da violência doméstica, física, simbólica e sexual, pelo fim do machismo e pela
igualdade de gênero. O termo “vadia”, em geral usado para ofender as mulheres,
foi ressignificado e usado para defesa da autonomia e liberdade de ir e vir com e
como desejarem. Usando uma nova estética, as feministas, em sua grande maioria
jovens, ocuparam as ruas, com as caras pintadas, roupas consideradas provocan-
tes, corpos despidos e portando cartazes que diziam: “Se ser livre é ser vadia,
então somos todas vadias”. Podemos dizer que o jeito irreverente de fazer política
e de enfrentar o patriarcado estava de volta.
Dali em diante, as manifestações se espalharam como um rastro de pólvo-
ra, e por onde passou, a Marcha das Vadias revigorou os feminismos. Diferentes
reivindicações de diferentes gerações de mulheres se encontraram nas ruas,
51
recuperando a irreverência que havia marcado a segunda onda feminista e re-
tomando palavras de ordem como “nosso corpo nos pertence” ou “meu cor-
po, minhas regras”, fazendo ecoar no presente as duras batalhas dos anos 1970
(RODRIGUES, 2017).
As resistências através das ocupações, das ruas e da internet conjugam o fe-
minismo dessa década. No ano de 2015, duas grandes marchas invadiram Brasília,
além de dezenas de manifestações pelo Brasil afora. Em agosto, mais de 100 mil
mulheres de todo o país ocuparam Brasília na 5ª Marcha das Margaridas, que teve
como tema ”Desenvolvimento Sustentável com Democracia, Justiça, Autonomia,
Igualdade e Liberdade” – eram as trabalhadoras com seus chapéus característicos,
suas palavras de desordem e cartazes que expressavam suas lutas. Percorreram a
Esplanada dos Ministérios e o Palácio da Alvorada levando a pauta de reivindica-
ções, que entre muitas questões, propõe um desenvolvimento centrado na susten-
tabilidade da vida humana, na defesa da terra e da água como bens comuns, pela
realização da reforma agrária, por soberania alimentar e produção agroecológica
e pelo fim da violência contra as mulheres.
Sai inverno, entra primavera e as feministas não deixam nem as redes so-
ciais, nem as ruas. Reagindo à onda neoliberal misógina, elas foram as primeiras
a ocuparem as praças, contra o PL 5069/2013, de autoria do deputado Eduardo
Cunha, em tramitação no Congresso Nacional, que altera os procedimentos de
atendimento às mulheres vítimas de violência sexual nos serviços de saúde. A
Primavera das Mulheres, como ficou conhecida a série de manifestações on-line
e o off-line, em 2015 “foi a reação do movimento feminista ao delicado momento
político e à dinâmica de uso da internet como potencial instrumento de mobiliza-
ção dos movimentos sociais”, destaca a socióloga Priscilla Brito (2017).
Um “mar lilás” tomou inicialmente as ruas do Rio de Janeiro para, na sequ-
ência, ganhar o país inteiro nos protestos contra as ameaças de retrocesso, contra
os fundamentalismos e conservadorismos e fora tudo o que ainda oprime as mu-
lheres. Como diz Priscilla Brito:
52
Mulheres floresceu e tem rendido frutos até hoje. Haja vista as dezenas de blogs
feministas e hashtags, além da mobilização para o último 8 de Março, quando o
feminismo brasileiro e latino-americano gritou “Nem uma a menos. Vivas nós
queremos!”. O 8M, como foi chamado o evento, pretendeu dar um recado articu-
lado, demonstrando a força e o potencial de luta do movimento feminista, nestes
tempos de resistência.
Em novembro, foi a vez de as mulheres negras colorirem o Cerrado. Depois
de três anos de construção e articulação nos estados e municípios, se juntaram em
Brasília, na Marcha das Mulheres Negras, na mais potente demonstração de força
política, para “denunciar a ação sistemática do racismo e do sexismo com que
somos atingidas diariamente mediante a conivência do poder público e da socie-
dade, com a manutenção de uma rede de privilégios e de vantagens que nos ex-
propriam oportunidades de condição e plena participação da vida social” (Dossiê
sobre a Marcha das Mulheres Negras).
Mais de 50 mil mulheres negras, vindas dos quilombos, do campo e da ci-
dade, dos terreiros, das universidades, das periferias ocuparam as ruas de Brasília
para expressar coletivamente suas denúncias contra o racismo, o genocídio da
população negra, romper com os estereótipos do padrão de beleza ideal, denun-
ciar a exclusão, a pobreza, o feminicídio, a violência e propor um novo modelo
civilizatório para o País, centrado no bem viver e no rompimento com a violência
racial que exclui e mata homens e mulheres negras, dizia o Manifesto.
Devido a essa diversidade de mulheres, especificidades e demandas que a
pesquisadora Magda Guadalupe dos Santos (2017), em recente artigo publicado,
apontou que o termo “feminismo, atualmente, deve ser utilizado no plural, tendo
em vista a desconstrução dos papéis sociais e binários entre sexos e gêneros que
alimentam o patriarcado”. Magda Santos provoca uma reflexão ao citar a autora
Sally Scholz, que afirma que “feminismo é um projeto crítico”.
Sabemos que o caminho é árduo, hostil e escabroso, sobretudo neste mo-
mento da história, que questiona o governo ilegítimo e uma conjuntura complexa
que demanda mudanças profundas. No entanto, o(s) feminismo(s) continuam de-
safiando o sistema capitalista, racista, machista, cis e heteronormativo, apostando
num compromisso ético e ação política que melhore a vida das mulheres.
Em sua análise sobre “A institucionalização do feminismo”, a autora Nádia
Cantanhede (2012) enfatiza que:
53
respostas. Talvez o feminismo acabe por voltar exclusivamente à sua in-
tervenção nas ruas de forma mais espontânea e menos organizada. Talvez
vá aí beber a sua força, aos movimentos sociais, dos quais ainda faz parte,
mas não em exclusividade ou talvez padeça do governo e encontre uma
nova solução para continuar com o seu trabalho tão necessário aos direitos
humanos.
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54
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56
As mulheres das Conferências Nacionais
de Políticas para as Mulheres são feministas?1
Solange Simões2
Para os leitores deste livro poderia parecer evidente e lógico que as de-
legadas das CNPMs de 2011 e 2016 fossem e se definissem como feministas –
afinal, elas se empenharam em disputar concorridas vagas para representar suas
comunidades, entidades, organizações e movimentos, e se aventuraram em longas
viagens até chegar a Brasília para vários dias de discussões exaustivas sobre as
melhores políticas para defender os direitos das mulheres e a igualdade de gênero
no Brasil. Entretanto, descobrimos com a nossa pesquisa que, mesmo entre as
delegadas das CNPMs, há aquelas que não se definem como feministas e que há
também diversos e nem sempre convergentes entendimentos do que seja o femi-
nismo.
Fica assim evidente que, para responder à pergunta central deste capítulo
– As mulheres das CNPMs são feministas? –, devemos iniciar nossa análise consi-
derando definições de feminismo, e em relação a qual ou quais delas avaliaremos
as concepções e práticas do feminismo das mulheres das CNPMs investigadas em
nossas pesquisas. As teorias sobre o feminismo têm refletido, no Brasil como em
todo o mundo, as experiências, conflitos e divergências dentro dos movimentos de
mulheres e feministas. As trajetórias das práxis e teorias feministas percorreram
trajetórias que vão (de acordo com o chamado feminismo radical) da centralidade
conceitual dada à categoria sexo (e posteriormente, gênero) para o entendimen-
to das desigualdades sociais, passando pela discussão da relevância do conceito
de classe social para entendermos as desigualdades de gênero (de acordo com as
feministas socialistas), até chegarmos ao corrente reconhecimento e consideração
1 Gostaria de agradecer e reconhecer a importante contribuição de Mauro Lucio Jerônymo (dou-
torando em Ciência Política / UFMG) na análise dos dados deste capítulo. Além de executar as ta-
belas e índices que construí para responder a questão de pesquisa central no capítulo, Mauro foi um
importante e crítico interlocutor nas minhas escolhas sobre os passos e procedimentos na análise e
interpretação dos dados.
2 Professora Associada do Departamento de Estudos de Gênero e do Departamento de Socio-
logia da Eastern Michigan University e Coordenadora do Grupo de Estudos de Gênero da mesma
Universidade.
57
das diferenças não apenas entre homens e mulheres, mas também das diferenças
entre as mulheres com base em fatores como orientação sexual, raça e identidade
de gênero, entre outras clivagens sociais correlacionadas a desigualdades estrutu-
rais e sistêmicas.
Pode-se afirmar que há um crescente consenso no entendimento do fe-
minismo atual como sendo um feminismo interseccional, resultante do reconhe-
cimento e entendimento das interconexões de gênero com outros fatores con-
dicionantes das desigualdades sociais (COLLINS; BILGE, 2016; BOSE, 2012;
MOHANTY, 2004). Consistentemente com as novas teorizações sobre as múlti-
plas e interligadas fontes de identidade e de desigualdade, os feminismos vigentes
tanto em países do sul global quanto do norte global têm se transformado num fe-
minismo potencialmente emancipatório, para o qual a superação das desigualda-
des de gênero implica a abolição de outras formas centrais de desigualdade social
(MOHANTY, 2004; BOSE, 2015; MARCHAND; RUNYAN, 2011). O feminismo
emancipatório vai além da afirmação dos direitos das mulheres e da igualdade de
gênero, e passa a utilizar o conceito mais abrangente de justiça social para propor
igualdade para toda a sociedade, e não apenas para as mulheres.
De fato, Alvarez (2000) e Vargas (2008) observam que o feminismo no
Brasil e na América Latina se tornou mais plural com a expansão dos espaços
compartilhados da política feminista; com o aumento da visibilidade e da força
de outras identidades do feminismo – feminismos pretos, lésbicos, comunitários
e populares; com a organização de mulheres, sindicalistas, trabalhadores rurais
etc.; com o envolvimento de feministas que procuraram influenciar e participar
das políticas eleitorais; e com as novas oportunidades de interação em diversas
instituições sociais e políticas. Ao investigarem as origens do conceito de intersec-
cionalidade, hoje central na teoria e práxis feministas, Collins e Bilge (2016) tam-
bém chamam a atenção para o pioneirismo das mulheres negras brasileiras que,
vivenciando o gênero como intimamente interligado com sua identidade racial e
posições de classe, tiveram um papel pioneiro no entendimento da intersecciona-
lidade, tanto enquanto teoria como enquanto práxis.
Este capítulo busca, portanto, situar teórica e comparativamente as defi-
nições de feminismo apresentadas pelas mulheres do feminismo estatal partici-
pativo brasileiro, em comparação com as definições correntes e emergentes nas
teorias e práxis do feminismo transnacional.
De início, é importante observar que, considerando-se as faixas etárias das
nossas entrevistadas (como pode ser visto no Capítulo 1 do Volume 1, quase cer-
ca de metade das delegadas em ambas CNPMs têm até 44 anos e, a outra meta-
de, 45 anos ou mais), podemos pressupor que o conjunto das delegadas, cujos
58
entendimentos do feminismo investigamos neste capítulo, inclui as diferentes ge-
rações de mulheres que ajudaram a construir as várias concepções e práticas do
feminismo no Brasil nas últimas quatro décadas. E esses feminismos brasileiros,
por elas construídos, têm tido uma trajetória, convergente com as dos feminismos
do norte global e do sul global, que vão do feminismo dos direitos dos anos se-
tenta até o atual feminismo interseccional e emancipatório.
Iniciamos este capítulo, assim, com a nossa pergunta original reformulada
para, já explicitar, a definição de feminismo que utilizaremos:
Em que medida as mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro se
consideram feministas e pensam o feminismo em uma perspectiva interseccional e
emancipatória, na qual os direitos das mulheres e a igualdade de gênero estão in-
terligados a fatores além da identidade de gênero – tais como classe social, raça,
orientação sexual e identidade de gênero –, e que inclui a luta pela justiça social e
igualdade para todos?
Feminismo, luta pelos direitos das mulheres e igualdade de gênero não são
frequentemente vistos pelas pessoas como sinônimos ou equivalentes. De fato,
para muitos – homens, mas também mulheres, que acreditam ou não nos direi-
tos das mulheres e na igualdade de gênero –, a palavra “feminismo” continua a
inspirar controvérsias e a provocar respostas viscerais, muitas vezes equivocadas e
carregadas de preconceitos e fortes sentimentos negativos. E, como veremos neste
capítulo, também entre as delegadas das CNPMs de 2011 e 2016, existem aque-
las que, mesmo reconhecendo os direitos das mulheres, consideram o feminis-
mo como um movimento muito radical e negativo e com o qual absolutamente
não se identificam. Além disto, mesmo entre aquelas que se definem como femi-
nistas, os entendimentos e definições de feminismo são diversos e nem sempre
convergentes.
Veremos a seguir como essas controvérsias emergem nos dados das pesqui-
sas das CNPMs realizadas em 2011 e 2016. Em resposta às questões “Tem mulhe-
res que dizem que são feministas. Você se considera uma feminista?” (Pesquisa
2011) e“Tem mulheres que se declaram feministas. Você se considera uma femi-
nista” (Pesquisa 2016), a grande maioria, ou mais de oito em cada dez mulheres,
em 2011 e 2016, se considerou feminista, mas cerca de 17%, tanto em 2016 quan-
to em 2011, não se consideraram feministas. Como seria esperado, porcentagens
muito pequenas (1,7% em 2011 e 5,5% em 2016) dizem não saber se classificar ou
dizer o que é o feminismo.
59
Tabela 1. Autoclassificação como feminista ou não feminista
Considera-se feminista*
2011 2016
Sim Não Sim Não
82,40% 17,60% 82,30% 17,70%
*Em resposta às questões “Tem mulheres que dizem que são feministas. Você se considera uma
feminista?” (Pesquisa 2011) e “Tem mulheres que se declaram feministas. Você se considera uma
feminista?” (Pesquisa 2016).
60
as entrevistadas consideram de fato como mais importante (SIMÕES, 2014;
SUDMAN; BRADBUM; SCHWARZ, 1996; GEER, 1988).
Há também uma percepção generalizada, mas equivocada, que uma ques-
tão aberta necessariamente levaria a respostas mais aprofundadas e refletidas. No
contexto de uma entrevista de survey, utilizando o questionário como instrumen-
to de coleta de dados, as respostas às questões abertas tendem a ser muito curtas,
não claras e a não atender aos objetivos da questão, ou seja, não medir o que
se pretendeu medir (SIMÕES; PEREIRA, 2004; SCHUMAN; PRESSER, 1981).
Um recurso metodológico para esse problema de medição e validade dos dados
é treinar os entrevistadores a utilizarem probes, questões curtas e adicionais para
o esclarecimento das respostas (BEATTY; WILLIS, 2007; SIMÕES; PEREIRA,
2004). Entretanto, dado o contexto da condução das entrevistas – que ocorreram
durante as conferências, quando as entrevistadas tinham suas agendas de grupos
de discussão e trabalho interrompidas para a concessão da entrevista –, o tempo
para se explorar e esclarecer respostas curtas e ambíguas às questões abertas foi
ainda mais limitado, e restringiu o uso consistente e eficaz dos probes pelos nossos
entrevistadores.
Levando em consideração essas questões metodológicas, podemos analisar
agora as falas das entrevistadas. Em primeiro lugar, buscamos fazer uma análise
de conteúdo de discurso, verificando as palavras utilizadas e medindo o número
de ocorrências das ideias e conceitos mais presentes na teoria e práxis feministas.
Na nossa análise agregamos palavras que, apesar de pequenas diferenças semânti-
cas, avaliamos ter equivalência conceitual. É preciso notar também que contamos
o número total de vezes em que palavras foram usadas nas respostas a uma ques-
tão aberta, independentemente de terem sido usadas mais de uma vez em uma
mesma resposta.
As nuvens com as palavras usadas nas respostas às questões abertas (Nuvens
de Palavras A e B abaixo) nos permitem uma visualização comparativa dos ter-
mos mais usados em 2011 e 216 entre as delegadas que se consideraram feminis-
tas e entre aquelas que não se consideraram feministas.
61
Figuras 1 e 2: Nuvens de Palavras 2011 e 2016 A – Feministas
Respostas às perguntas abertas para as que se declararam feministas em questão fechada anterior
– 2011: “A sra. poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo?”; 2016: “O que é o femi-
nismo para você? Você poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo, ou em que você
pensa ao falar em feminismo?”.
Observamos que, tanto em 2011 quanto em 2016 (Tabela 2), entre as entre-
vistadas que se consideraram feministas, os termos que mais apareceram, respec-
tivamente, foram: mulher (259, 277), direitos (124, 151), igualdade (110, 142).
É interessante notar que a palavra “lutar” recebeu um número ainda mais alto
62
de menções em 2016 (144), nas entrevistas conduzidas durante a CNPM reali-
zada em maio de 2016 e em dias que coincidiram com o início do processo de
impeachment da primeira mulher presidente no Brasil, Dilma Rousseff. É grande
o número de delegadas que deram centralidade à práxis e à identidade nas suas
definições de feminismo:
63
Duas entrevistadas ofereceram definições chamando a atenção para o fato
de que o feminismo não é um movimento contra ou anti-homen:
Apesar dos altos níveis de escolaridade das delegadas (quase 2/3 das dele-
gadas em 2011 e 2016 têm curso superior ou pós-graduação, como discutido no
Capítulo 1, Volume 1), conceitos que vão além das noções básicas de direitos e
igualdade e que são centrais para elaborações mais abrangentes e refinadas do fe-
minismo também recebem poucas menções – tais como autonomia (29 citações
em 2011 e 31 em 2016) e empoderamento (7 e 22, respectivamente). O conceito
de patriarcado, central para a explicação e compreensão das relações de gênero,
recebeu apenas 10 menções em 2016 e 11 em 2011. É curioso observar que o
conceito interseccional só recebeu uma citação em 2011 e em 2016; e transversal
mencionado apenas uma vez em 2016 e em 2011 (transversalidade). De maneira
semelhante, noções centrais ao feminismo interseccional também obtiveram um
número muito reduzido de menções: raça (apenas 6 em ambos os anos), sexuali-
dade (15 em 2011 e 14 em 2016), trabalho (15 em 2011 e 12 em 2016). Apesar do
alto índice de sindicalização entre as delegadas (ver Capítulo 1), o sindicato não
é espontaneamente mencionado em 2011, e apenas 1 vez em 2016 pelas entrevis-
tadas ao definirem o feminismo.
O termo “mundo” só apareceu em 11 respostas em 2011 e 5 em 2011, ape-
sar da importância do feminismo transnacional na emergência e desenvolvimen-
tos dos feminismos no Brasil e dos feminismos brasileiros para a o diálogo norte-
-sul e para a evolução da agenda feminista internacional:
64
motivações para o ativismo de mulheres na esfera pública (especialmente se com-
parado com década de setenta, quando a defesa das condições de vida da família
era motivação fundamental nos movimentos de mulheres), que a palavra “famí-
lia” só foi mencionada 3 vezes em 2011 e 4 vezes em 2011. Mais ainda, a centrali-
dade da família só apareceu em uma definição de feminismo (“Defender a família,
se preocupar com a base estrutura familiar”). Por outro lado, contudo, a divisão
sexual do trabalho doméstico e cuidado com os filhos foram também raramente
mencionados, apesar da sua centralidade na manutenção de papéis tradicionais
de gênero e da segregação ocupacional das mulheres, fatores considerados expli-
cativos da persistência das desigualdade de gênero em várias outras esferas.
65
É significativo que, de uma lista com termos frequentes e importantes em
um discurso feminista, como mostrado na Tabela 2, apenas o termo “autonomia”
foi citado, e apenas uma vez, pelas entrevistadas que declararam não ser feminis-
tas. E, em contraste com as linguagens usadas pelas delegadas que se identificaram
como feministas, entre as delegadas que não se consideraram feministas, o termo
“radical” foi o mais mencionado, tanto em 2011 quanto em 2016, e associado a
visões negativas e fortemente contrárias ao que acreditam que o feminismo seja,
como veremos mais adiante e como pode ser muito bem visualizado na Nuvem de
Palavras B acima. Em alguns casos, porém, o uso do termo radical aparece mais
associado a críticas internas ao movimento:
66
2. Igualdade de gênero: definições que tendem a ser relacionais fazendo
referências à igualdade com homens, mas que não enfatizam as dimensões
transformadoras, de empoderamento e autonomia do feminismo (2011:
12%; 2016: 23%). Alguns exemplos:
67
• “Empatia, sororidade, se amar, empoderamento, mudança, liberdade,
poder, amizade entre as mulheres, luta contra opressão, ser o que se é.”
• “É a busca pela autonomia da mulher. Ter controle sobre a vida própria,
corpo. Busca por direitos.”
• “Desconstruir a figura do patriarcado na sociedade judaico-cristã.
Desconstruir a história onde as mulheres estão subjugadas, ter autono-
mia sobre o corpo e econômica e ter uma educação libertária.”
• “Lutar pelos nossos objetivos, ter o direito de decidir, mandar no meu
corpo e na minha vida.”
• “Minha concepção a respeito do feminismo se baseia na consagração
dos direitos humanos de todas as mulheres, contemplando a pluralidade
e autonomia das mulheres.”
68
• “O feminismo não é uma questão de teoria, é uma filosofia de vida, uma
política, defende a construção de um mundo de igualdade, a transfor-
mação da sociedade para a conquista do bem-estar das mulheres como
um todo, defende os direitos das mulheres. Tem sua abrangência sem
excluir; no Brasil nós temos vários feminismos. Devemos respeitar essa
diversidade. Não é apenas uma maneira de ser, é uma filosofia de vida.”
• “É uma vontade de construir uma outra sociedade baseada na igualdade
e que essa sociedade seja anticapitalista e não patriarcal.”
• “Que as pessoas sejam vistas e tratadas com direitos e oportunidades
iguais para todos e todas.”
• “Para mim feminismo é um compromisso de ação política, em favor das
mulheres e pela transformação do mundo. Nosso slogan é esse: ‘trans-
formação do mundo pelo feminismo’.”
• “Do meu ponto de vista, embora existam questões específicas, a eman-
cipação das mulheres está intimamente ligada à emancipação social e,
portanto, a luta feminista deve andar junto com a luta por uma socieda-
de justa e igualitária. Por isso mesmo, ao se organizarem as lutas, deve-
-se pensar que não existe a mulher, mas as mulheres, que se diferenciam
conforme sua condição social, sua raça/cor, sua geração, sua orientação
sexual, a região onde residem.”
• “Construir uma sociedade justa e igualitária.”
• “Feminismo é auto-organização das mulheres em luta para transformar
o mundo e promover igualdade. É um movimento social e uma prática
política.”
• “Mudança radical na sociedade, mundo mais humano.”
• “Emancipação humana, não só da mulher, igualdade como um todo.”
• “Uma ideologia para mudar o mundo. Mudar a vida das mulheres para
mudar o mundo, e mudar o mundo para mudar a vida das mulheres,
garantindo que as mulheres sejam tratadas como iguais.”
69
Quais são as atitudes (crenças e opiniões) das mulheres do
feminismo estatal brasileiro?
70
Tabela 3. Desigualdades que existem entre homem e mulher – Em primeiro lugar*
Ano
Resposta 2011 2016
% %
violência 3,9 3,3
trabalho/profissional/salário/renda 62,7 56,7
esfera privada e cuidado 6,2 4,7
racismo/machismo/sexismo 11,5 12,9
liberdade/sexualidade 3,1 1,9
política/poder 7,8 13,4
outros 2,2 2,5
Sem resposta 2,5 4,7
*Pergunta aberta: “Pensando no mundo de hoje, quais são para você as principais desigualdades
que existem entre as mulheres e os homens? O que mais é desigual? E em segundo lugar? E em
terceiro lugar?”
Na questão seguinte – sobre o que deveria mudar para melhorar a vida das
mulheres –, mais uma vez são as questões relativas à situação de classe (equipa-
ração profissional/renda em 2011 e trabalho/renda em 2016) aquelas mais espon-
taneamente citadas, seguidas pela participação política/poder/políticas públicas e
autonomia/liberdade. O combate a discriminações/igualdade aparece com desta-
que em 2016. O racismo, sexismo e lesbofobia recebem poucas citações em 2011
e não são mencionados em 2016.
71
Tabela 4. O que mudar para que a vida das mulheres melhorasse em primeiro lugar*
Ano
Resposta 2011 2016
% %
combate à violência 8,7 6,6
equiparação profissional/renda 15,3
esfera privada e cuidado 3,4 2,2
trabalho/renda 24,9
combate a discriminações/igualdade 17,8
autonomia/liberdade 13,4 12,1
desenvolvimento 0,8
terra, campo e floresta 0,6
cultura, esporte, mídia 0,3
racismo, sexismo, lesbofobia 6,2
participação política/poder/políticas públicas 12,6 22,7
educação creche 14 12,3
saúde da mulher/direito ao corpo 3,9 3
outros 6,7 1,1
sem resposta 4,5 6,8
*Pergunta aberta: “Se você pudesse mudar qualquer coisa para que a vida de todas as mulheres
melhorasse, qual seria a primeira coisa que você faria? E a segunda? E a terceira?”
72
Tabela 5. Principal problema das mulheres no Brasil, estado e município
Brasil Estado Município
2011 2016 2011 2016 2011 2016
Respostas
% % % % % %
trabalho/renda 23,5 10,7 14 11,2 16 11,8
educação 3,1 1,9 5,3 0,8 3,4 1,1
saúde 3,6 3,8 4,8 4,1 5,9 4,1
violência 36,7 37,8 32,2 38,1 29,1 36,7
participação política 4,5 5,8 6,2 4,4 6,7 3
políticas públicas 2,7 7,4 5,2
desenvolvimento 0 0,3 0,6
terra/moradia/comunidades
2,2 23,8 1,6
tradicionais
família/trabalhos domésticos 19,7 0,3 1,4
racismo, sexismo, lesbofobia 9,3 0,5 20,7
discriminações 0,8 5,5 7,4
desigualdades 20,7 13,4 6,3
outros 2,2 0,5 6,7 7,1 7,6 8,2
73
• No Brasil, as mulheres afrodescendentes/negras e indígenas sofrem dis-
criminação em função da raça/cor.
• As cotas raciais para as universidades públicas no Brasil representam
um avanço social.
74
as medidas e indicadores incluídos nas pesquisas de 2011 e 2016, encontramos –
indo para além da autoclassificação das respostas das delegadas na questão aber-
ta sobre as concepções de feminismo – evidências adicionais para classificar as
delegadas das CNPMs como sendo majoritariamente feministas. É importante
qualificar, entretanto, que apenas as questões fechadas atitudinais (afirmativas
com as quais as entrevistas deviam concordar ou discordar) produziram um índi-
ce muito alto não apenas de atitudes feministas, mas de atitudes favoráveis a um
feminismo interseccional. Nas respostas às questões atitudinais abertas (sobre os
principais problemas enfrentados pelas mulheres no país, estado e município) as
questões relativas à classe social tiveram muitas citações espontâneas, mas racis-
mo, sexismo, lesbofobia foram raramente mencionados.
Entretanto, ao encontrarmos evidências nas respostas às questões sobre
percepções e opiniões para classificar as delegadas das CNPMs como sendo ma-
joritariamente feministas, temos que ter em mente que, por um lado, a validade
das medidas atitudinais em um survey pode ser questionada, dada a possibilidade
de as respostas serem editadas pelas entrevistadas para expressar opiniões social-
mente desejáveis ou politicamente corretas. Por outro lado, como é frequente-
mente encontrado pelas ciências sociais, e especialmente pela metodologia de sur-
vey, atitudes tendem, muitas vezes, a não serem consistentes ou correlacionadas
a comportamentos. Portanto, buscaremos responder à nossa pergunta inicial – se
as mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro são feministas – conside-
rando a seguir as medidas mais “duras” da nossa pesquisa, ou seja, as medidas de
seus comportamentos, das suas práticas e de seus ativismos. Esperamos que os
comportamentos das entrevistadas possam nos ajudar a entender não apenas a
extensão ou difusão do feminismo entre as delegadas, mas também a profundi-
dade desses feminismos.
No caso das nossas duas pesquisas, podemos buscar nas respostas às ques-
tões sobre o comportamento das entrevistadas indicadores para as suas concep-
ções sobre o feminismo que vão além das respostas sucintas e pouco elabora-
das para a questão aberta inicial e também vão além das respostas às questões
atitudinais relativas a causas feministas, as quais podem ser, em parte, efeito de
respostas socialmente desejáveis. Buscaremos, portanto, nas medidas de compor-
tamento das entrevistadas, a confirmação de suas percepções e posições feminis-
tas, ou o que os seus discursos podem não ter revelado. Nesta seção do capítulo
75
procuraremos conhecer as concepções do feminismo pelas delegadas não apenas
considerando o que elas dizem, mas como agem. Para isto utilizaremos as medi-
das de associativismo e ativismo político das pesquisas 2011 e 2016.
Em primeiro lugar, consideraremos a participação em movimentos de
mulheres. Como poderia ser esperado das delegadas nas CNPMs, suas partici-
pações em diversas atividades, reuniões, manifestação dos movimentos de mu-
lheres são bastante intensas: cerca de 80% em 2011, assim como em 2016, relata-
ram participar sempre, cerca de 15% em 2011 e 2016 disseram participar às vezes
e apenas 4% em ambos os anos nunca participaram. Além desta participação em
atividades, em 2016, 74,6 % das delegadas relataram participar formalmente (ser
filiada) ou informalmente (participar de reuniões) de movimentos ou redes de
mulheres ou feministas.
Contudo, ao indagarmos se as mulheres do feminismo estatal participativo
brasileiro são feministas, investigamos se, além da participação nos movimentos
de mulheres, as delegadas das CNPMs de 2011 e 2016 praticavam um feminismo
interseccional, lutando contra discriminações e desigualdades para além do gêne-
ro. Buscamos explorar também seus conhecimentos e suas ações em outros mo-
vimentos, redes e partidos e estabelecer uma distinção entre seu associativismo
civil e político e seu ativismo político.
Para medir o associativismo civil e político, perguntamos sobre a partici-
pação em uma ampla gama de grupos, entidades e organizações, como enumera-
do na descrição da Tabela 7, que mede o associativismo em movimento ou rede
de mulheres ou feminista, mas também em movimentos ou grupos que se orga-
nizam em oposição às desigualdades socioeconômicas ou de classe, em defesa do
meio ambiente, em combate ao racismo, à homofobia, à lesbofobia, à transfobia,
ou seja, em torno de clivagens sociais centrais à teoria e práxis interseccional. De
início descobrimos que, em 2016, 35% das delegadas também participavam for-
mal (como membro) e informalmente (participando de reuniões) do movimento
negro; 19,3% de coletivos LQBT; 43,5% de sindicatos e 29,8% de movimentos
ambientais e ecológicos.
Colocamos agora uma nova questão para nossa análise: a participação e o
ativismo múltiplo em e com agendas de classe, de raça, de identidade de gênero
e orientação sexual seriam suficientes para conceituar o feminismo das delega-
das como um feminismo interseccional? O conceito de feminismo intersecional
requer não apenas a participação em múltiplos e diversos movimentos, grupos,
redes e entidades, mas também a consciência, a vivência e a promoção das inter-
conexões entre as lutas pela igualdade de gênero e aquelas contra os principais
sistemas e estruturas de desigualdades sociais e políticas. Portanto, ao criarmos
76
uma medida que apenas adicionou as múltiplas formas de associativismo das de-
legadas, consideramos ser mais conceitualmente correto nomeá-lo enquanto ape-
nas um Índice de Associativismo Civil e Político Potencialmente Intersecional
(IACPPI). Os níveis do IACPPI medem apenas o número de associações das
quais as delegadas participam e pressupõe que, quanto maior o número das asso-
ciações, potencialmente maior será a participação das delegadas em uma agenda
múltipla e intersetorial que permita a expansão do feminismo para vários lugares,
potencializando assim as oportunidades para interconexões das agendas de luta e
uma práxis emancipatória, transformadora das atuais relações sociais de desigual-
dade, discriminatórias e de exploração.
Como mostra a Tabela 7, é bastante alta a proporção das mulheres do femi-
nismo estatal participativo brasileiro com níveis altos de um associativismo civil
e político potencialmente intersecional, mas com diminuição significativa entre
2011 e 2016. Em 2011, 23,5 % participaram em 4 a 5 entidades e 40% participa-
ram em mais de 5; mas em 2016 os níveis caíram, com 28,2 % participando em 4
a 5 entidades e 24,1% participando em mais de 5. Essa tendência à diminuição nos
níveis de participação também se revela no fato de que a porcentagem daquelas
que não participavam de nenhuma entidade mais que dobrou, indo de 6,2% em
2011 para 15,3 % em 2016.
77
e outros centros religiosos; Associação de assistência social; Movimento ou rede de ativismo de mu-
lheres ou feminista; Movimento Negro; Movimento Indígena; Movimento LGBT; Partido político.
Cálculo: Algum tipo de participação = 1; Outra situação = 0.
Somatório varia de 0 a 12.
Faixas do Índice: 0 – Não participa; Níveis de associativismo: 1 – 1 ou 2; 2 – 3; 3 – 4 ou 5; 4 – acima
de 5.
78
Participa de reuniões de algum movimento ou causa social; Participa de reuniões de partidos
políticos;
Quando tem eleições, faz trabalho voluntário para algum candidato ou partido político;
Faz pedidos para políticos ou funcionários públicos; Assina manifestos de protesto ou de
reivindicações;
Participa de manifestações a favor ou contra o governo por alguma causa;
Participa de atividades/reuniões/manifestações do movimento de mulheres;
Cálculo: Algum tipo de participação = 1; Outra situação = 0
Somatório varia de 0 a 12
Faixas do Índice: 0 – Não participa
Níveis de participação: 1 – 1 ou 2; 2 – 3; 3 – 4 ou 5; 4 – acima de 5
79
não encontramos muitos surveys, especialmente mais recentes ou conduzidos na
última década, que incluíssem estas duas perguntas.
No Brasil, as autoclassificações e definições do feminismo entre as mulhe-
res brasileiras em geral foram investigadas por dois surveys nacionais conduzidos
pela Fundação Perseu Abramo em 2001 e 2010. A pesquisa da Fundação Perseu
Abramo, conduzida entre as mulheres brasileiras em 2010, não incluiu a pergunta
de autoclassificação como feminista, mas na versão anterior da pesquisa, em 2001,
esta questão foi incluída, e revelou que 28% das mulheres brasileiras se declara-
ram ser feministas e 43% não se consideram feministas.
O survey de 2010, realizado apenas meses antes do survey da CNMP de
2011, nos oferece, portanto, uma ótima possibilidade de comparação das defini-
ções do feminismo pelas mulheres da CNPM 2011 com as definições oferecidas
pelas mulheres brasileiras em geral. Além da proximidade das datas de coleta dos
dados, a análise comparativa das respostas também é metodologicamente pos-
sível, dado o nível de comparabilidade entre os formatos das questões (questões
abertas), assim como dos enunciados das questões sobre o entendimento de femi-
nismo nos dois surveys:
CNPM 2011: A Sra. poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo?
Pesquisa Perseu Abramo 2010: O que você entende por feminismo? Mesmo só de
ouvir falar, o que você acha que é feminismo? Em que você pensa quando ouve a
palavra feminismo?
80
geral da Pesquisa Perseu Abramo, escolheram termos muito semelhantes – “au-
toritárias, mandonas, machistas, mulher que gosta de mulher, mulheres que se
sentem superiores aos homens” – para expressar seus entendimentos ou desapro-
vação do feminismo. Curiosamente, o termo radical (e com conotação negativa)
foi usado apenas pelas mulheres da CNPM de 2011.
– Entre as mulheres brasileiras em geral, há uma maior ocorrência de equiparação
dos conceitos de feminismo e feminino, com muitas referências a comportamentos
“dóceis e a vaidade” das mulheres.
81
Considerações finais: contextualizando os dados dos
nossos surveys e situando o feminismo das mulheres das
CNPMs na trajetória do feminismo no Brasil e do feminismo
transnacional
82
(a terceira onda), bem como dos processos de institucionalização e elaboração
de políticas de 2003 a 2016 (a quarta onda) (MATOS; SIMÕES, 2017; SIMÕES;
MATOS, 2008; PINTO, 2003; ALVAREZ, 1990, 1994).
Apesar das diferenças dos contextos históricos e políticos, muitas das trans-
formações e dilemas centrais do feminismo no Brasil têm semelhanças impor-
tantes com aquelas dos feminismos em outros países, tanto do sul global quan-
to do norte global. Novas formas de pensar as relações de gênero chegaram ao
Brasil através das mulheres de classe média, intelectualizadas, que estiveram nos
EUA e na Europa como exiladas. Mas a centralidade dada pelo feminismo radi-
cal à categoria sexo (e posteriormente, gênero) na explicação das desigualdades
sociais foi questionada por militantes feministas e socialistas, especialmente no
contexto de luta contra a ditadura e o chamado “capitalismo selvagem” (PINTO,
2003). Nesse contexto, os movimentos de mulheres brasileiras são um exemplo
de alianças bem-sucedidas entre grupos de mulheres feministas de classe média
autoidentificados com a classe trabalhadora e mulheres negras. E isso não se dava
apenas na luta contra o autoritarismo militar, mas também na luta por mais direi-
tos para as mulheres. Também é relevante notar que, enquanto essas mulheres da
classe média feminista também tinham vínculos estreitos com partidos políticos
de oposição e organizações de esquerda, a classe trabalhadora e o movimento
das mulheres negras eram apoiados pela Igreja Católica e pelas organizações de
base do bairro. Consequentemente, seus problemas iam de uma agenda clássica
de direitos feministas às demandas de melhoria das condições de vida da família
(ALVAREZ, 1990; SIMÕES; MATOS, 2008).
Ao analisarmos as trajetórias dos movimentos feministas e de mulheres no
Brasil (e as intersecções entre movimentos de mulheres trabalhadoras, de periferia
e negras com os grupos feministas de classe médias e intelectuais na ditadura
e transição democrática) temos também de ressaltar que o “diálogo local” entre
os movimentos de mulheres e feministas no Brasil precisa também ser entendi-
do a partir de suas conexões com o feminismo transnacional nos Encontros das
Mulheres das Nações Unidas (de 1975 no México a 1995 em Beijing); na parti-
cipação das mulheres brasileiras na formulação e implementação da Plataforma
para a Ação de Beijing, uma agenda mais ampla e com abordagem mais intersec-
cional das desigualdades de gênero; na ratificação pelo Brasil da Convenção para
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW)
e, especialmente, através dos relatórios produzidos pela Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres para submissão ao Comitê CEDAW da ONU, e as re-
comendações feitas ao Brasil pelo Comitê em resposta aos relatórios brasileiros
(SIMÕES; MATOS, 2008; MATOS; SIMÕES, 2017; BASU, 2003; THAYER, 2001).
83
De fato, nas últimas décadas, principalmente a partir das conferências
mundiais de mulheres organizadas pelas Nações Unidas e da emergência do femi-
nismo transacional, teoria e práxis feministas têm sido produzidas e expandidas
pelo reconhecimento das múltiplas diferenças locais, assim como das convergên-
cias globais das condições econômicas políticas e culturais das mulheres. O femi-
nismo em todo mundo se torna cada vez mais plural e atento às diferenças não
apenas entre mulheres e homens, mas também às diferenças entre as mulheres e às
interconexões entre suas identidades de gênero, suas identidades raciais, suas po-
sições de classe e suas orientações sexuais, entre os vários fatores condicionantes
das desigualdades sociais (MARCHAND; RUNYAN, 2011; YUVAL, 2006; TRIPP,
2006; ANTOBUS, 2004; BASU, 2003).
Podemos concluir afirmando que as delegadas das CNPMs de 2011 e 2016
são, em sua grande maioria, feministas que têm participado da construção dos fe-
minismos no Brasil, e que neste processo têm desenvolvido uma prática crescente
de um “feminismo interseccional”, e contribuído para as transformações – além
das suas próprias atitudes e comportamentos individuais analisadas neste capítulo
– das teorias e práxis coletivas dos movimentos feministas no Brasil e do feminis-
mo transnacional.
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84
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86
As CNPMs e a configuração do campo feminista:
sidestreaming e mainstreaming através do
“feminismo estatal participativo”
Marlise Matos1
Sonia E. Alvarez2
87
e especialmente após a chegada do PT ao governo federal em 2003, muitas mi-
litantes advindas dos diversos espaços onde circulavam os discursos feministas,
tanto na sociedade civil quanto na sociedade política (partidos), passaram a tran-
sitar pelas burocracias e assessorias do Estado, trazendo com elas a sua “bagagem”
feminista e tentando traduzir e implementar as suas agendas para o ambiente fre-
quentemente hostil de um Estado ainda estruturalmente patriarcal, racista, lesbo-
-homotransfóbico e capitalista.4
Assim, o sidestreaming feminista indiretamente facilitou a incorporação
– sempre parcial, seletiva e, muitas vezes, tergiversada – de alguns discursos e
demandas feministas provindos da sociedade civil pelo próprio Estado, no caso
do governo petista, pela SPM e o “feminismo estatal participativo”, e promoveu
sua difusão ao longo do tecido social – ver Gonzalez (cap. 2), Carvalho (cap. 3) e
Matos e Lins (cap. 4) do vol. 1.5
No caso específico das CNPMs, os fluxos verticais das feministas e as suas
demandas para os espaços estatais juntaram-se e, muitas vezes, enfrentaram e
confrontaram-se com aqueles oriundos da sociedade civil, efetuando uma movi-
mentação discursiva multidirecional: um processo de “sidestreaming via mains-
treaming” e vice-versa. São especificamente esses fluxos e as suas conjunções que
mapeamos neste capítulo.
Como vimos nos capítulos de Simões (vol. 2, cap. 2), Pinto (vol. 1, cap. 5) e
Marques (vol. 1, cap. 6), a esmagadora maioria das participantes das duas CNPMs
pesquisadas, tanto as representantes do Estado quanto aquelas da sociedade civil,
se identificou como feministas: foram mais de 82%. Aqui, traçamos as trajetórias,
os principais caminhos políticos trilhados e as formas de participação e articu-
lação dessas participantes e delineamos as relações das organizações que elas re-
presentavam com outras entidades na sociedade civil e política e, também, com
variadas instâncias do Estado. Com isso, pretendemos ilustrar e analisar como
os fluxos verticais (em direção aos partidos e às instituições do Estado, inclusive
aquelas “híbridas”, como os conselhos, que têm representantes da sociedade civil e
Mulheres, realizada em Beijing (1995). Este foi debatido e afirmado, àquela época, como um conceito-
chave que fortaleceria a estratégia de luta das mulheres para que as suas reivindicações fossem
implementadas pelos Estados, nas políticas públicas e de uma forma mais eficaz. Rapidamente o
conceito passou a ser traduzido no português como “transversalidade de gênero”. Para leituras críticas
das origens e contradições dos processos de mainstreaming, ver EYBEN, 2013; MUKHOPADHYAY,
2004; PRÜGL, 2009; WALBY, 2005, 2007.
4 Sobre a inserção de ativistas e ativismos feministas nas esferas estatais e intergovernamentais,
veja ABERS; TATAGIBA, 2015; ALVAREZ et al., 2017; BANASZAK, 2005; PHILLIPS; COLE, 2009.
5 Sobre o feminismo estatal participativo, ver MATOS, 2010; MATOS; PARADIS, 2013; COSTA;
SARDENBERG, 2010.
88
do Estado) se vinculam aos fluxos horizontais para configurar um setor significativo
do campo feminista brasileiro atual, cujos referentes principais são o Estado e as
arenas de políticas públicas; construindo-se, assim, uma espécie de “subcampo” de
ativismo feminista junto ao Estado.6
O que nos levou a pesquisar as trajetórias políticas das participantes das
CNPMs foi, justamente, o fato de essas conferências serem espaços políticos hí-
bridos, oficialmente definidos como lugares de “integração” de gênero e feminista
que pretendiam operar transformações nas políticas estatais. Eles dariam desta-
que aos fluxos verticais dos feminismos e das demandas de gênero e feministas
junto ao Estado brasileiro e também constituiriam lugares de protagonismo das
delegadas, provindas de diferentes espaços de ativismo político anterior, ou seja,
de diversos fluxos horizontais e verticais da militância feminista no Brasil. Mas
quais seriam, afinal, esses fluxos? De quais redes de interações e ativismos vieram
essas delegadas? Este capítulo pretende oferecer algumas pistas nesse sentido.
Mostraremos que as trajetórias das militantes que circulam nesse “subcam-
po” de ativismo feminista junto ao Estado brasileiro, como as participantes de
ambas CNPMs aqui pesquisadas, nem sempre iniciaram seu envolvimento polí-
tico diretamente no movimento feminista e de mulheres, mesmo que a maioria
tenha se identificado como feminista na hora da pergunta respondida em nossos
surveys. Essas múltiplas experiências de participação e as trajetórias, redes e flu-
xos multidireccionais mapeados neste capítulo, através da metodologia de análise
de redes, e os grafos dessas trajetórias aqui representados sugerem que muitas
ativistas feministas começaram a sua militância política em outros movimentos/
entidades da sociedade civil e que as identidades e ideias feministas se gestaram,
depois transitaram continuamente e, a princípio, então, se ressignificaram nos
mais variados lugares da sociedade civil e política brasileira, no Estado e também
em espaços políticos híbridos, como os conselhos e as próprias CNPMs.
Portanto, prestamos atenção especial à trajetória do ativismo político dessas
participantes, ao ativismo feminista e também não feminista e às relações de sides-
treaming e mainstreaming da própria instituição/organização que a participante
representava na Conferência. Como instituições/organizações que tramam a rede
do sidestreaming feminista das delegadas entrevistadas nessa pesquisa, podemos
6 Se fôssemos aplicar o nosso mesmo survey em outros lugares onde atualmente transitam e se
traduzem os feminismos, como alguns setores de diversos movimentos como os LGBT ou negros,
ou espaços insistentemente autônomos dos feminismos, como as Marchas das Vadias (FERREIRA,
2013; GOMES, 2018; NAME; ZANETTI, 2013), e os recentes rolês anarco-feministas (ver CARMO,
2016; MARTELLO, 2015), sem sombra de dúvida, identificaríamos tramados de vínculos e articu-
lações bastante diferentes dos que caracterizam o “subcampo” feminista articulado junto ao Estado
focado aqui, mesmo com algumas, porém importantes, sobreposições.
89
citar: as organizações do associativismo comunitário (e sua diversidade temática
que aparece através das distintas questões com as quais lida: mulheres, moradia,
bairro, donas de casa etc.), o movimento estudantil, o movimento negro, o movi-
mento LBTG, o movimento de juventudes, o movimento indígena, o movimento
rural, além das organizações sindicais e também das ONGs. E como exemplos de
organizações que tramam a rede do mainstreaming feminista, citamos: os conse-
lhos (que mesmo sendo instituições híbridas são fundamentalmente viabilizadas
pelo Estado), os partidos políticos, as entidades de classe (tais como a OAB e o
CRM), e, claro, as organizações do próprio Estado (seja no Poder Executivo, no
Legislativo ou no Judiciário).
Estivemos atentas ainda às inúmeras formas de articulação possíveis do ati-
vismo e dos respectivos vínculos horizontais e verticais identificados: entre dife-
rentes movimentos organizados da sociedade civil (negro, LQBT, rural e indígena,
principalmente e, em menor escala, os movimentos ambientalistas e culturais) e o
feminismo; entre o feminismo e o ativismo vinculado às formas de associativismo
comunitário (focado em questões específicas de mulheres, de moradia, de luta
nos bairros etc.); entre os feminismos e o ativismo de caráter mais institucionali-
zado (em movimentos estudantis: participação em grêmios, centros acadêmicos
e organizações estudantis nacionais como UNE e Ubes); em sindicatos; institui-
ções religiosas: católicas, protestantes e de matriz africana; entidades profissionais;
conselhos em geral e conselhos da mulher em específico; partidos; e, finalmente,
instituições vinculadas ao Estado (OPMs, poder Legislativo e poder Executivo).
Focalizando as CNPMs como espaços híbridos, onde tanto as feministas
como as integrantes dos outros movimentos de mulheres, que atuam dentro e/
ou fora das instituições formais, se articulam entre si, com outros movimentos, e
com diversos funcionárias(os) do Estado, nosso interesse aqui é analisar e ilustrar
(inclusive visualmente) a importância desses vínculos, entre e através, das mais
distintas formas de ativismo. Queremos avançar uma posição teórica que reco-
nheça interações muito complexas entre Estado, sociedade política e sociedade
civil, entre as próprias organizações dos movimentos e da sociedade civil em geral
(dentre elas o feminismo) e entre as formas mais institucionalizadas de organiza-
ção política (sindicatos, entidades profissionais, por exemplo). A riqueza multidi-
mensional dessas articulações será amplamente comprovada nessas análises. Não
há apenas relações de oposição ou de cooptação (que basicamente se sustentam
numa matriz cognitivamente binária). Vamos poder observar neste capítulo, ao
contrário, a existência de verdadeiras tramas complexas de interações políticas,
onde se evidenciam formas muito mais intrincadas de relacionamento que fre-
quentemente são recíprocas.
90
Conforme anunciamos, o nosso principal recurso metodológico foi a análi-
se de redes sociais e análise de estatísticas descritivas básicas de redes sociais (ARS).
Foram elaboradas várias redes, mas para os fins analítico-teóricos deste capítu-
lo, foi decidido apresentar quatro tipos distintos delas, quais sejam: (a) redes de
trajetórias (que identificaram o caminho das trajetórias do ativismo político das
delegadas entre as organizações e/ou movimentos dos quais elas participam); (b)
redes de participação (que representaram as formas organizativas dessa participa-
ção política das delegadas); (c) redes de articulação (que descrevem graficamente
as formas como as organizações e movimentos nos quais as delegadas participam
se articulam entre si); e, finalmente, (d) redes de fluxos (que visaram mapear a
direção dos materiais e recursos que são produzidos pela organização/movimento
do qual as delegadas declararam participar).
Todas essas redes foram descritas para os dois anos pesquisados nos nossos
surveys, a saber: 2011 e 2016. Em algumas análises foram feitos recortes parciais
de redes completas (quase como se déssemos uma espécie de zoom na nossa rede),
para se obter maior clareza em relação às interações. Dessa forma, neste capítulo
vamos ver análises de sete conjuntos de redes diferentes. Vamos ver a seguir uma
breve introdução sobre a metodologia das Análises de redes, e na sequência as
análises das redes do ativismo das delegadas das 3ª e 4ª CNPMs.
91
nível 2 e uma de nível mais específico, detalhado e desagregado/nível 3). Optamos
por essa forma de categorização porque nem todas as respondentes disseram es-
pecificamente o “nome” da organização de que participaram, mas algumas de-
las apenas a localizaram genericamente. Essas categorizações estão descritas no
Quadro 1 abaixo:
92
Movimento C/A Movimento Criança Adolescente
Movimento
Movimento pessoa com deficiência
Deficientes
Movimento Direitos
Movimento Direitos Humanos
Humanos
Movimento
Movimento de Pescadores
Pescadores
Movimento Esporte
Movimento Esporte e Lazer
e Lazer
Movimento
Movimento Indígena
Indígena
Movimento Rural MST
Movimento Saúde Movimento Saúde – Reforma Sanitária
Movimento Saúde
ONG
ONG – Deficiência
ONGs ONG – OSCIP Estadual
ONG – Meio ambiente
ONG – Ciganos
OAB
Entidades de OAB e CRM
CRM
Classe
Sindicatos Sindicatos
Partidos Partidos Políticos Estrutura Partidária
Conselho Mulheres
IP – Inst. Conselho Mulheres – municipal
Conselhos
Híbridas Conselho Mulheres – estadual
Conselho Criança – municipal
OPM
OPM – estadual
OPM – Municipal
OPM – SPM Federal
OPM – SEPPIR
Prefeitura
Secretaria de Estado – Municipal
Poder Executivo
Secretaria de Estado – Estadual
Estado Agência Federal – CNPq
Agencia Federal – ANA
Agência Federal – Itaipu
Agência Federal – IPEA
Agencia Federal – CEF
Ministério Federal
Poder Legislativo – Municipal
Poder Legislativo
Poder Legislativo – Estadual
Fonte: Elaboração própria
93
Nas análises a seguir, vamos lançar mão dessas três categorizações que
estão apresentadas nas colunas do Quadro 1 acima. Por outro lado, para serem
analisadas a presença e a importância do sidestreaming via mainstreaming e vice-
-versa, foi realmente necessário descer às nuances, nos detalhes e especificações
das categorizações. Todavia, entendemos que nenhuma categorização é perfeita,
e essas escolhidas foram aquelas que atendiam melhor aos nossos interesses de
investigação.
Os dados apresentados a partir da metodologia de Análise de Redes Sociais
(ARS) são muito mais compreensíveis quando queremos entender, como é o caso
aqui, as dinâmicas de interação entre instituições e/ou entidades das quais as de-
legadas participam ou participaram. Melhor do que tabelas e gráficos, esse recur-
so metodológico e seus respectivos grafos nos permitirão ver não apenas o per-
centual de participação nas diferentes instituições, mas também a sua magnitude
relativa em cada uma das análises propostas e as dinâmicas de suas importantes
interações. Todavia, para que tenhamos uma visão geral sobre a participação e/ou
ativismo das delegadas, vamos apresentar aqui apenas duas tabelas que definem
os percentuais dessa participação em 2011 e em 2016, quando as delegadas elen-
caram as instituições e/ou movimentos que participam em primeiro, em segundo
e depois em terceiro lugar.
94
Movimento Por Movimento de
4 2,4 Movimento Rural 2 2,3 1 2,4
Moradia Juventude
Movimento em
Associativismo
Religião/Igreja 3 1,8 1 1,2 Prol dos Direitos 1 2,4
Comunitário
Humanos
Movimento Movimento de Entidade
3 1,8 1 1,2 1 2,4
Ambientalista Pescadores Profissional
Movimento de
2 1,2 Religião/Igreja 1 1,2 Religião/Igreja 1 2,4
Juventude
Movimento de Movimento por
2 1,2 1 1,2 Total 41 100
Cultura Moradia
Movimento de
2 1,2 Total 86 100 System 320
Deficientes
Movimento
2 1,2 System 275 361
Indígena
Associativismo
1 0,6 361
Comunitário
Movimento de
1 0,6
Educação
Movimento em
Prol dos Direitos 1 0,6
Humanos
Movimento Rural 1 0,6
Não Sei 1 0,6
Total 170 100
System 191
361
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
95
Movimento de Associativismo
6 3,5 Sindicato 3 3,5 1 2,4
Saúde Comunitário
Movimento Movimento
Sindicato 5 2,9 2 2,3 1 2,4
LGBTT Estudantil
Movimento Movimento de
4 2,4 2 2,3 Movimento Negro 1 2,4
LGBTT Deficientes
Movimento por Movimento Movimento de
4 2,4 2 2,3 1 2,4
Moradia Rural Juventude
Movimento em
Associativismo
Religião/Igreja 3 1,8 1 1,2 Prol Dos Direitos 1 2,4
Comunitário
Humanos
Movimento Movimento de Entidade
3 1,8 1 1,2 1 2,4
Ambientalista Pescadores Profissional
Movimento de
2 1,2 Religião/Igreja 1 1,2 Religião/Igreja 1 2,4
Juventude
Movimento de Movimento por
2 1,2 1 1,2 Total 41 100
Cultura Moradia
Movimento de
2 1,2 Total 86 100 System 320
Deficientes
Movimento
2 1,2 System 275 361
Indígena
Associativismo
1 0,6 361
Comunitário
Movimento de
1 0,6
Educação
Movimento em
Prol dos Direitos 1 0,6
Humanos
Movimento Rural 1 0,6
Não Sei 1 0,6
Total 170 100
System 191
361
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
96
A Análise de Redes Sociais (ARS)7 nos permite, em contrapartida, o estudo e
a compreensão de estruturas representativas de ligações abstratas e concretas en-
tre: (1) algo, alguma(s) coisa(s) ou alguém (alguns/algumas) (2) e suas respectivas
possibilidades de interação e fluxo dinâmico (3).
No nosso caso aqui, se trata da (1) rede de participação e ativismo político
das (2) delegadas das 3ª e 4ª CNPMs em suas relações dinâmicas e fluidas (3). Nas
análises de redes sociais, importa ter, de forma visual, a expressão de um mundo
que está em movimento. Para isso são necessários alguns indicadores de centra-
lidade da rede e de ligações fortes e fracas dos nodos da(s) rede(s). Para isso,
algumas métricas são especialmente importantes: a informação (quais ligações e
quais fluxos da informação); o grau nodal (mede a atividade de um determinado
elemento da nossa rede – aqui as instituições, organizações ou movimento – ou
identifica nodos que são conectores e hubs; usualmente é medido contando-se o
número de conexões presentes no nodo, ou seja, considera o número de contatos
diretos), a intermediação (que mede as principais pontes e aquelas organizações
do ativismo que podem controlar o fluxo de informação nas redes; ela é medida
contando-se o número de vezes que está no caminho mais curto entre dois outros
nodos) e a proximidade (que, por sua vez, mede aqueles elementos que têm maior
visibilidade sobre o que está acontecendo na rede por estar na menor distância
em relação a todos os outros elementos; aqueles com maior proximidade, que
têm maior independência e maior capacidade de mobilização de informações por
exigirem menor intermediação).
As ligações fortes – contatos mais próximos – e as ligações fracas – mais
distantes – serão aqui analisadas tendo como base esses índices de centralidade
de proximidade. A análise de redes sociais avalia padrões de relacionamento e foi
a principal metodologia empregada neste capítulo.
Nas figuras descritas e analisadas a seguir, o grau pode ser observado pelo
tamanho do círculo que conforma o nosso nodo; a intermediação se observa
através dos traços que ligam os nodos e também pela grossura desses traços de
ligação, e a proximidade entre os nodos (em algumas redes marcadas pela deli-
mitação de uma figura de círculo) define a centralidade da mobilização entre os
elementos analisados.
7 A ARS é considerada por Cross, Parker e Borgatti (2000) um importante instrumento para estu-
dar relacionamentos que fomentam o compartilhamento da informação e do conhecimento. É uma
ferramenta que permite a identificação de indicadores de padrões de relacionamentos que aprimo-
ram a cooperação. Em síntese, é um recurso que respalda mais eficazmente a identificação dos atores
mais influentes na rede, e está se tornando, cada vez mais, um recurso estratégico na estruturação e
criação de ligações importantes.
97
Assim, tendo compreendido muito rapidamente esses elementos principais,
conforme já indicado na Introdução, vamos apresentar aqui as seguintes redes: (a)
começamos pela rede de trajetórias de participação; (b) apresentamos a rede das
instituições de participação das delegadas; (c) as redes de articulação/interação
entre essas organizações; e, finalmente, (d) as redes de fluxos de produções (mate-
riais e ações) dessas organizações citadas.
8 Para organizar as figuras a seguir, foram realizados dois procedimentos metodológicos princi-
pais, a saber:
a) um cálculo de índice que mensura se os movimentos tendem a “receber/receptores” ou “ceder/
doadores” de militantes. Valores positivos são indicadores de movimentos “superavitários” (recebem
mais que doam militantes), valores negativos indicam movimentos “deficitários” (doam mais que
recebem militantes). Para o cálculo, foi aplicada a seguinte fórmula:
InDegree-OutDegree
Índice = 100
InDegree+OutDegree *
b) a categorização dos tipos de movimentos de acordo com o índice: altamente receptores do ativis-
mo (vermelho), pouco receptores (laranja), pouco doadores (verde-claro), altamente doadores de
ativismos (verde-escuro).
98
A Figura 1 (ou Dígrafo,9 na linguagem das análises de redes sociais) abaixo
representa o conjunto da rede completa das trajetórias especificamente para as
respostas das delegadas da 3ª CNPM (2011). O tamanho dos nodos, nesta figu-
ra, representa o grau nodal total de cada tipo de movimento (grau nodal total =
indegree + outdegree).10 Para facilitar a análise desta rede, optamos por selecionar
aqueles atores (instituições, organizações e movimentos) mais relevantes dentro
da estrutura. Essa foi, em alguma medida, uma seleção arbitrária, mas o que bali-
zou tal decisão foi o critério de incluir e analisar apenas os nodos com grau nodal
total superior ou maior que o valor 15.
Dessa forma, restaram para a análise mais detalhada/desagregada 18 tipos
de movimentos que representam 37,5% do total de instituições reportadas pelas
delegadas. Entretanto, cabe ainda salientar que esses nodos abarcam 947 relações
de um total de 1.090 relações observadas na rede completa. Isto é: esses 18 tipos
de movimentos ou organizações selecionados são responsáveis por 86,88% das
interações da rede completa.
Essa rede completa destaca a complexidade inerente dessas relações, nos
mostrando como são, de fato, empiricamente plurais as formas a partir das quais
as delegadas de 2011 construíram a história do seu ativismo político, antes de
chegar ao espaço político e deliberativo das conferências.
99
Figura 1: Principais trajetórias de ativismo político das delegadas –
(Categorização 3), com cálculo do índice
doadores/receptores de militância – 3ª CNPM / 2011
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Para essa rede referente à trama das trajetórias políticas das delegadas de
2011 (e também na Figura 2 a seguir), importa destacar que a força da interação
não está representada pela espessura da linha, mas pelo tamanho da cabeça da
seta. E daqui surgiram alguns elementos analíticos interessantes. Os principais
movimentos/organizações “doadoras” de militantes nas trajetórias das delegadas
de 2011 foram: as instituições religiosas, o movimento estudantil e, com menor
potência interativa, situam-se as instituições da Igreja Católica e grêmios estudan-
tis (representados pela cor vermelha no dígrafo). De qualquer forma, por esse
dígrafo, surge a porta de entrada da militância dessas mulheres principalmente
em movimentos estudantis e em instituições religiosas. As principais instituições
que doam militantes para as etapas seguintes das trajetórias das delegadas de 2011
são: os sindicatos, o associativismo de bairro e de moradores, o movimento negro,
centros acadêmicos e as entidades profissionais (representadas pela cor laranja no
dígrafo).
Podemos afirmar que, quando as delegadas chegam ao ativismo nos movi-
mentos de mulheres (ver quadrados verde-claros na Figura 1), já passaram pelas
outras formas de ativismo anterior. Nas trajetórias das delegadas de 2011, as es-
truturas dos partidos e também da militância nos movimentos de saúde rivalizam
com o ativismo em movimentos de mulheres, o ponto quase final dessas trajetó-
rias políticas.
100
Observe-se que os movimentos de mulheres, os partidos e os sindicatos são
as instituições que têm a maior força de interações (ver tamanho das setas). Cabe,
afinal, notar que as maiores organizações “receptoras” de militantes (sendo estas
também os principais pontos de chegada) nas trajetórias das delegadas de 2011
são: conselhos e conselho da mulher, a militância em movimentos ambientalistas
e de direitos humanos e o associativismo comunitário especificamente em questões
das mulheres.
Como veremos nas Figuras 1 e 2 (Trajetórias – 2011 e 2016), podemos
identificar então que as principais portas de entrada do ativismo das mulheres
delegadas se assemelham – movimentos estudantis e em centros acadêmicos para
ambos os anos analisados. Todavia, para 2011, é preciso acrescentar o ativismo de
caráter religioso (através de movimentos ligados à Igreja ou religião), que não terá
essa importância para o ano de 2016.
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
101
Dessa forma, podemos afirmar que a principal base política formadora
das delegadas das duas últimas CNPMs parece ser os movimentos estudantis e
também movimentos ligados à religião. Além de serem as principais portas de
entrada, podemos também afirmar que essas organizações ou entidades são as
principais primeiras “doadoras” de militância, por assim dizer, nas trajetórias para
o perfil das delegadas analisadas nessa pesquisa.
Para essa rede completa das trajetórias das delegadas de 2016, podemos
identificar como o(a)s principais movimentos/organizações “doadore(a)s” de mi-
litantes (esse padrão foi significativamente diferente do de 2011): o movimento
ambientalista, o associativismo de base comunitária com foco nos bairros e o ati-
vismo em centros acadêmicos. A militância em instituições religiosas não se apre-
sentou como porta de entrada importante para as trajetórias das delegadas de
2016. De qualquer forma, também por esse dígrafo, permanece como porta de en-
trada da militância das delegadas de 2016 o ativismo em movimentos estudantis.
No segundo nível de instituições que “doam” militantes para as etapas seguintes
das trajetórias das delegadas de 2016, encontramos: os sindicatos, o associativismo
comunitário focado em questões das mulheres, o ativismo nas instituições da Igreja
Católica e evangélica, o movimento estudantil e as entidades profissionais.
Já os pontos de chegada dessas trajetórias, entretanto, se diferenciam um
pouco e de modo muito interessante. Para as delegadas de 2011 (presentes na 3ª
CNPM) foram três as formas de ativismo mais recente que definiram o ponto
final de suas trajetórias: o movimento ambientalista, os movimentos vinculados
a direitos humanos e os conselhos de políticas públicas (incluindo os conselhos da
mulher) e o ativismo vinculado ao associativismo comunitário, principalmente li-
gado à questão da mulher.
Já para as delegadas da 4ª CNPM, todavia, além dos pontos de chegada dos
conselhos e do associativismo comunitário (só que ligado à questão de moradia),
temos principalmente a participação nos movimentos negros e o ativismo em redes
de mulheres negras. Para além de serem os pontos de chegada, também podemos
afirmar que essas entidades ou instituições são as principais “receptoras” de mili-
tância nas trajetórias das delegadas de 2016 analisadas nessa pesquisa.
Cabe destacar a dinâmica da trajetória em relação à participação no mo-
vimento negro que se altera substantivamente em 2016, indo para a posição de
ponto de chegada (e não mais como elo intermediário das trajetórias).
Mais uma vez, os movimentos de mulheres e feministas se encontram no
penúltimo estágio da trajetória das delegadas, rivalizando em importância com
partidos, movimentos de direitos humanos e participação em conselhos da mulher.
102
A presença dos conselhos como um ponto de chegada nessas trajetórias de
ativismo é bastante compreensível: muitas delegadas das CNPMs estão vinculadas
aos conselhos de direitos das mulheres ou a outros conselhos de políticas públi-
cas. Os conselhos de mulheres costumam, inclusive, estabelecer a exigência da
presença das suas conselheiras nesses processos deliberativos, colocando-as como
“delegadas natas” no âmbito das conferencias de políticas para as mulheres (é o
caso das CNPMs e também nas conferências estaduais e municipais).
O mais interessante é perceber o deslocamento que consideramos significativo
entre os dois períodos aqui analisados: os movimentos negros e as redes de mulheres
negras, que, em 2011, eram apenas um primeiro elo intermediário na trajetória de
ativismo e de participação das delegadas, se conformam, em 2016, como ponto de
chegada dessas trajetórias. O que isso pode querer nos indicar? Uma hipótese ex-
plicativa forte para esse fenômeno parece ser a do fortalecimento desses espaços de
ativismo no Brasil: os movimentos negros e de mulheres negras estando contempo-
raneamente mais atuantes e mobilizados no subcampo de ativismo feminista junto
ao Estado.
Isso demonstra a importância do ativismo das mulheres negras na ocu-
pação dos espaços das CNPMs. Revela, pois, que elas devem ter se mobilizado
mais intensamente, entre os anos de 2011 e 2016, para, finalmente, ocupar mais
tal espaço de deliberação e diálogo com o Estado brasileiro. Revela ainda que, das
dimensões das lutas identitárias, são os movimentos raciais e negros que têm se
aproximado de forma mais intencional e objetiva do espaço das CNPMs, confor-
me vemos ser discutido mais longamente no capítulo 5 do volume 2, por Johanna
Monagreda.
Também os elos intermediários dos ativismos das delegadas são distintos
para os dois anos analisados, conforme foi possível ver nos capítulos elaborados
nesta coletânea por Celi Pinto e Danusa Marques. Observa-se que, para os dois
anos, a trajetória de ativismo nos movimentos de mulheres e feministas se encon-
tra na última posição intermediária, passando a disputar com os partidos políti-
cos, os movimentos de direitos humanos, da saúde e o ativismo em conselhos a
posição quase final das trajetórias. Partidos políticos, como podemos observar,
são então elos intermediários mobilizadores de importância nessas trajetórias
para as delegadas das duas conferências. Dos demais elos intermediários, a par-
ticipação em sindicatos e em entidades profissionais são as opções subsequentes
depois da entrada no ativismo (tanto em 2011 quanto em 2016), assim como o é
também o ativismo comunitário (ligado à questão da moradia em 2011 e à ques-
tão da mulher em 2016).
103
Como é possível ver, existem organizações que marcam de forma importan-
te as trajetórias das delegadas de 2016 e, entre elas, é necessário mencionar a par-
ticipação em primeiro lugar (e de novo): nos movimentos de mulheres e feminista
(o maior quadrado verde do dígrafo), nos sindicatos e nas estruturas partidárias.
Para 2016, as instituições religiosas, que foram significativas em 2011, perderam
seu efeito de concentrar as interações. Assim, as três instituições – movimentos
de mulheres, sindicatos e partidos – foram aquelas em que as interações das traje-
tórias foram mais robustas (notar o reforço das linhas de ligação). E, de novo, as
trajetórias das delegadas de 2016 também nos indicam a enorme pluralidade de
instituições em que os feminismos já se encontram interagindo.
Importa lembrar que, entre as delegadas, 41% afirmaram estar representan-
do nas CNPMs movimentos de mulheres e/ou feministas, e mais de 82% delas se
declararam feministas. Vamos observar essas informações agora a partir de outra
análise: aquela que foca mais nas redes de participação e de interação entre as ins-
tituições (e não aquelas que focalizam a sua temporalidade).
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
104
Essas quatro instituições são aquelas em que as interações do ativismo fo-
ram as mais robustas (notar o reforço das linhas de ligação). Ou seja: confor-
me reportamos do ponto de vista teórico-analítico, as trajetórias e, sobretudo, as
interações entre as distintas organizações que pavimentam essas trajetórias das
delegadas de 2011 nos indicam sim uma pluralidade de instituições em que o fe-
minismo já se encontra relacionado e/ou interagindo. Isso fica ainda mais patente
quando observarmos as outras esferas institucionais da rede de trajetórias.
Com grau um pouco menor de expressividade nas relações/interações, apa-
recem ainda nessa rede de interações das organizações o associativismo comu-
nitário – moradores e a participação em entidades profissionais, em movimentos
vinculados aos direitos humanos, nos movimentos negros e movimento estudantil.
Orbitando o núcleo dessa rede, em um grau bem menor de interações entre essas
trajetórias das delegadas de 2011, surgem por fim, as participações em movimen-
tos ambientalistas, movimentos na saúde, em instituições da Igreja Católica, em
grêmio estudantil e centro acadêmico e em conselhos e conselho da mulher.
Apenas por essa rede mais completa, que traz as interações entre as diferen-
tes instituições do ativismo das delegadas, nos é possível identificar a verdadeira
trama de interações complexas dos movimentos de mulheres e feministas com
outras organizações sociais e políticas.
Apenas através de imagens/dígrafos/figuras como estas é que podemos, de
fato, compreender como os feminismos e/ou movimentos organizados de mulhe-
res estão interagindo para além de si mesmos, indo ao encontro e se relacionando
com outras organizações na construção da trajetória das delegadas, e isto de for-
ma extensa, intensa e complexa, seja com outras organizações da sociedade civil,
seja com instituições híbridas.
Cabe salientar ainda que, nessa trama de interações, identificamos impor-
tantes ausências: a pouca interação nas trajetórias especialmente com dois novos
movimentos sociais muito importantes, a saber, os movimentos de mulheres lés-
bicas/LQBTs e os indígenas. Isso porque, para a questão geracional, apareceram
nessa trama os movimentos ligados ao ativismo estudantil, mas para a dimensão
das sexualidades e da dimensão étnica o mesmo não ocorreu. Parece claro que,
para as delegadas de 2011, os movimentos LQBT e indígenas pouco comparece-
ram nas suas trajetórias de ativismo –talvez porque tinham menor circulação no
subcampo de ativismo feminista junto ao Estado.
Os Gráficos 1 e 2, que iremos apresentar a seguir, são gráficos que represen-
tam a distribuição do grau nodal, ou seja, da quantidade de interações que cada
nodo (no nosso caso aqui, o tipo de movimento ou organização) estabelece na
105
estrutura da rede. Em cinza será representado o grau nodal total (degree),11 que
mensura a quantidade de relações, independentemente se estas são de entrada ou
de saída. Na cor laranja está representado, por sua vez, o Indegree, ou seja, aquelas
relações que chegam ao nodo/tipo de movimento ou organização. Finalmente, em
azul, está representado o Outdegree, isto é, aquelas relações que saem do nodo/
tipo de movimento ou organização.
O índice mencionado acima foi construído, justamente, para representar
a diferença entre o InDegree e o OutDegree, ou ainda: entre a quantidade de en-
trada e saída de interações e pode nos indicar, como vimos, se os movimentos ou
organizações que estamos aqui analisando são “superavitários” ou “deficitários”
em termos dessas interações da militância das delegadas. É possível perceber essa
diferença, se positiva ou negativa, pela leitura da distribuição do grau nodal, con-
forme descrito a seguir.
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
106
militantes do que recebe), entidades profissionais (doam mais militantes do que
recebem), movimentos de direitos humanos (recebem mais militantes do que
doam), movimento estudantil (doa mais militantes do que recebe), movimento
negro (doa mais militantes do que recebe) e associativismo comunitário com foco
nas questões das mulheres (recebe mais militantes do que doa).
Vamos observar agora o comportamento da rede completa de interações/
articulações entre as trajetórias para as delegadas da 4ª CNPM, de 2016. Assim
como já descrevemos para a rede de 2011, o tamanho dos nodos representa o grau
nodal total de cada tipo de movimento e, mais uma vez, optamos por selecionar
os atores (instituições, organizações e movimentos) mais relevantes da estrutura.
Selecionamos e analisamos aqui, afinal, apenas os nodos com grau nodal total
maior que 15. Restaram para a análise das trajetórias na sua forma de categori-
zação mais detalhada, então, 17 tipos de movimentos/organizações, o que repre-
senta 36,95% do total de atores. Entretanto, esses nodos, assim como se deu para
a rede de 2011, abarcam 694 relações das 812 observadas no total, isto é: 85,46%
das interações da rede se dão entre os nodos selecionados. As cores, mais uma vez,
representam os nodos selecionadas para análise (em verde) e aqueles que ficaram
de fora dela (em vermelho).
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
107
Gráfico 2 – Distribuição do grau nodal, 2016, rede de interações nas trajetórias
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
108
organizações “doadoras” de militância entre as delegadas e, em contrapartida, os
partidos, movimentos de mulheres e feminista, movimentos de direitos humanos,
conselhos das mulheres surgem como as principais organizações/movimentos que
são “receptoras” da militância. As organizações do associativismo comunitário ora
aparecem como doadoras, ora como receptoras, e o movimento negro, que no ano de
2011 apareceu como doador de militância, em 2016, passou a operar como receptor
da militância dessas mulheres.
109
Figuras 5 e 6: Rede das principais formas de participação
das delegadas (Categorização 2 – 2011 e 2016)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
110
organizações sindicais, que em 2011 eram periféricas à rede e se tornaram inter-
mediárias para 2016, e os movimentos ambientalistas, que fizeram o movimento
oposto: eram intermediários para a rede da participação, no ano de 2011, e se
tornaram periféricos para 2016.
De qualquer modo, a rede da participação das delegadas revela um padrão
de ativismo consistente nos dois anos, tendo-se o ativismo religioso, em organiza-
ções de mulheres e feminista e partidário, como seu núcleo duro central (em 2011
também se inseriam nesse núcleo a participação em movimentos de bairro e aque-
la em organizações assistenciais). E esse padrão de participação parece consistente
com as formas de mobilização das mulheres que estejam em diálogo com o Estado:
a participação em movimentos de mulheres seria esperada tendo-se como foco o
tema das conferências que estamos analisando. A participação partidária tam-
bém nos parece esperada, já que há um claro viés de participação das delegadas
em partidos que comumente dão importância a processos de deliberação política,
sobretudo o PT e o PCdoB. Esse aspecto será igualmente destacado nas análises
subsequentes. Já a participação nos movimentos religiosos é, e parece continuar a
permanecer, importante (historicamente foi e parece continuar sendo): trata-se de
uma das principais portas de entrada socialmente legítimas e autorizadas para fo-
mentar e recrutar o ativismo político das mulheres brasileiras. A participação em
movimentos ligados à assistência social e às lutas nos bairros perdeu importância
em 2016, podendo revelar que essas formas de ativismo passaram a ser superadas
por outras formas em 2016, como o movimento negro e a participação em redes
de mulheres negras (a Figura 7 a seguir revela essa dinâmica).
Houve, pelos padrões observados nas duas redes, uma diminuição da co-
esão da rede para o ano de 2016, ou seja, a intensidade do relacionamento entre
organizações foi em 2016. Há algumas hipóteses que poderiam ser aventadas para
isso: talvez as delegadas estejam participando menos, talvez elas tenham tido me-
nos recursos para essa participação entre os anos de 2011 e 2016, talvez o perfil
das delegadas de 2016 seja mais pautado por formas de participação mais insti-
tucionalizadas em função das dificuldades de realização da 4ª CNPM (conforme
descrito por Celi Pinto, no capítulo 5, vol. 1). Não há como termos absoluta cer-
teza sobre esse ponto. Sigamos.
Vamos agora apresentar as redes de participação das delegadas, onde fo-
ram utilizadas as categorias mais amplas/genéricas (Categorização 1, no Quadro
1 – ver cores da legenda, ou seja, onde diminuímos o zoom), e também as mais
refinadas/específicas/desagregadas (Categorização 3, no Quadro 1, onde aumen-
tamos o zoom).
111
Figura 7: Rede completa da participação das delegadas
da 3ª CNPM – 2011 (Categorização 1 e 3)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
112
Essas outras formas de categorização detalham aspectos relevantes para
esse estudo: inicialmente cabe demarcar a complexidade e a riqueza presentes na
rede de participação das delegadas de 2011. Quando separamos a participação
delas em movimentos de mulheres e feminista, podemos, finalmente, enxergar com
clareza com quais outros movimentos e organização os movimentos feministas
estão, de fato, interagindo no campo complexo das formas de participação das
delegadas. A partir da interpretação dessa figura, para 2011, as interações mais
fortes e intensas dos movimentos de mulheres e feminista se deram com: as redes
de mulheres negras, os partidos e o associativismo comunitário com foco nas ques-
tões específicas das mulheres. Dessa forma, como informação relevante, ao desa-
gregarmos mais as categorizações, o ativismo em instituições religiosas perdeu em
importância nessa trama. A partir do cálculo da métrica do grau nodal (degree),
temos o seguinte gráfico, que indica quais são, para o ano de 2011, as principais
organizações e movimentos que interagiram com os movimentos feministas e de
mulheres:
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
113
É muito interessante observar, portanto, que a rede de participação das de-
legadas em 2011 nos permite evidenciar, com toda clareza, a presença do sides-
treaming feminista, já que os movimentos de mulheres e/ou feministas estão inte-
ragindo e se conectando bastante a outros movimentos organizados da sociedade
civil (principalmente: associativismo comunitário com foco nas questões específi-
cas das mulheres e redes de mulheres negras; e com menor grau de conexão com
as demais formas de associativismo comunitário, com destaque para o foco em
mulheres rurais, os movimentos vinculados à saúde e os movimentos indígenas).
Pela primeira vez podemos vislumbrar na rede da participação a importância das
conexões que se referem a fluxos horizontais do feminismo no Brasil, simultanea-
mente, com as mulheres negras, rurais e indígenas. Os sindicatos são um elemento
também significativo desses fluxos.
Para além das organizações da sociedade civil, já descritas em sua impor-
tância acima, os movimentos de mulheres e feministas, em 2011, também estão
conectados com o mainstreaming feminista: as demais conexões fortes da rede
incluem, principalmente, as organizações/instituições híbridas (conselhos) e os
partidos, revelando que as interações também estão produzindo fluxos verticais
do feminismo para dentro dessas instituições. Cabe destacar que vão aparecer na
rede (diferente da rede de 2016), as interações e participações com organizações
do próprio Estado, sobretudo: os serviços de atendimento às mulheres, os organis-
mos de políticas para as mulheres (OPMs) e as prefeituras. Como veremos adiante,
a rede completa da participação em 2016 quase não apresentará conexões diretas
com as instituições estatais (teremos apenas a presença da participação nos OPMs
e, tenuemente, a participação do poder Legislativo).
Para podermos nos aprofundar na nossa discussão sobre o sidestreaming
feminista, deliberamos por recortar dessa rede completa das formas de participa-
ção em 2011 apenas para aquelas interações estabelecidas entre as organizações da
sociedade civil. Vejamos:
114
Figura 8: Rede parcial da participação das delegadas
da 3ª CNPM – 2011 (apenas sociedade civil organizada)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
115
Já para o ano de 2016 temos alterações na rede completa de participação
das delegadas que são significativas. Na rede completa de 2016, temos, como será
visível e fácil de perceber, uma trama de articulações menor do que aquela evi-
denciada em 2011. Vejamos.
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
116
Gráfico 4: Valores da métrica do grau nodal (degree) dos movimentos/
organizações mais conectados na rede de participação das delegadas – 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
117
Figura 10: Rede parcial da participação das Delegadas da 4ª CNPM – 2016
(apenas sociedade civil organizada)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
118
as articulações com os poderes do Estado – recebem e doam poucas articulações/
interações (quando essas relações são existentes). Essa informação nos parece im-
portante porque são essas organizações aquelas principalmente vinculadas, ou às
pautas identitárias (exceção feita ao movimento negro), ou a movimentos que
são importantes em termos de renovação das formas de difusão das agendas de
gênero e feministas, bem como nas possibilidades de mudanças (movimento es-
tudantil, cultura, educação, esporte e lazer e juventude, sobretudo) culturais mais
expressivas. Essa informação revela que há maior dificuldade de articulação das
delegadas que estão inseridas nas conferências com as organizações mais renova-
das e renovadoras, de fato, das pautas de gênero e feministas.
Destaca-se, então, em 2011, como contrapartida imediata desse fenômeno,
e diferentemente da rede de participação de 2016, a maior presença de interações
e de participação das delegadas com o polo oposto institucional: a participação em
instituições do Estado (os serviços de atendimentos às mulheres, OPMs e Prefeituras,
no caso de 2011, e muito residualmente, a participação nos OPMs e no poder
Executivo). Esse fenômeno duplo de dinâmicas, ora destacado, explica, ao menos em
parte, alguns dos limites do ativismo estatal participativo: a rede de participação das
delegadas parece não conseguir mesmo alcançar formas de articulações mais cen-
trais com as organizações estatais que seriam, ao fim e ao cabo, aquelas responsáveis
pelas efetivas transformações substantivas nos padrões hierárquicos e verticalizados
das relações de gênero e raça dentro da estrutura administrativa (a normatividade
patriarcal e racista do Estado).
As redes de articulação
119
Figuras 11 e 12: Rede das articulações/interações entre as principais
organizações que as delegadas representam nas CNPMs
Como a própria figura dessas redes deixa antever, há menor densidade das
articulações de rede para o ano de 2016 em comparação a 2011 (notamos isso
também nas redes de participação descritas anteriormente). Assim, podemos afir-
mar que a rede de articulações institucionais de 2016 se apresenta menos coesa,
sendo que a distância média entre as organizações de 2016 aumentou e o índice
de compactação dessa rede cai.12 Essas métricas são: distância média de 2011:
1,530; distância média de 2016: 1,621; compactação de 2011: 0,638 e compactação
de 2016: 0,511.
Para 2011, a rede das articulações institucionais se estabeleceu central-
mente entre as seguintes organizações (por ordem de magnitude de articulações
estabelecidas): movimentos de mulheres e feministas, associativismo comunitário,
movimento negro e conselhos. De forma ainda significativa apareceram os fluxos
de trocas/articulações também com o poder executivo e, finalmente, os movimen-
tos LQGT; e, com menor intensidade de articulação/interação, partidos e entida-
des profissionais. Na periferia dessa rede de articulação, mas ainda com alguma
12 Distância média: para quaisquer pares de nodos, o algoritmo mede a distância mais curta entre
eles. O resultado expressa uma média geral de distâncias mais curtas. Redes com distâncias menores
são mais coesas, e com distâncias maiores, menos coesas. Compactação: índice que varia de 0 a 1, é
um indicador de coesão. Quanto mais próximo de 1, mais compacta é a rede, e quanto mais próximo
de 0, mais fragmentada.
120
importância, em 2011, estão: sindicatos, movimentos de igreja/religião, movi-
mentos de direitos humanos, movimentos relacionados à saúde.
Já em 2016, apesar de a trama de articulações ser menor que a de 2011, ela
se deu através, principalmente, das interações com o poder Executivo, o associati-
vismo comunitário, os movimentos de mulheres e feministas e o movimento negro.
Com menor expressão aparecem, então, as articulações com os conselhos e os
movimentos relacionados à moradia. Um pouco para fora do núcleo central de
articulações, em 2016, mas ainda com relevância, estão: os sindicatos e os movi-
mentos rurais. E com menor expressividade de interações, mas ainda com alguma
importância, situam-se os movimentos LQBT, movimentos de direitos humanos,
movimentos ligados à igreja/religião e os ambientalistas.
Conforme salientamos para as redes de participação, tanto para 2011,
quanto para 2016, organizações relacionadas a temáticas específicas, tais como:
criança e adolescente, cultura, juventude, esporte e lazer, movimento estudantil,
movimento de pescadores, de indígenas, vinculados à educação e também a ou-
tros Poderes, revelaram poucas articulações com a instituição que as delegadas
representam.
Destaca-se, então, em 2016, como contrapartida imediata desse fenômeno,
e diferentemente de 2011, uma maior presença de interações com o polo oposto:
o poder Executivo ganhará em magnitude nas articulações, bem como se desta-
cam ainda as interações com sindicatos e movimentos rurais. O que esse fenômeno
pode nos revelar é o fato de as delegadas de 2016 estarem mais articuladas, ou
mais próximas do governo ou de entidades sindicais (tais como a CUT) ou movi-
mentos mais umbilicalmente vinculados ao governo.
De qualquer forma, esse fenômeno duplo de dinâmicas destacado explica,
ao menos em parte, os limites inseridos no ativismo estatal participativo: ele não
parece conseguir alcançar formas de articulações centrais com organizações que
seriam aquelas primordialmente responsáveis por transformações substantivas
nos padrões hierárquicos e verticalizados das relações de gênero.
13 Perguntas: “Seu partido produz material para formação/capacitação para organizações/movi-
mentos ou redes de mulheres ou feministas” + “Seu partido produz material para formação/capaci-
121
Assim, complementando as análises das redes de articulação propriamente
ditas acima descritas, temos as redes de fluxos de materiais e de ações que são
estabelecidas14 quando as delegadas dizem se articular com as organizações e mo-
vimentos. Vamos analisar apenas duas delas. A primeira refere-se aos fluxos de
ações/atividades/materiais entre as organizações dos movimentos feministas e de
mulheres de que participam essas mulheres e as demais organizações de partici-
pação, e a segunda refere-se especificamente aos fluxos de produção de materiais
e outras ações entre os partidos políticos dos quais elas participam e para quais
instituições eles estabelecem essas trocas. Elas serão analisadas abaixo:
Figuras 13 e 14: Rede dos fluxos de ações e produção de materiais que são
estabelecidos entre as principais organizações de ativismo de mulheres ou
feminista das delegadas
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Para os dois anos, como se pode perceber nas figuras acima, os movimen-
tos feministas e de mulheres dos quais as delegadas participam produziram vasto
material para outros movimentos feministas e de mulheres. Há, portanto, uma
tação de outros tipos de organizações, movimentos ou redes?” + “Para qual outro tipo de movimento
(ou redes)?” (Opções de resposta: estudantil, mulheres ou feminista, negro, LGBT, rural, indígena e/
ou comunidades tradicionais, sindical, urbanos, ecológico e/ou ambiental, outros).
14 Aqui as perguntas respondidas pelas entrevistas são: “A organização de mulheres ou feminista
de que você participa produz material para formação/capacitação de outros movimentos ou redes de
mulheres ou feministas? Esse movimento ou rede produz material para a formação/capacitação de
outros tipos de movimentos ou redes? Para qual?”. Os tipos de materiais e ações foram preestabele-
cidos: e estes seriam: 1) Cartilhas/materiais escritos e audiovisuais; 2) cursos, eventos ou oficinas; 3)
boletins informativos; 4) material on-line; 5) livros, publicações acadêmicas.
122
atuação bem endógena aqui. Em 2011 e em 2016, a organização no 2º lugar para
quem se produz mais materiais ou ações é o movimento negro, seguido com menor
quantidade de trocas os movimentos LQBT e movimentos rurais, sendo que essa
produção toda, em 2016, caiu em quase um terço. Ou seja, para o ano de 2016,
analisando-se essa rede de fluxos de materiais e ações, o volume dessa produção
caiu expressivamente, revelando maior dificuldade de se estabelecer essas trocas
em 2016. Movimentos urbanos e sindicais estão numa categoria intermediária
em termos dessas trocas, e, para 2011, os menores fluxos de trocas se deram en-
tre os movimentos de mulheres e feministas com os movimentos indígenas e os
ambientalistas.
Conforme salientado, para 2016, quem ocupa o segundo lugar nesses fluxos/tro
cas, conforme já mencionado, é também o movimento negro, seguido numa po-
sição mais intermediária dos movimentos LQBT, estudantil e sindical. Mais uma
vez, os menores fluxos de trocas em 2016 também se deram com os movimentos
indígenas, urbanos, rurais e ambientais. A seguir analisamos os fluxos desses ma-
teriais e ações, tendo-se como foco os partidos.15
Figuras 15 e 16: Rede dos fluxos de ações e produção de materiais que são
estabelecidos entre as principais organizações partidárias das delegadas
FLUXO 2 - 2011
FLUXO 2 - 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
15 A pergunta que deu origem a esses dados é: “Seu partido produz material para a formação/
capacitação de outros tipos de organizações, movimentos ou redes? Quais?”. Os materiais e ações
foram os mesmos da rede anterior.
123
Como podemos ver, há um papel muito importante do Partido dos
Trabalhadores/PT e, em menor escala, do PCdoB aqui. São eles que produzem o
maior volume de material (existe também uma sobrerrepresentação de participa-
ção de delegadas nesses partidos). Para 2011 e também 2016, os fluxos identifi-
cados no PT apresentam fortes conexões com os movimentos classistas (sindical,
estudantil), mas também com as pautas de mulheres (em maior grau), do movi-
mento negro e LQBT. Cabe mencionar ainda que é perceptível que a produção de
material e ações caiu de 2011 a 2016.
Considerações finais
124
nas instituições da igreja evangélica, e novamente o ativismo em movimento estu-
dantil e nas entidades profissionais.
Podemos então afirmar que, quando as delegadas chegam aos movimentos
de mulheres, elas já passaram por outras formas de ativismo anterior. Ou seja: os
movimentos feministas e de mulheres não se constituem nas principais “portas de
entrada” para a maioria das delegadas participantes das conferências. Mas estes
estão sim presentes nas trajetórias delas, principalmente como seus elos interme-
diários. O mesmo ocorre, em parte, com a participação em conselhos: que ora
são elos intermediários, ora também compareceram como pontos de chegada das
trajetórias (o que ocorre em 2016).
Mas, talvez, o principal elemento analítico de significância que precisa ser
destacado sobre essas trajetórias refere-se à atuação das delegadas nos movimen-
tos negros e também no ativismo de redes de mulheres negras. Para 2016, esse
ativismo se conformou em um “ponto de chegada” das trajetórias das delegadas
da 4ª CNPM. Isso demonstra a inequívoca importância do ativismo das mulheres
negras na ocupação mais recente desses espaços das CNPMs.
Já destacamos que, para as redes de trajetória e interação entre trajetórias,
não houve praticamente mudança nos padrões de interações do ativismo das de-
legadas aqui pesquisadas entre os dois períodos, já que as dez organizações e/ou
movimentos com maior número de interações foram bastante semelhantes (so-
bretudo as três primeiras que foram exatamente as mesmas) nos dois anos. Os
sindicatos, as instituições religiosas, as entidades profissionais e o movimento es-
tudantil aparecem como grandes organizações “doadoras” de militância. Em con-
trapartida, os partidos, movimentos de mulheres e feminista, movimentos de di-
reitos humanos, conselhos das mulheres surgem como as principais organizações/
movimentos “receptore(a)s” dessa militância. As organizações do associativismo
comunitário ora aparecem como doadoras, ora como receptoras, e o movimento
negro, que no ano de 2011 apareceu como doador de militância, em 2016 passou
a operar como receptor da militância dessas mulheres.
125
religião, mas aparecendo no centro dessas redes a participação em partidos políti-
cos (antes os partidos se constituíam em elo intermediário do ativismo das delega-
das). A participação nos partidos, aquela em instituições ligadas à igreja e também
a que se dá em movimentos de mulheres e feminista são, afinal, o núcleo central da
rede de participação política. Já em 2011, além dessas três que permanecem cen-
trais para a configuração da rede de participação, surgem também as organizações
vinculadas à assistência social e a movimentos de bairro.
Para 2016, essas duas últimas organizações estavam também presentes, mas
num círculo mais ampliado de importância na rede de participação, inseridas em
segundo grau de importância, juntamente com movimento negro e os sindicatos.
Ainda nesse ano, as organizações de assistência social não estiveram no centro
da rede (como estavam em 2011). De qualquer modo, a rede da participação das
delegadas revelou padrão de ativismo consistente para os dois anos, tendo-se o
ativismo religioso, em organizações de mulheres e feminista e partidário como seu
núcleo duro central (em 2011 também se inseriam nesse núcleo a participação em
movimentos de bairro e aquela em organizações assistenciais).
Esse padrão de participação parece consistente com as formas de mobiliza-
ção das mulheres que estejam em diálogo com o Estado: a participação em movi-
mentos de mulheres seria esperada tendo-se como foco o tema das conferências
que estamos analisando. A participação partidária também nos parece esperada,
já que há um claro viés de participação das delegadas em partidos que dão impor-
tância a processos de deliberação política, sobretudo o PT e o PCdoB. Já a parti-
cipação nos movimentos religiosos é, e parece continuar a ser, importante como
porta de entrada, socialmente legítima e autorizada, para fomentar e recrutar o
ativismo político das mulheres brasileiras. A participação em movimentos ligados
à assistência social e às lutas nos bairros perdeu importância em 2016, podendo
revelar que essas formas de ativismo passaram a ser superadas por outras formas
em 2016, como aquela vinculada ao movimento negro e às redes de mulheres
negras.
Ao separamos a participação em movimentos de mulheres e feminista, en-
xergamos com quais outros movimentos há interações nesse campo complexo das
formas de participação das delegadas: (a) para 2011, as interações mais fortes e
intensas se deram com as redes de mulheres negras, os partidos e o associativismo
comunitário com foco nas questões específicas das mulheres (observamos como, ao
desagregarmos mais as categorizações, o ativismo em instituições religiosas per-
deu em importância nessa trama); (b) para 2016, permanecem como interações
fortes as articulações entre os movimentos feministas e de mulheres com as redes
de mulheres negras, os partidos, os conselhos e as entidades profissionais, e, num
126
segundo grau de importância, as interações com: partidos, associativismo comuni-
tário e movimento quilombola (fracas foram as interações com movimentos LQBT,
organismos de políticas para as mulheres e os sindicatos).
A configuração dessa participação em 2016, onde, como visto, os fluxos
do sidestreaming feminista parecem ter cedido lugar às articulações do mains-
treaming feminista (entidades profissionais, conselhos e partidos) – com exceção
feita à importância da participação em redes de mulheres negras –, pode estar
diretamente relacionada com o contexto de realização da 4ª CNPM. Conforme
analisado por Celi Pinto (no Capítulo 5 do v. 1), as mulheres que participaram
dessa última conferência ali estariam pelo esforço de fazer que esta acontecesse
e, quem sabe, mobilizadas também pelo maior interesse em tentar “defender” a
presidenta Dilma no contexto do golpe que já se anunciava.
Os movimentos de mulheres e feministas, em 2011, também estão conec-
tados com o mainstreaming feminista: as demais conexões fortes da rede incluem,
principalmente, as organizações/instituições híbridas (conselhos) e os partidos, re-
velando que as interações também estão produzindo fluxos verticais do feminismo
para dentro dessas instituições. Cabe destacar que vão aparecer na rede (diferente
da de 2016) as interações e participações com organizações do próprio Estado,
sobretudo: os serviços de atendimento às mulheres, os organismos de políticas para
as mulheres (OPMs) e as prefeituras. Como veremos adiante, a rede completa da
participação em 2016 quase não apresentará conexões diretas com as instituições
estatais (teremos apenas a presença da participação nos OPMs e, tenuemente, a
participação do poder Legislativo).
Merece mais uma vez saliência e menção a força de interação entre os mo-
vimentos de mulheres e feminista e as redes de mulheres negras, tanto em termos
da quantidade maior das interações, quanto da força dessas interações. Já as in-
terações estabelecidas com os movimentos LQBT, o movimento quilombola e o as-
sociativismo comunitário surgem perifericamente tanto em 2011 quanto em 2016,
sendo que diminuiu a coesão na rede de participação das delegadas no ano de
2016. Ainda em 2016, a participação das delegadas nos movimentos de mulheres
indígenas e rurais estabeleceram conexões entre si, mas estas estavam desligadas
dos demais nodos da rede de participação, incluindo os movimentos de mulheres
e feministas. Esses elementos parecem indicar que as articulações do sidestrea-
ming feminista, em 2016, sofreram claramente um decréscimo, e que as dimen-
sões étnica e rural perderam conexões de participação importantes, reforçando-
-se a hipótese formulada nos parágrafos anteriores de que as delegadas de 2016
vieram mais fortemente mobilizadas pela manutenção institucional da CNPM e
também do governo Dilma Rousseff.
127
De todo modo, os dados da participação das delegadas reforçam o entendi-
mento de que essa rede parece não conseguir mesmo alcançar formas de articu-
lações mais centrais e diretas com as organizações estatais, aquelas responsáveis
pelas efetivas transformações de fato substantivas nos padrões hierárquicos e ver-
ticalizados das relações de gênero e raça a partir de dentro da estrutura adminis-
trativa, não sendo influentes de forma mais efetiva para desmontar a normativi-
dade patriarcal e racista do Estado brasileiro.
Sobre as redes de articulação
Um dois primeiros aspectos a se destacar dessas redes é o fato de ter sido
constatada menor densidade das articulações de rede para o ano de 2016 em com-
paração a 2011. Como vimos, em 2011, a rede das articulações institucionais se
estabeleceu centralmente entre as seguintes organizações: movimentos de mulheres
e feministas, associativismo comunitário, movimento negro e conselhos. Já em 2016,
apesar de a trama de articulações ser menor, ela se deu através das interações:
com o poder Executivo, o associativismo comunitário, os movimento de mulheres e
feministas e o movimento negro.
Foram poucas e menos intensas as articulações da entidade que a delegada
representava na conferência com organizações vinculadas às pautas de: educação,
criança e adolescente, cultura, juventude, esporte e lazer, movimento estudantil,
e também, com movimento de pescadores e de indígenas, além dos outros po-
deres de Estado. As primeiras referem-se a movimentos que são importantes em
termos de renovação das formas de difusão das agendas de gênero e feministas,
bem como nas possibilidades de mudanças culturais mais expressivas (movimen-
to estudantil, cultura, educação, esporte e lazer e juventude, sobretudo). Essa in-
formação revela que há maior dificuldade de articulação das delegadas com essas
organizações que são, por sua vez, aquelas mais renovadoras e transformadoras
nas pautas de gênero e feministas. Esses dados também referendam a dificuldade
de penetração dos movimentos de mulheres junto aos movimentos indígenas e
ribeirinhos e, fundamentalmente, em instituições do próprio Estado brasileiro. A
exceção aparece para o ano de 2016 quando o poder Executivo ganha em magni-
tude nas articulações, bem como se destacam ainda as interações com sindicatos e
movimentos rurais. Essa contingência das articulações estabelecidas entre as insti-
tuições de participação das delegadas reforçam a nossa hipótese formulada de que
as delegadas de 2016 estavam mais articuladas, ou mais próximas do governo ou
de entidades sindicais (tais como a CUT) ou movimentos mais umbilicalmente
vinculados ao governo, para, justamente, se tentar “defender” o governo Dilma.
Mas, de todo modo, tais análises reforçam alguns limites do ativismo estatal parti-
cipativo: ele não pareceu alcançar formas de articulações que pudessem funcionar
128
como centrais para promover transformações substantivas nos padrões hierárqui-
cos e verticalizados das relações de gênero a partir do Estado.
129
sobre as suas relações com o ativismo estatal. Esta pesquisa, tanto na sua forma
metodológica, quanto no seu conteúdo, podem servir para aprofundamentos e a
compreensão também de como essas relações podem estar se dando em outras
arenas do ativismo junto ao Estado brasileiro e, sendo assim, abrem as portas para
uma agenda nova para a Ciência Política brasileira.
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134
A percepção das relações de gênero e raça das
delegadas em perspectiva comparada nacional e
entre elas e entre as duas conferências
Marlise Matos1
Ian Prates2
135
mudanças nos valores é que essa investigação nos permite obter informações so-
bre aspectos subjetivos das desigualdades de gênero e raça. A partir, sobretudo,
das críticas epistemológicas feministas (HARDING, 1986, 1998; KELLER, 1984;
HARAWAY, 1988; ALCOFF; PORTER, 1993), podemos ter a certeza de que as
opiniões e percepções sobre as desigualdades (incluindo as desigualdades de gê-
nero e raça) variam de acordo com a posição (standpoint ou o lugar de fala) de
onde a pessoa observa e responde ao mundo. Dessa forma, é sempre esperado que
sexo, nível de escolaridade, região, classe social, posicionamentos de gênero, etc.
influenciem as percepções (SCALON, 2011).
Neste capítulo, entendemos os valores na perspectiva de que estes são cren-
ças duradouras de que um modo de conduta é socialmente preferível em relação
a outros modos alternativos. No caso dos valores de gênero, como vivemos numa
sociedade arraigadamente patriarcal, a expectativa em termos de percepções e va-
lores é a de que a hierarquia política vá do mando dos homens sobre os corpos das
mulheres. No caso dos valores relacionados à raça e etnia, como vivemos numa
sociedade racista e genocida em relação aos povos tradicionais, com forte herança
do projeto colonizador do qual ainda somos parte, a expectativa em termos de
percepções e valores é a de que a hierarquia política vá do mando dos brancos
sobre os corpos dos(as) negros(as) e indígenas. Vamos nos ater aqui a um subcon-
junto particular de valores conforme mencionado: aqueles relacionados a gênero
e raça.
O conservadorismo de gênero e de raça é um elemento valorativo/moral im-
portante na sociedade brasileira. Diríamos que é uma força estruturante da nossa
organização social. Em sociedades em processos múltiplos e complexos de trans-
formação e com forte herança ibérica – autoritária e patrimonial –, como é o caso
do Brasil (e de muitos outros países latino-americanos), permanece em aberto a
preferência das pessoas, por exemplo, por um regime democrático ou não demo-
crático, já que somos herdeiros de processos coloniais de violência e autoritarismo
político. Raça, etnia e gênero são componentes muito salientes e marcados dessa
forma de violência e autoritarismo. Hoje isso se impõe talvez ainda mais do que
em anos anteriores.
Nenhuma dúvida de que a normatividade patriarcal e racista, assim como
os processos atávicos de elitização de classe, são marcas históricas da violência
autoritária colonial brasileira, alimentam as nossas desigualdades, que reverberam
até hoje no tecido social e político brasileiro. E os valores costumam ser veículos
de transmissão dessas formas tradicionais e conservadoras de percepção (e, infe-
lizmente, também de ações e de práticas). Esses elementos marcam e informam a
nossa cultura, e são esses valores que, em grande medida, orientam parte signifi-
cativa de nossas condutas e comportamentos. Somos herdeiros de uma sociedade
136
profundamente violenta que tem nesses três elementos (e em suas combinações
perversas) a química da manutenção de nossas desigualdades e injustiças sociais.
Foram esses valores que construíram nossas formas sociais e políticas e elas orien-
tam, até hoje, as ações individuais e coletivas no país. Entendemos que hoje seria
bastante difícil negar esse fato. Estamos acompanhando todo o quadro geral de
transformações vividas nesse campo no Brasil, sobretudo agora, a partir dos mo-
vimentos orquestrados e sistemáticos do novo avanço das forças conservadoras
morais e ideologicamente de direita que se consubstanciam já em projetos de lei,
tais como o “Escola Sem Partido”, a tentativa de criminalização generalizada do
aborto no Brasil e nos enfrentamentos a que estamos assistindo em torno da fa-
migerada “ideologia de gênero”.
Em outros trabalhos (MATOS; PINHEIRO, 2012) estabelecemos os con-
tornos do debate a respeito dos importantes processos em curso de destradiciona-
lização e modernização societária e política ao redor do mundo (HEELAS; LASH;
MORRIS, 1996; LUKE, 1996; ADAM, 1996) que também têm/tiveram incidência
na sociedade brasileira, e este é, portanto, o pano de fundo das considerações
deste capítulo.
Aqui vamos lançar mão da análise comparada de dados oriundos dos sur-
veys realizados com as delegadas das 3ª e 4ª CNPMs e também de outra pesquisa
de survey, esta realizada com uma amostra de 2.002 eleitores brasileiros, aplicada
em outubro de 2010 no âmbito do Consórcio Bertha Lutz (CBL). Participamos
dessa pesquisa e àquela época foi elaborado um conjunto de indicadores sobre
conservadorismo político, confiança em instituições e na democracia, além de
outros que visaram mensurar aspectos e dimensões do tradicionalismo de gênero
e raça nos espaços públicos e privados no Brasil. O presente trabalho pretende, a
partir da segunda parte dessas informações do survey com eleitores de 2010, com-
parar as respostas dessa pesquisa com as respostas das delegadas das CNPMs. E,
na sequência, comparar também as respostas das duas conferências nacionais em
relação aos valores (2011 e 2016).
Conforme já se sabe, durante as gestões Lula e Dilma, a ampliação dos
mercados de trabalho e consumo, combinada à distribuição de renda e à mo-
bilidade social, criou novas dinâmicas socioeconômicas para o Brasil. Pode-se
dizer que esse dinamismo, ao afetar as percepções, atitudes e comportamentos,
afetou também valores. Além do mais, importa destacar que os movimentos fe-
ministas, de mulheres, LGBT e étnico-racial, ao menos desde os anos 1970 (com
aprofundamento no período mais recente após a Constituição Federal de 1988
– CF/88), têm funcionado na nossa sociedade política como verdadeiras forças
democratizadoras, inclusive dos valores, revendo e produzindo novos padrões
137
de comportamentos. Podemos levantar a hipótese de que a dinâmica combinada
desses dois grandes eixos de transformações e mudanças – a expansão e avan-
ço do ciclo econômico, juntamente com o fortalecimento e expansão das forças
mobilizadoras dos movimentos feministas, de mulheres, movimentos LGBT e ét-
nico-raciais – foi responsável por expandir nosso universo cultural, normativo,
atitudinal e ético-moral, e essas transformações nos conduziram aos desafios da
construção de novos valores em relação aos costumes tradicionalmente violentos
associados à dominação patriarcal e racial/étnica.
Os retrocessos que estamos experimentando no momento atual brasileiro
podem ser compreendidos, inclusive, como formas de expressão moral, fortemen-
te reativas aos “avanços” nesses valores a que assistimos nas duas últimas décadas
no Brasil: a entrada maciça das mulheres nos bancos universitários e no merca-
do de trabalho a partir dos anos 1960, a Lei do Divórcio em 1977, a discussão
sobre reprodução assistida e uso de barrigas de aluguel nos anos 1980, as várias
mudanças para mulheres e população negra, indígena e quilombola promovidas
pela CF/88, a promulgação da Lei Maria da Penha em 2016, as cotas para pessoas
negras nas universidades, o casamento homoafetivo e a autorização para a adoção
por parceiros do mesmo sexo, as reservas de vagas em concursos e carreiras para
pessoas negras, o uso de nome social são alguns exemplos desses “avanços” relati-
vos à pauta/agenda pública de gênero e raça/etnia.
Após o processo de democratização brasileira, que vem se consolidando
desde 1985, a primeira década deste início de século nos trouxe a “novidade” das
disputas que giram em torno das questões de gênero, raça/etnia e sexualidade,
que vêm, muito recentemente, ganhando centralidade pública sem paralelo na
recente história democrática brasileira. A democratização brasileira gerou tam-
bém a vontade e a busca de igualdade política entre pessoas e entre grupos. Para
além da luta dos trabalhadores, talvez as mulheres, as pessoas negras e indígenas
sejam os expoentes que mais reivindicaram o espaço público brasileiro com vis-
tas a reverter quadros e valores históricos de opressão, violência e discriminação.
A criação das Secretarias especiais, a exemplo da Secretaria de Políticas para as
Mulheres (SPM) e da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), ambas
de 2003, possibilitou, no plano federal, que tais questões fossem alçadas ao nível
ministerial e passassem a estar presentes, de forma mais explícita, no cerne das
políticas públicas. A realização das quatro Conferências Nacionais de Políticas
para as Mulheres (duas delas analisadas aqui) mobilizou centenas de milhares
de brasileiras interessadas em mudar o quadro de desigualdades e de exclusão
societária.
Dessa forma, as muitas recentes transformações econômicas, políticas, le-
gais, institucionais e culturais vividas pelo Brasil nos últimos 30 anos trouxeram
138
desafios de transformações também no campo dos costumes, dos comportamen-
tos e dos valores com vistas a se construir uma sociedade efetivamente pautada
numa “ética da igualdade”. Conforme afirmam Bandeira e Batista (2002):
Às portas do novo século a sociedade em geral torna-se cada vez mais cons-
ciente das diferenças e multiplicidades sociais emergentes que a compõem,
bem como da necessidade de regular os vários aspectos envolvidos nos re-
lacionamentos sociais decorrentes dessas diferenças. Isso se traduz em uma
identificação quase obsessiva de reivindicações que estabelecem novas linhas
de demarcação no domínio das interações sociais. Estas podem ser susceptí-
veis de regulação com base em novos valores que pretendem gerar uma “ética
de igualdade”, baseada no respeito (moral) e no reconhecimento (direito) das
diferenças e dos pluralismos, que dependa cada vez menos de leis e procedi-
mentos formais (BANDEIRA; BATISTA, 2002, p. 119, grifos nossos).
Essa busca por reconhecimento das diferenças de gênero, raça e etnia com
vistas a se edificar finalmente no Brasil uma ética da igualdade é o motor de mui-
tas das transformações no campo das percepções e valores. Além do mais, confor-
me salientado, as transformações nas formas de interação e o impacto das mídias
(sejam as mídias mais tradicionais, sejam as novas mídias sociais) têm sido efeti-
vamente responsáveis, frequentemente, por pautar os principais assuntos debati-
dos e difundidos sobre essas agendas, fazendo com mais frequência a discussão a
respeito dos comportamentos tradicionais e estereótipos de gênero e raça. Essas
forças mobilizam mudanças nos padrões de atitude e percepção em termos de gê-
nero e raça/etnia da população. Estes são pautados tanto pela grande mídia quan-
to pelo ativismo on-line, sendo a internet hoje fonte fundamental de informação
da nossa população. Trata-se de formas recentes de manifestar uma forma ativa de
desconstrução da opressão e do preconceito de gênero e étnico-racial. Ainda nas
palavras de Bandeira e Batista (2002):
139
atribuição social de um valor negativo à diferença do outro: o preconceito
(BANDEIRA; BATISTA, 2002, p. 125, grifos nossos).
140
racial e étnica, por exemplo). Seriam os sujeitos que passariam a ser chamados a
exercer a “sua” autoridade em face da desordem e da contingência da “moderni-
dade reflexiva” ou tardia (HEELAS; LASH; MORRIS, 1996).
Entre os muitos autores que elaboram considerações a respeito dessas
transformações, é possível identificar a experiência de duas grandes teses que va-
mos muito rapidamente resumir aqui. Elas podem conformar o grande pano de
fundo dos debates relacionados à busca de uma ética societária e padrões de ação
política, finalmente, fundada em parâmetros concretos de igualdade de gênero e
étnico-racial.
A primeira tese insiste em destacar a presença do fim da tradição; trata-
-se de uma tese “triunfalista” e/ou “radical”, em que os principais interlocutores
que defendem essa posição (THOMPSON, 1996; GIDDENS, 1991) vão relevar
a chamada condição “pós-moderna” que suplantaria e estaria baseada na erosão
da tradição. Tratar-se-ia de uma mudança radical sem precedentes em relação
a transformações de outras eras, em que a destradicionalização envolveria uma
substituição das vozes externas e supraindividuais de autoridade, controle e des-
tino, por vozes internas, subjetivas. Tais autores destacam a transição em curso e
elencam algumas características societárias que estariam sendo fortemente trans-
formadas e/ou substituídas, tais como: um ambiente societário mais fechado (frio,
repetitivo, ritualizado) que seria substituído por outro mais aberto (experimen-
tal, revisável); um tipo de percepção da ordem como algo relacionado ao destino
(pré-ordenado) por oposição à sua conversão numa situação de escolha (reflexivi-
dade); a ênfase recaída também sobre processos movidos pelas necessidades que
seriam substituídos pela contingência; um padrão de experiência social movido
pela certeza de que viria a ser substituído por outro cujo caráter é de incerte-
za; a experiência da segurança sendo substituída pela de risco; a experimentação
de uma cultura diferenciada (organizada) que estaria sendo substituída por uma
espécie de cultura “differrida” (desorganizada e sem um único centro); de uma
ênfase sobre o self para a sensibilidade de um permanente descentramento do
sujeito; a passagem de uma ótica política das virtudes para outra vocalizada pelas
preferências.
Nesta tese, as culturas tradicionais seriam percebidas e interpretadas como
dominadas pelo “destino”, envolvidas, excluindo as possibilidades de “escolhas”
efetivamente subjetivas. Trata-se, pois, da ênfase sobre uma ordem comunal/co-
letiva/heterônoma/sociocentrada para a experiência de uma ordem individual/
subjetiva/autônoma/centrada na reflexividade dos sujeitos: são eles que precisam
selecionar e escolher entre vozes morais e estéticas/estilísticas diferenciadas (o
papel do social/cultural é reduzido a favor da construção dos próprios padrões
de boa vida).
141
A segunda tese preconiza, por sua vez, um movimento dinâmico de coe-
xistência entre tradição e destradicionalização (manutenção da tradição, retradi-
cionalização e construção de novas tradições). Representam essa corrente autores
como Luke (1996) e Adam (1996), que tentam assinalar que aquilo que estaríamos
experimentando seria um movimento de competição, disputa, interpenetração e
interjogo de processos complexos de manutenção das tradições, reinvenção e re-
construção destas, por meio de mudanças trazidas pelas complexidades multi-
vocais dos nossos tempos. As pessoas viveriam, assim, em tensão permanente,
afetadas por conflitos entre vozes externas de autoridade (religiosas, culturais etc.)
e outras vozes que emanam de seus próprios desejos, expectativas e aspirações.
Dessa forma, a tradição passa a ser compreendida como aberta aos proces-
sos de agência humana, sendo, pois, permanentemente reconstruída, reinterpre-
tada, reinventada. As culturas destradicionalizadas existentes seriam percebidas e
interpretadas como contingentes e não excluiriam as possibilidades de “escolhas”
subjetivas, mas não seriam interpretadas como resultado sistemático do colapso
das vozes de autoridade socioculturais. Na prática, apesar da linguagem da auto-
nomia, ética da igualdade e da escolha, seríamos todos controlados por rotinas,
regras, procedimentos, regulações, leis, escalas, costumes etc. Dessa maneira, os
tempos que estaríamos vivendo seriam de mistura de várias trajetórias possíveis,
algumas mais informadas pela tradição, outras por processos mais individuali-
zantes, outras dinâmicas sendo transformadas por reinvindicações históricas por
igualdade baseada no reconhecimento das diferenças.
Neste capítulo apostamos fortemente na possibilidade da afirmação dessa
segunda tese. Passamos nos últimos 20/30 anos por processos relativamente es-
táveis de destradicionalização societária e de reconstrução dos padrões político-
-institucionais-legais em termos de gênero e sexualidade e menos em termos de
relações étnico-raciais, mas para o momento atual, podemos falar inclusive que o
backlash experimentado nesses campos é, de fato, uma fase de contenção (se não
de retradicionalização) da expansão dos valores democratizadores.
Voltando, então, as atenções para as relações das dimensões gênero, raça/
etnia e sexualidade – o campo crítico-emancipatório das relações de gênero
(MATOS, 2008) –, entende-se “gênero”, aqui, como um campo estruturado e
estruturante, uma construção social e política que determina relações entre os
homens e as mulheres, mas certamente não numa perspectiva unidirecional: da
exclusividade da dominação patriarcal (dos homens sobre as mulheres). Quando
se mencionam as relações de gênero tradicionais, geralmente são imaginadas re-
lações assimétricas, verticalizadas e hierárquicas de poder entre homens e mulhe-
res, em que “o” homem domina e “a” mulher é subalternizada. O melhor exem-
plo de uma típica relação nesse formato é o próprio patriarcado que assenta suas
142
bases na dominação e na hegemonia social e política estabelecida e cristalizada
como tradicionalmente masculina. As relações de gênero destradicionalizadas,
por sua vez, apresentariam uma miríade de outras possíveis formas de interação
ético-político-sociais, em que predominariam, então, a presença e a sensibilidade/
valoração de relações desta vez mais horizontalizadas, simétricas, democráticas e
igualitárias entre os gêneros, raças e distintas expressões da sexualidade.
O preconceito, usualmente incorporado e acreditado a partir das percep-
ções arraigadas nos valores que incorporamos é, nos termos deste trabalho, uma
das molas centrais e um reprodutor eficaz da violência, da discriminação e da ex-
clusão e, portanto, da violência. Os estereótipos ou os estigmas (ambas são formas
de violência simbólica) relacionados às dimensões de gênero e raça/etnia seriam,
assim, uma manifestação do tradicionalismo de gênero, raça e etnia e estariam
referidos a um conjunto muito arraigado de crenças sobre os atributos pessoais
“mais adequados” social, política e culturalmente a homens e mulheres, brancos
e negros, homo e heterossexuais, sejam estas crenças individuais ou compartilha-
das. Geralmente, os estereótipos e estigmas são fortemente associados a relações
vividas, experimentadas de um modo historicamente tradicional e também histo-
ricamente colonial.
Neste capítulo, tradicionalismo de gênero, raça e etnia refere-se à presença
de padrões de percepção e de sensibilidade moral e ética – portanto normativos,
valorativos –, de caráter fortemente tradicional em relação às interações no âm-
bito do sistema de relações de gênero, de raça e de sexualidade em nosso país.
Os padrões de tradicionalismo de gênero, por sua vez, são entendidos como fe-
nômenos que costumam ser operados por aquilo que a literatura pertinente já
cunhou como “masculinidades hegemônicas” (CONNEL, 1995),3 em oposição
às “feminilidades subalternas”. No escopo de um modelo binário, tal polaridade
tradicional se expressa entre a mulher/cuidadora, dona de casa, afetiva, subjetiva
e também social e culturalmente responsável pelos filhos e união da família, em
oposição e contraste ao homem/provedor, chefe da casa, financeiramente respon-
sável pela família, sendo que a mesma leitura pode ser desdobrada para os eixos
de raça e sexualidade. Este script ou roteiro tradicional tem o poder, cognitiva e
emocionalmente importante de estabilizar, orientar e nortear as percepções, bem
como ações práticas no mundo, portanto, a capacidade de reconstruir ou manter
sentidos que orientam tais ações.
3 É possível encontrar autores que constroem argumentações a partir do eixo do seguinte outro
binarismo (por complemento ou suplemento à oposição clássica entre masculino e feminino): trata-
-se da discussão estabelecida entre masculinidade hegemônica por oposição à masculinidade subordi-
nada ou subalterna (CONNEL, 1995).
143
Permanece, contudo, ainda em aberto no país o que seriam aqueles pa-
drões de interação e de sociabilidade de gênero alternativos e/ou mais destradi-
cionalizados em relação a este modelo. Parece claro que estes estão em constru-
ção. Do ponto de vista das relações afetivo-sexuais, em outro momento, já foram
feitas considerações substantivas sobre as “reinvenções dos vínculos amorosos”
(MATOS, 2000) que recortam experiências claras desta natureza, assim como
sobre o tema das “masculinidades contra-hegemônicas ou destradicionalizadas”
(MATOS, 1998). Além disso, esse processo em construção tem como poderosos
aliados os movimentos organizados de mulheres e, sobretudo, os movimentos
feministas.
Nesses espaços vêm sendo reconstruídas formas de sociabilidade e de co-
operação solidárias entre mulheres e entre mulheres e homens, assim como en-
tre diferentes outros atores dos movimentos sociais. Os espaços das Conferências
Nacionais de Políticas para as Mulheres podem ser entendidos como um loccus
onde essas relações são estabelecidas.
Em outro artigo (MATOS, 2010), indicou-se, justamente, a possibilidade de
se considerar que os feminismos no Brasil estariam experimentando uma “quarta
onda”, sendo que uma de suas mais recentes e principais características é a cons-
trução de circuitos de difusão feministas operados a partir de distintas correntes
horizontais de feminismos – negro, acadêmico, lésbico, masculino etc. – e entre
diferentes movimentos sociais. Nesse sentido:
Se erigindo como algo que pode ser descrito como um movimento multi-
nodal de mulheres ou a partir de diferentes “comunidades de políticas de
gênero” (como tem sido mais comum se referir no Brasil), o feminismo,
em parte significativa dos países da região latino-americana, na atualidade,
não só foi transversalizado – estendendo-se verticalmente por meio de di-
ferentes níveis do governo, atravessando a maior parte do espectro político
e engajando-se em uma variedade de arenas políticas aos níveis nacionais
e internacionais –, mas também se estendeu horizontalmente, fluiu hori-
zontalmente ao longo de uma larga gama de classes sociais, de movimentos
que se mobilizam pela livre expressão de experiências sexuais diversas e
também no meio de comunidades étnico-raciais e rurais inesperadas, bem
como de múltiplos espaços sociais e culturais, inclusive em movimentos so-
ciais paralelos (MATOS, 2010, p. 85).
144
(sobretudo no cuidado da família e filhos), bem como as percepções sobre o lugar
de mulheres e homens no âmbito específico da política institucional.
No que se refere à organização hierarquizada nas relações étnico-raciais, é
crucial demarcar que o racismo é entendido como um fenômeno de longa dura-
ção, sustentado ainda na modernidade e que objetiva compreender a durabilidade
da raça como um conceito social que independe do fundamento racionalista das
ciências biológicas. A persistência da ideia de raça se vale de muitos dos valores
e dos argumentos religiosos, biológicos, culturalistas e nacionalistas, que, muitas
vezes, estão fortemente entrelaçados. Neste sentido, assim como ocorre com as
relações de gênero, nas relações étnico-raciais está presente o script ou roteiro
tradicional que se enraizou inequivocamente no Brasil a partir das relações de es-
cravidão e exploração entre senhores(as) e escravos(as), largamente conhecidas e
praticadas em diversos tempos e espaços, que encontravam justificação no direito
de conquista – a escravização dos vencidos numa guerra – ou na religião – direito
de escravizar pessoas fora do seu grupo religioso, por meio das guerras contra os
“bárbaros” ou “infiéis”. A escravidão no Brasil colocou negros e negras numa con-
dição evidente de opressão que, mesmo após a abolição, ainda se evidencia nas re-
lações totalmente assimétricas e hierárquicas vividas por brancos(as) e negros(as)
no país. Também buscou-se mensurar as percepções dos eleitores relativas a uma
forma difusa de discriminação de gênero e raça e, mais especificamente, a discri-
minação racial focada em aspectos cognitivos.
145
os indivíduos pensam sobre algum assunto e como avaliam determinadas ques-
tões e situações.
As categorias de resposta, que variavam de “discordo totalmente” a “con-
cordo totalmente”, com uma opção intermediária de “não concordo nem discor-
do” são as chamadas questões “bipolares”, em que o pesquisador assume que as
respostas “opostas” têm a mesma intensidade para o entrevistado (SCHAEFFER;
PRESSER, 2003, p. 76). No nosso caso, por exemplo, assumimos que pessoas que
“discordam totalmente” da questão, “Principalmente o homem deve sustentar a
família”, têm, nesse quesito, valores relacionados à destradicionalização de gênero
diametralmente opostos àquelas que “concordam totalmente”. Apesar das limita-
ções evidentes que essa posição metodológica carrega – principalmente porque
reduz a cinco categorias um continuum infinito de possíveis percepções –, a uti-
lização dessas categorias permite um grau bastante aceitável de comparabilida-
de entre temas diversos, além de ser aquela que menos causa viés às respostas
(SCHAEFFER; PRESSER, 2003, p. 76).
Uma ressalva deve ser feita, entretanto, com relação aos chamados aspectos
cognitivos da metodologia de survey, especialmente no que tange às possíveis dife-
renças entre os significados inferidos pelos entrevistados e os significados preten-
didos pelo pesquisador (SIMÕES, 2007, p. 244). Há um relativo consenso de que a
resposta a uma questão envolve pelo menos quatro tarefas cognitivas: interpretar
a questão; ativar a memória para retomar um comportamento ou opinião; forma-
tar a resposta; e editá-la (SIMÕES, 2007, p. 244). Dessa forma, e voltando a um
dos nossos exemplos, a questão “Os brancos são mais estudiosos que os negros”
será interpretada de maneira distinta se vier ao final de uma bateria de perguntas
sobre relações de gênero e raça – como é o caso – do que se vier ao final de uma
bateria sobre as dificuldades encontradas pelas crianças no meio escolar.
Temos ciência de que há especialmente dois tipos de limitação para a nossa
comparação. Um que se refere às diferenças dos públicos entrevistados e outro de
caráter temporal. Quanto ao primeiro, é tanto quanto evidente que o eleitorado
nacional tende a interpretar as questões relativas a gênero e raça de forma distinta
das delegadas das CNPMs. Isto se faz evidente, sobretudo, porque o tema en-
quanto pauta política é mais relevante para estas últimas do que para o brasileiro
médio (pelo menos assim acreditamos).
Quanto ao segundo ponto, o caráter temporal – um intervalo de 5 anos –
torna o contexto um fator interveniente para a interpretação dos temas. É muito
diferente, por exemplo, ser indagado sobre questões de relações de gênero num
momento em que os temas ainda tinham menor saliência, como em 2011, do que
em 2016, quando o tema já estava no coração do debate público – haja vista a
146
forma como foi mobilizado de maneira extremamente sexista nas eleições de 2014
e na própria campanha pró-impeachment da então presidenta Dilma Rousseff.
Enfim, é bastante possível que, para as delegadas de 2016, o contexto tenha sido
mobilizado cognitivamente para a elaboração das respostas de uma forma distinta
do que para as delegadas de 2011. Sendo assim, essa observação precisa ser feita.
Acreditamos, contudo, que feitas as devidas ressalvas e observações, os re-
sultados aqui apresentados, de modo geral, podem ser considerados como um
referencial empírico fidedigno do fenômeno que nos propusemos a observar e
explicar. Isto porque, além do rigor com que a pesquisa foi conduzida – desde a
formulação do questionário, passando pela sua aplicação e terminando na análise
dos dados –, o nosso principal objetivo está na compreensão plausível de valores
que orientam condutas, e não no sentido último que carregam.
Posto isto, vamos às questões. Nos dois bancos de dados identificamos um
total de sete variáveis com elevado grau de comparabilidade que foram divididas
segundo algumas dimensões analíticas já discutidas em maior detalhe por Matos
e Pinheiro (2012). A primeira delas foi o que chamamos de “Tradicionalismo de
gênero no espaço privado”, contendo as seguintes questões:
• Consórcio Bertha Lutz / Ibope (2010):
• O trabalho doméstico é tarefa da mulher.
• O homem deve ser o principal responsável pelo sustento da família.
• Pesquisa com as delegadas das CNPMs (2011 e 2016):
• Homens e mulheres deveriam dividir igualmente o trabalho
doméstico.
• Principalmente o homem deve sustentar a família.
Os resultados comparativos sobre estas duas frases, que se referem, então,
ao tradicionalismo de gênero no espaço privado, encontram-se nas tabelas 1 e 2
abaixo.
147
Tabelas 1 e 2. Questões relativas ao tradicionalismo
de gênero no espaço privado
Frase 1: Homens e mulheres deveriam dividir igualmente o trabalho doméstico
Eleitorado Nacional CNPMs
Masculino Feminino Total 2011 2016 Total
Discorda totalmente 14,3 11,2 12,7 0,3 1,7 1
Discorda em parte 21,2 18,8 20 0,3 0 0,1
N.C.N.D.* 13,2 12,4 12,8 0 0 0
Concorda em parte 40,3 48,2 44,5 2,6 2,8 2,7
Concorda totalmente 10,9 9,4 10,1 96,8 95,5 96,2
148
O segundo aspecto se refere à mudança nos valores das delegadas. Apesar
de demonstrarem um maior conservadorismo para a questão do sustento do que
para a divisão do trabalho doméstico em ambos os anos, a tendência é de declínio
para o primeiro. A diferença entre as conferências não é desprezível: delegadas
entrevistadas na 4ª CNPM apresentaram padrões ainda mais destradicionalizados
nessa percepção do que as delegadas da 3ª CNPM. Vejamos: os percentuais de dis-
cordância da primeira frase passam de módicos 0,6% para 1,7% e os percentuais
de concordância com a segunda frase despencam pela metade: de 9,8% para 4,5%.
Ou seja, nesse aspecto específico do conservadorismo de gênero nas esferas privada
× pública (veremos mais adiante que esse padrão será constante para outros indica-
dores), o eleitorado masculino é o mais conservador, seguido do eleitorado feminino,
das delegadas de 2011 e, finalmente, das delegadas de 2016.
De um modo geral, portanto, podemos dizer que o tradicionalismo de gê-
nero no espaço privado em nível nacional em 2010 era aproximadamente 5 vezes
maior do que entre as delegadas. A distância entre as delegadas e a média nacional
de 2010 aumentou ainda mais, para situar-se em torno de 10 vezes (embora se
deva salientar que essa comparação não incorpora possíveis mudanças no perfil
médio da população brasileira entre 2011 e 2016), uma vez que, comparando as
duas conferências, identificamos que ocorreu uma redução de valores tradiciona-
listas ao longo do período (entre 2011 e 2016).
Uma segunda dimensão analisada foi a percepção sobre discriminação di-
fusa de gênero e raça. Embora as questões não sejam exatamente as mesmas nas
duas pesquisas, acreditamos que elas expressam razoavelmente o mesmo tipo de
valores e orientação de conduta.
• Consórcio Bertha Lutz / Ibope (2010)
• Mulheres negras sofrem mais preconceito que as brancas.
• Pesquisa com as delegadas das CNPMs (2011 e 2016):
• As mulheres afrodescendentes/negras e indígenas sofrem discrimi-
nação em função da raça/cor.
149
Tabela 3. Preconceito de gênero e raça – discriminação difusa
Frases 3 e 4: Mulheres negras e indígenas sofrem mais preconceito
que as brancas – CBL/Ibope/ As mulheres negras e indígenas
sofrem discriminação em função da sua raça/cor – Nepem/SPM
Eleitorado Nacional CNPMs
Masculino Feminino Total 2011 2016 Total
Discorda totalmente 3,1 2,5 2,8 0,6 2,5 1,6
Discorda em parte 14,3 12,7 13,5 0,9 2,0 1,4
N.C.N.D. 12,9 13,9 13,4 0,6 0,0 0,3
Concorda em parte 24,9 22,4 23,6 14,5 9,9 12,2
Concorda totalmente 44,8 48,4 46,7 83,5 85,6 84,5
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
e do Consórcio Bertha Lutz – CBL (Ibope/SPM).
150
A rigor, do ponto de vista teórico, as duas frases supracitadas expressam ca-
tegorias analíticas distintas: cognição e motivação. Ao sugerir que a raça determi-
na a facilidade/dificuldade do aprendizado, supõe-se uma relação entre o grupo
racial e o desenvolvimento cognitivo aos moldes das teorias racistas biologizantes
e eugênicas do início do século XX (STEPAN, 2005). Num outro patamar, a rela-
ção entre o grupo racial e “ser estudioso” expressaria, afinal, o preconceito refe-
rente à motivação que orienta a ação social, seja pelas características individuais
do sujeito, seja pela estrutura familiar na qual a criança está inserida.
De fato, muito da percepção coletiva de que alguns grupos são menos mo-
tivados e inferiormente cognitivos do que outros – e, portanto, caracterizados,
de certa forma, como “desviantes” (MERTON, 1968) – deriva em grande medida
de desigualdades entre as metas culturais (o sucesso educacional, por exemplo)
e os meios institucionais para alcançá-los (a desigualdade de acesso ao sistema
educacional). Nesse caso, a percepção coletiva atribui às características adscritas
do grupo (raça, etnia etc.) algo que lhe é inerentemente externo, ou seja, uma
propriedade da estrutura social, no mais claro exemplo de rotulação e acusação
(BECKER, 2009).
As tabelas abaixo mostram que, no plano nacional, essa rotulação de ca-
ráter conservador ocorre em níveis semelhantes tanto para o nível da motivação
quanto da cognição. Veja-se que o percentual de pessoas que discorda (em parte
ou totalmente) das questões é razoavelmente semelhante, girando em pouco mais
de 70%.
Já entre as delegadas, a estrutura da percepção é fundamentalmente distin-
ta. Se, por um lado, é verdade que o grau de destradicionalização nessa percepção
é consideravelmente superior à média nacional, ele o é muito mais pronunciado
em relação aos aspectos cognitivos do que em relação à motivação. Esse resultado
é interessante porque demonstra que, por ser geralmente considerado em lingua-
gem nativa um resultado mais “social” do que “biológico”, a dimensão motivacio-
nal – quando comparada à cognitiva – talvez encontre um conjunto de maiores
barreiras para se destradicionalizar. E isso parece ocorrer ainda mesmo entre as
delegadas que, como temos visto, apresentam um perfil de percepção muito me-
nos conservador (ou mais destradicionalizado) do que a média nacional dos(as)
eleitores(as) brasileiros(as). em todos os sentidos.
151
Tabelas 4 e 5. Preconceito de raça focada em aspectos cognitivos/motivação
Frase 5: Os(as) brancos(as), em geral, são mais estudiosos(as)
que os(as) negros(as) (cognitivo)
Eleitorado Nacional CNPMs
Masculino Feminino Total 2011 2016 Total
Concorda totalmente 4,3 2,3 3,3 2,6 1,4 2
Concorda em parte 7,7 6,1 6,9 3,8 0,9 2,3
N.C.N.D. 13,7 11,8 12,7 3,2 0,1 1,6
Discorda em parte 67,1 73,8 70,7 4,4 5,8 5,1
Discorda totalmente 7,1 5,9 6,5 86 9,8 88,9
Por fim, a última dimensão que comparamos as duas pesquisas foi aquela
que na pesquisa do CBL denominamos por “Destradicionalização de gênero”. As
perguntas em cada survey foram as seguintes:
• Consórcio Bertha Lutz / Ibope (2010)
• Sou a favor da união de pessoas do mesmo sexo.
• A mulher deveria ter o direito de decidir se continua uma gravidez
ou se faz um aborto.
• Pesquisa com as delegadas das CNPMs (2011 e 2016):
• Relações afetivas/sexuais devem necessariamente acontecer somente
entre um homem e uma mulher.
• Opinião sobre aborto (legislação); OBS: essa frase foi apenas para a
4ª CNPM (2016).
As tabelas abaixo apresentam a distribuição das respostas a essas fra-
ses em termos de sua discordância ou concordância (totalmente ou em parte).
Novamente, as delegadas apresentam valores percentuais com níveis bastante su-
periores de destradicionalização do que a média nacional no eleitorado brasileiro.
152
Também em ambos os casos, os homens apresentam um perfil consideravelmente
mais conservador do que as mulheres.
153
era razoavelmente esperado, já que estamos tratando das CNPMs de um público
atento, especializado e comprometido com os direitos das mulheres e sua confor-
mação em políticas públicas. O mais importante, contudo, foi demonstrar, a partir
da comparação entre as duas pesquisas (em que pesem os debates metodológicos
em torno das possibilidades metodológicas dessa comparação), que essa diferença
não é apenas bastante pronunciada, mas que tem aumentado para um grupo es-
pecífico dessas mulheres ao longo do tempo e nos períodos aqui analisados (2010,
2011 e 2016).
A se notar as constantes manifestações de conservadorimos que temos ob-
servado no país, especialmente a partir de 2013, é possível irmos ainda mais além.
Embora não tenhamos nenhum dado mais recente que nos permita uma rigorosa
comparação com o survey nacional do CBL, realizado em 2010, há indícios fortes
de que, para determinadas questões, o grau de destradicionalização de valores do
brasileiro médio vem sofrendo retrocessos.
Veja-se, por exemplo, que tem aumentado o percentual de pessoas a favor
da pena de morte4 e da intervenção militar.5 Também não seria de se surpreender
que, na média, tenha havido uma reação considerável com relação à destradicio-
nalização de gênero e raça, haja visto as constantes manifestações contrárias às
discussões do campo de gênero e feminista e que estão se aglutinando em torno do
que se tem tratado pelo senso comum como “ideologia de gênero” e também em
relação à rejeição das políticas de corte racial, em especial das cotas universitárias.
Diante desse cenário, é bastante plausível sugerir que o processo em curso
de destradicionalização nos valores relacionado a gênero e raça das delegadas tem
aumentado ao longo do tempo e, em contrapartida, esse processo de mudança tem
diminuído (ou até se revertido) para a média da nossa população. Isto torna ainda
mais importante reconhecer o lugar político e o papel deliberativo que se tem
avançado nas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, já que sa-
bemos que estamos lidando com um segmento populacional bem particular em
termos de dinâmicas culturais e valorativas de gênero e raça; trata-se de mulheres
mais destradicionalizadas nessas duas esferas do que a média da nossa popula-
ção/eleitorado brasileiro. Estas considerações e hipóteses igualmente evidenciam
o quanto, no âmbito das transformações hoje em curso, tanto no espectro político
4 Dados da Pesquisa Datafolha publicada na Revista Exame em 8 de janeiro de 2018. Segundo a
pesquisa, entre 2008 e 2018, o percentual de pessoas favoráveis a penas de morte subiu de 48% para
58%.
5 Segundo dados do Latin American Public Opinion Project, da Universidade de Vanderbilt, o
apoio a uma intervenção militar para conter a corrupção no Brasil subiu de 36,0% para 48,0% entre
2012 e 2014. Disponível para consulta no site: <https://www.vanderbilt.edu/lapop>/ Acesso em: jan.
2018.
154
quanto cultural brasileiro, temos um gigantesco descompasso entre segmentos e
públicos da população brasileira. Isso nos mostra, um pouco melhor, a magnitude
dos desafios que se descortinam para os próximos anos no Brasil.
Na seção seguinte analisamos, em maior detalhe, o que mudou, o quanto
mudou e por que mudaram no que tange a esses valores para as delegadas das
duas CNPMs. Os resultados que apresentamos não apenas corroboram em boa
medida o que temos argumentado até aqui, mas também nos permitem apreender
quais seriam alguns dos mecanismos que têm contribuído para alavancar essas
tendências. Vejamos.
6 Optamos por não utilizar os fatores resultantes da análise fatorial como os índices em si mesmos
pelo seguinte motivo: como o resultado da análise fatorial depende da distribuição das respostas, ele
reportou fatores distintos para cada ano, de modo que os resultados não seriam, dessa forma final,
comparáveis. Assim, a análise fatorial foi utilizada apenas como método exploratório da média dos
anos para, a partir daí, construirmos nossos próprios indicadores pautando-nos nas respostas sele-
cionadas. Para mais detalhes sobre métodos de construção de indicadores, ver Handbook on Cons-
tructing Composite Indicators (OECD, 2008).
155
Dessa forma, o mínimo valor possível de cada indicador é 5 (quando nas
5 questões o respondente expressa o maior grau de conservadorismo; 5 × 1 = 5);
e o máximo valor possível é 25 (quando nas 5 questões a respondente expressa
o maior grau de destradicionalização; 5 × 5 = 25). Posteriormente, para facilitar
a leitura e a interpretação desses dados, os índices foram ajustados para valores
entre 0 e 100. O quadro abaixo apresenta o conjunto das variáveis – na realidade
as frases que foram perguntadas às respondentes em relação à sua concordância
e discordância (totalmente ou em parte) – utilizadas para a construção de cada
índice e os gráficos subsequentes, por sua vez, apresentam a sua distribuição de
frequência para os anos de 2011 e 2016.
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
156
Gráficos 3 e 4. Distribuição das respostas –
Índice de Discriminação Difusa de Gênero e Raça (IDDGR)
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
Em síntese:
• As delegadas das CNPMs são mais conservadoras no que tange às rela-
ções de gênero (IRGPP) do que com relação à discriminação de gênero
e raça (IRGPP).
157
• Entre 2011 e 2016, aumentou, na média, o grau de destradicionalização
para ambas as dimensões.
• Entre 2011 e 2016, as delegadas das CNPMs se tornaram mais semelhan-
tes entre si com relação às percepções relativas a essas duas dimensões.
158
estabelecido entre a localização das mulheres na estrutura social, as suas caracte-
rísticas individuais e, afinal, as suas percepções.
159
Sobre os efeitos que se podem mensurar a partir desse modelo, de um
modo geral, destaca-se a presença de um padrão que perpassa as duas edições das
CNPMs, e as variáveis que se mostraram importantes para explicar a variação do
índice foram, principalmente: religião (ser protestante ou católico); renda; inser-
ção ocupacional; e educação.
O efeito da religião é o mais pronunciado. Mulheres protestantes têm, na
média, um índice em torno de 14 pontos inferior às que se consideram sem reli-
gião, às espíritas e às que se declararam de religiões afro-brasileiras. Para as católi-
cas, o valor do índice gira em torno de 6 pontos. Além disso, os valores são razoa-
velmente constantes ao longo do tempo – a variação não é superior ao intervalo
de confiança –, demonstrando que esta é uma dimensão bastante sedimentada.
Não foram encontradas diferenças para as que se declaram de religiões
afro-brasileiras e espírita/outra. Em síntese: o conservadorismo relativo às relações
de gênero nas esferas pública e privada é muito mais pronunciado em mulheres de
religião protestante e católica, conforme se poderia, de fato, esperar. Para as delega-
das oriundas de religião afro-brasileiras e espíritas, a percepção mensurada nesse
índice é, na média, praticamente igual à de mulheres que se declaram ateias ou sem
religião.
A renda foi outro fator cujo efeito se mostrou praticamente constante e
também bastante elevado. Para os dois anos, 1% a mais nos rendimentos eleva o
índice em torno de 0,3 ponto. A título de ilustração: duas mulheres com caracte-
rísticas semelhantes, mas com uma diferença de salarial de 50% – por exemplo, 1
e 1,5 salário mínimo, respectivamente –, a diferença entre elas será de 15 pontos
a mais no índice para segunda.
Destaca-se ainda que como a renda é fortemente correlacionada com o tipo
de inserção ocupacional, isso talvez explique o fato de que esta última dimensão
se mostrou relevante apenas para explicar a variação do índice para as assalaria-
das e autônomas, justamente aquelas categorias ocupacionais com maior grau de
heterogeneidade de inserção laboral e, consequentemente, de rendimentos: autô-
nomas e assalariadas, na média, demonstram menores graus de conservadorismo
no IRGPP do que desocupados, por exemplo. Para as ocupações mais estáveis –
profissionais de nível superior e funcionárias públicas – não foi observado efeito
significativo, muito em virtude, acreditamos, do fato de que esse efeito já havia
sido captado pela variável “renda”.
Por fim, a escolaridade demonstrou um efeito curioso, uma vez que se fez
sentir somente no ano de 2016.7 Em 2011, não foi encontrado nenhum efeito dos
7 Para avaliar a robustez deste resultado, também realizamos testes qui-quadrado entre os níveis
educacionais e os valores do índice. De fato, só foi encontrada uma relação significante para o ano de
160
diferentes graus de escolaridade na variação do IRGPP. Já em 2016, o efeito não
apenas existe como também se fez sentir em larga intensidade. Em comparação
às pessoas com Ensino Fundamental incompleto, o índice é 24 pontos maior para
aqueles com Fundamental ou Médio completo. Para aquelas com Superior com-
pleto, esse valor é de 27 pontos. Diferentemente do que se poderia esperar, con-
tudo, a diferença entre ter ensino superior e ter médio ou fundamental completo
é muito reduzida (em torno de 3 pontos), demonstrando que a educação, a partir
de certo nível (completado o Fundamental), têm um efeito apenas marginal nas
percepções avaliadas no IRGPP. Isso reforça, em grande medida, a hipótese rela-
tiva à homogeneização ideológica das delegadas salientada anteriormente e, mais
do que isso, de que essa homogeneização depende de outros mecanismos causais
que não somente a escolaridade. Tomados em conjunto, os resultados apontam na
seguinte direção:
• Houve um aumento do grau de destradicionalização com respeito às
percepções medidas pelo IRGPP entre 2011 e 2016.
• Esse aumento se deu concomitantemente a um processo de homogenei-
zação ideológica em sentido “progressista” no ano de 2016.
• Apesar disso, delegadas protestantes e católicas continuam a ter um grau
significativamente mais elevado de conservadorismo nesse índice do
que as demais delegadas. Nesse quesito, os resultados são praticamente
os mesmos entre os anos de 2011 e 2016.
• Delegadas de maior rendimento têm maiores níveis de destradicionali-
zação e esse efeito é constante ao longo do tempo.
• Somente em 2016, a educação se mostrou uma dimensão relevante para
explicar a percepção das mulheres com relação ao IRGPP.
• A origem social das delegadas não se mostrou relevante, em nenhum
momento, indicando que os eventuais efeitos da origem de classe so-
bre essas percepções tendem a ser anulados pela trajetória de vida das
participantes.
• Tampouco a estrutura familiar – medidas pela variável de estar casada/
em união e ter filhos – se mostrou relevante neste índice.
161
Tabela 9. Modelo de Regressão Linear / MQO –
Variável Independente: os valores do IDDGR
2011 2016 Modelo Único
Dimensão Variável
Beta Sig Beta Sig Beta Sig
Constante 72,03 *** 72,66 0,000 74,26 ***
Casada -1,22 - 0,62 - -0,13 -
Família
Tem Filho -0,41 - 2,94 - 1,47 -
Até 39 anos -4,88 - -4,61 - -4,47 *
Idade (ref = até De 40 a 49 anos -5,50 - -5,35 - -5,43 **
29 anos) De 50 a 59 anos 1,28 - -3,89 - -0,97 -
Mais de 60 anos -6,06 - -5,53 - -5,47 *
Raça Raça (Branca=1) -1,53 - -3,70 * -2,63 *
Protestante -6,82 * -14,58 *** -11,54 ***
Religião (ref = Afro-brasileira 1,84 - -3,97 - -1,57 -
sem religião) Espírita/outra -5,49 - -4,80 - -5,69 **
Católico -8,27 ** -7,33 *** -8,75 ***
Fundamental
8,61 - 18,62 ** 10,80 **
Escolaridade (ref Completo
= Fundamental Médio Completo 7,54 - 13,93 ** 9,55 **
Incompleto) Superior
8,49 * 13,46 ** 9,53 **
Completo
Renda Renda (log) 2,59 * 1,64 - 1,88 **
Funcionário
-8,25 *** -2,32 - -5,13 ***
Público
Inserção Profissional/
ocupacional (ref -5,52 - -1,58 - -2,56 -
Empregador
= desocupado)
Assalariado -2,07 - -2,96 - -2,30 -
Autônomo -5,51 - 0,61 - -1,70 -
Educação do pai -0,66 - -0,11 - -0,02 -
Origem Social
Educação da mãe -0,30 - 0,30 - -0,22 -
Ano (2016=1) Ano - - 2,45 *
R2 0,115 0,113 0,98
Ajuste
R2 Ajustado 0,059 0,059 0,70
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
162
seja o fator religião e, novamente, a percepção das delegadas protestantes e católi-
cas são os principais vetores explicativos. Delegadas adeptas a essas duas religiões
apresentam níveis sensivelmente maiores de conservadorismo do que as demais.
Há, entretanto, um ponto a se chamar a atenção. O efeito do conservadorismo no
IDDGR aumenta significativamente para as delegadas protestantes – e ele mais do
que dobra entre 2011 e 2016, saltando de -6,82 para -14,58 – enquanto permanece
razoavelmente constante entre as delegadas católicas.
Outro ponto de destaque refere-se à relação entre renda, ocupação (ser
funcionária pública) e educação. Razoavelmente importantes em 2011, as duas
primeiras deixam de ter significância em 2016 – embora deva-se destacar que o
resultado para funcionárias públicas era negativo em 2011, indicando maior con-
servadorismo do que para as demais categorias ocupacionais.
Já a escolaridade, que havia se mostrado relevante em 2011 apenas para as
delegadas com ensino superior, torna-se a principal variável explicativa em 2016,
incluindo-se, aí, todos os níveis educacionais.
As diferenças de raça que, sem se mostrarem importantes em 2011, apre-
sentam diferenças significativas em 2016, com as delegadas brancas tendo, na
média, um grau de conservadorismo em torno de 3 pontos maior do que as dele-
gadas pretas e pardas. Como destacamos na seção anterior, este resultado vai de
encontro ao aumento, mesmo que ainda incipiente, do conservadorismo racial
entre as delegadas.
Por fim, vale a pena um breve comentário sobre o modelo único. Como
apontado anteriormente, esse modelo nos permite captar alguns efeitos médios
das duas conferências sem, entretanto, poder distinguir seu comportamento no
tempo. De um modo geral, seus resultados são bastante consistentes com o que já
descrevemos acima, mas há um efeito que só foi captado por ele: o da idade das
delegadas. Embora não seja possível falar das tendências entre 2011 e 2016, po-
de-se dizer que, na média, o grau de conservadorismo aumentou com a idade. O
efeito é em torno de 5 pontos negativos para cada uma das faixas da idade quando
comparadas com as das delegadas mais jovens, de até 29 anos (mas é importante
destacar que esse efeito não é cumulativo). Em síntese, podemos dizer que:
• Houve um aumento do grau de destradicionalização com respeito às
percepções sobre discriminação racial e de gênero. Mas, como para
esse indicador os níveis de destradicionalização já eram razoavelmente
elevados em 2011, a intensidade da mudança foi menor do que a obser-
vada em relação ao índice de relações de gênero – IRGPP.
• Delegadas protestantes e católicas têm um grau consideravelmente
maior de conservadorismo do que as demais delegadas, destacando-se
163
ainda o fato de que, para as primeiras, houve um aumento significativo
de conservadorismo no IDDGR entre 2011 e 2016.
• Apesar de importantes em 2011 (embora não muito), renda e ocupação
perderam completamente o poder explicativo nesse índice em 2016.
• Já a educação, cujo efeito não se pronunciara em 2011, passa a ser,
em 2016, um importante fator explicativo. Delegadas com Ensino
Fundamental completo ou mais têm níveis de conservadorismo muito
menos pronunciados, embora deva-se destacar – tal como ocorrera com
o indicador anterior – que não há diferenças significativas a partir deste
nível educacional.
• A variável raça passou a ter um efeito não desprezível em 2016 nesse ín-
dice (o que também era esperado), com mulheres brancas apresentando
resultados inferiores das pretas e pardas.
• De um modo geral, as delegadas mais jovens têm menores níveis de
conservadorismo no IDDGR do que aquelas com idade superior a 29
anos.
164
das delegadas medidas por esses índices. Se, por um lado, esse dado contraria
uma tendência social geral, por outro vale atentar que as delegadas comungam de
características semelhantes que, certamente, atenuam o efeito da origem através
de um claro efeito de viés de seleção. Entre essas características – além do fato
óbvio de serem mulheres com maior inclinação à participação política do que a
média da população – pode-se destacar, apenas a título especulativo, a trajetória
em organizações formais e as redes pessoais e sociais nas quais estão inseridas.
Com efeito, redes que se formam em torno de objetivos políticos específicos po-
dem ter um efeito homogeneizador sobre as crenças e os valores difusos dos seus
membros (MARQUES, 2003).
Considerações finais
165
Ainda sobre as percepções de gênero nas esferas pública e privada (mensu-
radas pelo IRGPP), parece-nos que, para as delegadas pesquisadas no último ano
(2016), há um padrão mais bem estabelecido entre a localização das mulheres na
estrutura social, as suas características individuais e, afinal, as suas percepções.
Além do mais, há a presença de um padrão que perpassa as duas edições das
CNPMs quando observamos o Modelo de Regressão para o IRGPP: as variáveis
que se mostraram importantes para explicar a variação do índice foram, prin-
cipalmente: religião (ser protestante ou católico); renda; inserção ocupacional; e
educação. Sendo que o efeito da religião foi, pare esse índice, o mais pronunciado:
o conservadorismo relativo às relações de gênero nas esferas pública e privada é
muito mais marcado em mulheres de religião protestante e católica; para as de-
legadas oriundas de religião afro-brasileiras e espíritas, a percepção mensurada
nesse índice é, na média, praticamente igual à de mulheres que se declaram ateias
ou sem religião.
Também para o índice que mensurou as percepções relativas à discrimina-
ção difusa de gênero e raça – o IDDGR –, o fator religião se revelou determinante
das percepções. Delegadas protestantes e católicas têm um grau consideravelmen-
te maior de conservadorismo do que as demais delegadas, destacando-se ainda o
fato de que, para as primeiras, houve um aumento significativo de conservadoris-
mo no IDDGR entre 2011 e 2016. A escolaridade, cujo efeito não se pronunciara
em 2011, passou a ser, em 2016, um importante fator explicativo nas percepções
avaliadas pelo IDDGR. Delegadas com Ensino Fundamental completo ou mais
apresentaram níveis de conservadorismo nesse índice muito menos pronuncia-
do, embora se deva destacar – tal como ocorrera com o indicador anterior – que
não houve diferenças significativas a partir desse nível educacional. Ainda para o
IDDGR, conforme seria esperado (dada a própria natureza sensível do tema para
as delegadas declaradas pretas e pardas), a variável raça passou a ter um efeito não
desprezível, mas apenas em 2016, com as mulheres brancas apresentando resulta-
dos inferiores de destradicionalização do que as pretas e pardas.
Algo que se destaca dessas análises e que merece ser tratado nestas conclu-
sões é a particularidade do perfil valorativo e de percepções das mulheres que são
delegadas nas CNPMs; tal aspecto de caráter mais subjetivo das nossas desigual-
dades precisa estar em diálogo permanente com as forças institucionais existentes
em tais dinâmicas também. De fato, as delegadas das CNPMs se distinguem da
população em geral e também das mulheres brasileiras em geral, perfazendo um
círculo subjetivo-valorativo-cultural bem mais homogêneo e fortemente mais des-
tradicionalizado em relação às percepções de gênero e raça. Elas parecem operar,
talvez, como um subconjunto de agentes que tem sido responsável por processos
166
identificados, e já em curso no Brasil, de reformulação nos valores tradicionais de
gênero e raça.
Todavia, mesmo elas, conforme identificamos, estão submetidas às forças
de ondas reversas e de retrocessos, assim como sempre estiveram submetidas às
forças dos processos institucionais estatais. A estrutura e a ordem estatal brasilei-
ras são abertamente conservadoras (senão autoritárias) no que tange a gênero e
raça, ou seja: são historicamente patriarcais e racistas (MATOS; PARADIS, 2014).
Ousamos afirmar, inclusive, que o conservadorismo associado às percep-
ções de gênero e raça pode ser tratado como proxies de formas e percepções po-
liticamente autoritárias (tanto dentro, quanto fora do Estado). E essa é, de fato,
uma herança histórico-política não superada pelo Brasil. Como visto, se estáva-
mos (como a análise entre os três momentos distintos de realização das pesquisas
aqui analisadas demonstram: 2010, 2011 e 2016) numa tendência de mais forte
destradicionalização subjetivo-valorativa-cultural em termos de gênero e raça,
agora essa tendência disputa abertamente o espaço público com intensas forças
retradicionalizadoras, especialmente as forças conservadoras das religiões de ma-
triz cristã: protestante e católica, e as forças dos poderes de Estado. Estes, inclusi-
ve, fazem parte importante e constitutiva dos retrocessos e golpes atuais contra a
nossa, ainda frágil, democracia brasileira.
Há, pois, um grande descompasso cultural-valorativo entre as delegadas
aqui pesquisadas e a sociedade brasileira. Mas mesmo assim, podemos observar
que as deliberações tomadas nas CNPMs, mesmo operando fundamentalmente
no campo da construção coletiva de esforços de expansão dos direitos das mulhe-
res (via a construção de um complexo arcabouço de políticas públicas que con-
vergiram para os PNPMs), também disputaram e tensionaram, em algum grau,
a normatividade social patriarcal e racista brasileira. Os embates em torno, por
exemplo, da aprovação de um princípio e mesmo de políticas públicas que te-
nham seu foco na descriminalização generalizada do aborto no Brasil é talvez
o maior revelador dessa tensão valorativa, e ela está/esteve, de fato, presente no
campo dos embates realizados dentro das Conferências. O capítulo 6 do Volume
2, escrito por Martello, trata – entre outras importantes considerações – desse
importante momento de embate das CNPMs e merece a leitura.
Fica-nos a certeza ainda do quão difícil significa realizar e travar esses em-
bates no campo da esfera pública estatal: as CNPMs são efetivamente campos de
batalha valorativa sobre como se construir um Estado que tenha políticas sensíveis
e inclusivas às pautas de gênero e raça (entre outros marcadores sociais). Contudo,
mesmo contando com delegadas com um perfil cultural-valorativo destradi-
cionalizado, as deliberações e, posteriormente, a fase da implementação dessas
167
deliberações vão, certamente, filtrando os processos de destradicionalização de
gênero e raça, vão os disciplinando para, finalmente, conformá-los e formatá-los
nas métricas da administração pública. Análise detalhada desses processos as(os)
leitoras(es) poderão também encontrar no Capítulo 7 do Volume 1, onde Matos
e Cypriano problematizam e debatem a avaliação das políticas públicas realizada
pelas delegadas das duas conferências. É bem possível e provável que, nesse pro-
cesso de metabolização conflitiva, a força inicial dos valores destradicionalizados
vá rapidamente cedendo espaço à força centrípeta da normatividade patriarcal/
racista, esta atavicamente instalada, a partir do Estado brasileiro.
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170
Mulheres negras na institucionalização de
políticas contra o racismo e o sexismo:
trajetórias e desafios de uma agenda em aberto
Johanna Katiuska Monagreda1
Introdução
É sabido que, como fenômeno biológico, a raça não existe, mas, assim como
o gênero, é uma construção social com implicações simbólicas e materiais na vida
das pessoas. Tanto na sua dimensão histórica material, quanto na sua dimensão
simbólica, o machismo e o racismo se combinam para produzir e perpetuar a
exclusão social, econômica e política de mulheres racializadas, negras e indígenas.
Daí que Lélia González insista em tratar o racismo e o sexismo como “um duplo
fenômeno”, trazendo o conceito de racismo-patriarcal para salientar o caráter im-
bricado que adquirem ambas as opressões (GONZALEZ, 1982; 1984).
A luta das mulheres negras contra a opressão de gênero e de raça tem se
proposto a visibilizar as profundas desigualdades raciais que caracterizam a socie-
dade brasileira (GONZALEZ, 1988) e “vem desenhando novos contornos para a
ação política feminista e antirracista”, enriquecendo tanto a discussão da questão
racial, quanto a questão de gênero na sociedade brasileira (CARNEIRO, 2003b).
Desvelar o racismo também é uma luta encarada pelas mulheres indígenas, ainda
que seja comum minimizar a luta indígena como uma luta por apenas diversida-
de cultural. A indígena Avelin Buniacá Kambiwa2 diz sobre o Brasil: “Somos um
país extremamente sem memória. É preciso fazer um ‘letramento racial’” também
sobre a questão indígena.
1 Doutoranda e mestra (2014) em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Graduada em Ciência Política pela Universidad Central de Venezuela (2002). Pesquisadora do
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher – NEPEM.
2 Indígena socióloga e representante do Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas.
171
Ao mesmo tempo, a prática e a teoria das mulheres negras apontam que,
dentro do grupo mulheres, existem diferenças de classe e raça que marcam a ex-
periência de ser mulher. Consequentemente, autoras como Sueli Carneiro (2003a,
p. 52) caracterizam o movimento de mulheres negras com a luta organizada con-
tra a tripla discriminação:
172
histórica – do maior rendimento para o menor rendimento: homens brancos, mu-
lheres brancas, homens negros, mulheres negras. A maior porcentagem de mulhe-
res sem renda própria também corresponde às mulheres negras.
Na sua dimensão simbólica, o duplo fenômeno do racismo patriarcal pro-
duz e sustenta estereótipos e preconceitos que legitimam a inferiorização, a dis-
criminação e as desigualdades raciais. Lélia Gonzalez (1984) já adverte o quanto
as relações raciais e o imaginário sobre a mulher negra é perpassado pelas noções
de “mulata”, “doméstica” e “mãe preta”, e como o mito da democracia racial oculta
a violência simbólica dos estereótipos sobre a mulher negra. Mas também na di-
mensão política se observa a desvantagem histórica.
Padrões de raça e de gênero limitam o acesso à representação política no
Brasil (ARAÚJO, 2005). Mesmo quando metade da população brasileira está
composta por mulheres, apenas duas ocuparam altos cargos no atual governo. A
participação feminina no Congresso e no Senado gira em torno de 10%. Do total
de representantes no Congresso, 1,6 são mulheres declaradas pardas, e 0,6 mulhe-
res pretas, enquanto nenhuma pessoa indígena – homem ou mulher – foi eleita.3
A situação não é muito diferente no nível municipal: o número de vereadoras
está abaixo de 15% e 1.287 municípios não têm sequer uma mulher na Câmara
Municipal (SUB-REPRESENTAÇÃO..., 2016). Se a discriminação de gênero torna
muito mais difícil para as mulheres participar da política, mulheres negras e, es-
pecialmente, mulheres indígenas parecem totalmente afastadas dos espaços de re-
presentação, como consequência da combinação perversa entre sexismo e racismo.
A despeito desse panorama, as Conferências Nacionais se revelam como es-
paços de participação e deliberação amplos, abrangentes e inclusivos, que garan-
tirem uma maior representatividade da sociedade brasileira (POGREBINSCHI,
2012). Grupos tradicionalmente excluídos da esfera política encontram maiores
possibilidades de participação no âmbito das conferências, em parte porque o eixo
temático de cada conferência, principalmente aquelas organizadas para discutir as
políticas para grupos minoritários, implica um apelo específico à participação di-
reta de mulheres, negros, indígenas, população LGBT, entre outros.
É possível observar essa diversidade de participação nas CNPMs: mulheres
indígenas, negras, ciganas, lésbicas, deficientes, quilombolas, jovens, ribeirinhas,
empregadas domésticas, inclusive, privadas de liberdade, se articulam para ver
suas demandas colocadas nas CNPMs e talvez assim conseguir influenciar na ela-
boração de políticas públicas que garantam, realmente, os direitos das mulheres.
Nas 3ª e 4ª CNPMs, as mulheres negras delegadas representaram mais de
50% das delegadas; essa ampla participação pode ser resultado de um processo
173
histórico de luta e organização das mulheres negras. Na seção a seguir traçamos
brevemente os passos da organização do movimento de mulheres negras no Brasil
desde os anos 1970 até os nossos dias, focando exclusivamente na interação com
o movimento feminista e com o movimento negro; desse modo, outras interfaces
importantes que têm desenhado o movimento de mulheres negras, por exemplo,
com o movimento de trabalhadores(as), dentro do movimento da diversidade se-
xual, na luta pela terra quilombola, entre muitas outras, ficarão por fora desta
narrativa.
4 Alguns dos nomes que traçaram a trajetória do movimento de mulheres negras são resgatados
por Schuma Schumaher (2017).
174
embarcação escravista.5 Contudo, na década dos anos 1970 e 1980 vemos surgir
uma compreensão mais apurada da interação do patriarcado e do racismo como
sistemas de opressão que impactam a vida das mulheres negras, e vemos também
uma disputa mais explícita por colocar esses temas na agenda dos movimentos
antirracistas, nos movimentos feministas, e para dentro do Estado.
Esse questionamento fundado na necessidade de se pensar as lutas na in-
teração entre raça, o gênero e a classe aparece também em outras organizações,
onde as mulheres negras tinham participação fundamental, tais como: o movi-
mento de favelas do Rio de Janeiro, os movimentos de trabalhadoras domésticas
em Belo Horizonte e em Salvador, as associações comunitárias, as comunidades
religiosas afro-brasileiras, os movimentos quilombolas, os movimentos de mu-
lheres rurais, o movimento estudantil e as organizações clandestinas de esquerda.
No entanto, escapa do escopo deste capítulo aprofundar esses outros espaços de
militância das mulheres negras.
A principal característica do movimento organizado de mulheres negras é
o que Matilde Ribeiro (1995) caracterizou como uma “dupla militância”, salien-
tando o fato de que, cientes da dupla discriminação, a militância das mulheres
negras tem uma interface tanto com o movimento negro, do qual muitas delas são
militantes, quanto com o movimento feminista, do qual participam.6 Essa dupla
militância não significa a subordinação das pautas das mulheres negras a nenhum
dos dois movimentos. Pelo contrário, a busca de um referencial próprio, a partir
da experiência de ser mulher negra em sociedades racistas e sexistas é o que defi-
ne o movimento de mulheres negras7 (RODRIGUES; PRADO, 2010).
A experiência de ser mulher é social e historicamente determinada e em so-
ciedades racistas e sexistas, com profundas desigualdades sociais, a experiência de
5 Ainda que essa tentativa de salientar as lutas antiescravistas e as vincular com o movimento ne-
gro contemporâneo faça parte do discurso do movimento negro do Brasil, a primeira vez que escutei
essa reflexão foi em um discurso de Larissa Amorim Borges, provavelmente em 2012.
6 Essa dupla militância também reflete a postura de mulheres negras como Lélia Gonzalez e Luiza
Bairros, que entendiam que as mulheres negras deviam ocupar todos os espaços possíveis, inclusive
os espaços de participação em partidos políticos e a disputar cargos de eleição popular.
7 Essa relação com o movimento negro e com o movimento feminista não é uma relação fácil e se
complexifica ainda mais quando a pauta da diversidade sexual é colocada. Pensando na diversidade
de pautas que conformam o movimento de mulheres negras, importa também fazer essa reflexão
como crítica à heteronormatividade compulsória, que junto com o racismo, junto com o patriarcado,
afeta a vida das mulheres negras. Infelizmente, não é possível, neste texto, abordar esse tema com a
profundidade requerida, contudo Cláudia Pons Cardoso (2013) analisa as dificuldades de introdução
das pautas das mulheres lésbicas nesse período. Outro movimento que transversaliza as discussões
sobre mulheres negras é o movimento da juventude negra, que pode ser aprofundado nos trabalhos
de Lima (2010), Pereira (2012), Borges; Mayorga (2012), Moura, Silva e Gomes (2017).
175
ser mulher está marcada pela raça (BAIRROS, 1995). As sequelas da colonização
e da escravidão permanecem ainda hoje tanto no imaginário social, produzin-
do imaginários e percepções estereotipadas sobre as mulheres negras; quanto nas
desvantagens econômicas e políticas que se acumulam sobre as mulheres negras.
Desse modo, as percepções e os preconceitos, a distribuição desigual do poder
econômico e político, todos esses elementos se juntam para manter intactas as
relações de gênero, segundo cor ou raça, instituídas desde o período da escravidão
(CARNEIRO, 2003a).
Os aportes das mulheres negras na reflexão sobre a condição de opressão e
sobre a luta política das mulheres negras vão orientados a mostrar como raça, gêne-
ro, classe social, sexualidade se reconfiguram mutuamente (BAIRROS, 1995). Não
se trata de pensar uma identidade comum para as mulheres negras, mas de reco-
nhecer o fato de que a opressão de gênero e de raça coloca as mulheres negras em
uma posição particular frente à dominação. Como afirma Werneck (2010, p. 10):
176
também a reprodução de opressões sexistas e racistas no universo interno de am-
bos os movimentos.
O desafio de trazer as questões relativas ao gênero para o movimento negro,
e a luta antirracista para o movimento feminista, tem em Lélia Gonzalez e Beatriz
Nascimento as grandes referências: “Essas duas líderes deixaram como legado a
certeza de que era essencial ancorar as ações na ‘feminização’ das questões raciais
e na ‘racialização’ do ideário feminista” (SCHUMAHER, 2006).
Daí que, como propõe Sueli Carneiro (2003a), enegrecer o feminismo e fe-
minizar o movimento negro apareçam como uma necessidade impostergável para
as mulheres negras: enegrecer o feminismo significava entender que, assim como
a divisão sexual do trabalho configurou papeis à mulher, a divisão racial do traba-
lho configura papéis internamente ao grupo de mulheres. Sexualizar ou feminizar
o movimento negro implicava entender que as desigualdades se acentuam graças
à diferenciação sexual. Vale aqui colocar que as mulheres indígenas também têm
salientado a necessidade de “indianizar a luta das mulheres”,8 como parte de uma
das estratégias para dar visibilidade e centralidade à luta indígena nos diversos
espaços de participação política, seja na luta feminista, na luta pela redistribuição
econômica, seja na luta pelo poder político institucional. Dessa forma, racializar
o feminismo implicaria uma melhor compreensão da imbricação da opressão de
gênero e racial, mas também em novos aprendizados para enfrentar o patriarcado
a partir, por exemplo, das práticas ancestrais de coletivização do cuidado e da
resistência comuns às comunidades negras e indígenas.
Gonzalez (1988), Carneiro (1993) e Bairros (1995), entre outras negras fe-
ministas, veem nessas tensões a possibilidade de se avançar nas práticas políticas
feministas e antirracistas, e também de produzir uma compreensão conceitual
mais aprimorada sobre como funciona o racismo e o sexismo, como se verá mais
à frente. No entanto, ao se desconsiderar o gênero, diversas formas de discrimina-
ção racial podem passar desapercebidas e, ao se desconsiderar a raça, se invisibi-
liza um tipo de opressão vivenciada pelas mulheres racializadas.
Com relação às lutas políticas, a prática de uma dupla militância faz que,
mesmo quando criam organizações autônomas, as mulheres negras não abando-
nem o movimento negro misto, e reclamem presença nas organizações e encon-
tros do movimento feminista branco.
Nesse sentido, a história do movimento de mulheres negras, pelo menos
entre os anos 1970 e 1980, pode ser contada junto com a história do movimento
8 Escutei pela primeira vez essa expressão na fala de Avelin Bunicá Kaiowá em um encontro sobre
interseccionalidade organizado em 2016 em BH pelo Coletivo As Margaridas. Mas a expressão tam-
bém é usada em muitos dos atos do Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas.
177
negro, uma vez que as organizações do movimento negro desse momento tinham
uma forte presença feminina, inclusive nas esferas de liderança. Rodrigues e Prado
(2010) nos falam de diversas organizações vinculadas às questões raciais, onde as
mulheres negras eram protagonistas:
No Rio Grande do Sul havia o Grupo Palmares, que foi o responsável por
propor a data de 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares,
como dia nacional da consciência negra. Em São Paulo surgiram organiza-
ções que pensavam a constituição de um Movimento Negro com projeção
nacional, com destaque para o Grupo Evolução, criado em Campinas em
1971 por Thereza Santos e Eduardo Oliveira e Oliveira; o Cecan, Centro de
Cultura e Arte Negra, de 1975; e a Associação Casa de Arte e Cultura Afro-
Brasileira (Acacab), fundada em 1977. Em Salvador é criado, em 1974, o blo-
co afro Ilê Ayê, que fomentou todo um clima para afirmação do Movimento
Negro na Bahia, e o Grupo Nego – Estudos Sobre a Problemática do Negro
Brasileiro, de onde saiu o quadro inicial de militantes do MNU da Bahia
(BAIRROS, 2000; GONZALEZ, 1984; GUIMARÃES, 2002; HANCHARD,
2001). (RODRIGUES; PRADO, 2010, p. 450).
178
uma coluna fixa “Escreve a mulher” no jornal Quilombo, dirigido por Abdias
Nascimento.
Desde início dos anos 1980, começou dentro do Movimento Negro
Unificado (MNU), em diversos estados, a formação de grupos de mulheres. No
Rio de Janeiro, Lélia Gonzalez fundou o Grupo de Mulheres e o Nzinga – Coletivo
de Mulheres Negras do Rio de Janeiro. E um pouco depois, em 1981, Luiza Bairros,
junto com Ana Célia da Silva, Maria do Amparo, Teresa Alfaya e outras, criaram o
Grupo de Mulheres do MNU da Bahia (PINTO; FREITAS, 2017).
Muitos desses grupos funcionavam como espaços de formação das mulheres
negras para a militância política, de construção de um discurso político próprio,
mas também de afirmação da identidade negra e de formação e profissionalização.
Quando essas organizações são consideradas dentro do grande guarda-
-chuva “movimento negro”, tende-se a invisibilizar a importância dessas orga-
nizações para a consolidação do movimento de mulheres negras. É importante
salientar essas organizações como fazendo parte da história do movimento de
mulheres negras, em reconhecimento ao protagonismo das mulheres negras den-
tro das mesmas e em reconhecimento à luta afincada por pautar a agenda das
mulheres negras dentro dessas organizações, mesmo que com múltiplas tensões.
Mas, principalmente, porque eu gostaria de reafirmar, junto com Ribeiro (1995)
e Carneiro (1993), que as mulheres negras não se distanciaram do movimento
negro, mas elas fizeram o trabalho da dupla militância, mesmo que tensa e cheia
de contradições:
Contudo, essa forte presença das mulheres negras “não se traduz em ocu-
pação de espaços políticos ou visibilidade política na mesma proporção em
que ocorre com os homens negros, o que é fruto da própria situação social e
cultural da mulher que a condiciona a aceitar um lugar subordinado dentro
de uma organização, embora respondendo por tarefas fundamentais para a
mesma”. (CARNEIRO, 1993, p. 15).
179
conceitualizar o patriarcado e a discriminação pela orientação sexual, o caráter
eurocêntrico do feminismo produziu certa cegueira sobre o impacto da raça em
sociedades onde a colonização histórica produziu hierarquizações raciais além de
sexuais e, portanto, tem falhado em incorporar a discussão sobre outro tipo de
discriminação sofrida pelas mulheres, a de caráter racial (GONZALEZ, 1988).
Daí a necessidade de enegrecer o feminismo: “Enegrecendo o feminismo é a ex-
pressão que vimos utilizando para designar a trajetória das mulheres negras no
interior do movimento feminista brasileiro” (CARNEIRO, 2003b, p. 118). Mas
também aponta para as limitações teóricas e políticas de se pensar um feminismo
que desconsidera a raça em sociedades como a brasileira.
A luta antirracista junto com os homens negros continua fazendo parte
central do movimento de mulheres negras, até porque a compreensão de que elas
produzem sobre o patriarcado é que essa combinação do patriarcado com o ra-
cismo produz gêneros inferiorizados: a opressão de gênero junto com o racismo
mostra uma face na opressão das mulheres negras, mas tem outra face na própria
inferiorização do homem negro com relação ao homem branco, um produzido
como um gênero inferior e como um ser não humano; e o outro produzido como
o gênero dominante, o patriarca.
Mas o racismo patriarcal também produz diferenças substantivas com as
mulheres brancas, que por uma parte tem a ver com estarem posicionadas como
grupo em lugares diferentes da opressão de gênero, mas também com a produ-
ção de privilégios que implica a branquitude. Na formulação de Sueli Carneiro
(2003b, p. 117) o racismo produz gêneros subalternizados e superlativos. Produz
gêneros subalternizados: “tanto no que toca a uma identidade feminina estigmati-
zada (das mulheres negras), como a masculinidades subalternizadas (dos homens
negros) com prestígio inferior ao do gênero feminino do grupo racialmente do-
minante (das mulheres brancas)”. E “o racismo também superlativa os gêneros por
meio de privilégios que advêm da exploração e exclusão dos gêneros subalternos”,
colocando, sim, padrões inalcançáveis também para o grupo hegemônico, do qual
as mulheres brancas são expostas, mas que principalmente coloca as mulheres
do grupo racial hegemônico em situação de privilégio com relação às mulheres
negras.
Nesse sentido, para as mulheres negras, reclamar o movimento feminista
para si implica questionar conceitos inclusive caros ao feminismo, uma vez que
“as categorias utilizadas pelo feminismo neutralizavam tanto o problema da dis-
criminação racial quanto do isolamento enfrentado pela comunidade negra na
sociedade” (GONZALEZ, 1982, p. 100):
180
padeciam de duas dificuldades para as mulheres negras: de um lado, o viés
eurocentrista do feminismo brasileiro, ao omitir a centralidade da questão
de raça nas hierarquias de gênero presentes na sociedade, e ao universali-
zar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das
mulheres, sem as mediações que os processos de dominação, violência e
exploração que estão na base da interação entre brancos e não brancos,
constitui-se em mais um eixo articulador do mito da democracia racial e do
ideal de branqueamento. Por outro lado, também revela um distanciamento
da realidade vivida pela mulher negra ao negar toda uma história feita de
resistências e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à
dinâmica de uma memória cultural ancestral – que nada tem a ver com o
eurocentrismo desse tipo de feminismo.
181
que precisamente fosse o espaço privado, de consolidação da família e de cuidado,
o espaço historicamente negado. Nesse sentido, Benilda Brito (1997) nos lembra
que a experiência de ser dona de casa para as mulheres negras tem pouco mais
de um século. Essa constatação não invalida a necessidade de romper com esses
preceitos que pretendem naturalizar a dominação das mulheres, confinando-as ao
lugar do cuidado e da maternidade,10 mas exige um análise e uma prática política
que coloque no centro do debate os efeitos da construção social da raça.
A discussão sobre o trabalho doméstico também exibia os limites de uma
solidariedade de gênero que ainda precisava ser construída. Enquanto se refletia
sobre a violência de gênero dentro de casa a que os homens submetiam as mu-
lheres, as mulheres negras questionavam sobre a violência a que outras mulheres
negras eram expostas, mas que tinham como agente outras mulheres brancas, no
lugar de patroas: “ao colocar no centro do debate questões como a relação inter-
-pessoal-profissional existente entre patroas e empregadas, revelou-se algo mais
sobre as relações cotidianas estabelecidas nesse espaço privado” (OLIVEIRA;
SANT’ANNA, 2002, p. 202).
Questionavam também sobre o silêncio das mulheres brancas frente às prá-
ticas de abuso sexual sofridas pelas empregadas domésticas, herança de uma cul-
tura escravagista e que posteriormente foi entendido como assédio sexual no local
de trabalho. E reclamavam que a luta pelos direitos das mulheres devia incorpo-
rar, urgentemente, a luta por direitos trabalhistas para empregadas domésticas,
que na época nem era considerado um trabalho.
A crítica ao imaginário social e às representações midiáticas sobre a sexua-
lidade da mulher negra, a vulnerabilidade maior das mulheres negras e indígenas
com relação à maternidade e ao exercício da sexualidade, junto com a crítica à
política de controle populacional e a luta contra a prática de esterilização pelo ca-
ráter não suficientemente informado e compulsório dessa prática que tinha como
alvo privilegiado mulheres negras e indígenas vulnerando seus direitos reprodu-
tivos foram pautas importantes das mulheres negras nesse período (OLIVEIRA;
SANT’ANNA, 2002; CARNEIRO, 2003b).
Essas críticas não eram recebidas sem resistência, como declarou Lélia
Gonzalez em entrevista ao Jornal do MNU, mesmo havendo quem se preocupas-
se com a questão racial no interior do movimento de mulheres brancas (PINTO;
FREITAS, 2017):
10 Refletimos acima sobre o quanto os homens do movimento negro pretendiam sujeitar as mu-
lheres a lugares de apoio dentro do próprio movimento.
182
havia um discurso estabelecido com relação às mulheres negras, um estere-
ótipo. As mulheres negras são agressivas, são criadoras de caso, não dá para
a gente dialogar com elas etc. [...] porque para elas a mulher negra tinha que
ser, antes de tudo, uma feminista de quatro costados, preocupada com as
questões que elas estavam colocando. (GONZALEZ, 1988).
Com essas iniciativas, pôde-se engendrar uma agenda específica que comba-
teu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e intragênero; afirmamos
e visibilizamos uma perspectiva feminista negra que emerge da condição
específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre, delineamos, por fim, o
papel que essa perspectiva tem na luta antirracista no Brasil. (CARNEIRO,
2003b, p. 118).
183
Carneiro11 conta que essa iniciativa surge sem representação de mulheres negras
entre as conselheiras. O fato foi alertado primeiramente pela radialista negra
Marta Arruda; as mulheres negras, então, criam o Coletivo de Mulheres Negras
para organizar suas ações e pressionar para terem representação no Conselho.
Dessa ação, Thereza Santos se torna a primeira mulher negra no Conselho em
1983 ao assumir um cargo titular junto com Vera Lúcia Saraiva como suplente.
Sueli Carneiro assume para a gestão seguinte em 1986. A esse Conselho se se-
guiram outros conselhos estaduais, em vários estados do país, onde as mulheres
negras também tentaram garantir a sua representação.
A atuação das mulheres negras trouxe o debate sobre o tema racial para
dentro do Conselho, sendo incorporada a luta contra o racismo nas ações, o que
levou a criar a Comissão da Mulher Negra, do CECF/SP: “Daí em diante, as re-
presentantes negras ficaram com seu lugar assegurado no Conselho, inclusive nas
instâncias diretoras. A primeira afrodescendente a assumir a presidência foi a psi-
cóloga e assistente social Maria Aparecida de Laia que, em 1995, foi nomeada para
duas gestões consecutivas” (SCHUMAHER, 2006).
Em 1985, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM),
para promover no âmbito nacional as políticas de eliminação da discriminação
contra a mulher. O Conselho foi inicialmente vinculado ao Ministério da Justiça
e hoje permanece vinculado à Secretaria de Políticas para Mulheres. Nesse pri-
meiro Conselho nacional, Lélia Gonzalez participou como conselheira de 1985
a 1989. Em 1988, se estruturou dentro desse Conselho uma Coordenação do
Programa da Mulher Negra sob a coordenação de Sueli Carneiro (RIBEIRO,
1995; SCHUMAHER, 2006). Em 2002, pela primeira vez uma mulher indígena
formou parte do CNDM.
A entrada de mulheres negras dentro de instâncias de governo se dá em
variados âmbitos, na saúde, na educação, na cultura, e em órgãos de combate ao
racismo e à discriminação racial, entre outros (SCHUMAHER, 2006).
Nesse processo de institucionalização das demandas feministas e de bus-
ca de inserção, as mulheres negras foram conquistando espaço, o que favoreceu
também a preparação das mulheres negras para participar de conferências e en-
contros internacionais. No processo da III Conferência Mundial das Mulheres
Nairobi, 1985, o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo prepa-
rou um diagnóstico sobre a situação da mulher no Brasil, que incluiu o estudo
“Mulher negra: política governamental e a mulher” de autoria de Sueli Carneiro
e Thereza Santos, referência sobre a questão da mulher negra (CARNEIRO, 1993;
RIBEIRO, 1995).
11 Cf. Sueli Carneiro (1950-). In: Mulher: 500 anos atrás dos panos. Disponível em: http://www.
mulher500.org.br/sueli-carneiro-1950/
184
Por sua parte, os encontros internacionais propiciaram o encontro das mu-
lheres negras brasileiras com mulheres negras de outros países, e a consequente
constatação da proximidade da sua realidade de enfrentamento ao racismo e ao
sexismo, mas também a necessidade de fortalecer espaços de ação conjuntos. No
III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado em Bertioga
(SP), participaram 850 mulheres, das quais 116 se declararam negras e mestiças.
Desse encontro resultou a constatação de um certo “traço comum” na realida-
de das mulheres negras latino-americanas e na dificuldade de encontrar espaços
de articulação específicos de mulheres negras, além da dificuldade da articulação
com mulheres brancas.
Esse debate sobre o feminismo e as questões de raça estava, portanto, acon-
tecendo para dentro e para fora das fronteiras nacionais e ambos os espaços, in-
ternacional e nacional, se nutriam dos debates. A discussão que teve lugar em
Bertioga, no contexto de um encontro latino-americano, prosseguiu para os en-
contros feministas nacionais no Brasil. Nesse sentido:
185
Mas, na avaliação de Sueli Carneiro (1993), o centenário da abolição formal
da escravatura contribuiu de maneira crucial para a conformação de um movi-
mento de mulheres negras. As articulações para a contestação da comemoração
do centenário da abolição da escravatura e a denúncia contra o racismo e a desi-
gualdade racial, ainda imperantes no Brasil, levaram a uma grande mobilização
de toda a militância negra, incluindo as mulheres negras, que viram também uma
oportunidade para se articular e apresentar reivindicações específicas:
12 www.geledes.org.br.
13 www.criola.org.br.
186
recém-criadas instâncias consultivas de formulação de políticas públicas contra a
discriminação de gênero.
Essa dupla militância exige também, na perspectiva de Suely Carneiro
(1993), uma certa autonomia do movimento de mulheres negras, para poder dia-
logar em termos de igualdade com o movimento negro e com o movimento femi-
nista.14 Essa busca de um referencial próprio se reflete na realização de encontros
nacionais e estaduais de mulheres negras. Dentre os encontros nacionais, Benilda
Brito (1997) elenca os seguintes:
14 Vale dizer que teve muita discussão em torno de qual seria o melhor caminho para a militância
das mulheres negras, se no movimento negro, se no movimento feminista, se em organizações exclu-
sivas de mulheres negras. Ver: Carneiro, 1993.
187
Também faz parte das estratégias a ação do movimento de mulheres negras
para ocupar os espaços transnacionais. Enquanto um setor do movimento de mu-
lheres negras se mantém próximo das organizações de base, outro, como vimos,
se organiza na forma de ONGs com as vantagens que isso oferece em termos de
acesso a recursos de organismos internacionais, e também com relação à certa
profissionalização e maior espaço de interlocução governamental, que as organi-
zações de base e as associações de voluntariado não tinham.
Com essa intervenção internacional, as mulheres negras ganharam um
novo fórum para levar as suas demandas, e essas demandas ganharam maior le-
gitimidade frente aos governos nacionais, principalmente, a partir dos acordos e
planos de ação, resultados das Conferências Mundiais da ONU. Com relação à
articulação com outros movimentos, a ação transnacional também trouxe alguns
ganhos: a articulação com outras mulheres negras da região, com foi o caso do III
Encontro feminista Latino-Americano e do Caribe (já mencionado); a conforma-
ção de redes de articulação de mulheres negras; ações conjuntas com feministas
brancas para alcançar objetivos específicos da agenda de luta das mulheres negras
e a articulação com outros movimentos antirracistas na região, além de uma legi-
timidade para as suas demandas.
Com relação à articulação referente das redes de mulheres negras na re-
gião, em 1992 foi conformada a “Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e
Caribenhas” como um espaço de articulação e empoderamento das mulheres
afrodescendentes para a construção e reconhecimento de sociedades democráti-
cas, equitativas, justas, multiculturais, livres de racismo, de discriminação racial,
sexismo e de exclusão, e promoção da interculturalidade.15 A ideia de conformar
uma articulação internacional de mulheres afrodescendentes surgiu em 1986, no
III Encontro Continental de Mulheres realizado em Cuba, com o objetivo de im-
pulsionar uma política antirracista e antissexista na região; várias mulheres negras
propuseram que se incluísse na agenda de discussão a problemática das mulheres
negras na América Latina. Em 1990, no V Encontro Feminista de América Latina
e o Caribe, realizado na Colômbia, se concretizou a ideia, e em 1992 se confor-
mou a Rede na República Dominicana, com a participação de 400 mulheres dos
33 países da região. Em 1996, se realizou, na Costa Rica, o segundo encontro da
Rede e nele participaram pelo Brasil: Joana Angélica de Souza, Lucimar Alves e
Edenice Santana de Jesus.
No marco da realização da III Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Formas de Intolerância Conexa, realizada em
Durban, África do Sul, em 2001, as mulheres negras criaram, em setembro de
15 http://www.mujeresafro.org.
188
2000, a “Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras” (AMNB)
para articular as ações de preparação e as reivindicações que seriam colocadas na
conferência de Durban. Essa articulação foi coordenada pela ONG Criola – orga-
nização de mulheres negras do Rio de Janeiro –, o Geledés – Instituto da Mulher
Negra de São Paulo – e pela ONG Maria Mulher, do Rio Grande do Sul, e foi su-
mamente importante para garantir a presença das mulheres negras organizadas na
Conferência Mundial contra o Racismo.16 É interessante salientar, como exemplo
da força da participação das mulheres negras em Durban, que Edna Roland, per-
tencente à organização negra Fala Preta, foi escolhida como relatora oficial da
Conferência Mundial contra o Racismo.
Entre finais dos anos 1990 e princípio dos anos 2000, Sueli Carneiro (2002,
p. 211) observa um “novo estágio de relacionamento entre mulheres negras e
brancas no Brasil, sinalizando o aumento da cumplicidade e da colaboração na
luta antirracista e antissexista”. Enquanto as mulheres negras levam a suas pau-
tas produto de lutas para dentro do movimento feminista, o movimento femi-
nista tem que se resolver com essas pautas, produzindo, como relatam Oliveira e
Sant’anna (2002), um misto de constrangimento, culpa e obrigação.
Mesmo que as mulheres negras já tivessem estabelecido o debate racial
dentro dos espaços de organização feminista pelo menos desde os anos 1980, es-
sas abordagens só começaram a ser incorporadas à prática do movimento femi-
nista brasileiro ao longo da preparação das Conferências de Beijing e Beijing + 5.
Essa introdução ao debate da questão racial para o movimento de mulheres
cobrava um posicionamento com relação aos efeitos do racismo e a discriminação
racial no Brasil:
16 A revista Estudos Feministas dedicou o nº 1 de 2002 a um dossiê de artigos sobre a participação
das mulheres negras na Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e as formas de Intole-
rância Conexas.
17 https://amnbnasconferencias.wordpress.com/quem-somos/.
189
mulheres negras e que, mais grave, acaba se transformando em uma prática
de conivência com as atitudes preconceituosas, discriminatórias e racistas.
Ou seja, denunciada como uma vivência francamente contrária ao ideal de
defesa dos direitos das mulheres apregoado pelo movimento de mulheres e
feminista. (OLIVEIRA; SANT’ANNA, 2002, p. 202).
18 O Jornal da Rede Feminista de Sexualidade e Saúde, que dedicou o número de março de 2001 à
III Conferência contra o Racismo e aborda temas de raça e saúde. A AMB contribuiu na preparação
do documento “Mulheres negras: um retrato da discriminação racial no Brasil”.
190
O protagonismo que as mulheres negras vão ganhando dentro do movi-
mento feminista nacional vai produzindo mudanças nas percepções e nas organi-
zações do movimento feminista brasileiro. É possível perceber isso na introdução
de setoriais específicos dentro das instituições de políticas para mulheres para se
articular e atender às reivindicações das mulheres negras. Mas também fica ma-
nifesto nos enunciados e propostas da Plataforma Política Feminista, proveniente
da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, realizada entre 6 e 7 de junho
de 2002, em Brasília. A Plataforma
191
(2011-2014) e Nilma Gomes (2014-2015).
A Seppir participa do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e também
tem um papel importante na formulação de políticas públicas para mulheres ne-
gras e na organização das CNPMs.19 Além disso, a Seppir tem distintos programas
de apoio às organizações das mulheres negras na luta contra o racismo e o sexis-
mo. Talvez uma das ações mais emblemáticas da Seppir seja a desenvolvida para
regulamentar e garantir os direitos às trabalhadoras domésticas, reivindicação que
faz parte das lutas históricas do movimento de mulheres negras. Dentro dessas
ações está o Plano Trabalho Doméstico Cidadão, da cuja elaboração participou
Matilde Ribeiro, então ministra da Seppir. A SPM também desenvolve programas
e ações voltadas para o combate ao racismo e o sexismo, muitas delas em parceria
com a Seppir.
O crescente protagonismo das mulheres negras e a sua inserção nos espaços
de promoção de políticas públicas ficaram evidentes na I Conferência Nacional de
Políticas para Mulheres, organizada pela SPM em 2004. Nessa I Conferência, 44%
das participantes eram mulheres negras.20 Assim, “consolidar a igualdade de gê-
nero e a igualdade racial” é rapidamente enunciado como uma das diretrizes da
política de gênero a ser formulada no Brasil. Essa consciência de enfrentamento
ao racismo e ao sexismo também foi ressaltada pelas mulheres indígenas na I
CNPM. No seu discurso, Dirce Veron, representante do Conselho Nacional das
Mulheres Indígenas no CNDM, fez um chamado:
19 Por exemplo, no dia 25 de julho de 2011 e em celebração ao “Dia da Mulher Negra, Latino-A-
mericana e Caribenha” a Seppir, chefiada pela Ministra Luiza Bairros, realizou uma videoconferência
titulada “Participação da Mulher Negra nas Conferências Nacionais”, que está disponível na íntegra
no Youtube; nela participaram mulheres negras representantes de 16 estados do Brasil em interesse
de avaliar os planos de políticas públicas para mulheres e pensar as propostas de políticas públicas
para mulheres negras na conferência de 2011.
20 Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal – Ibam, dis-
ponível nos Anais da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres.
21 Agradeço a Schuma Schumaher por chamar a minha atenção sobre esse documento. Ver mais
sobre essa carta: <https://www.geledes.org.br/alianca-de-parentesco/>.
192
“Doravante índias e negras consideram-se parentes”. Esse acordo deve ser consi-
derado um marco histórico nas lutas contra o racismo e o sexismo no Brasil. Nele,
mulheres negras e indígenas reconhecem a semelhança da opressão colonial, a
semelhança nos processos de exclusão histórica e a necessidade de reparação por
parte do Estado e decidem se aliar na luta contra o racismo patriarcal e na con-
quista dos seus direitos.
O dia 18 de novembro de 2015, no marco do Dia da Consciência Negra,
mulheres negras e alguns coletivos de mulheres indígenas ocuparam a Esplanada
dos Ministérios em Brasília, na Marcha Nacional das Mulheres Negras Contra o
Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver.
Sendo idealizada pela “Articulação de Organizações de Mulheres Negras
Brasileiras” (AMNB), essa marcha é muito significativa da relevância que o movi-
mento de mulheres negras tem adquirido no Brasil, porque foi uma marcha expli-
citamente convocada por mulheres negras, mas que tinha o intuito de representar
na voz e no corpo das mulheres negras, a luta contra o racismo no Brasil. E de
certa forma, essa marcha subverte uma lógica até então predominante, conside-
rar como geral (de homens e mulheres) as ações protagonizadas no masculino, e
considerar como específicas as ações protagonizadas por mulheres. A Marcha das
Mulheres Negras foi sim uma marcha para visibilizar e denunciar a especificidade
da violência que recai sobre as mulheres negras, mas foi também uma marcha
para denunciar o racismo imperante na sociedade brasileira, contra homens e
mulheres de forma que, por exemplo, a pauta contra o genocídio da juventude
negra foi levantada, e foi também uma marcha para mobilizar os mais variados
setores da sociedade civil na luta contra o racismo.
193
principais motivações do seu posicionamento político: frear a caminhada dos
grupos historicamente subalternizados do Brasil, limitar os modestos avanços
conseguidos nos últimos anos de aumento da participação política de mulheres
negras, indígenas, brancas, pobres e da diversidade sexual, entre outros grupos
tradicionalmente marginalizados.
Nesse mesmo ano em outubro, após uma reforma ministerial na tentativa
de garantir a estabilidade política, a SPM e a Seppir haviam perdido seu caráter
ministerial voltando a ser apenas Secretarias, desta vez vinculadas ao recém-cria-
do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, do qual Nilma
Gomes foi nomeada ministra. Em maio de 2016 tem lugar a IV CNPM com uma
importante presença de delegadas negras.
O impacto da participação de mulheres negras, indígenas, quilombolas,
ribeirinhas fica evidente no fato de que raça, etnia e classe social aparecem nas
diretrizes temáticas como se referindo a desigualdades estruturais que devem
ser levadas em consideração para pensar políticas de igualdade de gênero. Desse
modo, se coloca a exigência de promover políticas concretas que efetivem a igual-
dade e equidade de gênero, raça e etnia e a livre orientação sexual desde uma
perspectiva antirracista, que levem em consideração também as especificidades
de ser mulher negra, indígena, quilombola, ribeirinha. Inclusive algumas deman-
das históricas das mulheres negras e indígenas aparecem explicitamente entre as
diretrizes como garantia de direitos trabalhistas para empregadas domésticas, de
direito de terra e moradia, demarcação, homologação e/ou titulação dos terri-
tórios indígenas e quilombolas, para atender às especificidades da violência dos
militares contra mulheres indígenas e ribeirinhas, e o reconhecimento de práticas
tradicionais de saúde indígena e de matriz africana, entre outras.
Em entrevista a Larissa Amorim Borges,22 Creuza Oliveira,23 militante que
participou ativamente na organização das conferências, faz uma avaliação bastan-
te crítica sobre a transformação efetiva dessas reivindicações mulheres em políti-
cas públicas:
22 No marco do Fórum Nacional de Mulheres Negras 2018, minha amiga, militante do movimen-
to negro, doutoranda em psicologia (UFMG) Larissa Amorim Borges se ofereceu a realizar uma série
de entrevistas a mulheres negras que participaram das CNPMs; infelizmente durante o encontro a
notícia do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco obrigou as mulheres negras a
mudar a agenda do evento e iniciar ações de protesto e a demandar justiça pelo assassinato político
de Marielle Franco e contra o genocídio da população negra. Deixo aqui o meu agradecimento a
Creuza de Oliveira, a Iêda Leal de Souza por gentilmente nos conceder a entrevista. E a Larissa Amo-
rim Borges pelo suporte para a realização deste capítulo.
23 Fundadora da Associação das Trabalhadoras Domésticas da Bahia. Presidenta da Federação
Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e membro do Movimento Negro Unificado.
194
A conferência da mulher, a conferência da igualdade racial, todas essas
conferências foram importantes para nós mulheres do movimento negro,
participamos ativamente da comissão para acontecer as conferências, né?
Reivindicamos isso, apresentamos propostas, né? A gente teve coisas im-
portantes, foi discutida a questão da mulher, a questão racial, a questão da
mulher indígena, nem tudo que a gente pôs ali no plano das políticas, nem
tudo foi atendido, nem postas em prática, muitas dessas propostas acaba-
ram ficando só no plano de ação, mas não foi executada como nós mulheres
negras defendemos na conferência de política para as mulheres. Muita coisa
deixou a desejar e hoje vivemos um processo de retrocesso, se a gente teve
dificuldade de conseguir, imagina agora ainda está pior, estamos vendo aí o
retrocesso nas conquistas (Creuza de Oliveira, 2018).
Fica ainda como uma tarefa pendente uma avaliação do impacto das
Conferências na formulação de políticas públicas para mulheres.
24 Agradeço a minha amiga e colega de doutorado Mariela Rocha pelo apoio no processamento
dos dados e pela leitura cuidadosa desta seção.
195
fechadas coincidentes com a categorização utilizada pelo IBGE: branca, preta,
amarela, parda e indígena, e se incluiu as opções “Não sei/Prefiro não declarar”.
Entre ambas as pesquisas foram entrevistadas 723 delegadas, das quais 661
declararam cor ou raça. Os dados a seguir são analisados a partir dessa base de
respondentes. As respostas das mulheres/delegadas que se declararam pretas e
pardas foram codificadas na categoria negras. A análise a partir da categoria negra
permitirá comparar com os dados de desigualdade racial e de gênero no Brasil, na
mesma forma que apresentados no Relatório da Desigualdade Racial e de Gênero
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2017).
196
que o desenho institucional das Conferências tende a ser mais democrático, mais
inclusivo e a representar mais justamente o componente racial da população
brasileira. E coloca a questão de se as Conferências têm produzido padrões de
participação na contramão dos padrões históricos de ocupação de posições de
poder no Estado (seja no Poder Executivo e/ou no Judiciário) e de acesso às ins-
tâncias institucionais de representação por cargos de eleição popular (no Poder
Legislativo), onde homens brancos estão absolutamente sobrerrepresentados.
26 Ainda em 2016 participaram 4 delegadas de povos quilombolas, 1 delegada de povos ciganos,
1 delegada de comunidades ribeirinhas, 2 delegadas de ocupações e comunidades de resistência ur-
bana, 7 delegadas de povos indígenas e 4 de comunidades rurais e assentamentos de reforma agrária.
197
Outro dado interessante é o de que, enquanto a média de anos de estudo
das mulheres negras de 15 anos ou mais no Brasil é de, aproximadamente, 7 anos
de estudos, mais do que 90% das delegadas negras que participaram nas CNPMs
e que responderam à pergunta sobre o grau de escolaridade se localizam acima
da média. Em 2011, 57% das delegadas negras afirmaram ter ensino superior
completo e em 2015 essa percentagem foi de 55%, como pode ser observado no
Gráfico 2.
27 A parcela da população que não informou anos de estudo não foi considerada para construção
deste gráfico.
198
Contudo, esses dados refletem uma característica que já tem sido relatada com
relação à participação nas Conferências: o perfil da participação apresenta certas
características homogêneas em termos de escolaridade e, mas também em termos
de renda, que diferem do perfil nacional (AVRITZER, 2012).
Ao observar a renda declarada pelas delegadas, percebe-se que a média do
rendimento mensal familiar das mulheres negras delegadas na 3ª Conferência foi
de R$ 4.020,14 e em 2016 foi de R$ 4.567,19.
Como se observa no Gráfico 3, em ambas as Conferências, o Estado foi o
principal empregador das mulheres negras e indígenas, o que também reflete uma
característica da participação nas CNPMs em geral: 52% em 2011 e 38% em 2016
do total de delegadas declararam pertencer ao setor público ou militar. Mesmo
diminuindo a sua participação em 2015, as funcionárias públicas ou militares
continuaram sendo a principal categoria de trabalho remunerado das delegadas
negras. É interessante notar ainda que o setor público seja o principal emprega-
dor; a maioria das mulheres negras delegadas na conferência declarou participar
em representação de setores da sociedade civil (ver Gráfico 6).
199
Gráfico 3. Categorias de trabalho remunerado a que pertencem
as mulheres negras delegadas na 3ª e 4ª CNPMs
200
As conferências acionais têm, assim, a habilidade de fazer com que a agre-
gação de preferências individuais resulte, de fato, em escolhas sociais – e,
mais do que isso, ao destronarem o pluralismo pelo multiculturalismo e
transformarem coletividades historicamente excluídas em sujeitos de direi-
to, as conferências nacionais convertem minorias em maiorias, e fazem de
interesses particulares políticas universais. (POGREBINSCHI, 2012, p. 9) .
Mais do que 80% das mulheres delegadas negras que participaram nas 3ª e
4ª CNPMs se consideraram feministas (ver Gráfico 4). Mais de 60% respondeu ser
filiada a algum partido político (ver Gráfico 5). E 65% em 2011 e 52% em 2016 das
delegadas negras que estavam na Conferência o fizeram a partir de representação
de movimento social, sendo que participavam ainda em algum outro movimento
social além do movimento que estavam representando nas CNPMS.
201
Como mencionado, a origem da participação das mulheres negras na
Conferência é majoritariamente oriunda da sociedade civil, sendo que, em 2011,
53% das participantes declararam representar a sociedade civil e 47% declararam
representação governamental; em 2016 a diferença foi ainda maior, sendo que
a representação da sociedade civil subiu para 65% versus 35% de representação
governamental,28 como é possível observar no gráfico a seguir:
202
pação em coletivo ou associação do movimento negro, 21% das delegadas negras
responderam que participavam como membros, e 27% falou que participava das
reuniões e atividades do movimento negro. É interessante constatar que 48% das
delegadas negras que participam de movimento feminista também têm alguma
interação com a luta antirracista, seja através de organizações do movimento ne-
gro misto, do movimento de mulheres negras, ou participando de atividades e
encontros, como se vê no gráfico a seguir:
203
Isto pode estar explicando a pouca participação como membro de mulhe-
res que não pertençam ao grupo, mas não explica a baixa participação em ativi-
dades e/ou reuniões propostas por esses movimentos. E traz uma questão: se o
movimento de mulheres negras tem construído um caminho de entendimento
teórico e de construção de uma prática política que compreende a imbricação do
racismo e do patriarcado, qual o protagonismo do movimento feminista nacional,
das mulheres não racializadas na construção desse mesmo caminho?
Considerações finais
204
menor renda virem a participar, de fato, do processo das Conferências (munici-
pais e estaduais) e de serem, afinal, eleitas delegadas nacionais para as CNPMs.
Neste capítulo quisemos focar no protagonismo das mulheres negras nas
lutas feministas e antirracistas. Contudo, não podemos ignorar que, em contextos
de governos mais permeáveis a reconhecer a necessidade de garantir a participa-
ção de grupos sociais historicamente vulnerabilizados, e mais permeáveis a reco-
nhecer a legitimidade das suas demandas, se abrem oportunidades de inserir essas
demandas dentro do Estado e as traduzir em políticas públicas. Esse contexto
parece estar mudando no Brasil.
A 4ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres coincidiu com o afas-
tamento da presidenta legitimamente eleita, Dilma Rousseff. Quem esteve presente
pôde constatar que um clima de instabilidade e desconcerto frente à possibilidade
de retrocesso que se instaurou nos espaços da Conferência. Essa desconfiança se
tornou ainda mais forte após o primeiro gabinete ministerial do governo interino
ser conformado sem a participação de mulheres negras, ou indígenas, ou bran-
cas, ou homens negros. É impossível não apontar a ironia, às vésperas do dia 13
de maio, dia da abolição formal da escravatura, e que o Movimento Negro tem
ressignificado como de combate ao racismo, de assistirmos, no Brasil, à ausência
absoluta de negros e negras na equipe ministerial e à diminuição do Ministério
das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, primei-
ra medida no novo governo.30
Ainda que as competências em matéria de igualdade racial e direitos das
mulheres formalmente tenham sido permanecidas no Ministério de Justiça e
Cidadania, o sentimento de perda de direitos na decisão de realocar tão impor-
tante Ministério foi muito grande. Em fevereiro de 2017 foi recriado o Ministério
dos Direitos Humanos, sem referência explícita às mulheres, ou à luta pela igual-
dade racial, mas a Seppir passa a fazer parte da estrutura organizativa desse mi-
nistério, enquanto a SPM volta a ser uma secretaria da Presidência da República.
Torna-se indispensável investigar os efeitos dessas mudanças para as políticas de
igualdade racial e de gênero no Brasil.
Após décadas de militância e a experiência de participação contida nas
Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, infelizmente, as reivindica-
ções históricas das mulheres negras continuam vigentes. A luta contra o racismo
patriarcal e suas consequências na vida das mulheres negras continua vigente. O
Estado brasileiro continua em dívida em sua obrigação de garantir o direito à vida
30 Ver Medida Provisória nº 726, de 12 de maio de 2016. Presidência da República. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/mpv/mpv726.htm>. Acesso em:
jan. 2018.
205
à população negra, vide os altos índices de homicídios contra a essa população
que nos fazem falar de genocídio da juventude negra, os altos índices de encarce-
ramento, violência policial, os altos números de feminicídios que afetam as mu-
lheres negras, as limitações em acesso a bens econômicos, emprego, salário justo,
o risco de perda de direitos trabalhistas, a sub-representação das mulheres negras
nos espaços de poder político, o racismo contínua limitando o acesso à saúde, as
mulheres negras continuam a enfrentar violência obstétrica.
206
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Entrevistas
OLIVEIRA, Creuza. Entrevistada por Larissa Borges durante o Fórum Nacional de
Mulheres Negras 2018, Salvador, 14 de março de 2018.
210
O debate sobre legalização do aborto e a
inclusão de diferenças nas 3ª e 4ª Conferências
Nacionais de Políticas para Mulheres:
direito ao corpo e feminismos jovens
Laura Martello1
Introdução
211
incluindo um projeto que restringia ainda mais os casos de aborto legal, que é
descrito também no Capítulo 1 deste volume, por Schuma Schumaher), contra a
violência sexual e contra o feminicídio foram as mais numerosas das últimas dé-
cadas. Tais mobilizações nos mostram que, ao contrário da suposta apatia frente
à ofensiva política da direita no Brasil, as mulheres se encontram, mais do que
nunca, organizadas, apoiando-se nos seus espaços cotidianos e articulando-se nos
planos local e translocal (ALVAREZ, 2014) latino-americanos. A pouca reverbe-
ração de tais ações no âmbito do Estado e da mídia se dá às custas de muita re-
pressão policial e de violência econômica e simbólica.
Um dos momentos mais emblemáticos do golpe parlamentar ocorreu, jus-
tamente, durante a 4a Conferência Nacional de Política para Mulheres: a votação
sobre a admissibilidade do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff
no Senado Federal. Um dia após a participação de Dilma na abertura do evento,
onde foi emotivamente aclamada pelas delegadas, grande parte das mesmas aban-
donou as atividades em curso nos grupos de trabalho, pois se sentiram instadas a
tomar ação frente ao que estava ocorrendo: sendo retirado o governo que possi-
bilitou a consolidação das políticas participativas e construiu uma estrutura ins-
titucional de Promoção de Políticas para Mulheres sem precedentes na América
Latina, provavelmente as deliberações que debatiam não iriam se efetivar.
Mobilizadas por tambores e cantos seguiram em direção à Esplanada dos
Ministérios: mulheres jovens, idosas, adultas, crianças, negras, brancas, indígenas,
quilombolas, de povos tradicionais, de comunidades de terreiros, lésbicas, hete-
rossexuais, bissexuais, travestis, transexuais, professoras, gestoras públicas, co-
merciantes, donas de casa de todas as regiões do Brasil, em defesa dos direitos das
mulheres e, sobretudo, do direito de manter o mandato da presidenta legitima-
mente eleita. Chegando lá, mesmo com quilômetros de barreiras físicas e policiais
que garantiam a distância do Congresso Nacional, foram recebidas pela polícia
com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, elementos que não foram
utilizados com os grupos pró-Golpe, estes últimos vestidos de verde e amarelo,
que se encontravam do outro lado da esplanada. A violência policial dispersou a
manifestação e causou grande mal-estar físico e psicológico nas mulheres presen-
tes, especialmente nas mais idosas.
Nos dias seguintes, com a admissão do processo de impeachment pela
Câmara, a presidenta foi afastada por 180 dias e tomou posse o então vice-presi-
dente, Michel Temer. A Secretaria de Políticas para mulheres, que havia perdido seu
status ministerial ainda no governo Dilma,2 passando a integrar o Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH), sofreu nova
212
ofensiva. Uma das primeiras ações do governo Temer foi a Medida Provisória nº
726, de 12 de maio de 2016, que extingue diversos ministérios, como o Ministério
da Cultura, além de outros órgãos importantes para os direitos das minorias so-
ciais, inclusive o MMIRDH. O Ministério de Direitos Humanos em seguida foi
reinstituído e a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial passou a ser parte de
sua estrutura, apesar de não haver mais menção à questão racial no nome do mi-
nistério. A Secretaria de Política para Mulheres passou a integrar o Ministério da
Justiça e posteriormente voltaria a ser ligada à Presidência da República. Ambas
as secretarias passaram a ser órgãos subordinados a estruturas institucionais que
desde então se encontram em mãos de religiosos e conservadores. Saímos da 4a
CNPM com as secretárias Eleonora Menicucci e Nilma Lino Gomes já exoneradas
e a sensação de que todos os anos de participação democrática e de difícil cons-
trução de políticas públicas para mulheres no Brasil tinham descido pelo ralo.
Mesmo tendo sido retomados, em parte, alguns projetos da SPM, com a recusa
dos movimentos sociais em dialogar com o governo golpista que tem avançado
rapidamente contra direitos historicamente conquistados e, com o perfil conser-
vador das novas dirigentes da Secretaria, vislumbra-se um enfraquecimento pro-
gressivo dos organismos de promoção de políticas para mulheres.
As temáticas que trataremos aqui, portanto, têm em comum o fato de se-
rem as pontas de lança da ofensiva da direita conservadora no Brasil, sendo, en-
tão, com certeza as mais mobilizadas pelo conservadorismo moral para obter van-
tagens no meio político, ameaçando a autonomia e a vida das mulheres. O debate
sobre a legalização do aborto e a emergência dos feminismos jovens e de suas
reinvindicações por respeito e autodeterminação, analisados de forma articulada,
versam tanto sobre as perversidades do golpe, quanto sobre as resistências a ele.
Apresentaremos, neste capítulo, a análise de alguns dados que se mostraram
relevantes na percepção das participantes das 3a e 4a Conferências Nacionais de
Políticas para Mulheres, a partir da Pesquisa “As mulheres das políticas para as
mulheres: Quem são aquelas que constroem o feminismo estatal participativo
brasileiro?”, cuja metodologia, caracterização e resultados descritivos já foram
apresentados nos capítulos anteriores. Os dados aqui analisados serão os refe-
rentes à inclusão da diversidade e das diferenças, especialmente no que tange à
questão de geração, gênero, sexualidade e reprodução. Iremos abordar o debate
sobre o aborto, analisando principalmente as percepções das participantes sobre a
questão da legalização e descriminalização do aborto no Brasil.
É importante ressaltar que não é nossa pretensão dar conta de todo o deba-
te que compreendem as duas grandes temáticas trabalhadas, não sendo possível
abordar os aspectos teóricos, políticos e éticos que implicam. Devido à extensão
213
dos dados quantitativos a serem apresentados e às reflexões pertinentes, decidi-
mos não fazer uma apresentação do histórico e conteúdo do debate sobre diver-
sidade e inclusão das diferenças nas políticas participativas e na construção de
políticas públicas para mulheres, tampouco do debate sobre aborto nas conferên-
cias de políticas públicas para mulheres. Tendo em vista que é possível encontrar
tais debates de forma aprofundada em alguns artigos de referência na área, iremos
incluir citações, quando pertinente, para que as(os) leitoras(es) possam consultar
quando for de seu interesse.
A inclusão de mulheres jovens nas Conferências Nacionais de Políticas para
Mulheres é um desafio que está longe de alcançar a representatividade desejada
para esses grupos minoritários. Esforços realizados nessa direção foram resulta-
do de uma grande pressão dos movimentos sociais e de uma intensa interação
das mulheres desses segmentos organizados com a Secretaria de Políticas para
as Mulheres. Nos planos municipais e estaduais também houve algumas inicia-
tivas notáveis, também fruto da mobilização dos movimentos e reivindicação
de demandas frente aos organismos locais e estaduais de promoção de políticas
públicas.
Mesmo com todas as mudanças positivas que ocorreram, a representati-
vidade desses segmentos nas Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres
ainda não pode ser considerada satisfatória nem no que tange ao número de de-
legadas pertencentes a esses grupos, nem no que concerne à efetivação do con-
teúdo de propostas aprovadas nos textos finais que contemplem suas demandas
específicas em políticas públicas concretas para essas mulheres. A baixa presença
de alguns grupos no corpo de delegadas nas CNPMs é o fator que aqui terá maior
implicação nos resultados. Isso ocorre, pois mesmo a amostra do survey tendo
sido realizada de forma aleatória e a estratificação incluir especificamente as mu-
lheres deficientes (além do critério regional e por tipo de representação: sociedade
civil e Estado), a sub-representação no contexto da CNPM acaba por ter implica-
ções na acurácia da expressão das percepções desses grupos. Entretanto, tentamos
corrigir ao máximo tais efeitos através de escolhas na forma de apresentação dos
dados, fazendo observações sobre os limites das análises, quando se aplica.
214
de campo: “venham para a plenária, está dando polêmica sobre a legalização do
aborto!”.
Chegando à plenária final, vimos que os ânimos estavam exaltados devido
ao debate em torno da mudança no texto das deliberações finais de “descrimina-
lização do aborto” para “legalização do aborto”. A votação, geralmente realizada
por contraste visual da aprovação das propostas, não estava fornecendo um con-
traste perceptível. Ou seja, cerca de metade das delegadas estava a favor de que o
texto expressasse sua posição favorável à “legalização do aborto”, enquanto quase
metade queria que se mantivesse apenas o apoio à “descriminalização do aborto”.3
Mesmo depois de duas ou três tentativas, não estava fácil de determinar qual seria
a maioria dos votos.
Quando se estava chegando a um ponto em que já não havia mais alterna-
tivas, a não ser a votação por registro de delegadas, o que seria impossível diante
do tempo gasto e do horário de saída dos ônibus, irrompe no auditório um grande
grupo de mulheres com tambores, a maioria com os seios desnudos, entoando
cantos em defesa da autonomia da mulher sobre o próprio corpo, o direito de
escolha e a responsabilidade da garantia do aborto legal, seguro e gratuito pelo
Estado como defesa da vida das mulheres. Enquanto parte das delegadas tinha um
certo olhar de julgamento sobre a ação realizada por feministas jovens de diversas
regiões do Brasil, grande parte das mulheres começou a cantar junto, e a apoiar.
A ação das jovens feministas, além de irreverente e estratégica, soube trazer
a emoção envolvida na questão pungente da legalização do aborto e encarnou,
performativamente, a importância histórica pelo direito ao próprio corpo nas lu-
tas das mulheres. Esse momento foi emblemático de como os processos de deli-
beração nos espaços de participação social também envolvem elementos de mo-
bilização e protesto, para além do discurso e da fala. Nele, muitas delegadas que
estavam tendo seu primeiro contato com ambientes de mobilização e articulação
feminista puderam se sensibilizar com as demandas apresentadas pelas mulheres
3 A descriminalização do aborto implica a retirada de toda a legislação punitiva que incide sobre
as mulheres que decidem interromper a gestação, assim como os profissionais de saúde que realiza-
rem os procedimentos para levar a cabo tal decisão. Há diferenças entre o período da gestação até
o qual se pode realizar tal interrupção em cada legislação, mas o mais recorrente é a permissão até
a 12ª semana. A legalização do aborto implica que, sendo considerada como direito sexual e repro-
dutivo fundamental para as mulheres, a interrupção de uma gravidez indesejada seja realizada de
forma legal, segura e gratuita através do sistema público de saúde. A importância que o feminismo
dá à defesa da legalização, que vai além da descriminalização, se deve ao fato de que as mais afetadas
com consequências e mortes devido ao aborto inseguro são as mulheres pobres, negras e indígenas.
A legalização chama o Estado a se responsabilizar pela saúde e pela vida das mulheres que decidem
interromper uma gravidez indesejada, garantindo assistência médica para que elas possam fazer o
procedimento com o menor impacto e risco possível a sua saúde.
215
organizadas em defesa de seus direitos humanos e refletir sobre a importância
de o Estado incorporar essas reivindicações como condição para o respeito às
diferentes perspectivas, experiências e posicionamentos e a garantia da vida das
mulheres.
Acalmados os ânimos, se realizou uma nova votação. O contraste de difícil
distinção foi decretado pela mesa diretora, que se encontrava diante da plenária.
Enfim, o texto que versava sobre a legalização do aborto foi, então, incluído na
versão final das deliberações. Mas para as que estavam presentes ficou, mais que
nunca, a impressão de que a temática do aborto ainda é um ponto polêmico e
pouco discutido, até mesmo nos espaços dos movimentos de mulheres e feminis-
tas, e entre mulheres que trabalham na construção e implementação de políticas
para mulheres, sejam elas ativistas, conselheiras ou gestoras.
Quase todas as mulheres presentes pareciam concordar que nenhuma mu-
lher deve ser presa ou punida por realizar um aborto. Porém, possivelmente de-
vido ao pertencimento religioso e por outros possíveis fatores que abordaremos
ao longo da análise dos dados do survey, muitas mulheres acabam não se posicio-
nando afirmativamente frente à legalização do aborto. Isso mostra como o direito
das mulheres de tomar decisões sobre o próprio corpo ainda não se consolidou
como direito fundamental e necessário para se conquistar a autonomia. Também
nos chama atenção para como ainda é necessária a conscientização sobre a impor-
tância da laicidade do Estado, fundamental, inclusive, para se garantir a liberdade
de crença e religiosa e para proteção de direitos individuais básicos, como o de
decidir sobre o próprio corpo e a própria vida.
O direito ao aborto legal e gratuito é concebido como um direito sexual e
reprodutivo básico para as mulheres em toda América Latina e no mundo como
um todo. O maior obstáculo para a conquista dos direitos sexuais e reprodutivos
das mulheres ao redor do mundo é uma forte influência das religiões, que ten-
tam influenciar os processos de decisão de acordo com seus princípios morais
específicos.
O debate sobre a descriminalização e a legalização do aborto no Brasil é
uma das principais pautas dos movimentos de mulheres e feministas desde, pelo
menos, o seu ressurgimento com maior força na década de 1970. O motivo de
tal centralidade é o profundo impacto negativo que a criminalização do aborto
possui na vida de milhares de mulheres, em especial das mulheres pobres, negras
e jovens, implicando números altíssimos de internações devido a complicações e
ainda um alto número de mortes.
Mesmo com todos os esforços de mobilização dos movimentos feminis-
tas, não houve avanço dessa questão no plano legislativo ou no âmbito do poder
216
executivo, principalmente devido ao peso que o debate sobre o aborto tem no
campo político, implicando, muitas vezes, a perseguição de representantes que
defendem a legalização ou a descriminalização. A questão também se tornou um
elemento de pressão em momentos eleitorais, sendo que a pressão conservadora
influenciou fortemente no posicionamento de candidatos e candidatas sobre o
aborto. Já havendo ocorrido muitas vezes ao longo de nossa história política, em
2010, a polêmica voltou a ser um fator decisivo nas eleições, levando, inclusive,
a uma declaração de Dilma Rousseff na qual se comprometia em não avançar
na legislação que descriminaliza o aborto. A legislação brasileira atual autoriza a
realização do aborto legal em casos de gravidez decorrente de estupro, de risco
de morte da mulher em decorrência da gestação e nos casos de feto anencefálico,
sendo esta última válida desde a decisão do Supremo Tribunal Federal pela ADPF
54 de 2012.
O Estado brasileiro é constitutivamente um Estado laico, no qual princí-
pios religiosos não deveriam fundamentar as leis e as políticas públicas, devendo
estas seguirem linhas que contemplem cidadãs de diversas religiões e também as
pessoas não religiosas. Apesar do caráter laico do Estado brasileiro, declarado na
Constituição de 1988, a influência histórica da Igreja Católica se manteve através
da presença de representantes católicos e, atualmente, vemos um aumento tam-
bém da influência das religiões protestantes, que têm elegido cada vez mais verea-
dores e deputados que advogam os interesses de suas respectivas religiões. Juntos,
católicos e evangélicos têm formado bancadas religiosas, que impulsionam uma
série de projetos contrários aos direitos das mulheres, retrocedendo direitos his-
toricamente conquistados e freando o avanço daqueles em discussão, em especial
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
A fonte científica de maior confiabilidade que possuímos hoje sobre o fenô-
meno do aborto no Brasil consiste nas Pesquisas Nacionais sobre Aborto (PNA),
realizadas em 2010 e 2016, pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
(Anis). Tais pesquisas foram realizadas a partir de amostras aleatórias represen-
tativas das mulheres alfabetizadas, através de inquérito domiciliar, utilizando-se a
técnica de urna, que garante melhor o sigilo das respostas e, consequentemente,
aumenta a probabilidade de respostas verdadeiras e confiáveis.
A PNA nos mostra que o aborto é um acontecimento frequente na vida
reprodutiva das mulheres brasileiras, sendo que, até os 40 anos, aproximadamen-
te 1 em cada 5 mulheres já realizou um aborto. É um fenômeno que ocorre com
frequência em mulheres de todos os grupos sociais: de todas as idades, sejam
casadas ou não, mães ou não, de todas as religiões, de todos os níveis educacionais,
de todas as classes sociais, de todos os grupos raciais, em todas as regiões do país,
e em todos os tipos e tamanhos de municípios.
217
Há, entretanto, uma heterogeneidade de sua distribuição entre os grupos
sociais, sendo que a maior frequência é encontrada entre as mulheres pobres,
pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Também foi encontrado um maior índice de abortos entre as mulheres jovens,
com 29% dos abortos ocorrendo em idades que vão de 12 a 19 anos, 28% dos 20
aos 24 anos, caindo para abaixo de 13% a partir dos 25 anos. Isso nos mostra que
o aborto é um fenômeno que atinge mais intensamente as mulheres jovens e que,
por isso, podemos identificar a legalização como um tema de extrema relevância
para a agenda dos feminismos jovens.
Apesar de atingir de maneira mais crítica às mulheres jovens, a incidência
do aborto é alta para mulheres de todos os grupos etários e sociais. Os resultados
da PNA nos sinalizam sobre como a questão deve ser abordada e a importância
de que continue sendo uma pauta central para os feminismos:
218
O survey realizado pelo Nepem/UFMG nas 3ª e 4ª Conferências Nacionais
de Políticas para Mulheres perguntou a opinião das entrevistadas sobre a des-
criminalização do aborto.4 É importante ressaltar que houve uma mudança na
formulação da pergunta decorrente da mudança na situação legal do aborto no
país, através do julgamento da ADPF54, pelo Supremo Tribunal Federal em 2012,
que autorizou a interrupção terapêutica das gestações de fetos anencefálicos. Ao
ter de modificar a pergunta por fatores externos, verificamos o quanto a formula-
ção da pergunta influencia cognitivamente, gerando resultados muitos diferentes.
Porém, devemos considerar que a própria mudança legal na questão e o debate
público envolvido também pode influenciar nos posicionamentos individuais.
Iremos apresentar então o resultado do survey realizado no que tange à
opinião das delegadas das 3ª e 4ª CNPMs sobre a situação legal do aborto no
Brasil. Verificamos que em ambas as Conferências as delegadas mostraram-se
majoritariamente favoráveis à descriminalização do aborto.
4ª CNPM – 2016
Q 46. – (C.E. p.15 ) Atualmente no Brasil, por lei, o aborto só é permitido nos casos em que a gravidez
cause risco de vida para mãe, nos casos de gravidez causada por estupro e também em caso de fetos
com anencefalia. Qual destas frases descreve melhor a sua opinião, sobre isso: (LEIA OPÇÕES 1 a 3)
1. A lei deve ficar como está
2. O aborto deveria deixar de ser crime em todos os casos
3. O aborto deveria ser proibido por lei em todos os casos
4. Outras respostas (NÃO LER – ANOTAR): _____________________________
219
Grafico 1. Frequência das respostas das delegadas da
3ª CNPM (2011) sobre o tema do aborto no Brasil
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Como vemos no Gráfico 1, na 3ª CNPM aproximadamente metade (48%)
das delegadas respondentes se declararam favoráveis à descriminalização do abor-
to em todos os casos. Já 30% defenderam a ampliação do direito de interrupção
legal da gestação nos casos de anencefalia fetal, posição que tornou-se vigente
logo em seguida com a decisão ADPF54 do STF. Além disso, 13% foram favorá-
veis à manutenção da lei como estava em 2011, e apenas 7% se posicionaram pela
proibição do aborto em todos os casos.
220
Gráfico 2. Frequência das respostas das delegadas da
4ª CNPN (2016) sobre o tema aborto no Brasil
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
221
Gráfico 3. Frequência de “outras respostas” categorizadas -
Opinião sobre o aborto das delegadas da 4ª CNPM – 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Quando analisamos as respostas abertas das entrevistadas que elegeram a
categoria “outros” no Gráfico 3, percebemos que muitas das respostas eram va-
riações das opções já apresentadas, mas como a questão é bem específica, decidi-
mos criar novas categorias para classificar as “outras” respostas. Mesmo na opção
aberta, a grande maioria (52,9%) foi favorável a uma lei mais ampla na garantia
dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, incluindo nessa categoria des-
criminalização e legalização. Um número significativo (29,4%) apontou que seria
favorável ao aborto apenas em caso de risco para a mãe, enquanto algumas sina-
lizaram pela realização de um plebiscito ou pela ampliação de políticas públicas
para a saúde integral das mulheres. Novamente apenas uma minoria (5,9%) de-
fendeu mais proibição.
Com o objetivo de entendermos melhor quais as características das dele-
gadas que se posicionam contra ou a favor da legalização do aborto, realizamos
tabelas de cruzamento com os dados sociodemográficos mais relevantes, como
região, renda, classe social, escolaridade e raça. Essas tabelas nos mostram uma
tendência mais favorável à descriminalização do aborto em todos os casos entre
os setores mais privilegiados da população. Porém, como as variações são peque-
nas e pouco significativas, decidimos não abordar tais temáticas para não tirar
222
conclusões precipitadas acerca desses dados. Os elementos sociodemográficos
que se mostraram mais significativos com relação ao posicionamento das dele-
gadas sobre o aborto foram a zona residencial e a idade. Sobre a questão etária e
suas influências no posicionamento das mulheres, abordaremos com maior pro-
fundidade na seguinte seção.
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
O Gráfico 4 aponta que as delegadas da 3ª CNPM provenientes da zona ur-
bana possuem um posicionamento mais favorável à descriminalização do aborto
(50%) que as da zona rural (30%). As mulheres da zona rural, por sua vez, apre-
sentam grande proporção (37%) de apoio à ampliação da lei que foi realizada no
ano seguinte, e significativo apoio (23%) à manutenção da lei como era em 2011.
223
Gráfico 5. Opinião sobre o aborto por zona residencial urbana
ou rural das delegadas da 4ª CNPM – 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
224
de nenhum grupo e aquelas que participam como membros ou filiadas é de 37
pontos percentuais. Essa questão, entretanto, só esteve presente no questionário
de 2016, não sendo possível comparação.
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
225
Gráfico 7. Opinião sobre aborto por pertencimento
religioso das delegadas da 3ª CNPM – 2011
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
226
Gráfico 8. Opinião sobre aborto por pertencimento
religiosos das delegadas da 4ª CNPM – 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
227
Gráfico 9. Opinião sobre aborto por partido ao qual as delegadas da 3ª CNPM
(2011) são filiadas de acordo com a classificação no espectro ideológico
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
228
Gráfico 10. Opinião sobre aborto por partido ao qual as delegadas da 4ª CNPM
(2016) são filiadas de acordo com a classificação no espectro ideológico
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Para além do pertencimento religioso e do fator ideológico, a participação
em grupos de mulheres e a autodeclaração como feministas são também aspectos
que mais mostram sobreposição com os posicionamentos das delegadas sobre o
aborto. O Gráfico 11 nos mostra como a participação em grupos de mulheres ou
feministas mostra forte interação com um posicionamento favorável à descrimi-
nalização do aborto no Brasil.
229
Gráfico 11. Opinião sobre aborto das delegadas da 4ª CNPM (2016) por
participação em grupos de mulheres ou feministas
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
O Gráfico 12 aponta a grande diferença entre os posicionamentos das de-
legadas que declaram feministas ou não. Entre as que não se declaram feministas,
a maior tendência em 2011 foi se posicionar em defesa da ampliação do aborto
legal para abranger os casos de anencefalia (47%), havendo também uma signi-
ficativa parcela favorável à descriminalização em todos os casos (32%) e, sur-
preendentemente, uma parcela muito pequena que defende a proibição irrestrita
(5,7%). Entre as que não sabem o que é feminismo, prevaleceu o apoio à lei como
estava, e entre as que não sabem se classificar, apesar dos 20% que defendem a
criminalização em todos os casos predominou uma postura mais progressista,
sendo que 40% ampliariam a lei apenas aos casos de anencefalia e outros 40% para
todos os casos. Entre as que se declararam feministas, a maioria (51,4%) advoga
pela descriminalização total do aborto.
230
Gráfico 12. Opinião sobre aborto das delegadas da 3ª CNPM (2011)
por autodeclaração enquanto feministas
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
231
Gráfico 13. Opinião sobre aborto das delegadas da 4ª CNPM (2016)
por autodeclaração enquanto feministas
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Comparando os aspectos levantados ao longo desta seção, vemos que os
fatores que mostram maior interação com a perspectiva das delegadas sobre a
descriminalização ou não do aborto no Brasil são os de ordem política-ideológica.
A diferença abismal entre os posicionamentos das delegadas quando compara-
mos as que pertencem a partidos de esquerda, centro ou direita é emblemática.
Entretanto, vimos que nem 13 anos de governo de esquerda e de forte participa-
ção dos movimentos de mulheres e feministas na formulação de políticas para
mulheres possibilitaram a conquista da descriminalização do aborto. Os avanços
foram muito poucos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, em especial se
consideramos o âmbito legislativo.
Vimos que, no que tange ao pertencimento religioso, não é apenas a
participação em grupos religiosos que está relacionada ao posicionamento das
delegadas frente à descriminalização do aborto, pois há uma grande variação
quando consideramos a qual religião pertence. Nesse sentido, fica evidente que
o posicionamento político de algumas igrejas, como as evangélicas e a católica,
é o fator de maior pressão sobre o posicionamento das fiéis, assim como o lobby
das igrejas influencia profundamente no andamento da questão no plano político
nacional.
232
O contato com o feminismo pode ser considerado essencial para que as
delegadas tenham conhecimento dos argumentos que fundamentam a defesa dos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Contrapondo o direito ao próprio
corpo e necessidade de evitar as mortes e sofrimentos por abortos inseguros, com
o discursos predominantes na mídia e o senso comum que busca julgar e crimina-
lizar as mulheres que decidem interromper uma gravidez indesejada, as delegadas
podem ter uma compreensão mais ampla que fundamente seu posicionamento.
O espaço das CNPMs se mostrou como um lugar que favorece tais debates por
colocar no mesmo ambiente mulheres de diferentes inserções institucionais, ideo-
lógicas, religiosas, políticas. A intervenção das jovens feministas na 3a CNPM em
defesa da legalização do aborto nos mostra não apenas que existe uma grande
imbricação entre formas de protesto e deliberação política, mas também como
alguns grupos estão ausentes ou menos favorecidos no debate, e que por isso bus-
cam estratégias alternativas de vocalizar suas demandas.
A relação entre o componente geracional, ideológico e o posicionamento
frente à questão do aborto mostra uma interação complexa, que será objeto de
nossa análise mais cuidadosa na seguinte seção. Iremos analisar o que podemos
chamar de uma ausência das mulheres jovens nos espaços de deliberação e toma-
da de decisão acerca das políticas públicas para mulheres e seus graves impactos
nas pautas, agendas e propostas debatidas e na sua efetivação em termos de po-
líticas concretas, em especial no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos.
Para tal iremos recapitular o histórico da emergência das jovens feministas, suas
críticas ao adultocentrismo e às hierarquias geracionais nos movimentos de mu-
lheres e feministas. Apesar dos avanços conquistados pelas jovens feministas com
relação à incorporação de suas demandas nos Planos Nacionais de Políticas para
Mulheres (SILVA, 2015), a baixa participação de mulheres jovens nas CNPMs no
mostra que estamos diante de um problema grave e persistente de sub-represen-
tação das perspectivas feministas jovens, o que tem efeitos devastadores na cons-
trução das políticas para mulheres.
233
(ALVAREZ, 2003), a questão geracional se manifesta na luta por representação
das jovens feministas e na luta por reconhecimento das demandas específicas das
mulheres jovens (MARTELLO, 2013). Na tentativa de compreender as deman-
das das jovens feministas e sua crítica ao silenciamento de suas expressões no
movimento, consideraremos o adultocentrismo5 e etarismo enquanto lógicas de
dominação.
A emergência das “jovens feministas” como sujeito político no campo
do feminismo observado no contexto latino-americano e no contexto brasilei-
ro na última década tem confrontado um discurso recorrente de que o feminis-
mo não impactou as mulheres jovens e que elas não se interessam pelo femi-
nismo (GOMES-RAMIREZ; CRUZ, 2011; ADRIÃO; MELO, 2009; SILVA, 2009;
ZANETTI, 2008). Advinda de diferentes espaços de difusão das ideias feministas
como a academia, organizações não governamentais, órgãos governamentais de
gestão de políticas públicas, espaços comunitários, grupos culturais, diversos mo-
vimentos sociais ou por aproximação autodidata (GOMES-RAMIREZ; CRUZ,
2011), a inserção das mulheres jovens no feminismo no período recente se ca-
racteriza pela criação de organizações próprias, como a Red de Mujeres Jóvenes
Feministas de America Latina y Caribe, a Red Latinoamericana y Caribeña por los
Derechos Sexuales y Reproductivos, a Articulação Brasileira de Jovens Feministas.
Conjugando a leitura de que contextos socioculturais com suas especifi-
cidades produzem condições de inequidade diferenciadas, com a crítica às for-
mas desiguais de exercício de poder no movimento, as jovens feministas buscam
a construção de uma atuação política e agendas próprias (GOMES-RAMIREZ;
CRUZ, 2011). Não sendo um fenômeno exclusivo do feminismo, a recente orga-
nização da juventude, presente em diversos movimentos sociais, articula e mo-
biliza complexamente sua diferença geracional especialmente de duas formas:
(1) juventude como identidade política, que aglutina demandas específicas e es-
truturas visando a mudanças na realidade, e (2) juventude como identidade que
é acionada relacionalmente no processo de disputa pelos espaços de decisões nas
organizações sociais (COSTA, 2008). Esses são dois processos identitários simul-
tâneos e inter-relacionados das lutas sociais por reconhecimento jovem.
Analisando a emergência das jovens feministas enquanto sujeito político,
Áurea Carolina Silva (2009) situa o fenômeno no contexto da disputa pela noção
de juventude como sujeito político, destacando a participação como principal ca-
racterística das políticas para juventude:
5 O adultocentrismo é a dominação imposta pela ideia hegemônica em nossa sociedade de que a
adultez possui uma qualidade de responsabilidade maior que as de crianças, adolescentes, jovens e
idosas. É a orientação de todos os modos de vida que caracterizam as diferentes experiências etárias
e geracionais por uma única temporalidade e espacialidade adultocêntrica.
234
a chegada da identidade juvenil na esfera pública intenta desestabilizar a
hegemonia existente e quase exclusiva do poder adulto, na medida em que
reclama o direito de jovens participarem como interlocutores válidos nos
processos de tomada de decisões que afetam a coletividade, principalmente
as realidades dos próprios jovens. (SILVA, 2009, p. 51).
235
Silva (2009) nos mostra que, apesar de haver menções às mulheres jovens
no I PNPM ao citar vários segmentos de mulheres, essa é apenas uma alusão for-
mal, pois elas eram contempladas somente em ações isoladas ligadas à inserção do
mercado de trabalho e autonomia econômica, nos tópicos de educação e de abuso
sexual contra crianças e adolescentes. Já no II PNPM, todos os eixos temáticos es-
pecificam ações voltadas para mulheres jovens, ressaltando que as desigualdades
geracionais afetam as mulheres em todas as dimensões das suas vidas. O próprio
texto do II PNPM ressalta a presença de mulheres jovens no processo de elabora-
ção do plano. Articulado com a decisão de fazer o enfoque geracional perpassar
todo o texto do Plano, surgiu também um eixo específico voltado para o enfrenta-
mento às desigualdades geracionais, com foco nas mulheres jovens e idosas.
De acordo com Zannetti (2008) e Adrião e Mello (2009), o 10º Encontro
Feminista Latino-americano e do Caribe, ocorrido em outubro de 2005, em São
Paulo, no qual 25% das participantes eram mulheres com menos de 30 anos, tam-
bém pode ser considerado um marco em que as mulheres jovens articularam
ações a partir do lugar de jovens feministas para o encontro. Participaram da or-
ganização do evento e levaram suas reivindicações coletivas, inserindo o debate
sobre jovens feministas na Programação oficial do evento e garantindo a presença
de uma mulher jovem em cada mesa de “diálogo complexo”. Durante o Encontro,
houve o Fórum de Mulheres Jovens, com a participação de cerca de 100 jovens
de toda a América Latina e Caribe, articulando demandas, especificidades e estra-
tégias e a oficina de diálogo de compartilhamento de experiências entre “jovens
e velhas feministas” (intergeracional). No fim do Encontro, tomaram a Plenária
Final, quebrando todos os protocolos, e 30 jovens leram conjuntamente sua
Carta de reivindicações. O I Encontro Nacional de Jovens Feministas, em 2008,
no Ceará, consolidou a formação da Articulação Brasileira de Jovens Feministas,
com a participação de mais de 13 grupos de jovens feministas ou feministas com
representantes jovens. Em 2009 houve o I Encontro Nacional de Negras Jovens
Feministas, em 2011 o I Seminário Nacional Jovens Feministas Presentes, com
representantes de 17 estados da federação, e em 2017 o II Encontro Nacional de
Negras Jovens Feministas. Essas atividades mostram que as jovens feministas es-
tão atuantes politicamente, articulando-se e colocando cada vez mais a sua voz e
suas questões para o feminismo.
No momento “pós-processo de Beijing” vemos, portanto, um forte tensio-
namento das diferenças, sendo que, além das questões de classe, sexualidade e
origem étnico-racial, agora se percebe também a presença da questão geracional.
As jovens feministas, muitas advindas da difusão do feminismo em espaços como
academia, organizações não governamentais, órgãos governamentais de gestão de
236
políticas públicas, espaços comunitários, grupos culturais e diversos movimentos
sociais, passaram a questionar a hierarquização intensificada pela especialização
e profissionalização do movimento. Essas hierarquizações têm sido contestadas
através da criação de estruturas próprias, da formação de redes locais, nacionais
e transnacionais de articulação, já que sua condição de juventude as coloca em
certa vantagem quanto à utilização de meios tecnológicos que potencializam a sua
atuação e pelo próprio fato de essa ser uma forma já recorrente nos movimentos
sociais no período de sua inserção.
Transpassando as diversas estruturas e espaços no campo do feminismo,
essas organizações próprias e redes de articulação têm possibilitado a significa-
ção da experiência de desvalorização de suas contribuições devido à sua condição
de jovens. Trata-se de mais um impedimento à sua participação igualitária no
movimento. Têm também potencializado o compartilhamento de suas vivências,
consolidando a formulação de especificidades que caracterizam as jovens no mo-
mento atual e transformando-as em demandas e agendas próprias. É importante
ressaltar que a característica de mutabilidade e forte orientação ao presente e às
experiências concretas permitiram que a articulação das jovens se desse na in-
terseção com outras categorias sociais, estando presentes suas experiências como
jovens negras, jovens rurais, jovens lésbicas, jovens de origem popular e a partir
da identificação com grupos culturais e ideológicos.
Apresentaremos agora a participação das mulheres jovens nas 3ª e 4ª
CNPMs, que ainda é muito inferior à proporção de jovens na média populacional.
Estamos considerando jovens as mulheres que estão nas faixas etárias de 18 a 24
anos e de 25 a 31 anos. Manteremos, entretanto, as duas faixas etárias separadas
para fins analíticos, já que existe uma diferença significativa entre as inserções ins-
titucionais, vivências e percepções dos dois grupos. Como verificamos no Gráfico
14, as mais jovens (de 18 a 24 anos) possuem uma taxa muito baixa de presença,
tendo aumentado muito pouco, de 2,9% em 2011 para 3,7% em 2016. A porcen-
tagem de mulheres entre 25 e 31 anos se manteve aproximadamente a mesma nas
duas conferências. Já a presença de mulheres idosas (acima de 60 anos) é mais
próxima à proporção da população nacional, e teve um aumento da 3ª para a 4ª
CNPM: entre as de 60 a 66 anos a porcentagem passou de 8,9% em 2011 para
9,9% em 2016, e entre as mulheres de 67 anos ou mais passou de 2,6% para 3,4%.
237
Gráfico 14. Porcentagem das idades por faixas etárias das
delegadas da 3ª e 4ª CNPM – 2011 e 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
238
Tabela 1. Frequência por faixa etária, médias e medianas das delegadas participantes
das 3ª e 4ª CNPMs comparadas às médias das demais conferências nacionais
(Brasil, 2011 e 2016)
Faixa etária 3ª CNPM (2011) 4ª CNPM (2016) Nacionais (2011)
Até 18 anos 0,30% 0,30% 0%
De 19 a 34 anos 18,50% 21,10% 47,40%
De 35 a 60 anos 69,70% 65,20% 42,10%
Acima de 60 anos 11,60% 13,40% 10,50%
Total 100% 100% 100%
Mediana 44,5 anos 45 anos
Média 44,9 anos 45,1 anos
Fonte: Elaboração própria com dados da 3ª e 4ª CNPMs. Dados Nacionais (2011) de AVRITZER
(2011).
239
Gráfico 15. Natureza da instituição que as delegadas representam
por faixas etárias da 3ª CNPM – 2011
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
240
Gráfico 17. Se a delegada é filiada a partido politico
por faixas etárias na 3ª CNPM – 2011
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
241
Gráfico 18. Partido ao qual as delegadas da 3ª CNPM (2011) são filiadas,
de acordo com a classificação no espectro ideológico, por faixa etária.
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
242
Gráfico 19. Se a delegada é filiada a partido políticos
por faixas etárias na 4ª CNPM – 2016
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Ao analisarmos a classificação ideológica dos partidos aos quais as delega-
das são filiadas, vemos uma diferença ainda mais marcante na 4ª CNPM. Nela,
todas as mulheres jovens, de 18 a 25 e de 26 a 31 anos, são pertencentes a partidos
de esquerda. Entre as outras faixas etárias, destacamos também as mulheres de 53
a 59 anos, que são 93,7% de partidos de esquerda, e as de 67 anos ou mais, que são
87,5% de partidos de esquerda. Os partidos de direita encontram mais expressão
entre as mulheres de 39 a 45 anos (18,9% das delegadas pertencentes a essa faixa
etária) e o pertencimento aos partidos de centro são mais frequentes entre as mu-
lheres de 60 a 66 anos (25%).
243
Gráfico 20. Partido ao qual as delegadas da 4ª CNPM (2016) são filiadas, de
acordo com a classificação no espectro ideológico, por faixa etária
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
244
Gráfico 21. Autodeclaração enquanto feministas das
delegadas da 3ª CNPM (2011) por faixa etária
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
245
Gráfico 22. Autodeclaração enquanto feministra das
4ª CNPM (2016) por faixa etária
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
O pertencimento religioso das delegadas da 3ª CNPM, quando analisado
numa perspectiva geracional (Gráfico 23), nos mostra que há uma grande dife-
rença entre as jovens, as adultas e as idosas. Entre as jovens não há presença do
espiritismo ou de religiões afro-brasileiras, e há uma presença muito mais expres-
siva daquelas que se declaram sem religião e das que pertencem a outras religiões.
As mulheres pertencentes à religião afro-brasileira se concentram nas faixas etá-
rias mais avançadas, tendo sua maior proporção (33.3%) entre as mulheres de 67
anos ou mais.
246
Gráfico 23. Pertencimento religioso das delegadas da
3ª CNPM (2011) por faixa etária.
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
Na 4ª CNPM o padrão de pertencimento religioso por faixas etárias nos
mostra variações muito interessantes (Gráfico 24): uma menor expressão de ca-
tólicas entre os grupos mais jovens, havendo uma diminuição progressiva que vai
de cerca de 60% entre as idosas, chegando a 16,7% entre as jovens de 18 a 24 anos;
um crescimento na proporção de delegadas protestantes entre as mais jovens, ha-
vendo um aumento progressivo de cerca de 10% entre as idosas para chegar aos
33,3% entre as jovens de 18 a 24 anos; um crescimento quase exponencial das de-
legadas que se declaram sem religião, saindo de uma taxa de 9,1% entre as idosas,
para chegar aos 32% entre as mulheres de 25 a 31 anos, e aos 50% entre as de 18
a 24 anos.
247
Gráfico 24. Pertencimento religioso da deladas
da 4ª CNPM (2106) por faixa etária
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
248
Gráfico 25. Opinião sobre aborto por idades em faixa etária
das delegadas da 3ª CNPM (2011)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
249
Gráfico 26. Opinião sobre aborto por idades em faixa etária
das delegadas da 4ª CNPM (2016)
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
250
Gráfico 27. Opinião sobre aborto das delegadas da 4ª CNPM
por tempo de contato com as ideias feministras e/ou com o feminismo
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).
251
no Brasil é um exemplo disso. E as jovens feministas estão contestando e criando
alternativas para avançar na pauta dos direitos sexuais e reprodutivos e defender
a vida das mulheres.
Conclusão
252
A questão dos direitos sexuais e reprodutivos esteve longe de ser uma prio-
ridade nesses 14 anos de governos do Partido dos Trabalhadores. Uma das prin-
cipais razões é seguramente a pressão política dos grupos de direita e conserva-
dores, e mesmo de parte da base aliada do próprio governo que se identifica ou
faz parte da bancada religiosa. Tendo sido um dos fatores de maior polêmica no
debate da mídia em torno das eleições, os candidatos e candidatas foram pressio-
nados a assumir publicamente um posicionamento contrário à descriminalização
e à legalização do aborto (BIROLI; MIGUEL, 2016), que acabou impedindo que
houvesse ações mais contundentes da SPM no debate sobre o aborto.
Após o golpe, vimos o avanço conservador na Secretaria de Políticas para
Mulheres, sendo a nova secretária uma mulher evangélica e favorável à crimina-
lização do aborto em todos os casos, inclusive os já garantidos por lei. Com base
nos dados apresentados constatamos que a criminalização do aborto em todos
os casos é defendida apenas por 14% das delegadas da CNPM de religião protes-
tante, enquanto 44% acreditam que a lei deve permanecer como está e 28% são
favoráveis à descriminalização do aborto em todos os casos. A posição na nova
coordenação da SPM representa, portanto, uma minoria conservadora dentro de
seu próprio segmento religioso.
As experiências de deliberação no âmbito das CNPMs nos mostram que,
mesmo a legalização do aborto ainda sendo um tema controverso entre as mu-
lheres que constroem as políticas para mulheres, essa, ainda assim, é a posição
majoritária. A análise dos dados nos comprova que a descriminalização do aborto
em todos os casos é a posição de mais de 57% das delegadas, enquanto 28% é
favorável à manutenção da lei como ela se encontra atualmente. Essa constatação
nos indica que as ações de promoção dos direitos sexuais e reprodutivos no âm-
bito das políticas públicas para mulheres ainda não refletem as perspectivas das
mulheres participantes da CNPM.
Se analisamos o posicionamento das mulheres mais jovens, vemos uma di-
ferença ainda maior, já que 70% das mulheres até 24 anos são favoráveis à descri-
minalização do aborto em todos os casos. A baixa presença de mulheres jovens
como delegadas nas conferências seguramente se reflete na pouca incorporação
de suas pautas como prioridade na agenda e, especialmente, na concretização des-
tas na execução das políticas públicas para mulheres. Os fatores estruturais que
excluem as mulheres jovens dos espaços de deliberação foram denunciados pelas
jovens feministas, mas apesar de toda a mobilização e articulação realizada ao
longo das CNPMs e da incorporação de algumas demandas nos planos, o número
de mulheres jovens presentes nesse espaço ainda está muito abaixo de sua real
proporção na população brasileira. Estamos, portanto, diante de um persistente
253
problema de sub-representação que tem impactado as políticas para mulheres.
Os feminismos jovens, entretanto, não deixaram de se mobilizar intensa-
mente em prol dos direitos sexuais e reprodutivos e, em especial, em defesa do
aborto legal, seguro e gratuito. Uma série de estratégias de protesto, de comuni-
cação e mídia alternativas e de apoio através de grupos continua sendo levada a
cabo e, apesar da reação conservadora em toda a América Latina, as feministas
seguem com todo vapor em sua campanha em defesa dos direitos, da vida e da
autonomia das mulheres.
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255
Divisão sexual do trabalho e usos do tempo:
a inserção temática e o feminismo acadêmico
na SPM e as percepções das mulheres participantes
das CNPMs no Brasil
Breno Cypriano1
Introdução
257
o planejamento, a criação e a execução das políticas públicas voltadas para a au-
tonomia econômica e o empoderamento de mulheres, como também buscar al-
ternativas para a transformação das desigualdades na divisão sexual do trabalho,
buscando-se, afinal, a efetiva incorporação dos homens nas atividades domésticas
e do cuidado.
258
No Brasil, especificamente, por essa razão, a Secretaria de Política para
as Mulheres (SPM),4 a partir das demandas das duas primeiras Conferências de
Políticas para as Mulheres, empenhou-se para que as estatísticas oficiais brasilei-
ras incorporassem quesitos referentes a sexo. Em razão desse objetivo, instituiu,
em 2008, o Comitê Técnico de Estudos de Gênero e Uso do Tempo (CGUT),
que contava com a participação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Participaram, como
convidadas, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONU Mulheres,
entidades das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e Empoderamento das
Mulheres.
Além da discussão temática sobre a divisão sexual do trabalho e os usos
do tempo, o capítulo também se centra no esforço para destacar a importância
política no Brasil em problematizar tal temática, visando aos aspectos institucio-
nais e específicos destas estratégias e, por fim, realiza uma descrição e avaliação
das percepções das participantes das duas últimas CNPMs, a respeito da divisão
sexual do trabalho e suas avaliações quanto ao uso de tempo nas tarefas domésti-
cas. Pretende-se compreender como se dá essa percepção para esse segmento de
mulheres, inclusive comparando-se as suas respostas também à avaliação que te-
riam sobre como teria se transformado no país a situação das mulheres no tempo,
especialmente no comparativo histórico e sobre como essa situação teria, afinal,
evoluído. Atenção e comparação dessas percepções também são realizadas em re-
lação a como estas responderam quando perguntadas sobre qual seria a maior
desigualdade entre homens e mulheres no país e também qual seria o principal
problema ainda a ser enfrentado pelas mulheres no seu município, estado, país.
O capítulo se dividirá em: (i) uma discussão sobre a trama conceitual que
fomenta as discussões sobre a temática da divisão sexual do trabalho e dos usos do
tempo no campo teórico; (ii) a apresentação da inserção da discussão no contexto
do feminismo acadêmico brasileiro; e (iii) as percepções das participantes das 3ª e
4ª CNPMs sobre a temática das desigualdades e divisão sexual do trabalho.
4 Utilizar-se-á aqui a referência ao órgão como Secretaria de Política para as Mulheres (SPM),
ainda que atualmente esta secretaria tenha perdido o status de ministério após a reforma ministerial
e hoje seja uma Secretaria Especial vinculada ao Ministério da Justiça e Cidadania.
259
O emaranhado conceitual feminista – a dicotomia público/
privado, cuidado, divisão sexual do trabalho, usos do tempo
e patriarcado
Esta primeira parte é uma discussão sobre a teoria política feminista,5 que
busca na gênese e na história dos conceitos o entendimento a partir de um ema-
ranhado nodal, que ao se articular dá sentido e estrutura a um campo de conheci-
mento produzido pelo saber feminista. A partir dessa noção, como discutido em
Cypriano (2015), a divisão entre o público e o privado, a noção de cuidado, bem
como o conceito de divisão sexual do trabalho (HIRATA; KERGOAT, 2007) e a
questão dos usos do tempo, são conceitos da teoria política feminista que trazem
a perspectiva de politização do feminismo. Essa politização vem contribuindo
para um entendimento sobre o patriarcado (como conceito centrípeto/central)
que, por sua vez, originou uma visão crítica feminista do Estado e do debate mais
específico sobre as políticas públicas numa perspectiva de gênero, ou a conhecida
transversalidade de gênero.
“O pessoal é político” tornou-se a afirmação que amparou grande parte dos
projetos teóricos da maioria das pensadoras feministas. A problematização da dis-
cussão entre a dicotomia conceitual público/privado unifica os feminismos, já que
todas as correntes possuiriam uma discussão específica sobre o conceito de públi-
co e o de privado, desde o feminismo liberal, o feminismo tradicional marxista,
o radical, o socialista, o psicanalítico, o pós-moderno e até o pós-estruturalista,
que se aproximam, também, no compartilhamento do conceito de patriarcado,
tomando-o como central para a discussão teórica (ELSHTAIN, 1981). A partir
desses esforços, a família (burguesa, nuclear e patriarcal, principalmente) se tor-
nou, e vem se mantendo desde então, central à política do feminismo e um foco
prioritário da teoria feminista.6
5 A partir da discussão sobre teoria política feminista discutida em Cypriano (2015), após expor
uma miríade de elementos que informam sobre esse campo do conhecimento, faria sentido entender
e definir a teoria política feminista como uma estratégia discursiva e de produção de conhecimento, que
informa e é informada pela práxis do ativismo político e das múltiplas e diferentes experiências e rela-
ções entre as(os) atrizes/atores dentro desse campo, que busca, ainda que na sua acomodação disciplinar
dos campos de que faz parte, a saber, a filosofia e a teoria política, o reconhecimento definitivo dessas
áreas por poder informar outra visão e entendimento sobre “a” política. Esse esforço deve ser ampliado,
inclusivo e informado, já que esse tipo específico de saber é consequência de articulações locais e
globais, envolvendo permanentes disputas de poder, como também abrangendo uma multiplicidade
política de atrizes/atores em esferas variadas.
6 Algumas críticas à concepção nuclear e patriarcal da família seriam: para Iris Young (1996), ao
se analisar as questões de gênero e sexualidade como questões de justiça, nota-se que a tradicional
concepção de família limitaria consideravelmente o alcance da justiça, já que o acesso à justiça seria
260
O que acontece na vida pessoal, particularmente nas relações entre os se-
xos, não seria imune à dinâmica de poder, que recorrentemente tem sido notada
como a face distintiva do político. Para Okin (2008 [1998]), o domínio da vida
doméstica e pessoal e aquele da vida não doméstica, econômica e política não
podem ser interpretados isolados um do outro, por isso, as feministas afirmam
que a separação das esferas público/privada legitima a estrutura de dominação
patriarcal de gênero da sociedade e protege uma esfera significante da vida hu-
mana (e especialmente da vida das mulheres) do exame atento ao qual o político
é submetido. É relevante perceber, então, como as esferas “públicas” são generi-
ficadas, já que foram construídas sob a dominação masculina e pressupõem a
responsabilidade feminina pela esfera doméstica. E é importante notar que esses
conceitos foram construídos historicamente (OKIN, 2008 [1998]).
Segundo Susan Okin (2008 [1998]), a noção do que é “o privado” referir-
se-ia à esfera ou às esferas da vida social nas quais a intrusão ou interferência
em relação à liberdade requer justificativa especial, enquanto “o público” indica
uma esfera ou esferas vistas como, geral ou justificadamente, mais acessíveis.
Com isso, na teoria política faz-se o uso do conceito de público e privado para se
referir à dicotomia entre Estado e sociedade e, também, à dicotomia entre vida
não doméstica e doméstica, ou íntima. A primeira forma de distinção, referente
ao liberalismo clássico, seria entre o Estado e a sociedade civil, enquanto, numa
outra chave teórica, os “românticos” (KYMLICKA, 2006 [1990], p. 331) pro-
põem a separação entre o pessoal ou íntimo da noção de público que abrangeria
o Estado e a sociedade civil. Esse deslocamento, até mesmo já incorporado pelo
liberalismo, significou um avanço para o feminismo, já que nas disputas sobre a
primeira dicotomia (Estado versus sociedade civil), as teóricas feministas dariam
maior prioridade à vida social do que à política e, através da segunda dicotomia, a
noção do político seria mais presente para as lutas feministas e suas teorizações –
“a politização do social” (Cf. FRASER, 1989). De acordo com Anne Phillips (1991,
p. 95, tradução nossa):
constrangido às “formas ilegítimas” de família, como os casais homossexuais; para Bette Tallen (2008
[1990]), ao negar a centralidade de famílias homoparentais, principalmente às famílias conformadas
por lésbicas, algumas teóricas feministas ignorariam a questão lésbica, e, por isso, levaria ao separa-
tismo teórico das lésbicas, que, por sua vez, desafiam os papéis tradicionais na família, como também
a noção de maternidade como uma metáfora política dominante; sobre as reinvenções dos vínculos
amorosos, que se envolveriam em redes também sociais e políticas, centrando-se nas relações amo-
rosas homoeróticas e heteroeróticas alternativas e nas configurações da família moderna, a discussão
de Marlise Matos (2000) contempla as diversidade e multiplicação das relações familiares e amorosas
na cena contemporânea, ou modernamente tardia.
261
[...] novos tópicos estão sendo colocados na agenda política, e em vários
casos [a] redefinição sobre o que conta como preocupações públicas tem
transformado as oportunidades para as mulheres se tornarem politicamente
ativas. A política que antes parecia definida por abstrações exóticas tem sido
remodelada para incluir a textura da vida diária, oferecendo para alguns o
que era a primeira abertura para o “debate político”.
262
vertentes do movimento) e a discussão do movimento feminista contemporâneo
sobre a própria existência dessa distinção. É preciso ressaltar, também, que o pró-
prio liberalismo é impreciso, ambíguo ao definir público e privado, tornando a
questão ainda mais complexa.
Jean Bethke Elshtain (1981) cunha uma própria distinção entre o público
e o privado que se baseia na noção de que as “atividades” seriam diferentes – isto
é, há coisas que são políticas e outras que não são. Com isso, segundo Phillips
(1991), ela chamaria a atenção para evitar o problema de se pensar “[...] que [se]
tudo em nossas vidas é um problema político, então nós estaremos abertos a pen-
sar que tudo tem uma solução política” (PHILLIPS, 1991, p. 105, tradução nossa).
A associação entre o pessoal e o político não deveria se exaurir em toda e qual-
quer forma de democratização. Para Phillips, haveria distinções entre estes dois
conceitos, o “pessoal” e “o” político, que se sobrepõem um ao outro: é recorrente
haver interpretações enganadas quanto “ao que seria um problema político”, pois
poderiam referir-se aos locais onde há a atividade de estender o controle sobre
decisões que todos e todas estão envolvidos, como é no trabalho, ou referir-se
também aos espaços tradicionalmente que seriam definidos como “a” política.
Haveria um sério problema aí: o “feminismo consultaria justamente a ênfase ex-
clusiva na ‘política’ como convencionalmente definida e tem salientado muitas ve-
zes as questões mais imediatas de tomar o controle onde vivemos e trabalhamos”,
e, como a autora alerta, “essa insistência positiva sobre a democratização da vida
cotidiana não deve se tornar um substituto para uma vida política mais vivaz e
vital” (PHILLIPS, 1991, p. 119, tradução nossa). De maneira geral, as contribui-
ções feministas para politizar e democratizar as relações do privado incidiram nas
seguintes ações detalhadas:
263
28)7 considera como política do seu próprio quintal? (PHILLIPS, 1991, p.
115-116, tradução nossa).
7 O teórico político Sheldon Wolin possuiu uma visão demasiadamente realista (para não dizer
pessimista) sobre os movimentos populares, já que, mesmo com a surpreendente variedade e abran-
gência desses movimentos, ele salienta que é necessário reconhecer que a sua vitalidade e importân-
cia democrática têm limitações políticas, devido ao localismo e a limitações. A política deve deter-se
com problemas abrangentes, e não com questões paroquiais levantadas por esse tipo de movimento,
evitando-se assim uma “política de quintal” (PHILLIPS, 1991, p. 48-49).
264
prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma
é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação
prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reproduti-
va e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior
valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc). (HIRATA;
KERGOAT, 2007, p. 599).
265
Diante disso, a importância política das temáticas da divisão sexual do
trabalho e dos usos do tempo deve levar em consideração que “[a] formulação,
implementação e avaliação de políticas exige, para avançar na igualdade entre ho-
mens e mulheres, pesquisas (argumentos) em maior número e qualidade [...]”
(BARAJAS, 2017, p. 22). Na configuração desse plano e emaranhado conceitual,
há de se destacar que a política, tal como é compreendida pela dinâmica de cons-
trução do Estado Moderno, é patriarcal. O patriarcado, que é a ideia norteadora e
centrípeta até hoje do campo feminista do conhecimento político, que anos mais
tarde também foi um conceito muito trabalhado por autoras como Pateman (1993
[1988]) e Walby (1990), pode ser aqui, então, compreendido como uma forma de
poder político que reforça o direito patriarcal como uma forma específica de direito
político, singular, em que todos os homens exercem pelo fato de serem homens, não
só na esfera privada como na esfera pública. Walby aponta a discussão sobre o
Estado e o patriarcado em sua obra relativa à divergência das correntes feministas
liberal, marxista, da teoria feminista de sistemas-duais e do feminismo radical. O
que Walby conclui é que há certo avanço nas políticas de bem-estar, ainda que o
Estado continue patriarcal como também ainda permanece capitalista e racista.
Porém, ainda que as mulheres possam, com essas políticas, sar da esfera privada e
entrar em certas posições na esfera pública, elas não conseguem acender a certas
posições desejáveis em cargos públicos, pois não há ainda igualdade de ascensão
nessas esferas de poder, como a autora observa (WALBY, 1990, p. 171-172).
Para outra autora feminista, Catharine MacKinnon (1995 [1989]), o femi-
nismo carecia de um tratamento teórico sobre o Estado, como também de uma
abordagem crítica sobre o poder em uma forma institucionalizada e burocrati-
zada. Pelo movimento feminista até então desconsiderar a dimensão de gênero
como uma determinante da conduta estatal, dá-se a impressão de que a conduta
do Estado era indeterminada, mas, ao contrário, o poder masculino dentro do
Estado é sistêmico. Por isso, o regime estatal masculino é coativo, legitimado e
epistêmico. Essa autora, portanto, propõe uma “teoria feminista do Estado” que
insere e considera em sua discussão, sobre a análise do poder institucionalizado
do Estado, as questões legais e a interpretação social da mulher.
O debate internacional em relação às opressões e desigualdades entre os
sexos era ainda latente e pouco problematizado na década de 1970, quando a
Organização das Nações Unidas deu importantes passos. Em 1975 instaurou-se
o Ano da Mulher e no período de 1975-1985 foi decretada a “Década da Mulher”,
período no qual se realizaram quatro grandes Conferências Mundiais sobre a
Mulher, entre os anos de 1975 e 1995. Do ponto de vista pragmático, esse pro-
cesso de mobilização internacional assinalou que a intervenção sobre as desigual-
dades e as opressões sofridas pelas mulheres deveria ser assunto de Estado e que
266
a formulação de políticas públicas voltadas para demandas específicas contribui-
riam com a promoção da igualdade de gênero.
Dessa forma, passou-se a utilizar, a partir da Terceira Conferência Mundial
da Mulher, a noção de “transversalidade de gênero” (gender mainstreaming) tanto
como um conceito, quanto também como uma prática das políticas públicas e
sociais. Esse conceito é discutido, neste volume, também no capítulo que proble-
matiza as redes de participação e ativismo das delegadas (capítulo 3). Atualmente,
esse é um dos conceitos orientadores do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à
Violência contra Mulheres. Segundo Sylvia Walby (2005), ao incluir a perspectiva
de gênero na agenda governamental, tal noção faz que se reoriente e transforme
os paradigmas antes vigentes das políticas públicas (que geralmente são burgue-
ses, patriarcais, brancos, heterossexuais). Dessa forma, ficou-se estabelecido que:
Mas cabe destacar que tal perspectiva é fortemente contestada por analis-
tas e teóricas. De acordo com Alyson Woodward (2008), as contestações surgem
porque a transversalidade de gênero é uma novidade, sendo uma técnica e uma
prática advinda da governança global. As contestações também são decorrentes,
para a autora, da popularidade da ideia, já que o termo “transversalidade” tem
sobrevivido, enquanto a discussão em torno da noção de “gênero”, propriamente,
tem se perdido.
A partir da noção de transversalidade, Woodward (2008) problematiza
alguns pontos interessantes. O primeiro deles é que o debate sobre “igualdade
de gênero” retomaria as discussões sobre igualdade versus diferença, que fica-
ram conhecidas como o “Dilema de Wollstonecraft”. A autora ressalta que, pa-
radoxalmente, homens e mulheres devem ser tratados como iguais diante da lei,
por buscarem os mesmos direitos, porém eles ainda manteriam suas diferenças.
Outro ponto-chave para a autora seria o gesto ambicioso de se “integrar todas as
políticas” sob uma mesma ótica. A última questão ressaltada pela autora é que
gênero é uma concepção que ultrapassa o conceito de “mulheres”. Porém, como
267
Woodward acrescenta, muitas políticas e relatorias de transversalidade de gênero
vão entender esse conceito como “o problema da mulher”, ou como outra questão
que não diz sobre as desigualdades entre homens e mulheres, e isso é um proble-
ma primário.
Diante dessas questões de políticas públicas, o eixo sobre a questão de au-
tonomia econômica das mulheres e as questões no mundo do trabalho foi uma
das bandeiras que o movimento feminista discutiu extensivamente (ver o capítulo
1 de Schumaher, neste volume), tendo refletido bastante sobre a tensão existente
entre a esfera pública e a privada. A dupla jornada de trabalho das mulheres e, de-
pois, os estudos sobre o uso do tempo tornaram-se pautas importantes da agenda
feminista. A teoria feminista denuncia a dualidade diante da questão da produção
versus a reprodução e que, por muito tempo, a ideia de trabalhos complementares
(trabalhos domésticos e de cuidado seriam responsabilidade das mulheres) foi
uma estratégia de dominação utilizada por homens para manter as mulheres em
posições socialmente desvalorizadas. A sobrecarga de trabalho com os filhos e
o trabalho doméstico faz que as mulheres tenham menos horas do seu dia para
lazer e descanso, por isso a questão sobre políticas públicas para se repensar a
divisão sexual do trabalho e o trabalho doméstico, bem como sobre paternidade,
tem entrado em discussão em países de bem-estar social e outros que estão com-
prometidos com políticas de gênero e para as mulheres.
No caso do Brasil, pensando na necessidade de se produzir indicadores de
gênero que subsidiassem a formulação de políticas públicas para as mulheres, a
SPM, guiada pela Ação 11.2.22, do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(II PNPM) de “Instalar o Comitê de Gênero e Uso do Tempo no âmbito do IBGE”,
criou o CGUT. Diferente do que estava no plano, foi no âmbito da SPM que se
instalou, em 2008, o Comitê Técnico de Estudos de Gênero e Uso do Tempo,
que contou com a participação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Participaram como
convidados: a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONU Mulheres,
entidade das Nações Unidas para a promoção da igualdade de gênero e do empo-
deramento das mulheres. Segundo Lourdes Bandeira:
268
A partir dessa prática, a próxima discussão deste capítulo focará especifi-
camente em um breve levantamento histórico sobre a produção acadêmica dos
estudos de gênero, divisão sexual do trabalho e pesquisas sobre usos do tempo no
Brasil e a relação dos núcleos de pesquisa sobre mulheres e feminismo presentes
em todo o território nacional.
269
se dedicavam a pesquisar a divisão sexual do trabalho, muito influenciadas na
época pelas teorias marxistas e socialistas. De acordo com Heilborn e Sorj (1999),
a temática de gênero era um dos interesses centrais da Ford Foundation naquele
momento, por isso, as diversas dotações para pesquisas que a Ford Foundation,
nas décadas de 1970 e 1980, investiu na área acadêmica possibilitaram às feminis-
tas, através da Fundação Carlos Chagas, a realizar pesquisas inéditas no cenário
nacional.
De acordo com Albertina Costa (1994), é durante a década de 1980 que a
temática “cresce e se diversifica vertiginosamente”, o que dá início à instituciona-
lização dos núcleos de estudo e pesquisa (ver Quadro 1). Segundo a autora, esses
núcleos de estudo sobre a mulher e gênero funcionaram, no meio acadêmico, de
forma diversificada cumprindo a “função tríplice”, extensão, ensino e pesquisa e
serviram também como um meio de apoio aos cursos de pós-graduação e como
uma forma de favorecer a formação de novas pesquisadoras e pesquisadores.
270
No final da década de 1980, em 1989, o Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher realizou um levantamento de grupos, instituições e associações de mu-
lheres através das relações dos participantes nos 8º e 9º encontros feministas, que
aconteceram em Petrópolis e Garanhuns, respectivamente, e buscaram catalogar
as principais áreas de atuação, os objetivos/atividades e a clientela destes. Diante
desta publicação, foi feito um recorte dos grupos que realizavam como atividade
“estudo-pesquisa”. Cabe ressaltar que a produção de conhecimento não se limita-
va aos núcleos acadêmicos, mas também abarcava instituições governamentais,
como recém-criados organismos de políticas para as mulheres, conselhos, subse-
cretarias, mas também organismos não-governamentais e movimentos feministas
e outros movimentos sociais.
271
Minas Grupo de Trabalho – A Mulher Belo
Outros 12/1985
Gerais na Literatura Horizonte
Conselho Municipal dos
Pará Outros 3/1987 Belém
Direitos da Mulher Belém/PA
Associação Brasileira de
João
Paraíba Outros Mulheres na Carreira Jurídica 4/1987
Pessoa
Subcomissão Paraíba
Grupo de Mulheres Negras de João
Paraíba Outros 3/1987
João Pessoa Pessoa
Grupo Feminista Maria João
Paraíba Outros 10/1974
Mulher Pessoa
Centro Mulher – Centro de
Pernambuco Outros 9/1984 Recife
Estudos e Documentação
Grupo de Estudos e Pesquisas
Núcleo de
Pernambuco da Condição da Mulher da 9/1986 Recife
Estudo/UFPE
UFPE – Gepem
Pernambuco Outros Grupo de Estudos da Mulher 6/1985 Recife
SOS Corpo – Grupo de Saúde
Pernambuco Outros 3/1982 Recife
da Mulher
Associação de Mulheres de
Paraná Outros 10/1985 Curitiba
Carreira Jurídica/PR
Conselho Estadual da
Paraná Outros 10/1985 Curitiba
Condição Feminina
Movimento Popular de
Paraná Outros 1980 Curitiba
Mulheres do Paraná
Rio de Rio de
Outros Centro da Mulher Brasileira 10/1975
Janeiro Janeiro
Rio de Centro de Estudos e Pesquisas Duque de
Outros
Janeiro da Baixada Fluminense Caxias
Rio de Ciec- Programa de Estudos Rio de
Outros 8/1986
Janeiro Feministas Janeiro
Rio de Rio de
Outros Grupo Ceres 3/1975
Janeiro Janeiro
Grupo de Pesquisas sobre as
Rio de Rio de
Outros Condições de Saúde e Trabalho 7/1987
Janeiro Janeiro
da Mulher
Rio de Grumin – Grupo Mulheres Rio de
Outros
Janeiro Educação Indígena Janeiro
Rio de Núcleo de Laboratório de Estudos Sobre Rio de
3/1988
Janeiro Estudo/IUPERJ a Mulher Janeiro
Mulheres por um
Rio de Rio de
Outros Desenvolvimento Alternativo 8/1984
Janeiro Janeiro
(Mudar/Dawn)
Rio de Núcleo de Núcleo de Estudos sobre a Rio de
6/1980
Janeiro Estudo/ PUC Rio Mulher Janeiro
272
Rio de Núcleo de Recursos Humanos
Outros 12/1980 Niterói
Janeiro em Saúde
Rio de OAB/MULHER – Comissão Rio de
Outros 9/1985
Janeiro Feminina/RJ Janeiro
OAB/MULHER – Sub
Rio de Barra
Outros Comissão da Mulher 7/1987
Janeiro Mansa
Advogada Barra Mansa
Conselho Municipal dos
Roraima Outros 9/1987 Boa Vista
Direitos da Mulher
Centro de Informação e
Rio Grande Porto
Outros Pesquisa Angelina Gonçalves 4/1986
do Sul Alegre
– Cipag
São
Associação de Mulheres de São
São Paulo Outros 5/1987 Caetano
Caetano do Sul
do Sul
São Paulo Outros Centro de Memória Sindical 6/1980 São Paulo
Coletivo de Pesquisa sobre a
São Paulo Outros 1975 São Paulo
Mulher
Comitê Técnico Permanente de São
São Paulo Outros Estudo e Defesa dos Direitos 6/1988 José dos
da Mulher Campos
Conselho Estadual da
São Paulo Outros Condição Feminina de São 4/1983 São Paulo
Paulo
Conselho Estadual da São
São Paulo Outros Condição Feminina de São 3/1986 José dos
José dos Campos Campos
Conselho Estadual da
São Paulo Outros 6/1986 Marília
Condição Feminina de Marília
Grupo de Saúde da Mulher
São Paulo Outros Div. Saúde Materna e da 12/1983 São Paulo
Criança
Instituto de Estudos
Interdisciplinares sobre as
São Paulo Outros 1982 São Paulo
Relações Sociais de Gênero –
Ieros
Mulher – Imagens do
São Paulo Outros 1986 São Paulo
Cotidiano Campos
Núcleo de Núcleo de Estudos da Mulher e
São Paulo 1986 São Paulo
Estudo/USP Relações Sociais de Gênero
São Paulo Outros Rede Mulher 1983 São Paulo
Fonte: CNDM, 1989.
273
(em 1973), foram seguidas pelo pioneirismo da professora Neuma Aguiar, tanto
teórico, quanto metodológico, ao introduzir a discussão do uso do tempo para
os estudos feministas e de gênero na academia brasileira, após a realização, em
1978, do seminário “A mulher na força de trabalho na América Latina”, na sede
do Iuperj. Esse seminário foi o embrião para a formatação, tendo alavancado o
grupo de trabalho nos encontros da Associação Nacional de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (Anpocs), em 1979, conhecido como GT “A Mulher na força de
trabalho”, que congregou pesquisadoras e pesquisadores que debateram as temá-
ticas, tanto da mulher no mercado de trabalho quanto a discussão de novas me-
todologias para os novos estudos feministas, que recém surgiam no Brasil. Como
Britto e Neto (1982) afirmam:
274
Felícia R. Madeira e Maria Q. de Moraes (USP) – Notas Preliminares
sobre a evolução do trabalho feminino no Brasil 68/78: algumas
reflexões sobre o tema “mulher e trabalho”***
Cheywa Spindel – A mulhera na indústria do vestuário
Amélia Rosa Sá Barreto Teixeira, Ana Clara Torres Ribeiro e
Filippina Chinelli Casa e Fábrica: a organização política da Mulher
trabalhadora***
Heleieth Saffioti – O impacto da industrialização na estrutura do
emprego feminino
Neuma Aguiar (Iuperj) – Um guia exploratório para a compreensão do
Rio De
IV 1980 trabalho feminino***
Janeiro
Liliana Acero – La Mujer en el proceso de trabajo – una fábrica textil
Maria Valéria Junho Penha (UFRJ) – A Revolução de 30, a família e o
trabalho feminino
Simon Schwartzman – A Igreja e o Estado Novo: O Estatuto da Família
Selene Herculano dos Santos – A mulher de formação universitária em
algumas empresas estatais
Vera Maria Cândido Pereira (UFRJ) – A dupla subordinação das
mulheres – análise de depoimentos de operárias têxteis
Zahidé Machado Neto (UFBA) – Mulher e Estado – Funcionária
Pública: A dona de casa nas “repartições”
Alda Brito (UFBA) – Emprego Doméstico no Capitalismo – O caso de
Salvador
Alice Range Paiva de Abreu – Algumas considerações sobre a posição
trabalhista de costureiras externas na indústria de confecção no Rio de
Janeiro
Francisca Laíde de Oliveira, Jane Souto de Oliveira, Rosa Maria Porcaro,
Tereza Cristina Costa – Desvendando o trabalho da Mulher: notas para
uma discussão
Heitor Mansur Caulliraux (UFRJ) – Formas de resistência na indústria
do vestuário
Nova Heleith Saffioti e Vera Lúcia Botta Ferrante (Unesp/Araraquara)–
V 1981
Friburgo Mulher e trabalho numa zona rural paulista
Maria José Carneiro – Ajuda e trabalho: a subordinação da mulher no
campo
Maria Valéria Junho Pena (UFRJ) – Lutas Ilusórias: As mulheres na
política operária da Primeira República
Marina Figueiredo de Mello (Puc Rio) – O mercado de trabalho: uma
abordagem da participação feminina
Zahidé Machado Neto (UFBA) – A força de trabalho da mulher no
espaço do bairro
Zaira Ary Farias (UFC) – A situação das mulheres na sociedade de
classes: o valor social do trabalho doméstico
275
Alda Britto e Zahidé Machado Neto (UFBA) – Tempo de Mulher,
Tempo de Trabalho: Entre Mulheres Proletárias em Salvador***
Heleith Saffioti e Vera Lúcia Botta Ferrante (Unesp/Araraquara)–
Trabalhadoras rurais: exclusão e contradição
Maria Coleta Oliveira (USP)- O trabalho feminino e trabalho familiar:
um estudo sobre trabalhadoras agrícolas em São Paulo, Brasil
Mariza de Athayde Figueiredo – Orçamento de tempo: método aplicado
Nova
VI 1982 pelas Ciências Sociais nas pesquisas de campo***
Friburgo
Neuma Aguiar (IUPERJ) – Orçamento de tempo em perspectiva
comparada: uma proposta de pesquisa***
Zaira Ary Farias – Contribuições recentes para o estudo de orçamento
de tempo: uma resenha***
Zuleica Oliveira, Márcia Vianna e Juarez Oliveira – Aspectos
sociodemográficos do trabalho feminino nas áreas urbanas do estado de
São Paulo: 1970-1976
Anamaria Beck, Claudia Maria Costa, Eugenio Pascele Lacerda, João
Carlos Torrens – Um trabalho atoa: a produção e a comercialização da
renda de bilro e suas implicações para a economia familiar
Gilda de Castro Rodrigues (UFPB) – Camponesas no Cariri Paraibano
Luciano Figueiredo e Ana Maria Bandeira Magualdi – Negras de
tabuleiros e vendeiras: a presença feminina na desordem mineira no
século XVIII
Marcus Figueiredo – Estudo comparativo do papel socioeconômico
das mulheres chefes de família em duas comunidades negras de pesca
Águas de artesanal (costa atlântica)
VII 1983
São Pedro Maria Malta Campos, Marta Grosbaum, Regina Pahim, Fúlvia
Rosemberg – Profissionais de creche
Maria Lúcia Sá Maia (UFPA), Edna Castro (UFPA), Edila Moura (FUA),
Ernesto Pinto (FUA), Marilene Silva (FUA) – A mobilidade do trabalho
feminino e a reprodução da força do trabalho: análise da família
operária em Belém e Manaus
Marise Vianna – Determinantes psicossociais da consciência social das
empregadas domésticas de São Paulo: um estudo de caso
Neuma Aguiar e Vanda Aderaldo – Trabalho feminino e propaganda
governamental
Águas de
VIII 1984 Sem informações
São Pedro
276
Gilda Castro (UFPB) – O mito de Adão e Eva: A legitimidade da
dominação masculina
Cristina Bruschini – Mulher e trabalho : uma avaliação da década da
mulher 1975-1985
Heleieth Saffioti – Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das
cifras
Maria Moraes Silva – Trabalhadores e trabalhadoras rurais no estado de
São Paulo
Águas de
IX 1985 Manoel Tourinno, Janett Ferreira e Margarida Zaroni – Modernização
São Pedro
agrícola na região cacaueira e o trabalho da mulher: efeitos do salário,
tecnologia e estrutura fundiária
Paulete Goldenberg – Mulher, trabalho e aleitamento: uma questão
sobre reprodução social
Rosa Lúcia Moyses – Sobre o processo e a divisão sexual do trabalho nas
indústrias farmacêuticas e de cosméticos
Zaira Ary (UFC) – Ciências Sociais e a “questão da mulher”:
apontamentos sugestivos
Campos
X 1986 Não foi realizado o GT
do Jordão
277
Naumi Antonio de Vasconcelos (Ieros/PUCSP) – Reflexões sobre o
poder macho – Ícaros, Laios, Édipos / ou/ Macunaíma, mon amour (1ª
versão)
Ícaros, Édipos, Laios: ascensões e quedas ou Macunaíma, mon amour
(2ª versão)
Edgar de Assis Carvalho (Unesp/PUCSP) – Poder masculino e
Contrapoderes femininos em sociedades sem classes (1ª e 2ª versão)
Norma Telles (Ieros/PUCSP) – A crise do poder do macho e outras
crises (1ª versão)
A crise do poder do macho (2ª versão)
Marijane Lisboa (Ieros/PUCSP) – A crise de identidade do macho ( 1ª e
2ª versão)
Zuleika Lopes de Cavalcanti de Oliveira (IBGE/RJ) – A crise e os
arranjos familiares de trabalho urbano – mudanças e composição da
força de trabalho urbano familiar (1ª versão)
A Crise e os Arranjos Familiares de Trabalho Urbano (2ª versão)
Neuma Aguiar e David P. Morais (Iuperj) – Crise e desenvolvimento –
trabalho e gênero em uma plantação canavieira (1 ª e 2ª versão)
Edila Ferreira Moura (UFPA) – A mulher frente à ação dos grandes
Águas de projetos: formas de resistência e resignação (2ª versão)
XI 1987
São Pedro Teresita de Barbieri (Unam) e Orlandina de Oliveira (Unam/Colegio
de México) – La Presencia de las Mujeres em América Latina em uma
Década de Crisis (1 ª e 2ª versão)
Cheywa R. Spindel (Idesp/SP) – A mulher frente à crise econômica dos
anos 80 – algumas reflexões com base em estatísticas oficiais (1ª versão)
A mulher frente à crise econômica dos anos 80 – novas reflexões sobre
um velho problema (2ª versão)
Maria Dirlene Trindade Marques (UFMG) – Relações de poder e
dominação sobre a força de trabalho feminina (2ª versão)
Maria Helena Machado (Ensp/Fiocruz-RJ) – A participação da mulher
na força de trabalho em saúde no Brasil – 1970-80 (1 ª e 2ª versão)
Maria Aparecida M. Silva (Unesp) – O capital na agricultura e a nova
divisão sexual do trabalho (1 ª e 2ª versão)
Sandra Azeredo (UFMG) – Relações entre empregadas e patroas (1 ª e
2ª versão)
Edgard de A. Carvalho – Pensamento selvagem e relações de gênero (1ª
versão)
Maria D. T. Marques, Silvia E. C. Morales e Heloisa Helena Gonçalves –
Poder e dominação sobre a força de trabalho feminina (1ª versão)
Águas de
XII 1988 Não foi realizado o GT
São Pedro
278
Michele Ferrand (CNRS-Paris) – Reflexões metodológicas sobre uma
abordagem em termos de relações sociais de sexo (1ª e 2ª versão)
Lena Lavinas (IPPUR/UFRJ) – Identidade de gênero: um conceito da
prática (1ª e 2ª versão)
Heleieth I. B. Saffioti (PUCSP) – Ideologia e razão dualista (1ª e 2ª
versão)
Alda Britto da Motta (UFBA) – Emprego doméstico: revendo o novo (1ª
e 2ª versão)
Mary Garcia Castro (UFBA) – A busca por uma identidade de classe
XIII 1989 Caxambu
pelas empregadas domésticas da América Latina e do Caribe (1ª e 2ª
versão)
Maria de Moraes Silva (UNESP) – Quando as andorinhas são forçadas a
voar (1ª e 2ª versão)
Naumi Antonio de Vasconcelos (Cenp) – Uma abordagem psicanalítica
do machismo brasileiro (machismo e agressividade no brasil: um caso
de desmame difícil) (1ª e 2ª versão)
Florisa Verucci (OAB-SP) – A mulher e a família na nova constituição
brasileira (1ª e 2ª versão)
Fonte: Elaborações próprias a partir do site da Anpocs.
*** trabalhos voltados para a temática dos usos do tempo.
279
No que tange à participação brasileira no evento da International Association
for Time-Use Research (Iatur), desde a primeira edição no Brasil, em 2000, pode-se
notar que foi após a criação do CGUT, em 2008, que nos anos de 2010-2011 hou-
ve aumento da participação brasileira no evento, que não ficou mais restrita em
sua maioria aos pesquisadores da UFMG e ao grupo de pesquisa coordenado pela
professora Neuma Aguiar. Passou a ocorrer a inclusão da participação de alguns
pesquisadores de outras instituições, principalmente da SPM e do IBGE. Porém,
de acordo com as atas das reuniões do CGUT, sistematizadas em Cypriano (2013),
o papel da professora Neuma Aguiar em articular a relação do Comitê com a
Instituição internacional foi crucial para a realização do evento em 2013 no Brasil
novamente.
Somada à contribuição da Professora Neuma Aguiar à temática de gênero
e usos do tempo, na configuração desse campo do conhecimento há também
a importância de acadêmicas que contribuíram direta ou indiretamente na
construção da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). Segundo Marina
Brito (2015):
280
Há de se ressaltar ainda a estrutura organizativa da SPM, que, desde a sua
criação, se configurava em três áreas/subsecretarias: a de Enfretamento à Violência
contra as Mulheres; a de Autonomia Econômica; e a de Áreas Temáticas. Pela pró-
pria dinâmica institucional e organizacional, desde a sua fundação, cabe destacar
que a temática da divisão sexual do trabalho e dos usos do tempo era contempla-
da por essa dinâmica institucional.
Para além da dinâmica dentro da SPM, há também de se lembrar da im-
portância de pesquisadoras(es) dos outros órgãos que configuraram o CGUT, e
grande parte também tinha uma relação estreita com o feminismo acadêmico (ver
Quadro 4).
281
Ana Lucia Sabóia
Bárbara Cobo
Betina Fresneda
Cintia Agostinho
Cristiane Soares
Danielle Macedo
IBGE Fatmato Hany
Jacqueline Manhães
Lara Gama Cavalcanti
Márcia Quintslr
Ricardo Silva
Roberto Neves Sant’Anna
Rosane Oliveira
Luana Pinheiro
Marcelo Galiza
Maria Abreu
Ipea Natália Fontoura
Paula Costa
Paula Rincon
Ana Carolina Querino***
Danielle Valverde
ONU Mulheres Cleiton Lima
(Unifem) Juana Lucini
Shirley Villela
Ana Carolina Querino
OIT Márcia Vasconcelos
Fonte: Elaboração própria a partir de Cypriano, 2013.
*** as servidoras mudaram de órgão durante o período analisado.
282
experiência acumulada e da participação do IBGE no Comitê de Estudos de
Gênero e Uso do Tempo, o Instituto identificou uma boa oportunidade para
a realização de um teste, inserindo então um suplemento da Pesquisa do
Uso do Tempo no teste da PNAD Contínua, cujo período de referência da
coleta foi de outubro a dezembro de 2009, em cinco Unidades da Federação
(UF). No Rio de Janeiro, o período de referência da coleta é de outubro de
2009 a setembro de 2010. A PNAD Contínua é a pesquisa que substituirá
a atual PNAD e a Pesquisa Mensal de Emprego (PME), a partir de 2011, e
fará parte do novo Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares do IBGE.
Concluiu-se que este ambiente de teste seria propício para a inserção da in-
vestigação sobre uso do tempo, já que um tema novo e complexo como este
precisaria passar por uma avaliação metodológica antes de ser aplicado em
definitivo no país inteiro.” (CAVALCANTI; PAULO; HANY, 2010, p. 2-3).
283
Passando a discutir os dados de percepção das delegadas em ambas as con-
ferências, os principais eixos de análise aqui tratados são: (i) as principais desi-
gualdades existentes entre homens e mulheres; (ii) o problema das mulheres no
Brasil; (iii) o que deve mudar para melhorar a vida das mulheres; (iv) questões
de concordância e discordância; (v) os motivos que levam as mulheres a ter uma
posição inferior aos homens no mercado de trabalho; e (vi) a visibilidade dos
programas ou políticas realizados pela SPM. Destaca-se que na pesquisa realizada
há a replicação de algumas perguntas da Pesquisa da Fundação Perseu Abramo,
“Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”.8 Na apresentação
dos dados abordar-se-á, quando possível, essa comparação.
Com relação à questão “Em sua opinião, atualmente qual é o principal
problema enfrentado pelas mulheres no Brasil? E o segundo? E o terceiro?”, essa
pergunta espontânea foi aplicada apenas na Conferência de 2016, elencando o
primeiro, o segundo e o terceiro problemas das mulheres no Brasil e, posterior-
mente, codificados em categorias (Gráfico 2). Portanto, para essa pergunta não há
comparação com a pesquisa realizada na Conferência de 2011. Sobre esse aspecto,
percebe-se que quando as delegadas foram perguntadas sobre qual é o primeiro
problema, há a relevância do problema relacionado à violência (39,7%). Porém,
ao somar os três problemas elencados por elas, percebe-se que o problema relativo
a trabalho e renda tem grande relevância (62%), juntamente ao problema da vio-
lência (60,8%).
8 A pesquisa foi realizada em duas etapas, nos anos 2001 e 2010 (em parceria com o Sesc). Cabe
salientar que a pesquisa traz questões de atitude e percepções sobre temas, como: percepção de ser
mulher, machismo e feminismo; divisão sexual do trabalho e tempo livre; corpo, mídia e sexualida-
de; saúde reprodutiva e aborto; violência doméstica; democracia, mulher e política (FUNDAÇÃO
PERSEU ABRAMO, 2010).
284
Gráfico 2: Problema das mulheres no Brasil (principal, segundo e terceiro)
285
Gráfico 3: Desigualdades que existem entre homem e mulher?
Em primeiro lugar? E em segundo?
286
aspectos a se mudar, para melhorar a vida das mulheres. Há de se destacar que
tal resultado também pode ser efeito de como o tema das mulheres na política foi
sendo gradativamente colocado em discussão pública ao longo desses anos, muito
em função, evidentemente, dos movimentos, da própria SPM, de como o governo
incorporou a pauta, das campanhas de conscientização estimuladas pela Justiça
Eleitoral, entre outros fatores.
287
a mulher fique em casa”; (iii) “Homens e mulheres deveriam dividir igualmente
o trabalho doméstico”; e (iv) “É principalmente o homem quem deve sustentar
a família”. A análise de tais afirmativas procura exemplificar como as colocações
teóricas de autoras como Okin (2008 [1998]), Phillips (1991), Tronto (1996),
Pateman (1993 [1988]) e Walby (1990), sobre as dinâmicas do público e privado,
do cuidado e do patriarcado, são questões ainda em disputa dentro da própria luta
das mulheres e feministas, neste caso, através da visão das delegadas.
Como pode ser observado no Gráfico 5, a maioria das delegadas respon-
deu que concordam totalmente, em ambas as ondas da pesquisa, sobre as afir-
mativas (i) e (iii). Já sobre as afirmativas (ii) e (iv), há uma maioria que discorda
totalmente sobre elas, mas há de se destacar que na discussão sobre “Quando têm
filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe fora e a mulher fique em casa”,
há respostas que concordam com a alternativa, talvez por creditarem uma impor-
tância no papel da maternidade e do cuidado, ou talvez por acreditarem na ideia
de “papéis sexuais” diferenciados, recolocando uma abordagem mais tradicional
sobre o papel das mulheres na esfera privada.
Na pesquisa da Fundação Perseu Abramo, em ambas as ondas, tanto em
2001, quanto em 2010, foram realizadas três dessas questões (as alternativas eram
diferentes, se concorda, se discorda e nem concorda, nem discorda): sobre a se-
gunda afirmativa, “Quando têm filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe
fora e a mulher fique em casa”, 85% das respondentes concordavam, em 2001, e
75% em 2010; sobre a terceira afirmativa, “Homens e mulheres deveriam dividir
igualmente o trabalho doméstico”, 87% das respondentes concordavam, em 2001,
e 93%, em 2010; e sobre a quarta afirmativa, “É principalmente o homem quem
deve sustentar a família”, 55% das respondentes concordavam, em 2001, e 51%,
em 2010. Evidencia-se que as amostras, por contemplarem públicos diferentes,
apresentaram resultados discrepantes. Nas afirmativas (ii) e (iv) a tendência da
amostra brasileira é concordar com as alternativas, apresentando uma visão talvez
mais tradicional que a das delegadas das conferências, ponto que é discutido em
maior detalhe no capítulo 4 deste volume.
288
Gráfico 5: Se concorda, concorda em parte, não concorda nem discorda,
discorda em parte, discorda totalmente com as afirmações
289
Gráfico 6: Indica qual Programa ou ação da SPM, dentro da lista dos
programas avaliados, a respondente considera o primeiro mais importante
290
Gráfico 7: Principais iniciativas da SPM para superar as desigualdades no
mercado de trabalho (primeiro, segundo e terceiro lugar)
Cabe ressaltar que, além das alternativas colocadas na questão anterior, ha-
veria alternativas para a utilização das políticas públicas como ferramentas cen-
trais e formas de superação da divisão sexual desigual do trabalho e a desigualda-
de nos usos do tempo entre os sexos. De acordo com Bandeira e Petrulan (2016,
p. 58):
291
Considerações finais
Referências
292
______. Mudanças no uso do tempo na sociedade brasileira. Política & Trabalho, João
Pessoa, PB, n. 34, p. 73-106, 2011.
BANDEIRA, Lourdes Maria. Importância e motivações do estado brasileiro para pesqui-
sas de uso do tempo no campo de gênero. Revista Econômica, Rio de Janeiro, v. 12,
n. 1, p. 47-63, 2010.
______; OLIVEIRA, Eleonora Menicucci. Trajetória da produção acadêmica sobre as re-
lações de gênero no grupo de trabalho e política. Ciências Sociais Hoje, São Paulo,
v. 1, p. 52-69, 1991.
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296
Mulheres na política, as conferências
e o ciclo democrático
Flávia Biroli1
297
Em suas diferentes frentes, esse processo político incide sobre variáveis que
foram consideradas fundamentais para a redução das desigualdades em todo o
ciclo democrático, que se acentuou nos anos 2000 (ARRETCHE, 2018). A consti-
tucionalização de direitos fundamentais nas áreas de saúde, educação, seguridade
e moradia produziu o contexto legal de implementação de políticas públicas que,
por sua vez, geraram expectativas sociais com papel significativo em um contexto
eleitoral plural. A existência de partidos de esquerda competitivos, agora colo-
cada em xeque com a criminalização e desconstrução do PT, também foi vista
como um fator na incorporação da agenda distributiva por partidos em um amplo
espectro ideológico. Pode-se, ainda, compreender que, em conjunto, esses fato-
res estabeleceram limites à incorporação da agenda neoliberal do Consenso de
Washington, durante os anos 1990, e foram importantes para a construção do
ambiente político que levaria o PT ao poder nas eleições de 2002, com legitimida-
de para implementar novas políticas e aprofundar políticas de caráter distributivo
já existentes.
Encerrando um ciclo, o ano de 2016 nos legaria um sistema político menos
plural, um contexto ético-político alargado “à direita”, ampliando a expressão de
visões antidemocráticas e anti-igualitárias, e limites rígidos para a manutenção de
políticas de caráter distributivo, transformados em norma constitucional válida
por vinte anos pela Emenda Constitucional 95.
A agenda de gênero passaria a estar em disputa mais abertamente desde
o início dos anos 2000, de um lado porque nesse período ganharia expressão a
reação, capitaneada por setores da Igreja Católica, à legitimidade da agenda de gê-
nero e da diversidade sexual nas conferências das Nações Unidas dos anos 1990;
de outro porque a “politização reativa” (VAGGIONE, 2016), no ambiente nacio-
nal, assumiria crescentemente um caráter de reação aos governos do PT. Isso se
deu justamente pelo fato de os governos petistas, em um contexto de ampliação
da participação dos movimentos sociais que é discutido neste livro, terem incor-
porado mais diretamente essas pautas da perspectiva dos movimentos feministas
e LGBT que atuaram no âmbito estatal no período e que foram, historicamente,
bases sociais do partido.
Mas é no processo aberto com a deposição de Dilma Rousseff que a reação
às agendas da igualdade de gênero e da diversidade sexual se tornaria mais aguda
dentro do Congresso e em alguns setores da sociedade brasileira. Mobilizada por
grupos religiosos reacionários, numa aliança entre católicos e evangélicos que de-
fine o padrão nacional da campanha contra a chamada “ideologia de gênero”, co-
loca em xeque ao mesmo tempo as agendas mencionadas, a produção de conhe-
cimento normativamente referenciada por elas e a legitimidade dos movimentos
298
feministas e LGBT como atores políticos (BIROLI, 2018a). Nesse processo, este-
reótipos de gênero que pareciam marginais no debate público brasileiro voltaram
às páginas de jornais e revistas de circulação nacional e circularam em outros
espaços de informação e conexão (BIROLI, 2016).
O ano em que Rousseff foi deposta corresponde também a uma fronteira
nas relações entre os movimentos feministas e o Estado. Em diferentes graus, es-
ses movimentos atuaram no ambiente estatal, participando do processo de cons-
trução do Estado e da consolidação do pacto social distributivo, em todo o ciclo
democrático. O estreitamento das relações entre feminismos e Estado pode ser
tomado, inclusive, como um dos aspectos que caracterizam o que entendo ter sido
um ciclo dentro do ciclo democrático, isto é, o período iniciado com a chegada
do PT ao Governo Federal, em 2003, em que se fortaleceu o caráter distributivo
e participativo do Estado. Nesse período, a maior permeabilidade do Estado aos
movimentos sociais foi expressa de diversas formas, sendo uma delas a ativação
das Conferências de Políticas Públicas. No caso dos movimentos feministas e de
mulheres, as Conferências de Políticas para Mulheres foram um espaço privilegia-
do desse trânsito dos movimentos no ambiente estatal. Compuseram o complexo
institucional-participativo de promoção da agenda da igualdade de gênero e racial
neste ciclo dentro do ciclo, operando em conjunto com a Secretaria Especial de
Políticas para Mulheres (SPM) e com a Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (Seppir), ambas criadas no ano de 2003 e que tiveram status
de ministério até o início de 2016, quando a reforma ministerial realizada ainda
no governo de Rousseff, já sob forte pressão, as fundiu à Secretaria de Direitos
Humanos.
Embora os obstáculos à participação política das mulheres tenham se man-
tido durante todo o período, posicionando-nos entre os países com os piores índi-
ces de representação feminina no contexto das Américas e também mundialmen-
te, o ciclo democrático permitiu a construção de novos direitos, em conquistas
que resultaram da atuação política sistemática das mulheres nos movimentos, no
âmbito estatal e no ambiente transnacional. Novamente, os anos 2000 veriam essa
participação ampliar-se na medida em que aumentaria a oportunidade de parti-
cipação das feministas no ambiente estatal. As reações de caráter conservador, de
maneira contraditória, reconhecem a importância dos movimentos como atores
políticos enquanto tentam deslegitimar sua agenda e sua atuação (BIROLI, 2018b,
cap. 5).
299
O ciclo democrático, contexto das disputas
300
Ao mesmo tempo, as novas formas de participação previstas na carta de
1988 estabeleceram o arcabouço institucional para uma relação renovada entre
Estado e movimentos sociais, que seria ativada sobretudo a partir do início dos
anos 2000. As Conferências de Políticas Públicas são um exemplo de como isso
se daria.
301
reprodução, expondo a posição das mulheres nas relações de poder e mobilizando
as clivagens de classe, raça e sexualidade.
A defesa do direito universal à saúde, na forma de um Sistema Unificado de
Saúde (SUS), é um dos pontos relevantes para se compreender as diferentes con-
cepções e dimensões da igualdade que foram mobilizadas. A Carta das Mulheres
defendia a criação do SUS; a gestão e fiscalização desse sistema pela população
organizada em Conselhos, por meio dos quais participaria de decisões sobre pro-
gramas e financiamento; a garantia de Assistência Integral à Saúde da Mulher
em todas as fases de sua vida, “independentemente de sua condição biológica de
procriadora”, através de programas governamentais formulados, implementados e
controlados com a participação das mulheres; vedava ao Estado e a entidades es-
trangeiras e nacionais, públicas ou privadas, a interferência no exercício da sexu-
alidade e ações para o controle da natalidade. Por fim, o direito ao aborto, dados
os obstáculos encontrados, ficou submerso na defesa do direito das mulheres a
conhecer seu corpo e a decidir o que nele se passa e na pauta da “livre opção pela
maternidade”.
Não há um vácuo entre essa luta e os anos 2000, mas mudanças nos pa-
drões de interação com o Estado. Eles se explicam pela menor permeabilidade do
Estado brasileiro à atuação feminista a partir do final dos anos 1990, representa-
da pela redução do recursos e enfraquecimento institucional do CNDM, por um
lado. Por outro, no entanto, abrem-se novos processos de ação a partir da cen-
tralidade adquirida pela agenda de gênero e antirracista no ambiente transnacio-
nal. A “confluência perversa” (DAGNINO, 1994) entre a competência e potência
dos movimentos e a agenda neoliberal produziu uma centralidade despolitizada.
Adaptada ao “receituário neoliberal de muitos governos latino-americanos e insti-
tuições intergovernamentais no pós-Consenso de Washington” (ALVAREZ, 2014,
p. 30), a agenda mais radical dos feminismos latino-americanos pôde ser transfi-
gurada em pautas como a do “empoderamento das mulheres” (FALQUET, 2011,
p. 121). A mobilização de agendas fortalecidas nesse ambiente não foi, no entanto,
limitada aos pressupostos neoliberais. Isto é, organizações e lideranças ultrapassa-
ram o espaço reservado a elas, apresentando também pautas alternativas e cons-
tituindo-se, como atores políticos, em tensão com o enquadramento estabelecido.
Por isso me parece fundamental registrar, retomando discussão feita an-
teriormente (BIROLI, 2018b), que foi também nos anos 1990 e no processo de
mobilização na esfera internacional que foi criada uma das principais coalizões
feministas de abrangência nacional, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB),
fundada em 1994, segundo documentos da própria organização, “para coordenar
as ações dos movimentos de mulheres brasileiras com vistas à sua consolidação
como sujeito político” na Conferência de Beijing. A história da AMB é, de certo
302
modo, a história desse cenário complexo de que venho tratando. Tem atuado nas
esferas internacional e nacional, participando formalmente de processos políti-
cos, com presença em Conselhos e Conferências. Ao mesmo tempo, atua na po-
tencialização e organização dos movimentos, de marchas e protestos, e apresenta
uma agenda radical de luta antirracista e anticapitalista conectada à agenda de
luta das mulheres e da população LGBT. “Democratização radical do Estado no
Brasil”, “controle social da população em todos os níveis de governo”, “igualdade
de direitos e boas condições de vida para as mulheres, garantindo solidariedade e
promovendo justiça social, econômica e ambiental, contrapondo-se à perspectiva
neoliberal nos processos de desenvolvimento da economia capitalista na região”,
são pontos enunciados como objetivo permanente da organização.2
Em 2000, seria fundada a Marcha Mundial de Mulheres, originada do mo-
vimento “2000 razões para marchar contra a pobreza e a violência”. O destaque
conjunto à pobreza e à violência é significativo aqui. Segundo os documentos dis-
poníveis, a Marcha defende “a visão de que as mulheres são sujeitos ativos na
luta pela transformação de suas vidas e que essa luta está vinculada à necessi-
dade de superar o sistema capitalista patriarcal, racista, homofóbico e destrui-
dor do meio ambiente”.3 É certo que um referencial programático radical não
garante radicalidade na atuação efetiva, dados os constrangimentos que existem
quando mulheres que são parte desses movimentos atuam no âmbito estatal e nas
organizações internacionais, em que pesa também o acesso a financiamentos que
contribuem para a viabilidade e longevidade das organizações. Pode, no entanto,
modular ações e incidir sobre as esferas formais de participação, o que ajuda a
explicar a radicalidade da agenda das conferências realizadas no período.
Assim, os movimentos feministas brasileiros adentram os anos 2000 car-
regando as ambivalências da década anterior. Também se recoloca a questão da
relação com o Estado e do grau de autonomia dos movimentos em um novo con-
texto de oportunidades, aberto com a chegada do PT ao Governo Federal. Com a
redemocratização, a fronteira entre a atuação no âmbito estatal e o ativismo dos
movimentos se tornaria mais porosa, devido aos novos dispositivos de partici-
pação (LAVALLE; SZWAKO, 2015), como dito anteriormente. Nos anos 2000,
entretanto, é que se abriria um período de “permeabilidade inédita do Estado”
(ABERS; SERAFIM; TATAGIBA, 2014) aos movimentos, uma das características
do que venho chamando de ciclo dentro do ciclo.
303
Feminismos nas Conferências
304
Embora se trate de um grupo fortemente engajado, assim, na participação
estatal e na política partidária, ele não se destaca fortemente do conjunto mais
amplo das mulheres no que diz respeito às barreiras para tomar parte na política
eleitoral, candidatando-se. Tratando-se de mulheres e, sobretudo, das negras (que
são cerca de metade das participantes das conferências analisadas e quase 70%
quando se consideram apenas as participantes da sociedade civil, sem contabi-
lizar aquelas que integram governos), atividade política intensa e engajamento
partidário não se traduzem em candidaturas e em sucesso eleitoral. Ainda que
sejam ativas em associações da sociedade civil, na participação estatal e, em sua
maioria, filiadas a partidos políticos de esquerda, as barreiras para a participação
político-eleitoral parecem incidir também sobre elas. A forte identificação com o
feminismo também não as peculiariza nesse quesito.
Como escreveu Danusa Marques em seu capítulo neste livro, “a principal
forma de atuação política [dessas mulheres] é não eleitoral e articulada a mo-
vimentos e associações da sociedade civil, como os movimentos de mulheres e
sindicatos”. Pode ser, alerta a autora, que a participação seja um elemento na cons-
trução de candidaturas posteriormente, o que teria que ser investigado. E, se as
Conferências fazem parte da própria dinâmica de construção dos feminismos no
período, parece ser um ponto-chave, de fato, compreender em que medida essa
experiência coletiva se desdobrará em candidaturas de mulheres. O ponto é que,
para as mulheres, filiação a partido e altos níveis de engajamento político não cor-
respondem à integração competitiva para a concorrência eleitoral, como exposto
por Marques.
Por outro lado, os dados indicam que pode existir uma peculiaridade no
perfil das participantes se consideramos a multiplicação dos campos feministas.
Se, desde os anos 1970, os feminismos têm se mostrado diversos em suas posi-
ções quanto à aproximação de partidos e do Estado, vista como um risco para
a autonomia dos movimentos, no contexto das Conferências há um elemento a
mais a ser analisado. Há uma correlação significativa entre a participação, a filia-
ção ao PT e a partidos aliados no governo, como o PCdoB, e a identificação com
as políticas assumidas pelo governo no período. Ao mesmo tempo, predominam
as mulheres adultas, entre 32 e 59 anos, e a representação das jovens é pequena,
levando a considerações, como as que foram feitas neste livro por Laura Martello,
sobre a impermeabilidade desses espaços de participação a jovens que são parte
importante do processo de multiplicação dos campos feministas. Pode-se refletir,
assim, sobre a distância entre as experiências de participação institucional e os
padrões renovados de atuação política entre feministas jovens que compõem co-
letivos em todo o país. Os dados da pesquisa parecem indicar filtros de ao menos
305
dois tipos na trajetória política das mulheres atuantes politicamente no período,
envolvidas em grande medida com movimentos e organizações feministas: (1)
filtro no trânsito das jovens feministas dos coletivos e movimentos para a partici-
pação estatal, uma vez que, entre as primeiras, pode haver menor engajamento na
política partidária, algo que parece ter sido chave para o acesso às Conferências;
(2) filtro no trânsito das feministas, presentes ou não em espaços de participação
como as Conferências, para a competição eleitoral, uma vez que atuar politica-
mente e fazê-lo nos espaços estatais não significam algo que esteja, para as mu-
lheres feministas (e para a maioria de mulheres negras presentes na conferência),
relacionado a uma atuação eleitoral como candidatas.
Vale, ainda, observar outros aspectos da composição etária das Conferências
analisadas neste livro. Embora a ampla maioria das mulheres que delas participa-
ram se declare feminista, é entre as delegadas jovens, de 18 a 25 anos, que, em
2016, 100% se declararam feministas. Laura Martello nos mostra que essa adesão
se repete apenas entre as que têm mais de 67 anos. Declarar-se feminista carrega
diferentes sentidos, no entanto. Nem todas são a favor da descriminalização do
aborto, embora a maioria o seja. E, nesse ponto, a incidência da religião entre as
participantes parece ser um elemento importante. Visões de mundo religiosas, é
bom lembrar, não compõem apenas os segmentos conservadores e antifeministas.
Constituem também os valores e atitudes de mulheres que se declaram feminis-
tas, situam-se ideologicamente no campo da esquerda e dedicaram seu tempo à
construção da agenda de políticas para mulheres. Penso em duas frentes em que
essa conexão pode ser explorada. De um lado, visões religiosas podem limitar e
constranger atitudes afins aos feminismos; de outro, em sentido distinto, a religio-
sidade de mulheres empenhadas na construção de políticas de Estado com forte
orientação feminista nos mostra que é possível uma expansão de valores feminis-
tas para além das fronteiras entre pessoas religiosas e não religiosas. Se a laicidade
se mostra inegociável historicamente para a promoção de direitos para as mu-
lheres e para as pessoas LGBT, os pertencimentos religiosos dos indivíduos não
implicam, em si, uma recusa desses direitos e da atuação política em sua defesa.
Outra frente na análise dos valores das participantes, em sua relação com
os feminismos, foi explorada por Solange Simões em seu capítulo. A autora nos
lembra de que os movimentos de mulheres brasileiras expõem alianças bem-su-
cedidas entre diferentes segmentos, com forte participação de mulheres sindica-
lizadas, negras e integrantes de movimentos negros. As posições reveladas pelas
participantes no survey que compôs a pesquisa mostram, no entanto, que o femi-
nismo é visto por elas de diferentes formas, com menor ou maior aproximação
de visões liberais, igualitárias e/ou interseccionais. A forte presença da associação
306
entre igualdade de gênero e trabalho e entre feminismo e igualdade de classe tem
como contraponto, segundo a análise feita por Simões, a menor atenção ao racis-
mo e à homofobia. Um dado relevante, também destacado pela autora, é o fato
de que, entre as mulheres que disseram engajar-se em algum ativismo para além
do próprio feminismo, 43% atuem em sindicatos e 35% em movimentos negros.
É possível, no entanto, que, menos do que exclusões, esses dados revelem
o forte compromisso histórico dos feminismos brasileiros com a construção de
um país igualitário, remontando ao que discuti no início do texto – o compro-
misso com a universalização de direitos, com um pacto social distributivo, com a
democratização do Estado – e, ainda, à filiação da maior parte das participantes
a partidos de esquerda. Pode ser importante, é claro, refletir sobre como ampliar
as conexões entre a agenda distributiva e as agendas antirracista e da diversidade
sexual, de modo que amplie a abordagem antipatriarcal. Trata-se, ao que parece,
de uma agenda em aberto, para utilizar a expressão de Johanna Monagreda em
seu capítulo sobre gênero e raça nas Conferências. Como dizem Marlise Matos,
Breno Cypriano e Marina Brito também neste livro, a complexidade das opressões
interseccionais precisa ser levada em conta de maneira mais aprofundada na ava-
liação das políticas de Estado implementadas e de seus efeitos. E, de forma mais
ampla, parece necessário fazer frente aos retrocessos em curso hoje, de modo
que fortaleça o que definiram como o “nó estratégico das políticas de gênero e
feministas”, isto é, sua característica potencialmente antipatriarcal, antirracista e
antiLGBTfóbica.
Nesse ponto, é possível tocar em uma temática transversal a todo o livro,
a análise do caráter patriarcal do Estado e dos limites ao processo de despatriar-
calização – ainda que em um contexto favorável, de ampliação da participação
e de capilarização social do feminismo. A indagação que, entendo, coloca-se a
partir de muitas das análises apresentadas é em que medida a atuação feminista
no ciclo democrático e, em especial, no ciclo democrático que se abriu com a
chegada do PT ao Governo Federal, produziu políticas capazes de incidir sobre
o Estado, transformando-o. Aproximando-se de outra forma da mesma questão,
os organismos de políticas para mulheres, as conferências e os Planos de Políticas
Públicas produziram políticas de governo e agendas com baixa permanência em
circunstâncias de mudança política ou políticas que transformaram, mesmo que
em medida pequena, a “ossatura” do Estado?
De maneira geral, os textos parecem apontar para a tendência de despatriar-
calização do Estado, enquanto analisam criticamente seus limites. A “ossatura”
patriarcal do Estado é atualizada nas resistências conjunturais às transformações,
ativadas no período de maior abertura à agenda feminista e ampliadas após a
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deposição de Dilma Rousseff, em 2016. Schuma Schumaer, em seu capítulo, vê
na conjuntura política – e, eu diria, no equilíbrio de forças que a caracterizou –
limites para a intervenção feminista no campo estatal. Essa intervenção não teria
permeado “de forma efetiva a estrutura do Estado para a implantação de políticas
mais permanentes”. Assim, o reconhecimento do protagonismo do feminismo nas
transformações políticas, que ela ressalta, parece apresentar-se sempre em con-
junto com a necessidade de compreendermos as atualizações do patriarcado no
Estado e no cotidiano da sociedade.
Um ponto que me parece fundamental é que, nas diversas análises deste
livro, o diagnóstico dos limites à despatriarcalização do Estado não suspende a
importância do Estado – das instituições em sentido mais abstrato, das políticas
públicas e da alocação de recursos para essas políticas – para a superação das
desigualdades de gênero. Na construção de pesquisas que promovem evidências
importantes, como as pesquisas de uso do tempo, discutidas no capítulo escrito
por Breno Cypriano, no processo de construção dos organismos de políticas para
mulheres, analisado em detalhes nos textos de Débora Gonzalez e Layla Carvalho,
revelam-se ao mesmo tempo os padrões da relação entre feminismos e Estado no
período e a relevância incontornável do Estado.
É, sem dúvida, de grande relevância que no ciclo dentro do ciclo democrá-
tico o Estado tenha, como dizem Matos, Cypriano e Brito, assumido a “respon-
sabilidade de implementar políticas públicas que tenham como foco as mulheres,
a consolidação da cidadania e a igualdade de gênero”, uma vez que “a atuação do
Estado, por meio da formulação e implementação de políticas, interfere na vida
das mulheres, ao determinar, reproduzir ou alterar as relações de gênero, raça e
etnia e o exercício da sexualidade”.
As Conferências aqui analisadas ocorreram em um período em que essa
responsabilidade foi assumida, ainda que os efeitos dessa responsabilização esta-
tal tenham sido limitados pela conjuntura política e pela “ossatura” patriarcal do
Estado. O que ocorre quando o ciclo democrático se encerra? Em que medida o
processo atual de fechamento da democracia tem o gênero como um elemento
central? Entendo que sim.
A centralidade do gênero no golpe de 2016 vai, parece-me, muito além
da campanha misógina contra Rousseff e da ampliação dos estereótipos de gê-
nero e de visões anti-igualitárias no debate público. No momento em que este
livro é finalizado, o Estado brasileiro se desresponsabiliza, em larga medida, de
sua condição de promotor de relações de gênero mais igualitárias. Isso ocorre
com o desmonte de organismos de políticas para mulheres, que têm estrutura
e recursos reduzidos. A adoção de uma agenda radical de austeridade também
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incide negativamente sobre a construção da igualdade de gênero, uma vez que a
redução da oferta de equipamentos públicos e de recursos no âmbito da saúde,
da educação e da seguridade afeta especialmente as mulheres, que são as princi-
pais responsáveis pelo cuidado e são, assim, oneradas de maneira singular pela
mercantilização e pela transferência de mais responsabilidades para as unidades
familiares. Políticas de governo que se definem, ao mesmo tempo, por alianças
com setores reacionários e pela ruptura do diálogo com os movimentos feminis-
tas também incidem no ambiente social, somando-se a resistências à despatriar-
calização e ampliando-as, em vez de fortalecer o papel do Estado na redução das
desigualdades e das opressões.
Apesar disso, os movimentos feministas têm se fortalecido. Plurais e capila-
rizados, contam hoje com as experiências nos espaços de participação institucio-
nal, entre elas as das Conferências aqui analisadas. Renovaram-se nos encontros
que um período de maior abertura à agenda de gênero e da diversidade sexual
produziram, nas próprias Conferências, nas marchas das Vadias, das Margaridas,
das Mulheres Negras, renovaram-se também nos debates públicos que se deram
em diversos espaços e que forçaram a entrada da temática de gênero nos meios de
comunicação. O encerramento de um ciclo democrático não significou, é certo,
a anulação dos feminismos como atores políticos ou a restrição de seu potencial.
Referências
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Latina. Washington, DC: Center for Latin American & Latino Studies, American
University, 2016. p. 18-52.
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esta obra foi composta
em Minion Pro 11/14
pela Editora Zouk e impressa
em papel Offset 129g/m2
pela gráfica Rotermund
em agosto de 2018