Você está na página 1de 314

copyright © 2018 editora zouk

Projeto gráfico e Edição: Editora Zouk


Revisão: Tatiana Tanaka
Capa: Amí Comunicação & Design

Dados Internacionais de Cata Dados Internacionais de Catalogação


na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

M433q Matos, Marlise

Quem são as mulheres das políticas para as mulheres no Brasil: expressões


feministas nas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres Vol 2 /
Marlise Matos, Sonia E. Alvarez. - Porto Alegre, RS : Zouk, 2018.
312 p. : il. ; 16cm x 23cm.

Inclui índice e bibliografia.
ISBN: 978-85-8049-067-1

1. Ciência Política. 2. Sociologia. 3. Mulheres. 4. Feminismo. I. Alvarez,


Sonia E. II. Título.

2018-1129 CDD 305.42


CDU 392

Índice para catálogo sistemático:


1. Ciência política : Mulheres 305.42
2. Sociologia : Mulheres 392

direitos reservados à
Editora Zouk
r. Cristóvão Colombo, 1343 sl. 203
90560-004 – Floresta – Porto Alegre – RS – Brasil
f. 51. 3024.7554

www.editorazouk.com.br
Sumário

Introdução
Solange Simões
7

Os movimentos feministas ontem e hoje no Brasil:


desafios da sua institucionalização
Schuma Schumaher
21

As mulheres das Conferências Nacionais de Políticas


para as Mulheres são feministas?
Solange Simões
57

As CNPMs e a configuração do campo feminista: sidestreaming e


mainstreaming através do “feminismo estatal participativo”
Marlise Matos e Sonia E. Alvarez
87

A percepção das relações de gênero e raça das delegadas em perspectiva


comparada nacional e entre elas e entre as duas conferências
Marlise Matos e Ian Prates
135

Mulheres negras na institucionalização de políticas contra o racismo e o


sexismo: trajetórias e desafios de uma agenda em aberto
Johanna Katiuska Monagreda
171
O debate sobre legalização do aborto e a Inclusão de diferenças
nas 3ª e 4ª Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres:
direito ao corpo e feminismos jovens
Laura Martello
211

Divisão sexual do trabalho e usos do tempo:


a inserção temática e o feminismo acadêmico na SPM e as
percepções das mulheres participantes das CNPMs no Brasil
Breno Cypriano
257

Mulheres na política, as conferências


e o ciclo democrático
Flávia Biroli
297
Introdução

Solange Simões1

O volume 2 desta coletânea de capítulos que analisam os dados da pesquisa


“As mulheres das políticas para as mulheres: quem são aquelas que constroem o
feminismo estatal participativo brasileiro?”, coloca o foco diretamente no enten-
dimento das concepções e práxis dos feminismos das delegadas das Conferências
Nacionais de Políticas para Mulheres (CNPM) de 2011 e 2016.
A pergunta inicial foi, portanto: As delegadas das CNPM 2011 e 2016 são
feministas? Responder esta questão requereu incluir e responder outras questões
de pesquisa também levantadas e analisadas nos capítulos deste volume: Quais
são as definições e concepções do feminismo das delegadas? Quais são seus valores?
Quais são suas práxis? Quais são as trajetórias dos seus ativismos? Quais são suas
relações com o Estado e com outros movimentos e instituições da sociedade civil?
Quais são os contextos nacionais e internacionais nos quais seus ativismos emergi-
ram e passaram por transformações? Quais são suas principais limitações e desafios?
Ao fazermos todas estas indagações sobre concepções e práticas das dele-
gadas, partimos do entendimento que o feminismo tem sido tanto teoria quanto
práxis que englobam visões competitivas, estratégias de disputa e a interação de
várias atoras e organizações políticas – todas habilitadas e constrangidas por fa-
tores estruturais e históricos/políticos – e falamos neste Volume, portanto, em
feminismos no plural e em feminismos contextualizados.
Assim, apesar da centralidade dada a questões específicas por cada um dos
capítulos, são vários os temas e abordagens comuns ou convergentes que per-
passam as reflexões e análises dos feminismos neste Volume: com destaque para
os contextos sociopolíticos – tanto nacional quanto internacional – nos quais os
feminismos brasileiros e, entre eles, o feminismo estatal participativo, emergem
e se transformam; as relações entre o Estado e a sociedade civil; as relações en-
tre feminismo e Estado; as relações, disputas e convergências intra-sociedade civil
e entre os movimentos feministas, entre outros temas. Consequentemente, nes-
ta Introdução, ao invés de abordar cada capítulo em particular e segundo sua

1   Professora Associada do Departamento de Estudos de Gênero e do Departamento de Sociologia


da Eastern Michigan University e Coordenadora do Grupo de Estudos de Gênero da mesma
Universidade.

7
ordenação no Volume, ressaltaremos as convergências de temas e abordagens
centrais aos feminismos nas análises de questões específicas levantadas por cada
autor/a e capítulo.
Os feminismos plurais presentes nas CNMPs 2011 e 2016 e analisados neste
Volume refletem as transformações de gerações de ativistas e das chamadas on-
das dos feminismos no Brasil nas últimas quatro décadas. Dadas as inter-relações
entre as dimensões local e o global, as articulações entre os contextos nacionais
e os contextos internacionais são imprescindíveis para as concepções e práticas
dos feminismos das delegadas as CNPMs 2011 e 2016. No Capítulo 1, “Os mo-
vimentos feministas ontem e hoje no Brasil: desafios da sua institucionalização”,
Schuma Schumaher nos mostra como os movimentos feministas no Brasil são
constituídos e são, ao mesmo tempo, parte constitutiva do combate ao regime
militar na década de 1970, da transição para a democracia nos anos 80, da demo-
cratização do país nos anos 90, dos processos de institucionalização e formulação
de políticas públicas promovidos pelos governos petistas entre 2003 e 2016, bem
como dos contextos internacionais, especialmente as conferências mundiais sobre
mulheres, direitos humanos, racismo e população organizados pela ONU e os
respectivos acordos assinados e ratificados pelos governos brasileiros. Ao analisar
as trajetórias dos feminismos no Brasil situando-os em contextos históricos e só-
cio-políticos nacionais e internacionais diferenciados, o Capítulo 1 utiliza a noção
de “ondas” mas, ciente das limitações desta metáfora, o capítulo não apresenta
uma perspectiva de movimentos sem continuidade e sem diversidade interna. De
fato, não ignorando as críticas a metáfora das ondas, veremos que é possível utili-
zá-la para diferenciar os contextos históricos, políticos e econômicos nos quais os
direitos das mulheres e a igualdade de gênero são conceitualizados e promovidos
por uma ampla gama de atoras, organizações e movimentos. Uma “onda” pode
não significar necessariamente uma compreensão unificada ou linear do feminis-
mo, nem implicar na delimitação temporal de tipos particulares de ativismo de
gênero. Podemos utilizar a metáfora da “onda” no Brasil como correspondendo
ao “contexto” econômico, social e político mais amplo, que possibilita e ao mesmo
tempo constrange o processo da construção de identidades de gênero, das rela-
ções de gênero e o correspondente alargamento da agenda de ativismo de gênero.
Neste volume, abordagens e agendas de lutas perpassam as ondas, e as on-
das se distinguem mais pela maior centralidade, visibilidade e (re)significação que
alguns temas e atoras adquirem, mesmo mediante a permanência ou continuida-
de da relevância das várias agendas. Na minha leitura dos capítulos deste Volume,
abordagens e questões – como a relação dos contextos local e global, a relação entre
Estado e sociedade civil; o mainstreaming ou transversalidade, o sidestreaming e
a interseccionalidade – não apenas têm continuidade, mesmo que em renovadas

8
concepções ou (re) significações, entre as “ondas” ou contextos históricos políti-
cos, como também aparecem interligados nos diferentes contextos onde adqui-
rem uma maior ou menor centralidade.
A relação dos contextos local e global é crucial na explicação da emergên-
cia do movimento feminista no Brasil apresentada no Capítulo 1, seja através
da experiência e exposição às ideais feministas de militantes de esquerda exila-
das que retornaram ao país, seja na organização para a participação na primeira
Conferência Mundial das Mulheres, organizada pela ONU na Cidade do México
em 1975. Ademais, o contexto internacional é fator fundamental no entendimen-
to não apenas da emergência da segunda onda do movimento feminista no Brasil,
mas também para a ampliação da agenda feminista no Brasil e no mundo. Como
argumenta Shuma Schumaher, o movimento feminista teve sua agenda ampliada
em virtude do ciclo de Conferências promovido pelas Nações Unidas, que discu-
tiram e deliberaram sobre os direitos das mulheres e igualdade de gênero (México
1995, Copenhagen 1980, Nairobi 1985, Beijing 1995) mas que também incluíram
outros temas de relevância global como o desenvolvimento sustentável e justiça
ambiental (Rio de Janeiro 1992); direitos humanos (Viena 1993); população e de-
senvolvimento (Cairo 1994); racismo, xenofobia e intolerância (Durban, 2001).
É também importante notar que a Plataforma de Beijing, resultante da
Conferencia Mundial de Mulheres da ONU de 1995, possibilitou um movimento
para além das divergências entre as prioridades defendidas por feministas dos
países do Globo Sul (principalmente econômicas e de classe) e dos países do
Globo Norte (mais centradas no direito ao aborto, sexualidade, divisão sexual do
trabalho) que marcaram a primeira Conferencia Mundial de Mulheres da ONU
em 1975. Assim a Plataforma de Ação de Beijing de 1995 ampliou a agenda do
feminismo transnacional ao adotar uma abordagem que ao demandar a trans-
versalidade já apontava também para uma agenda interseccional, resultante do
dialogo norte-sul, – antes mesmo da corrente quarta onda (como conceituada
no capítulo 2) onde a interseccionalidade adquire centralidade. E também é im-
portante notar que há uma relação recíproca entre o local e o global – os femi-
nismos brasileiros não apenas foram impactados, mas também contribuíram e
influenciaram a emergência de um feminismo transnacional crescentemente in-
terseccional. O capítulo 1 ao descrever o processo de preparação dessas conferên-
cias, o qual fortaleceu os movimentos e suas articulações no país, mostra também
como o Documento das Mulheres Brasileiras para a IV Conferência Mundial
contribuiu para a ampliação da agenda feminista transnacional ao postular que
“a luta das mulheres não pode prescindir do enfrentamento ao capitalismo, ao pa-
triarcado, racismo e homofobia – que estruturam as desigualdades –, considerando

9
a diversidade regional, cultural, racial, étnica, etária, orientação sexual, deficiên-
cia, credo e inserção política de cada uma”. As relações dos contextos nacionais e
internacionais na produção de agendas feministas interseccionais – propiciando
uma maior centralidade ao questionamento da “categoria mulher” enquanto uma
categoria de gênero universal que ignora as diferenças raciais e de classe entre
as mulheres – também é analisada no capítulo 5, “Mulheres negras na institucio-
nalização de políticas contra o racismo e o sexismo: trajetórias e desafios de uma
agenda em aberto”. A autora, Johanna Katiuska Monagreda, analisa o impacto de
conferências regionais da América Latina e Caribe assim como as conferências
mundiais da ONU sobre mulheres (Nairobi 1985 e Beijing 1995) e sobre racismo
e discriminação (Durban 2001) argumentando que o momento mais importante
de reconhecimento das pautas das mulheres negras pelo feminismo nacional e
também de possibilidade de construção de uma agenda política que coloca no
centro a interseccionalidade das discriminações de gênero e raça, foi o processo
preparatório para a Conferência de Durban. Johanna Monagreda argumenta que
com suas intervenções internacionais “as mulheres negras ganharam um novo fó-
rum para levar as suas demandas, e essas demandas ganharam maior legitimidade
frente aos governos nacionais, principalmente, a partir dos acordos e planos de ação
resultados das Conferências Mundiais da ONU”. O capítulo 5 também nos ofere-
ce mais evidências para argumentarmos que a relação dos contextos nacionais e
internacionais é uma relação recíproca ou de mão dupla ao considerar as con-
tribuições das mulheres negras brasileiras à conferência de Durban através das
reivindicações preparadas pela Articulação de Organizações de Mulheres Negras
Brasileiras. Como ressalta Johanna Monagreda, podemos considerar como um
exemplo da força da participação das mulheres negras em Durban, o fato de Edna
Roland, da organização negra Fala Preta, ter sido escolhida como relatora oficial
da Conferência Mundial contra o Racismo. Ademais, como aponta o Capítulo 2
“As mulheres das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres são feminis-
tas?”, de minha autoria, no contexto do desenvolvimento do feminismo transna-
cional, há que se notar o pioneirismo das mulheres negras brasileiras no enten-
dimento da interseccionalidade, tanto enquanto teoria como enquanto práxis, ao
vivenciarem o gênero como intimamente interligado com sua identidade racial e
posições de classe.
Acentuando as conexões dos feminismos local e global, o Capítulo 2 busca
situar teoricamente e comparativamente, as definições de feminismo apresentadas
pelas mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro, em comparação com
as definições correntes e emergentes nas teorias e práxis do feminismo transna-
cional. O Capítulo 2 argumenta que os feminismos brasileiros, construídos por

10
várias gerações de mulheres, tem tido uma trajetória, convergente com as dos
feminismos do norte global e do sul global, que vão do feminismo dos direitos dos
anos setenta até o atual feminismo interseccional e emancipatório, o qual vai além
da afirmação dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero, e passa a utilizar
o conceito mais abrangente de justiça social para propor igualdade para toda a so-
ciedade, e não apenas para as mulheres. Para responder a questão inicial: As mu-
lheres das CNPM são feministas?, o Capítulo 2 explora as respostas à questão sobre
as definições de feminismo criando uma tipologia dos entendimentos do conceito
de feminismo pelas delegadas que incluem as categorias 1) Radical negativo, 2)
Igualdade de gênero, 3) Direitos, autonomia e empoderamento das mulheres, e
4) Emancipatória. Ainda buscando responder a questão inicial, em um segundo e
terceiro passos na análise são incluídos indicadores adicionais do feminismo das
delegadas: a) as suas atitudes (crenças e opiniões) em relação a questões relati-
vas às desigualdades não apenas entre mulheres e homens, mas entre as mulheres,
questões sobre desigualdades e discriminação com base na raça, classe, orientação
sexual, e identidade de gênero, e b) seus também seus índices de associativismo
politico e ativismo politico potencialmente intersecionais. O Capítulo 2 conclui
respondendo afirmativamente que as delegadas as CNPMs 2011 e 2016 são ma-
joritariamente feministas, e que seus feminismos são potencialmente interseccio-
nais e emancipatórios, em sintonia com o feminismo transnacional em teoria e
práxis. O capítulo nota que os movimentos feministas no Brasil e das delegadas
das CNPMs evoluíram através de vários contextos políticos e de uma diversidade
de ativistas e ativismos que exigiram múltiplos compromissos e alianças mais am-
plas – muito além de políticas de identidade estritamente definidas. Argumenta-
se que as identidades intersetoriais e as correspondentes afiliações organizacionais
múltiplas de ativistas evoluíram para o que chamamos de feminismo interseccio-
nal, no qual as intersecções geracionais e raciais são fortemente marcadas.
Cabe chamar aqui a atenção novamente para o capítulo 5, onde a autora
ressalta o papel crucial das mulheres negras – não apenas na chamada quarta
onda, mas já sendo colocando na década de setenta – para o desenvolvimento
de abordagens intersecionais nos movimentos feministas e, de maneira recíproca,
dos movimentos feministas para abordagens feministas nos movimentos sociais
e espaços de luta das mulheres negras: “Por um lado, o próprio discurso feminista
se diversificou, assumindo para si um amplo leque de assuntos que interessam à
realidade da vida das mulheres brasileiras: questões de classe, de reforma agrária,
moradia, trabalho doméstico passaram a ser parte da agenda feminista graças ao
fato das mulheres negras o disputarem para si e para o feminismo, se deslocando o
sujeito mulher. Por outro lado, os discursos feministas circularam nos mais diversos

11
espaços de luta dessas mulheres”. Como ainda mostra o capítulo 5, estas interco-
nexões entre movimento de mulheres negras e feminismo podem ser observa-
das no ativismo político e civil das delegadas negras na CNPM 2016 – os dados
do survey mostram que 48% das delegadas negras que participam de movimento
feminista também tem alguma interação com a luta antirracista, seja através de
organizações do movimento negro misto, do movimento de mulheres negras, ou
participando de atividades e encontros.
Como foi colocado brevemente acima, o Capítulo 2, ao buscar responder
se o feminismo da maioria das delegadas é um feminismo potencialmente inter-
seccional e emancipatório, analisa as atitudes das delegadas em relação à discri-
minação de gênero e de raça e em relação à inclusão de raça, orientação sexual
e identidade de gênero na agenda do feminismo e mostra como as atitudes das
delegadas são em sua grande maioria inclusivas.
Por sua vez, no Capítulo 4, “A percepção das relações de gênero e raça das
delegadas em perspectiva comparada nacional e entre elas e entre as duas confe-
rências”, Marlise Matos e Ian Prates corroboram a predominância de atitudes ou
percepções de gênero e raciais mais progressistas e destradicionalizadas entre
as mulheres delegadas das CNPMs 2011 e 2016, mas buscam também explicar
o conservadorismo de uma minoria das delegadas. Teoricamente, o Capítulo 4
aposta fortemente na possibilidade da constatação da existência de um processo
em curso de destradicionalização societária através de um movimento dinâmico
de coexistência entre tradição e destradicionalização (manutenção da tradição,
re-tradicionalização e construção de novas tradições): “Desta forma, a tradição
passa a ser compreendida como aberta aos processos de agência humana, sendo,
pois, permanentemente reconstruída, reinterpretada, reinventada”. Empiricamente,
o Capítulo 4 busca responder duas questões centrais: 1) Seria possível identificar
percepções conservadoras e também tradicionais no que tange às relações de gênero
e raça para o eleitorado no Brasil e percepções de gênero e raciais mais progressistas
e destradicionalizadas entre as mulheres delegadas da 3ª e 4ª CNPMs?, e 2) Este tipo
de percepção e de valores é afetado por algum outro tipo de variável sócio-demográ-
fica, tal como escolaridade, renda e religião, por exemplo? Como? Quais são, afinal,
as principais variáveis que condicionam estes tipos de percepção em nosso país e
também entre as delegadas investigadas nesta pesquisa?
Para responder a primeira questão, os autores comparam as respostas a
questões de percepções sobre relações de gênero e raciais de um survey nacional
de eleitores realizada em 2010 com questões do surveys das CNPMs 2011 e 2016.
Mesmo reconhecendo possíveis problemas metodológicos relativos à comparabili-
dade entre os surveys (tais como diferenças entre os contextos políticos e culturais

12
e entre os enunciados das questões), os autores distinguem quatro dimensões ati-
tudinais medidas por questões incluídas nos três surveys: 1) o tradicionalismo de
gênero no espaço privado (sustento da família e divisão do trabalho doméstico);
2) a percepção sobre discriminação difusa de gênero e raça (preponderância de
preconceito e discriminação raciais); 3) o preconceito de raça focado em aspectos
cognitivos/motivação (aprendizagem e raça); e 4) a destradicionalização de gêne-
ro (homoafetividade e aborto). Nas quatro dimensões atitudinais sobre gênero e
raça, as delegadas das duas CNPMs apresentam valores percentuais com níveis
bastante superiores de destradicionalização do que a média nacional no eleitora-
do brasileiro.
Para analisar o processo de mudanças nas percepções e valores das delega-
das entre os anos de 2011 e 2016, adicionando novas questões atitudinais incluí-
das no surveys da CNPMs (mas não presentes no survey do eleitorado brasileiro
de 2010) os autores construíram dois índices: o Índice de Relações de Gênero nas
Esferas Privada x Pública e o Índice de Discriminação Difusa de Gênero e Raça.
Apesar das delegadas serem majoritariamente destradicionalizadas ou progressis-
tas nos dois índices, os autores destacam, entre outros achados, que as delegadas
das CNPMs são mais conservadoras no que tange às relações de gênero nas esfe-
ras privada x pública do que com relação à discriminação de gênero e raça.
Para responder a segunda pergunta de pesquisa sobre as causas ou deter-
minantes das percepções conservadoras ou progressistas, os autores, através de
análise multivariada, buscaram identificar os efeitos de dimensões independentes
sobre o comportamento dos dois índices. Entre 2011 e 2016 houve um aumento
do grau de destradicionalização com respeito às percepções medidas pelos dois
índices. Apesar do alto grau de destradicionalização das delegadas em geral, en-
tre os fatores explicativos, destaca-se o impacto das religiões, com as delegadas
protestantes e católicas tendo um grau um pouco mais elevado de conservado-
rismo nos dois índices tanto em 2011 quanto em 2016. No entanto, é importante
ressaltar que este e outros capítulos neste Volume nos permitem perceber uma
relação complexa entre religião e movimento de mulheres e feminismo. Como
veremos mais adiante, o Capítulo 3, “As CNPMs e a configuração do campo femi-
nista: sidestreaming e mainstreaming através do ‘feminismo estatal participativo’”,
de autoria de Marlise Matos e Sonia E. Alvarez, nos mostra que “a participação nos
movimentos religiosos é, e parece continuar a ser importante como porta de entrada,
socialmente legítima e autorizada, para fomentar e recrutar o ativismo político das
mulheres brasileiras”.
Contribuindo para as análise de valores, feminismo e religiosidade nes-
te Volume, no Capítulo 6, “O debate sobre legalização do aborto e a Inclusão de

13
diferenças nas 3ª e 4ª Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres: direito ao
corpo e feminismos jovens”, Laura Martello mostra que em ambas as Conferências
as delegadas mostraram-se majoritariamente favoráveis à descriminalização do
aborto, mesmo ainda sendo este um tema controverso entre as mulheres que
construíram as políticas para mulheres. A análise dos dados das CNPM 2016 nos
mostra que a descriminalização do aborto em todos os casos é a posição de mais
de 57% das delegadas, enquanto 28% é favorável a manutenção da lei como ela
se encontra atualmente. Se analisamos o posicionamento das mulheres mais jo-
vens, vemos uma diferença ainda maior, já que mais de dois terços das mulheres
até 24 anos são favoráveis a descriminalização do aborto em todos os casos. O
pertencimento religioso mostrou ser um fator de grande influência nas atitudes
em relação ao aborto, com as posições mais conservadoras sendo mais presen-
tes entre protestante e católicas do que entre as mulheres de outras religiões ou
ateias. As protestantes são as que mostram a maior taxa de apoio à manutenção
da lei como está (30% em 2011 e 44% em 2016), mas ainda há uma proporção
significativa que também é favorável a descriminalização em todos os casos (28%
em ambas as CNPMs). As católicas são majoritariamente favoráveis à descrimi-
nalização do aborto em todos os casos (38,3% em 2011 e 54% em 2016), seguido
pela manutenção da lei como está. Ao verificar que o posicionamento favorável à
criminalização em todos os casos apresenta uma taxa muito baixa, inclusive, entre
as católicas e as protestantes, Laura Martello argumenta que “a perspectiva social
das mulheres, enquanto grupo, ainda pesa mais que o seu pertencimento religioso”.
Reforçando esta interpretação dos dados, os resultados dos surveys mostram que
a autodeclaração como “feministas” e a participação em grupos de mulheres são
os fatores que mais influenciam as atitudes favoráveis ou contrárias a descrimina-
lização do aborto
No Capítulo 6, Laura Martello também vai acrescentar o fator geracional
à análise das percepções e feminismo e o articula com a crescente intersecciona-
lidade da quarta onda argumentando que ao transpassar as diversas estruturas e
espaços no campo do feminismo, e devido as suas forte orientação ao presente e
às experiências concretas, “a articulação das jovens feministas se dá na interseção
com outras categorias sociais, estando presentes suas experiências como jovens ne-
gras, jovens rurais, jovens lésbicas, jovens de origem popular e a partir da identifi-
cação com grupos culturais e ideológicos”. Contrariamente ao discurso recorrente
de que as mulheres jovens não se interessam pelo feminismo, na sua análise dos
dados do survey 2016, Laura Martello aponta que a totalidade das delegadas mais
jovens – de 18 a 44 anos – se consideram feministas. O Capítulo 6 também dis-
cute como os feminismos jovens se mobilizam intensamente em prol dos direitos

14
sexuais e reprodutivos e, em especial, em defesa do aborto legal, seguro e gratuito.
Como Laura Martello relata, no contexto dos empasses sobre as decisões relativas
ao aborto durante a 4a CNPM, foram feministas jovens que performaticamente
entraram na plenária, “a maioria com os seios desnudos, entoando cantos em defesa
da autonomia da mulher sobre o próprio corpo – impactando uma votação aparen-
temente empatada e levando o texto que versava sobre a legalização do aborto a ser
incluído na versão final das deliberações”. De maneira convergente, o Capítulo 1,
por sua vez, ao analisar as ondas do feminismo, não apenas afirma que A Marcha
das Vadias (um movimento internacional liderado por jovens feministas) revigo-
rou os feminismos, mas também ressalta a interessante continuidade de agendas
feministas da quarta e segunda ondas argumentando que nas Marchas das Vadias
“diferentes reivindicações de diferentes gerações de mulheres se encontraram nas
ruas, recuperando a irreverência que havia marcado a segunda onda feminista e re-
tomando palavras de ordem como ‘nosso corpo nos pertence’ ou ‘meu corpo, minhas
regras’ fazendo ecoar no presente as duras batalhas dos anos 1970”. Ressaltando a
importância das concepções e práxis renovadoras, no capítulo 6 Laura Martello
também chama a atenção para o fato da participação dos feminismos jovens nas
CNPMs 2011 e 2016 ter se dado através de um número muito reduzido de dele-
gadas. A autora desenvolve argumentos e análises que alertam para as consequên­
cias da subrepresentação das feministas jovens para as políticas para mulheres.
A relação entre Estado e sociedade e a relação feminismo e Estado (ou au-
tonomia e institucionalização) são temas que também perpassam vários capí-
tulos deste volume. Ressalta-se que o período de 2003 a 2016 foi marcado pelo
fortalecimento institucional da igualdade de gênero no país – a criação da SPM
– e a formulação de políticas por meio das Conferências e Planos Nacionais de
Políticas para as Mulheres criando uma nova relação de movimentos de mulheres
e feministas com e dentro do Estado – o surgimento do “feminismo estatal parti-
cipativo”. Uma das principais hipóteses de estudo é que esse novo processo brasi-
leiro – reconhecido internacionalmente como um dos projetos mais amplos para
a implementações das recomendações da Plataforma de Ação de Beijing sobre
desenvolvimento institucional e formulação de políticas – transformou a integra-
ção anterior de questões de gênero naquilo que Marlise Matos definiu no volume
1 como feminismo participativo de Estado. Nessa nova forma de feminismo e em
sua articulação com o Estado, houve uma participação de baixo para cima na de-
finição de questões, recursos, implementação e processos de monitoramento. No
período de 2003 a 2016, o Estado desempenhou um papel central na criação de
mecanismos participativos institucionais para promover a igualdade de gênero,
reunindo movimentos e organizações autônomas e promovendo sua participação
na tomada de decisões e políticas públicas.

15
O contexto internacional e, mais especificamente a Plataforma de Ação que
resulta da IV Conferência Mundial das Mulheres em Beijing 1995, também vai
ter um papel central na promoção da transversalidade (ou mainstreaming) dos
feminismos brasileiros. A noção de mainstreaming proposta em Beijing, envolve
fluxos “verticais” de atuação das feministas e dos seus discursos e práticas em
direção aos partidos, ao Estado e às instituições intergovernamentais, às arenas
onde se formulam, disputam e implementam projetos políticos e políticas públi-
cas. O capítulo 1 nos mostra como o governo Fernando Henrique Cardoso, com
o objetivo de implementar a Plataforma de Ação, firmou uma série de protoco-
los de cooperação com os Ministérios da Justiça, do Trabalho, da Educação e da
Saúde e elaborou, com a contribuição dos conselhos estaduais e municipais, as
estratégias para promover a igualdade. Contudo, a articulação “ideal” do contexto
internacional de promoção da transversalidade com o contexto político nacional
se dá apenas nos governos petistas (na terceira onda do feminismo na concepção
de Shuma Schumaher, ou quarta onda, na concepção de Marlise Matos), espe-
cialmente com a criação da Secretaria Especial de Políticas Para Mulheres, com o
status de ministério. É neste momento que a adoção da transversalidade e inicia-
tivas para a despatriarcalização do Estado se intensificaram com a criação de no-
vos mecanismos institucionais e formulação de políticas públicas para mulheres
com ampla participação da sociedade civil, com novas propostas de relação entre
Estado e sociedade, e entre feminismo e Estado.
No Capítulo 3, “As CNPMs e a configuração do campo feminista: sidestrea-
ming e mainstreaming através do ‘feminismo estatal participativo’”, Marlise Matos
e Sonia E. Alvarez buscam avançar uma posição teórica que reconhece interações
complexas entre Estado, sociedade política e sociedade civil, entre as próprias or-
ganizações dos movimentos e da sociedade civil em geral (dentre elas o feminis-
mo), e entre as formas mais institucionalizadas de organização política (sindi-
catos, entidades profissionais, por exemplo). O capítulo 3 traça as trajetórias, os
principais caminhos políticos trilhados e as formas de participação e articulação
das delegadas as CNPM 2011 e 2016, e delineia as relações das organizações que
elas representavam com outras entidades na sociedade civil e política e, também,
com variadas instâncias do Estado. Com isto, o capítulo analisa como o mains-
treaming ou fluxos verticais (em direção aos partidos e às instituições do Estado,
inclusive aquelas “híbridas”, como os conselhos, que tem representantes da socie-
dade civil e do Estado) se vinculam ao sidestreaming ou fluxos horizontais “para
configurarem um setor significativo do campo feminista brasileiro atual, cujos refe-
rentes principais são o Estado e as arenas de políticas públicas”.

16
As instituições/organizações que tramam a rede do sidestreaming feminista
das delegadas entrevistadas nessa pesquisa incluem as organizações do associati-
vismo comunitário (e sua diversidade temática que aparece através das distintas
questões com as quais lida: mulheres, moradia, bairro, donas de casa etc.), o mo-
vimento estudantil, o movimento negro, o movimento LBTG, o movimento de
juventudes, o movimento indígena, o movimento rural, além das organizações
sindicais e também das ONGs. E como exemplos de organizações que tramam
a rede do mainstreaming feminista as autoras incluem os conselhos (instituições
híbridas, mas que são viabilizadas pelo Estado), os partidos políticos, as entidades
de classe (tais como a OAB e o CRM), e as organizações do próprio Estado (seja
no Poder Executivo, no Legislativo ou no Judiciário).
O capítulo 3 analisa a multidimensionalidade das articulações entre sides-
treaming e mainstreaming mapeando quatro tipos de redes: 1) redes de trajetórias
(que identificaram o caminho das trajetórias do ativismo político das delegadas
entre as organizações e/ou movimentos dos quais elas participam); 2) redes de
participação (que representaram as formas organizativas dessa participação poli-
tica das delegadas); 3) redes de articulação (que descrevem graficamente as formas
como as organizações e movimentos nos quais as delegadas participam se articu-
lam entre si), e, finalmente; 4) redes de fluxos (que visaram mapear a direção dos
materiais e recursos que são produzidos pela organização/movimento do qual as
delegadas declararam participar).
As Redes de Trajetórias e suas interações mostram que quando as delegadas
chegam aos movimentos de mulheres, elas já passaram por outras formas de ati-
vismo anterior. Os movimentos feministas e de mulheres não se constituem nas
principais “portas de entrada” para a maioria das delegadas, mas estão presen-
tes nas trajetórias delas principalmente como seus elos intermediários. O mesmo
ocorre, em parte, com a participação em Conselhos que algumas vezes são elos
intermediários e em outros momentos também aparecem como pontos de chega-
da das trajetórias.
Outra descoberta central do Capítulo 3 foi que a principal base política
formadora do ativismo político das delegadas nas CNPMs brasileiras foi a parti-
cipação em movimentos estudantis e nos movimentos ligados à religião. Mas, ar-
gumentam as autoras, “talvez, o principal elemento analítico de significância que
precisa ser destacado sobre essas trajetórias refere-se à atuação das delegadas nos
movimentos negros e também no ativismo de redes de mulheres negras. Para 2016,
este ativismo se conformou em um ‘ponto de chegada’ das trajetórias das delegadas
da 4ª CNPM. Isso demonstra a inequívoca importância do ativismo das mulheres
negras na ocupação mais recente desses espaços das CNPMs”. Cabe lembrar aqui,

17
como é ressaltado no capítulo 5, que em ambas as Conferências, a participação de
mulheres negras (pretas e pardas) é percentualmente maior que o das delegadas
brancas além de ser superior, em termos percentuais, à distribuição de mulheres
negras no Brasil. Ademais, mais de dois terços em 2011 e mais da metade em 2016
das delegadas negras nas CNPM o fizeram como representantes da sociedade civil
(movimentos, redes, sindicatos etc.).
No caso das redes de Participação política, de maneira similar ao observa-
do para as redes de trajetórias e das interações entre as trajetórias, as principais
organizações de participação das delegadas são mais uma vez o movimento de
mulheres e feminista e movimentos relacionados à igreja/religião, mas aparecendo
no centro dessas redes a participação em partidos políticos. Merece aqui saliência
a força de interação entre os movimentos de mulheres e feminista e as redes de
mulheres negras, tanto em termos da quantidade maior das interações, quanto da
força dessas interações.
Em se tratando das redes de Articulação, as autoras destacam o fato de ter
sido constatada menor densidade das articulações de rede para o ano de 2016 em
comparação a 2011. Em 2011, a rede das articulações institucionais se estabeleceu
centralmente entre os movimentos de mulheres e feministas, associativismo comu-
nitário, movimento negro e conselhos. Já em 2016, apesar da trama de articulações
ser menor, ela se deu através das interações com o poder executivo, o associati-
vismo comunitário, os movimentos de mulheres e feministas e o movimento negro.
No caso das redes de Fluxos de materiais, de acordo com o survey 2011
assim como o de 2016, os movimentos feministas e de mulheres dos quais as de-
legadas participam produziram material para outros movimentos feministas e de
mulheres e a organização no 2º lugar para quem se produziu mais materiais ou
ações foi o movimento negro,
As autoras concluem que análises das redes reforçam alguns limites do ati-
vismo estatal participativo: “ele não pareceu alcançar formas de articulações que
pudessem funcionar como centrais para promover transformações substantivas nos
padrões hierárquicos e verticalizados das relações de gênero a partir do Estado”.
Os dados analisados pelas autoras no Capítulo 3 confirmam assim a sua
formulação de que “as ideias feministas hoje no Brasil realmente se articulam e
viajam ao longo de múltiplas teias organizacionais e a partir de matrizes discursivas
nas quais as delegadas das CNPMs fazem/fizeram parte. Elas certamente consti-
tuem e organizam o ‘subcampo’ do ativismo feminista no Estado, vislumbrando o
‘sidestreaming via mainstreaming’ e vice-versa das questões relacionadas a gênero,
mulheres e feminismo nas políticas públicas”.

18
É relevante também observar que ao analisar o sidestreaming feminista, o
Capítulo 3 reforça e vai além das análises recorrentes nos outros capítulos deste
volume sobre a interseccionalidade das práxis e agendas das delegadas das confe-
rências, e oferece uma contribuição inovadora e detalhada das trajetórias de cons-
trução das interconexões entre instituições, movimentos e organizações nos quais
as delegadas participaram e participam.
Em uma outra contribuição as reflexões sobre as relações entre feminismo
e Estado, o Capítulo 7, de Breno Cypriano, “Divisão sexual do trabalho e usos do
tempo: a inserção temática e o feminismo acadêmico na SPM e as percepções das
mulheres participantes das CNPMs no Brasil”, analisa mais especificamente a im-
portância do feminismo acadêmico e sua complexa relação com a construção do
Estado brasileiro e a formulação das políticas públicas do feminismo participativo
de estado que vigorou em 2003 – 2016. Como mostra Breno Cypriano, “no Brasil,
a Secretaria de Política para as Mulheres a partir das demandas das duas primeiras
Conferências de Políticas para as Mulheres, empenhou-se para que as estatísticas
oficiais brasileiras incorporassem quesitos referentes a sexo”. E aqui, mais uma vez,
se ressalta também a importância das articulações dos feminismos brasileiros com
o feminismo transacional, pois é a Plataforma de Ação de Beijing que demanda
dos Estados signatários a coleta de dados através da metodologia dos usos do
tempo, “a qual melhor permite a mensuração do ‘não trabalho’ realizado por mulhe-
res no ambiente doméstico, e a demonstração empírica da subordinação econômica
feminina”. Entre as perguntas do survey de 2016 analisadas por Breno Cypriano
que abordam a divisão sexual do trabalho, destaca-se a pergunta estimulada sobre
as iniciativas da Secretaria de Politica para as Mulheres para tentar superar os
vários motivos que levam as mulheres a terem uma posição inferior aos homens
no mercado de trabalho. Os principais motivos apontados pelas delegadas foram,
em primeiro lugar, apoiar “projetos que visam desnaturalizar a divisão sexual do
trabalho que estrutura as desigualdades na vida das mulheres”. Breno Cypriano
conclui, a partir desta e outras análises que apresenta no capítulo 7, “que a dis-
cussão sobre o público e o privado, o cuidado, a divisão sexual do trabalho e os usos
do tempo quando verificadas empiricamente são cruciais para o entendimento da
política e das formas das mulheres de atuarem politicamente enquanto atoras políti-
cas, tornando-se fatores imprescindíveis para a elaboração e formulação de políticas
públicas.”
Cabe notar aqui que o capítulo 5, “Mulheres negras na institucionalização
de políticas contra o racismo e o sexismo: trajetórias e desafios de uma agenda em
aberto”, acrescenta a perspectiva racial às considerações sobre o público e o pri-
vado nas abordagens e agendas feministas: “Enquanto o feminismo refletia sobre a

19
divisão sexual do trabalho que designava às mulheres o lugar do privado-doméstico/
reprodutivo e aos homens o lugar público-político/produtivo, e sobre a necessidade
de romper com essa divisão, esquecia que a ocupação do espaço público por parte
das mulheres brancas (educação, trabalho, militância política) era possível porque
outras mulheres racializadas ocupavam esse lugar do cuidado graça à divisão sexual
e racial do trabalho doméstico”. As interligações entre gênero, classe e raça certa-
mente são fundamentais nas distinções entre as esferas do privado e do público
no patriarcado racial vigente na sociedade brasileira. Assim, a autora também ar-
gumenta como a participação de mulheres negras nas CNPM dá centralidade a
demandas raciais históricas e resulta em diretrizes, tais como garantia de direitos
trabalhistas para empregadas domésticas, na formulação de políticas de igualdade
de gênero.
Após esta breve exploração de temas centrais aos capítulos deste Volume
– como os contextos históricos e políticos, nacionais e internacionais nos quais
agendas feministas emergem se transformam e se (re)significam, as relações en-
tre os feminismos locais/nacionais e o feminismo transnacional ou translocal, a
interseccionalidade, as interconexões entre movimentos de mulheres e feministas
com outros movimentos e organizações identitários e de classe, e as relações entre
feminismo e Estado, entre outros – encerramos aqui esta introdução ao Volume
2 convidando as/os leitores/as a ler e explorar as indagações e reflexões específi-
cas levantadas e proporcionadas por cada capítulo. Nesta introdução buscamos
apenas apontar, mesmo que de maneira bastante sucinta, temas e questões cen-
trais que perpassam os vários capítulos e suas análises de elementos centrais ao
feminismo estatal participativo brasileiro, construído por mulheres e feministas de
todo o Brasil representadas pelas delegadas as CNPM de 2011 e 2016.

20
Os movimentos feministas ontem e hoje no Brasil:
desafios da sua institucionalização

Schuma Schumaher1

Introdução: ondas, estações, cenários, ciclos, etapas...

A luta das mulheres para garantir espaço e reconhecimento na sociedade


vem de longe e passou por diversas etapas e sobressaltos. O texto pretende retratar
as diferentes “ondas” do feminismo no Brasil, considerando seu início no final do
século XIX, quando inúmeras mulheres se rebelaram contra a tragédia da escravi-
dão, lutaram pelo direito ao trabalho sem a autorização do marido, pelo acesso ao
ensino de qualidade, pelo direito de frequentar universidades e de votar e serem
votadas até a segunda década do século XXI, cujas lutas estão recheadas de novas
protagonistas.
Embora haja tensões e polêmicas quando se tenta descrever as trajetórias,
impasses e conquistas das mulheres, usando metáforas como “ondas”, “estações”,
“cenários”, “ciclos”, para se descrever as lutas e as transformações provocadas pelo
feminismo ao longo dos séculos, não encontrei expressão melhor para falar da
dinâmica das diferentes marés que a luta feminista enfrentou e enfrenta até os
dias atuais.
Constatando que a luta dos movimentos de mulheres, apesar da sua conti-
nuidade, tem ao longo da história apresentado novas agendas, novas prioridades
e, sobretudo, novas protagonistas, dependendo das relações de poder que operam
nos diferentes contextos social, cultural, econômico e político, mostrarei algumas
importantes estratégias das mulheres para romper com as limitações que lhes
confinava no mundo privado, para conquistar direitos de cidadania e ter voz no
mundo público. Chamarei de primeira onda o processo de luta contra a escravi-
dão, o direito de acesso à educação de qualidade e a luta pela conquista dos direi-
tos civis, políticos e sociais das mulheres, que no Brasil vai durar mais de 50 anos.

1   Feminista e coordenadora da ONG Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh), organizou o


Dicionário Mulheres do Brasil (2000), reunindo verbetes sobre 900 mulheres que tiveram impacto
sobre a história brasileira. Também coordenou a campanha “Quem ama abraça – Fazendo escola” e
foi dirigente da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB).

21
Ao abordar esse período levarei em conta o refluxo na movimentação feminista,
durante e pós-ditadura Vargas.
A segunda onda teve início no final dos anos 1960 num momento de crise
da democracia brasileira. Além de batalhar pela igualdade, pela valorização do
trabalho da mulher, o direito ao prazer e contra a violência sexual, também lutou
contra a ditadura militar. O novo feminismo estava apoiado, principalmente, nas
ideias da escritora francesa Simone de Beauvoir, expressas em seu livro O segundo
sexo, publicado pela primeira vez em 1949.
A passagem para a terceira onda, nas últimas décadas do século XX, quan-
do a sociedade brasileira vivia um momento importante na política, foi recheada
de muitas críticas e polêmicas, especialmente pelas mulheres negras que questio-
navam o discurso da mulher universal, considerando-o excludente, uma vez que
as opressões atingem de maneira diferenciada as mulheres. É nessa década que
esquentam o debate e as tensões sobre a incorporação da questão racial na agenda
feminista, sobre o conceito de gênero e seu binarismo e sobre a institucionalização
do feminismo com o surgimento de várias ONGs e a implantação de mecanismos
de políticas para as mulheres na estrutura do Estado. Judith Butler se destaca nes-
se período ao problematizar os binarismos, particularmente ligados a discussões
sobre corpo, gênero e sexualidade. Foi também nesse período que o movimen-
to feminista teve sua agenda ampliada em virtude do ciclo de Conferências pro-
movido pelas Nações Unidas, como a Eco 92 – Conferência das Nações Unidas
para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1992; a Conferência
Mundial sobre Direitos Humanos, Viena, 1993; a Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento, Cairo, 1994; a IV Conferência Mundial da Mulher,
Beijing, 1995; e a Conferência Mundial sobre Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Correlata, Durban, 2001.
Considerado por muitos estudiosos o movimento social mais importante
do século XX, o feminismo entrou no século XXI trazendo velhas questões, como
por exemplo, a modesta presença das mulheres nos espaços de decisão e poder,
além do acirrado debate sobre gênero na sociedade. Judith Butler se destaca nes-
se período ao problematizar os binarismos, particularmente ligados a discussões
sobre corpo, gênero e sexualidade. Uma quarta onda feminista, iniciada com a
Marcha das Vadias somada à potente Marcha das Mulheres Negras e Primavera
Feminista, emergiu e cresceu num cenário de acirramento das posições funda-
mentalistas contrárias à autonomia das mulheres, do debate sobre intersecciona-
lidade e trazendo novas estratégias de resistência através das tecnologias virtuais
e retomada das ruas.

22
A primeira onda feminista

Um olhar sobre o passado logo revela que há muito ainda a se desvendar,


especialmente sobre as mulheres indígenas e negras. A história “oficial” ignorou
suas culturas, ofuscou suas reações aos conquistadores e aos açoites e, sobretudo,
o papel fundamental que tiveram na luta contra a dizimação de seus povos e na
organização da resistência contra a escravidão.
Políticas públicas, cotas e leis se tornaram parte integrante das bandeiras de
lutas das mulheres desde a Revolução Francesa, no século XVIII. No outono de
1789, dois anos depois do lançamento da “Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão”, a jovem Olympe de Gouges publicou sua “Declaração dos Direitos
da Mulher e da Cidadã”, na qual afirmava que as mulheres tinham necessidades
específicas por serem mulheres, mas que deveriam ter os mesmos direitos que os
homens. Nesse ano, como resultado dos debates na Assembleia Francesa nasceria
a Constituição de 1791. Olympe apoiou a posição, minoritária e perdedora, de
que deveriam ser considerados “cidadãos ativos” todos aqueles que, independen-
temente de sexo, tivessem lutado pela queda da Bastilha. Venceu a ideia oposta e
só foram considerados cidadãos os homens acima de 25 anos. Às mulheres fran-
cesas foi negado o direito ao voto, só alcançado afinal em 1944. Olympe morreu
executada na guilhotina como traidora, em 1793.
É preciso lembrar que os séculos XVIII e XIX – bojos da Revolução
Francesa e do positivismo – reverberaram nas Américas, acentuando e trazen-
do um caráter mais revolucionário às mudanças políticas e sociais. A Revolução
Francesa exportou os ideais burgueses de “igualdade, fraternidade e liberdade”. E
o positivismo resultou sendo, na sociedade brasileira, a primeira doutrina de am-
plo alcance cultural, na qual se propugnava um papel afirmativo da mulher como
agente social (embora ainda reservando a elas ofícios específicos e adequados à
“natureza feminina”).
No final do século XVIII, o avanço das tropas napoleônicas em direção a
Portugal mudaria definitivamente os rumos da história nos trópicos. Quando, em
1808, a família real portuguesa veio viver no Brasil, as principais cidades brasilei-
ras passaram por rápida evolução cultural, mas o costume de reservar às mulheres
o confinamento aos lares e à vida familiar não mudou.
Até então, o privilégio do acesso aos cargos públicos e ao ensino era dos
homens. Em 1809, foi criado um dos primeiros colégios para meninas de elite. Os
ensinamentos consistiam em boas maneiras, trabalhos manuais, noções de fran-
cês, rudimentos de músicas e declamações, visando preparar as garotas para a
vida dos salões e para a maternidade. Em geral ligados aos conventos, os colégios

23
também ensinavam a rezar para afastar os “maus pensamentos”. Na primeira es-
cola normal do país, criada em 1835, em Niterói, não eram admitidas matrículas
de moças. Manter meninas e escravos no berço da ignorância justificava-se com
preconceituosos ditos populares: “Mulher que sabe latim não tem marido nem
bom fim” e “Escravos que sabem ler acabam querendo mais do que comer”.
Contudo, escrever era uma ferramenta importante para as mulheres da
época, embora a produção jornalística e literária das brasileiras se mantivesse
confinada às páginas dos diários secretos. Indignadas, algumas corajosas pionei-
ras dispuseram seus talentos, suas inteligências e criatividade para desafiar o con-
servadorismo de sua época. As primeiras vozes levantadas timidamente no acaso
do século XIX levaram a uma irretroagível insurreição feminina.
Nísia Floresta, intelectual nascida no Rio Grande do Norte, é personagem
marcante desses tempos, cem anos antes da conquista do voto para as mulheres.
Escrevia sobre a escravidão, o sofrimento dos índios e a qualidade do ensino. Mas
escrevia acima de tudo sobre a mulher. Suas ideias contestatórias foram publica-
das no jornal pernambucano Espelho das Brasileiras, em 1931. Os textos de Nísia
afirmavam que as mulheres tinham tanto direito quanto os homens a uma educa-
ção plena. Em 1832, lançou o primeiro de seus 14 livros – Direitos das mulheres e
injustiça dos homens, tradução adaptada à realidade brasileira do livro Vindication
of the Rights of Woman, da inglesa Mary Wollstonecraft, publicado em 1792. A
defesa da emancipação feminina através da educação a levou a fundar um colégio
para meninas com proposta curricular avançada, tornando-se precursora dos ide-
ais de igualdade e autonomia das mulheres.
Úrsula, escrito pela negra maranhense Maria Firmina dos Reis em 1859,
é considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro escrito por uma mu-
lher. Foi em São Luís que Maria Firmina fundou uma escola mista e gratuita para
crianças pobres – iniciativa considerada ousada para a época –, na qual lecionou
até aposentar-se, em 1881.
As publicações do período, escritas e dirigidas por mulheres, tratavam dos
mais variados assuntos e alcançavam um diversificado público leitor. Um traço
comum a essa imprensa era não se ater apenas aos temas da culinária, da etiqueta
e da moda, mesclando reflexões sobre assuntos fervilhantes, ousando defender
a abolição da escravatura, a queda da monarquia, o acesso das mulheres às uni-
versidades, o divórcio e o direito ao voto. Ou seja, revolucionando a imprensa da
época!
Das lutas enfrentadas pelas mulheres para conquistar o acesso à educação,
o ingresso nos cursos superiores representou uma das mais difíceis batalhas. Em
1875, Maria Augusta Generoso Estrela e Josefa Águeda Felisbela Mercedes de

24
Oliveira que, embora aptas, tinham sido recusadas no curso de Medicina, deci-
diram “exilar-se” nos Estados Unidos para seguir sua vocação. A decisão ganhou
grande repercussão na imprensa e debate na sociedade, que acompanhou pas-
so a passo a trajetória delas em terras norte-americanas através da publicação
A Mulher, produzida por ambas e distribuída periodicamente aos principais jor-
nais do Brasil.
Eram exceções. As jovens estudantes brasileiras foram obrigadas a esperar
até 1879, quando finalmente o governo imperial se rendeu e permitiu, condicio-
nalmente, a entrada das mulheres nas faculdades. Entretanto, as solteiras deve-
riam apresentar licença de seus pais. As casadas, o consentimento escrito por seus
maridos.
As duas primeiras Constituições Brasileiras, a de 1824 e a republicana de
1891, não chegavam nem a mencionar as mulheres no rol dos excluídos ao voto.
No entanto, foram necessários mais de 40 anos de luta para conquistar esse direito.
As mulheres sempre enfrentaram severos preconceitos na vida social e po-
lítica brasileira. Em 1910, Leolinda de Figueiredo Daltro ocupou ousadamente a
cena pública com suas ideias vanguardistas em defesa das mulheres e dos índios.
Ao ter seu alistamento eleitoral recusado, fundou no Rio de Janeiro o Partido
Republicano Feminino, cujo objetivo era mobilizar as mulheres pelo direito ao
voto. A essa rebeldia estratégica se somaram dezenas de mulheres que, numa mar-
cha memorável, tomaram as ruas da cidade.
A proteção à maternidade e à infância torna-se tema de atuação pública
das mulheres, assim como as difíceis condições no mundo do trabalho também
começaram a fazer parte da pauta de suas preocupações nas primeiras décadas do
século XX. Desvalorizada, desqualificada, a força de trabalho feminino era explo-
rada a preços muito inferiores aos pagos ao trabalhador adulto do sexo masculino
e, diante das restrições e das condições injustas, surgiram os primeiros protestos.
Anarquistas como Tereza Fabri e Teresa Carini tiveram destaque em São Paulo na
elaboração de um manifesto convocando as costureiras – um grande contingente
de operárias na época – a lutar pela redução da jornada de trabalho para oito
horas diárias.
A participação das operárias têxteis foi significativa na greve geral de 1917.
Fortalecidas, dois anos depois, elas organizaram paralisação histórica noticiada
pelo Jornal do Brasil como a “greve das abelhas de luxo”. O movimento foi lide-
rado por Elvira Boni de Lacerda, uma das fundadoras da União das Costureiras,
Chapeleiras e Classes Anexas. As trabalhadoras também puderam contar com o
envolvimento da militante comunista Laura Brandão, que durante anos escreveu,
discursou e panfletou nas portas de fábrica defendendo as causas das operárias.

25
E em 1936, a mineira radicada em Santos (SP) Laudelina de Campos Melo,
indignada com o racismo presente, especialmente no mundo do trabalho, deci-
diu criar uma Associação de Empregadas Domésticas para defender a categoria,
composta majoritariamente de mulheres negras, que eram preteridas na hora das
contratações em favor de uma trabalhadora branca, e tornar públicas as péssimas
condições de trabalho.
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, com as mulheres “voltando para
casa”, a proteção ao trabalho da mulher passou a ser preocupação dos homens
públicos em nível internacional. O Tratado de Versalhes pioneiramente recomen-
dou salário igual para trabalho igual, sem distinção de sexos. Abriu-se, assim,
grande avenida para um movimento que desaguaria numa das mais importantes
mudanças ocorridas no século passado: o movimento feminista. A partir de 1920,
batizados de Ligas para o Progresso Feminino, grupos de mulheres se formaram
em todo o país. Dois anos depois, a líder dessa emergente e triunfante corrente
sufragista, a bióloga paulista recém-chegada da Europa, Bertha Lutz, organizou
no Rio de Janeiro o I Congresso Internacional Feminista. Consolidou-se assim a
criação da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, unindo em torno de
si as ligas estaduais e exercendo papel central na mobilização das mulheres, na
ocupação de espaços na imprensa, na montagem de estratégias para a conquista
do sufrágio feminino.
Porém, as feministas foram constatando, com indignação, que o engaja-
mento na luta política e suas conquistas no campo da educação não foram su-
ficientes para que os poderes constituídos reconhecessem seus direitos de cida-
dãs. Lideradas por Bertha Lutz, Carmem Portinho, Josefina Álvares de Azevedo,
Maria Eugênia Celso e tantas outras, iniciaram uma campanha aguerrida em vá-
rias frentes e cidades. A fim de pautar o debate público e convencer os parlamen-
tares, criaram diversas estratégias voltadas para a sociedade e para o Legislativo.
Publicações, cartas à imprensa, seminários, manifestações artísticas e até panfle-
tagem aérea eram armas de mobilização da opinião pública, dos congressistas e
da população.
A pedagoga mineira Maria Lacerda de Moura, colaboradora na fundação
da Federação pelo Progresso Feminino, questionou o discurso “ameno e refor-
mista” das sufragistas e optou por maneiras mais contundentes de atuar na cena
política. Adepta do amor livre e plural, aproveitou todas as oportunidades para
manifestar-se a favor da educação sexual e contra a moral vigente e as posições da
Igreja. Reconhecia que as relações mantidas pelas mulheres com seu corpo, com
os homens, na família e no trabalho eram temas mal discutidos pela sociedade.
Reivindicava a inclusão no currículo de todas as escolas femininas da disciplina
“História da mulher, sua evolução e missão social”.

26
Musa do Modernismo, a escritora e ativista política Patrícia Galvão, a Pagu,
escandalizou a sociedade tradicional com suas roupas extravagantes, seus cabelos
curtos e chapéus, com o cigarro entre os dedos num tempo em que fumar em pú-
blico era imperdoável para uma moça de família. Numa época em que as mulhe-
res em geral viviam e se vestiam de forma recatada e discreta, Pagu foi símbolo de
atrevimento – feminista assumida, escreveu romances, crônicas, poesias e dirigiu
peças teatrais. Na sua mistura de militância comunista com defesa dos direitos das
mulheres, Pagu, à frente do seu tempo, é ainda hoje ícone das lutas pela emanci-
pação feminina. Seu nome batiza diversas iniciativas feministas contemporâneas.
Com habilidade política e capacidade de articular alianças, as sufragistas
foram conseguindo adesões em vários espaços e cidades. Até que, em 1927, a lei
eleitoral do Rio Grande do Norte concedeu direito de voto às potiguaras. Ao ser
eleita para governar a cidade de Lage (RN), Alzira Soriano se tornou, um ano
depois, a primeira prefeita da América Latina.
Com a brecha aberta pelas norte-rio-grandenses, ainda que seus votos te-
nham sido cassados, as mulheres continuaram insistindo no desejo de exercer
esse direito. Um abaixo-assinado contendo 2 mil assinaturas foi entregue aos par-
lamentares com o objetivo de pressioná-los a aprovar o projeto de lei que tramita-
va no Congresso. O documento, amplamente divulgado pela imprensa e hoje pre-
servado no Arquivo Histórico do Senado Federal, era um retrato da realidade das
brasileiras de então. “Desde que uma só exista, não há motivo para que não sejam
eleitoras todas as mulheres habilitadas do Brasil”, argumentavam as signatárias:

Reclamando esses direitos, não fazemos mais do que fizeram e estão fazen-
do as mulheres de todos os países civilizados. É princípio do regime demo-
crático, universalmente reconhecido, que, aqueles que obedecem às leis e
pagam impostos, assistem o direito de colaborar, direta ou indiretamente,
na elaboração dessas mesmas leis e votação desses mesmos impostos. [....]
A economia doméstica e a organização da família estão inteiramente ligadas
à organização social e econômica do país. São problemas coletivos que não
toleram mais as situações individuais. Não podem deixar indiferentes as do-
nas de casa, as mães de família, cujos filhos, na frequência diária de jardins
da infância, escolas, oficinas, academias e cinemas, se acham expostos às
vicissitudes do meio ambiente. O nosso Código Civil, afastando-se de ou-
tros menos liberais, deu à mulher brasileira uma situação privilegiada, con-
siderando a esposa como companheira do marido e não como sua inferior,
não lhe exigindo na sociedade conjugal obediência, mas sim colaboração.
Sendo a mãe a tutora natural dos filhos, dotada de pátrio poder, elevou-se
legalmente ao nível dos homens, cujas responsabilidades políticas está ha-
bilitada a compartilhar. (LUTZ et al., 1927 apud SCHUMAHER; VITAL
BRASIL, 2000, p. 220).

27
O texto segue discorrendo sobre a evolução das conquistas das mulheres
em outros países e termina assinado pela presidenta da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino Bertha Lutz, suas diretoras e outros destacados nomes da
sociedade brasileira.
Em meio a tantas polêmicas e embates no Congresso Nacional, em 24 de
fevereiro de 1932, as mulheres concretizaram a maior conquista do século XX: o
direito de votar e serem votadas.
Na conturbada e efervescente agitação dos anos 1930, outro desafio esta-
va colocado: promover a candidatura das feministas para a Assembleia Nacional
Constituinte de 1933. Entre os 254 votantes, contabilizando os eleitos e os repre-
sentantes classistas, duas vozes eram de mulheres: Carlota Pereira de Queiroz,
médica eleita por São Paulo, que se tornou a primeira deputada federal do Brasil,
e a advogada alagoana, ativista feminista negra Almerinda Farias Gama, que, atra-
vés de uma estratégia bem-sucedida da Federação pelo Progresso Feminino, re-
presentou o Sindicato das Datilógrafas e Taquígrafas do Distrito Federal. É dela a
foto introduzindo o voto na urna, em julho de 1933, estampada em várias publi-
cações desde então.
A fim de se preparar para enfrentar as eleições gerais de 1934, a Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) voltou à cena patrocinando acirrada
campanha nacional para eleger mulheres comprometidas com a agenda de di-
reitos. Nessa fase, a FBPF dava os seus primeiros passos no sentido de se tornar
o principal canal de representação política do movimento feminista no Brasil.
Reunidas suas integrantes em Salvador, por ocasião da 2ª Convenção Feminista
Nacional, a Federação traçou o novo plano de ação para a entidade, cujas di-
retrizes eram a organização de filiais nos estados onde ainda não existisse uma
Federação e instituir um novo desenho hierárquico, composto por uma líder na-
cional, uma presidente estadual e várias secretárias regionais. A reestruturação da
FBPF previu, também, a existência de dois tipos de sócias, as ativas e as colabora-
doras voluntárias.
Desse encontro resultaram também mudanças nos rituais da FBPF, com
o uso de símbolos que caracterizassem a identidade, bandeira, hino e cores pró-
prias, além da formulação do Decálogo Feminista, que passou a ser divulgado
no Boletim – periódico editado pela entidade a partir do seu primeiro número,
datado de outubro de 1934, com dez princípios. Diz esse que toda mulher deve:

1) Exercer seus direitos políticos e cumprir seus deveres cívicos; 2)


Interessar-se pelas questões públicas do país; 3) Ter ocupação útil à socie-
dade; 4) Alistar-se e votar; 5) Votar conscientemente e criteriosamente; 6)
Não entregar seu título eleitoral; 7) Dedicar-se à causa feminista, crente no

28
triunfo dos seus ideais; 8) Votar somente em quem for feminista; 9) Bater-
se pela conquista e pleno exercício de seus direitos sociais e políticos; e 10)
Trabalhar pelo aperfeiçoamento moral, intelectual, social e cívico da mu-
lher. (SCHUMAHER; VITAL BRASIL, 2000, p. 223).

O sucesso da mobilização das feministas da FBPF nas urnas foi inegável.


Nove mulheres foram eleitas deputadas estaduais: Quintina Ribeiro, por Sergipe;
Lili Lages, por Alagoas; Maria do Céu Fernandes, pelo Rio Grande do Norte; Maria
Luisa Bittencourt, pela Bahia; Maria Teresa Nogueira e Maria Teresa Camargo,
por São Paulo; Hildenê Gusmão e Zuleide Bogéa, pelo Maranhão; Antonieta de
Barros por Santa Catarina, sendo esta a primeira deputada negra do Brasil.
Mas, com a decretação do Estado Novo, em 1937, Getúlio Vargas fechou
o Congresso até 1945. Os movimentos sociais, entre eles o feminismo, foram su-
focados, encerrando-se temporariamente o mandato das parlamentares. Bertha
afastou-se gradualmente da direção da entidade até deixar o cargo de presidente,
em 1942, mantendo-se fiel à causa feminista até o fim de seus dias. Foi sucedida
pela escritora Maria Sabina de Albuquerque, uma das suas antigas colaboradoras.
Nos anos que se seguiram ao golpe de Estado de 1937, a maioria dos grupos
de mulheres esteve vinculada aos partidos de esquerda ou protegida sob seu man-
to. Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial contra o nazifascismo,
começou uma efervescência política e ressurgiram associações de mulheres de li-
nhas políticas diferentes, engajadas no esforço de guerra. As campanhas femininas
para obter agasalhos para os pracinhas, os cursos de enfermagem, as dificuldades
de abastecimento, a inflação, o mercado paralelo, a agitação social decorrente das
ideias nacionalistas serviram de motivação para intensas campanhas envolven-
do um grande número de mulheres. Lutando pela Anistia, elas se aglutinaram
em diversas associações, como o Comitê de Mulheres Pró-Anistia, o Comitê
de Mulheres Pró-Democracia, o Instituto Feminino de Serviço Construtivo e a
Federação de Mulheres do Brasil (filiada à Federação Democrática de Mulheres).
Com a finalidade de combater a carestia foi criada a Frente Única de Mulheres,
que reunia figuras de diferentes matizes ideológicos.
A partir de 1944, surgiram as Ligas Feministas, associações de mulheres
com a orientação do Partido Comunista, que permaneceram por um curto pe-
ríodo na legalidade. Entre as ligas, havia um órgão central, com sede no Rio de
Janeiro e ramificações pelas diversas unidades da Federação. Além disso, foram
criados na cidade do Rio de Janeiro diversos comitês de bairro. Em determinada
época chegaram a funcionar cerca de vinte comitês, sendo que um dos maiores
era o da Gávea, que tinha em torno de mil associadas. As ligas femininas tinham
como pontos de lutas a resistência contra a demolição das favelas, a instituição

29
de creches e bibliotecas infantis públicas, e a campanha pela independência na-
cional. Dentre as principais iniciativas das mulheres de cunho nacionalista figura
a campanha “O Petróleo é Nosso”, bem como as campanhas contra a carestia. O
vigor da luta contra a carestia pode ser avaliado pela criação pelo Governo da
Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab), como resposta às seguidas
manifestações das mulheres nos anos 1950.
A Liga Feminina da Guanabara teve seu auge de atuação no ano de 1961,
quando reuniu um manifesto com 100 mil assinaturas contra a alta do custo de
vida. Uma caravana de associadas levou o documento a Brasília. No mesmo ano
realizou-se, no Rio de Janeiro, o II Encontro Latino-Americano de Mulheres, que
contou com representantes de organizações feministas de diversos países.
Os grupos de mulheres de tendência conservadora foram estimulados pelas
elites que queriam derrubar o governo João Goulart. Uma das mais significativas
organizações nessa linha foi a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde).
Depois da reviravolta política, com a implantação da ditadura militar, as organi-
zações de mulheres, mesmo as de vertentes conservadoras, praticamente sumiram
do cenário político.
Contudo, as organizações de mulheres progressistas acabaram por se frag-
mentar pelas divergências políticas e terminaram sendo extintas com a chegada
dos militares ao poder, em 1964, interrompendo o sonho da participação política
popular no Brasil. Sindicatos, associações e partidos seriam fechados ou “coopta-
dos” pelo estado ditatorial. A cultura e a liberdade de expressão também seriam
duramente perseguidas com a instituição da censura.

A segunda onda feminista

No mundo ocidental, os anos 1960 foram marcados pela luta das chama-
das “minorias” pelos direitos civis. Nos Estados Unidos, paralelamente à luta dos
negros americanos por cidadania plena e os movimentos políticos contrários à
guerra do Vietnã, viu-se o ressurgimento do movimento de mulheres. Essa nova
“onda feminista” distanciava-se da sua primeira versão da luta pelo direito ao voto
em fundamentos teóricos e em propostas de luta. O feminismo dessa segunda
onda estava apoiado, principalmente, nas ideias da escritora francesa Simone de
Beauvoir, expressas em O segundo sexo, publicado na França em 1949. Referência
durante décadas para a nova organização internacional do movimento de mu-
lheres, Simone questionava as relações sociais, estruturadas hierarquicamente e
naturalizadas, que sustentaram durante séculos as desigualdades entre homens e
mulheres.

30
Sob a frase “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”, a filósofa francesa
promoveu a primeira separação entre sexo e gênero, sem a qual, para muitas, não
haveria feminismo possível. Ao retirar da biologia o caráter determinista do com-
portamento feminino, Simone de Beauvoir abriu espaço para as discussões sobre
a igualdade das mulheres na sociedade e para o surgimento do que hoje se chama
de estudos de gênero.
Nos EUA, a nova fase do movimento de mulheres teve como ponto de
partida a publicação, em 1963, do livro A mística feminina, de Betty Friedan, no
qual ela denuncia as inúmeras estratégias de confinamento das mulheres na es-
fera doméstica e propõe novas formulações para a reorganização do feminismo.
Ela busca explicar o que chamou de “o mal que não tem nome”, representando a
angústia do eterno feminino, da mulher sedutora e submissa, cujas possibilidades
de realização eram a família, a maternidade e o lar.
Com o surgimento da pílula anticoncepcional, a prática sexual ganhou no-
vos contornos – e possibilidades! –, começando assim um lento processo de sepa-
ração entre sexo e reprodução. O uso de contraceptivos mais seguros possibilitou
às mulheres planejar quando e quantos filhos queriam ter e viver sua sexualidade
sem associá-la à gravidez. O novo método interferiu diretamente nas relações en-
tre homens e mulheres, uma vez que podia ser usado sem o conhecimento dos
pais, do marido ou de quem quer que fosse. Se por um lado as mulheres esta-
vam “liberadas para o prazer”, sua condição legal ainda era bastante restritiva. Até
1962, o Código Penal brasileiro tutelava as mulheres casadas aos desejos e deci-
sões de seu marido. A lei não permitia que a mulher trabalhasse fora nem viajasse
sem o consentimento do “chefe da casa”.
A difusão do novo pensamento feminista contribuiu para acirrar a insatis-
fação das mulheres com o tradicional papel que desempenhavam na sociedade.
Alimentadas por novas informações, norte-americanas, italianas, francesas, ingle-
sas e suecas ganharam as ruas para entoar palavras de ordem como: “Nosso corpo
nos pertence!”, “O privado também é político!” e “Diferentes, mas não desiguais!”.
Essa perspectiva marca uma ruptura com o modelo anterior que associava
diretamente papéis e comportamentos das mulheres às diferenças sexuais e orgâ-
nicas, aportando novos elementos para as discussões sobre a questão da opressão
das mulheres e a superação do sistema capitalista. De certa forma, estavam “li-
vres” dos “orgânicos” valores morais que tanto oprimiam. A famosa história da
“queima do sutiã” é bastante simbólica dessa busca de rompimento. Verdade ou
mito, está colocada para a história da luta das mulheres como uma ruptura com
os condicionantes representados no corpo das mulheres: “Se for cultural, vamos
desconstruir!”.

31
Como resposta à intensa mobilização de mulheres, a Organização das
Nações Unidas (ONU) instituiu o ano de 1975 como o Ano Internacional da
Mulher, promovendo, na Cidade do México, uma grande conferência interna-
cional com a presença de delegações de diversos países. No Brasil, esses acon-
tecimentos causaram enorme repercussão. Tanto a Conferência da Cidade do
México, como a instituição da Década da Mulher pela ONU, deram alento à re-
estruturação do movimento feminista em novas bases. A despeito de o momento
político nacional estar marcado pelo cerceamento das liberdades democráticas,
sendo, portanto, impossível promover qualquer organização social sem o risco
do confronto com os militares; sob o manto protetor da instituição internacional
tornou-se possível a organização de seminários nos quais as mulheres puderam
discutir os problemas comuns.
Foi nesse contexto de crise da democracia, mas também de construção de
novos modelos sociais, que emergiu o feminismo organizado dos anos 1970. Se
por um lado a nova onda feminista lutou contra a ditadura militar, por outro ba-
talhou também contra a supremacia masculina, a violência sexual e o direito ao
prazer.
As mulheres integrantes dos diversos grupos que se formaram na época
vinham, quase na sua totalidade, dos agrupamentos de esquerda. A confluência
de ideias entre as feministas, as mulheres dos movimentos populares, aquelas que
priorizavam os partidos políticos e as donas de casa não se deu sem conflitos.
O debate político nesse momento foi caracterizado pela polarização de posições
entre luta geral, luta específica e a desconstrução do papel tradicional de mães
e guardiãs da família. A segunda metade dos anos setenta foi, em grande parte,
consumida por essa discussão, necessária e imprescindível, para se chegar na dé-
cada de 1980 com inúmeros grupos de mulheres espalhados pelo país, num amplo
leque de posições feministas cujos rótulos eram por vezes reais, por vezes pejo-
rativos. Havia as separatistas, as intelectuais, as pequeno-burguesas preocupadas
com sexo, as proletárias preocupadas com a união entre luta geral e específica, as
“estrangeiras” – ex-exiladas influenciadas pelo movimento feminista europeu –, as
defensoras do movimento autônomo...
No bojo dessa efervescência política nasceu o Movimento Feminino pela
Anistia, que alcançou rápida repercussão por todo o país e teve como uma das
suas principais articuladoras a advogada Therezinha Zerbini e a imprensa alter-
nativa. O jornal Brasil Mulher, editado a partir de 1975, primeiramente no Paraná
e depois transferido para a capital paulista, funcionou como um porta-voz do
Movimento Feminino pela Anistia. Aos poucos, a agenda feminista tomou con-
ta de suas páginas. Logo depois veio o Nós Mulheres, publicação paulista que

32
circulou de 1976 a 1978. Já no primeiro editorial afirmava suas intenções: “fazer
este jornal feminista para que possamos ter um espaço nosso, para discutir nossa
situação e nossos problemas”. Distribuído nacionalmente, durou oito exemplares.
Inúmeros grupos e diversos jornais eram criados com o propósito de de-
núncia da subordinação da mulher na sociedade. Dessa nova leva, destacava-se o
jornal Mulherio, lançado em março de 1981, que nasceu e contou com o suporte
da equipe de pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas e foi leitura obrigatória
das feministas brasileiras por mais de cinco anos. Outros periódicos regionais
seguiram o exemplo: Libertas, editado por um grupo de mulheres de Porto Alegre
(1981); o Chanacomchana, publicado pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista
de São Paulo entre 1981 e 1987; e o Maria Maria, publicado pelo grupo Brasil
Mulher, de Salvador, a partir de 1984.
Com isso, o impacto da mudança de comportamento das mulheres, re-
sultado da luta feminista, chegou também à grande mídia. Em maio de 1979 a
Rede Globo de Televisão estreou o seriado Malu Mulher, protagonizado pela atriz
Regina Duarte. O primeiro episódio exibia a separação entre Malu e seu marido
– a lei do divórcio acabara de ser promulgada. Daí em diante, durante um ano e
meio, o público assistiu à personagem principal batalhar sozinha por sua sobrevi-
vência e pelo cuidado com a filha. Socióloga, Malu trocou sua condição de esposa
pela de pesquisadora, engrossando, na ficção, as estatísticas da vida real: os anos
1980 registram 10 milhões de mulheres empregadas no país, número que cresceu
para 25 milhões em pouco mais de 20 anos, quando um terço das trabalhadoras
tinha pelo menos o segundo grau completo.
Durante seis anos, entre 1980 e 1986, o programa TV Mulher, que ia ao ar
diariamente na parte da manhã, mudava a abordagem sobre os temas femininos
na TV – começam a sair de cena os cuidados com a família, trocados por conse-
lhos da sexóloga Martha Suplicy e da feminista Irede Cardoso. Nas páginas das
revistas para o público feminino, a jornalista Carmen Silva, autora desde 1963 da
coluna “A arte de ser mulher”, publicada na revista Claudia, incentivava suas lei-
toras a ingressar no mercado de trabalho e a questionar as relações de poder em
que os homens são os beneficiários.
As publicações de mulheres ganhariam reforço, a partir da década de 1990,
com o lançamento da Revista de Estudos Feministas (REF), iniciativa de um grupo
de mulheres da Universidade Federal do Rio de Janeiro que, na linha de teóricas
norte-americanas e europeias, levaram para a academia as discussões sobre gêne-
ro, cultura e sociedade. Pioneira, a REF é uma das muitas publicações acadêmicas
à época que se mantêm destinadas ao tema, e leitura obrigatória para conhecer
uma boa parte da teoria feminista brasileira.

33
Portanto, não é de hoje que as mulheres, através de centenas de publica-
ções e coletivamente, verbalizam as desigualdades e injustiças de gênero presentes
na sociedade e expõem outra lógica de ver e viver o mundo e seus movimentos.
Poderíamos destacar diversas contribuições de mulheres, as quais promoveram de
distintas formas rupturas de paradigmas dominantes e ocuparam espaços que até
então lhes eram negados pelos cânones tradicionais.

Redemocratização e movimento de mulheres

Da anistia conquistada em 1979, rapidamente o país mobilizou-se para re-


cuperar o direito ao voto. O bipartidarismo – Arena/direita e MDB/esquerda –
que reinava absoluto até então e colocava todas, as da luta geral e as da específica,
num mesmo barco, caiu por terra. A chamada esquerda se reorganizou em vários
matizes: social-democratas, socialistas, socializantes, comunistas, revolucionários,
centristas avermelhados. A campanha das “Diretas-Já!” tomou as ruas, marcando
o processo de redemocratização do país.
De costas para o Estado, espalhados em diferentes partidos políticos, ou
longe deles, os movimentos de mulheres e feministas seguiam crescendo. A mul-
tiplicidade de formas organizativas, a partir dos anos 1980, foi ganhando novos
contornos e incorporando e novas sujeitas, até então invisibilizadas dentro do
próprio movimento, como os grupos de mulheres negras, lésbicas, trabalhado-
ras urbanas e rurais, prostitutas, empresárias, produtoras culturais, educadoras
populares e donas de casa. Vítimas das desigualdades salariais, da carestia, dos
preconceitos, violência e do racismo, organizam-se em grupos de autoestima, de
denúncias e de ação política.
De acordo com a assistente social Matilde Ribeiro (1995):

Resguardadas as particularidades, os movimentos feminista e negro ressur-


gem no Brasil em meados dos anos 70, em plena ditadura militar, tendo
como eixos básicos a luta pela democracia, a extinção das desigualdades
sociais e a conquista da cidadania. Porém, em ambos os movimentos as
mulheres negras aparecem como “sujeitos implícitos”: partiu-se de uma su-
posta igualdade entre as mulheres, assim como não foi considerado, entre
os negros, as diferenças entre homens e mulheres (RIBEIRO, 1995).

Nesse contexto, ganham destaque as discussões sobre as necessidades es-


pecíficas das mulheres negras, ausentes da pauta feminista. Não foram poucas as
ativistas negras que levantaram suas vozes para criticar o feminismo que na práti-
ca não assumia a agenda étnica/racial. Numa entrevista ao Jornal do MNU, maio-
-julho, de 1991, Lélia Gonzalez, intelectual e ativista negra, assim se expressou:

34
No meio do movimento das mulheres brancas eu sou a criadora de caso,
porque elas não conseguiram me cooptar. No interior do movimento havia
um discurso estabelecido com relação às mulheres negras, um estereótipo.
As mulheres negras são agressivas, criadoras de caso, não dá para gente
dialogar com elas, etc. E eu me enquadrei legal nesta perspectiva aí, porque
para elas a mulher negra tinha que ser antes de tudo, uma feminista de
quatro costados, preocupadas com as questões que elas estavam colocando.
[...]. O feminismo não terá cumprido sua proposta de mudança dos valores
antigos, se ele não levar em conta a questão racial. (GONZALEZ, 1991).

Em diálogo com Lélia Gonzalez, outra referência do feminismo negro,


Luiza Bairros, que mais à frente, em 2011, se tornará ministra da Seppir, atentava
para o fato de que:

Raça, gênero, classe social, orientação sexual reconfiguram-se mutuamente


formando o que chamamos de um mosaico que só pode ser entendido em
sua multidimensionalidade. De acordo com o ponto de vista feminista, por-
tanto, não existe uma identidade única pois a experiência de ser mulher se
dá de forma social e historicamente determinadas (BAIRROS, 1995, p. 461).

O reconhecimento das especificidades e desigualdades sociais existentes


abriu caminho para que outros segmentos de mulheres tivessem vozes no espaço
público. As reuniões setoriais de metalúrgicas, químicas e outras categorias deram
lugar aos Encontros de Mulheres. A palavra mágica de então foi autonomia: em
relação aos homens, aos partidos políticos e ao Estado. Esses encontros pautavam-
-se por discussões que uniam luta por creche, contra o controle da natalidade, por
salário igual para trabalho igual. Ainda sem aparecer como prioridades estavam
os temas do aborto, da sexualidade, do racismo e da violência. Nesse período, o
movimento organizado de mulheres queria “achar um rumo”, “pôr a cara na rua”,
unir esforços, se tornar uma força política reconhecida, construir possibilidades
que apontassem para um futuro mais justo.
Na época, o complexo universo de reivindicações se expressava nos en-
contros estaduais, regionais e nacionais. Aproveitando o espaço acadêmico para
promover intercâmbio, as primeiras reuniões nacionais foram promovidas pe-
las feministas nos encontros anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência (SBPC). Assim, em Fortaleza, no ano de 1979, realizou-se o que atual-
mente se convencionou chamar de Encontro Nacional Feminista. Um ano depois,
no Rio de Janeiro, ocorria o segundo, uma reunião histórica com a participação
de mais de 1.500 mulheres, entre professoras, estudantes universitárias e militan-
tes do movimento.

35
A efervescência desse encontro levou a que as feministas abraçassem essa
estratégia de aproveitar o espaço anual da SBPC para realizar paralelamente os
encontros nacionais feministas. Assim, em 1981, com a realização da SBPC na
Bahia, o grupo feminista Brasil Mulher de Salvador organizou o 3º Encontro
Nacional Feminista, cuja pauta prioritária era o enfrentamento da violência con-
tra as mulheres, uma vez que acabava de ser criado, em São Paulo, o primeiro
SOS Mulher. Participaram do encontro 20 grupos de mulheres, no total de 120
ativistas feministas. A partir de então, concomitantes com as reuniões da SBPC,
as organizações feministas passaram a convocar regularmente encontros nacio-
nais, cabendo aos grupos locais a responsabilidade da produção dos encontros.
Foram organizados dessa forma: o 4º Encontro Nacional Feminista, em Campinas
(SP), 1982; o 5º Encontro Nacional Feminista, na capital federal Brasília (DF),
1983; o 6º Encontro Nacional Feminista, em São Paulo (SP), 1984; o 7º Encontro
Nacional Feminista, em Belo Horizonte (MG), em 1985. O crescente interesse das
mulheres em participar desses espaços fez que a convocação e realização dos en-
contros posteriores acontecessem fora do âmbito da SBPC, inaugurando um novo
formato, novas metodologias de integração, ampliação dos dias de debates e um
espaço comum de convivência das participantes. Assim, o 8º Encontro Nacional
Feminista foi realizado no interior do Nordeste, em Garanhuns (PE), em 1986;
o 9º Encontro Nacional Feminista, em Petrópolis (RJ), em 1987; 10º Encontro
Nacional Feminista, em Bertioga (SP), 1988; 11º Encontro Nacional Feminista
em Caldas Novas (GO), em 1991; 12º Encontro Nacional Feminista em Salvador
(BA), em 1997; o 13º Encontro Nacional Feminista em João Pessoa (PB), em 2000;
e o 14º Encontro Nacional Feminista, Porto Alegre (RS), em 2004.
Foi nesse período que, diante das notícias de vários assassinatos de mu-
lheres por seus companheiros, a luta contra a violência doméstica explodiu. O
que antes eram pequenas notas nos jornais ganhou as primeiras páginas com a
indignação e denúncia do movimento feminista. As mortes de Ângela Diniz (RJ),
Maria Regina Rocha e Eloísa Ballesteros (MG), e Eliane de Gramont (SP) tiveram
enorme repercussão e tornaram-se exemplos de que o silêncio protegia os assas-
sinos. O slogan “Quem ama não mata”, gritado inicialmente pelas mineiras, ecoou
por todo Brasil.
As passeatas, as denúncias públicas e os grupos de atendimentos aca-
bam impulsionando a criação das Delegacias Especializadas no Atendimento às
Mulheres Vítimas de Violência. A primeira foi implementada na capital paulista,
em 1985, e em pouco mais de 15 anos contabilizavam-se mais de trezentas de-
legacias em todo Brasil. Em 1988, a TV Globo lançou a minissérie Delegacia de
Mulheres, levando para a mídia um debate que havia sido impulsionado pelas
feministas 10 anos antes.

36
As reivindicações que envolviam os direitos reprodutivos estavam centra-
das na fecundidade das mulheres e no acesso aos métodos contraceptivos, com
o Estado e os organismos internacionais posicionados numa perspectiva de con-
trole da natalidade em detrimento da autonomia das mulheres. Um dos desafios
para o movimento feminista foi enfrentar esse debate, enfatizando que o tema da
saúde sexual e reprodutiva das mulheres deveria ser entendido na perspectiva dos
direitos humanos.
As discussões sobre a saúde da mulher já faziam parte da agenda feminista,
mas o assunto pegou fogo com o regresso das mulheres exiladas, que pertenciam
ao Círculo de Mulheres Brasileiras de Paris. Trouxeram na bagagem o polêmico
tema do aborto, legalizado na França em 1975 e um dos eixos de luta do movi-
mento internacional de mulheres. Em 1980, quando a polícia carioca “estourou”
uma clínica clandestina no bairro de Jacarepaguá e prendeu duas mulheres pela
prática do aborto, as feministas organizaram um protesto e, pela primeira vez,
foram a público reivindicar o direito de escolha. O silêncio que envolvia o assunto
estava definitivamente rompido e, desde então, ecoam as vozes das mulheres em
defesa do direito à autonomia reprodutiva, com palavras de ordem como “meu
corpo, minhas regras”, “pela vida das mulheres”.

Atropeladas pela democracia

Nas eleições parlamentares de 1978, feministas – individualmente – apoia-


ram algumas candidatas que traziam na sua plataforma de campanha o compro-
misso de combater a discriminação sexual. Os partidos políticos, dois nesse pe-
ríodo, não incorporavam em seus programas nenhuma questão relativa à mulher.
Diante desse novo quadro, as feministas reagem de diferentes maneiras.
Eva Blay descreve assim esse período que se inicia:

Participar da política foi o dilema dos anos 80. O período pós-ditadura


abriu algumas vertentes ao movimento de mulheres: continuar atuando nos
movimentos sociais, entrar para o legislativo, para o executivo. Esta polêmi-
ca atravessou o movimento feminista e o movimento de mulheres. A deci-
são teve um cunho antes de tudo, partidário. As mulheres optaram por cada
uma dessas vertentes, ora movidas pelas diretrizes de seus grupos, ora por
opções pessoais. (Artigo Mulher e Estado – 1988).

Em 1982, nas eleições diretas para os governos estaduais, os movimentos


de mulheres que contavam com aliados em alguns partidos políticos reinauguram
sua relação com o Estado. Estimuladas pela volta da democracia, lideranças femi-
nistas do Rio de Janeiro elaboraram o documento “Alerta Feminista”, contendo

37
propostas a serem apresentadas aos candidatos a governador. Em São Paulo, as
feministas se dividiram no apoio a dois candidatos e as discussões se acirraram
quando o grupo que apoiava o candidato do PMDB, junto com um programa
de governo, propõe também a criação de um órgão específico, responsável pela
proposição e defesa de políticas públicas relativas aos direitos das mulheres, na
estrutura do Estado.
Assim nasceram, em 1993, os dois primeiros Conselhos Estaduais dos
Direitos da Mulher do Brasil: o de São Paulo e de Minas Gerais.

A lua de mel durou pouco...

O Conselho de São Paulo representa um marco que divide o movimento de


mulheres, tanto para as que acreditavam na proposta, como para as que eram con-
tra. E o que estava em questão era estritamente a relação do chamado “movimento
autônomo” com o Estado. Como garantir a autonomia do movimento? Quais as
formas de organização dentro do governo? De que maneira as reivindicações fe-
ministas seriam atendidas? Como não serem cooptadas? A criação do Conselho
foi ampla e publicamente debatida.
Nesse momento é importante ressaltar que a escolha desse modelo de ór-
gão, cuja proposta original era de composição pluralista e suprapartidária, foi tor-
pedeada por parcela significativa do movimento de mulheres.
Havia as que se recusavam a participar de qualquer organismo governa-
mental por temer a descaracterização de suas reivindicações pelo Estado e a insti-
tucionalização do que havia de “radical, criativo e revolucionário” no feminismo,
provocando consequentemente a perda da autonomia do movimento de mulheres.
Havia também as que, militantes do PT, compreendiam o papel do Estado
na conquista de algumas reivindicações do movimento, porém, por razões mais
partidárias que feministas, optaram por abster-se. Segundo Ana Vicentini:

o grito de alerta dado por alguns setores, se baseava na dificuldade que o


movimento sentia ante o inevitável diálogo a ser estabelecido com os ór-
gãos governamentais e na recusa quase pueril de alguns setores em ver
no Estado um possível interlocutor... (Seminário “Feminismo no Brasil –
Vislumbrando Novos Espaços”, NEIM/UFBA, 1988).

No processo que precede e envolve as eleições de 1982, fica claro que as


mulheres redescobriram a “grande política” e o movimento de mulheres de então
– organizado em vários grupos de reflexão, debate e atuação setorial, em quase
todos os Estados – vai fortalecer e incentivar, mesmo que não intencionalmente,
a participação da mulher nas instâncias de representação política da sociedade.

38
Por outro lado, a “esquerda”, agora dividida e segmentada em vários mati-
zes, volta seu olhar para a tal “questão da mulher”. Assim, a partir de 1982, parla-
mentares de diversos partidos se manifestam publicamente a favor de reivindica-
ções feministas. No famoso 8 de março, passa a ser praxe a aprovação de moções
de congratulação e apoio às mulheres no “seu dia”, por parte dos legislativos, que
agora, além do mais, contam com algumas feministas em suas fileiras. E o femi-
nismo avança no seu reconhecimento público!
Albertina de Oliveira Costa, no ensaio É viável o feminismo nos trópicos?
– Resíduos de insatisfação apresentado no Seminário “Feminismo no Brasil” –
NEIM/UFBA, 1988, aponta: “A questão da mulher é suficientemente ampla, su-
ficientemente em evidência e suficientemente legítima, para que os partidos de
esquerda comecem a se interessar por ela.” Ainda segundo Albertina, fica também
evidente “...a controvérsia que vai durar anos entre feministas e femininas. Entre
a boa e a má luta da mulher.”
Com o vespeiro aberto em São Paulo em 1982, em função da criação do
Conselho da Condição Feminina, abrem-se no país novas vertentes para a discus-
são sobre a institucionalização das demandas feministas.
Desde então vários Conselhos e Organismos de Políticas para as Mulheres
(OPMs), vinculados ao poder Executivo e de natureza jurídica diversa –
Secretarias, Coordenadorias, Subsecretarias, Superintendência –, nasceram para
atender a uma forte reivindicação dos movimentos de mulheres e feministas; ten-
do como atribuição assessorar, formular, fomentar e monitorar as políticas públi-
cas para as mulheres. Salvo exceções, padeceriam de falta de estrutura e escassez
de recursos para a implementação da política e manutenção de seu quadro técni-
co, dependendo da “boa vontade” do governo e ou prefeito para a institucionali-
zação da agenda de gênero nos âmbitos municipal e estadual.

Terceira onda... a caminho do planalto central

Em 1984, em São Paulo, um grupo de feministas, envolvidas anteriormente


com a proposta de criação do Conselho paulista, organizou o Seminário Mulher
e Política, com a participação suprapartidária de deputadas federais, estaduais e
vereadoras. Uma das conclusões desse seminário é a de propor ao governo federal
a criação de um órgão nacional de defesa das mulheres.
A articulação política necessária para tal propósito, tendo à frente a deputa-
da Ruth Escobar, tem início nos bastidores do Planalto Central (que, naquele mo-
mento, começava pelo Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte). O “novo jeito
de fazer política”, um dos slogans do seminário, lembrava muito mais um “velho

39
jeito”, na opinião de algumas feministas, uma vez que os passos dessa articulação
se davam sem prévia discussão com os grupos de mulheres e sem o reconfortante
consenso que pautava a maioria das ações do movimento feminista.
Temores e comentários se espalharam pelo movimento de mulheres do
país, passando por questões que iam desde a polêmica participação num governo
não legitimado pelo voto direto até as conversas ao pé do ouvido sobre a compo-
sição do órgão, para muitas um colegiado de “notáveis”.
Foi no 7º Encontro Nacional Feminista, ocorrido em Belo Horizonte em
1985, que essa discussão ganha dimensões nacionais e pega fogo diante da pro-
posta de criação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher – CNDM. Muitas
feministas presentes no encontro buscavam o apoio do conjunto do movimen-
to para essa proposta. Outras, naquele momento, criticando a atuação dos cinco
conselhos existentes, vislumbravam nessa proposta uma grande ameaça à autono-
mia do movimento. O Estado não merecia confiança e o sistema nos ameaçava:
As teias do poder apareciam como uma intrincada rede repleta de “obscuras” e
“malignas” intenções. O “Estado” e o “Sistema” se mostravam como grandes en-
tidades alheias à nossa existência. “Estamos conscientes de que o sistema, através
dos órgãos oficiais do Estado, reconhecendo a importância e o alcance das ideias
feministas e de nossa militância e não podendo mais ignorar-nos, vem por isso
assumindo nosso discurso ideológico.” ... “Sabemos entretanto, que é uma uto-
pia acreditar que as ideias feministas sejam assumidas pelas entidades oficiais do
Estado...” (Carta de B.H. – abril/1985).
No entanto, ao final do 7º Encontro Nacional, “coerentes com esta postura”,
segundo o documento, e reafirmando o repúdio à formalização do CNDM como
se apresentava na proposta, as signatárias apresentam suas exigências: criação do
CNDM mediante projeto de lei, como forma de garantir ampla participação da
sociedade civil e das mulheres; garantia de dotação orçamentaria própria; iden-
tificação do órgão com a luta contra a discriminação e opressão das mulheres;
qualquer parlamentar que venha a ocupar cargo no conselho deveria licenciar-se
de seu mandato; viabilização da participação do movimento de mulheres na ela-
boração, execução e acompanhamento das políticas oficiais; o conselho deveria
expressar as reivindicações do movimento de mulheres e das feministas, sem pre-
tender representá-lo ou substitui-lo; e, finalmente, exigiam que o critério de com-
posição do conselho fosse baseado na trajetória feminista de suas participantes.
A polêmica instalada e as suspeitas de algumas feministas em relação ao
Estado e de suas múltiplas possibilidades de cooptação não inviabilizam a cria-
ção do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher que se dá em agosto de 1985,
através de projeto de Lei nº 7.353, aprovado pela Câmara Federal. O projeto trazia

40
em seu enunciado que a finalidade básica do órgão seria a formulação de políticas
com vistas à eliminação da discriminação da mulher. Esse objetivo foi desdobrado
em algumas modalidades de ação específica, ali explicitadas, tais como formu-
lação de diretrizes, elaboração de projetos de lei, assessoria ao poder Executivo,
emissão de pareceres, acompanhamento da elaboração e execução de programas
de governo e apoio ao desenvolvimento de pesquisas sobre a condição da mulher.
Vinculado ao Ministério da Justiça, o CNDM nasce com autonomia admi-
nistrativa e financeira e sua estrutura “híbrida” era composta por um Conselho
Deliberativo – com a função de controle social, cujas integrantes eram repre-
sentantes de diferentes setores do feminismo nacional, e uma estrutura de ges-
tão, composta por uma Assessoria Técnica, Diretoria de Articulação Política e
Secretaria Executiva. Na mesma Lei foi criado o Fundo Especial de Direitos da
Mulher, para onde serão enviados os recursos orçamentários.
A primeira presidente, escolhida dentre as conselheiras, foi a deputada Ruth
Escobar (que se licenciou do mandato) e, depois, a socióloga e militante feminista
Jacqueline Pitanguy. O corpo técnico era composto, na sua expressiva maioria,
por feministas autônomas vindas de diversas regiões do país e trazendo na baga-
gem não só o pioneirismo, mas, sobretudo, o grande desafio de abrir espaço na
estrutura política do governo, ser um canal de interlocução com os movimentos
de mulheres, além da formulação e monitoramento de políticas públicas.
Nessa primeira gestão, que vai de 1985 a 1989, o Conselho apostou em dife-
rentes frentes e muitas foram as ações desenvolvidas. Investiu nas áreas de saúde,
educação, trabalho (rural e urbano) violência, combate ao racismo, políticas de
creche e legislação.
A preocupação das feministas com a institucionalização de suas deman-
das e a possibilidade de descaracterização das propostas tornaram-se um desafio
para o CNDM, que inaugurava a chegada das feministas na estrutura do governo
federal.

Institucionalização das demandas feministas

Em novembro de 1985, quatro meses após sua criação, o Conselho Nacional


dos Direitos da Mulher lançou a Campanha “Constituinte sem mulher fica pela
metade”, que tinha o propósito de ampliar a representação feminina no Congresso
Constituinte, a ser instalado no ano seguinte, debater a situação jurídica da mu-
lher e incentivar sua participação no processo de formulação da nova Constituição
Brasileira. Imediatamente foi preciso enraizá-la. As técnicas do CNDM viraram
peregrinas. Visitaram todos os estados, estimulando o debate e o envolvimento

41
dos movimentos feministas e de mulheres e os respectivos conselhos na campa-
nha e no processo.
Paralelamente, o CNDM investiu numa campanha publicitária que incluía
TV, outdoors, publicações e outros recursos de comunicação, e organizou em
todo país debates, encontros e seminários para discussão e formulação de propos-
tas, culminando na realização de um Encontro Nacional, em agosto de 1986, que
elaborou e aprovou a Carta das Brasileiras aos Constituintes e lançou a segunda
fase da campanha: “Constituinte pra valer tem que ter direitos da mulher”.
Nas eleições de 1986 a representação feminina no Congresso Nacional foi
mais que triplicada, passando de 8 deputadas federais para 26 deputadas consti-
tuintes, num total de 559 parlamentares eleitos. Numa forte conjugação de obje-
tivos comuns, o CNDM, centenas de grupos de mulheres, conselhos, sindicatos
e a bancada feminina juntaram esforços para que as propostas contidas na Carta
das Brasileiras fossem incorporadas na nova Constituição que ia ser elaborada. E
assim, defendeu propostas feministas no Congresso Nacional, algumas contra o
próprio governo do qual faziam parte, como a licença-maternidade de 120 dias e
a legalização do aborto, entre outras.
A Carta das Brasileiras foi entregue solenemente ao presidente do Congresso,
deputado Ulisses Guimarães, e também lançada em todas as Assembleias
Legislativas Estaduais de maneira a evidenciar a organização articulada das mu-
lheres e o caráter nacional de suas propostas. Estava dada a largada. A estratégia
passava a ser, então, visitar gabinete por gabinete e tentar convencer os deputados
e senadores da legitimidade e importância das reivindicações das mulheres.
“O que estão querendo as mulheres?”, provavelmente pensaram alguns de-
putados que se apressaram em tentar desvalorizar o trabalho do Grupo, chaman-
do-as de “Lobby do Batom”. Mas as mulheres não se intimidaram nem perderam o
humor com essa provocação. Conseguiram transformar, estrategicamente, aquilo
que pretendia ser uma afronta em mais um elemento da mobilização e força po-
lítica das mulheres e da bancada feminina. O apelido foi parar nos jornais, mas
não com a conotação pejorativa dos que subestimavam a força e a organização
das mulheres.
Daí nasce forte e decisivo o Lobby do Batom. Impossível dizer sua com-
posição e seus limites, em número de pessoas. Todo mundo ajudava a telefonar,
consultar, contatar, redigir, reproduzir, expedir, visitar gabinetes e persuadir inde-
cisos. No Congresso, até o mais distante dos parlamentares esbarrava no recado:
“Constituinte, as mulheres estão de olho em você!!!”.
As integrantes do CNDM, a Bancada Feminina do Congresso Nacional e
inúmeras organizações feministas participaram de todas as etapas do processo

42
constitucional, nas subcomissões, nas comissões temáticas, na apresentação de
emendas, na análise dos trabalhos do relator, na discussão dos anteprojetos e do
projeto. Realizaram-se várias manifestações e vigília para acompanhar a votação
final. Mantiveram um canal permanente com os Conselhos, com as feministas,
com os grupos de mulheres, as categorias profissionais específicas, como as tra-
balhadoras domésticas e rurais, com o movimento de mulheres negras, indíge-
nas, lésbicas, informando do andamento das propostas e transformando-se em
um verdadeiro lobby nacional – o Lobby do Batom –, considerado um dos dois
maiores grupos da sociedade civil organizada na Constituinte. Cerca de 80% das
propostas das mulheres foram incorporadas no texto final.
Para a pesquisadora Marlise Matos (2013):

A Constituição de 1988 apresentou grandes avanços em relação aos direitos


sociais, introduziu instrumentos de democracia direta (plebiscito, referendo
e iniciativa popular), instituiu a democracia participativa e abriu a possibi-
lidade de criação de mecanismos de controle social, como os Conselhos de
Direitos, de Políticas e de Gestão de políticas sociais específicas (MATOS,
2013, p. 5).

Regina Céli Pinto (2013) reforça as palavras de Matos (2012), ao dizer que
a “carta foi o documento mais completo e abrangente produzido na época [...] e
trouxe várias conquistas para as brasileiras” (p. 75).
Registram-se dois grandes embates travados nas Comissões temáticas da
Câmara no que diz respeito à autonomia das mulheres: um referente ao direito ao
aborto (objeto de emenda popular), que o texto final não menciona, e outro, que
era garantir explicitamente no texto a proibição da discriminação em razão da
orientação sexual – embora essa demanda tenha sido pautada pelos movimentos
LGBT e apoiada pelos movimentos de mulheres, também não foi incorporada por
pressão dos parlamentares conservadores.
Até a constituição do CNDM, o Estado não possuía política pública especí-
fica para a mulher, salvo alguns programas na área da saúde. A política do CNDM
provocou, portanto, alterações no cenário nacional. Se foram pequenas, pontuais
e fragmentadas, ainda assim, fazem parte do processo histórico. Podemos lem-
brar o nascimento de vários Conselhos Municipais e Estaduais, Delegacias de
Mulheres, Casas Abrigo, creches nos locais de trabalho e mudança na legislação,
entre outros avanços.
De natureza híbrida, o CNDM foi marcado pela dualidade de sua atuação.
Analisando sua curta trajetória, pode-se dizer que, nesse primeiro período, esteve
muito mais voltado para a articulação com os movimentos de mulheres do que
com o próprio Governo. Teve mérito de não haver jamais atuado partidariamente

43
ou de ter se transformado em “cabide de empregos”. Tampouco foi “maternalista”,
na medida em que sempre devolveu aos grupos de mulheres a responsabilidade
de apontar suas prioridades.
Vítima do sucesso, não foi capaz de garantir sua permanência, nos moldes
originais, dentro do aparelho estatal. Em janeiro de 1989, o ministro da Justiça
Oscar Dias Corrêa faz uma declaração à imprensa de que o CNDM já havia
cumprido sua função, pois havia conquistado 80% das reivindicações na nova
Constituição Brasileira e deveria passar por um enxugamento proporcional e ser
transformado em apenas um órgão deliberativo.
Ao cortejo das ações visando minar a atuação do órgão, em julho do mes-
mo ano, mais uma medida arbitrária surpreende as integrantes do Conselho e o
movimento de mulheres com a nomeação de 12 novas conselheiras, sem identi-
dade com o movimento de mulheres, provocando a renúncia coletiva da equipe
técnica e integrantes do Conselho.
Com a credibilidade abalada e para completar o estrago causado, logo em
seguida, na “Era Collor”, uma Medida Provisória, n° 150 de 15/8/1990, acaba com
sua autonomia administrativa e financeira.
Em 1994, impulsionado pelo Fórum Nacional de Presidentes de Conselhos,
uma nova proposta foi apresentada aos candidatos à Presidência da República –
tratava-se da criação do Programa para Igualdade e Direitos das Mulheres, alo-
cado na Casa Civil da Presidência da República, cuja estrutura contaria com um
Conselho Deliberativo e uma Secretaria Especial.
Com a posse de Fernando Henrique Cardoso em 1995, contrariamente ao
esperado, o novo Governo reativou o CNDM sem estrutura administrativa, sem
orçamento próprio e, usando de suas prerrogativas, decidiu sobre a composição
do colegiado e nomeou a nova presidente sem consulta formal aos movimentos
organizados de mulheres. A presidente Rosiska Darcy de Oliveira e as conselhei-
ras assumiram os seus cargos com o compromisso de realizar as mudanças consi-
deradas necessárias no interior desse mecanismo.
Com o objetivo de implementar a Plataforma de Ação, resultante da IV
Conferência Mundial sobre a Mulher, firmou uma série de protocolos de coo-
peração com os Ministérios da Justiça, do Trabalho, da Educação e da Saúde e
elaborou, com a contribuição dos conselhos estaduais e municipais, as estratégias
para promover a igualdade.
Em 1997, durante a reforma administrativa do Estado, apesar de ter alcan-
çado uma maior visibilidade nos meios de comunicação e implementado uma sé-
rie de ações como, por exemplo, o Programa Nacional de Promoção da Igualdade
e Oportunidade na função pública, desenvolvido em parceria com o Ministério

44
da Administração, o CNDM foi rebaixado dentro da hierarquia do Ministério da
Justiça.
Considerado um mecanismo institucional frágil e desproporcional à sua
missão política, em 1999, mais uma vez, as articulações e redes nacionais se mo-
bilizam para pressionar o governo com intuito de abrir o debate sobre a reformu-
lação desse organismo. Nesse mesmo ano, uma nova presidente, Solange Bentes,
e colegiado tomam posse. Em 2002, no último ano desse mandato, foi criada a
Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, subordinada ao Ministério da Justiça.
Sua competência e estrutura não foram definidas pela lei que o instituiu.
Enquanto isso, o movimento feminista, longe do governo, estava cada
vez mais revitalizado. Um exemplo do seu vigor foi a realização, no Congresso
Nacional, em 2002, da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras com mais
de 2 mil participantes. Precedido pela realização de conferências estaduais, o en-
contro nacional aprovou a Plataforma Política Feminista, documento que levanta
desafios para a reconstrução da sociedade, do Estado, das relações inter-raciais,
interpessoais e de gênero. Sobretudo, deixou registrado um jeito diferente de fazer
política, garantindo espaço democrático onde as diferentes forças coletivas pude-
ram se expressar.
Ao mesmo tempo, as mulheres tiveram sua agenda de ação ampliada com
um ciclo de conferências promovido pelas Nações Unidas. O marco inicial foi a
realização da ECO-92, na cidade do Rio de Janeiro, da qual as brasileiras parti-
ciparam ativamente do processo e construção do Planeta Fêmea, espaço privile-
giado dentro do Fórum das Organizações Não Governamentais da conferência,
que promoveu o encontro de representantes de vários países e culturas e possibi-
litou a elaboração da Agenda 21 das Mulheres. Seguiram-se as conferências sobre
Direitos Humanos (Viena, 1993) e População e Desenvolvimento (Cairo, 1994),
ambas tratando de assuntos de interesses da agenda feminista. O auge desse pro-
cesso de integração internacional da luta das mulheres se deu com a realização da
IV Conferência Mundial da Mulher (Beijing, 1995).
O processo de preparação dessas conferências fortaleceu os movimentos e
suas articulações em todo o mundo e, no Brasil, a Conferência Mundial da Mulher
abriu a oportunidade para a criação da Articulação de Mulheres Brasileiras
(AMB), reunindo fóruns estaduais e articulações já existentes, estimulando a
criação de novos espaços de debate em todo o país. Nessa agenda envolveram-
-se grupos de mulheres, organizações feministas, sindicalistas, associações pro-
fissionais e de bairros, representantes de partidos políticos, centros acadêmicos,
além de outras organizações da sociedade civil que, também preocupadas com a
cidadania e qualidade de vida das mulheres brasileiras, consideravam importan-
tes os temas da IV Conferência. Foram realizadas mais de 90 atividades durante

45
o processo, que envolveu aproximadamente 700 grupos de mulheres e produziu
22 documentos estaduais contendo diagnóstico sobre a situação das mulheres
e propostas, que sistematizados foram colocados em discussão na Conferência
Nacional de Mulheres rumo a Beijing, realizada em junho de 1995, na cidade
do Rio de Janeiro, com a presença de feministas de todos os estados brasileiros.
Como resultado dos debates foi aprovado o Documento das Mulheres Brasileiras
para a IV Conferência Mundial, que frisou fortemente que a luta das mulheres
não pode prescindir do enfrentamento ao capitalismo, ao patriarcado, ao racismo
e à homofobia – que estruturam as desigualdades –, considerando a diversidade
regional, cultural, racial, étnica, etária, orientação sexual, deficiência, credo e in-
serção política de cada uma.
A forte articulação do movimento feminista e de mulheres, estabelecida
no processo preparatório, e a consequente presença de centenas de brasileiras em
Beijing, somada à capacidade de incidência e pressão junto às delegações oficiais,
foi fundamental para uma postura progressista do governo brasileiro, que liderou
as negociações e muito contribuiu para os avanços conquistados na Declaração
e na Plataforma de Ação aprovada pelos representantes dos países participantes.
A Plataforma de Ação de Beijing traz três inovações dotadas de grande poten-
cial transformador na luta pela promoção da situação e dos direitos da mulher: o
conceito de gênero, a noção de empoderamento e o enfoque da transversalidade.
A ação internacionalizada seguiu no século seguinte: em 2001, organizações
de mulheres negras se mobilizaram para participar da Conferência Mundial so-
bre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban/
África do Sul), resultando na fundação de duas grandes redes nacionais: em 2002,
a Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e, em
2004, o Fórum Nacional de Mulheres Negras.
Sonia E. Alvarez (2014) destaca que:

Os anos 1990 testemunharam a ascendência de uma nova forma de ativismo


transnacional entre o crescente número de feministas na América Latina
– um ativismo que tinha como meta organizações intergovernamentais e
outros fóruns de política internacional dentro e fora do sistema interameri-
cano, assim desejando alcançar projeção global ao pressionar por mudanças
na política de gênero na linha de frente nacional (ALVAREZ, 2014, p. 62).

No final do século XX, começam a surgir as ONGs feministas com pro-


fissionais técnicos, tornando uma parcela significativa do movimento feminista
mais institucionalizado, consequência das necessidades de produção de informa-
ções especializadas, articulação com os governos e ação política envolvendo dife-
rentes setores dos movimentos de mulheres.

46
Um novo ponto de partida

Quando, em 2003, o governo Lula criou a Secretaria Especial de Políticas


para as Mulheres, o Brasil deu um salto para a institucionalização das questões de
gênero. A Secretaria foi criada com status ministerial, estrutura técnica, recursos
financeiros e com o objetivo de promover a igualdade entre homens e mulheres,
combater todas as formas de preconceito e discriminação provocadas pela socie-
dade patriarcal e excludente, através da indução de um olhar de gênero e raça na
formulação das políticas voltadas para as mulheres em todos os órgãos governa-
mentais. Dessa maneira, o CNDM ressurgiu como um colegiado integrante da
estrutura básica da Secretaria, a contar, em sua composição, com representantes
da sociedade civil e do governo. Isso ampliou significativamente o processo de
controle social sobre as políticas públicas para as mulheres.
O CNDM foi recomposto por 20 representantes da sociedade civil, indi-
cadas por seus organismos, redes, articulações, de abrangência nacional, 3 espe-
cialistas em gênero escolhidas e indicadas pelo presidente da República e 13 re-
presentantes do governo (Ministérios). Sua presidência foi exercida pela ministra
da SPM – Emília Fernandes, escolhida e nomeada pelo presidente da República.
As principais demandas, construídas ao longo da história de lutas dos movi-
mentos de mulheres e feministas, ganharam, então, um novo patamar. Havia, ago-
ra, um instrumento governamental de escuta, canalização, organização, execução
e institucionalização da agenda das mulheres/gênero, oficialmente estabelecido.
A pesquisadora Marlise Matos (2012) considera um ganho concreto para
as mulheres “a emergência da questão de gênero na agenda governamental e a
consequente implementação de políticas públicas direcionadas às mulheres, prin-
cipalmente, na área de combate à violência e na atenção à saúde” (p. 36).
O diálogo do governo federal – representado pela SPM/PR – com os mo-
vimentos sociais fluiu democraticamente ao longo do período, o que foi bastante
positivo para o avanço de algumas conquistas. Além disso, em função da história
e do perfil do novo governo popular, passa a ser um estimulador de demandas
sociais, convocando Conferências Nacionais em diversas áreas.
Com certo entendimento de que era necessário o envolvimento de todos os
entes para que as políticas públicas se tornassem exequíveis e para que os objeti-
vos de melhorar a vida das mulheres se concretizasse, o processo de realização da
I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em 2003, foi extremamente
mobilizador e envolveu os governos federal, estaduais e municipais, bem como os
movimentos de mulheres.
Como resultado das discussões e votações, a SPM construiu o I Plano
Nacional de Políticas para Mulheres (I PNPM), que sistematizou e propôs

47
políticas públicas que atendessem às principais demandas das mulheres. O I Plano
de Políticas para as Mulheres veio a se complementar nas duas edições seguintes,
após a II e III Conferências Nacionais, com a inserção de novos eixos: autonomia,
igualdade no mundo do trabalho e cidadania; educação inclusiva e não sexista;
saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; enfrentamento à
violência contra as mulheres; participação das mulheres nos espaços de poder e
decisão; desenvolvimento sustentável no meio rural, na cidade e na floresta, com
garantia de justiça ambiental, inclusão social, soberania e segurança alimentar;
direito à terra, moradia digna e infraestrutura social nos meios rural e urbano,
considerando as comunidades tradicionais; cultura, comunicação e mídia não
discriminatórias; enfrentamento ao racismo, sexismo e lesbofobia e enfrentamen-
to às desigualdades geracionais que atingem as mulheres, com especial atenção
às jovens e idosas. Para um maior detalhamento dos Planos e suas respectivas
agendas, ver o Capítulo 4, escrito por Marlise Matos e Isabella Lins, no primeiro
volume desta coletânea.
Os compromissos de implementação da legislação nacional e a garantia de
aplicação dos tratados internacionais que visavam ao aperfeiçoamento dos me-
canismos de enfrentamento à violência contra as mulheres foram mantidos em
todas as edições do Plano.
Desse modo, propostas antigas e permanentes nas lutas das mulheres e fe-
ministas tornam-se políticas de governo, em torno das quais se ordenam progra-
mas e ações, através da transversalidade com outros Ministérios e órgãos gover-
namentais pra sua execução. Isso fez que o debate de gênero entrasse na órbita do
Orçamento Governamental (Plano Plurianual) e de outras políticas e planos de
ação do Governo Federal, com a mobilização de diferentes setores dentro do go-
verno e fora dele. As mulheres, em suas especificidades, saíram da invisibilidade!
Em 2005, foi criado, pelo Decreto 5.390, o Comitê de Monitoramento do
Plano, com o objetivo de acompanhar e avaliar periodicamente o cumprimento
dos objetivos, ações e metas definidos no PNPM. Alterado em 2013, pelo Decreto
nº 7.959, que acrescentou mais onze vagas para representantes dos órgãos de
governo, ampliando  sua capacidade  de  articulação e  de monitoramento. Com a
ampliação, o Comitê passou a contar com 32 órgãos governamentais e três repre-
sentantes da sociedade civil do CNDM, garantindo-se, assim, a transversalidade
em todas as fases do Plano. O Comitê cumpriu, até o golpe de 2016 (SANTOS,
2014), um importante papel na introdução da perspectiva de gênero nos Órgãos
Federais, dando suporte à criação de Mecanismos de Gênero na estrutura desses
órgãos, fortalecendo, assim, a institucionalização da igualdade da agenda feminis-
ta nas ações governamentais.

48
Muitos debates e conquistas foram possíveis, à época, e isso se deveu, tam-
bém, à articulação permanente entre governo e sociedade civil, juntos e cada um
jogando seu papel. As mulheres brasileiras passaram a dispor de uma Central de
Atendimento (Ligue 180); de uma lei para o enfrentamento e combate à violência,
a Lei Maria da Penha; de equipamentos articulados em redes de enfrentamento
e atenção à violência doméstica e sexual; de acesso a programas de redução da
pobreza, ao Bolsa Família e à Minha Casa, Minha Vida. Muito embora as desi-
gualdades permaneçam renitentes, programas sociais importantes foram imple-
mentados e consolidados para o enfrentamento da desigualdade social e o surgi-
mento de um número expressivo de Organismos de Políticas para as Mulheres e
Conselhos dos Direitos das Mulheres em vários estados e municípios.
Nesses treze primeiros anos do “novo CNDM”, ele funcionou mais como
um espaço de consulta e monitoramento do que como propositor de políticas
públicas. Os fatos de o CNDM não ter uma estrutura própria, recursos orçamen-
tários garantidos, de se reunir com muito pouca frequência, ter grandes dificulda-
des de propor sua própria pauta, ter pouquíssima visibilidade na sociedade aca-
baram por atuar de maneira discreta e pouco incidente. Ainda assim, na minha
solitária avaliação política, ele se comportou bem.
Sua harmônica existência com as diferentes gestões da SPM facilitou bas-
tante a atuação do CNDM, quase exclusivamente voltada e colada nas ações e po-
líticas desenvolvidas pela Secretaria como, por exemplo, a coordenação das quatro
Conferências de Políticas para as Mulheres, participação na Comissão Tripartite
para revisar a legislação punitiva sobre o aborto, acompanhamento do processo
de formulação da Lei Maria da Penha e, ainda que timidamente, no GT de acom-
panhamento do Plano de Políticas para as Mulheres, entre outras.
O papel desempenhado pelas conselheiras do CNDM nas Conferências foi
fundamental para se garantir um debate amplo, envolver os poderes, os partidos,
as categorias profissionais e estudantis e a participação do movimento feminista e
suas diferentes expressões.
Não podemos esquecer que, em qualquer avaliação sobre os caminhos e
descaminhos dos Organismos de Políticas para as Mulheres e dos Conselhos, de-
vemos levar em conta a conjuntura política e o governo do qual eles fazem par-
te. Se por um lado, a criação dos Organismos e Conselhos trouxe e traz para o
cenário nacional o debate público sobre os direitos das mulheres e a questão da
igualdade, por outro, seu poder de intervenção efetiva mostrou não dar conta de
permear de forma efetiva a estrutura do Estado para a implantação de políticas
mais permanentes.

49
Vivemos na pele essa realidade com o impeachment que depôs a presiden-
ta Dilma, em meio a vários ataques misóginos, na mídia, nas redes sociais e no
Congresso Nacional, que através de uma coalizão de forças políticas antagônicas
promoveram o que tem sido chamado por juristas, lideranças dos movimentos
sociais e representantes dos partidos de esquerda “um golpe parlamentar-jurídi-
co-midiático, um ataque à institucionalidade democrática”. Desde que assumiu o
poder, o governo interino vem cumprindo um programa ultraliberal, que requen-
ta boa parte do programa eleitoral da coalizão derrotada nas últimas eleições pre-
sidenciais e promove, de maneira ilegítima, mudanças ministeriais que represen-
tam uma brutal desestruturação de políticas públicas voltadas para a garantia de
direitos, sinalizando o aprofundamento de retrocessos nas políticas de educação,
seguridade social, promoção da igualdade racial e nas políticas públicas para as
mulheres, começando pelo desmonte da rede de enfrentamento à violência contra
as mulheres. E para completar, acabou com o Ministério das Mulheres (e o da
Igualdade Racial), transformando-os em Secretarias e nomeando para as pastas
pessoas com posturas contrárias, por exemplo, aos direitos sexuais e reprodutivos,
agenda historicamente defendida pelas feministas.
Historiadores como Eric Hobsbawn (1995) reconhecem que a revolução
cultural promovida pelas mulheres alterou a face do século XX, promovendo mu-
danças de comportamento, transformando os padrões familiares e abrindo espaço
para a liberalização dos costumes, no bojo dos quais vieram outros movimentos
reivindicatórios, como o de gays e lésbicas. Apesar de todo o preconceito que
ainda envolve o feminismo, não há como negar que este foi o movimento mais
bem-sucedido do século XX. A socióloga Bila Sorj (2015) diz que “está na hora
de revermos essa narrativa profundamente inconsistente na qual não gostamos
das santas, mas apreciamos o milagre”. Diferentemente dos demais movimentos
políticos – como o fascismo, o nacionalismo e o comunismo –, o feminismo pro-
moveu mudança de comportamentos sem utilizar a força e sem derramar uma
gota de sangue.

Que onda é essa?

Começamos a segunda década do século XXI alarmadas pelas previsões


negativas que rondavam o contexto econômico, político e social, provocando
frustações e intolerâncias e abrindo caminho para o aumento das violências físicas
(feminicídios, extermínio da juventude negra, de indígenas e LGBT) e simbólicas
(ameaçam tirar nossos direitos, querem controlar nossos corpos, difamações etc.).
O avanço das forças conservadoras, alimentadas pelo fundamentalismo re-
ligioso que opera nas casas legislativas, tem apresentado inúmeros projetos de

50
leis que visam limitar o acesso a métodos contraceptivos, transformar o aborto
– em qualquer circunstância – em crime, aumentando a punição àquelas que a
ele recorrem, colocando em risco a vida de milhares de mulheres por todo o país.
Soma-se a essas ameaças uma perigosa alquimia que menospreza os direitos das
mulheres e ações de grupos extremistas que buscam abolir da literatura educacio-
nal e das expressões culturais qualquer referência à perspectiva de gênero.
A crise democrática que assola o país, o avanço do conservadorismo nas
instituições e na sociedade, o desembarque de uma grande parcela das feministas
do Governo, as novas perspectivas teóricas sobre o conceito de gênero fazem que
o feminismo brasileiro viva um intenso momento de transformação. A presença
de novas sujeitas e a abertura a uma perspectiva interseccional têm contribuído
para ampliar a democracia no interior do movimento, reconhecer a diversidade,
o multiculturalismo e a defesa dos diferentes protagonismos, da autonomia, da
defesa do corpo enquanto território e da necessidade da redistribuição do poder
e dos recursos para enfrentar as desigualdades de classe, raciais, étnicas, identitá-
rias, de orientação sexual, geracionais e de cosmovisão.
Indignadas com a tragédia da violência de gênero que os fatos apresen-
tavam e a culpabilização das mulheres pela violência sexual, e estimuladas pe-
las mobilizações em outros países, em 2011, teve início no Brasil a Marcha das
Vadias. Os protestos fazem parte de um movimento internacional nascido no
Canadá, quando um oficial de segurança, ao proferir palestra na Universidade de
Toronto, sugeriu que as mulheres “não se vestissem como vadias” como medida
de segurança para evitar o estupro. A declaração causou revolta, pois mais uma
vez o pensamento sexista transfere a culpa da violência sexual para a vítima, insi-
nuando que, de alguma forma, são as mulheres que provocam o ataque.
Ao longo de 2011 e 2012, diversas cidades brasileiras realizaram suas mar-
chas, convocadas, através das redes sociais, por movimentos autônomos e es-
pontâneos e, em protesto à culpabilização das mulheres pelo estupro, pelo fim
da violência doméstica, física, simbólica e sexual, pelo fim do machismo e pela
igualdade de gênero. O termo “vadia”, em geral usado para ofender as mulheres,
foi ressignificado e usado para defesa da autonomia e liberdade de ir e vir com e
como desejarem. Usando uma nova estética, as feministas, em sua grande maioria
jovens, ocuparam as ruas, com as caras pintadas, roupas consideradas provocan-
tes, corpos despidos e portando cartazes que diziam: “Se ser livre é ser vadia,
então somos todas vadias”. Podemos dizer que o jeito irreverente de fazer política
e de enfrentar o patriarcado estava de volta.
Dali em diante, as manifestações se espalharam como um rastro de pólvo-
ra, e por onde passou, a Marcha das Vadias revigorou os feminismos. Diferentes
reivindicações de diferentes gerações de mulheres se encontraram nas ruas,

51
recuperando a irreverência que havia marcado a segunda onda feminista e re-
tomando palavras de ordem como “nosso corpo nos pertence” ou “meu cor-
po, minhas regras”, fazendo ecoar no presente as duras batalhas dos anos 1970
(RODRIGUES, 2017).
As resistências através das ocupações, das ruas e da internet conjugam o fe-
minismo dessa década. No ano de 2015, duas grandes marchas invadiram Brasília,
além de dezenas de manifestações pelo Brasil afora. Em agosto, mais de 100 mil
mulheres de todo o país ocuparam Brasília na 5ª Marcha das Margaridas, que teve
como tema ”Desenvolvimento Sustentável com Democracia, Justiça, Autonomia,
Igualdade e Liberdade” – eram as trabalhadoras com seus chapéus característicos,
suas palavras de desordem e cartazes que expressavam suas lutas. Percorreram a
Esplanada dos Ministérios e o Palácio da Alvorada levando a pauta de reivindica-
ções, que entre muitas questões, propõe um desenvolvimento centrado na susten-
tabilidade da vida humana, na defesa da terra e da água como bens comuns, pela
realização da reforma agrária, por soberania alimentar e produção agroecológica
e pelo fim da violência contra as mulheres.
Sai inverno, entra primavera e as feministas não deixam nem as redes so-
ciais, nem as ruas. Reagindo à onda neoliberal misógina, elas foram as primeiras
a ocuparem as praças, contra o PL 5069/2013, de autoria do deputado Eduardo
Cunha, em tramitação no Congresso Nacional, que altera os procedimentos de
atendimento às mulheres vítimas de violência sexual nos serviços de saúde. A
Primavera das Mulheres, como ficou conhecida a série de manifestações on-line
e o off-line, em 2015 “foi a reação do movimento feminista ao delicado momento
político e à dinâmica de uso da internet como potencial instrumento de mobiliza-
ção dos movimentos sociais”, destaca a socióloga Priscilla Brito (2017).
Um “mar lilás” tomou inicialmente as ruas do Rio de Janeiro para, na sequ-
ência, ganhar o país inteiro nos protestos contra as ameaças de retrocesso, contra
os fundamentalismos e conservadorismos e fora tudo o que ainda oprime as mu-
lheres. Como diz Priscilla Brito:

o sucesso da campanha “Fora Cunha” não se deve exclusivamente à sua


ação como “inimigo das mulheres” para frear o atendimento às reinvindi-
cações do movimento feminista no tema do aborto. Em 2015 o deputado
se tornou peça-chave do processo de impeachment da presidenta Dilma
Rousseff (PT), assim como alvo de denúncias de corrupção na operação
Lava Jato, da Polícia Federal. (BRITO, 2015).

A adesão e repercussão que as campanhas virtuais tiveram mostrou ao


feminismo que a internet pode ser um terreno fértil para amplificar suas vo-
zes e suas demandas e construir espaços de reflexão e debates. A Primavera das

52
Mulheres floresceu e tem rendido frutos até hoje. Haja vista as dezenas de blogs
feministas e hashtags, além da mobilização para o último 8 de Março, quando o
feminismo brasileiro e latino-americano gritou “Nem uma a menos. Vivas nós
queremos!”. O 8M, como foi chamado o evento, pretendeu dar um recado articu-
lado, demonstrando a força e o potencial de luta do movimento feminista, nestes
tempos de resistência.
Em novembro, foi a vez de as mulheres negras colorirem o Cerrado. Depois
de três anos de construção e articulação nos estados e municípios, se juntaram em
Brasília, na Marcha das Mulheres Negras, na mais potente demonstração de força
política, para “denunciar a ação sistemática do racismo e do sexismo com que
somos atingidas diariamente mediante a conivência do poder público e da socie-
dade, com a manutenção de uma rede de privilégios e de vantagens que nos ex-
propriam oportunidades de condição e plena participação da vida social” (Dossiê
sobre a Marcha das Mulheres Negras).
Mais de 50 mil mulheres negras, vindas dos quilombos, do campo e da ci-
dade, dos terreiros, das universidades, das periferias ocuparam as ruas de Brasília
para expressar coletivamente suas denúncias contra o racismo, o genocídio da
população negra, romper com os estereótipos do padrão de beleza ideal, denun-
ciar a exclusão, a pobreza, o feminicídio, a violência e propor um novo modelo
civilizatório para o País, centrado no bem viver e no rompimento com a violência
racial que exclui e mata homens e mulheres negras, dizia o Manifesto.
Devido a essa diversidade de mulheres, especificidades e demandas que a
pesquisadora Magda Guadalupe dos Santos (2017), em recente artigo publicado,
apontou que o termo “feminismo, atualmente, deve ser utilizado no plural, tendo
em vista a desconstrução dos papéis sociais e binários entre sexos e gêneros que
alimentam o patriarcado”. Magda Santos provoca uma reflexão ao citar a autora
Sally Scholz, que afirma que “feminismo é um projeto crítico”.
Sabemos que o caminho é árduo, hostil e escabroso, sobretudo neste mo-
mento da história, que questiona o governo ilegítimo e uma conjuntura complexa
que demanda mudanças profundas. No entanto, o(s) feminismo(s) continuam de-
safiando o sistema capitalista, racista, machista, cis e heteronormativo, apostando
num compromisso ético e ação política que melhore a vida das mulheres.
Em sua análise sobre “A institucionalização do feminismo”, a autora Nádia
Cantanhede (2012) enfatiza que:

A intensificação das políticas neoliberais são um desafio e uma hostilida-


de para o feminismo, pois o neoliberalismo leva inevitavelmente a um au-
mento da desigualdade e des-democratização. Talvez estejamos a assistir a
uma crise da institucionalização do feminismo para a qual ainda não temos

53
respostas. Talvez o feminismo acabe por voltar exclusivamente à sua in-
tervenção nas ruas de forma mais espontânea e menos organizada. Talvez
vá aí beber a sua força, aos movimentos sociais, dos quais ainda faz parte,
mas não em exclusividade ou talvez padeça do governo e encontre uma
nova solução para continuar com o seu trabalho tão necessário aos direitos
humanos.

Para finalizar, nunca é demais lembrar que, se hoje é considerado natu-


ral que as mulheres estudem, trabalhem, deliberem sobre seus destinos, sobre o
exercício da sua sexualidade, e, afinal, sejam donas das suas próprias vidas, é por-
que o feminismo produziu uma revolução silenciosa e pacífica, capaz de mudar o
padrão de comportamento de homens e mulheres nas sociedades ocidentais. As
propostas de Betty Friedan nos anos 1960 – de que as mulheres poderiam com-
patibilizar a vida familiar com uma atividade no mundo do trabalho assalariado,
com a cultura e com a política – hoje são tidas como normais até nas famílias
mais conservadoras. O que já foi escandaloso, proibido, atualmente é desejável e
absolutamente comum.
Plural, sem dono nem estruturas de controle centralizadas e sem aspiração
de tomada do poder, o feminismo segue revigorado, defendendo a democracia ra-
dical, erguendo suas bandeiras de liberdade e igualdade, acatando novos desafios
e espalhando transformações por onde quer que passe.

Referências

ALVAREZ, Sonia E. Engajamentos ambivalentes, efeitos paradoxais: movimentos


feminista e de mulheres na América Latina e/em/contra o desenvolvimento. Revista
Feminismos, v. 2, n. 1, jan.-abr. 2014. Disponível em: <http://www.feminismos.
neim.ufba.br/index.php/revista/article/viewFile/111/105>. Acesso em: 11 dez.
2017.
______. Feminismos Latinoamericanos. Conversatorio sobre Reflexiones Teóricas y
Comparativas sobre Feminismos en Chile y América Latina. Universidad de Chile,
Santiago de Chile, Abr. 1998.
ALVES, Branca Moreira. Ideologia & Feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1980.
ÁVILA, Maria Betânia. Vida cotidiana: um desafio teórico e político para o feminismo.
Cadernos de Crítica Feminista, ano III, n. 2, p. 44-78, dez. 2009.
BAIRROS, Luiza. Nossos feminismos revisitados. Revista Estudos Feministas, Dossiê
Mulheres Negras, ano 3, nº 2, p. 458-463, 2º semestre 1995.

54
BLAY, Eva. Mulher e Estado. (mimeo). Artigo apresentado no seminário Feminismo no
Brasil, NEIM/UFBA, 1988.
BRITO, Priscilla. Primavera das mulheres: o on-line e o off-line nas manifestações
feministas de 2015. Revista Sociologia (Magazine), São Paulo, Escala, ed. 68, 2015.
CANTANHEDE, Nádia. A institucionalização do feminismo: um risco elevado. 11 jul.
2012. Disponível em: <http://acomuna.net/index.php/contra-corrente/4005-a-
institucionalizacao-do-feminismo-um-risco-elevado>. Acesso em: 11 de dez. 2017.
CENTRO DE INFORMAÇÃO DA MULHER. Carta de B.H. – abril/1985, publicada no
pelo Boletim do CIM – Centro de Informação Mulher, em Abril de 1985.
COSTA, Andriolli; JUNGES, Márcia. Políticas públicas e a institucionalização do
feminismo. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, ed. 463, 20 abr. 2015.
Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=5877&secao=463>. Acesso em: 11 dez. 2017.
GONÇALVES, Luis Alberto Oliveira; GONÇALVES E SILVA, Petronilha Beatriz. O jogo
das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos. Belo Horizonte: Autêntica,
2000.
GONZALEZ, Lélia. Entrevista com Lélia Gonzalez. Jornal do MNU – Movimento Negro
Unificado, p. 8-9, maio-julho 1991. 
GROSSI, Míriam Pillar; MIGUEL, Sônia Malheiros. Transformando a diferença: as
mulheres na política. Revista Estudos Feministas, ano 9, 2º semestre 2001.
GUTIERREZ, Ana María. Olas del feminismo: la lucha de las mujeres por la ciudadanía.
27 jul. 2015. Disponível em: <https://politicacritica.com/2015/07/27/las-olas-del-
feminismo-la-lucha-de-las-mujeres-por-la-ciudadania/>. Acesso em: 11 dez. 2017.
HOBSBAWN, Eric. A Revolução Social e a Revolução Cultural. In: ______. Era dos
Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HOOKS, Bell. Intelectuais negras. Revista Estudos Feministas, Dossiê Mulheres Negras,
ano 3, n. 2, p. 464-478, 2º semestre 1995.
MARIANO, Silvana Aparecida. Feminismo e Estado: desafiando a democracia liberal.
Revista Mediações, Londrina, v. 6, n. 2, p. 1-26, julho-dez. 2001.
MATOS, Marlise. Diferentes processos de institucionalização das demandas da mulheres:
direitos em construção. II Fórum da Mulher do Jequitinhonha, Belo Horizonte, p.
29-49, 2013.
MORAES, Aparecida; SORJ, Bila. Os paradoxos da expansão dos direitos das mulheres
no Brasil. In: Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: 7
Letras, 2009. p. 10-23.
OLIVERIA, Fátima et all. “Dossiê sobre a Marcha das Mulheres Negras” In: Revista
Estudos Feministas, 1995, Volume 3, Número 2. p. 446.

55
PAN, Montserrat Barba. Las tres olas del feminismo. 25 abr. 2016. Disponível em: <https://
www.aboutespanol.com/las-tres-olas-del-feminismo-1271639>. Acesso em: 11
dez. 2017.
PINTO, Regina Céli. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2003.
RIBEIRO, Djamila. As diversas ondas do feminismo acadêmico. Carta Capital, 25 nov.
2014. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/blogs/escritorio-feminista/
feminismo-academico-9622.html>. Acesso em: 11 dez. 2017.
RIBEIRO, Matilde. Mulheres Negras brasileiras: de Bertioga a Beijing. Revista Estudos
Feministas, Dossiê Mulheres Negras, ano 3, n. 2, p. 446-457, 2º semestre 1995.
RODRIGUES, Carla. A quarta onda do feminismo. Revista Cult, 6 jun. 2017. Disponível
em: <https://revistacult.uol.com.br/home/quarta-onda-do-feminismo/>. Acesso
em: 11 dez. 2017.
SANTOS, Jadermilson S. dos. Comitê de Articulação e Monitoramento do Plano Nacional
de Políticas para as Mulheres – PNPM. SPM, 13 ago. 2014. Disponível em: <http://
www.spm.gov.br/sobre/a-secretaria/secretaria-executiva/comite-de-articulacao-
e-monitoramento-do-plano-nacional-de-politicas-para-as-mulheres-pnpm>.
Acesso em: 31 jan. 2018.
SANTOS, Magda Guadalupe dos. O feminismo e suas ondas. Revista Cult, 5 set. 2017.
Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/entenda-o-feminismo-e-
suas-ondas/>. Acesso em: 11 dez. 2017.
SCHUMAHER, Schuma. CNDM, uma visão histórica. Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2004.
______. Quando o passado ilumina o presente. In: Século XX – A mulher conquista o
Brasil. Rio de Janeiro: Aprazível Edição, dez. 2006.
______. O Lobby do Batom: as mulheres no processo constituinte, 2009.
______; VITAL BRASIL, Érico (Orgs.). Dicionário mulheres do Brasil: de 1500 até a
atualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 301.
SORJ, Bila. A Revista Estudos Feministas e as políticas públicas: qual relação?. Revista
Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 1, jan.-abr. 2008.
VALCÁRCEL, Amelia. La política de las mujeres. Madrid: Cátedra/Universitat de València/
Instituto de la Mujer, 2004. p. 1 98-202.
______. Feminismo en el mundo global. Madrid: Cátedra/Universitat de València/Instituto
de la Mujer, 2008. (Coleccíon Feminismos).
WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de Longe! Movimentos de mulheres negras
estratégias políticas contra o sexismo e o racismo. In: ______ (Org.). Mulheres
negras: um olhar sobre as lutas sociais e as políticas públicas. Criola: Rio de Janeiro,
2008.

56
As mulheres das Conferências Nacionais
de Políticas para as Mulheres são feministas?1

Solange Simões2

Para os leitores deste livro poderia parecer evidente e lógico que as de-
legadas das CNPMs de 2011 e 2016 fossem e se definissem como feministas –
afinal, elas se empenharam em disputar concorridas vagas para representar suas
comunidades, entidades, organizações e movimentos, e se aventuraram em longas
viagens até chegar a Brasília para vários dias de discussões exaustivas sobre as
melhores políticas para defender os direitos das mulheres e a igualdade de gênero
no Brasil. Entretanto, descobrimos com a nossa pesquisa que, mesmo entre as
delegadas das CNPMs, há aquelas que não se definem como feministas e que há
também diversos e nem sempre convergentes entendimentos do que seja o femi-
nismo.
Fica assim evidente que, para responder à pergunta central deste capítulo
– As mulheres das CNPMs são feministas? –, devemos iniciar nossa análise consi-
derando definições de feminismo, e em relação a qual ou quais delas avaliaremos
as concepções e práticas do feminismo das mulheres das CNPMs investigadas em
nossas pesquisas. As teorias sobre o feminismo têm refletido, no Brasil como em
todo o mundo, as experiências, conflitos e divergências dentro dos movimentos de
mulheres e feministas. As trajetórias das práxis e teorias feministas percorreram
trajetórias que vão (de acordo com o chamado feminismo radical) da centralidade
conceitual dada à categoria sexo (e posteriormente, gênero) para o entendimen-
to das desigualdades sociais, passando pela discussão da relevância do conceito
de classe social para entendermos as desigualdades de gênero (de acordo com as
feministas socialistas), até chegarmos ao corrente reconhecimento e consideração

1   Gostaria de agradecer e reconhecer a importante contribuição de Mauro Lucio Jerônymo (dou-
torando em Ciência Política / UFMG) na análise dos dados deste capítulo. Além de executar as ta-
belas e índices que construí para responder a questão de pesquisa central no capítulo, Mauro foi um
importante e crítico interlocutor nas minhas escolhas sobre os passos e procedimentos na análise e
interpretação dos dados.
2   Professora Associada do Departamento de Estudos de Gênero e do Departamento de Socio-
logia da Eastern Michigan University e Coordenadora do Grupo de Estudos de Gênero da mesma
Universidade.

57
das diferenças não apenas entre homens e mulheres, mas também das diferenças
entre as mulheres com base em fatores como orientação sexual, raça e identidade
de gênero, entre outras clivagens sociais correlacionadas a desigualdades estrutu-
rais e sistêmicas.
Pode-se afirmar que há um crescente consenso no entendimento do fe-
minismo atual como sendo um feminismo interseccional, resultante do reconhe-
cimento e entendimento das interconexões de gênero com outros fatores con-
dicionantes das desigualdades sociais (COLLINS; BILGE, 2016; BOSE, 2012;
MOHANTY, 2004). Consistentemente com as novas teorizações sobre as múlti-
plas e interligadas fontes de identidade e de desigualdade, os feminismos vigentes
tanto em países do sul global quanto do norte global têm se transformado num fe-
minismo potencialmente emancipatório, para o qual a superação das desigualda-
des de gênero implica a abolição de outras formas centrais de desigualdade social
(MOHANTY, 2004; BOSE, 2015; MARCHAND; RUNYAN, 2011). O feminismo
emancipatório vai além da afirmação dos direitos das mulheres e da igualdade de
gênero, e passa a utilizar o conceito mais abrangente de justiça social para propor
igualdade para toda a sociedade, e não apenas para as mulheres.
De fato, Alvarez (2000) e Vargas (2008) observam que o feminismo no
Brasil e na América Latina se tornou mais plural com a expansão dos espaços
compartilhados da política feminista; com o aumento da visibilidade e da força
de outras identidades do feminismo – feminismos pretos, lésbicos, comunitários
e populares; com a organização de mulheres, sindicalistas, trabalhadores rurais
etc.; com o envolvimento de feministas que procuraram influenciar e participar
das políticas eleitorais; e com as novas oportunidades de interação em diversas
instituições sociais e políticas. Ao investigarem as origens do conceito de intersec-
cionalidade, hoje central na teoria e práxis feministas, Collins e Bilge (2016) tam-
bém chamam a atenção para o pioneirismo das mulheres negras brasileiras que,
vivenciando o gênero como intimamente interligado com sua identidade racial e
posições de classe, tiveram um papel pioneiro no entendimento da intersecciona-
lidade, tanto enquanto teoria como enquanto práxis.
Este capítulo busca, portanto, situar teórica e comparativamente as defi-
nições de feminismo apresentadas pelas mulheres do feminismo estatal partici-
pativo brasileiro, em comparação com as definições correntes e emergentes nas
teorias e práxis do feminismo transnacional.
De início, é importante observar que, considerando-se as faixas etárias das
nossas entrevistadas (como pode ser visto no Capítulo 1 do Volume 1, quase cer-
ca de metade das delegadas em ambas CNPMs têm até 44 anos e, a outra meta-
de, 45 anos ou mais), podemos pressupor que o conjunto das delegadas, cujos

58
entendimentos do feminismo investigamos neste capítulo, inclui as diferentes ge-
rações de mulheres que ajudaram a construir as várias concepções e práticas do
feminismo no Brasil nas últimas quatro décadas. E esses feminismos brasileiros,
por elas construídos, têm tido uma trajetória, convergente com as dos feminismos
do norte global e do sul global, que vão do feminismo dos direitos dos anos se-
tenta até o atual feminismo interseccional e emancipatório.
Iniciamos este capítulo, assim, com a nossa pergunta original reformulada
para, já explicitar, a definição de feminismo que utilizaremos:
Em que medida as mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro se
consideram feministas e pensam o feminismo em uma perspectiva interseccional e
emancipatória, na qual os direitos das mulheres e a igualdade de gênero estão in-
terligados a fatores além da identidade de gênero – tais como classe social, raça,
orientação sexual e identidade de gênero –, e que inclui a luta pela justiça social e
igualdade para todos?

Quem se considera feminista, e como o feminismo é definido


pelas mulheres das CPNMs?

Feminismo, luta pelos direitos das mulheres e igualdade de gênero não são
frequentemente vistos pelas pessoas como sinônimos ou equivalentes. De fato,
para muitos – homens, mas também mulheres, que acreditam ou não nos direi-
tos das mulheres e na igualdade de gênero –, a palavra “feminismo” continua a
inspirar controvérsias e a provocar respostas viscerais, muitas vezes equivocadas e
carregadas de preconceitos e fortes sentimentos negativos. E, como veremos neste
capítulo, também entre as delegadas das CNPMs de 2011 e 2016, existem aque-
las que, mesmo reconhecendo os direitos das mulheres, consideram o feminis-
mo como um movimento muito radical e negativo e com o qual absolutamente
não se identificam. Além disto, mesmo entre aquelas que se definem como femi-
nistas, os entendimentos e definições de feminismo são diversos e nem sempre
convergentes.
Veremos a seguir como essas controvérsias emergem nos dados das pesqui-
sas das CNPMs realizadas em 2011 e 2016. Em resposta às questões “Tem mulhe-
res que dizem que são feministas. Você se considera uma feminista?” (Pesquisa
2011) e“Tem mulheres que se declaram feministas. Você se considera uma femi-
nista” (Pesquisa 2016), a grande maioria, ou mais de oito em cada dez mulheres,
em 2011 e 2016, se considerou feminista, mas cerca de 17%, tanto em 2016 quan-
to em 2011, não se consideraram feministas. Como seria esperado, porcentagens
muito pequenas (1,7% em 2011 e 5,5% em 2016) dizem não saber se classificar ou
dizer o que é o feminismo.

59
Tabela 1. Autoclassificação como feminista ou não feminista
Considera-se feminista*
2011 2016
Sim Não Sim Não
82,40% 17,60% 82,30% 17,70%
*Em resposta às questões “Tem mulheres que dizem que são feministas. Você se considera uma
feminista?” (Pesquisa 2011) e “Tem mulheres que se declaram feministas. Você se considera uma
feminista?” (Pesquisa 2016).

O Capítulo 1, do Volume 1, apresenta e discute o perfil sociodemográfico


das entrevistadas, fazendo a distinção entre as que se consideram feministas e as
que não se consideram feministas. Assim, neste capítulo, gostaria apenas de ob-
servar que, apesar de acharmos algumas correlações curiosas, em geral, os dados
sociodemográficos se mostraram poucos explicativos das autoclassificações das
delegadas como feministas ou não. Considerando-se a raça, por exemplo, tanto
em 2011 quanto em 2016, cerca de 80% das brancas e negras se identificaram
como feministas; no caso das faixas etárias, as mais jovens (até 34 anos) se iden-
tificaram mais como feministas, mas a identificação também é muito alta entre as
delegadas com 45 anos ou mais (cerca de 80% em ambos os casos), e a identifica-
ção como feminista curiosamente cai entre as delegadas na faixa de 35 a 44 anos,
tanto em 2011 quanto em 2016. Quanto se trata da orientação sexual, há um
percentual de cerca de 10% de diferença entre as heterossexuais e as lésbicas nas
duas pesquisas, cerca de 80% e 90%, respectivamente.
Se os dados referentes à identificação com o feminismo não causam muita
surpresa, as análises das respostas às questões abertas sobre as definições de fe-
minismo – “A sra. poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo?”
(2011) e “O que é o feminismo para você? Você poderia me dizer quais são suas
concepções do feminismo, ou em que você pensa ao falar em feminismo?” (2016)
– revelam, em alguns casos, a nomeação espontânea de ideias básicas centrais
do feminismo, mas também a pouca menção ou mesmo a ausência de conceitos
ligados a uma abordagem interseccional e a uma perspectiva emancipatória do
feminismo.
Contudo, antes de iniciarmos a análise das respostas, temos que indagar
de maneira crítica o que uma pergunta aberta em um questionário de survey
mede. Devemos analisar as respostas considerando não apenas seus conteúdos
substantivos, mas também possíveis vieses metodológicos. Em primeiro lugar,
é preciso indagar se as respostas abertas em um questionário de survey me-
dem simplesmente o que é mais saliente no momento da entrevista, ou o que

60
as entrevistadas consideram de fato como mais importante (SIMÕES, 2014;
SUDMAN; BRADBUM; SCHWARZ, 1996; GEER, 1988).
Há também uma percepção generalizada, mas equivocada, que uma ques-
tão aberta necessariamente levaria a respostas mais aprofundadas e refletidas. No
contexto de uma entrevista de survey, utilizando o questionário como instrumen-
to de coleta de dados, as respostas às questões abertas tendem a ser muito curtas,
não claras e a não atender aos objetivos da questão, ou seja, não medir o que
se pretendeu medir (SIMÕES; PEREIRA, 2004; SCHUMAN; PRESSER, 1981).
Um recurso metodológico para esse problema de medição e validade dos dados
é treinar os entrevistadores a utilizarem probes, questões curtas e adicionais para
o esclarecimento das respostas (BEATTY; WILLIS, 2007; SIMÕES; PEREIRA,
2004). Entretanto, dado o contexto da condução das entrevistas – que ocorreram
durante as conferências, quando as entrevistadas tinham suas agendas de grupos
de discussão e trabalho interrompidas para a concessão da entrevista –, o tempo
para se explorar e esclarecer respostas curtas e ambíguas às questões abertas foi
ainda mais limitado, e restringiu o uso consistente e eficaz dos probes pelos nossos
entrevistadores.
Levando em consideração essas questões metodológicas, podemos analisar
agora as falas das entrevistadas. Em primeiro lugar, buscamos fazer uma análise
de conteúdo de discurso, verificando as palavras utilizadas e medindo o número
de ocorrências das ideias e conceitos mais presentes na teoria e práxis feministas.
Na nossa análise agregamos palavras que, apesar de pequenas diferenças semânti-
cas, avaliamos ter equivalência conceitual. É preciso notar também que contamos
o número total de vezes em que palavras foram usadas nas respostas a uma ques-
tão aberta, independentemente de terem sido usadas mais de uma vez em uma
mesma resposta.
As nuvens com as palavras usadas nas respostas às questões abertas (Nuvens
de Palavras A e B abaixo) nos permitem uma visualização comparativa dos ter-
mos mais usados em 2011 e 216 entre as delegadas que se consideraram feminis-
tas e entre aquelas que não se consideraram feministas.

61
Figuras 1 e 2: Nuvens de Palavras 2011 e 2016 A – Feministas
Respostas às perguntas abertas para as que se declararam feministas em questão fechada anterior
– 2011: “A sra. poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo?”; 2016: “O que é o femi-
nismo para você? Você poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo, ou em que você
pensa ao falar em feminismo?”.

Figuras 3 e 4: Nuvens de Palavras 2011 e 2016 A – Não Feministas


Respostas às perguntas abertas para as que não se declararam feministas em questão fechada ante-
rior – 2011: “A sra. poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo?”; 2016: “Em que você
pensa quando houve a palavra feminismo?”.

Observamos que, tanto em 2011 quanto em 2016 (Tabela 2), entre as entre-
vistadas que se consideraram feministas, os termos que mais apareceram, respec-
tivamente, foram: mulher (259, 277), direitos (124, 151), igualdade (110, 142).
É interessante notar que a palavra “lutar” recebeu um número ainda mais alto

62
de menções em 2016 (144), nas entrevistas conduzidas durante a CNPM reali-
zada em maio de 2016 e em dias que coincidiram com o início do processo de
impeachment da primeira mulher presidente no Brasil, Dilma Rousseff. É grande
o número de delegadas que deram centralidade à práxis e à identidade nas suas
definições de feminismo:

• “O feminismo é a luta diária e cotidiana pelos direitos das mulheres.”


• “Luta, opinião, mulheres guerreiras.”
• “Defesa da mulher, erguer a bandeira, amor à identidade feminina.”
• “É lutar diariamente pela emancipação política, econômica, social,
cultural das mulheres.”
• “Aquela mulher que sempre protege a outra mulher, dá as mãos para ela,
vai junto, participa com ela.”
• “Movimento de mulheres, união, força.”
• “É querer transformar um mundo em um lugar melhor para as mulheres.”
• “É entrar na luta e defender o que é certo para as mulheres.”
• “Uma forma de lutar por igualdade e liberdade.”
• “Significa luta, força, para que as mulheres tenham mais direitos.”
• “Eu não sei direito a definição, mas eu penso que é a mulher que luta
pelo direito das mulheres.”
• “Mulher que na maioria das vezes já sofreu por conta de ser mulher e a
partir disso passa a lutar pelas mulheres.”

Cabe ressaltar que o conceito de gênero – que só começa a ser utilizado na


teoria e práxis feministas nos anos 1980 – recebe um número bem menor de men-
ções, mas que cresce um pouco em 2016 (36 em 2011 e 55 em 2016). Já o termo
homem (44 e 47, respectivamente), que tem adquirido intensificada atenção com
as perspectivas que ressaltam a necessidade de inclusão dos homens no movimen-
to feminista, aparece apenas como parte das respostas que definem o feminismo
como “igualdade de direitos entre mulheres e homens”, e seu uso permanece qua-
se o mesmo de 2011 (47) para 2016 (44), apesar de ter recebido grande visibilida-
de nos movimentos, nas manifestações de ruas, na mídia social e em campanhas
como a “He For She” das Nações Unidas. Nas palavras de uma delegada:

• “O feminismo trata da luta por direito de igualdade entre os sexos apesar


das diferenças. O feminismo trata das questões das mulheres que, são,
sem dúvida, as maiores vítimas, mas também poderia significar uma
libertação para os homens, que em alguns aspectos também sofrem com
este sistema de violência em relação à imposição de papéis.”

63
Duas entrevistadas ofereceram definições chamando a atenção para o fato
de que o feminismo não é um movimento contra ou anti-homen:

• “Feminismo é igualdade. Feminismo não é anulação do homem na


sociedade.”
• “Feminismo não é luta contra homens, mas contra uma estrutura que
historicamente oprime as mulheres.”

Apesar dos altos níveis de escolaridade das delegadas (quase 2/3 das dele-
gadas em 2011 e 2016 têm curso superior ou pós-graduação, como discutido no
Capítulo 1, Volume 1), conceitos que vão além das noções básicas de direitos e
igualdade e que são centrais para elaborações mais abrangentes e refinadas do fe-
minismo também recebem poucas menções – tais como autonomia (29 citações
em 2011 e 31 em 2016) e empoderamento (7 e 22, respectivamente). O conceito
de patriarcado, central para a explicação e compreensão das relações de gênero,
recebeu apenas 10 menções em 2016 e 11 em 2011. É curioso observar que o
conceito interseccional só recebeu uma citação em 2011 e em 2016; e transversal
mencionado apenas uma vez em 2016 e em 2011 (transversalidade). De maneira
semelhante, noções centrais ao feminismo interseccional também obtiveram um
número muito reduzido de menções: raça (apenas 6 em ambos os anos), sexuali-
dade (15 em 2011 e 14 em 2016), trabalho (15 em 2011 e 12 em 2016). Apesar do
alto índice de sindicalização entre as delegadas (ver Capítulo 1), o sindicato não
é espontaneamente mencionado em 2011, e apenas 1 vez em 2016 pelas entrevis-
tadas ao definirem o feminismo.
O termo “mundo” só apareceu em 11 respostas em 2011 e 5 em 2011, ape-
sar da importância do feminismo transnacional na emergência e desenvolvimen-
tos dos feminismos no Brasil e dos feminismos brasileiros para a o diálogo norte-
-sul e para a evolução da agenda feminista internacional:

• “O feminismo norteia a luta das mulheres no Brasil e no mundo.”

Também chama a atenção o fato de que, apesar da violência contra as


mulheres ter sido apontada pelas entrevistadas como um dos maiores problemas
enfrentados pelas mulheres no Brasil, nos estados e nos munícipios (Tabelas 5),
a sua menção espontânea em definições do feminismo raramente apareceu (10
vezes em 2011 e 8 em 2016).
É também muito curioso e indicador de uma possível perda de centralida-
de dos papéis tradicionais das mulheres (como mães e donas de casa), enquanto

64
motivações para o ativismo de mulheres na esfera pública (especialmente se com-
parado com década de setenta, quando a defesa das condições de vida da família
era motivação fundamental nos movimentos de mulheres), que a palavra “famí-
lia” só foi mencionada 3 vezes em 2011 e 4 vezes em 2011. Mais ainda, a centrali-
dade da família só apareceu em uma definição de feminismo (“Defender a família,
se preocupar com a base estrutura familiar”). Por outro lado, contudo, a divisão
sexual do trabalho doméstico e cuidado com os filhos foram também raramente
mencionados, apesar da sua centralidade na manutenção de papéis tradicionais
de gênero e da segregação ocupacional das mulheres, fatores considerados expli-
cativos da persistência das desigualdade de gênero em várias outras esferas.

Tabela 2. Número de citações de palavras em resposta à questão aberta


“O que é o feminismo para você? Você poderia me dizer quais são suas concepções
do feminismo, ou em que você pensa ao falar em feminismo?”
2011 2016
Termo Feminista
Sim Não Sim Não
Mulher 259   277 14
Direitos 124   151  
Igualdade 110   142  
Lutar 118   144  
Gênero 36   55  
Patriarcado 10   11  
Autonomia 28 1 31  
Empoderamento 7   22  
Interseccional     1  
Transversal 1   1  
Homem 47   44  
Raça 6   6  
Sexualidade 15   14  
Classe   5  
Trabalho 15   12  
Sindicato     1  
Violência 10   8  

65
É significativo que, de uma lista com termos frequentes e importantes em
um discurso feminista, como mostrado na Tabela 2, apenas o termo “autonomia”
foi citado, e apenas uma vez, pelas entrevistadas que declararam não ser feminis-
tas. E, em contraste com as linguagens usadas pelas delegadas que se identificaram
como feministas, entre as delegadas que não se consideraram feministas, o termo
“radical” foi o mais mencionado, tanto em 2011 quanto em 2016, e associado a
visões negativas e fortemente contrárias ao que acreditam que o feminismo seja,
como veremos mais adiante e como pode ser muito bem visualizado na Nuvem de
Palavras B acima. Em alguns casos, porém, o uso do termo radical aparece mais
associado a críticas internas ao movimento:

• “Feminismo é você respeitar sua companheira, fazer crítica construtiva,


existem feministas muito radicais.”

Indo além da análise do uso de determinadas palavras e conceitos, ana-


lisamos a seguir as respostas sobre o entendimento do termo feminismo, e as
classificamos em categorias que revelam alguns desentendimentos, entendimen-
tos básicos e outros mais complexos e correntes do feminismo:

1. Radical negativo: uma visão visceralmente antagônica, muitas vezes ca-


ricatural do feminismo como sendo anti-homens ou “coisa de mulheres au-
toritárias e briguentas” (2011: 6,5%; 2016: 13,5%). Alguns exemplos:

• “O feminismo é um movimento muito radical, não quer igualdade com


o homem. Querem se sobressair mais que o homem.”
• “Não sei te responder. São pessoas muito revoltadas com tudo, total-
mente contra homens, mas não sei se em todos os estados é assim.”
• “É uma radicalidade onde revolta-se contra o homem achando que to-
dos os homens são iguais e que as mulheres são sempre vítimas.”
• “Pessoas brigando, se descabelando, brigando, acampar, passeata.”
• “Feminismo é algo radical pelo que eu conheci, há pessoas com quem
não consigo dialogar. Não é pessoa maleável, vai defender até morrer.
Uma causa que as pessoas defendem a ferro e fogo.”
• “Pessoas arrogantes.”
• “Feminismo é um exagero da condição de ser fêmea, ser mulher apro-
priando-se de características masculinas para impor uma identidade
feminina.”
• “O discurso é de equidade mas a prática é de superioridade.”

66
2. Igualdade de gênero: definições que tendem a ser relacionais fazendo
referências à igualdade com homens, mas que não enfatizam as dimensões
transformadoras, de empoderamento e autonomia do feminismo (2011:
12%; 2016: 23%). Alguns exemplos:

• “Lutar pelo direito das mulheres, igualdade de direitos em relação aos


homens.”
• “Não aceitar que só os homens podem, igualdade em todos os sentidos,
somos igualmente capazes.”
• “Um movimento em busca de igualdade entre os gêneros. Discorda da
mulher ser superior ao homem.”
• “Basicamente, é a equiparação de gênero, contra a cultura de submis-
são da mulher; quebrar os abusos que existem contra a atuação da mu-
lher no âmbito político, profissional, público. Ter direito a ter direito. A
igualdade de gênero é o que mais fundamenta o feminismo.”
• “Saber que o homem desde o início da história é o que manda e a mu-
lher obedece. Feminista é romper com esses laços do passado e assumir
que temos direitos iguais aos dos homens.”
• “Feminismo é a luta de igualdade entre os sexos; é a mulher ser conside-
rada um ser de direito, como os homens.”

3. Direitos, autonomia e empoderamento das mulheres: definições nas


quais os conceitos de “mulher” e “direitos” têm centralidade, mas que tam-
bém incluem ideais de autonomia, empoderamento e liberdade (2011:
63%; 2016: 46%). Alguns exemplos:

• “Ideia radical de que as mulheres são sujeitos de direito.”


• “A ideia radical de que somos gente.”
• “Ato de indignação ao sistema imposto do espaço e papel das mulheres
na sociedade.”
• “É libertador, traz emancipação, empoderamento, autonomia; é superar
a opressão de gênero.”
• “Empoderamento; movimento de luta constante que me permite chegar
onde eu cheguei.”
• “Feminismo é você ser dona do seu corpo, das suas ideias, mas também
compartilhar. É você ter a tua vez e fazer valer o direito de ter a tua vez.”
• “… não aceitar nenhuma atitude imposta, humilhante.”
• “... é ter sua autonomia, ser dona de si, ter seu próprio pensamento.”

67
• “Empatia, sororidade, se amar, empoderamento, mudança, liberdade,
poder, amizade entre as mulheres, luta contra opressão, ser o que se é.”
• “É a busca pela autonomia da mulher. Ter controle sobre a vida própria,
corpo. Busca por direitos.”
• “Desconstruir a figura do patriarcado na sociedade judaico-cristã.
Desconstruir a história onde as mulheres estão subjugadas, ter autono-
mia sobre o corpo e econômica e ter uma educação libertária.”
• “Lutar pelos nossos objetivos, ter o direito de decidir, mandar no meu
corpo e na minha vida.”
• “Minha concepção a respeito do feminismo se baseia na consagração
dos direitos humanos de todas as mulheres, contemplando a pluralidade
e autonomia das mulheres.”

4. Emancipatória: esta categoria foi utilizada para classificar todas as defi-


nições que apontaram desigualdades não apenas intergênero, mas também
as desigualdades intragênero, ou seja, as diferenças entre as mulheres, com
base em qualquer menção a um ou mais fatores em uma perspectiva inter-
secional (por exemplo, raça, classe social, orientação sexual e identidade de
gênero), e também menções de ideais coletivos de igualdade e justiça social
(2011: 15%; 2016: 10%). Alguns exemplos:

• “Igualdade social, racial, étnica, econômica.”


• “Lutar por uma sociedade sem patriarcado, anticapitalista, antirracista
e anti-homofóbica.”
• “No feminismo o olhar para as mulheres negras é recente e preciso pen-
sar sobre a opressão dessas mulheres.”
• “Participação do movimento LGBT, que participa mais da causa
feminina.”
• “É um projeto emancipatório, que envolve vários grupos já que as mu-
lheres não são iguais.”
• “É defender e lutar por direitos das mulheres independente de cor, raça
ou opção sexual.”
• “Feminismo interseccional que pensa e faz política para as mulheres da
periferia, para mulheres trans; seria um feminismo voltado para as po-
líticas públicas.”
• “Ideário de equidade de gênero em toda a transversalidade que a temá-
tica contempla.”
• “Equidade, enfrentamento ao racismo, sexismo e patriarcado. A questão
da lesbofobia e o capitalismo.”

68
• “O feminismo não é uma questão de teoria, é uma filosofia de vida, uma
política, defende a construção de um mundo de igualdade, a transfor-
mação da sociedade para a conquista do bem-estar das mulheres como
um todo, defende os direitos das mulheres. Tem sua abrangência sem
excluir; no Brasil nós temos vários feminismos. Devemos respeitar essa
diversidade. Não é apenas uma maneira de ser, é uma filosofia de vida.”
• “É uma vontade de construir uma outra sociedade baseada na igualdade
e que essa sociedade seja anticapitalista e não patriarcal.”
• “Que as pessoas sejam vistas e tratadas com direitos e oportunidades
iguais para todos e todas.”
• “Para mim feminismo é um compromisso de ação política, em favor das
mulheres e pela transformação do mundo. Nosso slogan é esse: ‘trans-
formação do mundo pelo feminismo’.”
• “Do meu ponto de vista, embora existam questões específicas, a eman-
cipação das mulheres está intimamente ligada à emancipação social e,
portanto, a luta feminista deve andar junto com a luta por uma socieda-
de justa e igualitária. Por isso mesmo, ao se organizarem as lutas, deve-
-se pensar que não existe a mulher, mas as mulheres, que se diferenciam
conforme sua condição social, sua raça/cor, sua geração, sua orientação
sexual, a região onde residem.”
• “Construir uma sociedade justa e igualitária.”
• “Feminismo é auto-organização das mulheres em luta para transformar
o mundo e promover igualdade. É um movimento social e uma prática
política.”
• “Mudança radical na sociedade, mundo mais humano.”
• “Emancipação humana, não só da mulher, igualdade como um todo.”
• “Uma ideologia para mudar o mundo. Mudar a vida das mulheres para
mudar o mundo, e mudar o mundo para mudar a vida das mulheres,
garantindo que as mulheres sejam tratadas como iguais.”

Apesar da força da convicção e da clareza de algumas respostas acima apre-


sentadas, mais uma vez notamos que, nas respostas às questões abertas, entendi-
mentos intersecionais e emancipatórios do feminismo foram pouco apresentados,
proporcionalmente ao total de respostas (2011: 15%; 2016: 10%). Assim prosse-
guimos nossa análise buscando identificar perguntas atitudinais das pesquisas, ou
seja, aquelas que medem as crenças e opiniões das entrevistadas e que pudessem
melhor revelar o feminismo das delegadas das CNPMs 2011 e 2016. É o que fa-
remos a seguir.

69
Quais são as atitudes (crenças e opiniões) das mulheres do
feminismo estatal brasileiro?

As duas ondas da pesquisa incluíram baterias de questões que investigaram


crenças e opiniões das entrevistadas em relação a causas e agendas feministas.
Duas dessas baterias se mostraram particularmente reveladoras do feminismo das
delegadas, mostrando a importância e prioridade que elas dão às desigualdades
intragênero e também às desigualdades além das relações de gênero.
Nesta seção do capítulo, portanto, consideraremos também, como indica-
dores adicionais do feminismo das delegadas, as suas atitudes (crenças e opiniões)
em relação a questões relativas às desigualdades não apenas entre mulheres e ho-
mens, mas entre as mulheres, questões sobre desigualdades e discriminação com
base na raça, classe, orientação sexual e identidade de gênero – questões centrais
para o novo feminismo intersecional que tem se expandido e se afirmado, não
apenas no Brasil, mas em todo o mundo.
Em ambas as pesquisas há uma bateria com perguntas abertas atitudinais
sobre a percepção e opiniões das entrevistadas acerca: a) das principais desigual-
dades entre homens e mulheres, b) do que deveria ser mudado para melhorar a
vida das mulheres, e c) dos principais problemas enfrentados pelas mulheres no
Brasil, nos estados e nos municípios. Comparadas com as respostas ao entendi-
mento de feminismo oferecidas com a pergunta aberta inicial, as respostas a estas
questões, também abertas, podem surpreender pela prioridade dada aos proble-
mas pertinentes a uma perspectiva interseccional do feminismo.
Como pode ser visto na Tabela 3, mais da metade das delegadas em 2011 e
em 2016 acreditam que as principais desigualdades entre homens e mulheres são
relativas à classe (trabalho/profissional/salário/renda). Bastante abaixo, mas em
segundo lugar, são citados outros fatores centrais para a perspectiva interseccio-
nal (como racismo/machismo/sexismo).

70
Tabela 3. Desigualdades que existem entre homem e mulher – Em primeiro lugar*
Ano
Resposta 2011 2016
% %
violência 3,9 3,3
trabalho/profissional/salário/renda 62,7 56,7
esfera privada e cuidado 6,2 4,7
racismo/machismo/sexismo 11,5 12,9
liberdade/sexualidade 3,1 1,9
política/poder 7,8 13,4
outros 2,2 2,5
Sem resposta 2,5 4,7
*Pergunta aberta: “Pensando no mundo de hoje, quais são para você as principais desigualdades
que existem entre as mulheres e os homens? O que mais é desigual? E em segundo lugar? E em
terceiro lugar?”

Na questão seguinte – sobre o que deveria mudar para melhorar a vida das
mulheres –, mais uma vez são as questões relativas à situação de classe (equipa-
ração profissional/renda em 2011 e trabalho/renda em 2016) aquelas mais espon-
taneamente citadas, seguidas pela participação política/poder/políticas públicas e
autonomia/liberdade. O combate a discriminações/igualdade aparece com desta-
que em 2016. O racismo, sexismo e lesbofobia recebem poucas citações em 2011
e não são mencionados em 2016.

71
Tabela 4. O que mudar para que a vida das mulheres melhorasse em primeiro lugar*
Ano
Resposta 2011 2016
% %
combate à violência 8,7 6,6
equiparação profissional/renda 15,3
esfera privada e cuidado 3,4 2,2
trabalho/renda 24,9
combate a discriminações/igualdade 17,8
autonomia/liberdade 13,4 12,1
desenvolvimento 0,8
terra, campo e floresta 0,6
cultura, esporte, mídia 0,3
racismo, sexismo, lesbofobia 6,2
participação política/poder/políticas públicas 12,6 22,7
educação creche 14 12,3
saúde da mulher/direito ao corpo 3,9 3
outros 6,7 1,1
sem resposta 4,5 6,8
*Pergunta aberta: “Se você pudesse mudar qualquer coisa para que a vida de todas as mulheres
melhorasse, qual seria a primeira coisa que você faria? E a segunda? E a terceira?”

Apesar de pouco mencionada nas questões anteriores, a questão da violên-


cia é destacada por cerca de 1/3 das entrevistadas como sendo o principal proble-
ma das mulheres, tanto no Brasil, quanto no seu estado e na sua cidade. Tendo
em mente as menções relativas a fatores centrais na perspectiva interseccional
emancipatória, é importante notar que os problemas mais citados em 2011 foram
trabalho/renda, educação/creche, autonomia/liberdade, participação política/po-
der, políticas públicas e, em 2016, foram a participação política/poder, políticas
públicas, combate a discriminações/igualdade e equiparação/profissional renda.
Curiosamente, essa ordenação de problemas no Brasil se mantém muito seme-
lhante para os estados e cidades, como pode ser visto na Tabela 5 abaixo.

72
Tabela 5. Principal problema das mulheres no Brasil, estado e município
Brasil Estado Município
2011 2016 2011 2016 2011 2016
Respostas
% % % % % %
trabalho/renda 23,5 10,7 14 11,2 16 11,8
educação 3,1 1,9 5,3 0,8 3,4 1,1
saúde 3,6 3,8 4,8 4,1 5,9 4,1
violência 36,7 37,8 32,2 38,1 29,1 36,7
participação política 4,5 5,8 6,2 4,4 6,7 3
políticas públicas   2,7   7,4   5,2
desenvolvimento   0 0,3     0,6
terra/moradia/comunidades
  2,2 23,8     1,6
tradicionais
família/trabalhos domésticos   19,7   0,3   1,4
racismo, sexismo, lesbofobia   9,3   0,5 20,7  
discriminações 0,8     5,5   7,4
desigualdades 20,7     13,4   6,3
outros 2,2 0,5 6,7 7,1 7,6 8,2

O questionário de 2011 incluiu uma bateria de atitudes relativas a itens


proeminentes na agenda feminista nos anos setenta (a chamada segunda onda
do feminismo) e relativos aos papéis tradicionais de gênero, à divisão do trabalho
doméstico e ao cuidado dos filhos. O questionário de 2016 expandiu essa bateria,
introduzindo três itens relativos à relação do feminismo e políticas públicas com a
questão racial, a orientação sexual e a identidade de gênero, além de quatro itens
relativos à discriminação racial, lesbofobia/homofobia/transfobia.
Pelo menos 8 em cada 10 das entrevistadas concordaram totalmente ou em
parte com as seguintes afirmativas:

• Os movimentos de mulheres e feministas devem incorporar também a


luta contra o racismo como uma bandeira fundamental.
• Os movimentos de mulheres e feministas devem incorporar o en-
frentamento à lesbofobia/homofobia/transfobia como bandeiras
fundamentais.
• As mulheres afrodescendentes/negras e indígenas têm demandas espe-
cíficas que devem ser contempladas nas políticas públicas.

73
• No Brasil, as mulheres afrodescendentes/negras e indígenas sofrem dis-
criminação em função da raça/cor.
• As cotas raciais para as universidades públicas no Brasil representam
um avanço social.

Pelo menos 8 em cada 10 das entrevistadas discordaram totalmente ou em


parte com as seguintes afirmativas:

• As relações afetivas/sexuais devem necessariamente acontecer somente


entre um homem e uma mulher.
• As crianças negras, por causa da diferença de sua raça, têm mesmo mais
dificuldades para aprender.
• Os(as) brancos(as), em geral, são mais estudiosos(as) que os(as)
negros(as).

Essas novas medidas atitudinais do survey de 2016 – com indicadores de


opiniões e crenças contrárias ao preconceito e discriminação racial, à lesbofobia,
à homofobia e à transfobia – nos permitiram construir o Índice de Atitudes Pró-
feminismo Intersecional para a pesquisa de 2016. A Tabela 6 mostra que cerca de
1/3 das delegadas apoiam totalmente importantes valores e itens de uma agenda
feminista interseccional, enquanto 2/3 tendem a apoiar. Chama a atenção tam-
bém que nenhuma entrevistada discordou totalmente destes itens de uma agenda
feminista.

Tabela 6. Índice Atitudes Pró-Feminismo Interseccional (IAPFI)*


CNPM 2016
IAPFI %
2. Tende a discordar do feminismo interseccional 1,4
3. Tende a apoiar o feminismo interseccional 62,7
4. Apoia totalmente o feminismo interseccional 32,1
NR 3,8
Total 100
*Índice de Atitudes Pró-Feminismo Intersecional:
Algum nível de concordância = 1; Nenhum nível de concordância = 0. Somatório varia de 0 a 7.
Se somatório: igual a 5, então IAPFI = 4; menor que 5 e maior que 2,99, então IAPFI = 3; menor que
3 e maior que 0,99, então IAPFI = 2; igual a 1, então IAPFI = 1; igual a 0, então IAPFI = 0.

Neste ponto da nossa análise, após considerarmos as atitudes (opiniões e


crenças) em relação a causas e a itens de uma agenda feminista, de acordo com

74
as medidas e indicadores incluídos nas pesquisas de 2011 e 2016, encontramos –
indo para além da autoclassificação das respostas das delegadas na questão aber-
ta sobre as concepções de feminismo – evidências adicionais para classificar as
delegadas das CNPMs como sendo majoritariamente feministas. É importante
qualificar, entretanto, que apenas as questões fechadas atitudinais (afirmativas
com as quais as entrevistas deviam concordar ou discordar) produziram um índi-
ce muito alto não apenas de atitudes feministas, mas de atitudes favoráveis a um
feminismo interseccional. Nas respostas às questões atitudinais abertas (sobre os
principais problemas enfrentados pelas mulheres no país, estado e município) as
questões relativas à classe social tiveram muitas citações espontâneas, mas racis-
mo, sexismo, lesbofobia foram raramente mencionados.
Entretanto, ao encontrarmos evidências nas respostas às questões sobre
percepções e opiniões para classificar as delegadas das CNPMs como sendo ma-
joritariamente feministas, temos que ter em mente que, por um lado, a validade
das medidas atitudinais em um survey pode ser questionada, dada a possibilidade
de as respostas serem editadas pelas entrevistadas para expressar opiniões social-
mente desejáveis ou politicamente corretas. Por outro lado, como é frequente-
mente encontrado pelas ciências sociais, e especialmente pela metodologia de sur-
vey, atitudes tendem, muitas vezes, a não serem consistentes ou correlacionadas
a comportamentos. Portanto, buscaremos responder à nossa pergunta inicial – se
as mulheres do feminismo estatal participativo brasileiro são feministas – conside-
rando a seguir as medidas mais “duras” da nossa pesquisa, ou seja, as medidas de
seus comportamentos, das suas práticas e de seus ativismos. Esperamos que os
comportamentos das entrevistadas possam nos ajudar a entender não apenas a
extensão ou difusão do feminismo entre as delegadas, mas também a profundi-
dade desses feminismos.

Qual é a práxis das mulheres do feminismo estatal participativo


brasileiro?

No caso das nossas duas pesquisas, podemos buscar nas respostas às ques-
tões sobre o comportamento das entrevistadas indicadores para as suas concep-
ções sobre o feminismo que vão além das respostas sucintas e pouco elabora-
das para a questão aberta inicial e também vão além das respostas às questões
atitudinais relativas a causas feministas, as quais podem ser, em parte, efeito de
respostas socialmente desejáveis. Buscaremos, portanto, nas medidas de compor-
tamento das entrevistadas, a confirmação de suas percepções e posições feminis-
tas, ou o que os seus discursos podem não ter revelado. Nesta seção do capítulo

75
procuraremos conhecer as concepções do feminismo pelas delegadas não apenas
considerando o que elas dizem, mas como agem. Para isto utilizaremos as medi-
das de associativismo e ativismo político das pesquisas 2011 e 2016.
Em primeiro lugar, consideraremos a participação em movimentos de
mulheres. Como poderia ser esperado das delegadas nas CNPMs, suas partici-
pações em diversas atividades, reuniões, manifestação dos movimentos de mu-
lheres são bastante intensas: cerca de 80% em 2011, assim como em 2016, relata-
ram participar sempre, cerca de 15% em 2011 e 2016 disseram participar às vezes
e apenas 4% em ambos os anos nunca participaram. Além desta participação em
atividades, em 2016, 74,6 % das delegadas relataram participar formalmente (ser
filiada) ou informalmente (participar de reuniões) de movimentos ou redes de
mulheres ou feministas.
Contudo, ao indagarmos se as mulheres do feminismo estatal participativo
brasileiro são feministas, investigamos se, além da participação nos movimentos
de mulheres, as delegadas das CNPMs de 2011 e 2016 praticavam um feminismo
interseccional, lutando contra discriminações e desigualdades para além do gêne-
ro. Buscamos explorar também seus conhecimentos e suas ações em outros mo-
vimentos, redes e partidos e estabelecer uma distinção entre seu associativismo
civil e político e seu ativismo político.
Para medir o associativismo civil e político, perguntamos sobre a partici-
pação em uma ampla gama de grupos, entidades e organizações, como enumera-
do na descrição da Tabela 7, que mede o associativismo em movimento ou rede
de mulheres ou feminista, mas também em movimentos ou grupos que se orga-
nizam em oposição às desigualdades socioeconômicas ou de classe, em defesa do
meio ambiente, em combate ao racismo, à homofobia, à lesbofobia, à transfobia,
ou seja, em torno de clivagens sociais centrais à teoria e práxis interseccional. De
início descobrimos que, em 2016, 35% das delegadas também participavam for-
mal (como membro) e informalmente (participando de reuniões) do movimento
negro; 19,3% de coletivos LQBT; 43,5% de sindicatos e 29,8% de movimentos
ambientais e ecológicos.
Colocamos agora uma nova questão para nossa análise: a participação e o
ativismo múltiplo em e com agendas de classe, de raça, de identidade de gênero
e orientação sexual seriam suficientes para conceituar o feminismo das delega-
das como um feminismo interseccional? O conceito de feminismo intersecional
requer não apenas a participação em múltiplos e diversos movimentos, grupos,
redes e entidades, mas também a consciência, a vivência e a promoção das inter-
conexões entre as lutas pela igualdade de gênero e aquelas contra os principais
sistemas e estruturas de desigualdades sociais e políticas. Portanto, ao criarmos

76
uma medida que apenas adicionou as múltiplas formas de associativismo das de-
legadas, consideramos ser mais conceitualmente correto nomeá-lo enquanto ape-
nas um Índice de Associativismo Civil e Político Potencialmente Intersecional
(IACPPI). Os níveis do IACPPI medem apenas o número de associações das
quais as delegadas participam e pressupõe que, quanto maior o número das asso-
ciações, potencialmente maior será a participação das delegadas em uma agenda
múltipla e intersetorial que permita a expansão do feminismo para vários lugares,
potencializando assim as oportunidades para interconexões das agendas de luta e
uma práxis emancipatória, transformadora das atuais relações sociais de desigual-
dade, discriminatórias e de exploração.
Como mostra a Tabela 7, é bastante alta a proporção das mulheres do femi-
nismo estatal participativo brasileiro com níveis altos de um associativismo civil
e político potencialmente intersecional, mas com diminuição significativa entre
2011 e 2016. Em 2011, 23,5 % participaram em 4 a 5 entidades e 40% participa-
ram em mais de 5; mas em 2016 os níveis caíram, com 28,2 % participando em 4
a 5 entidades e 24,1% participando em mais de 5. Essa tendência à diminuição nos
níveis de participação também se revela no fato de que a porcentagem daquelas
que não participavam de nenhuma entidade mais que dobrou, indo de 6,2% em
2011 para 15,3 % em 2016.

Tabela 7. Índice de associativismo civil e político potencialmente interseccional


Ano
Níveis de IACPPI 2011 2016
% %
0 6,2 15,3
1 ou 2 16 18,6
3 13,7 16,4
4 ou 5 23,5 28,2
acima de 5 40,6 21,4
Total 100 100
Índice de comportamento potencialmente interseccional A.
2011: Variáveis: Associação de moradores ou amigos do bairro; Associação de defesa do consumi-
dor; Grupo de defesa do meio ambiente ou ecológico; Sindicato; Associação profissional; Centro
Acadêmico, Grêmio ou união de estudantes; Igrejas e outros centros religiosos; Associação de assis-
tência social; movimento ou rede de ativismo de mulheres ou feminista; Movimento Negro; Movi-
mento Indígena; Movimento LGBT; Partido político.
Cálculo: Algum tipo de participação = 1; Outra situação = 0; Somatório varia de 0 a 13.
2016: Variáveis: Associação de defesa do consumidor; Grupo de defesa do meio ambiente ou ecoló-
gico; Sindicato; Associação profissional; Centro Acadêmico, Grêmio ou união de estudantes; Igrejas

77
e outros centros religiosos; Associação de assistência social; Movimento ou rede de ativismo de mu-
lheres ou feminista; Movimento Negro; Movimento Indígena; Movimento LGBT; Partido político.
Cálculo: Algum tipo de participação = 1; Outra situação = 0.
Somatório varia de 0 a 12.
Faixas do Índice: 0 – Não participa; Níveis de associativismo: 1 – 1 ou 2; 2 – 3; 3 – 4 ou 5; 4 – acima
de 5.

Contudo, quando analisamos o segundo índice elaborado, o Índice de ati-


vismo político potencialmente intersecional, os níveis de participação são bas-
tante altos e se mantêm os mesmos em 2011 e 2016 – cerca de 90% das delegadas
praticaram mais de cinco ações de engajamento político. Como mostra a Tabela 8,
essas ações vão dos atos de se informar e conversar com as pessoas sobre política,
assinar manifestos, a participar de campanhas políticas, de manifestações contra
ou a favor do governo e em manifestações dos movimentos de mulheres.

Tabela 8. Índice de ativismo político potencialmente interseccional


Ano
Níveis de IAPPI 2011 2016
% %
0 2 3,8
1 ou 2 0,3 0,5
3 0,6 1,4
4 ou 5 6,2 4,4
acima de 5 91 89,9
Total 100 100
Índice de ativismo político potencialmente interseccional.
2011: Variáveis: Lê ou assiste noticiário sobre política; Conversa com outras pessoas sobre política;
Quando tem eleição, tenta convencer outras pessoas a votar nos candidatos que você acha bons;
Participa de reuniões de associações ou comunidades para tentar resolver problemas no seu bairro
ou cidade;
Participa de reuniões de algum movimento ou causa social; Participa de reuniões de partidos
políticos;
Quando tem eleições, faz trabalho voluntário para algum candidato ou partido político; Faz pedi-
dos para políticos ou funcionários públicos; Assina manifestos de protesto ou de reivindicações;
Participa de manifestações a favor ou contra o governo por alguma causa;
Participa de atividades/reuniões/manifestações do movimento de mulheres;
Cálculo: Algum tipo de participação = 1; Outra situação = 0
Somatório varia de 0 a 11
2016: Variáveis: Lê ou assiste noticiário sobre política; Conversa com outras pessoas sobre
políticas;
Quando tem eleição, tenta convencer outras pessoas a votar nos candidatos que você acha bons;
Participa de reuniões de associações ou comunidades para tentar resolver problemas no seu bairro
ou cidade;

78
Participa de reuniões de algum movimento ou causa social; Participa de reuniões de partidos
políticos;
Quando tem eleições, faz trabalho voluntário para algum candidato ou partido político;
Faz pedidos para políticos ou funcionários públicos; Assina manifestos de protesto ou de
reivindicações;
Participa de manifestações a favor ou contra o governo por alguma causa;
Participa de atividades/reuniões/manifestações do movimento de mulheres;
Cálculo: Algum tipo de participação = 1; Outra situação = 0
Somatório varia de 0 a 12
Faixas do Índice: 0 – Não participa
Níveis de participação: 1 – 1 ou 2; 2 – 3; 3 – 4 ou 5; 4 – acima de 5

Indo muito além dessas medidas básicas de associativismo e ativismo ci-


vil e político potencialmente interseccionais, o Capítulo 3, a seguir neste volume,
desenvolve uma análise refinada e complexa das trajetórias do associativismo das
delegadas e demonstra teórica e empiricamente os processos de sidestreaming do
feminismo, como conceituado por Sonia E. Alvarez (2000), a criação de “fluxos
horizontais do feminismo”, ou seja, uma perspectiva que destaca a continuidade
da discriminação de gênero, mas que vai além disto para valorizar igualmente o
princípio de não discriminação baseada em raça, etnia, geração, nacionalidade,
classe ou religião, entre outros.
Acreditamos que as análises acima das várias medidas atitudinais e de com-
portamento das mulheres do feminismo estatal participativo do Brasil nos per-
mitem responder afirmativamente à questão central deste capítulo e afirmar que
a grande maioria das mulheres das CNPMs são feministas, considerando-se suas
atitudes em relação a pontos-chave de uma agenda feminista e, também, consi-
derando-seus níveis de associativismo cívico e político e ativismo político poten-
cialmente intersecionais e emancipatórios. A partir dessa avaliação, contudo,
uma curiosa questão se coloca: Como o entendimento do feminismo das mulheres
das CNPMs se compara com as concepções de feminismo entre as mulheres no Brasil
e em outros países?

Como o entendimento do feminismo das mulheres das CNPM se


compara com as concepções de feminismo entre as mulheres
no Brasil e em outros países?

Dado o volume de pesquisas sobre percepções do feminismo e dos diretos


das mulheres, poderíamos esperar encontrar um número grande de surveys, aca-
dêmicos ou conduzidos pela mídia e outros grupos interessados no tema, que per-
guntassem diretamente, em questões abertas, se os entrevistados se consideravam
feministas e também quais eram os seus entendimentos do feminismo. Contudo,

79
não encontramos muitos surveys, especialmente mais recentes ou conduzidos na
última década, que incluíssem estas duas perguntas.
No Brasil, as autoclassificações e definições do feminismo entre as mulhe-
res brasileiras em geral foram investigadas por dois surveys nacionais conduzidos
pela Fundação Perseu Abramo em 2001 e 2010. A pesquisa da Fundação Perseu
Abramo, conduzida entre as mulheres brasileiras em 2010, não incluiu a pergunta
de autoclassificação como feminista, mas na versão anterior da pesquisa, em 2001,
esta questão foi incluída, e revelou que 28% das mulheres brasileiras se declara-
ram ser feministas e 43% não se consideram feministas.
O survey de 2010, realizado apenas meses antes do survey da CNMP de
2011, nos oferece, portanto, uma ótima possibilidade de comparação das defini-
ções do feminismo pelas mulheres da CNPM 2011 com as definições oferecidas
pelas mulheres brasileiras em geral. Além da proximidade das datas de coleta dos
dados, a análise comparativa das respostas também é metodologicamente pos-
sível, dado o nível de comparabilidade entre os formatos das questões (questões
abertas), assim como dos enunciados das questões sobre o entendimento de femi-
nismo nos dois surveys:
CNPM 2011: A Sra. poderia me dizer quais são suas concepções do feminismo?
Pesquisa Perseu Abramo 2010: O que você entende por feminismo? Mesmo só de
ouvir falar, o que você acha que é feminismo? Em que você pensa quando ouve a
palavra feminismo?

De maneira geral, tanto as mulheres da CNPM de 2011, quanto as mulhe-


res brasileiras em geral, entrevistadas em 2010, tenderam a associar feminismo
com direitos das mulheres e igualdade com os homens, mas algumas diferenças e
convergências podem ser destacadas:
– Enquanto, mesmo entre as mulheres da CNPM de 2011, o uso de conceitos
centrais da teoria e práxis feministas – como autonomia, empoderamento, inter-
seccionalidade, patriarcalismo – não aparece com frequência, ao falarem em fe-
minismo enquanto “direitos das mulheres”, as delegadas tenderam a elaborar a
noção de direitos como sendo amplos – diferentemente das brasileiras em geral
da Pesquisa Perseu Abramo 2010 –, entendidos como a “igualdade em todos os
sentidos”, a “transformação social das condições de vida das mulheres”, ou a “mu-
dança cultural” e “conscientização”.
– O verbo “lutar” também foi proporcionalmente muito mais usado nas respostas
das mulheres da CNPM de 2011.
– Há, contudo, uma convergência interessante nas respostas negativas em relação
ao feminismo – tanto as mulheres da CNPM de 2011, quanto as brasileiras em

80
geral da Pesquisa Perseu Abramo, escolheram termos muito semelhantes – “au-
toritárias, mandonas, machistas, mulher que gosta de mulher, mulheres que se
sentem superiores aos homens” – para expressar seus entendimentos ou desapro-
vação do feminismo. Curiosamente, o termo radical (e com conotação negativa)
foi usado apenas pelas mulheres da CNPM de 2011.
– Entre as mulheres brasileiras em geral, há uma maior ocorrência de equiparação
dos conceitos de feminismo e feminino, com muitas referências a comportamentos
“dóceis e a vaidade” das mulheres.

Surveys internacionais recentes, especialmente os comparativos entre vá-


rios países em todos os continentes (como os World Values Surveys e os reali-
zados pelo Global Attitudes do Pew Research Center), têm utilizado baterias de
questões sobre percepções das desigualdades de gênero, mas não têm pergun-
tando diretamente sobre as concepções que os entrevistados têm do feminismo.
Esta distinção, no entanto, pode ser muito importante. Um survey relativamente
recente, conduzido em 2014 nos Estados Unidos pela Economist/YouGov mos-
trou que apenas 35% das mulheres e 15% dos homens americanos responderam
afirmativamente à questão “Você se considera feminista?”, mas quando respon-
deram de novo à mesma questão, depois de serem apresentados a uma definição
de feminismo que afirmava que “feminista é uma pessoa que acredita na igual-
dade social, econômica, e politica dos sexos”, aumenta para 69% das mulheres e
52% dos homens a proporção dos que se consideraram feministas. É importante
observar, contudo, que mesmo depois da uma definição que pode ser considerada
não ameaçadora ou radical, ainda assim 50% dos homens e 30% das mulheres nos
Estados Unidos, em 2014, não se consideraram feministas. É interessante também
notar que as mesmas porcentagens – 30% de mulheres e 50% dos homens ameri-
canos – não se consideraram feministas quando perguntados mais recentemente,
em 2016, pela pesquisa Washington Post/Kaiser Foundation (sem a definição de
feminismo) se se consideravam feministas.
Estes vários surveys revelam que maneiras diferentes de se formular per-
guntas sobre identificação com o feminismo podem nos ajudar a explorar e me-
lhor entender a evolução dos entendimentos e desentendimentos do que seja o
feminismo. No nosso caso, esperamos que as nossas pesquisas das mulheres do
feminismo estatal participativo brasileiro, mesmo tendo sido realizadas apenas
entre as delegadas das CNPMs, possam contribuir para o refinamento teórico e
metodológico na elaboração de surveys que busquem melhor descrever, explicar e
compreender as definições, práticas e trajetórias do feminismo.

81
Considerações finais: contextualizando os dados dos
nossos surveys e situando o feminismo das mulheres das
CNPMs na trajetória do feminismo no Brasil e do feminismo
transnacional

Ao analisarmos as respostas dadas pelas delegadas às perguntas sobre suas


identificações com o feminismo, o que entendem por feminismo e o que pensam
e como agem em relação a causas feministas, é importante observar que as delega-
das das CNPMs de 2011 e 2016 representam e são participantes de uma longa tra-
jetória de luta pelos direitos das mulheres, da igualdade de gênero e justiça social
que foram construídos no Brasil, assim como em outros países, por movimentos
de mulheres e feministas. Como observamos neste capítulo, o conjunto das dele-
gadas incluiu as várias gerações de mulheres que ajudaram a construir as diversas
concepções e práticas das chamadas quatro ondas do feminismo no Brasil, como
é mostrado no Capítulo 3, a seguir.
Portanto, para contextualizar e melhor compreender os dados analisados
neste capítulo, é muito importante considerar, mesmo que de maneira muito
breve, algumas das características centrais das quatro ondas do feminismo bra-
sileiro – das quais as delegadas participaram e ao mesmo tempo construíram.
Poderemos, assim, em seguida, entender como os seus entendimentos do que
seja o feminismo, suas atitudes, seus associativismos e seus ativismos cívicos e
políticos em relação às causas interseccionais das agendas feministas devem ser
relacionados às suas experiências, assim como a sua exposição e ou contribuição
às teorias que se originaram e ao mesmo tempo constituíram os movimentos fe-
ministas a partir dos anos 1970 no Brasil e no mundo.
A sociedade brasileira pode ser vista como um caso e uma evidência de
uma transformação notável – embora não exclusiva do Brasil – no sentido da
igualdade de gênero que resultou de uma interação crescente da participação das
mulheres em movimentos feministas, bem como em uma ampla gama de outras
organizações e movimentos sociais, possibilitados por contextos nacionais e glo-
bais. As transformações das relações de gênero e do feminismo no Brasil nas úl-
timas quatro décadas foram entrelaçadas e intimamente ligadas às mudanças nas
estruturas socioeconômicas e nos regimes políticos vigentes no país.
Os processos de igualdade de gênero que promoveram mudanças institu-
cionais, econômicas, sociais e culturais resultaram inequivocamente do papel ati-
vo das mulheres nos movimentos sociais e políticos envolvidos na luta contra o
regime militar na década de 1970, na transição para a democracia nos anos 1980
(que chamamos de segunda onda) e na democratização do país na década de 1990

82
(a terceira onda), bem como dos processos de institucionalização e elaboração
de políticas de 2003 a 2016 (a quarta onda) (MATOS; SIMÕES, 2017; SIMÕES;
MATOS, 2008; PINTO, 2003; ALVAREZ, 1990, 1994).
Apesar das diferenças dos contextos históricos e políticos, muitas das trans-
formações e dilemas centrais do feminismo no Brasil têm semelhanças impor-
tantes com aquelas dos feminismos em outros países, tanto do sul global quan-
to do norte global. Novas formas de pensar as relações de gênero chegaram ao
Brasil através das mulheres de classe média, intelectualizadas, que estiveram nos
EUA e na Europa como exiladas. Mas a centralidade dada pelo feminismo radi-
cal à categoria sexo (e posteriormente, gênero) na explicação das desigualdades
sociais foi questionada por militantes feministas e socialistas, especialmente no
contexto de luta contra a ditadura e o chamado “capitalismo selvagem” (PINTO,
2003). Nesse contexto, os movimentos de mulheres brasileiras são um exemplo
de alianças bem-sucedidas entre grupos de mulheres feministas de classe média
autoidentificados com a classe trabalhadora e mulheres negras. E isso não se dava
apenas na luta contra o autoritarismo militar, mas também na luta por mais direi-
tos para as mulheres. Também é relevante notar que, enquanto essas mulheres da
classe média feminista também tinham vínculos estreitos com partidos políticos
de oposição e organizações de esquerda, a classe trabalhadora e o movimento
das mulheres negras eram apoiados pela Igreja Católica e pelas organizações de
base do bairro. Consequentemente, seus problemas iam de uma agenda clássica
de direitos feministas às demandas de melhoria das condições de vida da família
(ALVAREZ, 1990; SIMÕES; MATOS, 2008).
Ao analisarmos as trajetórias dos movimentos feministas e de mulheres no
Brasil (e as intersecções entre movimentos de mulheres trabalhadoras, de periferia
e negras com os grupos feministas de classe médias e intelectuais na ditadura
e transição democrática) temos também de ressaltar que o “diálogo local” entre
os movimentos de mulheres e feministas no Brasil precisa também ser entendi-
do a partir de suas conexões com o feminismo transnacional nos Encontros das
Mulheres das Nações Unidas (de 1975 no México a 1995 em Beijing); na parti-
cipação das mulheres brasileiras na formulação e implementação da Plataforma
para a Ação de Beijing, uma agenda mais ampla e com abordagem mais intersec-
cional das desigualdades de gênero; na ratificação pelo Brasil da Convenção para
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW)
e, especialmente, através dos relatórios produzidos pela Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres para submissão ao Comitê CEDAW da ONU, e as re-
comendações feitas ao Brasil pelo Comitê em resposta aos relatórios brasileiros
(SIMÕES; MATOS, 2008; MATOS; SIMÕES, 2017; BASU, 2003; THAYER, 2001).

83
De fato, nas últimas décadas, principalmente a partir das conferências
mundiais de mulheres organizadas pelas Nações Unidas e da emergência do femi-
nismo transacional, teoria e práxis feministas têm sido produzidas e expandidas
pelo reconhecimento das múltiplas diferenças locais, assim como das convergên-
cias globais das condições econômicas políticas e culturais das mulheres. O femi-
nismo em todo mundo se torna cada vez mais plural e atento às diferenças não
apenas entre mulheres e homens, mas também às diferenças entre as mulheres e às
interconexões entre suas identidades de gênero, suas identidades raciais, suas po-
sições de classe e suas orientações sexuais, entre os vários fatores condicionantes
das desigualdades sociais (MARCHAND; RUNYAN, 2011; YUVAL, 2006; TRIPP,
2006; ANTOBUS, 2004; BASU, 2003).
Podemos concluir afirmando que as delegadas das CNPMs de 2011 e 2016
são, em sua grande maioria, feministas que têm participado da construção dos fe-
minismos no Brasil, e que neste processo têm desenvolvido uma prática crescente
de um “feminismo interseccional”, e contribuído para as transformações – além
das suas próprias atitudes e comportamentos individuais analisadas neste capítulo
– das teorias e práxis coletivas dos movimentos feministas no Brasil e do feminis-
mo transnacional.

Referências

ALVAREZ, S. Engendering democracy in Brazil: Women’s movements in transition politics.


Princeton, N.J.: Princeton University Press. 1990.
______. The transformation of feminism and gender politics in democratizing Brazil. In:
JAQUETTE, J. S. (Ed.). The women’s movement in Latin America. Boulder, CO:
Westview Press, 1994. p.13-63.
______. A “globalização” dos feminismos latino-americanos: Tendências dos anos 90 e
desafios para o novo milênio.” In: ______; DAGNINO, E.; ESCOBAR, A. Cultura
e política nos movimentos sociais latino-americanos: Novas leituras. Belo Horizonte,
MG: Editora UFMG, 2000. p. 383-426.
ANTOBUS, P. Is another world possible?. In: ______. The global women’s movement: ori-
gins, issues and strategies. New York: Zed Books, 2004.
BASU, A. Globalization of the local/ localization of the global: mapping transnational wo-
men’s movements. In: MCCANN, C. R.; KIM, S. (Eds.). Feminist theory reader:
local and global perspectives. New York: Routlege, 2003.
BEATTY, P. C.; WILLIS, G. B. Research synthesis: The practice of cognitive interviewing.
Public Opinion Quarterly, 71, p. 287-311, 2007.

84
BOSE, C. Intersectionality and Global Gender Inequality. Gender & Society v. 26, Issue 1,
p. 67-72, 2012.
______. Patterns of Global Gender Inequalities and Regional Gender Regimes. Gender &
Society, v. 29, Issue 6, p. 767 – 791, 2015.
COLLINS, P. H.; BILGE, S. Intersectionality. Malden, MA: Polity Press & Bilge, 2016.
GEER, John G. What do open-ended questions measure?. Public Opinion Quarterly, 52,
p. 365-371, 1988.
MARCHAND, M. H.; RUNYAN, A. S. Introduction: Feminist sightings of global restruc-
turing, old and new conceptualizations. In: ______; ______ (Eds.). Gender and
global restructuring: Sightings, sites and resistances. New York: Routledge, 2011.
MATOS, M.; SIMÕES, S. The progression of gender and feminism in Brazil: the inter-
play of local and global contexts. In: BONIFACIO, G. T. (Ed.). Global Currents in
Gender and Feminisms: Canadian and International Perspectives. 2017.
MOHANTY, T. C. Under western eyes revisited: feminist solidarity through anticapitalist
struggles Feminism without borders: decolonizing theory, practicing solidarity. Duke
University Press, 2004.
PINTO, C. R. J. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 2003.
SIMÕES, S. Are imported survey questions under-measuring political and gender parti-
cipation in the global south (...and north)?. In: DUBROW, J. K. Political Inequality
in an Age of Democracy: Cross-National Perspectives. New York: Routledge, 2014.
SIMÕES, S.; PEREIRA, M. P. A arte e a ciência de fazer peguntas (The art and science of
asking questions). In: AGUIAR, N. (ed.), Social inequalities, social networks and
political participation. Belo Horizonte: UFMG University Press, 2007.
SIMÕES, S.; MATOS, M. Modern ideas, traditional behavior, and the persistence of gen-
der inequality in Brazil. In: SIEMIENSKA, R. (Ed.). Special Issue: Changing con-
ceptions of gender. International Journal of Sociology, v. 38, n. 4,Winter 2008-9, p.
94-110, 2008.
SCHUMAN, H.; PRESSER, S. Open Versus Closed Questions. p. 79-107 in Questions And
Answers In Atitude Surveys: Experiments On Question Form, wording And Context.
New York: Academic Press, 1981.
SUDMAN, S.; BRADBUM, N. M.; SCHWARZ, N. Answering a survey question: cognitive
and communicative processes. In: Thinking about answers: The application of cogni-
tive processes to survey methodology. San Francisco: Jossey-Bass, 1996.
THAYER, M. Transnational feminism: Reading Joan Scott in the Brazilian sertão.
Ethnography 2(2), p. 243-271, 2001.
TRIPP, A. M. The Evolution of transnational feminisms: Consensus, conflict and new dy-
namics. In: FERREE, M. M.; TRIPP, A. M. (Eds.). Global feminism: Transnational
women’s activism, organizing, and human rights. New York: New York University
Press, 2006.

85
VARGAS, V. Feminismos en América Latina: Su aporte a la política y a la democracia.
Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Colecció Transformación
Global, 2008.
YUVAL D., N. Human/Women’s Rights and Feminist Transversal Politics. In: FERREE,
M. M.; TRIPP A. M. Global Feminism: Transnational Women’s Activism, Organizing
and Human Rights. New York: New York University Press, 2000.

86
As CNPMs e a configuração do campo feminista:
sidestreaming e mainstreaming através do
“feminismo estatal participativo”
Marlise Matos1
Sonia E. Alvarez2

Os feminismos contemporâneos se expressam em um amplo leque de es-


paços políticos, culturais, econômicos e sociais que se estendem muito além das
organizações e redes autodefinidas como feministas e de mulheres. Elementos
dos discursos e práticas feministas hoje se articulam nos sindicatos, movimentos
negros e indígenas, grupos e redes estudantis e de jovens, movimentos LGBT,
protestos de rua, partidos de esquerda, organizações autonomistas e anarquistas,
movimentos urbanos e rurais, agrupações ambientalistas e de direitos humanos,
e em um sem-número de movimentos sociais e outras organizações da sociedade
civil. As ideias feministas, portanto, circulam, viajam ao longo das múltiplas teias
organizacionais e a partir de matrizes discursivas nas quais as ativistas se envol-
vem e se movimentam, estimulando a extensa difusão das mesmas. Esses “fluxos
horizontais” constituem o que Alvarez chama de “sidestreaming” dos feminismos
(ALVAREZ, 2010; ALVAREZ et al., 2011) e têm sido fundamentais para a confi-
guração de um campo político (MATOS, 2008) ou “campo discursivo de ação”
(ALVAREZ, 2014a e b) cada vez mais amplo e heterogêneo.
Mas o campo feminista hoje também abrange algumas esferas estatais e
partidárias, mesmo que precariamente e às vezes provisoriamente, por meio
de processos que a ONU e os estudos sobre gênero e política se referem como
“mainstreaming”, envolvendo fluxos “verticais” de atuação das feministas e dos
seus discursos e práticas em direção aos partidos, ao Estado e às instituições inter-
governamentais, às arenas onde se formulam, disputam e implementam projetos
políticos e políticas públicas.3 Desde os anos 1980, em nível estadual e municipal,

1   Professora Associada do Departamento de Ciência Política da UFMG e Coordenadora do


Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher – NEPEM e do Centro do Interesse Feminista e de
Gênero – CIFG (UFMG).
2   Intelectual-militante e titular da cátedra Leonard J. Horwitz em Política e Estudos Latino-
americanos na Universidade de Massachusetts Amherst.
3   A noção de mainstreaming surgiu, internacionalmente, na IV Conferência Mundial das

87
e especialmente após a chegada do PT ao governo federal em 2003, muitas mi-
litantes advindas dos diversos espaços onde circulavam os discursos feministas,
tanto na sociedade civil quanto na sociedade política (partidos), passaram a tran-
sitar pelas burocracias e assessorias do Estado, trazendo com elas a sua “bagagem”
feminista e tentando traduzir e implementar as suas agendas para o ambiente fre-
quentemente hostil de um Estado ainda estruturalmente patriarcal, racista, lesbo-
-homotransfóbico e capitalista.4
Assim, o sidestreaming feminista indiretamente facilitou a incorporação
– sempre parcial, seletiva e, muitas vezes, tergiversada – de alguns discursos e
demandas feministas provindos da sociedade civil pelo próprio Estado, no caso
do governo petista, pela SPM e o “feminismo estatal participativo”, e promoveu
sua difusão ao longo do tecido social – ver Gonzalez (cap. 2), Carvalho (cap. 3) e
Matos e Lins (cap. 4) do vol. 1.5
No caso específico das CNPMs, os fluxos verticais das feministas e as suas
demandas para os espaços estatais juntaram-se e, muitas vezes, enfrentaram e
confrontaram-se com aqueles oriundos da sociedade civil, efetuando uma movi-
mentação discursiva multidirecional: um processo de “sidestreaming via mains-
treaming” e vice-versa. São especificamente esses fluxos e as suas conjunções que
mapeamos neste capítulo.
Como vimos nos capítulos de Simões (vol. 2, cap. 2), Pinto (vol. 1, cap. 5) e
Marques (vol. 1, cap. 6), a esmagadora maioria das participantes das duas CNPMs
pesquisadas, tanto as representantes do Estado quanto aquelas da sociedade civil,
se identificou como feministas: foram mais de 82%. Aqui, traçamos as trajetórias,
os principais caminhos políticos trilhados e as formas de participação e articu-
lação dessas participantes e delineamos as relações das organizações que elas re-
presentavam com outras entidades na sociedade civil e política e, também, com
variadas instâncias do Estado. Com isso, pretendemos ilustrar e analisar como
os fluxos verticais (em direção aos partidos e às instituições do Estado, inclusive
aquelas “híbridas”, como os conselhos, que têm representantes da sociedade civil e

Mulheres, realizada em Beijing (1995). Este foi debatido e afirmado, àquela época, como um conceito-
chave que fortaleceria a estratégia de luta das mulheres para que as suas reivindicações fossem
implementadas pelos Estados, nas políticas públicas e de uma forma mais eficaz. Rapidamente o
conceito passou a ser traduzido no português como “transversalidade de gênero”. Para leituras críticas
das origens e contradições dos processos de mainstreaming, ver EYBEN, 2013; MUKHOPADHYAY,
2004; PRÜGL, 2009; WALBY, 2005, 2007.
4   Sobre a inserção de ativistas e ativismos feministas nas esferas estatais e intergovernamentais,
veja ABERS; TATAGIBA, 2015; ALVAREZ et al., 2017; BANASZAK, 2005; PHILLIPS; COLE, 2009.
5   Sobre o feminismo estatal participativo, ver MATOS, 2010; MATOS; PARADIS, 2013; COSTA;
SARDENBERG, 2010.

88
do Estado) se vinculam aos fluxos horizontais para configurar um setor significativo
do campo feminista brasileiro atual, cujos referentes principais são o Estado e as
arenas de políticas públicas; construindo-se, assim, uma espécie de “subcampo” de
ativismo feminista junto ao Estado.6
O que nos levou a pesquisar as trajetórias políticas das participantes das
CNPMs foi, justamente, o fato de essas conferências serem espaços políticos hí-
bridos, oficialmente definidos como lugares de “integração” de gênero e feminista
que pretendiam operar transformações nas políticas estatais. Eles dariam desta-
que aos fluxos verticais dos feminismos e das demandas de gênero e feministas
junto ao Estado brasileiro e também constituiriam lugares de protagonismo das
delegadas, provindas de diferentes espaços de ativismo político anterior, ou seja,
de diversos fluxos horizontais e verticais da militância feminista no Brasil. Mas
quais seriam, afinal, esses fluxos? De quais redes de interações e ativismos vieram
essas delegadas? Este capítulo pretende oferecer algumas pistas nesse sentido.
Mostraremos que as trajetórias das militantes que circulam nesse “subcam-
po” de ativismo feminista junto ao Estado brasileiro, como as participantes de
ambas CNPMs aqui pesquisadas, nem sempre iniciaram seu envolvimento polí-
tico diretamente no movimento feminista e de mulheres, mesmo que a maioria
tenha se identificado como feminista na hora da pergunta respondida em nossos
surveys. Essas múltiplas experiências de participação e as trajetórias, redes e flu-
xos multidireccionais mapeados neste capítulo, através da metodologia de análise
de redes, e os grafos dessas trajetórias aqui representados sugerem que muitas
ativistas feministas começaram a sua militância política em outros movimentos/
entidades da sociedade civil e que as identidades e ideias feministas se gestaram,
depois transitaram continuamente e, a princípio, então, se ressignificaram nos
mais variados lugares da sociedade civil e política brasileira, no Estado e também
em espaços políticos híbridos, como os conselhos e as próprias CNPMs.
Portanto, prestamos atenção especial à trajetória do ativismo político dessas
participantes, ao ativismo feminista e também não feminista e às relações de sides-
treaming e mainstreaming da própria instituição/organização que a participante
representava na Conferência. Como instituições/organizações que tramam a rede
do sidestreaming feminista das delegadas entrevistadas nessa pesquisa, podemos

6   Se fôssemos aplicar o nosso mesmo survey em outros lugares onde atualmente transitam e se
traduzem os feminismos, como alguns setores de diversos movimentos como os LGBT ou negros,
ou espaços insistentemente autônomos dos feminismos, como as Marchas das Vadias (FERREIRA,
2013; GOMES, 2018; NAME; ZANETTI, 2013), e os recentes rolês anarco-feministas (ver CARMO,
2016; MARTELLO, 2015), sem sombra de dúvida, identificaríamos tramados de vínculos e articu-
lações bastante diferentes dos que caracterizam o “subcampo” feminista articulado junto ao Estado
focado aqui, mesmo com algumas, porém importantes, sobreposições.

89
citar: as organizações do associativismo comunitário (e sua diversidade temática
que aparece através das distintas questões com as quais lida: mulheres, moradia,
bairro, donas de casa etc.), o movimento estudantil, o movimento negro, o movi-
mento LBTG, o movimento de juventudes, o movimento indígena, o movimento
rural, além das organizações sindicais e também das ONGs. E como exemplos de
organizações que tramam a rede do mainstreaming feminista, citamos: os conse-
lhos (que mesmo sendo instituições híbridas são fundamentalmente viabilizadas
pelo Estado), os partidos políticos, as entidades de classe (tais como a OAB e o
CRM), e, claro, as organizações do próprio Estado (seja no Poder Executivo, no
Legislativo ou no Judiciário).
Estivemos atentas ainda às inúmeras formas de articulação possíveis do ati-
vismo e dos respectivos vínculos horizontais e verticais identificados: entre dife-
rentes movimentos organizados da sociedade civil (negro, LQBT, rural e indígena,
principalmente e, em menor escala, os movimentos ambientalistas e culturais) e o
feminismo; entre o feminismo e o ativismo vinculado às formas de associativismo
comunitário (focado em questões específicas de mulheres, de moradia, de luta
nos bairros etc.); entre os feminismos e o ativismo de caráter mais institucionali-
zado (em movimentos estudantis: participação em grêmios, centros acadêmicos
e organizações estudantis nacionais como UNE e Ubes); em sindicatos; institui-
ções religiosas: católicas, protestantes e de matriz africana; entidades profissionais;
conselhos em geral e conselhos da mulher em específico; partidos; e, finalmente,
instituições vinculadas ao Estado (OPMs, poder Legislativo e poder Executivo).
Focalizando as CNPMs como espaços híbridos, onde tanto as feministas
como as integrantes dos outros movimentos de mulheres, que atuam dentro e/
ou fora das instituições formais, se articulam entre si, com outros movimentos, e
com diversos funcionárias(os) do Estado, nosso interesse aqui é analisar e ilustrar
(inclusive visualmente) a importância desses vínculos, entre e através, das mais
distintas formas de ativismo. Queremos avançar uma posição teórica que reco-
nheça interações muito complexas entre Estado, sociedade política e sociedade
civil, entre as próprias organizações dos movimentos e da sociedade civil em geral
(dentre elas o feminismo) e entre as formas mais institucionalizadas de organiza-
ção política (sindicatos, entidades profissionais, por exemplo). A riqueza multidi-
mensional dessas articulações será amplamente comprovada nessas análises. Não
há apenas relações de oposição ou de cooptação (que basicamente se sustentam
numa matriz cognitivamente binária). Vamos poder observar neste capítulo, ao
contrário, a existência de verdadeiras tramas complexas de interações políticas,
onde se evidenciam formas muito mais intrincadas de relacionamento que fre-
quentemente são recíprocas.

90
Conforme anunciamos, o nosso principal recurso metodológico foi a análi-
se de redes sociais e análise de estatísticas descritivas básicas de redes sociais (ARS).
Foram elaboradas várias redes, mas para os fins analítico-teóricos deste capítu-
lo, foi decidido apresentar quatro tipos distintos delas, quais sejam: (a) redes de
trajetórias (que identificaram o caminho das trajetórias do ativismo político das
delegadas entre as organizações e/ou movimentos dos quais elas participam); (b)
redes de participação (que representaram as formas organizativas dessa participa-
ção política das delegadas); (c) redes de articulação (que descrevem graficamente
as formas como as organizações e movimentos nos quais as delegadas participam
se articulam entre si); e, finalmente, (d) redes de fluxos (que visaram mapear a
direção dos materiais e recursos que são produzidos pela organização/movimento
do qual as delegadas declararam participar).
Todas essas redes foram descritas para os dois anos pesquisados nos nossos
surveys, a saber: 2011 e 2016. Em algumas análises foram feitos recortes parciais
de redes completas (quase como se déssemos uma espécie de zoom na nossa rede),
para se obter maior clareza em relação às interações. Dessa forma, neste capítulo
vamos ver análises de sete conjuntos de redes diferentes. Vamos ver a seguir uma
breve introdução sobre a metodologia das Análises de redes, e na sequência as
análises das redes do ativismo das delegadas das 3ª e 4ª CNPMs.

I. Analisando redes sociais e políticas: brevíssima introdução


metodológica

Importa aqui inicialmente destacar que parcela significativa dessas análises


está em débito com base na forma de categorização das respostas dadas pelas
delegadas em cada pergunta que lhes foi formulada na bateria que visava men-
surar esse ativismo. Esse trabalho de codificação foi importante e rendeu muito
esforço: foram vários movimentos de idas e vindas, pois foi necessário checar,
nome a nome citado pelas delegadas, qual era organização a que a delegada estava
se referindo, ou, quando ela não mencionava diretamente o nome da instituição
ou movimento, identificar a qual categoria a sua resposta deveria estar alinhada.
Apenas dessa forma tornou-se possível chegar à construção das categorias de or-
ganizações/instituições/movimentos (Quadro 1 abaixo), produzindo-se um esfor-
ço de consolidar o conjunto de respostas das delegadas.
No limite, como as respostas são abertas (ou seja: a delegada respondente
enunciou ou o nome da organização ou o seu tipo), cada investigador(a) pode
construir a sua própria forma de categorização. Estas foram as nossas opções nes-
te momento. Neste capítulo, as categorias criadas foram alocadas em três níveis
de agregação (uma categorização mais ampla/nível 1, uma de nível intermediário/

91
nível 2 e uma de nível mais específico, detalhado e desagregado/nível 3). Optamos
por essa forma de categorização porque nem todas as respondentes disseram es-
pecificamente o “nome” da organização de que participaram, mas algumas de-
las apenas a localizaram genericamente. Essas categorizações estão descritas no
Quadro 1 abaixo:

Quadro 1. As categorizações das entidades/organizações


mencionadas pelas delegadas
Categorização Categorização 2 –
Categorização 3 – DESAGREGADA
1 – GERAL INTERMEDIÁRIA
Associativismo comunitário – Mulher
Associativismo comunitário – Mulher Deficiência
Associativismo comunitário – Deficiência
Associativismo comunitário – Mulher e internet
Associativismo
Associativismo comunitário – Mulher e Religião
comunitário
Associativismo comunitário – Mulher indígena
Associativismo comunitário – Bairro
Associativismo comunitário – Pais e Mestres
Associativismo comunitário – Donas de casa
Universidade – Escolas – Estudantil
União Nacional dos Estudantes – UNE
Movimento
Centro Acadêmico
Estudantil
Grêmio Estudantil
Ubes
Movimento de Mulheres
Movimento Mulheres – Rede Mulheres Negras
Movimento Mulheres – Mulheres Negras Mulheres
Quilombolas
Movimentos da
Movimento Mulheres – AMB
Sociedade civil
Movimento Mulheres – Lésbicas
Movimentos
Promotoras Legais Populares
Mulheres e
Movimento Mulheres – Marcha Mundial de Mulheres
Feministas
Movimento Mulheres – Levante Popular Juventude
Movimento Mulheres – Rural
Movimento Mulheres – Ciganas
Movimento de Mulheres – Indígenas
Movimento Mulheres – Trans
Movimento Mulheres – Clube de Mães
Movimento Negro
Movimento Negro
Movimento Quilombola
Movimento LGBT Movimento LGBT
Movimento
Movimento Juventudes
Juventudes
Movimento Movimento Educação Fórum EJA
Educação Movimento Educação
Movimento Cultura Movimento de Cultura

92
Movimento C/A Movimento Criança Adolescente
Movimento
Movimento pessoa com deficiência
Deficientes
Movimento Direitos
Movimento Direitos Humanos
Humanos
Movimento
Movimento de Pescadores
Pescadores
Movimento Esporte
Movimento Esporte e Lazer
e Lazer
Movimento
Movimento Indígena
Indígena
Movimento Rural MST
Movimento Saúde Movimento Saúde – Reforma Sanitária
Movimento Saúde
ONG
ONG – Deficiência
ONGs ONG – OSCIP Estadual
ONG – Meio ambiente
ONG – Ciganos
OAB
Entidades de OAB e CRM
CRM
Classe
Sindicatos Sindicatos
Partidos Partidos Políticos Estrutura Partidária
Conselho Mulheres
IP – Inst. Conselho Mulheres – municipal
Conselhos
Híbridas Conselho Mulheres – estadual
Conselho Criança – municipal
OPM
OPM – estadual
OPM – Municipal
OPM – SPM Federal
OPM – SEPPIR
Prefeitura
Secretaria de Estado – Municipal
Poder Executivo
Secretaria de Estado – Estadual
Estado Agência Federal – CNPq
Agencia Federal – ANA
Agência Federal – Itaipu
Agência Federal – IPEA
Agencia Federal – CEF
Ministério Federal
Poder Legislativo – Municipal
Poder Legislativo
Poder Legislativo – Estadual
Fonte: Elaboração própria

93
Nas análises a seguir, vamos lançar mão dessas três categorizações que
estão apresentadas nas colunas do Quadro 1 acima. Por outro lado, para serem
analisadas a presença e a importância do sidestreaming via mainstreaming e vice-
-versa, foi realmente necessário descer às nuances, nos detalhes e especificações
das categorizações. Todavia, entendemos que nenhuma categorização é perfeita,
e essas escolhidas foram aquelas que atendiam melhor aos nossos interesses de
investigação.
Os dados apresentados a partir da metodologia de Análise de Redes Sociais
(ARS) são muito mais compreensíveis quando queremos entender, como é o caso
aqui, as dinâmicas de interação entre instituições e/ou entidades das quais as de-
legadas participam ou participaram. Melhor do que tabelas e gráficos, esse recur-
so metodológico e seus respectivos grafos nos permitirão ver não apenas o per-
centual de participação nas diferentes instituições, mas também a sua magnitude
relativa em cada uma das análises propostas e as dinâmicas de suas importantes
interações. Todavia, para que tenhamos uma visão geral sobre a participação e/ou
ativismo das delegadas, vamos apresentar aqui apenas duas tabelas que definem
os percentuais dessa participação em 2011 e em 2016, quando as delegadas elen-
caram as instituições e/ou movimentos que participam em primeiro, em segundo
e depois em terceiro lugar.

Tabela 1. O percentual da participação das delegadas


da 3ª CNPM em instituições/movimentos/organizações (2011)
PRIMEIRO SEGUNDO TERCEIRO
n % n % n %
LUGAR LUGAR LUGAR
Movimento de Movimento de Movimento de
Mulheres ou 67 39,4 Mulheres ou 24 27,9 Mulheres ou 14 34,1
Feminista Feminista Feminista
Conselho 18 10,6 Movimento Negro 13 15,1 Partido Político 7 17,1
Poder Executivo 16 9,4 Conselho 13 15,1 Conselho 4 9,8
Partido Político 12 7,1 Partido Político 9 10,5 Não Respondeu 4 9,8
Entidade Entidade
11 6,5 8 9,3 Sindicato 3 7,3
Profissional Profissional
Movimento
Movimento Negro 8 4,7 Poder Executivo 6 7 2 4,9
LGBTT
Movimento de Associativismo
6 3,5 Sindicato 3 3,5 1 2,4
Saúde Comunitário
Movimento Movimento
Sindicato 5 2,9 2 2,3 1 2,4
LGBTT Estudantil
Movimento Movimento de
4 2,4 2 2,3 Movimento Negro 1 2,4
LGBTT Deficientes

94
Movimento Por Movimento de
4 2,4 Movimento Rural 2 2,3 1 2,4
Moradia Juventude
Movimento em
Associativismo
Religião/Igreja 3 1,8 1 1,2 Prol dos Direitos 1 2,4
Comunitário
Humanos
Movimento Movimento de Entidade
3 1,8 1 1,2 1 2,4
Ambientalista Pescadores Profissional
Movimento de
2 1,2 Religião/Igreja 1 1,2 Religião/Igreja 1 2,4
Juventude
Movimento de Movimento por
2 1,2 1 1,2 Total 41 100
Cultura Moradia
Movimento de
2 1,2 Total 86 100 System 320
Deficientes
Movimento
2 1,2 System 275 361
Indígena
Associativismo
1 0,6 361
Comunitário
Movimento de
1 0,6
Educação
Movimento em
Prol dos Direitos 1 0,6
Humanos
Movimento Rural 1 0,6
Não Sei 1 0,6
Total 170 100
System 191
361
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Tabela 2. O percentual da participação das delegadas da


4ª CNPM em instituições/movimentos/organizações (2016)
PRIMEIRO SEGUNDO TERCEIRO
n % n % n %
LUGAR LUGAR LUGAR
Movimento de Movimento de Movimento de
Mulheres ou 67 39,4 Mulheres ou 24 27,9 Mulheres ou 14 34,1
Feminista Feminista Feminista
Movimento
Conselho 18 10,6 13 15,1 Partido Político 7 17,1
Negro
Poder Executivo 16 9,4 Conselho 13 15,1 Conselho 4 9,8
Partido Político 12 7,1 Partido Político 9 10,5 Não Respondeu 4 9,8
Entidade Entidade
11 6,5 8 9,3 Sindicato 3 7,3
Profissional Profissional
Movimento Negro 8 4,7 Poder Executivo 6 7 Movimento LGBTT 2 4,9

95
Movimento de Associativismo
6 3,5 Sindicato 3 3,5 1 2,4
Saúde Comunitário
Movimento Movimento
Sindicato 5 2,9 2 2,3 1 2,4
LGBTT Estudantil
Movimento Movimento de
4 2,4 2 2,3 Movimento Negro 1 2,4
LGBTT Deficientes
Movimento por Movimento Movimento de
4 2,4 2 2,3 1 2,4
Moradia Rural Juventude
Movimento em
Associativismo
Religião/Igreja 3 1,8 1 1,2 Prol Dos Direitos 1 2,4
Comunitário
Humanos
Movimento Movimento de Entidade
3 1,8 1 1,2 1 2,4
Ambientalista Pescadores Profissional
Movimento de
2 1,2 Religião/Igreja 1 1,2 Religião/Igreja 1 2,4
Juventude
Movimento de Movimento por
2 1,2 1 1,2 Total 41 100
Cultura Moradia
Movimento de
2 1,2 Total 86 100 System 320
Deficientes
Movimento
2 1,2 System 275 361
Indígena
Associativismo
1 0,6 361
Comunitário
Movimento de
1 0,6
Educação
Movimento em
Prol dos Direitos 1 0,6
Humanos
Movimento Rural 1 0,6
Não Sei 1 0,6
Total 170 100
System 191
361
Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Como podemos ver, a participação em movimentos/instituições relaciona-


dos a mulheres e feminismo prepondera sobremaneira nas respostas das delega-
das, tanto em 2011 quanto em 2016. Como segunda e terceira respostas de ativis-
mo politico, temos (variando-se pouco em relação às posições) a participação em
conselhos, no movimento negro e em partidos políticos. Todavia, essa afirmação
assim apresentada, apesar de delimitar percentuais de participação, não nos per-
mite analisar quase nenhuma outra informação.

96
A Análise de Redes Sociais (ARS)7 nos permite, em contrapartida, o estudo e
a compreensão de estruturas representativas de ligações abstratas e concretas en-
tre: (1) algo, alguma(s) coisa(s) ou alguém (alguns/algumas) (2) e suas respectivas
possibilidades de interação e fluxo dinâmico (3).
No nosso caso aqui, se trata da (1) rede de participação e ativismo político
das (2) delegadas das 3ª e 4ª CNPMs em suas relações dinâmicas e fluidas (3). Nas
análises de redes sociais, importa ter, de forma visual, a expressão de um mundo
que está em movimento. Para isso são necessários alguns indicadores de centra-
lidade da rede e de ligações fortes e fracas dos nodos da(s) rede(s). Para isso,
algumas métricas são especialmente importantes: a informação (quais ligações e
quais fluxos da informação); o grau nodal (mede a atividade de um determinado
elemento da nossa rede – aqui as instituições, organizações ou movimento – ou
identifica nodos que são conectores e hubs; usualmente é medido contando-se o
número de conexões presentes no nodo, ou seja, considera o número de contatos
diretos), a intermediação (que mede as principais pontes e aquelas organizações
do ativismo que podem controlar o fluxo de informação nas redes; ela é medida
contando-se o número de vezes que está no caminho mais curto entre dois outros
nodos) e a proximidade (que, por sua vez, mede aqueles elementos que têm maior
visibilidade sobre o que está acontecendo na rede por estar na menor distância
em relação a todos os outros elementos; aqueles com maior proximidade, que
têm maior independência e maior capacidade de mobilização de informações por
exigirem menor intermediação).
As ligações fortes – contatos mais próximos – e as ligações fracas – mais
distantes – serão aqui analisadas tendo como base esses índices de centralidade
de proximidade. A análise de redes sociais avalia padrões de relacionamento e foi
a principal metodologia empregada neste capítulo.
Nas figuras descritas e analisadas a seguir, o grau pode ser observado pelo
tamanho do círculo que conforma o nosso nodo; a intermediação se observa
através dos traços que ligam os nodos e também pela grossura desses traços de
ligação, e a proximidade entre os nodos (em algumas redes marcadas pela deli-
mitação de uma figura de círculo) define a centralidade da mobilização entre os
elementos analisados.

7   A ARS é considerada por Cross, Parker e Borgatti (2000) um importante instrumento para estu-
dar relacionamentos que fomentam o compartilhamento da informação e do conhecimento. É uma
ferramenta que permite a identificação de indicadores de padrões de relacionamentos que aprimo-
ram a cooperação. Em síntese, é um recurso que respalda mais eficazmente a identificação dos atores
mais influentes na rede, e está se tornando, cada vez mais, um recurso estratégico na estruturação e
criação de ligações importantes.

97
Assim, tendo compreendido muito rapidamente esses elementos principais,
conforme já indicado na Introdução, vamos apresentar aqui as seguintes redes: (a)
começamos pela rede de trajetórias de participação; (b) apresentamos a rede das
instituições de participação das delegadas; (c) as redes de articulação/interação
entre essas organizações; e, finalmente, (d) as redes de fluxos de produções (mate-
riais e ações) dessas organizações citadas.

II. As análises das Redes de Trajetórias de ativismo das


delegadas

Iniciamos nossas análises com as Redes de Trajetórias referentes ao ati-


vismo das delegadas. Estas foram produzidas a partir de dados gerados pela se-
guinte questão presente no questionário em ambas as pesquisas – 2011 e 2016):
“Pensando em ordem cronológica, e na sua participação passada ou presente, qual
foi a primeira entidade ou grupo do qual você participou formal ou informalmente?
E o segundo? E o terceiro?”.
As respostas foram categorizadas com base em três tipologias distintas,
conforme apresentado no Quadro 1 (acima), cada qual com grau distinto de agre-
gação (Geral, Intermediário e Desagregado). Para a elaboração destas redes abaixo
descritas, foram utilizadas as categorias mais refinadas/específicas (Categorização
3 – Desagregadas). As figuras abaixo nos mostram, então, as principais trajetórias
referentes ao ativismo político das delegadas participantes das 3ª e 4ª CNPMs
brasileiras.8

8   Para organizar as figuras a seguir, foram realizados dois procedimentos metodológicos princi-
pais, a saber:
a) um cálculo de índice que mensura se os movimentos tendem a “receber/receptores” ou “ceder/
doadores” de militantes. Valores positivos são indicadores de movimentos “superavitários” (recebem
mais que doam militantes), valores negativos indicam movimentos “deficitários” (doam mais que
recebem militantes). Para o cálculo, foi aplicada a seguinte fórmula:

InDegree-OutDegree
Índice = 100
InDegree+OutDegree *

b) a categorização dos tipos de movimentos de acordo com o índice: altamente receptores do ativis-
mo (vermelho), pouco receptores (laranja), pouco doadores (verde-claro), altamente doadores de
ativismos (verde-escuro).

98
A Figura 1 (ou Dígrafo,9 na linguagem das análises de redes sociais) abaixo
representa o conjunto da rede completa das trajetórias especificamente para as
respostas das delegadas da 3ª CNPM (2011). O tamanho dos nodos, nesta figu-
ra, representa o grau nodal total de cada tipo de movimento (grau nodal total =
indegree + outdegree).10 Para facilitar a análise desta rede, optamos por selecionar
aqueles atores (instituições, organizações e movimentos) mais relevantes dentro
da estrutura. Essa foi, em alguma medida, uma seleção arbitrária, mas o que bali-
zou tal decisão foi o critério de incluir e analisar apenas os nodos com grau nodal
total superior ou maior que o valor 15.
Dessa forma, restaram para a análise mais detalhada/desagregada 18 tipos
de movimentos que representam 37,5% do total de instituições reportadas pelas
delegadas. Entretanto, cabe ainda salientar que esses nodos abarcam 947 relações
de um total de 1.090 relações observadas na rede completa. Isto é: esses 18 tipos
de movimentos ou organizações selecionados são responsáveis por 86,88% das
interações da rede completa.
Essa rede completa destaca a complexidade inerente dessas relações, nos
mostrando como são, de fato, empiricamente plurais as formas a partir das quais
as delegadas de 2011 construíram a história do seu ativismo político, antes de
chegar ao espaço político e deliberativo das conferências.

9   Na metodologia de Análises de Rede um “Dígrafo” corresponde ao nome dado à representação


gráfica de redes orientadas e um “Grafo” corresponde ao nome dado à representação gráfica de redes
não orientadas.
10   Na metodologia de Análises de Rede, o “Degree”/Grau nodal indica a quantidade de interações
adjacentes ao nodo. Em redes orientadas, o grau nodal se subdivide em “InDegree” (que corresponde
a relações adjacentes de entrada) e “OutDegree” (que são as relações adjacentes de saída). Dessa for-
ma, em se tratando de uma rede orientada (cuja representação gráfica recebe o nome de Dígrafo), o
Grau Nodal Total é a soma de In e do Out Degree.

99
Figura 1: Principais trajetórias de ativismo político das delegadas –
(Categorização 3), com cálculo do índice
doadores/receptores de militância – 3ª CNPM / 2011

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Para essa rede referente à trama das trajetórias políticas das delegadas de
2011 (e também na Figura 2 a seguir), importa destacar que a força da interação
não está representada pela espessura da linha, mas pelo tamanho da cabeça da
seta. E daqui surgiram alguns elementos analíticos interessantes. Os principais
movimentos/organizações “doadoras” de militantes nas trajetórias das delegadas
de 2011 foram: as instituições religiosas, o movimento estudantil e, com menor
potência interativa, situam-se as instituições da Igreja Católica e grêmios estudan-
tis (representados pela cor vermelha no dígrafo). De qualquer forma, por esse
dígrafo, surge a porta de entrada da militância dessas mulheres principalmente
em movimentos estudantis e em instituições religiosas. As principais instituições
que doam militantes para as etapas seguintes das trajetórias das delegadas de 2011
são: os sindicatos, o associativismo de bairro e de moradores, o movimento negro,
centros acadêmicos e as entidades profissionais (representadas pela cor laranja no
dígrafo).
Podemos afirmar que, quando as delegadas chegam ao ativismo nos movi-
mentos de mulheres (ver quadrados verde-claros na Figura 1), já passaram pelas
outras formas de ativismo anterior. Nas trajetórias das delegadas de 2011, as es-
truturas dos partidos e também da militância nos movimentos de saúde rivalizam
com o ativismo em movimentos de mulheres, o ponto quase final dessas trajetó-
rias políticas.

100
Observe-se que os movimentos de mulheres, os partidos e os sindicatos são
as instituições que têm a maior força de interações (ver tamanho das setas). Cabe,
afinal, notar que as maiores organizações “receptoras” de militantes (sendo estas
também os principais pontos de chegada) nas trajetórias das delegadas de 2011
são: conselhos e conselho da mulher, a militância em movimentos ambientalistas
e de direitos humanos e o associativismo comunitário especificamente em questões
das mulheres.
Como veremos nas Figuras 1 e 2 (Trajetórias – 2011 e 2016), podemos
identificar então que as principais portas de entrada do ativismo das mulheres
delegadas se assemelham – movimentos estudantis e em centros acadêmicos para
ambos os anos analisados. Todavia, para 2011, é preciso acrescentar o ativismo de
caráter religioso (através de movimentos ligados à Igreja ou religião), que não terá
essa importância para o ano de 2016.

Figura 2: Principais trajetórias de ativismo político das delegadas –


(Categorização 3), com cálculo do índice
doadores/receptores de militância – 4ª CNPM / 2016

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Conforme vemos na figura acima, para as delegadas de 2016 a principal


entrada no ativismo foi através da participação no movimento ambientalista e no
associativismo comunitário ligado à questão dos bairros e da participação nos mo-
vimentos estudantis.

101
Dessa forma, podemos afirmar que a principal base política formadora
das delegadas das duas últimas CNPMs parece ser os movimentos estudantis e
também movimentos ligados à religião. Além de serem as principais portas de
entrada, podemos também afirmar que essas organizações ou entidades são as
principais primeiras “doadoras” de militância, por assim dizer, nas trajetórias para
o perfil das delegadas analisadas nessa pesquisa.
Para essa rede completa das trajetórias das delegadas de 2016, podemos
identificar como o(a)s principais movimentos/organizações “doadore(a)s” de mi-
litantes (esse padrão foi significativamente diferente do de 2011): o movimento
ambientalista, o associativismo de base comunitária com foco nos bairros e o ati-
vismo em centros acadêmicos. A militância em instituições religiosas não se apre-
sentou como porta de entrada importante para as trajetórias das delegadas de
2016. De qualquer forma, também por esse dígrafo, permanece como porta de en-
trada da militância das delegadas de 2016 o ativismo em movimentos estudantis.
No segundo nível de instituições que “doam” militantes para as etapas seguintes
das trajetórias das delegadas de 2016, encontramos: os sindicatos, o associativismo
comunitário focado em questões das mulheres, o ativismo nas instituições da Igreja
Católica e evangélica, o movimento estudantil e as entidades profissionais.
Já os pontos de chegada dessas trajetórias, entretanto, se diferenciam um
pouco e de modo muito interessante. Para as delegadas de 2011 (presentes na 3ª
CNPM) foram três as formas de ativismo mais recente que definiram o ponto
final de suas trajetórias: o movimento ambientalista, os movimentos vinculados
a direitos humanos e os conselhos de políticas públicas (incluindo os conselhos da
mulher) e o ativismo vinculado ao associativismo comunitário, principalmente li-
gado à questão da mulher.
Já para as delegadas da 4ª CNPM, todavia, além dos pontos de chegada dos
conselhos e do associativismo comunitário (só que ligado à questão de moradia),
temos principalmente a participação nos movimentos negros e o ativismo em redes
de mulheres negras. Para além de serem os pontos de chegada, também podemos
afirmar que essas entidades ou instituições são as principais “receptoras” de mili-
tância nas trajetórias das delegadas de 2016 analisadas nessa pesquisa.
Cabe destacar a dinâmica da trajetória em relação à participação no mo-
vimento negro que se altera substantivamente em 2016, indo para a posição de
ponto de chegada (e não mais como elo intermediário das trajetórias).
Mais uma vez, os movimentos de mulheres e feministas se encontram no
penúltimo estágio da trajetória das delegadas, rivalizando em importância com
partidos, movimentos de direitos humanos e participação em conselhos da mulher.

102
A presença dos conselhos como um ponto de chegada nessas trajetórias de
ativismo é bastante compreensível: muitas delegadas das CNPMs estão vinculadas
aos conselhos de direitos das mulheres ou a outros conselhos de políticas públi-
cas. Os conselhos de mulheres costumam, inclusive, estabelecer a exigência da
presença das suas conselheiras nesses processos deliberativos, colocando-as como
“delegadas natas” no âmbito das conferencias de políticas para as mulheres (é o
caso das CNPMs e também nas conferências estaduais e municipais).
O mais interessante é perceber o deslocamento que consideramos significativo
entre os dois períodos aqui analisados: os movimentos negros e as redes de mulheres
negras, que, em 2011, eram apenas um primeiro elo intermediário na trajetória de
ativismo e de participação das delegadas, se conformam, em 2016, como ponto de
chegada dessas trajetórias. O que isso pode querer nos indicar? Uma hipótese ex-
plicativa forte para esse fenômeno parece ser a do fortalecimento desses espaços de
ativismo no Brasil: os movimentos negros e de mulheres negras estando contempo-
raneamente mais atuantes e mobilizados no subcampo de ativismo feminista junto
ao Estado.
Isso demonstra a importância do ativismo das mulheres negras na ocu-
pação dos espaços das CNPMs. Revela, pois, que elas devem ter se mobilizado
mais intensamente, entre os anos de 2011 e 2016, para, finalmente, ocupar mais
tal espaço de deliberação e diálogo com o Estado brasileiro. Revela ainda que, das
dimensões das lutas identitárias, são os movimentos raciais e negros que têm se
aproximado de forma mais intencional e objetiva do espaço das CNPMs, confor-
me vemos ser discutido mais longamente no capítulo 5 do volume 2, por Johanna
Monagreda.
Também os elos intermediários dos ativismos das delegadas são distintos
para os dois anos analisados, conforme foi possível ver nos capítulos elaborados
nesta coletânea por Celi Pinto e Danusa Marques. Observa-se que, para os dois
anos, a trajetória de ativismo nos movimentos de mulheres e feministas se encon-
tra na última posição intermediária, passando a disputar com os partidos políti-
cos, os movimentos de direitos humanos, da saúde e o ativismo em conselhos a
posição quase final das trajetórias. Partidos políticos, como podemos observar,
são então elos intermediários mobilizadores de importância nessas trajetórias
para as delegadas das duas conferências. Dos demais elos intermediários, a par-
ticipação em sindicatos e em entidades profissionais são as opções subsequentes
depois da entrada no ativismo (tanto em 2011 quanto em 2016), assim como o é
também o ativismo comunitário (ligado à questão da moradia em 2011 e à ques-
tão da mulher em 2016).

103
Como é possível ver, existem organizações que marcam de forma importan-
te as trajetórias das delegadas de 2016 e, entre elas, é necessário mencionar a par-
ticipação em primeiro lugar (e de novo): nos movimentos de mulheres e feminista
(o maior quadrado verde do dígrafo), nos sindicatos e nas estruturas partidárias.
Para 2016, as instituições religiosas, que foram significativas em 2011, perderam
seu efeito de concentrar as interações. Assim, as três instituições – movimentos
de mulheres, sindicatos e partidos – foram aquelas em que as interações das traje-
tórias foram mais robustas (notar o reforço das linhas de ligação). E, de novo, as
trajetórias das delegadas de 2016 também nos indicam a enorme pluralidade de
instituições em que os feminismos já se encontram interagindo.
Importa lembrar que, entre as delegadas, 41% afirmaram estar representan-
do nas CNPMs movimentos de mulheres e/ou feministas, e mais de 82% delas se
declararam feministas. Vamos observar essas informações agora a partir de outra
análise: aquela que foca mais nas redes de participação e de interação entre as ins-
tituições (e não aquelas que focalizam a sua temporalidade).

Figura 3: Rede completa das interações nas trajetórias


políticas das delegadas da 3ª CNPM – 2011 (Categorização 3)

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Como podemos observar, existem organizações que marcam de forma im-


portante as interações entre as instituições do ativismo das delegadas e, entre elas,
é necessário mencionar a participação em primeiro lugar de: movimentos de mu-
lheres e feminista (o maior quadrado verde do dígrafo), os sindicatos, as estruturas
partidárias e as instituições religiosas.

104
Essas quatro instituições são aquelas em que as interações do ativismo fo-
ram as mais robustas (notar o reforço das linhas de ligação). Ou seja: confor-
me reportamos do ponto de vista teórico-analítico, as trajetórias e, sobretudo, as
interações entre as distintas organizações que pavimentam essas trajetórias das
delegadas de 2011 nos indicam sim uma pluralidade de instituições em que o fe-
minismo já se encontra relacionado e/ou interagindo. Isso fica ainda mais patente
quando observarmos as outras esferas institucionais da rede de trajetórias.
Com grau um pouco menor de expressividade nas relações/interações, apa-
recem ainda nessa rede de interações das organizações o associativismo comu-
nitário – moradores e a participação em entidades profissionais, em movimentos
vinculados aos direitos humanos, nos movimentos negros e movimento estudantil.
Orbitando o núcleo dessa rede, em um grau bem menor de interações entre essas
trajetórias das delegadas de 2011, surgem por fim, as participações em movimen-
tos ambientalistas, movimentos na saúde, em instituições da Igreja Católica, em
grêmio estudantil e centro acadêmico e em conselhos e conselho da mulher.
Apenas por essa rede mais completa, que traz as interações entre as diferen-
tes instituições do ativismo das delegadas, nos é possível identificar a verdadeira
trama de interações complexas dos movimentos de mulheres e feministas com
outras organizações sociais e políticas.
Apenas através de imagens/dígrafos/figuras como estas é que podemos, de
fato, compreender como os feminismos e/ou movimentos organizados de mulhe-
res estão interagindo para além de si mesmos, indo ao encontro e se relacionando
com outras organizações na construção da trajetória das delegadas, e isto de for-
ma extensa, intensa e complexa, seja com outras organizações da sociedade civil,
seja com instituições híbridas.
Cabe salientar ainda que, nessa trama de interações, identificamos impor-
tantes ausências: a pouca interação nas trajetórias especialmente com dois novos
movimentos sociais muito importantes, a saber, os movimentos de mulheres lés-
bicas/LQBTs e os indígenas. Isso porque, para a questão geracional, apareceram
nessa trama os movimentos ligados ao ativismo estudantil, mas para a dimensão
das sexualidades e da dimensão étnica o mesmo não ocorreu. Parece claro que,
para as delegadas de 2011, os movimentos LQBT e indígenas pouco comparece-
ram nas suas trajetórias de ativismo –talvez porque tinham menor circulação no
subcampo de ativismo feminista junto ao Estado.
Os Gráficos 1 e 2, que iremos apresentar a seguir, são gráficos que represen-
tam a distribuição do grau nodal, ou seja, da quantidade de interações que cada
nodo (no nosso caso aqui, o tipo de movimento ou organização) estabelece na

105
estrutura da rede. Em cinza será representado o grau nodal total (degree),11 que
mensura a quantidade de relações, independentemente se estas são de entrada ou
de saída. Na cor laranja está representado, por sua vez, o Indegree, ou seja, aquelas
relações que chegam ao nodo/tipo de movimento ou organização. Finalmente, em
azul, está representado o Outdegree, isto é, aquelas relações que saem do nodo/
tipo de movimento ou organização.
O índice mencionado acima foi construído, justamente, para representar
a diferença entre o InDegree e o OutDegree, ou ainda: entre a quantidade de en-
trada e saída de interações e pode nos indicar, como vimos, se os movimentos ou
organizações que estamos aqui analisando são “superavitários” ou “deficitários”
em termos dessas interações da militância das delegadas. É possível perceber essa
diferença, se positiva ou negativa, pela leitura da distribuição do grau nodal, con-
forme descrito a seguir.

Gráfico 1 – Distribuição do grau nodal, 2011, rede de interações nas trajetórias

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Como se pode observar do gráfico acima, as dez primeiras organizações


com mais interações na rede de articulações de 2011, por ordem crescente de
interações, são: partidos (recebem mais militantes do que doam), movimentos de
mulheres e feministas (recebem mais militantes do que doam), sindicatos (doam
mais militantes do que recebem), instituições religiosas (doam mais militantes
do que recebem), associativismo comunitário com foco em moradia (doa mais

11   Ver a explicação destes conceitos na Nota 10.

106
militantes do que recebe), entidades profissionais (doam mais militantes do que
recebem), movimentos de direitos humanos (recebem mais militantes do que
doam), movimento estudantil (doa mais militantes do que recebe), movimento
negro (doa mais militantes do que recebe) e associativismo comunitário com foco
nas questões das mulheres (recebe mais militantes do que doa).
Vamos observar agora o comportamento da rede completa de interações/
articulações entre as trajetórias para as delegadas da 4ª CNPM, de 2016. Assim
como já descrevemos para a rede de 2011, o tamanho dos nodos representa o grau
nodal total de cada tipo de movimento e, mais uma vez, optamos por selecionar
os atores (instituições, organizações e movimentos) mais relevantes da estrutura.
Selecionamos e analisamos aqui, afinal, apenas os nodos com grau nodal total
maior que 15. Restaram para a análise das trajetórias na sua forma de categori-
zação mais detalhada, então, 17 tipos de movimentos/organizações, o que repre-
senta 36,95% do total de atores. Entretanto, esses nodos, assim como se deu para
a rede de 2011, abarcam 694 relações das 812 observadas no total, isto é: 85,46%
das interações da rede se dão entre os nodos selecionados. As cores, mais uma vez,
representam os nodos selecionadas para análise (em verde) e aqueles que ficaram
de fora dela (em vermelho).

Figura 4: Rede completa das interações nas trajetórias


políticas das delegadas da 4ª CNPM – 2016 (Categorização 3)

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

107
Gráfico 2 – Distribuição do grau nodal, 2016, rede de interações nas trajetórias

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Como se pode observar do gráfico acima, as dez primeiras organizações


com mais interações na rede de 2016, pela ordem crescente de interações, são: mo-
vimentos de mulheres e feministas (recebem mais militantes do que doam), parti-
dos (recebem mais militantes do que doam), sindicatos (doam mais militantes do
que recebem), associativismo comunitário com foco nas questões das mulheres
(doa mais militantes do que recebe), instituições religiosas – Igreja Católica (doa
mais militantes do que recebe), associativismo comunitário com foco em moradia
(doa mais militantes do que recebe), centro acadêmico (doa mais militantes do
que recebe), conselho da mulher (recebe mais militantes do que doa), associati-
vismo comunitário com foco em lutas por moradia (recebe mais militantes do que
doa) e movimento negro (recebe mais militantes do que doa). A preponderância
de partidos em ambos os anos é indicativo de que as delegadas participantes das
CNPMs representam, conforme mencionamos à Introdução deste capítulo, um
“subcampo” do campo feminista mais amplo.
Numa comparação dessas métricas entre as redes de 2011 e 2016 podemos
afirmar que: 1) houve pouca mudança nos padrões de interações do ativismo das
delegadas aqui pesquisadas entre os dois períodos, já que as dez organizações e/ou
movimentos com maior numero de interações foram bastante semelhantes (sobretu-
do as três primeiras que foram exatamente as mesmas, em posições um pouco dife-
rentes) nos dois anos; 2) para os dois anos aqui analisados, sindicatos, instituições
religiosas, entidades profissionais e movimento estudantil aparecem como grandes

108
organizações “doadoras” de militância entre as delegadas e, em contrapartida, os
partidos, movimentos de mulheres e feminista, movimentos de direitos humanos,
conselhos das mulheres surgem como as principais organizações/movimentos que
são “receptoras” da militância. As organizações do associativismo comunitário ora
aparecem como doadoras, ora como receptoras, e o movimento negro, que no ano de
2011 apareceu como doador de militância, em 2016, passou a operar como receptor
da militância dessas mulheres.

As análises das redes de participação política

Agora vamos às análises das redes de participação em outros movimentos,


com nível analítico: delegadas, ou seja, a rede identificada das formas de parti-
cipação (diferente das redes anteriores, esta aqui não reporta a nenhum padrão
referente à ordem cronológica das trajetórias, mas de maior intensidade ou força
de participação) das delegadas nas duas conferências aqui analisadas.
Todos os grafos/figuras apresentados nesta seção foram produzidos a partir
de dados gerados pela seguinte questão dos questionários: “De qual movimento
social ou rede de ativismo de mulheres ou feminista você participa mais? De qual
participa em segundo lugar? E em terceiro lugar?”. Vamos discutir primeiro as
formas de participação a partir da categorização intermediária (categorização 2
presente no Quadro 1) e, na sequência, analisamos as duas outras formas de ca-
tegorização (a 1, mais geral, e a 3, desagregada) também (dando uma espécie de
zoom nas nossas redes). As figuras que representam essa trama de respostas sobre
a participação política são as que seguem:

109
Figuras 5 e 6: Rede das principais formas de participação
das delegadas (Categorização 2 – 2011 e 2016)

PARTICIPAÇÃO - 2011 PARTICIPAÇÃO - 2016

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Como se observou para as redes de trajetórias anteriormente analisadas, as


principais organizações relatadas pelas delegadas se repõem: movimento de mu-
lheres e feminista e movimentos relacionados à igreja/religião com uma distinção:
a diferença é que surge agora no centro dessa rede também a participação em par-
tidos políticos (antes os partidos se constituíam em elo intermediário do ativismo
das delegadas). Sabemos que mais de 62 % das nossas entrevistadas participam de
partidos e o desenho dessa rede confirma esse dado. A participação nos partidos,
aquela em instituições ligadas à igreja e outra em movimentos de mulheres e fe-
minista estão no núcleo central da rede de participação política. Já em 2011, além
dessas três que permanecem centrais para a configuração da rede de participação,
surgem também as organizações vinculadas à assistência social e a movimentos de
bairro.
Para 2016, essas duas últimas organizações estavam também presentes, mas
num círculo um pouco mais ampliado de importância na rede de participação das
delegadas, inseridas talvez num segundo grau de importância, juntamente com
movimento negro e os sindicatos. Ainda nesse ano, as organizações de assistência
social não estiveram no centro da rede (como estavam em 2011).
Para os dois anos analisados, os movimentos LQBT e ambientais, as enti-
dades profissionais, o movimento estudantil e os relacionados ao consumidor or-
bitam as camadas mais externas dessa rede de participação. As exceções são: as

110
organizações sindicais, que em 2011 eram periféricas à rede e se tornaram inter-
mediárias para 2016, e os movimentos ambientalistas, que fizeram o movimento
oposto: eram intermediários para a rede da participação, no ano de 2011, e se
tornaram periféricos para 2016.
De qualquer modo, a rede da participação das delegadas revela um padrão
de ativismo consistente nos dois anos, tendo-se o ativismo religioso, em organiza-
ções de mulheres e feminista e partidário, como seu núcleo duro central (em 2011
também se inseriam nesse núcleo a participação em movimentos de bairro e aque-
la em organizações assistenciais). E esse padrão de participação parece consistente
com as formas de mobilização das mulheres que estejam em diálogo com o Estado:
a participação em movimentos de mulheres seria esperada tendo-se como foco o
tema das conferências que estamos analisando. A participação partidária tam-
bém nos parece esperada, já que há um claro viés de participação das delegadas
em partidos que comumente dão importância a processos de deliberação política,
sobretudo o PT e o PCdoB. Esse aspecto será igualmente destacado nas análises
subsequentes. Já a participação nos movimentos religiosos é, e parece continuar a
permanecer, importante (historicamente foi e parece continuar sendo): trata-se de
uma das principais portas de entrada socialmente legítimas e autorizadas para fo-
mentar e recrutar o ativismo político das mulheres brasileiras. A participação em
movimentos ligados à assistência social e às lutas nos bairros perdeu importância
em 2016, podendo revelar que essas formas de ativismo passaram a ser superadas
por outras formas em 2016, como o movimento negro e a participação em redes
de mulheres negras (a Figura 7 a seguir revela essa dinâmica).
Houve, pelos padrões observados nas duas redes, uma diminuição da co-
esão da rede para o ano de 2016, ou seja, a intensidade do relacionamento entre
organizações foi em 2016. Há algumas hipóteses que poderiam ser aventadas para
isso: talvez as delegadas estejam participando menos, talvez elas tenham tido me-
nos recursos para essa participação entre os anos de 2011 e 2016, talvez o perfil
das delegadas de 2016 seja mais pautado por formas de participação mais insti-
tucionalizadas em função das dificuldades de realização da 4ª CNPM (conforme
descrito por Celi Pinto, no capítulo 5, vol. 1). Não há como termos absoluta cer-
teza sobre esse ponto. Sigamos.
Vamos agora apresentar as redes de participação das delegadas, onde fo-
ram utilizadas as categorias mais amplas/genéricas (Categorização 1, no Quadro
1 – ver cores da legenda, ou seja, onde diminuímos o zoom), e também as mais
refinadas/específicas/desagregadas (Categorização 3, no Quadro 1, onde aumen-
tamos o zoom).

111
Figura 7: Rede completa da participação das delegadas
da 3ª CNPM – 2011 (Categorização 1 e 3)

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Esse grafo representa a rede de participação em diferentes tipos de movi-


mentos (os nomes dos nodos indicam o tipo de movimento ou organização de
que elas participaram). Já as cores, por sua vez, representam o tipo mais amplo
de cada movimento (categorização 1, amplas/genéricas). Para facilitar a leitura e
interpretação dessa rede, e em função da importância da participação em movi-
mentos de mulheres e feministas, esta foi separada dos demais movimentos da
sociedade civil e colorida com a cor roxa. Dessa forma, a legenda nos revela a
categorização mais ampla.
O tamanho dos nodos representa, como sabemos, o grau nodal de cada
tipo de movimento (degree), ou seja: a quantidade de interações que cada nodo
possui. O grau nodal dos dez tipos de movimentos mais relevantes dessa rede está
representado na Figura 8 a seguir. A espessura das linhas é indicadora da força
da relação: quanto mais espessa a linha, mais forte é a relação entre dois tipos de
movimentos.

112
Essas outras formas de categorização detalham aspectos relevantes para
esse estudo: inicialmente cabe demarcar a complexidade e a riqueza presentes na
rede de participação das delegadas de 2011. Quando separamos a participação
delas em movimentos de mulheres e feminista, podemos, finalmente, enxergar com
clareza com quais outros movimentos e organização os movimentos feministas
estão, de fato, interagindo no campo complexo das formas de participação das
delegadas. A partir da interpretação dessa figura, para 2011, as interações mais
fortes e intensas dos movimentos de mulheres e feminista se deram com: as redes
de mulheres negras, os partidos e o associativismo comunitário com foco nas ques-
tões específicas das mulheres. Dessa forma, como informação relevante, ao desa-
gregarmos mais as categorizações, o ativismo em instituições religiosas perdeu em
importância nessa trama. A partir do cálculo da métrica do grau nodal (degree),
temos o seguinte gráfico, que indica quais são, para o ano de 2011, as principais
organizações e movimentos que interagiram com os movimentos feministas e de
mulheres:

Gráfico 3: Valores da métrica do grau nodal (degree) dos movimentos/


organizações mais conectados na rede de participação das delegadas – 2011

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

113
É muito interessante observar, portanto, que a rede de participação das de-
legadas em 2011 nos permite evidenciar, com toda clareza, a presença do sides-
treaming feminista, já que os movimentos de mulheres e/ou feministas estão inte-
ragindo e se conectando bastante a outros movimentos organizados da sociedade
civil (principalmente: associativismo comunitário com foco nas questões específi-
cas das mulheres e redes de mulheres negras; e com menor grau de conexão com
as demais formas de associativismo comunitário, com destaque para o foco em
mulheres rurais, os movimentos vinculados à saúde e os movimentos indígenas).
Pela primeira vez podemos vislumbrar na rede da participação a importância das
conexões que se referem a fluxos horizontais do feminismo no Brasil, simultanea-
mente, com as mulheres negras, rurais e indígenas. Os sindicatos são um elemento
também significativo desses fluxos.
Para além das organizações da sociedade civil, já descritas em sua impor-
tância acima, os movimentos de mulheres e feministas, em 2011, também estão
conectados com o mainstreaming feminista: as demais conexões fortes da rede
incluem, principalmente, as organizações/instituições híbridas (conselhos) e os
partidos, revelando que as interações também estão produzindo fluxos verticais
do feminismo para dentro dessas instituições. Cabe destacar que vão aparecer na
rede (diferente da rede de 2016), as interações e participações com organizações
do próprio Estado, sobretudo: os serviços de atendimento às mulheres, os organis-
mos de políticas para as mulheres (OPMs) e as prefeituras. Como veremos adiante,
a rede completa da participação em 2016 quase não apresentará conexões diretas
com as instituições estatais (teremos apenas a presença da participação nos OPMs
e, tenuemente, a participação do poder Legislativo).
Para podermos nos aprofundar na nossa discussão sobre o sidestreaming
feminista, deliberamos por recortar dessa rede completa das formas de participa-
ção em 2011 apenas para aquelas interações estabelecidas entre as organizações da
sociedade civil. Vejamos:

114
Figura 8: Rede parcial da participação das delegadas
da 3ª CNPM – 2011 (apenas sociedade civil organizada)

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Nesta Figura 8 temos, então, a representação parcial da rede de participa-


ção de 2011, onde estão presentes, para além, claro, dos movimentos de mulheres
e feministas, aqueles categorizados como outros movimentos da sociedade civil.
As cores distinguem entre movimentos de mulheres e feministas (roxo) e demais
movimentos da sociedade civil (vermelho). O tamanho dos nodos representa o
grau nodal de cada tipo de movimento (degree), ou seja, a quantidade de intera-
ções presentes, que cada nodo possui. Já a espessura das linhas é indicadora da
força dessas relações. Quanto mais espessa, mais forte é a relação entre dois tipos
de movimentos. As relações mais fortes, como podemos ver, se confirmaram na
desagregação: elas realmente se dão entre os movimentos de mulheres e feminista e
o associativismo comunitário com foco específico nas mulheres, as redes de mulheres
negras e o movimento estudantil. Numa segunda escala de força interativa/conec-
tiva temos, ainda, com importância: os movimentos de direitos humanos, os mo-
vimentos vinculados à saúde, o associativismo comunitário com foco nas mulheres
rurais, as outras formas de associativismo comunitário e os movimentos indígenas.

115
Já para o ano de 2016 temos alterações na rede completa de participação
das delegadas que são significativas. Na rede completa de 2016, temos, como será
visível e fácil de perceber, uma trama de articulações menor do que aquela evi-
denciada em 2011. Vejamos.

Figura 9: Rede completa da participação das delegadas


da 4ª CNPM – 2016 (Categorização 1 e 3)

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Como é perceptível, o desenho das articulações da rede de 2016 é mais


simples que o de 2011. Continuam como interações fortes as articulações entre os
movimentos feministas e de mulheres com as redes de mulheres negras, os parti-
dos, os conselhos e as entidades profissionais. E num segundo grau de importância
destacam-se, para a rede de participação de 2016, as interações com: partidos, as-
sociativismo comunitário e movimento quilombola. Mais fracas são, afinal, as inte-
rações com movimentos LQBT, organismos de políticas para as mulheres (OPMs) e
sindicatos. O Gráfico 4, a seguir, confirma a situação das principais organizações e
movimentos que interagem com os movimentos feministas e de mulheres em 2016:

116
Gráfico 4: Valores da métrica do grau nodal (degree) dos movimentos/
organizações mais conectados na rede de participação das delegadas – 2016

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

O que nos parece claro é que, nessa configuração de 2016, o sidestreaming


feminista parece ceder lugar às articulações do mainstreaming feminista, já que
articulações/conexões mais fortes da participação das delegadas estão em: entida-
des profissionais, conselhos e partidos (exceção feita à importância da participa-
ção em redes de mulheres negras). Para finalizar essa seção, vamos recortar ape-
nas as articulações da rede de participação de 2016 dos movimentos de mulheres
e feminista com as demais organizações da sociedade civil, assim como também
fizemos para a rede de participação das delegadas de 2011.

117
Figura 10: Rede parcial da participação das Delegadas da 4ª CNPM – 2016
(apenas sociedade civil organizada)

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Aqui se destaca, mais uma vez, a força de interação entre os movimentos de


mulheres e feminista e as redes de mulheres negras, tanto em termos da quantidade
maior das interações (visíveis pelo tamanho do grau nodal), quanto da força des-
sas interações (medida pela espessura da linha que as liga). Num segundo estágio
de relevância estão as interações estabelecidas com os movimentos LQBT, o movi-
mento quilombola e o associativismo comunitário. Esse padrão também foi obser-
vado na rede de 2011. Todavia, merece atenção o fato de que diminuiu a coesão na
rede de participação das delegadas para o ano de 2016: sendo que tanto o número
de nodos quanto as interações entre eles são bem menores em 2016.
Em 2016, a participação das delegadas nos movimentos de mulheres indí-
genas e rurais estabelece conexões entre si, mas estas estão desligadas dos demais
nodos da rede de participação, incluindo os movimentos de mulheres e feminis-
tas. Esses elementos parecem indicar que as articulações do sidestreaming femi-
nista, em 2016, sofreram claramente um decréscimo e que as dimensões étnica e
rural perderam conexões de participação importantes.
Merece ainda menção que, tanto para 2011 quanto para 2016, a participa-
ção das delegadas em organizações relacionadas a temáticas mais específicas – tais
como: criança e adolescente, cultura, juventude, esporte e lazer, movimento estu-
dantil, movimento de pescadores, movimentos vinculados à Educação e também

118
as articulações com os poderes do Estado – recebem e doam poucas articulações/
interações (quando essas relações são existentes). Essa informação nos parece im-
portante porque são essas organizações aquelas principalmente vinculadas, ou às
pautas identitárias (exceção feita ao movimento negro), ou a movimentos que
são importantes em termos de renovação das formas de difusão das agendas de
gênero e feministas, bem como nas possibilidades de mudanças (movimento es-
tudantil, cultura, educação, esporte e lazer e juventude, sobretudo) culturais mais
expressivas. Essa informação revela que há maior dificuldade de articulação das
delegadas que estão inseridas nas conferências com as organizações mais renova-
das e renovadoras, de fato, das pautas de gênero e feministas.
Destaca-se, então, em 2011, como contrapartida imediata desse fenômeno,
e diferentemente da rede de participação de 2016, a maior presença de interações
e de participação das delegadas com o polo oposto institucional: a participação em
instituições do Estado (os serviços de atendimentos às mulheres, OPMs e Prefeituras,
no caso de 2011, e muito residualmente, a participação nos OPMs e no poder
Executivo). Esse fenômeno duplo de dinâmicas, ora destacado, explica, ao menos em
parte, alguns dos limites do ativismo estatal participativo: a rede de participação das
delegadas parece não conseguir mesmo alcançar formas de articulações mais cen-
trais com as organizações estatais que seriam, ao fim e ao cabo, aquelas responsáveis
pelas efetivas transformações substantivas nos padrões hierárquicos e verticalizados
das relações de gênero e raça dentro da estrutura administrativa (a normatividade
patriarcal e racista do Estado).

As redes de articulação

Vamos analisar agora as redes de articulação com outras organizações,


contendo então o nível analítico das organizações. Essas redes correspondem às
respostas das delegadas às seguintes perguntas: “Em relação à entidade, à rede e
ao movimento que você está aqui representando, essa sua organização, movimento,
rede estabelece algum tipo de articulação (interação, relacionamento, trabalho con-
junto) com outros tipos de movimentos ou organizações?”. As imagens abaixo nos
mostram essas redes de articulação referentes à instituição que a delegada está
representando na 3ª e 4ª CNPMs. Diferente da imagem anterior, esta outra rede
refere-se a uma rede de fluxos de contatos/interações recíprocos (idas e vindas e
sua dinâmica de articulação móvel) entre as distintas organizações/instituições.

119
Figuras 11 e 12: Rede das articulações/interações entre as principais
organizações que as delegadas representam nas CNPMs

ARTICULAÇÃO - 2011 ARTICULAÇÃO - 2016

Fonte: Elaboração Própria

Como a própria figura dessas redes deixa antever, há menor densidade das
articulações de rede para o ano de 2016 em comparação a 2011 (notamos isso
também nas redes de participação descritas anteriormente). Assim, podemos afir-
mar que a rede de articulações institucionais de 2016 se apresenta menos coesa,
sendo que a distância média entre as organizações de 2016 aumentou e o índice
de compactação dessa rede cai.12 Essas métricas são: distância média de 2011:
1,530; distância média de 2016: 1,621; compactação de 2011: 0,638 e compactação
de 2016: 0,511.
Para 2011, a rede das articulações institucionais se estabeleceu central-
mente entre as seguintes organizações (por ordem de magnitude de articulações
estabelecidas): movimentos de mulheres e feministas, associativismo comunitário,
movimento negro e conselhos. De forma ainda significativa apareceram os fluxos
de trocas/articulações também com o poder executivo e, finalmente, os movimen-
tos LQGT; e, com menor intensidade de articulação/interação, partidos e entida-
des profissionais. Na periferia dessa rede de articulação, mas ainda com alguma

12   Distância média: para quaisquer pares de nodos, o algoritmo mede a distância mais curta entre
eles. O resultado expressa uma média geral de distâncias mais curtas. Redes com distâncias menores
são mais coesas, e com distâncias maiores, menos coesas. Compactação: índice que varia de 0 a 1, é
um indicador de coesão. Quanto mais próximo de 1, mais compacta é a rede, e quanto mais próximo
de 0, mais fragmentada.

120
importância, em 2011, estão: sindicatos, movimentos de igreja/religião, movi-
mentos de direitos humanos, movimentos relacionados à saúde.
Já em 2016, apesar de a trama de articulações ser menor que a de 2011, ela
se deu através, principalmente, das interações com o poder Executivo, o associati-
vismo comunitário, os movimentos de mulheres e feministas e o movimento negro.
Com menor expressão aparecem, então, as articulações com os conselhos e os
movimentos relacionados à moradia. Um pouco para fora do núcleo central de
articulações, em 2016, mas ainda com relevância, estão: os sindicatos e os movi-
mentos rurais. E com menor expressividade de interações, mas ainda com alguma
importância, situam-se os movimentos LQBT, movimentos de direitos humanos,
movimentos ligados à igreja/religião e os ambientalistas.
Conforme salientamos para as redes de participação, tanto para 2011,
quanto para 2016, organizações relacionadas a temáticas específicas, tais como:
criança e adolescente, cultura, juventude, esporte e lazer, movimento estudantil,
movimento de pescadores, de indígenas, vinculados à educação e também a ou-
tros Poderes, revelaram poucas articulações com a instituição que as delegadas
representam.
Destaca-se, então, em 2016, como contrapartida imediata desse fenômeno,
e diferentemente de 2011, uma maior presença de interações com o polo oposto:
o poder Executivo ganhará em magnitude nas articulações, bem como se desta-
cam ainda as interações com sindicatos e movimentos rurais. O que esse fenômeno
pode nos revelar é o fato de as delegadas de 2016 estarem mais articuladas, ou
mais próximas do governo ou de entidades sindicais (tais como a CUT) ou movi-
mentos mais umbilicalmente vinculados ao governo.
De qualquer forma, esse fenômeno duplo de dinâmicas destacado explica,
ao menos em parte, os limites inseridos no ativismo estatal participativo: ele não
parece conseguir alcançar formas de articulações centrais com organizações que
seriam aquelas primordialmente responsáveis por transformações substantivas
nos padrões hierárquicos e verticalizados das relações de gênero.

As redes de fluxos de materiais e ações

Seguimos agora para as redes finais. Analisaremos então as Redes de Fluxos


1 e 2: a primeira referente à circulação e produção de materiais entre movimentos e
organizações, com nível analítico: organizações; e, finalmente, a segunda, referente
à circulação e produção de materiais – partidos, com nível analítico: organizações.13

13   Perguntas: “Seu partido produz material para formação/capacitação para organizações/movi-
mentos ou redes de mulheres ou feministas” + “Seu partido produz material para formação/capaci-

121
Assim, complementando as análises das redes de articulação propriamente
ditas acima descritas, temos as redes de fluxos de materiais e de ações que são
estabelecidas14 quando as delegadas dizem se articular com as organizações e mo-
vimentos. Vamos analisar apenas duas delas. A primeira refere-se aos fluxos de
ações/atividades/materiais entre as organizações dos movimentos feministas e de
mulheres de que participam essas mulheres e as demais organizações de partici-
pação, e a segunda refere-se especificamente aos fluxos de produção de materiais
e outras ações entre os partidos políticos dos quais elas participam e para quais
instituições eles estabelecem essas trocas. Elas serão analisadas abaixo:

Figuras 13 e 14: Rede dos fluxos de ações e produção de materiais que são
estabelecidos entre as principais organizações de ativismo de mulheres ou
feminista das delegadas

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Para os dois anos, como se pode perceber nas figuras acima, os movimen-
tos feministas e de mulheres dos quais as delegadas participam produziram vasto
material para outros movimentos feministas e de mulheres. Há, portanto, uma

tação de outros tipos de organizações, movimentos ou redes?” + “Para qual outro tipo de movimento
(ou redes)?” (Opções de resposta: estudantil, mulheres ou feminista, negro, LGBT, rural, indígena e/
ou comunidades tradicionais, sindical, urbanos, ecológico e/ou ambiental, outros).
14   Aqui as perguntas respondidas pelas entrevistas são: “A organização de mulheres ou feminista
de que você participa produz material para formação/capacitação de outros movimentos ou redes de
mulheres ou feministas? Esse movimento ou rede produz material para a formação/capacitação de
outros tipos de movimentos ou redes? Para qual?”. Os tipos de materiais e ações foram preestabele-
cidos: e estes seriam: 1) Cartilhas/materiais escritos e audiovisuais; 2) cursos, eventos ou oficinas; 3)
boletins informativos; 4) material on-line; 5) livros, publicações acadêmicas.

122
atuação bem endógena aqui. Em 2011 e em 2016, a organização no 2º lugar para
quem se produz mais materiais ou ações é o movimento negro, seguido com menor
quantidade de trocas os movimentos LQBT e movimentos rurais, sendo que essa
produção toda, em 2016, caiu em quase um terço. Ou seja, para o ano de 2016,
analisando-se essa rede de fluxos de materiais e ações, o volume dessa produção
caiu expressivamente, revelando maior dificuldade de se estabelecer essas trocas
em 2016. Movimentos urbanos e sindicais estão numa categoria intermediária
em termos dessas trocas, e, para 2011, os menores fluxos de trocas se deram en-
tre os movimentos de mulheres e feministas com os movimentos indígenas e os
ambientalistas.
Conforme salientado, para 2016, quem ocupa o segundo lugar nesses fluxos/tro
cas, conforme já mencionado, é também o movimento negro, seguido numa po-
sição mais intermediária dos movimentos LQBT, estudantil e sindical. Mais uma
vez, os menores fluxos de trocas em 2016 também se deram com os movimentos
indígenas, urbanos, rurais e ambientais. A seguir analisamos os fluxos desses ma-
teriais e ações, tendo-se como foco os partidos.15

Figuras 15 e 16: Rede dos fluxos de ações e produção de materiais que são
estabelecidos entre as principais organizações partidárias das delegadas

FLUXO 2 - 2011

FLUXO 2 - 2016

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

15   A pergunta que deu origem a esses dados é: “Seu partido produz material para a formação/
capacitação de outros tipos de organizações, movimentos ou redes? Quais?”. Os materiais e ações
foram os mesmos da rede anterior.

123
Como podemos ver, há um papel muito importante do Partido dos
Trabalhadores/PT e, em menor escala, do PCdoB aqui. São eles que produzem o
maior volume de material (existe também uma sobrerrepresentação de participa-
ção de delegadas nesses partidos). Para 2011 e também 2016, os fluxos identifi-
cados no PT apresentam fortes conexões com os movimentos classistas (sindical,
estudantil), mas também com as pautas de mulheres (em maior grau), do movi-
mento negro e LQBT. Cabe mencionar ainda que é perceptível que a produção de
material e ações caiu de 2011 a 2016.

Considerações finais

Sobre as redes de trajetórias e suas interações


As análises das redes de trajetórias das delegadas (tanto em 2011 quanto em
2016) nos indicam a enorme pluralidade de instituições onde os feminismos já se
encontram interagindo: ou seja, situa-nos na trama da formação e da interação
dos feminismos com as inúmeras outras formas de ativismo, dando confirmação
à presença do sidestreaming feminista no subcampo do feminismo estatal parti-
cipativo brasileiro, revelando as variadas formas nas quais têm se estabelecido as
relações e os fluxos horizontais do feminismo brasileiro.
A principal base política formadora do ativismo político das delegadas
nas CNPMs brasileiras foi: a participação em movimentos estudantis e nos movi-
mentos ligados à religião. As principais organizações “doadoras” de militantes nas
trajetórias das delegadas, de 2011, foram exatamente estas, sendo que ganharam
destaque a Igreja Católica e a atuação em grêmios estudantis. Para as delegadas de
2011, as estruturas dos partidos e, também, da militância nos movimentos de saúde
rivalizam com o ativismo em movimentos de mulheres, o ponto quase final das
trajetórias. Os movimentos de mulheres, os partidos e os sindicatos têm a maior
força de interações, sendo que as maiores organizações “doadoras” de militantes
nas trajetórias das delegadas de 2011 foram: conselhos e conselho da mulher, a
militância em movimentos ambientalistas e de direitos humanos e o associativismo
comunitário especificamente em questões das mulheres.
Ainda que a participação em movimentos estudantis tenha comparecido
também em 2016, para as delegadas da 4ª CNPM, ganhou importância a parti-
cipação no movimento ambientalista e no associativismo comunitário ligado aos
bairros, sendo que a militância em instituições religiosas se deslocou para um dos
primeiros elos intermediários para 2016. No segundo nível de instituições que
“doaram” militantes para as etapas seguintes das trajetórias encontramos: os sin-
dicatos, o associativismo comunitário focado em questões das mulheres, o ativismo

124
nas instituições da igreja evangélica, e novamente o ativismo em movimento estu-
dantil e nas entidades profissionais.
Podemos então afirmar que, quando as delegadas chegam aos movimentos
de mulheres, elas já passaram por outras formas de ativismo anterior. Ou seja: os
movimentos feministas e de mulheres não se constituem nas principais “portas de
entrada” para a maioria das delegadas participantes das conferências. Mas estes
estão sim presentes nas trajetórias delas, principalmente como seus elos interme-
diários. O mesmo ocorre, em parte, com a participação em conselhos: que ora
são elos intermediários, ora também compareceram como pontos de chegada das
trajetórias (o que ocorre em 2016).
Mas, talvez, o principal elemento analítico de significância que precisa ser
destacado sobre essas trajetórias refere-se à atuação das delegadas nos movimen-
tos negros e também no ativismo de redes de mulheres negras. Para 2016, esse
ativismo se conformou em um “ponto de chegada” das trajetórias das delegadas
da 4ª CNPM. Isso demonstra a inequívoca importância do ativismo das mulheres
negras na ocupação mais recente desses espaços das CNPMs.
Já destacamos que, para as redes de trajetória e interação entre trajetórias,
não houve praticamente mudança nos padrões de interações do ativismo das de-
legadas aqui pesquisadas entre os dois períodos, já que as dez organizações e/ou
movimentos com maior número de interações foram bastante semelhantes (so-
bretudo as três primeiras que foram exatamente as mesmas) nos dois anos. Os
sindicatos, as instituições religiosas, as entidades profissionais e o movimento es-
tudantil aparecem como grandes organizações “doadoras” de militância. Em con-
trapartida, os partidos, movimentos de mulheres e feminista, movimentos de di-
reitos humanos, conselhos das mulheres surgem como as principais organizações/
movimentos “receptore(a)s” dessa militância. As organizações do associativismo
comunitário ora aparecem como doadoras, ora como receptoras, e o movimento
negro, que no ano de 2011 apareceu como doador de militância, em 2016 passou
a operar como receptor da militância dessas mulheres.

Sobre as redes de participação política


Pela primeira vez, através desses dados, foi possível vislumbrar na rede da
participação a importância das conexões que se referem a fluxos horizontais do
feminismo no Brasil, simultaneamente, com as mulheres negras, rurais e indíge-
nas. Os sindicatos e partidos também foram elementos significativos desses fluxos.
Como se observou para as redes de trajetórias e das interações entre as
trajetórias, as principais organizações de participação relatadas pelas delegadas se
repõem: movimento de mulheres e feminista e movimentos relacionados à igreja/

125
religião, mas aparecendo no centro dessas redes a participação em partidos políti-
cos (antes os partidos se constituíam em elo intermediário do ativismo das delega-
das). A participação nos partidos, aquela em instituições ligadas à igreja e também
a que se dá em movimentos de mulheres e feminista são, afinal, o núcleo central da
rede de participação política. Já em 2011, além dessas três que permanecem cen-
trais para a configuração da rede de participação, surgem também as organizações
vinculadas à assistência social e a movimentos de bairro.
Para 2016, essas duas últimas organizações estavam também presentes, mas
num círculo mais ampliado de importância na rede de participação, inseridas em
segundo grau de importância, juntamente com movimento negro e os sindicatos.
Ainda nesse ano, as organizações de assistência social não estiveram no centro
da rede (como estavam em 2011). De qualquer modo, a rede da participação das
delegadas revelou padrão de ativismo consistente para os dois anos, tendo-se o
ativismo religioso, em organizações de mulheres e feminista e partidário como seu
núcleo duro central (em 2011 também se inseriam nesse núcleo a participação em
movimentos de bairro e aquela em organizações assistenciais).
Esse padrão de participação parece consistente com as formas de mobiliza-
ção das mulheres que estejam em diálogo com o Estado: a participação em movi-
mentos de mulheres seria esperada tendo-se como foco o tema das conferências
que estamos analisando. A participação partidária também nos parece esperada,
já que há um claro viés de participação das delegadas em partidos que dão impor-
tância a processos de deliberação política, sobretudo o PT e o PCdoB. Já a parti-
cipação nos movimentos religiosos é, e parece continuar a ser, importante como
porta de entrada, socialmente legítima e autorizada, para fomentar e recrutar o
ativismo político das mulheres brasileiras. A participação em movimentos ligados
à assistência social e às lutas nos bairros perdeu importância em 2016, podendo
revelar que essas formas de ativismo passaram a ser superadas por outras formas
em 2016, como aquela vinculada ao movimento negro e às redes de mulheres
negras.
Ao separamos a participação em movimentos de mulheres e feminista, en-
xergamos com quais outros movimentos há interações nesse campo complexo das
formas de participação das delegadas: (a) para 2011, as interações mais fortes e
intensas se deram com as redes de mulheres negras, os partidos e o associativismo
comunitário com foco nas questões específicas das mulheres (observamos como, ao
desagregarmos mais as categorizações, o ativismo em instituições religiosas per-
deu em importância nessa trama); (b) para 2016, permanecem como interações
fortes as articulações entre os movimentos feministas e de mulheres com as redes
de mulheres negras, os partidos, os conselhos e as entidades profissionais, e, num

126
segundo grau de importância, as interações com: partidos, associativismo comuni-
tário e movimento quilombola (fracas foram as interações com movimentos LQBT,
organismos de políticas para as mulheres e os sindicatos).
A configuração dessa participação em 2016, onde, como visto, os fluxos
do sidestreaming feminista parecem ter cedido lugar às articulações do mains-
treaming feminista (entidades profissionais, conselhos e partidos) – com exceção
feita à importância da participação em redes de mulheres negras –, pode estar
diretamente relacionada com o contexto de realização da 4ª CNPM. Conforme
analisado por Celi Pinto (no Capítulo 5 do v. 1), as mulheres que participaram
dessa última conferência ali estariam pelo esforço de fazer que esta acontecesse
e, quem sabe, mobilizadas também pelo maior interesse em tentar “defender” a
presidenta Dilma no contexto do golpe que já se anunciava.
Os movimentos de mulheres e feministas, em 2011, também estão conec-
tados com o mainstreaming feminista: as demais conexões fortes da rede incluem,
principalmente, as organizações/instituições híbridas (conselhos) e os partidos, re-
velando que as interações também estão produzindo fluxos verticais do feminismo
para dentro dessas instituições. Cabe destacar que vão aparecer na rede (diferente
da de 2016) as interações e participações com organizações do próprio Estado,
sobretudo: os serviços de atendimento às mulheres, os organismos de políticas para
as mulheres (OPMs) e as prefeituras. Como veremos adiante, a rede completa da
participação em 2016 quase não apresentará conexões diretas com as instituições
estatais (teremos apenas a presença da participação nos OPMs e, tenuemente, a
participação do poder Legislativo).
Merece mais uma vez saliência e menção a força de interação entre os mo-
vimentos de mulheres e feminista e as redes de mulheres negras, tanto em termos
da quantidade maior das interações, quanto da força dessas interações. Já as in-
terações estabelecidas com os movimentos LQBT, o movimento quilombola e o as-
sociativismo comunitário surgem perifericamente tanto em 2011 quanto em 2016,
sendo que diminuiu a coesão na rede de participação das delegadas no ano de
2016. Ainda em 2016, a participação das delegadas nos movimentos de mulheres
indígenas e rurais estabeleceram conexões entre si, mas estas estavam desligadas
dos demais nodos da rede de participação, incluindo os movimentos de mulheres
e feministas. Esses elementos parecem indicar que as articulações do sidestrea-
ming feminista, em 2016, sofreram claramente um decréscimo, e que as dimen-
sões étnica e rural perderam conexões de participação importantes, reforçando-
-se a hipótese formulada nos parágrafos anteriores de que as delegadas de 2016
vieram mais fortemente mobilizadas pela manutenção institucional da CNPM e
também do governo Dilma Rousseff.

127
De todo modo, os dados da participação das delegadas reforçam o entendi-
mento de que essa rede parece não conseguir mesmo alcançar formas de articu-
lações mais centrais e diretas com as organizações estatais, aquelas responsáveis
pelas efetivas transformações de fato substantivas nos padrões hierárquicos e ver-
ticalizados das relações de gênero e raça a partir de dentro da estrutura adminis-
trativa, não sendo influentes de forma mais efetiva para desmontar a normativi-
dade patriarcal e racista do Estado brasileiro.
Sobre as redes de articulação
Um dois primeiros aspectos a se destacar dessas redes é o fato de ter sido
constatada menor densidade das articulações de rede para o ano de 2016 em com-
paração a 2011. Como vimos, em 2011, a rede das articulações institucionais se
estabeleceu centralmente entre as seguintes organizações: movimentos de mulheres
e feministas, associativismo comunitário, movimento negro e conselhos. Já em 2016,
apesar de a trama de articulações ser menor, ela se deu através das interações:
com o poder Executivo, o associativismo comunitário, os movimento de mulheres e
feministas e o movimento negro.
Foram poucas e menos intensas as articulações da entidade que a delegada
representava na conferência com organizações vinculadas às pautas de: educação,
criança e adolescente, cultura, juventude, esporte e lazer, movimento estudantil,
e também, com movimento de pescadores e de indígenas, além dos outros po-
deres de Estado. As primeiras referem-se a movimentos que são importantes em
termos de renovação das formas de difusão das agendas de gênero e feministas,
bem como nas possibilidades de mudanças culturais mais expressivas (movimen-
to estudantil, cultura, educação, esporte e lazer e juventude, sobretudo). Essa in-
formação revela que há maior dificuldade de articulação das delegadas com essas
organizações que são, por sua vez, aquelas mais renovadoras e transformadoras
nas pautas de gênero e feministas. Esses dados também referendam a dificuldade
de penetração dos movimentos de mulheres junto aos movimentos indígenas e
ribeirinhos e, fundamentalmente, em instituições do próprio Estado brasileiro. A
exceção aparece para o ano de 2016 quando o poder Executivo ganha em magni-
tude nas articulações, bem como se destacam ainda as interações com sindicatos e
movimentos rurais. Essa contingência das articulações estabelecidas entre as insti-
tuições de participação das delegadas reforçam a nossa hipótese formulada de que
as delegadas de 2016 estavam mais articuladas, ou mais próximas do governo ou
de entidades sindicais (tais como a CUT) ou movimentos mais umbilicalmente
vinculados ao governo, para, justamente, se tentar “defender” o governo Dilma.
Mas, de todo modo, tais análises reforçam alguns limites do ativismo estatal parti-
cipativo: ele não pareceu alcançar formas de articulações que pudessem funcionar

128
como centrais para promover transformações substantivas nos padrões hierárqui-
cos e verticalizados das relações de gênero a partir do Estado.

Sobre as redes de fluxos de materiais


Nos dois momentos, os movimentos feministas e de mulheres dos quais as
delegadas participam produziram material para outros movimentos feministas e
de mulheres e a organização no 2º lugar para quem se produziu mais materiais ou
ações foi o movimento negro, seguido com menor quantidade de trocas os movi-
mentos LQBT e movimentos rurais, sendo que essa produção toda, em 2016, caiu
em quase um terço. Ou seja, para o ano de 2016, analisando-se essa rede de fluxos
de materiais e ações, o volume dessa produção caiu expressivamente, revelando
maior dificuldade de se estabelecerem essas trocas em 2016. Movimentos urbanos
e sindicais compareceram numa categoria intermediária em termos dessas trocas
e os menores fluxos de trocas que se deram entre os movimentos de mulheres e
feministas com os movimentos indígenas e os ambientalistas.
Os dados aqui analisados confirmam claramente a nossa formulação de
que as ideias feministas hoje no Brasil realmente se articulam e viajam ao longo de
múltiplas teias organizacionais e a partir de matrizes discursivas das quais as dele-
gadas das CNPMs fazem/fizeram parte. Elas certamente constituem e organizam
o “subcampo” do ativismo feminista no Estado, vislumbrando o “sidestreaming
via mainstreaming”, e vice-versa, das questões relacionadas a gênero, mulheres e
feminismo nas políticas públicas.
Com as análises das redes aqui descritas conseguimos, sim, observar cla-
ramente quais foram os padrões dos fluxos verticais (em direção aos partidos, a
entidades de classe e a instituições do Estado, inclusive aquelas “híbridas”, como
os conselhos, que têm representantes da sociedade civil e do Estado) do mains-
treaming feminista e também os fluxos horizontais (com o associativismo comuni-
tário, o movimento negro, estudantil, LGBT, juventudes, indígena, rural, além das
organizações sindicais e também das ONGs) presentes no sidestreaming feminista
brasileiro.
Podemos ter clareza então de que essas diferentes direcionalidades dos flu-
xos feministas (e também as suas convergências) já configuram um setor signi-
ficativo do campo feminista brasileiro atual: aquele cujos referentes principais,
como mencionamos, são o Estado e as arenas de políticas públicas.
Essas formas de participação e ativismo político, até onde conheçamos,
nunca haviam sido efetivamente mapeadas no Brasil. Temos a certeza de que este
capítulo traz considerações muito importantes e conclusões bastante inovadoras
para o campo dos estudos sobre movimentos sociais no Brasil e, especialmente,

129
sobre as suas relações com o ativismo estatal. Esta pesquisa, tanto na sua forma
metodológica, quanto no seu conteúdo, podem servir para aprofundamentos e a
compreensão também de como essas relações podem estar se dando em outras
arenas do ativismo junto ao Estado brasileiro e, sendo assim, abrem as portas para
uma agenda nova para a Ciência Política brasileira.

Referências

ABERS, R.; SERAFIM, L.; TATAGIBA, L. Repertórios de interação Estado-sociedade em


um Estado heterogêneo: a experiência na Era Lula. DADOS – Revista de Ciências
Sociais, Rio de Janeiro, v. 57, n. 2, p. 325-357, 2014.
______; VON BÜLOW, M. Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o
ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade?. Sociologias, Porto Alegre,
ano 13, n. 28, set./dez. 2011, p. 52-84.
ALONSO, A. Repertório segundo Charles Tilly: história de um conceito. Sociologia &
Antropologia, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 21-41, 2012.
ALVAREZ, Sonia E. Em que Estado está o feminismo latino-americano? Uma leitura crítica
das políticas públicas com “perspectiva de gênero”. In: FARIA, Nalu; SILVEIRA,
Maria Lucia; NOBRE, Miriam (Org.). Gênero nas políticas públicas: impasses,
desafios e perspectivas para a ação feminista. São Paulo: SOF, 2000. p. 9-25.
______. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu,
Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, p. 13-56, 2014.
______ et al. Encontrando os feminismos latino-americanos e caribenhos. Revista Estudos
Feministas, n. 2, v. 11, p. 541-575, 2003.
______. Foreword. In: Women in Movement in Latin America and the Caribbean, edited
by Nathalie Lebon and Elizabeth Maier. New Brunswick, NJ: Rutgers University
Press, 2010.
______; and Equipo Sidestreaming. Los Viajes de los Feminismos hacia Otros Movimientos
Sociales, with Equipo ‘Sidestreaming Feminisms’. In: Movimientos Sociales: Entre
la Crisis y Otros Saberes, edited by Gina Vargas, Raphael Hoetmer, and Mar
Quintanilla. Lima: Programa Democracia y Transformación Global; Universidad
Nacional Mayor de San Marcos, 2011.
______. Beyond NGOization: Reflections from Latin America. In: BERNAL, Victoria;
GREWAL, Inderpal. Theorizing NGOs: States, Feminisms, and Neoliberalism,
Durham-NC, Duke University Press, p. 285-300, 2014a.
______. Engajamentos Ambivalentes, Efeitos Paradoxais: Movimentos feminista e de
mulheres na América Latina e/em/contra o desenvolvimento. Feminismos nº. 4,
2014b.

130
ABERS, Rebecca; Tatagiba, Luciana. Institutional Activism: Mobilizing for Women’s
Health Inside the Brazilian Bureaucracy. In: Social Movement Dynamics: New
Perspectives on Theory and Research from Latin America, ed. Federico M. Rossi and
Marisa Von Bulow. Burlington, VT: Ashgate, 2015.
BANASZAK, L. A. Inside and outside the state: movement insider status, tactics and public
policy achievements. In: MEYER, D. S.; JENNESS, V.; INGRAM, H. (Eds.). Routing
the opposition: social movements, public policy, and democracy. Minneapolis:
University of Minnesota Press, 2005. p. 149-176.
BARRÈRE UNZUETA, M. Ángeles. La interseccionalidad como desafío al mainstreaming
de género en las politicas públicas. Revista Vasca de Administración Pública, n. 87-
88, p. 225-252, 2010.
BORGATTI, Stephen P.; EVERETT, Martin G.; FREEMAN, L. C. UCINet 6 for Windows:
Software for social network analysis. Harvard, MA: Analytic Technologies, 2002.
CARMO, Íris Nery do. Múltiplos ativismos: coletivos feministas e os desafios
contemporâneos. In: Ferreira, Fabiane & Bonetti, Alinne (orgs.). Gênero,
interseccionalidades e feminismos: desafios contemporâneos para a educação. São
Leopoldo: Oikos, p. 63-73, 2016.
CRENSHAW, Kimberle. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics,  and
Violence against Women of Color. Stanford Law Review, vol. 43, n. 6, p. 1241-1299,
1991.
CROSS, Rob; PARKER, Andrew; BORGATTI, Stephen P. A bird’s-eye view: using social
network analysis to improve knowledge creation and sharing. Knowledge Directions,
v. 2, n. 1, p. 48-61, 2000. Disponível em: <http://www.analytictech.com/borgatti/
publications.htm>. Acesso em: 13 dez. 2004.
EYBEN, Rosalind. Gender Mainstreaming, Organizational Change, and the Politics of
Influencing. In Feminists in Development Organizations, edited by Rosalind
Eyben and Laura Turquet. p. 15-36. Rugby, UK: Practical Action Publishing, 2013.
EISENSTEIN, H. Inside agitators: Australian femocrats and the state. Philadelphia: Temple
University Press, 1996.
FERNÓS, María D. National mechanism for gender equality and empowerment of women
in Latin America and the Caribbean region. Serie Mujer y Desarollo, Eclac, n. 102,
jun. 2010.
FERREIRA, Gleidiane de S. Feminismo e Redes Sociais na Marcha das Vadias no Brasil.
Revista Artemis 15 (1): 33–43, 2013.
GÓMES, Daniel et al. Centrality and power in social networks: a game theoric approach.
Mathematical Social Sciences, v. 46, p. 27-54, 2003.
GOMES, Carla de Castro. 2018. Corpo, Emoção e Identidade no Campo Feminista
Contemporâneo Brasileiro: A Marcha das Vadias do Rio de Janeiro. Tese de
doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2018.

131
GRANOVETTER, Mark. The strength of weak ties: a network theory revisited. In:
MARSDEN, Peter V.; LIN, Nan (Eds.). Social structure and network analysis.
Beverly Hills: Sage, 1982. Cap. 5. p. 105-130.
GUZMÁN, Virginia; MONTAÑO, Sonia. Políticas públicas e institucionalidad de gênero
en América Latina (1985-2010). Serie Mujer y Desarollo, Cepal, n. 118, out. 2012.
HANNEMAN, Robert A. Introduction to social network methods. 2001. Disponível em:
<http://faculty.ucr.edu/~hanneman/SOC157/NETTEXT.PDF>. Acesso em: 26 ago.
2003.
KANTOLA, Johanna. Feminists Theorize the State. New York: Palgrave Mcmillan, 2006.
______; DAHL, Marlene Hanne. Gender and the State: From Differences between to
Differences within. International Feminist Journal of Politics, 7, 1, p. 49-70, 2005.
LOVENDUSKI, Joni. State Feminism and Political Representation. New York: Cambridge
University Press, 2005.
MARTELLO, Laura. Tensões e Desafios na Construção de Espaços e Encontros entre
Feministas Jovens Autonomistas no Contexto Brasileiro e Latinoamericano.
Dissertação do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, 2015.
MATOS, Marlise. Teorias de gênero e teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e
feministas se transformaram em um campo novo para as ciências. Revista Estudos
Feministas, Florianópolis, 16(2), p. 333-357, p. 440, maio/ago. 2008.
______. Desdobramentos das agendas dos feminismos contemporâneos: a quarta onda.
In: ______ (Org.). Enfoques feministas e os desafios contemporâneos – debates
acerca do feminismo: antigos e novos desafios. Belo Horizonte: FAFICH/DCP,
2009. p. 13-43. v. 1.
______. Movimento e a Teoria Feminista em sua Nova Onda: entre encontros e confrontos,
seria possível reconstruir a Teoria Feminista a partir do Sul Global?. Revista de
Sociologia e Política (UFPR. Impresso), v. 18, n. 36, p. 67-92, jun. 2010.
______. O campo científico-crítico-emancipatório das diferenças como experiência da
descolonização acadêmica. Teoria Política e Feminismo, Vinhedo: Horizonte, p. 47-
101, 2012.
______; PARADIS, Clarisse. Los feminismos latinoamericanos y su compleja relación con
el Estado: debates actuales. Íconos. Revista de Ciencias Sociales, Quito, n. 45, p.
91-107, sept. 2013.
MCADAM, D.; TARROW, S.; TILLY, C. Dinámica de la contienda política. Barcelona:
Hacer Editorial, 2005.
______; ______; ______. Para mapear o confronto político. Lua Nova, São Paulo, 76, p.
11-48, 2009.
MCCARTHY, J. D.; ZALD, M. N. Resource Mobilization and Social Movements: A Partial
Theory. American Journal of Sociology, 82, p. 1.212–41, 1977.

132
MCBRIDGE, Dorothy E.; MAZUR, Amy G. State Feminism. In: GOERTZ, G.; MAZUR,
A. G. (Eds.). Politics, gender, and concepts: theory and methodology. Cambridge:
Cambridge University Press, 2008.
MOLINA, José Luis; AGUILAR, Claudia. Redes sociales y antropología: un estudio de
caso (redes personales y discursos étnicos entre jóvenes en Sarajevo). In: LARREA
KILLINGER, C.; ESTRADA, F. Antropología en un mundo en transformación.
Barcelona: Universidad de Barcelona. Servicio de Información, 176 p, 2004.
MUKHOPADHYAY, Maitrayee. Mainstreaming Gender or “Streaming” Gender Away:
Feminists Marooned in the Development Business. IDS Bulletin-Institute of
Development Studies. 35 (4): 95-103, 2004.
NAME, Leo; ZANETTI, Julia. 2013. Meu Corpo, Minhas Redes: A Marcha das Vadias do
Rio de Janeiro. Anais da ANPUR, 2013.
OROZCO VARGAS, Rosibel. Transversalidad de género e interseccionali-
dad. Revista Umbral XXX, Semestre 1, San José, Costa Rica, p. 23-34, 2012.
PHILLIPS, L.; COLE S. 2009. “Feminist Flows, Feminist Fault Lines: Women’s Machineries
and Women’s Movements in Latin America.” Signs 35 (1):185-211.
PINHEIRO, Marina Brito. Os dilemas da inclusão de minorias no parlamento brasileiro:
A atuação das frentes parlamentares e bancadas temáticas no congresso nacional.
Dissertação (Mestrado) – PPGCP, Universidade Federal de Minas Gerais, 2010.
______. Sobre a relação entre os movimentos feministas e o Estado no Brasil (2003-2014).
Tese (Doutorado) – PPGCP, Universidade Federal de Minas Gerais, 2015.
PRUGL, Elisabeth. “Does Gender Mainstreaming Work?” International Feminist Journal
of Politics no. 11 (2):174-195, 2009.
SILVA, M. K.; OLIVEIRA, G. L. A face oculta(da) dos movimentos sociais: trânsito
institucional e intersecção Estado-Movimento – uma análise do movimento de
Economia Solidária no Rio Grande do Sul. Sociologias, Porto Alegre, ano 13, n. 28,
p. 86-124, set,/dez. 2011.
TARROW, S. O poder em movimento: movimentos sociais e confronto político. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2009.
TILLY, C. From Mobilization to Revolution. University of Michigan. CRSO Working Paper
#156, 1977.
______. Movimentos sociais como política. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília,
n. 3, p. 133-160, jan.-jul. 2010.
WALBY, Sylvia. “Gender Mainstreaming: Productive Tensions in Theory and Practice”,
Social Politics 12(3): 321–43, 2005.
______. “Complexity Theory, Systems Theory, and Multiple Intersecting Social
Inequalities”, Philosophy of the Social Sciences Journal, Volume: 37 issue: 4,
page(s): 449-470, December 1, 2007.

133
WELDON, S. The Structure of Intersectionality: A Comparative Politics of Gender. Politics
& Gender, 2(2), p. 235-248, 2006.

134
A percepção das relações de gênero e raça das
delegadas em perspectiva comparada nacional e
entre elas e entre as duas conferências
Marlise Matos1
Ian Prates2

As intensas transformações nos valores, impulsionadas pelos avanços mun-


diais com a experiência da globalização, a intermediação dos fenômenos e das
conexões em tempo real via internet, redes sociais e demais tecnologias da comu-
nicação e informação, trouxeram-nos para um mundo infinitamente mais cosmo-
polita, interligado e complexo.
Nesse novo desenho social, os valores exercem um papel importante tanto
de atender às necessidades dos indivíduos (o que tradicionalmente sempre fize-
ram) quanto de atender aos objetivos coletivos. Os valores denotam a preferência
por certos comportamentos, estratégias e objetivos, e constituem-se também em
componentes essenciais das ações coletivas, fornecendo ainda, como sabemos,
orientações para comportamentos e percepções individuais.
O estudo dos valores tem sido abordado por inúmeras áreas do conheci-
mento. Na filosofia, os valores se constituíram como fonte de reflexão; na socio-
logia, os valores que fundamentam a sociedade e justificam as suas ações são fre-
quentemente estudados (temos já realizado no país alguns surveys sobre atitudes
e opinião em relação às desigualdades, às relações familiares e relações de gênero
e raça, por exemplo); e, na antropologia, são essenciais na compreensão da cul-
tura (TAMAYO, 1994). Na abordagem da ciência política, o estudo dos valores
humanos tem sido fonte para inúmeros debates sobre ideologias, democratização,
autoritarismo, conservadorismo e progressismo políticos, por exemplo.
Nos estudos de gênero e raça, as pesquisas sobre valores nos permitem
compreender se e como têm se dado as dinâmicas de transformação e mudança
das sociedades que são tradicionalmente patriarcais e racistas, além de anglo-eu-
rocêntricas e coloniais, no caso do Brasil. A importância de se analisar e estudar

1   Professora Associada do Departamento de Ciência Política da UFMG e Coordenadora do


Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher – NEPEM e do Centro do Interesse Feminista e de
Gênero – CIFG (UFMG).
2   Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).

135
mudanças nos valores é que essa investigação nos permite obter informações so-
bre aspectos subjetivos das desigualdades de gênero e raça. A partir, sobretudo,
das críticas epistemológicas feministas (HARDING, 1986, 1998; KELLER, 1984;
HARAWAY, 1988; ALCOFF; PORTER, 1993), podemos ter a certeza de que as
opiniões e percepções sobre as desigualdades (incluindo as desigualdades de gê-
nero e raça) variam de acordo com a posição (standpoint ou o lugar de fala) de
onde a pessoa observa e responde ao mundo. Dessa forma, é sempre esperado que
sexo, nível de escolaridade, região, classe social, posicionamentos de gênero, etc.
influenciem as percepções (SCALON, 2011).
Neste capítulo, entendemos os valores na perspectiva de que estes são cren-
ças duradouras de que um modo de conduta é socialmente preferível em relação
a outros modos alternativos. No caso dos valores de gênero, como vivemos numa
sociedade arraigadamente patriarcal, a expectativa em termos de percepções e va-
lores é a de que a hierarquia política vá do mando dos homens sobre os corpos das
mulheres. No caso dos valores relacionados à raça e etnia, como vivemos numa
sociedade racista e genocida em relação aos povos tradicionais, com forte herança
do projeto colonizador do qual ainda somos parte, a expectativa em termos de
percepções e valores é a de que a hierarquia política vá do mando dos brancos
sobre os corpos dos(as) negros(as) e indígenas. Vamos nos ater aqui a um subcon-
junto particular de valores conforme mencionado: aqueles relacionados a gênero
e raça.
O conservadorismo de gênero e de raça é um elemento valorativo/moral im-
portante na sociedade brasileira. Diríamos que é uma força estruturante da nossa
organização social. Em sociedades em processos múltiplos e complexos de trans-
formação e com forte herança ibérica – autoritária e patrimonial –, como é o caso
do Brasil (e de muitos outros países latino-americanos), permanece em aberto a
preferência das pessoas, por exemplo, por um regime democrático ou não demo-
crático, já que somos herdeiros de processos coloniais de violência e autoritarismo
político. Raça, etnia e gênero são componentes muito salientes e marcados dessa
forma de violência e autoritarismo. Hoje isso se impõe talvez ainda mais do que
em anos anteriores.
Nenhuma dúvida de que a normatividade patriarcal e racista, assim como
os processos atávicos de elitização de classe, são marcas históricas da violência
autoritária colonial brasileira, alimentam as nossas desigualdades, que reverberam
até hoje no tecido social e político brasileiro. E os valores costumam ser veículos
de transmissão dessas formas tradicionais e conservadoras de percepção (e, infe-
lizmente, também de ações e de práticas). Esses elementos marcam e informam a
nossa cultura, e são esses valores que, em grande medida, orientam parte signifi-
cativa de nossas condutas e comportamentos. Somos herdeiros de uma sociedade

136
profundamente violenta que tem nesses três elementos (e em suas combinações
perversas) a química da manutenção de nossas desigualdades e injustiças sociais.
Foram esses valores que construíram nossas formas sociais e políticas e elas orien-
tam, até hoje, as ações individuais e coletivas no país. Entendemos que hoje seria
bastante difícil negar esse fato. Estamos acompanhando todo o quadro geral de
transformações vividas nesse campo no Brasil, sobretudo agora, a partir dos mo-
vimentos orquestrados e sistemáticos do novo avanço das forças conservadoras
morais e ideologicamente de direita que se consubstanciam já em projetos de lei,
tais como o “Escola Sem Partido”, a tentativa de criminalização generalizada do
aborto no Brasil e nos enfrentamentos a que estamos assistindo em torno da fa-
migerada “ideologia de gênero”.
Em outros trabalhos (MATOS; PINHEIRO, 2012) estabelecemos os con-
tornos do debate a respeito dos importantes processos em curso de destradiciona-
lização e modernização societária e política ao redor do mundo (HEELAS; LASH;
MORRIS, 1996; LUKE, 1996; ADAM, 1996) que também têm/tiveram incidência
na sociedade brasileira, e este é, portanto, o pano de fundo das considerações
deste capítulo.
Aqui vamos lançar mão da análise comparada de dados oriundos dos sur-
veys realizados com as delegadas das 3ª e 4ª CNPMs e também de outra pesquisa
de survey, esta realizada com uma amostra de 2.002 eleitores brasileiros, aplicada
em outubro de 2010 no âmbito do Consórcio Bertha Lutz (CBL). Participamos
dessa pesquisa e àquela época foi elaborado um conjunto de indicadores sobre
conservadorismo político, confiança em instituições e na democracia, além de
outros que visaram mensurar aspectos e dimensões do tradicionalismo de gênero
e raça nos espaços públicos e privados no Brasil. O presente trabalho pretende, a
partir da segunda parte dessas informações do survey com eleitores de 2010, com-
parar as respostas dessa pesquisa com as respostas das delegadas das CNPMs. E,
na sequência, comparar também as respostas das duas conferências nacionais em
relação aos valores (2011 e 2016).
Conforme já se sabe, durante as gestões Lula e Dilma, a ampliação dos
mercados de trabalho e consumo, combinada à distribuição de renda e à mo-
bilidade social, criou novas dinâmicas socioeconômicas para o Brasil. Pode-se
dizer que esse dinamismo, ao afetar as percepções, atitudes e comportamentos,
afetou também valores. Além do mais, importa destacar que os movimentos fe-
ministas, de mulheres, LGBT e étnico-racial, ao menos desde os anos 1970 (com
aprofundamento no período mais recente após a Constituição Federal de 1988
– CF/88), têm funcionado na nossa sociedade política como verdadeiras forças
democratizadoras, inclusive dos valores, revendo e produzindo novos padrões

137
de comportamentos. Podemos levantar a hipótese de que a dinâmica combinada
desses dois grandes eixos de transformações e mudanças – a expansão e avan-
ço do ciclo econômico, juntamente com o fortalecimento e expansão das forças
mobilizadoras dos movimentos feministas, de mulheres, movimentos LGBT e ét-
nico-raciais – foi responsável por expandir nosso universo cultural, normativo,
atitudinal e ético-moral, e essas transformações nos conduziram aos desafios da
construção de novos valores em relação aos costumes tradicionalmente violentos
associados à dominação patriarcal e racial/étnica.
Os retrocessos que estamos experimentando no momento atual brasileiro
podem ser compreendidos, inclusive, como formas de expressão moral, fortemen-
te reativas aos “avanços” nesses valores a que assistimos nas duas últimas décadas
no Brasil: a entrada maciça das mulheres nos bancos universitários e no merca-
do de trabalho a partir dos anos 1960, a Lei do Divórcio em 1977, a discussão
sobre reprodução assistida e uso de barrigas de aluguel nos anos 1980, as várias
mudanças para mulheres e população negra, indígena e quilombola promovidas
pela CF/88, a promulgação da Lei Maria da Penha em 2016, as cotas para pessoas
negras nas universidades, o casamento homoafetivo e a autorização para a adoção
por parceiros do mesmo sexo, as reservas de vagas em concursos e carreiras para
pessoas negras, o uso de nome social são alguns exemplos desses “avanços” relati-
vos à pauta/agenda pública de gênero e raça/etnia.
Após o processo de democratização brasileira, que vem se consolidando
desde 1985, a primeira década deste início de século nos trouxe a “novidade” das
disputas que giram em torno das questões de gênero, raça/etnia e sexualidade,
que vêm, muito recentemente, ganhando centralidade pública sem paralelo na
recente história democrática brasileira. A democratização brasileira gerou tam-
bém a vontade e a busca de igualdade política entre pessoas e entre grupos. Para
além da luta dos trabalhadores, talvez as mulheres, as pessoas negras e indígenas
sejam os expoentes que mais reivindicaram o espaço público brasileiro com vis-
tas a reverter quadros e valores históricos de opressão, violência e discriminação.
A criação das Secretarias especiais, a exemplo da Secretaria de Políticas para as
Mulheres (SPM) e da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), ambas
de 2003, possibilitou, no plano federal, que tais questões fossem alçadas ao nível
ministerial e passassem a estar presentes, de forma mais explícita, no cerne das
políticas públicas. A realização das quatro Conferências Nacionais de Políticas
para as Mulheres (duas delas analisadas aqui) mobilizou centenas de milhares
de brasileiras interessadas em mudar o quadro de desigualdades e de exclusão
societária.
Dessa forma, as muitas recentes transformações econômicas, políticas, le-
gais, institucionais e culturais vividas pelo Brasil nos últimos 30 anos trouxeram

138
desafios de transformações também no campo dos costumes, dos comportamen-
tos e dos valores com vistas a se construir uma sociedade efetivamente pautada
numa “ética da igualdade”. Conforme afirmam Bandeira e Batista (2002):

Às portas do novo século a sociedade em geral torna-se cada vez mais cons-
ciente das diferenças e multiplicidades sociais emergentes que a compõem,
bem como da necessidade de regular os vários aspectos envolvidos nos re-
lacionamentos sociais decorrentes dessas diferenças. Isso se traduz em uma
identificação quase obsessiva de reivindicações que estabelecem novas linhas
de demarcação no domínio das interações sociais. Estas podem ser susceptí-
veis de regulação com base em novos valores que pretendem gerar uma “ética
de igualdade”, baseada no respeito (moral) e no reconhecimento (direito) das
diferenças e dos pluralismos, que dependa cada vez menos de leis e procedi-
mentos formais (BANDEIRA; BATISTA, 2002, p. 119, grifos nossos).

Essa busca por reconhecimento das diferenças de gênero, raça e etnia com
vistas a se edificar finalmente no Brasil uma ética da igualdade é o motor de mui-
tas das transformações no campo das percepções e valores. Além do mais, confor-
me salientado, as transformações nas formas de interação e o impacto das mídias
(sejam as mídias mais tradicionais, sejam as novas mídias sociais) têm sido efeti-
vamente responsáveis, frequentemente, por pautar os principais assuntos debati-
dos e difundidos sobre essas agendas, fazendo com mais frequência a discussão a
respeito dos comportamentos tradicionais e estereótipos de gênero e raça. Essas
forças mobilizam mudanças nos padrões de atitude e percepção em termos de gê-
nero e raça/etnia da população. Estes são pautados tanto pela grande mídia quan-
to pelo ativismo on-line, sendo a internet hoje fonte fundamental de informação
da nossa população. Trata-se de formas recentes de manifestar uma forma ativa de
desconstrução da opressão e do preconceito de gênero e étnico-racial. Ainda nas
palavras de Bandeira e Batista (2002):

Diversas manifestações de afirmações identitárias, declarando o orgulho de


ser negro, de ser homossexual, de ser mulher, de ser indígena, entre outras,
denunciavam a existência de preconceito, discriminação e exclusão nas vá-
rias esferas da sociedade e preencheram as agendas das reflexões socioan-
tropológicas. Marchas e declarações colocavam a nu a presença inquietante
da violência nas relações sociais, como também reações se manifestavam con-
tra os sujeitos-objetos de violência. De fato, os diversos movimentos tenta-
vam enfrentar as atribuições identitárias negativas, opondo, ao sentimento
de vergonha e do silêncio que tinha sido construído através de sociabilidades
baseadas na negação da alteridade, o sentimento de orgulho. O sentimento
de vergonha que se desejava combater, por ser homossexual, negro, mu-
lher, velho, indígena, deficiente, pobre, entre outros, revelava a luta contra a

139
atribuição social de um valor negativo à diferença do outro: o preconceito
(BANDEIRA; BATISTA, 2002, p. 125, grifos nossos).

Nesse contexto de transformações intensas, tivemos a oportunidade úni-


ca de ter participado e organizado duas pesquisas em temporalidades distintas e
com perfis igualmente diferenciados que visaram identificar, entre outros vários
elementos de discussão, aspectos relevantes em termos de transformação nos va-
lores de gênero e raça/etnia no Brasil. A pesquisa realizada com o eleitorado em
2010, em algum grau, vai nos oferecer um pano de fundo comparativo em termos
dessas percepções para compreender o lugar que as delegadas nas duas últimas
CNPMs ocupam em termos desses valores.
Seria possível afirmar que as delegadas que frequentaram as duas últimas
Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres têm percepções sobre gê-
nero e raça diferenciadas das percepções do eleitorado brasileiro? Ou seja, seria
possível identificar percepções conservadoras e também tradicionais no que tange
às relações de gênero e raça para o eleitorado no Brasil e percepções de gênero e
raciais mais progressistas e destradicionalizadas entre as mulheres delegadas da
3ª e 4ª CNPMs? Este tipo de percepção e de valores é afetado por algum outro
tipo de variável sociodemográfica, tal como escolaridade, renda e religião, por
exemplo? Como? Quais são, afinal, as principais variáveis que condicionam estes
tipos de percepção em nosso país e também entre as delegadas investigadas nesta
pesquisa?
Essas serão algumas das questões norteadoras deste capítulo. Antes de apre-
sentarmos os dados empíricos e suas análises, faremos ainda um breve incursão
teórica numa moldura que enquadra, de forma mais abrangente, os argumentos
e as análise que serão empreendidas dos dados. A parte final deste capítulo reto-
mamos esses enquadramentos e teorias para recuperarmos algumas pontes de in-
terpretação para esse processo dinâmico de transformação nos valores de gênero
e raça/etnia no Brasil.

Teorias da destradicionalização e da modernização


societária

Este capítulo parte da constatação da existência de um processo em curso


de destradicionalização societária (HEELAS; LASH; MORRIS, 1996), inclusive no
Brasil – o foco dessa investigação –, que envolve uma mudança do lugar da au-
toridade “de fora” para “dentro” e refere-se ao declínio da crença em uma ordem
natural e preestabelecida sobre as coisas, em uma ordem estável e mesmo imutá-
vel (como foi pensado incialmente o patriarcado e uma sociedade de segregação

140
racial e étnica, por exemplo). Seriam os sujeitos que passariam a ser chamados a
exercer a “sua” autoridade em face da desordem e da contingência da “moderni-
dade reflexiva” ou tardia (HEELAS; LASH; MORRIS, 1996).
Entre os muitos autores que elaboram considerações a respeito dessas
transformações, é possível identificar a experiência de duas grandes teses que va-
mos muito rapidamente resumir aqui. Elas podem conformar o grande pano de
fundo dos debates relacionados à busca de uma ética societária e padrões de ação
política, finalmente, fundada em parâmetros concretos de igualdade de gênero e
étnico-racial.
A primeira tese insiste em destacar a presença do fim da tradição; trata-
-se de uma tese “triunfalista” e/ou “radical”, em que os principais interlocutores
que defendem essa posição (THOMPSON, 1996; GIDDENS, 1991) vão relevar
a chamada condição “pós-moderna” que suplantaria e estaria baseada na erosão
da tradição. Tratar-se-ia de uma mudança radical sem precedentes em relação
a transformações de outras eras, em que a destradicionalização envolveria uma
substituição das vozes externas e supraindividuais de autoridade, controle e des-
tino, por vozes internas, subjetivas. Tais autores destacam a transição em curso e
elencam algumas características societárias que estariam sendo fortemente trans-
formadas e/ou substituídas, tais como: um ambiente societário mais fechado (frio,
repetitivo, ritualizado) que seria substituído por outro mais aberto (experimen-
tal, revisável); um tipo de percepção da ordem como algo relacionado ao destino
(pré-ordenado) por oposição à sua conversão numa situação de escolha (reflexivi-
dade); a ênfase recaída também sobre processos movidos pelas necessidades que
seriam substituídos pela contingência; um padrão de experiência social movido
pela certeza de que viria a ser substituído por outro cujo caráter é de incerte-
za; a experiência da segurança sendo substituída pela de risco; a experimentação
de uma cultura diferenciada (organizada) que estaria sendo substituída por uma
espécie de cultura “differrida” (desorganizada e sem um único centro); de uma
ênfase sobre o self para a sensibilidade de um permanente descentramento do
sujeito; a passagem de uma ótica política das virtudes para outra vocalizada pelas
preferências.
Nesta tese, as culturas tradicionais seriam percebidas e interpretadas como
dominadas pelo “destino”, envolvidas, excluindo as possibilidades de “escolhas”
efetivamente subjetivas. Trata-se, pois, da ênfase sobre uma ordem comunal/co-
letiva/heterônoma/sociocentrada para a experiência de uma ordem individual/
subjetiva/autônoma/centrada na reflexividade dos sujeitos: são eles que precisam
selecionar e escolher entre vozes morais e estéticas/estilísticas diferenciadas (o
papel do social/cultural é reduzido a favor da construção dos próprios padrões
de boa vida).

141
A segunda tese preconiza, por sua vez, um movimento dinâmico de coe-
xistência entre tradição e destradicionalização (manutenção da tradição, retradi-
cionalização e construção de novas tradições). Representam essa corrente autores
como Luke (1996) e Adam (1996), que tentam assinalar que aquilo que estaríamos
experimentando seria um movimento de competição, disputa, interpenetração e
interjogo de processos complexos de manutenção das tradições, reinvenção e re-
construção destas, por meio de mudanças trazidas pelas complexidades multi-
vocais dos nossos tempos. As pessoas viveriam, assim, em tensão permanente,
afetadas por conflitos entre vozes externas de autoridade (religiosas, culturais etc.)
e outras vozes que emanam de seus próprios desejos, expectativas e aspirações.
Dessa forma, a tradição passa a ser compreendida como aberta aos proces-
sos de agência humana, sendo, pois, permanentemente reconstruída, reinterpre-
tada, reinventada. As culturas destradicionalizadas existentes seriam percebidas e
interpretadas como contingentes e não excluiriam as possibilidades de “escolhas”
subjetivas, mas não seriam interpretadas como resultado sistemático do colapso
das vozes de autoridade socioculturais. Na prática, apesar da linguagem da auto-
nomia, ética da igualdade e da escolha, seríamos todos controlados por rotinas,
regras, procedimentos, regulações, leis, escalas, costumes etc. Dessa maneira, os
tempos que estaríamos vivendo seriam de mistura de várias trajetórias possíveis,
algumas mais informadas pela tradição, outras por processos mais individuali-
zantes, outras dinâmicas sendo transformadas por reinvindicações históricas por
igualdade baseada no reconhecimento das diferenças.
Neste capítulo apostamos fortemente na possibilidade da afirmação dessa
segunda tese. Passamos nos últimos 20/30 anos por processos relativamente es-
táveis de destradicionalização societária e de reconstrução dos padrões político-
-institucionais-legais em termos de gênero e sexualidade e menos em termos de
relações étnico-raciais, mas para o momento atual, podemos falar inclusive que o
backlash experimentado nesses campos é, de fato, uma fase de contenção (se não
de retradicionalização) da expansão dos valores democratizadores.
Voltando, então, as atenções para as relações das dimensões gênero, raça/
etnia e sexualidade – o campo crítico-emancipatório das relações de gênero
(MATOS, 2008) –, entende-se “gênero”, aqui, como um campo estruturado e
estruturante, uma construção social e política que determina relações entre os
homens e as mulheres, mas certamente não numa perspectiva unidirecional: da
exclusividade da dominação patriarcal (dos homens sobre as mulheres). Quando
se mencionam as relações de gênero tradicionais, geralmente são imaginadas re-
lações assimétricas, verticalizadas e hierárquicas de poder entre homens e mulhe-
res, em que “o” homem domina e “a” mulher é subalternizada. O melhor exem-
plo de uma típica relação nesse formato é o próprio patriarcado que assenta suas

142
bases na dominação e na hegemonia social e política estabelecida e cristalizada
como tradicionalmente masculina. As relações de gênero destradicionalizadas,
por sua vez, apresentariam uma miríade de outras possíveis formas de interação
ético-político-sociais, em que predominariam, então, a presença e a sensibilidade/
valoração de relações desta vez mais horizontalizadas, simétricas, democráticas e
igualitárias entre os gêneros, raças e distintas expressões da sexualidade.
O preconceito, usualmente incorporado e acreditado a partir das percep-
ções arraigadas nos valores que incorporamos é, nos termos deste trabalho, uma
das molas centrais e um reprodutor eficaz da violência, da discriminação e da ex-
clusão e, portanto, da violência. Os estereótipos ou os estigmas (ambas são formas
de violência simbólica) relacionados às dimensões de gênero e raça/etnia seriam,
assim, uma manifestação do tradicionalismo de gênero, raça e etnia e estariam
referidos a um conjunto muito arraigado de crenças sobre os atributos pessoais
“mais adequados” social, política e culturalmente a homens e mulheres, brancos
e negros, homo e heterossexuais, sejam estas crenças individuais ou compartilha-
das. Geralmente, os estereótipos e estigmas são fortemente associados a relações
vividas, experimentadas de um modo historicamente tradicional e também histo-
ricamente colonial.
Neste capítulo, tradicionalismo de gênero, raça e etnia refere-se à presença
de padrões de percepção e de sensibilidade moral e ética – portanto normativos,
valorativos –, de caráter fortemente tradicional em relação às interações no âm-
bito do sistema de relações de gênero, de raça e de sexualidade em nosso país.
Os padrões de tradicionalismo de gênero, por sua vez, são entendidos como fe-
nômenos que costumam ser operados por aquilo que a literatura pertinente já
cunhou como “masculinidades hegemônicas” (CONNEL, 1995),3 em oposição
às “feminilidades subalternas”. No escopo de um modelo binário, tal polaridade
tradicional se expressa entre a mulher/cuidadora, dona de casa, afetiva, subjetiva
e também social e culturalmente responsável pelos filhos e união da família, em
oposição e contraste ao homem/provedor, chefe da casa, financeiramente respon-
sável pela família, sendo que a mesma leitura pode ser desdobrada para os eixos
de raça e sexualidade. Este script ou roteiro tradicional tem o poder, cognitiva e
emocionalmente importante de estabilizar, orientar e nortear as percepções, bem
como ações práticas no mundo, portanto, a capacidade de reconstruir ou manter
sentidos que orientam tais ações.

3   É possível encontrar autores que constroem argumentações a partir do eixo do seguinte outro
binarismo (por complemento ou suplemento à oposição clássica entre masculino e feminino): trata-
-se da discussão estabelecida entre masculinidade hegemônica por oposição à masculinidade subordi-
nada ou subalterna (CONNEL, 1995).

143
Permanece, contudo, ainda em aberto no país o que seriam aqueles pa-
drões de interação e de sociabilidade de gênero alternativos e/ou mais destradi-
cionalizados em relação a este modelo. Parece claro que estes estão em constru-
ção. Do ponto de vista das relações afetivo-sexuais, em outro momento, já foram
feitas considerações substantivas sobre as “reinvenções dos vínculos amorosos”
(MATOS, 2000) que recortam experiências claras desta natureza, assim como
sobre o tema das “masculinidades contra-hegemônicas ou destradicionalizadas”
(MATOS, 1998). Além disso, esse processo em construção tem como poderosos
aliados os movimentos organizados de mulheres e, sobretudo, os movimentos
feministas.
Nesses espaços vêm sendo reconstruídas formas de sociabilidade e de co-
operação solidárias entre mulheres e entre mulheres e homens, assim como en-
tre diferentes outros atores dos movimentos sociais. Os espaços das Conferências
Nacionais de Políticas para as Mulheres podem ser entendidos como um loccus
onde essas relações são estabelecidas.
Em outro artigo (MATOS, 2010), indicou-se, justamente, a possibilidade de
se considerar que os feminismos no Brasil estariam experimentando uma “quarta
onda”, sendo que uma de suas mais recentes e principais características é a cons-
trução de circuitos de difusão feministas operados a partir de distintas correntes
horizontais de feminismos – negro, acadêmico, lésbico, masculino etc. – e entre
diferentes movimentos sociais. Nesse sentido:

Se erigindo como algo que pode ser descrito como um movimento multi-
nodal de mulheres ou a partir de diferentes “comunidades de políticas de
gênero” (como tem sido mais comum se referir no Brasil), o feminismo,
em parte significativa dos países da região latino-americana, na atualidade,
não só foi transversalizado – estendendo-se verticalmente por meio de di-
ferentes níveis do governo, atravessando a maior parte do espectro político
e engajando-se em uma variedade de arenas políticas aos níveis nacionais
e internacionais –, mas também se estendeu horizontalmente, fluiu hori-
zontalmente ao longo de uma larga gama de classes sociais, de movimentos
que se mobilizam pela livre expressão de experiências sexuais diversas e
também no meio de comunidades étnico-raciais e rurais inesperadas, bem
como de múltiplos espaços sociais e culturais, inclusive em movimentos so-
ciais paralelos (MATOS, 2010, p. 85).

Para mensurar as dimensões do tradicionalismo e da destradicionalização


nas relações de gênero, foram construídos indicadores que buscassem captar as
percepções do eleitorado brasileiro sobre o lugar de mulheres e homens nos espa-
ços públicos (especialmente na política e no mundo do trabalho) e nos privados

144
(sobretudo no cuidado da família e filhos), bem como as percepções sobre o lugar
de mulheres e homens no âmbito específico da política institucional.
No que se refere à organização hierarquizada nas relações étnico-raciais, é
crucial demarcar que o racismo é entendido como um fenômeno de longa dura-
ção, sustentado ainda na modernidade e que objetiva compreender a durabilidade
da raça como um conceito social que independe do fundamento racionalista das
ciências biológicas. A persistência da ideia de raça se vale de muitos dos valores
e dos argumentos religiosos, biológicos, culturalistas e nacionalistas, que, muitas
vezes, estão fortemente entrelaçados. Neste sentido, assim como ocorre com as
relações de gênero, nas relações étnico-raciais está presente o script ou roteiro
tradicional que se enraizou inequivocamente no Brasil a partir das relações de es-
cravidão e exploração entre senhores(as) e escravos(as), largamente conhecidas e
praticadas em diversos tempos e espaços, que encontravam justificação no direito
de conquista – a escravização dos vencidos numa guerra – ou na religião – direito
de escravizar pessoas fora do seu grupo religioso, por meio das guerras contra os
“bárbaros” ou “infiéis”. A escravidão no Brasil colocou negros e negras numa con-
dição evidente de opressão que, mesmo após a abolição, ainda se evidencia nas re-
lações totalmente assimétricas e hierárquicas vividas por brancos(as) e negros(as)
no país. Também buscou-se mensurar as percepções dos eleitores relativas a uma
forma difusa de discriminação de gênero e raça e, mais especificamente, a discri-
minação racial focada em aspectos cognitivos.

A comparação entre o eleitorado brasileiro e as mulheres da


Conferência Nacional das Mulheres de 2011 e 2016

Nesta seção do capítulo nos dedicamos a realizar algumas comparações en-


tre as percepções apresentadas na pesquisa oriunda do Consórcio Bertha Lutz de
2010 com as respostas agregadas das delegadas nas duas últimas Conferências
Nacionais de Políticas para as Mulheres. As percepções, em ambos os surveys,
foram mensuradas oferecendo-se aos(às) respondentes algumas afirmativas para
que pudessem concordar (totalmente ou em parte) ou discordar (totalmente ou
em parte).
Trata-se, desta forma, de questões que se diferem das tradicionais questões
comportamentais – o que os indivíduos de fato fizeram em determinado período
de tempo; por exemplo, se trabalharam na semana referência – e de questões so-
ciodemográficas – que dizem respeito às informações “objetivas”, tal como possuir
ou não um aparelho de televisão. Nos surveys analisados neste capítulo utilizamos,
portanto, as chamadas questões atitudinais, ou seja, perguntas que captam o que

145
os indivíduos pensam sobre algum assunto e como avaliam determinadas ques-
tões e situações.
As categorias de resposta, que variavam de “discordo totalmente” a “con-
cordo totalmente”, com uma opção intermediária de “não concordo nem discor-
do” são as chamadas questões “bipolares”, em que o pesquisador assume que as
respostas “opostas” têm a mesma intensidade para o entrevistado (SCHAEFFER;
PRESSER, 2003, p. 76). No nosso caso, por exemplo, assumimos que pessoas que
“discordam totalmente” da questão, “Principalmente o homem deve sustentar a
família”, têm, nesse quesito, valores relacionados à destradicionalização de gênero
diametralmente opostos àquelas que “concordam totalmente”. Apesar das limita-
ções evidentes que essa posição metodológica carrega – principalmente porque
reduz a cinco categorias um continuum infinito de possíveis percepções –, a uti-
lização dessas categorias permite um grau bastante aceitável de comparabilida-
de entre temas diversos, além de ser aquela que menos causa viés às respostas
(SCHAEFFER; PRESSER, 2003, p. 76).
Uma ressalva deve ser feita, entretanto, com relação aos chamados aspectos
cognitivos da metodologia de survey, especialmente no que tange às possíveis dife-
renças entre os significados inferidos pelos entrevistados e os significados preten-
didos pelo pesquisador (SIMÕES, 2007, p. 244). Há um relativo consenso de que a
resposta a uma questão envolve pelo menos quatro tarefas cognitivas: interpretar
a questão; ativar a memória para retomar um comportamento ou opinião; forma-
tar a resposta; e editá-la (SIMÕES, 2007, p. 244). Dessa forma, e voltando a um
dos nossos exemplos, a questão “Os brancos são mais estudiosos que os negros”
será interpretada de maneira distinta se vier ao final de uma bateria de perguntas
sobre relações de gênero e raça – como é o caso – do que se vier ao final de uma
bateria sobre as dificuldades encontradas pelas crianças no meio escolar.
Temos ciência de que há especialmente dois tipos de limitação para a nossa
comparação. Um que se refere às diferenças dos públicos entrevistados e outro de
caráter temporal. Quanto ao primeiro, é tanto quanto evidente que o eleitorado
nacional tende a interpretar as questões relativas a gênero e raça de forma distinta
das delegadas das CNPMs. Isto se faz evidente, sobretudo, porque o tema en-
quanto pauta política é mais relevante para estas últimas do que para o brasileiro
médio (pelo menos assim acreditamos).
Quanto ao segundo ponto, o caráter temporal – um intervalo de 5 anos –
torna o contexto um fator interveniente para a interpretação dos temas. É muito
diferente, por exemplo, ser indagado sobre questões de relações de gênero num
momento em que os temas ainda tinham menor saliência, como em 2011, do que
em 2016, quando o tema já estava no coração do debate público – haja vista a

146
forma como foi mobilizado de maneira extremamente sexista nas eleições de 2014
e na própria campanha pró-impeachment da então presidenta Dilma Rousseff.
Enfim, é bastante possível que, para as delegadas de 2016, o contexto tenha sido
mobilizado cognitivamente para a elaboração das respostas de uma forma distinta
do que para as delegadas de 2011. Sendo assim, essa observação precisa ser feita.
Acreditamos, contudo, que feitas as devidas ressalvas e observações, os re-
sultados aqui apresentados, de modo geral, podem ser considerados como um
referencial empírico fidedigno do fenômeno que nos propusemos a observar e
explicar. Isto porque, além do rigor com que a pesquisa foi conduzida – desde a
formulação do questionário, passando pela sua aplicação e terminando na análise
dos dados –, o nosso principal objetivo está na compreensão plausível de valores
que orientam condutas, e não no sentido último que carregam.
Posto isto, vamos às questões. Nos dois bancos de dados identificamos um
total de sete variáveis com elevado grau de comparabilidade que foram divididas
segundo algumas dimensões analíticas já discutidas em maior detalhe por Matos
e Pinheiro (2012). A primeira delas foi o que chamamos de “Tradicionalismo de
gênero no espaço privado”, contendo as seguintes questões:
• Consórcio Bertha Lutz / Ibope (2010):
• O trabalho doméstico é tarefa da mulher.
• O homem deve ser o principal responsável pelo sustento da família.
• Pesquisa com as delegadas das CNPMs (2011 e 2016):
• Homens e mulheres deveriam dividir igualmente o trabalho
doméstico.
• Principalmente o homem deve sustentar a família.
Os resultados comparativos sobre estas duas frases, que se referem, então,
ao tradicionalismo de gênero no espaço privado, encontram-se nas tabelas 1 e 2
abaixo.

147
Tabelas 1 e 2. Questões relativas ao tradicionalismo
de gênero no espaço privado
Frase 1: Homens e mulheres deveriam dividir igualmente o trabalho doméstico
Eleitorado Nacional CNPMs
Masculino Feminino Total 2011 2016 Total
Discorda totalmente 14,3 11,2 12,7 0,3 1,7 1
Discorda em parte 21,2 18,8 20 0,3 0 0,1
N.C.N.D.* 13,2 12,4 12,8 0 0 0
Concorda em parte 40,3 48,2 44,5 2,6 2,8 2,7
Concorda totalmente 10,9 9,4 10,1 96,8 95,5 96,2

Frase 2: É principalmente o homem quem deve sustentar a família


Eleitorado Nacional CNPMs
Masculino Feminino Total 2011 2016 Total
Concorda totalmente 28,2 21,8 24,8 3,5 1,4 2,4
Concorda em parte 22,3 23,2 22,8 6,3 3,1 4,7
N.C.N.D. 11,3 13,5 12,4 5,5 0 2,7
Discorda em parte 28 31,4 29,8 17,3 13,6 15,4
Discorda totalmente 10,2 10,1 10,2 67,4 81,9 74,7
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
e do Consórcio Bertha Lutz – CBL (Ibope/SPM).
* N.C.N.D. significa: “Não concorda e nem discorda”

Para ambas as questões, o primeiro ponto a se observar é a enorme dife-


rença entre a média nacional (eleitorado) e a média referente às respostas das
delegadas nas CNPMs. Com relação à primeira questão, aproximadamente um
terço do eleitorado brasileiro (32,7%) discorda (em parte ou totalmente) com a
afirmação de que o trabalho doméstico deva ser dividido igualmente, enquanto
para as delegadas esse percentual sequer chega a 2,0%. Isso revela um padrão de
percepção bem mais destradicionalizado das delegadas das conferências, mesmo
se comparamos os percentuais dessa discordância com as mulheres eleitoras (que
chegaram a 30% de discordância da frase).
Para a segunda questão, então, temos que o nível de conservadorismo no
âmbito nacional é ainda maior: praticamente metade dos(as) entrevistados(as)
eleitores (47,6%) acredita que o sustento da família deva ser função principal do
homem, ao passo que, para as delegadas, o percentual da concordância com a
frase está apenas em 7,0%.

148
O segundo aspecto se refere à mudança nos valores das delegadas. Apesar
de demonstrarem um maior conservadorismo para a questão do sustento do que
para a divisão do trabalho doméstico em ambos os anos, a tendência é de declínio
para o primeiro. A diferença entre as conferências não é desprezível: delegadas
entrevistadas na 4ª CNPM apresentaram padrões ainda mais destradicionalizados
nessa percepção do que as delegadas da 3ª CNPM. Vejamos: os percentuais de dis-
cordância da primeira frase passam de módicos 0,6% para 1,7% e os percentuais
de concordância com a segunda frase despencam pela metade: de 9,8% para 4,5%.
Ou seja, nesse aspecto específico do conservadorismo de gênero nas esferas privada
× pública (veremos mais adiante que esse padrão será constante para outros indica-
dores), o eleitorado masculino é o mais conservador, seguido do eleitorado feminino,
das delegadas de 2011 e, finalmente, das delegadas de 2016.
De um modo geral, portanto, podemos dizer que o tradicionalismo de gê-
nero no espaço privado em nível nacional em 2010 era aproximadamente 5 vezes
maior do que entre as delegadas. A distância entre as delegadas e a média nacional
de 2010 aumentou ainda mais, para situar-se em torno de 10 vezes (embora se
deva salientar que essa comparação não incorpora possíveis mudanças no perfil
médio da população brasileira entre 2011 e 2016), uma vez que, comparando as
duas conferências, identificamos que ocorreu uma redução de valores tradiciona-
listas ao longo do período (entre 2011 e 2016).
Uma segunda dimensão analisada foi a percepção sobre discriminação di-
fusa de gênero e raça. Embora as questões não sejam exatamente as mesmas nas
duas pesquisas, acreditamos que elas expressam razoavelmente o mesmo tipo de
valores e orientação de conduta.
• Consórcio Bertha Lutz / Ibope (2010)
• Mulheres negras sofrem mais preconceito que as brancas.
• Pesquisa com as delegadas das CNPMs (2011 e 2016):
• As mulheres afrodescendentes/negras e indígenas sofrem discrimi-
nação em função da raça/cor.

149
Tabela 3. Preconceito de gênero e raça – discriminação difusa
Frases 3 e 4: Mulheres negras e indígenas sofrem mais preconceito
que as brancas – CBL/Ibope/ As mulheres negras e indígenas
sofrem discriminação em função da sua raça/cor – Nepem/SPM
  Eleitorado Nacional CNPMs
  Masculino Feminino Total 2011 2016 Total
Discorda totalmente 3,1 2,5 2,8 0,6 2,5 1,6
Discorda em parte 14,3 12,7 13,5 0,9 2,0 1,4
N.C.N.D. 12,9 13,9 13,4 0,6 0,0 0,3
Concorda em parte 24,9 22,4 23,6 14,5 9,9 12,2
Concorda totalmente 44,8 48,4 46,7 83,5 85,6 84,5
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
e do Consórcio Bertha Lutz – CBL (Ibope/SPM).

O resultado aqui é bastante claro e simples. Enquanto praticamente a totali-


dade das delegadas (96,7%) acredita que a raça/etnia é uma clivagem que perpassa
a dimensão de gênero e atua como mecanismo independente de (re)produção de
desigualdades/discriminação, aproximadamente 1/3 da média nacional não con-
corda com essa posição.
Vale notar, contudo, que mesmo que aparentemente pequeno, há um au-
mento do percentual de delegadas que passam a discordar dessa posição entre
2011 e 2016 (1,5% e 4,5%, respectivamente). Embora possa parecer pouco ex-
pressivo (aumento de apenas 3 pontos percentuais), o dado parece indicar um
aumento da negação do racismo mesmo entre as delegadas – algo que, por sinal,
se confirma nas análises multivariadas que apresentaremos em maior detalhe na
seção seguinte.
De fato, as questões subsequentes permitem compreender melhor esse qua-
dro. A terceira dimensão analisada foi aquela que nomeamos como “Preconceito
de raça focada em aspectos cognitivos/motivação” e a mesma foi abordada da
seguinte forma, partindo-se das seguintes frases:
• Consórcio Bertha Lutz / Ibope (2010)
• Os brancos, em geral, são mais estudiosos do que os negros.
• As crianças negras têm mais dificuldade para aprender.
• Pesquisa com as delegadas das CNPMs (2011 e 2016):
• Os(as) brancos(as), em geral, são mais estudiosos(as) que os
negros(as).
• Crianças negras, por causa de sua raça, têm mesmo mais dificulda-
des para aprender.

150
A rigor, do ponto de vista teórico, as duas frases supracitadas expressam ca-
tegorias analíticas distintas: cognição e motivação. Ao sugerir que a raça determi-
na a facilidade/dificuldade do aprendizado, supõe-se uma relação entre o grupo
racial e o desenvolvimento cognitivo aos moldes das teorias racistas biologizantes
e eugênicas do início do século XX (STEPAN, 2005). Num outro patamar, a rela-
ção entre o grupo racial e “ser estudioso” expressaria, afinal, o preconceito refe-
rente à motivação que orienta a ação social, seja pelas características individuais
do sujeito, seja pela estrutura familiar na qual a criança está inserida.
De fato, muito da percepção coletiva de que alguns grupos são menos mo-
tivados e inferiormente cognitivos do que outros – e, portanto, caracterizados,
de certa forma, como “desviantes” (MERTON, 1968) – deriva em grande medida
de desigualdades entre as metas culturais (o sucesso educacional, por exemplo)
e os meios institucionais para alcançá-los (a desigualdade de acesso ao sistema
educacional). Nesse caso, a percepção coletiva atribui às características adscritas
do grupo (raça, etnia etc.) algo que lhe é inerentemente externo, ou seja, uma
propriedade da estrutura social, no mais claro exemplo de rotulação e acusação
(BECKER, 2009).
As tabelas abaixo mostram que, no plano nacional, essa rotulação de ca-
ráter conservador ocorre em níveis semelhantes tanto para o nível da motivação
quanto da cognição. Veja-se que o percentual de pessoas que discorda (em parte
ou totalmente) das questões é razoavelmente semelhante, girando em pouco mais
de 70%.
Já entre as delegadas, a estrutura da percepção é fundamentalmente distin-
ta. Se, por um lado, é verdade que o grau de destradicionalização nessa percepção
é consideravelmente superior à média nacional, ele o é muito mais pronunciado
em relação aos aspectos cognitivos do que em relação à motivação. Esse resultado
é interessante porque demonstra que, por ser geralmente considerado em lingua-
gem nativa um resultado mais “social” do que “biológico”, a dimensão motivacio-
nal – quando comparada à cognitiva – talvez encontre um conjunto de maiores
barreiras para se destradicionalizar. E isso parece ocorrer ainda mesmo entre as
delegadas que, como temos visto, apresentam um perfil de percepção muito me-
nos conservador (ou mais destradicionalizado) do que a média nacional dos(as)
eleitores(as) brasileiros(as). em todos os sentidos.

151
Tabelas 4 e 5. Preconceito de raça focada em aspectos cognitivos/motivação
Frase 5: Os(as) brancos(as), em geral, são mais estudiosos(as)
que os(as) negros(as) (cognitivo)
  Eleitorado Nacional CNPMs
  Masculino Feminino Total 2011 2016 Total
Concorda totalmente 4,3 2,3 3,3 2,6 1,4 2
Concorda em parte 7,7 6,1 6,9 3,8 0,9 2,3
N.C.N.D. 13,7 11,8 12,7 3,2 0,1 1,6
Discorda em parte 67,1 73,8 70,7 4,4 5,8 5,1
Discorda totalmente 7,1 5,9 6,5 86 9,8 88,9

Frase 6: As crianças negras têm mais dificuldades para aprender (motivacional)


  Eleitorado Nacional CNPMs
  Masculino Feminino Total 2011 2016 Total
Concorda totalmente 5,8 4,8 5,3 9,3 12,8 11,1
Concorda em parte 8,7 8,5 8,6 6,7 6,8 6,8
N.C.N.D. 12,9 12,2 12,5 2,9 0 1,4
Discorda em parte 65,9 68,1 67 9,6 7,7 8,6
Discorda totalmente 6,7 6,4 6,6 71,4 72,6 72
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
e do Consórcio Bertha Lutz – CBL (Ibope/SPM)

Por fim, a última dimensão que comparamos as duas pesquisas foi aquela
que na pesquisa do CBL denominamos por “Destradicionalização de gênero”. As
perguntas em cada survey foram as seguintes:
• Consórcio Bertha Lutz / Ibope (2010)
• Sou a favor da união de pessoas do mesmo sexo.
• A mulher deveria ter o direito de decidir se continua uma gravidez
ou se faz um aborto.
• Pesquisa com as delegadas das CNPMs (2011 e 2016):
• Relações afetivas/sexuais devem necessariamente acontecer somente
entre um homem e uma mulher.
• Opinião sobre aborto (legislação); OBS: essa frase foi apenas para a
4ª CNPM (2016).
As tabelas abaixo apresentam a distribuição das respostas a essas fra-
ses em termos de sua discordância ou concordância (totalmente ou em parte).
Novamente, as delegadas apresentam valores percentuais com níveis bastante su-
periores de destradicionalização do que a média nacional no eleitorado brasileiro.

152
Também em ambos os casos, os homens apresentam um perfil consideravelmente
mais conservador do que as mulheres.

Tabelas 6 e 7. Destradicionalização de gênero


Frase 7: Relações afetivas sexuais devem ocorrer
somente entre um homem e uma mulher
Nacional CNPM
Masculino Feminino Total 2011 2016 Total
Concorda totalmente 4,2 4,2 4,2 16,9 9,7 13,3
Concorda em parte 51,1 42,5 46,6 10,2 4,9 7,5
N.C.N.D. 22,8 20,3 21,5 4,7 0 2,3
Discorda em parte 11 14,1 12,6 9,6 10,9 10,2
Discorda totalmente 10,9 19 15,1 58,7 74,5 66,7

Frases 8 e 9: Questões sobre aborto


A mulher deveria ter o direito de escolher se
Opinião sobre a legislação do aborto
continua uma gravidez ou se faz um aborto
  Masculino Feminino Total CNPM 2016 Total
Discorda 42,9 45,7 47,3 Proíbe totalmente o aborto 8,5
N.C.N.D. 15 13,6 14,2 Deixa a lei como está 29,5
Concorda 35,8 40,7 38,4 Libera totalmente 62,1
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)
e do Consórcio Bertha Lutz – CBL (Ibope/SPM)

Quanto à primeira questão, mais especificamente, a mudança da posição


das delegadas entre 2011 e 2016 é, como já observamos nos indicadores analisa-
dos anteriormente, bastante expressiva. O percentual delas que rejeitam a opinião
de que se devem restringir as relações sexuais e afetivas a homens e mulheres era
de 70%, em 2011, e subiu para mais de 85%, em 2016. Para a média nacional, os
valores não ultrapassam 22% para os homens e 35% para as mulheres.
Para a segunda questão, apesar de se tratarem de perguntas distintas, o
padrão é razoavelmente semelhante. Mulheres eleitoras no plano nacional con-
cordam com a liberdade de escolha referente ao aborto em proporção superior
aos homens eleitores (40,7% contra 35,8%, respectivamente); enquanto 62,1% das
delegadas são da opinião de que o aborto deva ser totalmente liberado.
Ao fim e ao cabo, em que medida podemos dizer que o perfil das dele-
gadas é diferentemente da média nacional com relação às diferentes dimensões
de destradicionalização discutidas até aqui? Que haveria uma diferença, isto já

153
era razoavelmente esperado, já que estamos tratando das CNPMs de um público
atento, especializado e comprometido com os direitos das mulheres e sua confor-
mação em políticas públicas. O mais importante, contudo, foi demonstrar, a partir
da comparação entre as duas pesquisas (em que pesem os debates metodológicos
em torno das possibilidades metodológicas dessa comparação), que essa diferença
não é apenas bastante pronunciada, mas que tem aumentado para um grupo es-
pecífico dessas mulheres ao longo do tempo e nos períodos aqui analisados (2010,
2011 e 2016).
A se notar as constantes manifestações de conservadorimos que temos ob-
servado no país, especialmente a partir de 2013, é possível irmos ainda mais além.
Embora não tenhamos nenhum dado mais recente que nos permita uma rigorosa
comparação com o survey nacional do CBL, realizado em 2010, há indícios fortes
de que, para determinadas questões, o grau de destradicionalização de valores do
brasileiro médio vem sofrendo retrocessos.
Veja-se, por exemplo, que tem aumentado o percentual de pessoas a favor
da pena de morte4 e da intervenção militar.5 Também não seria de se surpreender
que, na média, tenha havido uma reação considerável com relação à destradicio-
nalização de gênero e raça, haja visto as constantes manifestações contrárias às
discussões do campo de gênero e feminista e que estão se aglutinando em torno do
que se tem tratado pelo senso comum como “ideologia de gênero” e também em
relação à rejeição das políticas de corte racial, em especial das cotas universitárias.
Diante desse cenário, é bastante plausível sugerir que o processo em curso
de destradicionalização nos valores relacionado a gênero e raça das delegadas tem
aumentado ao longo do tempo e, em contrapartida, esse processo de mudança tem
diminuído (ou até se revertido) para a média da nossa população. Isto torna ainda
mais importante reconhecer o lugar político e o papel deliberativo que se tem
avançado nas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, já que sa-
bemos que estamos lidando com um segmento populacional bem particular em
termos de dinâmicas culturais e valorativas de gênero e raça; trata-se de mulheres
mais destradicionalizadas nessas duas esferas do que a média da nossa popula-
ção/eleitorado brasileiro. Estas considerações e hipóteses igualmente evidenciam
o quanto, no âmbito das transformações hoje em curso, tanto no espectro político

4   Dados da Pesquisa Datafolha publicada na Revista Exame em 8 de janeiro de 2018. Segundo a
pesquisa, entre 2008 e 2018, o percentual de pessoas favoráveis a penas de morte subiu de 48% para
58%.
5   Segundo dados do Latin American Public Opinion Project, da Universidade de Vanderbilt, o
apoio a uma intervenção militar para conter a corrupção no Brasil subiu de 36,0% para 48,0% entre
2012 e 2014. Disponível para consulta no site: <https://www.vanderbilt.edu/lapop>/ Acesso em: jan.
2018.

154
quanto cultural brasileiro, temos um gigantesco descompasso entre segmentos e
públicos da população brasileira. Isso nos mostra, um pouco melhor, a magnitude
dos desafios que se descortinam para os próximos anos no Brasil.
Na seção seguinte analisamos, em maior detalhe, o que mudou, o quanto
mudou e por que mudaram no que tange a esses valores para as delegadas das
duas CNPMs. Os resultados que apresentamos não apenas corroboram em boa
medida o que temos argumentado até aqui, mas também nos permitem apreender
quais seriam alguns dos mecanismos que têm contribuído para alavancar essas
tendências. Vejamos.

Comparando as percepções das delegadas nas duas edições da


CNPMs: gênero, discriminação e mecanismo de transformação

Para analisar o processo de mudanças nas percepções e valores das delega-


das entre os anos de 2011 e 2016, elaboramos dois índices. Um primeiro que cha-
mamos de Índice de Relações de Gênero nas Esferas Privada × Pública (IRGPP) e
um segundo sobre percepções difusas acerca da Discriminação Difusa de Gênero
e Raça (IDDGR). Esses dois índices refletem, de forma indiscutível, a aposta fei-
ta teoricamente na segunda tese apresentada nas seções anteriores sobre movi-
mentos e dinâmicas de modernização e destradicionalização societária (a tese da
coexistência entre tradição/conservadorismo e destradicionalização): aquela que
enfatiza a presença sincrônica de pessoas com percepções tradicionais/conserva-
doras e destradicionalizadas.
Assim, os nossos índices foram construídos metodologicamente da seguin-
te forma: primeiramente, realizamos a análise fatorial de componentes principais
com todas as variáveis relativas às percepções com vistas a se identificar o padrão
de associação existente entre as diferentes respostas. Posteriormente, seleciona-
mos as variáveis que apresentavam um padrão de associação mais consistente na
média dos anos aqui analisados e construímos, a partir daí índices de somatória
simples6 formados por 5 questões cada um. As opções de resposta foram codifica-
das em valores entre 1 e 5, assumindo “1” quando designavam maior tradiciona-
lismo, e “5” quando significavam maior nível de “destradicionalização”.

6   Optamos por não utilizar os fatores resultantes da análise fatorial como os índices em si mesmos
pelo seguinte motivo: como o resultado da análise fatorial depende da distribuição das respostas, ele
reportou fatores distintos para cada ano, de modo que os resultados não seriam, dessa forma final,
comparáveis. Assim, a análise fatorial foi utilizada apenas como método exploratório da média dos
anos para, a partir daí, construirmos nossos próprios indicadores pautando-nos nas respostas sele-
cionadas. Para mais detalhes sobre métodos de construção de indicadores, ver Handbook on Cons-
tructing Composite Indicators (OECD, 2008).

155
Dessa forma, o mínimo valor possível de cada indicador é 5 (quando nas
5 questões o respondente expressa o maior grau de conservadorismo; 5 × 1 = 5);
e o máximo valor possível é 25 (quando nas 5 questões a respondente expressa
o maior grau de destradicionalização; 5 × 5 = 25). Posteriormente, para facilitar
a leitura e a interpretação desses dados, os índices foram ajustados para valores
entre 0 e 100. O quadro abaixo apresenta o conjunto das variáveis – na realidade
as frases que foram perguntadas às respondentes em relação à sua concordância
e discordância (totalmente ou em parte) – utilizadas para a construção de cada
índice e os gráficos subsequentes, por sua vez, apresentam a sua distribuição de
frequência para os anos de 2011 e 2016.

Quadro 1. Variáveis (frases) dos questionários da pesquisa realizada nas


3ª e 4ª CNPMs utilizadas para a construção dos dois índices
Índice de relações de gênero
Uma mãe que trabalha fora pode dar à sua família um menor nível de vida
Principalmente o homem deve sustentar a família
Quando têm filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe fora e a mulher fique em casa
Em briga de marido e mulher não se deve “meter a colher”.
Pessoa sozinha pode criar os filhos tão bem quanto um casal que vive junto.
Índice de discriminação difusa de raça e gênero
Mulheres afrodescendentes/negras e indígenas sofrem discriminação em função da raça/cor
Movimentos de mulheres e feministas devem incorporar o enfrentamento à lesbofobia/homofobia/transfobia como bandeiras fundamentais
Mulheres afrodescendentes/negras e indígenas têm demandas específicas que devem ser contempladas nas políticas públicas
Movimentos de mulheres e feministas devem incorporar também a luta contra o racismo como uma bandeira fundamental.
Cotas raciais para as universidades públicas no Brasil representam um avanço social.

Gráficos 1 e 2. Distribuição das respostas –


Índice de Relações de gênero nas esferas privada × pública (IRGPP)

Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

156
Gráficos 3 e 4. Distribuição das respostas –
Índice de Discriminação Difusa de Gênero e Raça (IDDGR)

Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

No que se refere à distribuição das respostas nos nossos índices, há dois


aspectos principais a se observar. O primeiro deles diz respeito às diferenças mais
gerais entre os dois índices aqui construídos. Como bem se pode notar, o grau de
conservadorismo é, em ambos os anos, maior com relação às questões relativas às
relações de gênero (no IRGPP) do que com relação à discriminação de gênero e
raça (no IDDGR).
O segundo aspecto diz respeito às mudanças no tempo. Nesse ponto, desta-
ca-se o fato de que ter havido uma tendência de diminuição do grau de conserva-
dorismo em ambos os índices – isto se evidencia claramente no fato de que dimi-
nuiu a concentração das respostas nos valores inferiores. Mas, ao mesmo tempo,
isso também evidencia um maior grau de homogeneização valorativa, uma vez
que há um aumento considerável do grau de concentração nos valores mais altos
(que significa maiores níveis de destradicionalização), ou seja, as delegadas passa-
ram a ter percepções mais homogêneas entre si, nos dois índices, em 2016.
Em suma, não apenas houve mudanças sensíveis na média da percepção
das delegadas em relação a esses dois índices – indicando menor destradiciona-
lização em 2011 do que em 2016 –, mas também uma mudança na distribuição,
indicando menor variabilidade valorativa com relação aos temas abordados em
2016 do que em 2011.

Em síntese:
• As delegadas das CNPMs são mais conservadoras no que tange às rela-
ções de gênero (IRGPP) do que com relação à discriminação de gênero
e raça (IRGPP).

157
• Entre 2011 e 2016, aumentou, na média, o grau de destradicionalização
para ambas as dimensões.
• Entre 2011 e 2016, as delegadas das CNPMs se tornaram mais semelhan-
tes entre si com relação às percepções relativas a essas duas dimensões.

De modo a explorar mais detalhadamente estas tendências e também as


possibilidades de suas causas ou determinantes, estimamos modelos de regressão
que buscaram identificar os efeitos de dimensões independentes sobre o com-
portamento dos índices aqui criados. Assim, para os dois índices – o IRGPP e o
IDDGR –, foram estimados três modelos distintos:
• Modelo unificado: estimado para todo o período, de modo a identificar
os efeitos médios das variáveis independentes, controlando-se pela va-
riável tempo.
• Dois modelos separados, um para cada ano, em que o objetivo foi iden-
tificar se houve mudanças nos efeitos das variáveis explicativas entre
2011 e 2016.
As variáveis utilizadas no modelo foram:

Quadro 2. Variáveis incluídas nos Modelos de Regressão Linear


Situação conjugal
Estrutura familiar
Maternidade
Idade
Raça
Religião
Características sociodemográficas
Escolaridade
Renda familiar
Inserção ocupacional
Educação do pai
Origem social
Educação da mãe

A seguir apresentamos os resultados dos modelos e suas implicações


substantivas.
A tabela abaixo apresenta os resultados para o Índice de Relações de
Gênero nas Esferas Privada × Pública/IRGPP. Em primeiro lugar, o ajuste dos
modelos demonstra que as variáveis explicam com maior consistência a variabi-
lidade das percepções em 2016 do que em 2011. Em outros termos, isso significa
dizer que as percepções talvez estejam mais sedimentadas, entre as entrevista-
das, no último ano do que no primeiro, indicando que há um padrão mais bem

158
estabelecido entre a localização das mulheres na estrutura social, as suas caracte-
rísticas individuais e, afinal, as suas percepções.

Tabela 8: Modelo de Regressão Linear / MQO –


Variável independente: os valores do IRGPP
Modelo 2011 Modelo 2016 Modelo Único
Dimensão Variável
Beta Sig Beta Sig Beta Sig
Constante 34,99 *** 43,92 *** 32,48 ***
Casada 0,02 - -0,22 - -0,36 -
Família
Tem Filho -0,55 - -1,13 - -0,79 -
Até 39 anos -3,47 - -6,82 * -5,07 *
Idade (ref = até De 40 a 49 anos 0,14 - -5,10 - -1,98 -
29 anos) De 50 a 59 anos 0,40 - -4,24 - -1,88 -
Mais de 60 anos -0,89 - -5,97 - -3,06 -
Raça Raça (Branca=1) -2,78 - 0,92 - -0,71 -
Protestante -14,58 *** -13,92 *** -13,18 ***
Religião (ref = Afro-brasileira -1,96 - -5,63 - -2,27 -
sem religião) Espírita/outra 2,32 - -1,32 - 0,85 -
Católica -7,75 ** -5,29 * -6,57 ***
Fundamental
-11,71 - 24,31 *** 0,24 -
Escolaridade (ref Completo
= Fundamental Médio Completo -2,54 - 24,91 *** 7,24 *
Incompleto) Superior
-1,40 - 27,79 *** 9,00 **
Completo
Renda Renda (log) 3,98 ** 2,46 * 3,17 ***
Funcionário
2,54 - 1,67 - 2,79 -
Público
Inserção Profissional/
ocupacional (ref 4,36 - 5,03 - 5,58 *
Empregador
= desocupado)
Assalariado 1,70 - 5,75 * 4,09 *
Autônomo 6,99 * 4,81 * 5,81 **
Educação do pai -1,60 - 0,82 - -0,21 -
Origem Social
Educação da mãe 1,43 - 0,23 - 0,86 -
Ano (2016=1) Ano       20,76 ***
R2 0,094 0,147 0,341
Ajuste
R2 Ajustado 0,157 0,205 0,320
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

159
Sobre os efeitos que se podem mensurar a partir desse modelo, de um
modo geral, destaca-se a presença de um padrão que perpassa as duas edições das
CNPMs, e as variáveis que se mostraram importantes para explicar a variação do
índice foram, principalmente: religião (ser protestante ou católico); renda; inser-
ção ocupacional; e educação.
O efeito da religião é o mais pronunciado. Mulheres protestantes têm, na
média, um índice em torno de 14 pontos inferior às que se consideram sem reli-
gião, às espíritas e às que se declararam de religiões afro-brasileiras. Para as católi-
cas, o valor do índice gira em torno de 6 pontos. Além disso, os valores são razoa-
velmente constantes ao longo do tempo – a variação não é superior ao intervalo
de confiança –, demonstrando que esta é uma dimensão bastante sedimentada.
Não foram encontradas diferenças para as que se declaram de religiões
afro-brasileiras e espírita/outra. Em síntese: o conservadorismo relativo às relações
de gênero nas esferas pública e privada é muito mais pronunciado em mulheres de
religião protestante e católica, conforme se poderia, de fato, esperar. Para as delega-
das oriundas de religião afro-brasileiras e espíritas, a percepção mensurada nesse
índice é, na média, praticamente igual à de mulheres que se declaram ateias ou sem
religião.
A renda foi outro fator cujo efeito se mostrou praticamente constante e
também bastante elevado. Para os dois anos, 1% a mais nos rendimentos eleva o
índice em torno de 0,3 ponto. A título de ilustração: duas mulheres com caracte-
rísticas semelhantes, mas com uma diferença de salarial de 50% – por exemplo, 1
e 1,5 salário mínimo, respectivamente –, a diferença entre elas será de 15 pontos
a mais no índice para segunda.
Destaca-se ainda que como a renda é fortemente correlacionada com o tipo
de inserção ocupacional, isso talvez explique o fato de que esta última dimensão
se mostrou relevante apenas para explicar a variação do índice para as assalaria-
das e autônomas, justamente aquelas categorias ocupacionais com maior grau de
heterogeneidade de inserção laboral e, consequentemente, de rendimentos: autô-
nomas e assalariadas, na média, demonstram menores graus de conservadorismo
no IRGPP do que desocupados, por exemplo. Para as ocupações mais estáveis –
profissionais de nível superior e funcionárias públicas – não foi observado efeito
significativo, muito em virtude, acreditamos, do fato de que esse efeito já havia
sido captado pela variável “renda”.
Por fim, a escolaridade demonstrou um efeito curioso, uma vez que se fez
sentir somente no ano de 2016.7 Em 2011, não foi encontrado nenhum efeito dos

7   Para avaliar a robustez deste resultado, também realizamos testes qui-quadrado entre os níveis
educacionais e os valores do índice. De fato, só foi encontrada uma relação significante para o ano de

160
diferentes graus de escolaridade na variação do IRGPP. Já em 2016, o efeito não
apenas existe como também se fez sentir em larga intensidade. Em comparação
às pessoas com Ensino Fundamental incompleto, o índice é 24 pontos maior para
aqueles com Fundamental ou Médio completo. Para aquelas com Superior com-
pleto, esse valor é de 27 pontos. Diferentemente do que se poderia esperar, con-
tudo, a diferença entre ter ensino superior e ter médio ou fundamental completo
é muito reduzida (em torno de 3 pontos), demonstrando que a educação, a partir
de certo nível (completado o Fundamental), têm um efeito apenas marginal nas
percepções avaliadas no IRGPP. Isso reforça, em grande medida, a hipótese rela-
tiva à homogeneização ideológica das delegadas salientada anteriormente e, mais
do que isso, de que essa homogeneização depende de outros mecanismos causais
que não somente a escolaridade. Tomados em conjunto, os resultados apontam na
seguinte direção:
• Houve um aumento do grau de destradicionalização com respeito às
percepções medidas pelo IRGPP entre 2011 e 2016.
• Esse aumento se deu concomitantemente a um processo de homogenei-
zação ideológica em sentido “progressista” no ano de 2016.
• Apesar disso, delegadas protestantes e católicas continuam a ter um grau
significativamente mais elevado de conservadorismo nesse índice do
que as demais delegadas. Nesse quesito, os resultados são praticamente
os mesmos entre os anos de 2011 e 2016.
• Delegadas de maior rendimento têm maiores níveis de destradicionali-
zação e esse efeito é constante ao longo do tempo.
• Somente em 2016, a educação se mostrou uma dimensão relevante para
explicar a percepção das mulheres com relação ao IRGPP.
• A origem social das delegadas não se mostrou relevante, em nenhum
momento, indicando que os eventuais efeitos da origem de classe so-
bre essas percepções tendem a ser anulados pela trajetória de vida das
participantes.
• Tampouco a estrutura familiar – medidas pela variável de estar casada/
em união e ter filhos – se mostrou relevante neste índice.

Passamos agora à análise do nosso segundo índice, referente às percepções


relativas à discriminação difusa de raça e gênero, o IDDGR.

2016 (e não para 2011), reforçando o resultado dos modelos de regressão.

161
Tabela 9. Modelo de Regressão Linear / MQO –
Variável Independente: os valores do IDDGR
2011 2016 Modelo Único
Dimensão Variável
Beta Sig Beta Sig Beta Sig
Constante 72,03 *** 72,66 0,000 74,26 ***
Casada -1,22 - 0,62 - -0,13 -
Família
Tem Filho -0,41 - 2,94 - 1,47 -
Até 39 anos -4,88 - -4,61 - -4,47 *
Idade (ref = até De 40 a 49 anos -5,50 - -5,35 - -5,43 **
29 anos) De 50 a 59 anos 1,28 - -3,89 - -0,97 -
Mais de 60 anos -6,06 - -5,53 - -5,47 *
Raça Raça (Branca=1) -1,53 - -3,70 * -2,63 *
Protestante -6,82 * -14,58 *** -11,54 ***
Religião (ref = Afro-brasileira 1,84 - -3,97 - -1,57 -
sem religião) Espírita/outra -5,49 - -4,80 - -5,69 **
Católico -8,27 ** -7,33 *** -8,75 ***
Fundamental
8,61 - 18,62 ** 10,80 **
Escolaridade (ref Completo
= Fundamental Médio Completo 7,54 - 13,93 ** 9,55 **
Incompleto) Superior
8,49 * 13,46 ** 9,53 **
Completo
Renda Renda (log) 2,59 * 1,64 - 1,88 **
Funcionário
-8,25 *** -2,32 - -5,13 ***
Público
Inserção Profissional/
ocupacional (ref -5,52 - -1,58 - -2,56 -
Empregador
= desocupado)
Assalariado -2,07 - -2,96 - -2,30 -
Autônomo -5,51 - 0,61 - -1,70 -
Educação do pai -0,66 - -0,11 - -0,02 -
Origem Social
Educação da mãe -0,30 - 0,30 - -0,22 -
Ano (2016=1) Ano - - 2,45 *
R2 0,115 0,113 0,98
Ajuste
R2 Ajustado 0,059 0,059 0,70
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM)

Como mostra a tabela acima, os resultados apontam para algumas seme-


lhanças e diferenças em relação ao índice anterior. A principal semelhança talvez

162
seja o fator religião e, novamente, a percepção das delegadas protestantes e católi-
cas são os principais vetores explicativos. Delegadas adeptas a essas duas religiões
apresentam níveis sensivelmente maiores de conservadorismo do que as demais.
Há, entretanto, um ponto a se chamar a atenção. O efeito do conservadorismo no
IDDGR aumenta significativamente para as delegadas protestantes – e ele mais do
que dobra entre 2011 e 2016, saltando de -6,82 para -14,58 – enquanto permanece
razoavelmente constante entre as delegadas católicas.
Outro ponto de destaque refere-se à relação entre renda, ocupação (ser
funcionária pública) e educação. Razoavelmente importantes em 2011, as duas
primeiras deixam de ter significância em 2016 – embora deva-se destacar que o
resultado para funcionárias públicas era negativo em 2011, indicando maior con-
servadorismo do que para as demais categorias ocupacionais.
Já a escolaridade, que havia se mostrado relevante em 2011 apenas para as
delegadas com ensino superior, torna-se a principal variável explicativa em 2016,
incluindo-se, aí, todos os níveis educacionais.
As diferenças de raça que, sem se mostrarem importantes em 2011, apre-
sentam diferenças significativas em 2016, com as delegadas brancas tendo, na
média, um grau de conservadorismo em torno de 3 pontos maior do que as dele-
gadas pretas e pardas. Como destacamos na seção anterior, este resultado vai de
encontro ao aumento, mesmo que ainda incipiente, do conservadorismo racial
entre as delegadas.
Por fim, vale a pena um breve comentário sobre o modelo único. Como
apontado anteriormente, esse modelo nos permite captar alguns efeitos médios
das duas conferências sem, entretanto, poder distinguir seu comportamento no
tempo. De um modo geral, seus resultados são bastante consistentes com o que já
descrevemos acima, mas há um efeito que só foi captado por ele: o da idade das
delegadas. Embora não seja possível falar das tendências entre 2011 e 2016, po-
de-se dizer que, na média, o grau de conservadorismo aumentou com a idade. O
efeito é em torno de 5 pontos negativos para cada uma das faixas da idade quando
comparadas com as das delegadas mais jovens, de até 29 anos (mas é importante
destacar que esse efeito não é cumulativo). Em síntese, podemos dizer que:
• Houve um aumento do grau de destradicionalização com respeito às
percepções sobre discriminação racial e de gênero. Mas, como para
esse indicador os níveis de destradicionalização já eram razoavelmente
elevados em 2011, a intensidade da mudança foi menor do que a obser-
vada em relação ao índice de relações de gênero – IRGPP.
• Delegadas protestantes e católicas têm um grau consideravelmente
maior de conservadorismo do que as demais delegadas, destacando-se

163
ainda o fato de que, para as primeiras, houve um aumento significativo
de conservadorismo no IDDGR entre 2011 e 2016.
• Apesar de importantes em 2011 (embora não muito), renda e ocupação
perderam completamente o poder explicativo nesse índice em 2016.
• Já a educação, cujo efeito não se pronunciara em 2011, passa a ser,
em 2016, um importante fator explicativo. Delegadas com Ensino
Fundamental completo ou mais têm níveis de conservadorismo muito
menos pronunciados, embora deva-se destacar – tal como ocorrera com
o indicador anterior – que não há diferenças significativas a partir deste
nível educacional.
• A variável raça passou a ter um efeito não desprezível em 2016 nesse ín-
dice (o que também era esperado), com mulheres brancas apresentando
resultados inferiores das pretas e pardas.
• De um modo geral, as delegadas mais jovens têm menores níveis de
conservadorismo no IDDGR do que aquelas com idade superior a 29
anos.

A análise combinada dos resultados de ambos os Índices permite que pos-


samos alcançar algumas conclusões mais gerais. Em primeiro lugar, como a pró-
pria análise descritiva já apontava, é patente um aumento no grau de destradi-
cionalização racial e de gênero entre as delegadas da 3ª para a 4ª CNPM. Isto fica
bastante claro não apenas no crescimento dos valores médios do índice mas, so-
bretudo, no fato de que eles se concentram cada vez mais nos valores superiores,
evidenciando um menor grau de heterogeneidade valorativa.
Em segundo lugar, vale destacar que a religião se mostrou, além de constan-
te, o principal fator explicativo de diferenças entre as percepções dos valores aqui
mensurados. Esse resultado coloca em questão o fato de que determinadas prefe-
rências religiosas – que por definição se encontram no plano da tradição – termi-
nam mesmo por atuar como um contrapeso a processos e dinâmicas em curso de
destradicionalização em termos dos valores de gênero e raça, como de fato já está
largamente documentado pela literatura. Não deixa de chamar atenção, contudo,
que a questão não diz respeito somente ao fato de ser ou não ser de determinada
“religião”, mas fundamentalmente ao tipo de crença que é professada. Protestantes
e católicas apresentam um nível substancialmente mais elevado de conservadoris-
mo nos índices e, mais do que isso, o padrão é praticamente o mesmo em 2011 e
2016.
Por fim, vale destacar também o fato de que a origem social – mensurada
pela educação dos pais – não demonstrou ter qualquer efeito sobre a percepção

164
das delegadas medidas por esses índices. Se, por um lado, esse dado contraria
uma tendência social geral, por outro vale atentar que as delegadas comungam de
características semelhantes que, certamente, atenuam o efeito da origem através
de um claro efeito de viés de seleção. Entre essas características – além do fato
óbvio de serem mulheres com maior inclinação à participação política do que a
média da população – pode-se destacar, apenas a título especulativo, a trajetória
em organizações formais e as redes pessoais e sociais nas quais estão inseridas.
Com efeito, redes que se formam em torno de objetivos políticos específicos po-
dem ter um efeito homogeneizador sobre as crenças e os valores difusos dos seus
membros (MARQUES, 2003).

Considerações finais

As análises empreendidas neste capítulo nos permitiram demonstrar que


houve, sim, na experiência do Brasil recente, um processo de mudanças e trans-
formações nas percepções e nos valores relativos a gênero e raça. A comparação
aqui empreendida entre duas pesquisas realizadas em temporalidades distintas
e com sujeitos e objetivos igualmente diferenciados, em que pese as limitações
metodológicas inerentes, nos permitiram demonstrar como, em quais direções e
quais fatores determinantes estão fomentando, no nosso país, tais mudanças.
Pudemos evidenciar que existe um padrão claro nas percepções entre os
grupos aqui analisados no que tange às vicissitudes da dinâmica de transforma-
ções, de forma que é possível identificar espécies de “agentes do conservadoris-
mo”, bem como “agentes da destradicionalização” em termos de gênero e raça
no Brasil: o eleitorado masculino brasileiro tendeu a ser mais conservador nes-
ses indicadores (sendo, então, nos termos dessas análises, o principal agente do
conservadorismo observado nas duas pesquisas), seguido do eleitorado feminino
brasileiro, das delegadas da 3ª CNPM (2011) e, finalmente, das delegadas da 4ª
CNPM (2016 – as principais agentes da destradicionalização de gênero e raça
identificadas nessas pesquisas).
Especificamente em relação às delegadas, o principal objeto de investigação
nessa pesquisa, conforme já demonstramos, elas se revelaram mais conservado-
ras no que tange às relações de gênero nas esferas privada e pública (nos valores
encontrados no IRGPP) do que com relação à discriminação de gênero e raça
(IRGPP). Podemos ainda afirmar que, entre 2011 e 2016, aumentou, na média, o
grau de destradicionalização para ambas as dimensões. Além do mais, entre 2011
e 2016 as delegadas das CNPMs se tornaram mais semelhantes entre si, com rela-
ção às percepções relativas mensuradas nessas duas dimensões.

165
Ainda sobre as percepções de gênero nas esferas pública e privada (mensu-
radas pelo IRGPP), parece-nos que, para as delegadas pesquisadas no último ano
(2016), há um padrão mais bem estabelecido entre a localização das mulheres na
estrutura social, as suas características individuais e, afinal, as suas percepções.
Além do mais, há a presença de um padrão que perpassa as duas edições das
CNPMs quando observamos o Modelo de Regressão para o IRGPP: as variáveis
que se mostraram importantes para explicar a variação do índice foram, prin-
cipalmente: religião (ser protestante ou católico); renda; inserção ocupacional; e
educação. Sendo que o efeito da religião foi, pare esse índice, o mais pronunciado:
o conservadorismo relativo às relações de gênero nas esferas pública e privada é
muito mais marcado em mulheres de religião protestante e católica; para as de-
legadas oriundas de religião afro-brasileiras e espíritas, a percepção mensurada
nesse índice é, na média, praticamente igual à de mulheres que se declaram ateias
ou sem religião.
Também para o índice que mensurou as percepções relativas à discrimina-
ção difusa de gênero e raça – o IDDGR –, o fator religião se revelou determinante
das percepções. Delegadas protestantes e católicas têm um grau consideravelmen-
te maior de conservadorismo do que as demais delegadas, destacando-se ainda o
fato de que, para as primeiras, houve um aumento significativo de conservadoris-
mo no IDDGR entre 2011 e 2016. A escolaridade, cujo efeito não se pronunciara
em 2011, passou a ser, em 2016, um importante fator explicativo nas percepções
avaliadas pelo IDDGR. Delegadas com Ensino Fundamental completo ou mais
apresentaram níveis de conservadorismo nesse índice muito menos pronuncia-
do, embora se deva destacar – tal como ocorrera com o indicador anterior – que
não houve diferenças significativas a partir desse nível educacional. Ainda para o
IDDGR, conforme seria esperado (dada a própria natureza sensível do tema para
as delegadas declaradas pretas e pardas), a variável raça passou a ter um efeito não
desprezível, mas apenas em 2016, com as mulheres brancas apresentando resulta-
dos inferiores de destradicionalização do que as pretas e pardas.
Algo que se destaca dessas análises e que merece ser tratado nestas conclu-
sões é a particularidade do perfil valorativo e de percepções das mulheres que são
delegadas nas CNPMs; tal aspecto de caráter mais subjetivo das nossas desigual-
dades precisa estar em diálogo permanente com as forças institucionais existentes
em tais dinâmicas também. De fato, as delegadas das CNPMs se distinguem da
população em geral e também das mulheres brasileiras em geral, perfazendo um
círculo subjetivo-valorativo-cultural bem mais homogêneo e fortemente mais des-
tradicionalizado em relação às percepções de gênero e raça. Elas parecem operar,
talvez, como um subconjunto de agentes que tem sido responsável por processos

166
identificados, e já em curso no Brasil, de reformulação nos valores tradicionais de
gênero e raça.
Todavia, mesmo elas, conforme identificamos, estão submetidas às forças
de ondas reversas e de retrocessos, assim como sempre estiveram submetidas às
forças dos processos institucionais estatais. A estrutura e a ordem estatal brasilei-
ras são abertamente conservadoras (senão autoritárias) no que tange a gênero e
raça, ou seja: são historicamente patriarcais e racistas (MATOS; PARADIS, 2014).
Ousamos afirmar, inclusive, que o conservadorismo associado às percep-
ções de gênero e raça pode ser tratado como proxies de formas e percepções po-
liticamente autoritárias (tanto dentro, quanto fora do Estado). E essa é, de fato,
uma herança histórico-política não superada pelo Brasil. Como visto, se estáva-
mos (como a análise entre os três momentos distintos de realização das pesquisas
aqui analisadas demonstram: 2010, 2011 e 2016) numa tendência de mais forte
destradicionalização subjetivo-valorativa-cultural em termos de gênero e raça,
agora essa tendência disputa abertamente o espaço público com intensas forças
retradicionalizadoras, especialmente as forças conservadoras das religiões de ma-
triz cristã: protestante e católica, e as forças dos poderes de Estado. Estes, inclusi-
ve, fazem parte importante e constitutiva dos retrocessos e golpes atuais contra a
nossa, ainda frágil, democracia brasileira.
Há, pois, um grande descompasso cultural-valorativo entre as delegadas
aqui pesquisadas e a sociedade brasileira. Mas mesmo assim, podemos observar
que as deliberações tomadas nas CNPMs, mesmo operando fundamentalmente
no campo da construção coletiva de esforços de expansão dos direitos das mulhe-
res (via a construção de um complexo arcabouço de políticas públicas que con-
vergiram para os PNPMs), também disputaram e tensionaram, em algum grau,
a normatividade social patriarcal e racista brasileira. Os embates em torno, por
exemplo, da aprovação de um princípio e mesmo de políticas públicas que te-
nham seu foco na descriminalização generalizada do aborto no Brasil é talvez
o maior revelador dessa tensão valorativa, e ela está/esteve, de fato, presente no
campo dos embates realizados dentro das Conferências. O capítulo 6 do Volume
2, escrito por Martello, trata – entre outras importantes considerações – desse
importante momento de embate das CNPMs e merece a leitura.
Fica-nos a certeza ainda do quão difícil significa realizar e travar esses em-
bates no campo da esfera pública estatal: as CNPMs são efetivamente campos de
batalha valorativa sobre como se construir um Estado que tenha políticas sensíveis
e inclusivas às pautas de gênero e raça (entre outros marcadores sociais). Contudo,
mesmo contando com delegadas com um perfil cultural-valorativo destradi-
cionalizado, as deliberações e, posteriormente, a fase da implementação dessas

167
deliberações vão, certamente, filtrando os processos de destradicionalização de
gênero e raça, vão os disciplinando para, finalmente, conformá-los e formatá-los
nas métricas da administração pública. Análise detalhada desses processos as(os)
leitoras(es) poderão também encontrar no Capítulo 7 do Volume 1, onde Matos
e Cypriano problematizam e debatem a avaliação das políticas públicas realizada
pelas delegadas das duas conferências. É bem possível e provável que, nesse pro-
cesso de metabolização conflitiva, a força inicial dos valores destradicionalizados
vá rapidamente cedendo espaço à força centrípeta da normatividade patriarcal/
racista, esta atavicamente instalada, a partir do Estado brasileiro.

Referências

ALCOFF, Linda Martín; POTTER, Elizabeth (Eds.). Feminist Epistemologies. New York:
Routledge, 1993.
ADAM, B. Detraditionalization and the certainty of uncertain futures. In: HEELAS,
P.; LASH, S.; MORRIS, P. (Orgs.). Detraditionalization: critical reflections on
authority and identity at a time of uncertanity. Oxford: Blackwell Publishers, 1996.
p. 134-148.
BANDEIRA, Lourdes; BATISTA, Analía Soria. Preconceito e discriminação como
expressões de violência. Revista Estudos Feministas,  Florianópolis,  v. 10, n. 1, p.
119-141,  jan.  2002.
BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar. 2009.
CONNELL, R. W. Masculinities. Los Angeles: University of California Press, 1995.
GIDDENS, A. The consequences of modernity. Cambridge: Polity, 1991.
______; BECK, U.; LASH, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem
social moderna. São Paulo: Unesp, 1997.
HARAWAY, Donna, Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the
Privilege of Partial Perspective. Feminist Studies, 14, p. 575-99, 1988.
HARDING, Sandra. The Science Question in Feminism. Ithaca: Cornell University Press,
1986.
______. Is Science Multicultural? Postcolonialisms, Feminisms, and Epistemologies.
Bloomington, IN: Indiana University Press, 1998.
HEELAS, P.; LASH, S.; MORRIS, P. (Orgs.). Detraditionalization: critical reflections on
authority and identity at a time of uncertanity. Oxford: Blackwell Publishers, 1996.
KELLER, Evelyn Fox. Reflections on Gender and Science. New Haven: Yale University
Press, 1984.
KIM, J.; MUELLER, C. W. Factor analysis. Statistical methods and practical issues. [S.l.]:
Sage Publications, 1978.

168
LUKE, T. W. Identity, meaning and globalization: detraditionalization in postmodern
space-time compression. In: HEELAS, P.; LASH, S.; MORRIS, P. (Orgs.).
Detraditionalization: critical reflections on authority and identity at a time of
uncertanity. Oxford: Blackwell Publishers, 1996. p. 109-133.
MARQUES, Eduardo C. Leão. Redes sociais, instituições e atores políticos no governo da
cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume. 2003.
MATOS, Marlise. Cultura, Gênero e Conjugalidade: as transformações da intimidade
como desafio. Lugar Comum (UFRJ), Rio de Janeiro, v. 5-6, p. 165-177, 1998.
______. Reinvenções do vinculo amoroso: cultura e identidade de gênero na modernidade
tardia. Belo Horizonte: Ed. UFMG/IUPERJ, 2000.
______. Teorias de gênero e teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e feministas
se transformaram em um campo novo para as ciências. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, v. 16, n. 2, p. 333-357, maio/ago. 2008.
______. Em busca de uma teoria crítico-emancipatória feminista de gênero: reflexões
a partir da experiência da política na ausência das mulheres. In: ______ (Org.).
Enfoques feministas e os desafios contemporâneos: perspectiva feminista de gênero
na política e nas políticas públicas. Belo Horizonte: FAFICH/DCP, v. 4, p. 59-112,
2009.
______. O movimento e a teoria feminista em sua nova onda: entre encontros e confrontos,
seria possível reconstruir a teoria feminista a partir do sul global? Revista de
Sociologia e Política, Curitiba, v. 18, n. 36, p. 67-92, jul. 2010.
______; PINHEIRO, M. Dilemas do conservadorismo político e do tradicionalismo de
gênero no processo eleitoral de 2010: o eleitorado brasileiro e suas percepções.
In: ALVES, J. E.; PINTO, C.; JORDÃO, F. (Orgs.). Mulheres nas eleições 2010. São
Paulo, Brasília: ABCP – Associação Brasileira de Ciência Política, SPM, 2012.
______; PARADIS, Clarisse Goulart. Desafios à despatriarcalização do Estado
brasileiro. Cadernos de Pagu, Campinas,  n. 43, p. 57-118,  Dec.  2014.  
MERTON, Robert K. Sociologia. Teoria e Estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
OECD. Handbook on Constructing Social Indicators. 2008. Versão on-line. Disponível em
<https://www.oecd.org/std/42495745.pdf>. Acesso em: jan. 2018.
SCALON, Celi. Desigualdade, pobreza e políticas públicas: notas para um debate.
Contemporânea: revista de Sociologia da UFSCar, v. 1, n. 1, jan./jun. 2011.
SHAEFFER, Nora; PRESSER, Stanley. The science of asking questions. Annual Review of
Sociology, 29, 65-88, 2003.
SIMÕES, Solange. A arte de fazer perguntas. In: AGUIAR, Neuma. (Org.). Desigualdades,
redes de sociabilidade e participação política. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007.
STEPAN, Nancy. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de
Janeiro: Fiocruz. 2005.

169
TAMAYO, A. hierarquia de valores transculturais e brasileiros. Psicologia: teoria e pesquisa,
Brasília, v. 10, n. 2, p. 269-285, 1994.
THOMPSON, J. B. Tradition and self in a mediated world. In: HEELAS, P.; LASH, S.;
MORRIS, P. (Orgs.). Detraditionalization: critical reflections on authority and
identity at a time of uncertanity. Oxford: Blackwell Publishers, 1996. p. 89-108.

170
Mulheres negras na institucionalização de
políticas contra o racismo e o sexismo:
trajetórias e desafios de uma agenda em aberto
Johanna Katiuska Monagreda1

Introdução

Acusadas de olharem o próprio umbigo, as mulheres responderam


que esta é uma boa maneira de começar a olhar o próprio corpo
e suas entranhas e, quem sabe, fazer surgir daí uma novíssima
sociedade sem discriminação de espécie alguma.
Wania Sant’anna, 1988 (apud CARNEIRO, 1993).

É sabido que, como fenômeno biológico, a raça não existe, mas, assim como
o gênero, é uma construção social com implicações simbólicas e materiais na vida
das pessoas. Tanto na sua dimensão histórica material, quanto na sua dimensão
simbólica, o machismo e o racismo se combinam para produzir e perpetuar a
exclusão social, econômica e política de mulheres racializadas, negras e indígenas.
Daí que Lélia González insista em tratar o racismo e o sexismo como “um duplo
fenômeno”, trazendo o conceito de racismo-patriarcal para salientar o caráter im-
bricado que adquirem ambas as opressões (GONZALEZ, 1982; 1984).
A luta das mulheres negras contra a opressão de gênero e de raça tem se
proposto a visibilizar as profundas desigualdades raciais que caracterizam a socie-
dade brasileira (GONZALEZ, 1988) e “vem desenhando novos contornos para a
ação política feminista e antirracista”, enriquecendo tanto a discussão da questão
racial, quanto a questão de gênero na sociedade brasileira (CARNEIRO, 2003b).
Desvelar o racismo também é uma luta encarada pelas mulheres indígenas, ainda
que seja comum minimizar a luta indígena como uma luta por apenas diversida-
de cultural. A indígena Avelin Buniacá Kambiwa2 diz sobre o Brasil: “Somos um
país extremamente sem memória. É preciso fazer um ‘letramento racial’” também
sobre a questão indígena.

1   Doutoranda e mestra (2014) em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Graduada em Ciência Política pela Universidad Central de Venezuela (2002). Pesquisadora do
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher – NEPEM.
2   Indígena socióloga e representante do Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas.

171
Ao mesmo tempo, a prática e a teoria das mulheres negras apontam que,
dentro do grupo mulheres, existem diferenças de classe e raça que marcam a ex-
periência de ser mulher. Consequentemente, autoras como Sueli Carneiro (2003a,
p. 52) caracterizam o movimento de mulheres negras com a luta organizada con-
tra a tripla discriminação:

O atual movimento de mulheres negras, ao trazer para a cena política as


contradições resultantes das variáveis raça, classe e gênero, promove a sín-
tese das bandeiras de luta historicamente levantadas pelos movimentos ne-
gros e de mulheres do nosso país, enegrecendo, de um lado, as reivindica-
ções das mulheres e, por outro, promovendo a feminização das propostas e
reivindicações do movimento negro.

Cientes da dupla e tripla discriminação que mulheres negras enfrentam


como consequências das múltiplas limitações impostas pelo racismo, o machis-
mo e a condição de classe, neste capítulo se apresenta a trajetória do movimen-
to de mulheres negras no processo de institucionalização das suas demandas, e
se apresenta o perfil socioeconômico das mulheres negras que participaram nas
Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres (CNPMs) de 2011 e 2016,
a partir dos dados da pesquisa de survey: “As Mulheres das Políticas para as
Mulheres: quem são aquelas que constroem o feminismo estatal participativo
brasileiro?”.
Segundo a síntese de indicadores sociais (INSTITUTO BRASILEIRO
DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2016), em 2011, a população residente no
Brasil era de 197.825.297 pessoas, das quais 25,7% mulheres pretas ou pardas
(50.891.944) e 0,21% (417.740) mulheres indígenas. Para 2015, do total estimado
de 204.855.655 brasileiros e brasileiras, 27,1% (55.613.764) correspondia a mu-
lheres pretas ou pardas, e 0,19% (400.809) a mulheres indígenas. Mais do que um
quarto da população brasileira ocupa, invariavelmente, a base em todos os indica-
dores socioeconômicos, o que deveria nos atentar para as desvantagens históricas
que enfrentam as mulheres negras e indígenas.
O Relatório intitulado “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça”
(INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2017) oferece uma
boa panorâmica das condições de vida das mulheres negras no Brasil nos últimos
vinte anos: a taxa de analfabetismo entre mulheres negras tem sido sempre maior
do que a média nacional e quase o dobro da taxa de analfabetismo dos homens
brancos; a renda média tem sido sempre inferior à dos homens brancos, mas tam-
bém inferior à das mulheres brancas. Embora a série histórica mostre uma valo-
rização importante do rendimento médio do trabalho das mulheres negras (80%
em vinte anos), a distância se mantém na mesma ordem ao longo de toda a série

172
histórica – do maior rendimento para o menor rendimento: homens brancos, mu-
lheres brancas, homens negros, mulheres negras. A maior porcentagem de mulhe-
res sem renda própria também corresponde às mulheres negras.
Na sua dimensão simbólica, o duplo fenômeno do racismo patriarcal pro-
duz e sustenta estereótipos e preconceitos que legitimam a inferiorização, a dis-
criminação e as desigualdades raciais. Lélia Gonzalez (1984) já adverte o quanto
as relações raciais e o imaginário sobre a mulher negra é perpassado pelas noções
de “mulata”, “doméstica” e “mãe preta”, e como o mito da democracia racial oculta
a violência simbólica dos estereótipos sobre a mulher negra. Mas também na di-
mensão política se observa a desvantagem histórica.
Padrões de raça e de gênero limitam o acesso à representação política no
Brasil (ARAÚJO, 2005). Mesmo quando metade da população brasileira está
composta por mulheres, apenas duas ocuparam altos cargos no atual governo. A
participação feminina no Congresso e no Senado gira em torno de 10%. Do total
de representantes no Congresso, 1,6 são mulheres declaradas pardas, e 0,6 mulhe-
res pretas, enquanto nenhuma pessoa indígena – homem ou mulher – foi eleita.3
A situação não é muito diferente no nível municipal: o número de vereadoras
está abaixo de 15% e 1.287 municípios não têm sequer uma mulher na Câmara
Municipal (SUB-REPRESENTAÇÃO..., 2016). Se a discriminação de gênero torna
muito mais difícil para as mulheres participar da política, mulheres negras e, es-
pecialmente, mulheres indígenas parecem totalmente afastadas dos espaços de re-
presentação, como consequência da combinação perversa entre sexismo e racismo.
A despeito desse panorama, as Conferências Nacionais se revelam como es-
paços de participação e deliberação amplos, abrangentes e inclusivos, que garan-
tirem uma maior representatividade da sociedade brasileira (POGREBINSCHI,
2012). Grupos tradicionalmente excluídos da esfera política encontram maiores
possibilidades de participação no âmbito das conferências, em parte porque o eixo
temático de cada conferência, principalmente aquelas organizadas para discutir as
políticas para grupos minoritários, implica um apelo específico à participação di-
reta de mulheres, negros, indígenas, população LGBT, entre outros.
É possível observar essa diversidade de participação nas CNPMs: mulheres
indígenas, negras, ciganas, lésbicas, deficientes, quilombolas, jovens, ribeirinhas,
empregadas domésticas, inclusive, privadas de liberdade, se articulam para ver
suas demandas colocadas nas CNPMs e talvez assim conseguir influenciar na ela-
boração de políticas públicas que garantam, realmente, os direitos das mulheres.
Nas 3ª e 4ª CNPMs, as mulheres negras delegadas representaram mais de
50% das delegadas; essa ampla participação pode ser resultado de um processo

3   Fontes: IBGE, 2018; HOMENS..., 2015

173
histórico de luta e organização das mulheres negras. Na seção a seguir traçamos
brevemente os passos da organização do movimento de mulheres negras no Brasil
desde os anos 1970 até os nossos dias, focando exclusivamente na interação com
o movimento feminista e com o movimento negro; desse modo, outras interfaces
importantes que têm desenhado o movimento de mulheres negras, por exemplo,
com o movimento de trabalhadores(as), dentro do movimento da diversidade se-
xual, na luta pela terra quilombola, entre muitas outras, ficarão por fora desta
narrativa.

A consolidação do movimento de mulheres negras organizado

Ainda há muito a ser escrito sobre a organização e o protagonismo históri-


co das mulheres negras nas lutas feministas. Este capítulo é um esforço por traçar
a história contemporânea do movimento de mulheres negras do Brasil desde os
anos 1970 até os nossos dias, com o intuito de salientar as ações que levaram
à ampla participação de mulheres negras nas 3ª e 4ª Conferências Nacionais de
Políticas para Mulheres.
Enquanto o ativismo das mulheres negras adquire uma diversidade de prá-
ticas, reivindicações e formas individuais e coletivas – partidos políticos, grupos
culturais, organizações religiosas –, este capítulo está focado no relato de algumas
poucas militantes de organizações que hoje são reconhecidas como referências da
luta antirracista e feminista no Brasil.4
Priorizam-se aqueles textos que têm por objetivo principal construir ou
resgatar a memória de mobilização das mulheres negras, tanto nas organizações
de luta antirracista, quanto nas organizações de mulheres negras e na interação
com o movimento feminista nacional e com o Estado brasileiro.
Escolhe-se a década dos anos 1970 como ponto de partida em consonância
com a afirmação de Matilde Ribeiro (1995) de que o movimento contemporâneo
de mulheres negras emerge das lutas antirracistas e feministas da década de 1970.
Obviamente, como nos lembra Jurema Werneck (2010), as mulheres negras no
Brasil criaram estratégias organizativas de resistência à escravidão que compreen-
diam as mais diversas formas individuais e coletivas de confronto com o sistema
escravista. Portanto, a organização e o protagonismo histórico das mulheres ne-
gras nas lutas das mulheres e nas lutas antirracistas estão, há muito, conectados a
esse passado histórico: a história do movimento negro e, neste caso, a história do
movimento de mulheres negras no Brasil começam com a chegada da primeira

4   Alguns dos nomes que traçaram a trajetória do movimento de mulheres negras são resgatados
por Schuma Schumaher (2017).

174
embarcação escravista.5 Contudo, na década dos anos 1970 e 1980 vemos surgir
uma compreensão mais apurada da interação do patriarcado e do racismo como
sistemas de opressão que impactam a vida das mulheres negras, e vemos também
uma disputa mais explícita por colocar esses temas na agenda dos movimentos
antirracistas, nos movimentos feministas, e para dentro do Estado.
Esse questionamento fundado na necessidade de se pensar as lutas na in-
teração entre raça, o gênero e a classe aparece também em outras organizações,
onde as mulheres negras tinham participação fundamental, tais como: o movi-
mento de favelas do Rio de Janeiro, os movimentos de trabalhadoras domésticas
em Belo Horizonte e em Salvador, as associações comunitárias, as comunidades
religiosas afro-brasileiras, os movimentos quilombolas, os movimentos de mu-
lheres rurais, o movimento estudantil e as organizações clandestinas de esquerda.
No entanto, escapa do escopo deste capítulo aprofundar esses outros espaços de
militância das mulheres negras.
A principal característica do movimento organizado de mulheres negras é
o que Matilde Ribeiro (1995) caracterizou como uma “dupla militância”, salien-
tando o fato de que, cientes da dupla discriminação, a militância das mulheres
negras tem uma interface tanto com o movimento negro, do qual muitas delas são
militantes, quanto com o movimento feminista, do qual participam.6 Essa dupla
militância não significa a subordinação das pautas das mulheres negras a nenhum
dos dois movimentos. Pelo contrário, a busca de um referencial próprio, a partir
da experiência de ser mulher negra em sociedades racistas e sexistas é o que defi-
ne o movimento de mulheres negras7 (RODRIGUES; PRADO, 2010).
A experiência de ser mulher é social e historicamente determinada e em so-
ciedades racistas e sexistas, com profundas desigualdades sociais, a experiência de

5   Ainda que essa tentativa de salientar as lutas antiescravistas e as vincular com o movimento ne-
gro contemporâneo faça parte do discurso do movimento negro do Brasil, a primeira vez que escutei
essa reflexão foi em um discurso de Larissa Amorim Borges, provavelmente em 2012.
6   Essa dupla militância também reflete a postura de mulheres negras como Lélia Gonzalez e Luiza
Bairros, que entendiam que as mulheres negras deviam ocupar todos os espaços possíveis, inclusive
os espaços de participação em partidos políticos e a disputar cargos de eleição popular.
7   Essa relação com o movimento negro e com o movimento feminista não é uma relação fácil e se
complexifica ainda mais quando a pauta da diversidade sexual é colocada. Pensando na diversidade
de pautas que conformam o movimento de mulheres negras, importa também fazer essa reflexão
como crítica à heteronormatividade compulsória, que junto com o racismo, junto com o patriarcado,
afeta a vida das mulheres negras. Infelizmente, não é possível, neste texto, abordar esse tema com a
profundidade requerida, contudo Cláudia Pons Cardoso (2013) analisa as dificuldades de introdução
das pautas das mulheres lésbicas nesse período. Outro movimento que transversaliza as discussões
sobre mulheres negras é o movimento da juventude negra, que pode ser aprofundado nos trabalhos
de Lima (2010), Pereira (2012), Borges; Mayorga (2012), Moura, Silva e Gomes (2017).

175
ser mulher está marcada pela raça (BAIRROS, 1995). As sequelas da colonização
e da escravidão permanecem ainda hoje tanto no imaginário social, produzin-
do imaginários e percepções estereotipadas sobre as mulheres negras; quanto nas
desvantagens econômicas e políticas que se acumulam sobre as mulheres negras.
Desse modo, as percepções e os preconceitos, a distribuição desigual do poder
econômico e político, todos esses elementos se juntam para manter intactas as
relações de gênero, segundo cor ou raça, instituídas desde o período da escravidão
(CARNEIRO, 2003a).
Os aportes das mulheres negras na reflexão sobre a condição de opressão e
sobre a luta política das mulheres negras vão orientados a mostrar como raça, gêne-
ro, classe social, sexualidade se reconfiguram mutuamente (BAIRROS, 1995). Não
se trata de pensar uma identidade comum para as mulheres negras, mas de reco-
nhecer o fato de que a opressão de gênero e de raça coloca as mulheres negras em
uma posição particular frente à dominação. Como afirma Werneck (2010, p. 10):

As mulheres negras não existem. Ou, falando de outra forma: as mulheres


negras, como sujeitos identitários e políticos, são resultado de uma arti-
culação de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas,
culturais, de enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela do-
minação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expro-
priação colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos.

Como falado, as mulheres negras realizam uma dupla militância ao tem-


po que produzem um referencial próprio para as suas lutas. Para Luiza Bairros
(1995), o movimento de mulheres negras surge:

da necessidade de dar expressão a diferentes formas de experiência de ser


negro (vivida “através” do gênero) e de ser mulher (vivida “através” da raça),
o que torna supérfluas discussões a respeito de qual seria a prioridade do
movimento de mulheres negras – luta contra o sexismo ou contra o racis-
mo? – já que as duas dimensões não podem ser separadas. Do ponto de
vista da reflexão e da ação políticas uma não existe sem a outra.

Nesse sentido, produzem uma nova compreensão sobre as formas de opres-


são ao salientar que racismo e patriarcado agem juntos sobre a vida das mulheres
negras.
A participação das mulheres negras em ambos os movimentos, nos anos
1970, se dá a partir de múltiplas tensões. Por um lado, as mulheres negras de-
nunciam o silenciamento das pautas que lhes são caras sob o argumento de que
iriam debilitar a pauta central – o movimento de negro desconsidera o gênero, en-
quanto o movimento feminista desconsidera a raça –; por outro lado, denunciam

176
também a reprodução de opressões sexistas e racistas no universo interno de am-
bos os movimentos.
O desafio de trazer as questões relativas ao gênero para o movimento negro,
e a luta antirracista para o movimento feminista, tem em Lélia Gonzalez e Beatriz
Nascimento as grandes referências: “Essas duas líderes deixaram como legado a
certeza de que era essencial ancorar as ações na ‘feminização’ das questões raciais
e na ‘racialização’ do ideário feminista” (SCHUMAHER, 2006).
Daí que, como propõe Sueli Carneiro (2003a), enegrecer o feminismo e fe-
minizar o movimento negro apareçam como uma necessidade impostergável para
as mulheres negras: enegrecer o feminismo significava entender que, assim como
a divisão sexual do trabalho configurou papeis à mulher, a divisão racial do traba-
lho configura papéis internamente ao grupo de mulheres. Sexualizar ou feminizar
o movimento negro implicava entender que as desigualdades se acentuam graças
à diferenciação sexual. Vale aqui colocar que as mulheres indígenas também têm
salientado a necessidade de “indianizar a luta das mulheres”,8 como parte de uma
das estratégias para dar visibilidade e centralidade à luta indígena nos diversos
espaços de participação política, seja na luta feminista, na luta pela redistribuição
econômica, seja na luta pelo poder político institucional. Dessa forma, racializar
o feminismo implicaria uma melhor compreensão da imbricação da opressão de
gênero e racial, mas também em novos aprendizados para enfrentar o patriarcado
a partir, por exemplo, das práticas ancestrais de coletivização do cuidado e da
resistência comuns às comunidades negras e indígenas.
Gonzalez (1988), Carneiro (1993) e Bairros (1995), entre outras negras fe-
ministas, veem nessas tensões a possibilidade de se avançar nas práticas políticas
feministas e antirracistas, e também de produzir uma compreensão conceitual
mais aprimorada sobre como funciona o racismo e o sexismo, como se verá mais
à frente. No entanto, ao se desconsiderar o gênero, diversas formas de discrimina-
ção racial podem passar desapercebidas e, ao se desconsiderar a raça, se invisibi-
liza um tipo de opressão vivenciada pelas mulheres racializadas.
Com relação às lutas políticas, a prática de uma dupla militância faz que,
mesmo quando criam organizações autônomas, as mulheres negras não abando-
nem o movimento negro misto, e reclamem presença nas organizações e encon-
tros do movimento feminista branco.
Nesse sentido, a história do movimento de mulheres negras, pelo menos
entre os anos 1970 e 1980, pode ser contada junto com a história do movimento

8   Escutei pela primeira vez essa expressão na fala de Avelin Bunicá Kaiowá em um encontro sobre
interseccionalidade organizado em 2016 em BH pelo Coletivo As Margaridas. Mas a expressão tam-
bém é usada em muitos dos atos do Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas.

177
negro, uma vez que as organizações do movimento negro desse momento tinham
uma forte presença feminina, inclusive nas esferas de liderança. Rodrigues e Prado
(2010) nos falam de diversas organizações vinculadas às questões raciais, onde as
mulheres negras eram protagonistas:

No Rio Grande do Sul havia o Grupo Palmares, que foi o responsável por
propor a data de 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares,
como dia nacional da consciência negra. Em São Paulo surgiram organiza-
ções que pensavam a constituição de um Movimento Negro com projeção
nacional, com destaque para o Grupo Evolução, criado em Campinas em
1971 por Thereza Santos e Eduardo Oliveira e Oliveira; o Cecan, Centro de
Cultura e Arte Negra, de 1975; e a Associação Casa de Arte e Cultura Afro-
Brasileira (Acacab), fundada em 1977. Em Salvador é criado, em 1974, o blo-
co afro Ilê Ayê, que fomentou todo um clima para afirmação do Movimento
Negro na Bahia, e o Grupo Nego – Estudos Sobre a Problemática do Negro
Brasileiro, de onde saiu o quadro inicial de militantes do MNU da Bahia
(BAIRROS, 2000; GONZALEZ, 1984; GUIMARÃES, 2002; HANCHARD,
2001). (RODRIGUES; PRADO, 2010, p. 450).

Olhar a trajetória de algumas dessas mulheres da liderança pode ajudar a


viabilizar as discussões de gênero no âmbito interno do movimento negro. Em
1973, Beatriz Nascimento organizou pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos da
Universidade Cândido Mendes uma série de encontros para discussão do racismo
e do processo de exclusão dos negros no mercado de trabalho. A presença de uma
mulher negra não garante per se que o ser mulher negra seja problematizado no
âmbito interno desses encontros, mas três anos depois, Beatriz Nascimento publi-
ca o artigo: “A mulher negra no mercado de trabalho”,9 muito provavelmente no
marco dessas discussões.
Desses encontros surge o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN
– 1984 – Rio de Janeiro), fundado por Beatriz Nascimento e presidido então por
Abgail Pachoa que, trinta anos depois, continua sendo a única presidenta mulher
dessa organização. Nos anos 1970 e 1980, as mulheres negras faziam real a exis-
tência do movimento negro do Brasil: Luiza Bairros, em conferência citada por
Cláudia Pons Cardoso, diz que em 1986 “o controle político do grupo [MNU]
estava nas mãos das mulheres” (CARDOSO, 2013, p. 5).
Mas além do lugar de liderança de algumas mulheres, em algumas das or-
ganizações do movimento negro foram criados Departamentos da Mulher, como
foi o caso do “Teatro Experimental do Negro” que, em 1950, criou o “Conselho
Nacional das Mulheres Negras”, sob a direção de Maria Nascimento, que tinha

9   Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, 25 jul. 1976.

178
uma coluna fixa “Escreve a mulher” no jornal Quilombo, dirigido por Abdias
Nascimento.
Desde início dos anos 1980, começou dentro do Movimento Negro
Unificado (MNU), em diversos estados, a formação de grupos de mulheres. No
Rio de Janeiro, Lélia Gonzalez fundou o Grupo de Mulheres e o Nzinga – Coletivo
de Mulheres Negras do Rio de Janeiro. E um pouco depois, em 1981, Luiza Bairros,
junto com Ana Célia da Silva, Maria do Amparo, Teresa Alfaya e outras, criaram o
Grupo de Mulheres do MNU da Bahia (PINTO; FREITAS, 2017).
Muitos desses grupos funcionavam como espaços de formação das mulheres
negras para a militância política, de construção de um discurso político próprio,
mas também de afirmação da identidade negra e de formação e profissionalização.
Quando essas organizações são consideradas dentro do grande guarda-
-chuva “movimento negro”, tende-se a invisibilizar a importância dessas orga-
nizações para a consolidação do movimento de mulheres negras. É importante
salientar essas organizações como fazendo parte da história do movimento de
mulheres negras, em reconhecimento ao protagonismo das mulheres negras den-
tro das mesmas e em reconhecimento à luta afincada por pautar a agenda das
mulheres negras dentro dessas organizações, mesmo que com múltiplas tensões.
Mas, principalmente, porque eu gostaria de reafirmar, junto com Ribeiro (1995)
e Carneiro (1993), que as mulheres negras não se distanciaram do movimento
negro, mas elas fizeram o trabalho da dupla militância, mesmo que tensa e cheia
de contradições:

Contudo, essa forte presença das mulheres negras “não se traduz em ocu-
pação de espaços políticos ou visibilidade política na mesma proporção em
que ocorre com os homens negros, o que é fruto da própria situação social e
cultural da mulher que a condiciona a aceitar um lugar subordinado dentro
de uma organização, embora respondendo por tarefas fundamentais para a
mesma”. (CARNEIRO, 1993, p. 15).

Homens negros acabavam se projetando e sendo considerados “as” figuras


do movimento negro, enquanto era suposto, para as mulheres, o lugar de apoio
ou “na base”; inclusive dentro do próprio movimento, homens tentavam encaixar
as mulheres nesse lugar subordinado. O reflexo de práticas sexistas dentro das or-
ganizações do movimento negro exigia refletir sobre a reprodução das práticas de
subordinação das mulheres negras no interno do movimento, sobre a paternidade
responsável, sobre a violência e opressão contra as mulheres que eles mesmos
exerciam.
Junto com as críticas ao movimento negro, as mulheres negras, dos anos
1970 e 1980, observam que a despeito das contribuições do feminismo para

179
conceitualizar o patriarcado e a discriminação pela orientação sexual, o caráter
eurocêntrico do feminismo produziu certa cegueira sobre o impacto da raça em
sociedades onde a colonização histórica produziu hierarquizações raciais além de
sexuais e, portanto, tem falhado em incorporar a discussão sobre outro tipo de
discriminação sofrida pelas mulheres, a de caráter racial (GONZALEZ, 1988).
Daí a necessidade de enegrecer o feminismo: “Enegrecendo o feminismo é a ex-
pressão que vimos utilizando para designar a trajetória das mulheres negras no
interior do movimento feminista brasileiro” (CARNEIRO, 2003b, p. 118). Mas
também aponta para as limitações teóricas e políticas de se pensar um feminismo
que desconsidera a raça em sociedades como a brasileira.
A luta antirracista junto com os homens negros continua fazendo parte
central do movimento de mulheres negras, até porque a compreensão de que elas
produzem sobre o patriarcado é que essa combinação do patriarcado com o ra-
cismo produz gêneros inferiorizados: a opressão de gênero junto com o racismo
mostra uma face na opressão das mulheres negras, mas tem outra face na própria
inferiorização do homem negro com relação ao homem branco, um produzido
como um gênero inferior e como um ser não humano; e o outro produzido como
o gênero dominante, o patriarca.
Mas o racismo patriarcal também produz diferenças substantivas com as
mulheres brancas, que por uma parte tem a ver com estarem posicionadas como
grupo em lugares diferentes da opressão de gênero, mas também com a produ-
ção de privilégios que implica a branquitude. Na formulação de Sueli Carneiro
(2003b, p. 117) o racismo produz gêneros subalternizados e superlativos. Produz
gêneros subalternizados: “tanto no que toca a uma identidade feminina estigmati-
zada (das mulheres negras), como a masculinidades subalternizadas (dos homens
negros) com prestígio inferior ao do gênero feminino do grupo racialmente do-
minante (das mulheres brancas)”. E “o racismo também superlativa os gêneros por
meio de privilégios que advêm da exploração e exclusão dos gêneros subalternos”,
colocando, sim, padrões inalcançáveis também para o grupo hegemônico, do qual
as mulheres brancas são expostas, mas que principalmente coloca as mulheres
do grupo racial hegemônico em situação de privilégio com relação às mulheres
negras.
Nesse sentido, para as mulheres negras, reclamar o movimento feminista
para si implica questionar conceitos inclusive caros ao feminismo, uma vez que
“as categorias utilizadas pelo feminismo neutralizavam tanto o problema da dis-
criminação racial quanto do isolamento enfrentado pela comunidade negra na
sociedade” (GONZALEZ, 1982, p. 100):

180
padeciam de duas dificuldades para as mulheres negras: de um lado, o viés
eurocentrista do feminismo brasileiro, ao omitir a centralidade da questão
de raça nas hierarquias de gênero presentes na sociedade, e ao universali-
zar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das
mulheres, sem as mediações que os processos de dominação, violência e
exploração que estão na base da interação entre brancos e não brancos,
constitui-se em mais um eixo articulador do mito da democracia racial e do
ideal de branqueamento. Por outro lado, também revela um distanciamento
da realidade vivida pela mulher negra ao negar toda uma história feita de
resistências e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à
dinâmica de uma memória cultural ancestral – que nada tem a ver com o
eurocentrismo desse tipo de feminismo.

Nos anos 1980 emergem diversos temas, e é uma década de intensa


movimentação, segundo Oliveira e Sant’anna (2002), e também é uma década em
que outras mulheres organizadas, mulheres negras, mulheres trabalhadoras ru-
rais, ganham maior visibilidade e passam a reclamar os espaços de organização
feministas na especificidade da sua opressão, introduzindo outros temas e outras
reflexões na agenda feminista. Conceitos e práticas do feminismo são questiona-
dos quando colocadas no centro do debate as características patriarcal e escravo-
crata da sociedade brasileira. As reflexões sobre sexualidade, reprodução, divisão
sexual do trabalho, o público e o privado, a noção de violência doméstica ganham
novos contornos quando analisados na sua dimensão racial.
A participação de mulheres negras no movimento feminista força as mu-
lheres brancas a pensar o quanto do seu privilégio branco implica vulnerações
de direitos para as mulheres negras. A luta por reconhecer o trabalho doméstico
como um “trabalho” e em reconhecer direitos trabalhistas é reflexo disso.
O trabalho doméstico ocupou um lugar importante nas reflexões e críti-
cas das mulheres negras sob o entendido de que o racismo patriarcal faz que os
papéis impostos às mulheres negras nos sistemas de produção e reprodução ad-
quiram outros contornos. Enquanto o feminismo refletia sobre a divisão sexual
do trabalho que designava às mulheres o lugar do privado-doméstico/reprodu-
tivo e aos homens o lugar público-político/produtivo, e sobre a necessidade de
romper com essa divisão, esquecia que a ocupação do espaço público por parte
das mulheres brancas (educação, trabalho, militância política) era possível porque
outras mulheres racializadas ocupavam esse lugar do cuidado graças à divisão
sexual e racial do trabalho doméstico.
Mas também esqueciam que a escravidão e a marginalização que o racis-
mo impõe sobre os negros em geral fizeram que as mulheres negras no Brasil
estivessem no espaço público, seja na forma de trabalho forçado no período
escravista, seja na forma de trabalho pauperizado pós a abolição, desde sempre e

181
que precisamente fosse o espaço privado, de consolidação da família e de cuidado,
o espaço historicamente negado. Nesse sentido, Benilda Brito (1997) nos lembra
que a experiência de ser dona de casa para as mulheres negras tem pouco mais
de um século. Essa constatação não invalida a necessidade de romper com esses
preceitos que pretendem naturalizar a dominação das mulheres, confinando-as ao
lugar do cuidado e da maternidade,10 mas exige um análise e uma prática política
que coloque no centro do debate os efeitos da construção social da raça.
A discussão sobre o trabalho doméstico também exibia os limites de uma
solidariedade de gênero que ainda precisava ser construída. Enquanto se refletia
sobre a violência de gênero dentro de casa a que os homens submetiam as mu-
lheres, as mulheres negras questionavam sobre a violência a que outras mulheres
negras eram expostas, mas que tinham como agente outras mulheres brancas, no
lugar de patroas: “ao colocar no centro do debate questões como a relação inter-
-pessoal-profissional existente entre patroas e empregadas, revelou-se algo mais
sobre as relações cotidianas estabelecidas nesse espaço privado” (OLIVEIRA;
SANT’ANNA, 2002, p. 202).
Questionavam também sobre o silêncio das mulheres brancas frente às prá-
ticas de abuso sexual sofridas pelas empregadas domésticas, herança de uma cul-
tura escravagista e que posteriormente foi entendido como assédio sexual no local
de trabalho. E reclamavam que a luta pelos direitos das mulheres devia incorpo-
rar, urgentemente, a luta por direitos trabalhistas para empregadas domésticas,
que na época nem era considerado um trabalho.
A crítica ao imaginário social e às representações midiáticas sobre a sexua-
lidade da mulher negra, a vulnerabilidade maior das mulheres negras e indígenas
com relação à maternidade e ao exercício da sexualidade, junto com a crítica à
política de controle populacional e a luta contra a prática de esterilização pelo ca-
ráter não suficientemente informado e compulsório dessa prática que tinha como
alvo privilegiado mulheres negras e indígenas vulnerando seus direitos reprodu-
tivos foram pautas importantes das mulheres negras nesse período (OLIVEIRA;
SANT’ANNA, 2002; CARNEIRO, 2003b).
Essas críticas não eram recebidas sem resistência, como declarou Lélia
Gonzalez em entrevista ao Jornal do MNU, mesmo havendo quem se preocupas-
se com a questão racial no interior do movimento de mulheres brancas (PINTO;
FREITAS, 2017):

10   Refletimos acima sobre o quanto os homens do movimento negro pretendiam sujeitar as mu-
lheres a lugares de apoio dentro do próprio movimento.

182
havia um discurso estabelecido com relação às mulheres negras, um estere-
ótipo. As mulheres negras são agressivas, são criadoras de caso, não dá para
a gente dialogar com elas etc. [...] porque para elas a mulher negra tinha que
ser, antes de tudo, uma feminista de quatro costados, preocupada com as
questões que elas estavam colocando. (GONZALEZ, 1988).

Nesse sentido, a movimentação das mulheres negras dá saliência à impor-


tância de reconhecer as mulheres como sujeito político, mas também de afirmar a
diversidade e as desigualdades existentes entre as mulheres como sujeito político
e reconhecer os privilégios que a branquitude permite e que sempre implicam
perda de direito para o grupo racializado.
A movimentação das mulheres negras obriga a discutir as diferenças exis-
tentes entre as mulheres que faziam parte de ambos os movimentos. E a despeito
das reclamações de que isso levaria à divisão do grupo, a autonomização das mu-
lheres negras ajudou a produzir compreensões mais acuradas sobre a forma como
o racismo e o patriarcado estruturam a sociedade brasileira (CARNEIRO, 2003b;
BAIRROS; 1995; OLIVEIRA, SANT’ANNA, 2002):

Com essas iniciativas, pôde-se engendrar uma agenda específica que comba-
teu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e intragênero; afirmamos
e visibilizamos uma perspectiva feminista negra que emerge da condição
específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre, delineamos, por fim, o
papel que essa perspectiva tem na luta antirracista no Brasil. (CARNEIRO,
2003b, p. 118).

Em que pesem as resistências, foi possível para as mulheres negras ganhar


alguns espaços, construir algumas articulações com mulheres brancas e inclusive
produzir algumas alianças, ainda que Rodrigues e Prado (2010) nos lembrem que
a iniciativa da luta antirracista foi sempre das mulheres negras.
Na década de 1980 também se criam algumas instâncias consultivas de for-
mulação de políticas públicas para mulheres no âmbito nacional e estadual, e as
mulheres negras começaram a disputar com mais força a sua representação nesses
espaços e uma maior presença no movimento feminista no Brasil e na região.
Carneiro (2003b) e Ribeiro (1995) constatam uma presença maior e mais orga-
nizada das mulheres negras no movimento feminista nacional e continental. No
âmbito nacional, essa interação com o movimento feminista permitirá às mulhe-
res negras ganhar algum espaço no sistema político institucional (RODRIGUES;
PRADO, 2010).
Em 1983, se cria o Conselho Estadual da Condição Feminina de São
Paulo, o primeiro órgão institucional destinado a zelar pelos direitos das mulhe-
res e à formulação de políticas públicas contra a discriminação de gênero. Sueli

183
Carneiro11 conta que essa iniciativa surge sem representação de mulheres negras
entre as conselheiras. O fato foi alertado primeiramente pela radialista negra
Marta Arruda; as mulheres negras, então, criam o Coletivo de Mulheres Negras
para organizar suas ações e pressionar para terem representação no Conselho.
Dessa ação, Thereza Santos se torna a primeira mulher negra no Conselho em
1983 ao assumir um cargo titular junto com Vera Lúcia Saraiva como suplente.
Sueli Carneiro assume para a gestão seguinte em 1986. A esse Conselho se se-
guiram outros conselhos estaduais, em vários estados do país, onde as mulheres
negras também tentaram garantir a sua representação.
A atuação das mulheres negras trouxe o debate sobre o tema racial para
dentro do Conselho, sendo incorporada a luta contra o racismo nas ações, o que
levou a criar a Comissão da Mulher Negra, do CECF/SP: “Daí em diante, as re-
presentantes negras ficaram com seu lugar assegurado no Conselho, inclusive nas
instâncias diretoras. A primeira afrodescendente a assumir a presidência foi a psi-
cóloga e assistente social Maria Aparecida de Laia que, em 1995, foi nomeada para
duas gestões consecutivas” (SCHUMAHER, 2006).
Em 1985, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM),
para promover no âmbito nacional as políticas de eliminação da discriminação
contra a mulher. O Conselho foi inicialmente vinculado ao Ministério da Justiça
e hoje permanece vinculado à Secretaria de Políticas para Mulheres. Nesse pri-
meiro Conselho nacional, Lélia Gonzalez participou como conselheira de 1985
a 1989. Em 1988, se estruturou dentro desse Conselho uma Coordenação do
Programa da Mulher Negra sob a coordenação de Sueli Carneiro (RIBEIRO,
1995; SCHUMAHER, 2006). Em 2002, pela primeira vez uma mulher indígena
formou parte do CNDM.
A entrada de mulheres negras dentro de instâncias de governo se dá em
variados âmbitos, na saúde, na educação, na cultura, e em órgãos de combate ao
racismo e à discriminação racial, entre outros (SCHUMAHER, 2006).
Nesse processo de institucionalização das demandas feministas e de bus-
ca de inserção, as mulheres negras foram conquistando espaço, o que favoreceu
também a preparação das mulheres negras para participar de conferências e en-
contros internacionais. No processo da III Conferência Mundial das Mulheres
Nairobi, 1985, o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo prepa-
rou um diagnóstico sobre a situação da mulher no Brasil, que incluiu o estudo
“Mulher negra: política governamental e a mulher” de autoria de Sueli Carneiro
e Thereza Santos, referência sobre a questão da mulher negra (CARNEIRO, 1993;
RIBEIRO, 1995).

11   Cf. Sueli Carneiro (1950-). In: Mulher: 500 anos atrás dos panos. Disponível em: http://www.
mulher500.org.br/sueli-carneiro-1950/

184
Por sua parte, os encontros internacionais propiciaram o encontro das mu-
lheres negras brasileiras com mulheres negras de outros países, e a consequente
constatação da proximidade da sua realidade de enfrentamento ao racismo e ao
sexismo, mas também a necessidade de fortalecer espaços de ação conjuntos. No
III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado em Bertioga
(SP), participaram 850 mulheres, das quais 116 se declararam negras e mestiças.
Desse encontro resultou a constatação de um certo “traço comum” na realida-
de das mulheres negras latino-americanas e na dificuldade de encontrar espaços
de articulação específicos de mulheres negras, além da dificuldade da articulação
com mulheres brancas.
Esse debate sobre o feminismo e as questões de raça estava, portanto, acon-
tecendo para dentro e para fora das fronteiras nacionais e ambos os espaços, in-
ternacional e nacional, se nutriam dos debates. A discussão que teve lugar em
Bertioga, no contexto de um encontro latino-americano, prosseguiu para os en-
contros feministas nacionais no Brasil. Nesse sentido:

O IX Encontro Nacional Feminista (ENF) ocorrido em 1987 em Garanhus/


PE foi mesclado por fortes pressões e críticas das mulheres negras em re-
lação à ausência da questão racial na pauta. A partir de um intenso deba-
te as mulheres negras decidiram pela realização do Encontro Nacional de
Mulheres Negras (RIBEIRO, 1995, p. 449).

Então, o I Encontro Nacional de Mulheres Negras aconteceu em Valença


(RJ) em 1988. Matilde Ribeiro (1995) lembra que esse encontro foi severamente
criticado, tanto por setores do movimento negro, quanto do movimento femi-
nista, por entender que se produziria uma divisão no âmbito interno desses mo-
vimentos. No entanto, esse primeiro encontro representou a construção de um
novo movimento social com reivindicações próprias, sendo ainda apoiado tanto
na luta feminista quanto na luta antirracista. Proliferaram os encontros de mulhe-
res negras:

Assistimos em 1988 a uma ampla mobilização de mulheres negras em tor-


no de suas questões específicas consubstanciadas nos diversos Encontros
Estaduais de Mulheres Negras, realizados em estados como: Bahia, São
Paulo, Minas Gerais, Espírito Santos, Goiás, Maranhão, Paraná, Rio de
Janeiro e Distrito Federal, sendo que onde não foi possível a realização de
encontros estaduais ocorreram outras iniciativas sobre a questão da mulher
negra na forma de debates, seminários, jornadas etc., como foi o caso do
Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Sergipe, Pará, Paraíba, Alagoas e
Amazonas. (CARNEIRO, 1993, p. 13).

185
Mas, na avaliação de Sueli Carneiro (1993), o centenário da abolição formal
da escravatura contribuiu de maneira crucial para a conformação de um movi-
mento de mulheres negras. As articulações para a contestação da comemoração
do centenário da abolição da escravatura e a denúncia contra o racismo e a desi-
gualdade racial, ainda imperantes no Brasil, levaram a uma grande mobilização
de toda a militância negra, incluindo as mulheres negras, que viram também uma
oportunidade para se articular e apresentar reivindicações específicas:

[...] o Centenário da Abolição constituiu-se principalmente no momento


político propício para as mulheres negras expressarem com maior visibili-
dade um processo que vem sendo gestado há alguns anos, que é a sua cres-
cente mobilização e organização na defesa de seus interesses específicos, o
que é resultado da ação política de diversos grupos autônomos e institucio-
nais, como o Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo, o Nzinga Coletivo
de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, o Coletivo de Mulheres Negras da
Baixada Santista, a Casa Dandara de Belo Horizonte, o Grupo Mãe Andresa
do Centro de Cultura Negra do Maranhão, o Grupo de Mulheres Negras
do Cedenpa – Centro de Defesa do Negro do Pará, os grupos de mulheres
do Movimento Negro Unificado, as mulheres das Comissões de Negro do
PT, a Comissão de Mulheres Negras do Conselho Estadual da Condição
Feminina de São Paulo, o Programa da Mulher Negra do Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher, as Conselheiras Negras dos diversos Conselhos
da Mulher e Conselhos do Negro, e mulheres negras dos Movimentos de
Favelas do Rio de Janeiro. No interior dessas entidades, comissões ou gru-
pos, vêm sendo construído um movimento específico, cuja originalidade
reside no fato de ele surgir determinado pela ação política de dois outros
movimentos sociais, o Movimento Negro e o Movimento Feminista, e bus-
car redefinir a ação política desses dois movimentos em função da especifi-
cidade que o inspira: o ser negra. (CARNEIRO, 1993, p. 13).

Enquanto as mulheres negras emergem como um sujeito político, isso não


quer dizer que deixaram de participar do movimento negro ou do movimento
feminista; em alguns casos criaram grupos de mulheres dentro de organizações
mistas da luta antirracista, como foi o caso já mencionado do MNU da Bahia
ou da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen); em outros criaram
Organizações Não Governamentais (ONGs) de mulheres negras, como foi o
caso do Geledés12 (1998), da Casa de Cultura da Mulher Negra no Estado de São
Paulo nos anos 1980; do Criola13 (Rio de Janeiro, 1992) e da ONG Maria Mulher
(Rio Grande do Sul, 1987); e ainda mulheres negras permanecem ligadas a mo-
vimentos feministas e de mulheres e participam dos encontros feministas e das

12   www.geledes.org.br.
13   www.criola.org.br.

186
recém-criadas instâncias consultivas de formulação de políticas públicas contra a
discriminação de gênero.
Essa dupla militância exige também, na perspectiva de Suely Carneiro
(1993), uma certa autonomia do movimento de mulheres negras, para poder dia-
logar em termos de igualdade com o movimento negro e com o movimento femi-
nista.14 Essa busca de um referencial próprio se reflete na realização de encontros
nacionais e estaduais de mulheres negras. Dentre os encontros nacionais, Benilda
Brito (1997) elenca os seguintes:

Quadro 1. Listagem dos Encontros Nacionais de Mulheres Negras


Encontro Lugar, ano Participantes
450 participantes de
I Encontro Nacional de Mulheres Negras Valença/RJ, 1988
17 estados.
430 participantes de
II Encontro Nacional de Mulheres Negras Salvador/BA, 1991
17 estados
Seminário Nacional Políticas e Direitos Itapecerica da Serra/ 55 participantes de
Reprodutivos das Mulheres Negras SP, 1994 14 estados.
48 participantes de
I Seminário Nacional de Mulheres Negras Atiabia/SP, 1993
9 estados.
II Seminário Nacional de Mulheres Negras Salvador/BA, 1994 67 participantes
Campinas, 18 e 19 de 58 participantes de
Reunião Nacional de Mulheres Negras
abril de 1997 13 estados
Belo Horizonte/ MG,
III Encontro Nacional de Mulheres Negras
2001
I Encontro Nacional de Negras Jovens
Salvador, 2009 200 participantes
Feministas
I Marcha Nacional das Mulheres Negras
Brasília, 13 de maio de
contra o Racismo e a Violência e pelo Bem 50 mil participantes
2015
Viver
II Encontro Nacional de Negras Jovens Capela do Alto/SP,
280 participantes
Feministas setembro de 2017
Encontro do Fórum Nacional de Mulheres Bahia, 14-15 de março
Negras/FSM 2018 de 2018
I Encontro Nacional de Mulheres Negras
Goiânia, dezembro
30 anos: contra o racismo e a violência e
2018*
pelo bem viver
Fonte: BRITO,1997 e elaboração própria.
* Quando do encerramento deste capítulo as organizações de mulheres negras do Brasil se encontra-
vam em reuniões preparatórias para a realização deste encontro programado para dezembro de 2018.

14   Vale dizer que teve muita discussão em torno de qual seria o melhor caminho para a militância
das mulheres negras, se no movimento negro, se no movimento feminista, se em organizações exclu-
sivas de mulheres negras. Ver: Carneiro, 1993.

187
Também faz parte das estratégias a ação do movimento de mulheres negras
para ocupar os espaços transnacionais. Enquanto um setor do movimento de mu-
lheres negras se mantém próximo das organizações de base, outro, como vimos,
se organiza na forma de ONGs com as vantagens que isso oferece em termos de
acesso a recursos de organismos internacionais, e também com relação à certa
profissionalização e maior espaço de interlocução governamental, que as organi-
zações de base e as associações de voluntariado não tinham.
Com essa intervenção internacional, as mulheres negras ganharam um
novo fórum para levar as suas demandas, e essas demandas ganharam maior le-
gitimidade frente aos governos nacionais, principalmente, a partir dos acordos e
planos de ação, resultados das Conferências Mundiais da ONU. Com relação à
articulação com outros movimentos, a ação transnacional também trouxe alguns
ganhos: a articulação com outras mulheres negras da região, com foi o caso do III
Encontro feminista Latino-Americano e do Caribe (já mencionado); a conforma-
ção de redes de articulação de mulheres negras; ações conjuntas com feministas
brancas para alcançar objetivos específicos da agenda de luta das mulheres negras
e a articulação com outros movimentos antirracistas na região, além de uma legi-
timidade para as suas demandas.
Com relação à articulação referente das redes de mulheres negras na re-
gião, em 1992 foi conformada a “Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e
Caribenhas” como um espaço de articulação e empoderamento das mulheres
afrodescendentes para a construção e reconhecimento de sociedades democráti-
cas, equitativas, justas, multiculturais, livres de racismo, de discriminação racial,
sexismo e de exclusão, e promoção da interculturalidade.15 A ideia de conformar
uma articulação internacional de mulheres afrodescendentes surgiu em 1986, no
III Encontro Continental de Mulheres realizado em Cuba, com o objetivo de im-
pulsionar uma política antirracista e antissexista na região; várias mulheres negras
propuseram que se incluísse na agenda de discussão a problemática das mulheres
negras na América Latina. Em 1990, no V Encontro Feminista de América Latina
e o Caribe, realizado na Colômbia, se concretizou a ideia, e em 1992 se confor-
mou a Rede na República Dominicana, com a participação de 400 mulheres dos
33 países da região. Em 1996, se realizou, na Costa Rica, o segundo encontro da
Rede e nele participaram pelo Brasil: Joana Angélica de Souza, Lucimar Alves e
Edenice Santana de Jesus.
No marco da realização da III Conferência Mundial contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Formas de Intolerância Conexa, realizada em
Durban, África do Sul, em 2001, as mulheres negras criaram, em setembro de

15   http://www.mujeresafro.org.

188
2000, a “Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras” (AMNB)
para articular as ações de preparação e as reivindicações que seriam colocadas na
conferência de Durban. Essa articulação foi coordenada pela ONG Criola – orga-
nização de mulheres negras do Rio de Janeiro –, o Geledés – Instituto da Mulher
Negra de São Paulo – e pela ONG Maria Mulher, do Rio Grande do Sul, e foi su-
mamente importante para garantir a presença das mulheres negras organizadas na
Conferência Mundial contra o Racismo.16 É interessante salientar, como exemplo
da força da participação das mulheres negras em Durban, que Edna Roland, per-
tencente à organização negra Fala Preta, foi escolhida como relatora oficial da
Conferência Mundial contra o Racismo.

Após a Conferência, a AMNB passa a se dedicar ao monitoramento das


recomendações e do Plano de Ação e a formulação de estratégias de desen-
volvimento inclusivo para o Brasil, centradas na proteção e na promoção
dos direitos; na geração de oportunidades no mundo do trabalho na cidade
e no campo; na igualdade de tratamento na vida e no respeito à diversidade
humana, sem racismo, sexismo, lesbofobia ou classismo, seja para o Brasil
ou para a América Latina.17

Entre finais dos anos 1990 e princípio dos anos 2000, Sueli Carneiro (2002,
p. 211) observa um “novo estágio de relacionamento entre mulheres negras e
brancas no Brasil, sinalizando o aumento da cumplicidade e da colaboração na
luta antirracista e antissexista”. Enquanto as mulheres negras levam a suas pau-
tas produto de lutas para dentro do movimento feminista, o movimento femi-
nista tem que se resolver com essas pautas, produzindo, como relatam Oliveira e
Sant’anna (2002), um misto de constrangimento, culpa e obrigação.
Mesmo que as mulheres negras já tivessem estabelecido o debate racial
dentro dos espaços de organização feminista pelo menos desde os anos 1980, es-
sas abordagens só começaram a ser incorporadas à prática do movimento femi-
nista brasileiro ao longo da preparação das Conferências de Beijing e Beijing + 5.
Essa introdução ao debate da questão racial para o movimento de mulheres
cobrava um posicionamento com relação aos efeitos do racismo e a discriminação
racial no Brasil:

A omissão foi, e continua sendo, constantemente denunciada como uma


prática que não contribui para a satisfação dos interesses e necessidades das

16   A revista Estudos Feministas dedicou o nº 1 de 2002 a um dossiê de artigos sobre a participação
das mulheres negras na Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e as formas de Intole-
rância Conexas.
17   https://amnbnasconferencias.wordpress.com/quem-somos/.

189
mulheres negras e que, mais grave, acaba se transformando em uma prática
de conivência com as atitudes preconceituosas, discriminatórias e racistas.
Ou seja, denunciada como uma vivência francamente contrária ao ideal de
defesa dos direitos das mulheres apregoado pelo movimento de mulheres e
feminista. (OLIVEIRA; SANT’ANNA, 2002, p. 202).

O posicionamento das ativistas feministas em apoio à luta das mulheres


negras, contra a prática da esterilização forçada, por exemplo, rendeu a Lei nº
209/1991 (Carneiro, 2003b). Assim mesmo, as feministas se uniram às mulhe-
res negras para manter o termo “étnico-racial” do artigo 32 das resoluções da
Conferência Mundial da Mulher celebrada em Beijing em 1995, e assim “fazer
uma referência explícita à opressão sofrida por um contingente significativo de
mulheres em função da origem étnica ou racial” (CARNEIRO, 2003a), uma vez
que o G-77 fez pressão para se tentar retirar o termo.
Algumas autoras coincidem na análise de que o momento mais importante
de reconhecimento das pautas das mulheres negras pelo feminismo nacional e
também de possibilidade de construção de uma agenda política que coloca no
centro a interseccionalidade das discriminações de gênero e raça foi o processo
preparatório para a Conferência de Durban.18
Guacira Cesar de Oliveira e Wânia Sant’anna (2002) analisam a participa-
ção da Associação de Mulheres Brasileiras (AMB) na III Conferência Mundial
contra o Racismo como produto de embates, confrontos e negociações que leva-
ram a uma conscientização sobre a especificidade da opressão das mulheres ne-
gras. Após a explicitação do impacto do racismo na vida das mulheres brasileiras,
ficava evidente a necessidade da AMB se envolver no processo de preparação da
III Conferência Mundial contra o Racismo: “Seria muito difícil imaginar que a
AMB optasse por essa estratégia de atuação sem que, em seu interior, houves-
se mulheres negras forçando uma posição explícita nessa direção. (OLIVEIRA;
SANT’ANNA, 2002, p. 203).
O processo preparatório da Conferência possibilitou a aproximação da
AMB com os movimentos de mulheres negras, mas também com outras organi-
zações do movimento negro e de defesa dos direitos humanos. Segundo Oliveira
e Sant’anna (2002), a Conferência Mundial contra o Racismo permitiu avançar
“na conformação de uma ação coletiva e plural contra o racismo”, mesmo que a
participação majoritariamente foi de grupos vinculados à luta antirracista e teve
grande ausência de outros grupos da sociedade civil (OLIVEIRA; SANT’ANNA,
2002, p. 205).

18   O Jornal da Rede Feminista de Sexualidade e Saúde, que dedicou o número de março de 2001 à
III Conferência contra o Racismo e aborda temas de raça e saúde. A AMB contribuiu na preparação
do documento “Mulheres negras: um retrato da discriminação racial no Brasil”.

190
O protagonismo que as mulheres negras vão ganhando dentro do movi-
mento feminista nacional vai produzindo mudanças nas percepções e nas organi-
zações do movimento feminista brasileiro. É possível perceber isso na introdução
de setoriais específicos dentro das instituições de políticas para mulheres para se
articular e atender às reivindicações das mulheres negras. Mas também fica ma-
nifesto nos enunciados e propostas da Plataforma Política Feminista, proveniente
da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, realizada entre 6 e 7 de junho
de 2002, em Brasília. A Plataforma

reposiciona a luta feminista no Brasil nesse novo milênio, sendo gestada


(como é da natureza feminina) coletivamente por mulheres negras, indíge-
nas, brancas, lésbicas, nortistas, nordestinas, urbanas, rurais, sindicalizadas,
quilombolas, jovens, de terceira idade, portadoras de necessidades espe-
ciais, de diferentes vinculações religiosas e partidárias. [...] (CARNEIRO,
2003b, p. 126).

O documento trazia entre as suas propostas temas que evidenciavam a am-


pliação da categoria mulher; nesse sentido, a primeira proposta é: “reconhecer a
autonomia e a autodeterminação dos movimentos sociais de mulheres” e a di-
versidade de lutas dentro do movimento: a luta antirracista, compromisso com a
igualdade étnico-racial, a luta contra a discriminação por gênero ou identidade
sexual, a luta pela terra e pela moradia, a defesa dos direitos sexuais e reproduti-
vos, entre outras (CARNEIRO, 2003b).
Essa diversidade de mulheres, com assuntos e reivindicações diversos, pro-
duziu mudanças relevantes no feminismo brasileiro. Por um lado, o próprio dis-
curso feminista se diversificou, assumindo para si um amplo leque de assuntos
que interessam à realidade da vida das mulheres brasileiras: questões de classe,
de reforma agrária, moradia, trabalho doméstico passaram a ser parte da agenda
feminista graças ao fato de as mulheres negras o disputarem para si e para o fe-
minismo, se deslocando o sujeito mulher. Por outro lado, os discursos feministas
circularam nos mais diversos espaços de luta dessas mulheres.
As instituições do Executivo Nacional, a Secretaria Especial de Promoção
da Igualdade Racial (Seppir) e a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM)
também se configuraram como importantes espaços de luta e de formulação
de políticas públicas contra o racismo e sexismo para as mulheres negras. A
Seppir foi criada em 21 de março de 2003, Dia Internacional pela Eliminação da
Discriminação Racial. Transformada em Ministério em fevereiro de 2008, esse
mecanismo institucional foi fundamental para a organização das mulheres negras
e para a inclusão, na agenda política, de muitas das suas reivindicações históricas.
Três mulheres negras de conhecida trajetória de luta pelos direitos das mulheres
negras estiveram na chefia da Seppir: Matilde Ribeiro (2003-2008), Luiza Bairros

191
(2011-2014) e Nilma Gomes (2014-2015).
A Seppir participa do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e também
tem um papel importante na formulação de políticas públicas para mulheres ne-
gras e na organização das CNPMs.19 Além disso, a Seppir tem distintos programas
de apoio às organizações das mulheres negras na luta contra o racismo e o sexis-
mo. Talvez uma das ações mais emblemáticas da Seppir seja a desenvolvida para
regulamentar e garantir os direitos às trabalhadoras domésticas, reivindicação que
faz parte das lutas históricas do movimento de mulheres negras. Dentro dessas
ações está o Plano Trabalho Doméstico Cidadão, da cuja elaboração participou
Matilde Ribeiro, então ministra da Seppir. A SPM também desenvolve programas
e ações voltadas para o combate ao racismo e o sexismo, muitas delas em parceria
com a Seppir.
O crescente protagonismo das mulheres negras e a sua inserção nos espaços
de promoção de políticas públicas ficaram evidentes na I Conferência Nacional de
Políticas para Mulheres, organizada pela SPM em 2004. Nessa I Conferência, 44%
das participantes eram mulheres negras.20 Assim, “consolidar a igualdade de gê-
nero e a igualdade racial” é rapidamente enunciado como uma das diretrizes da
política de gênero a ser formulada no Brasil. Essa consciência de enfrentamento
ao racismo e ao sexismo também foi ressaltada pelas mulheres indígenas na I
CNPM. No seu discurso, Dirce Veron, representante do Conselho Nacional das
Mulheres Indígenas no CNDM, fez um chamado:

E eu gostaria aqui, até vou levantar, eu gostaria de pedir mesmo para as


mulheres negras, não querendo deixar as mulheres brancas de lado, mas
para as mulheres negras, nós somos as mais discriminadas nesse país, va-
mos fazer um pacto, vamos nos levantar e vamos nos juntar porque eu acho
que só assim que verdadeiramente as políticas públicas para a mulher vão
ter mudança nesse país. (VERON, 2004, p. 79).

Cientes dos efeitos do racismo patriarcal, mulheres negras e indígenas


firmaram, durante a I CNPM, uma “Aliança de Parentesco”,21 segundo a qual

19   Por exemplo, no dia 25 de julho de 2011 e em celebração ao “Dia da Mulher Negra, Latino-A-
mericana e Caribenha” a Seppir, chefiada pela Ministra Luiza Bairros, realizou uma videoconferência
titulada “Participação da Mulher Negra nas Conferências Nacionais”, que está disponível na íntegra
no Youtube; nela participaram mulheres negras representantes de 16 estados do Brasil em interesse
de avaliar os planos de políticas públicas para mulheres e pensar as propostas de políticas públicas
para mulheres negras na conferência de 2011.
20   Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal – Ibam, dis-
ponível nos Anais da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres.
21   Agradeço a Schuma Schumaher por chamar a minha atenção sobre esse documento. Ver mais
sobre essa carta: <https://www.geledes.org.br/alianca-de-parentesco/>.

192
“Doravante índias e negras consideram-se parentes”. Esse acordo deve ser consi-
derado um marco histórico nas lutas contra o racismo e o sexismo no Brasil. Nele,
mulheres negras e indígenas reconhecem a semelhança da opressão colonial, a
semelhança nos processos de exclusão histórica e a necessidade de reparação por
parte do Estado e decidem se aliar na luta contra o racismo patriarcal e na con-
quista dos seus direitos.
O dia 18 de novembro de 2015, no marco do Dia da Consciência Negra,
mulheres negras e alguns coletivos de mulheres indígenas ocuparam a Esplanada
dos Ministérios em Brasília, na Marcha Nacional das Mulheres Negras Contra o
Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver.
Sendo idealizada pela “Articulação de Organizações de Mulheres Negras
Brasileiras” (AMNB), essa marcha é muito significativa da relevância que o movi-
mento de mulheres negras tem adquirido no Brasil, porque foi uma marcha expli-
citamente convocada por mulheres negras, mas que tinha o intuito de representar
na voz e no corpo das mulheres negras, a luta contra o racismo no Brasil. E de
certa forma, essa marcha subverte uma lógica até então predominante, conside-
rar como geral (de homens e mulheres) as ações protagonizadas no masculino, e
considerar como específicas as ações protagonizadas por mulheres. A Marcha das
Mulheres Negras foi sim uma marcha para visibilizar e denunciar a especificidade
da violência que recai sobre as mulheres negras, mas foi também uma marcha
para denunciar o racismo imperante na sociedade brasileira, contra homens e
mulheres de forma que, por exemplo, a pauta contra o genocídio da juventude
negra foi levantada, e foi também uma marcha para mobilizar os mais variados
setores da sociedade civil na luta contra o racismo.

Já o Bem Viver foi incorporado para sinalizar que acreditamos na necessi-


dade de mudança do chamado “modelo de desenvolvimento”, combatendo,
portanto, a mercantilização-financeirização dos recursos naturais/bens co-
muns, o consumismo exacerbado, o lucro insano, o capitalismo neoliberal,
enfim. (BENTES, NILMA, 2016, p. 9)

É de salientar que durante a realização de Marcha das Mulheres Negras, o


Brasil se encontrava em um clima de crescente instabilidade política com grupos
advogando pela destituição da Presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseauf.
O passo de uma Marcha democrática, antirracista e favorável a valores progressis-
tas, como a Marcha das Mulheres Negras, provocou a ira de manifestantes pró-im-
peachment e pela intervenção militar acampados na Esplanada dos Ministérios.
Com saudações nazistas, manifestações racistas e machistas, e inclusive disparos
esses manifestantes colocaram em risco a vida de mulheres idosas, crianças e jo-
vens que participavam da caminhada, ao tempo que trouxeram a tona uma das

193
principais motivações do seu posicionamento político: frear a caminhada dos
grupos historicamente subalternizados do Brasil, limitar os modestos avanços
conseguidos nos últimos anos de aumento da participação política de mulheres
negras, indígenas, brancas, pobres e da diversidade sexual, entre outros grupos
tradicionalmente marginalizados.
Nesse mesmo ano em outubro, após uma reforma ministerial na tentativa
de garantir a estabilidade política, a SPM e a Seppir haviam perdido seu caráter
ministerial voltando a ser apenas Secretarias, desta vez vinculadas ao recém-cria-
do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, do qual Nilma
Gomes foi nomeada ministra. Em maio de 2016 tem lugar a IV CNPM com uma
importante presença de delegadas negras.
O impacto da participação de mulheres negras, indígenas, quilombolas,
ribeirinhas fica evidente no fato de que raça, etnia e classe social aparecem nas
diretrizes temáticas como se referindo a desigualdades estruturais que devem
ser levadas em consideração para pensar políticas de igualdade de gênero. Desse
modo, se coloca a exigência de promover políticas concretas que efetivem a igual-
dade e equidade de gênero, raça e etnia e a livre orientação sexual desde uma
perspectiva antirracista, que levem em consideração também as especificidades
de ser mulher negra, indígena, quilombola, ribeirinha. Inclusive algumas deman-
das históricas das mulheres negras e indígenas aparecem explicitamente entre as
diretrizes como garantia de direitos trabalhistas para empregadas domésticas, de
direito de terra e moradia, demarcação, homologação e/ou titulação dos terri-
tórios indígenas e quilombolas, para atender às especificidades da violência dos
militares contra mulheres indígenas e ribeirinhas, e o reconhecimento de práticas
tradicionais de saúde indígena e de matriz africana, entre outras.
Em entrevista a Larissa Amorim Borges,22 Creuza Oliveira,23 militante que
participou ativamente na organização das conferências, faz uma avaliação bastan-
te crítica sobre a transformação efetiva dessas reivindicações mulheres em políti-
cas públicas:

22   No marco do Fórum Nacional de Mulheres Negras 2018, minha amiga, militante do movimen-
to negro, doutoranda em psicologia (UFMG) Larissa Amorim Borges se ofereceu a realizar uma série
de entrevistas a mulheres negras que participaram das CNPMs; infelizmente durante o encontro a
notícia do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco obrigou as mulheres negras a
mudar a agenda do evento e iniciar ações de protesto e a demandar justiça pelo assassinato político
de Marielle Franco e contra o genocídio da população negra. Deixo aqui o meu agradecimento a
Creuza de Oliveira, a Iêda Leal de Souza por gentilmente nos conceder a entrevista. E a Larissa Amo-
rim Borges pelo suporte para a realização deste capítulo.
23   Fundadora da Associação das Trabalhadoras Domésticas da Bahia. Presidenta da Federação
Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e membro do Movimento Negro Unificado.

194
A conferência da mulher, a conferência da igualdade racial, todas essas
conferências foram importantes para nós mulheres do movimento negro,
participamos ativamente da comissão para acontecer as conferências, né?
Reivindicamos isso, apresentamos propostas, né? A gente teve coisas im-
portantes, foi discutida a questão da mulher, a questão racial, a questão da
mulher indígena, nem tudo que a gente pôs ali no plano das políticas, nem
tudo foi atendido, nem postas em prática, muitas dessas propostas acaba-
ram ficando só no plano de ação, mas não foi executada como nós mulheres
negras defendemos na conferência de política para as mulheres. Muita coisa
deixou a desejar e hoje vivemos um processo de retrocesso, se a gente teve
dificuldade de conseguir, imagina agora ainda está pior, estamos vendo aí o
retrocesso nas conquistas (Creuza de Oliveira, 2018).

Fica ainda como uma tarefa pendente uma avaliação do impacto das
Conferências na formulação de políticas públicas para mulheres.

Perfil socioeconômico das delegadas negras que participaram


nas CNPMs 2011 e 201624
É importante insistir que no quadro das profundas desigualdades raciais
existentes no continente, se inscreve, e muito bem articulada, a desigualdade
sexual. Trata-se de uma discriminação em dobro para com as mulheres não
brancas da região: as amefricanas e as ameríndias. O duplo caráter da sua
condição biológica – racial e sexual – faz com que elas sejam as mulheres
mais oprimidas e exploradas de uma região de capitalismo patriarcal racista
dependente. Justamente porque este sistema transforma as diferenças em de-
sigualdades, a discriminação que elas sofrem assume um caráter triplo, dada
sua posição de classe, ameríndias e amefricanas fazem parte, na sua gran-
de maioria, do proletariado afro-latino-americano. (GONZALEZ, 1988).

Segundo a Síntese de Indicadores Sociais nº 36 (INSTITUTO BRASILEIRO


DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2016), em 2011, 49,9% da população feminina
no Brasil se declarou preta ou parda, esse percentual foi para 52,7%, em 2015. Nesta
seção, se apresentam alguns dados que compõem o perfil socioeconômico das de-
legadas negras que participaram nas CNPMs 2011 e 2016 em comparação com da-
dos socioeconômicos da população feminina negra do Brasil em 2011 e em 2015,
por ser esse o último ano disponível na Síntese de Indicadores Sociais do IBGE
(2016) e no estudo “Retrato da Desigualdade de Gênero e Raça” do Ipea (2017).
Para a identificação da raça ou cor das mulheres que participaram da pes-
quisa, se respeitou o critério de autodeclaração com um conjunto de respostas

24   Agradeço a minha amiga e colega de doutorado Mariela Rocha pelo apoio no processamento
dos dados e pela leitura cuidadosa desta seção.

195
fechadas coincidentes com a categorização utilizada pelo IBGE: branca, preta,
amarela, parda e indígena, e se incluiu as opções “Não sei/Prefiro não declarar”.
Entre ambas as pesquisas foram entrevistadas 723 delegadas, das quais 661
declararam cor ou raça. Os dados a seguir são analisados a partir dessa base de
respondentes. As respostas das mulheres/delegadas que se declararam pretas e
pardas foram codificadas na categoria negras. A análise a partir da categoria negra
permitirá comparar com os dados de desigualdade racial e de gênero no Brasil, na
mesma forma que apresentados no Relatório da Desigualdade Racial e de Gênero
(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2017).

Qual sua cor/raça?

A distribuição percentual das mulheres delegadas na CNPM de 2011 e na


CNPM de 2016 por cor e raça apresenta uma composição semelhante: a repre-
sentação de mulheres negras delegadas em ambas as Conferências Nacionais é de
quase 60%, quer dizer, daquelas que declararam ser de cor/raça preta ou parda25,
enquanto cerca de 40% das delegadas se declarou de cor/raça branca em ambas as
Conferências. A exceção vem a ser a participação de mulheres indígenas, que caiu
de quase 4% na 3ª CNPM para 2% na 4ª CNPM, como se vê no gráfico a seguir:

Gráfico 1. Qual sua cor/raça?

Em ambas as Conferências, a participação de mulheres negras e indígenas


é superior, em termos percentuais, da distribuição de mulheres negras e indígenas
do Brasil, tendo-se claro como referência a população total feminina (ver Tabela
1). O que é um dado interessante se pensamos sobretudo na sub-representação
histórica de mulheres em geral e ainda mais de mulheres negras e indígenas nos
espaços de representação política.
A análise do perfil das delegadas nas duas últimas CNPMs parece sugerir

25 Em 2011, 99 mulheres se declararam pretas e 98 mulheres se declararam pardas. Em 2016, 98


mulheres se declararam pretas e 90 mulheres se declararam pardas.

196
que o desenho institucional das Conferências tende a ser mais democrático, mais
inclusivo e a representar mais justamente o componente racial da população
brasileira. E coloca a questão de se as Conferências têm produzido padrões de
participação na contramão dos padrões históricos de ocupação de posições de
poder no Estado (seja no Poder Executivo e/ou no Judiciário) e de acesso às ins-
tâncias institucionais de representação por cargos de eleição popular (no Poder
Legislativo), onde homens brancos estão absolutamente sobrerrepresentados.

Tabela 1. Delegadas negras na 3ª e 4ª CNPMs em relação ao total de mulheres negras


no Brasil. Número absoluto (linha superior) e distribuição percentual (linha inferior).
Mulheres negras delegadas
Mulheres negras do Brasil
na Conferência
197 50.891.944
2011
58,6% 49,9%
188 55.613.764
2016/2015
57,8 % 52,7%
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da pesquisa de survey Nepem/SPM e Sínteses
de Indicadores Sociais IBGE, 2016.

Com relação à zona de residência: rural ou urbana, em ambas as CNPMs, a


maior parte das mulheres negras delegadas provinham da área urbana. Contudo,
como se mostra na tabela 2, a distribuição percentual se assemelha muito à distri-
buição percentual de mulheres negras por área rural e urbana no Brasil, com uma
pequena diferença em benefício da representação da população urbana, mas que
estatisticamente não é significativa26.

Tabela 2. Distribuição das delegadas negras por área rural e urbana


na 3ª e 4ª CNPMs em relação à distribuição da população
feminina negra por área rural e urbana no Brasil
Distribuição percentual de mulheres Distribuição percentual de mulheres
Ano
negras área rural negras área urbana
Delegadas Delegadas
Brasil Diferença Brasil Diferença
na CNPM na CNPM
20 8.642.686 176 42.249.258
2011 -6,8 5,8
10,2% 17% 88,8% 83%
2016/ 23 9.508.688 165 46.105.076
-4,8 4,7
2015 12,2% 17% 87,7% 83%
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da pesquisa de survey Nepem/SPM e estudo
“Retrato da Desigualdade de Gênero e Raça” do Ipea, 2017.

26   Ainda em 2016 participaram 4 delegadas de povos quilombolas, 1 delegada de povos ciganos,
1 delegada de comunidades ribeirinhas, 2 delegadas de ocupações e comunidades de resistência ur-
bana, 7 delegadas de povos indígenas e 4 de comunidades rurais e assentamentos de reforma agrária.

197
Outro dado interessante é o de que, enquanto a média de anos de estudo
das mulheres negras de 15 anos ou mais no Brasil é de, aproximadamente, 7 anos
de estudos, mais do que 90% das delegadas negras que participaram nas CNPMs
e que responderam à pergunta sobre o grau de escolaridade se localizam acima
da média. Em 2011, 57% das delegadas negras afirmaram ter ensino superior
completo e em 2015 essa percentagem foi de 55%, como pode ser observado no
Gráfico 2.

Gráfico 2. Escolaridade das delegadas negras na CNPMs 2011 e 201627

Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da pesquisa de survey Nepem/SPM

O relatório “Retrato da Desigualdade de Gênero e Raça” (INSTITUTO DE


PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2017) mostra as desvantagens históricas
das mulheres negras e, especialmente no campo da educação, os indicadores apre-
sentam um diferencial racial: mesmo que a taxa de analfabetismo venha caindo
no Brasil, em 2015, último dado disponível, a taxa de analfabetismo de mulheres
negras foi de 10,2%, enquanto a média nacional foi de apenas 8%. Para se ter uma
ideia do que isso significa em termos de gênero e raça, a taxa de analfabetismo
entre os homens brancos, no mesmo ano, foi de 4,9%.
Evidentemente, os dados de escolaridade das mulheres negras delegadas
das CNPM não refletem o perfil de escolaridade das mulheres negras do Brasil.

27   A parcela da população que não informou anos de estudo não foi considerada para construção
deste gráfico.

198
Contudo, esses dados refletem uma característica que já tem sido relatada com
relação à participação nas Conferências: o perfil da participação apresenta certas
características homogêneas em termos de escolaridade e, mas também em termos
de renda, que diferem do perfil nacional (AVRITZER, 2012).
Ao observar a renda declarada pelas delegadas, percebe-se que a média do
rendimento mensal familiar das mulheres negras delegadas na 3ª Conferência foi
de R$ 4.020,14 e em 2016 foi de R$ 4.567,19.
Como se observa no Gráfico 3, em ambas as Conferências, o Estado foi o
principal empregador das mulheres negras e indígenas, o que também reflete uma
característica da participação nas CNPMs em geral: 52% em 2011 e 38% em 2016
do total de delegadas declararam pertencer ao setor público ou militar. Mesmo
diminuindo a sua participação em 2015, as funcionárias públicas ou militares
continuaram sendo a principal categoria de trabalho remunerado das delegadas
negras. É interessante notar ainda que o setor público seja o principal emprega-
dor; a maioria das mulheres negras delegadas na conferência declarou participar
em representação de setores da sociedade civil (ver Gráfico 6).

Tabela 3. Número de delegadas negras por categoria de trabalho


e distribuição percentual nas 3ª e 4ª CNPMs
2011 2016 Total
Categorias de trabalho N % N % N %
Assalariada registrada 29 18% 26 17% 55 17%
Assalariada sem registro (e sem
11 7% 15 10% 26 8%
carteira de trabalho assinada)
Autônoma regular (paga INSS) sem
1 1% 5 3% 6 2%
curso universitário
Autônoma/fazendo bicos sem curso
2 1% 8 5% 10 3%
universitário
Empresária 1 1% 0 0% 1 0%
Estagiária/Aprendiz remunerada 1 1% 0 0% 1 0%
Funcionária pública ou militar 103 64% 72 46% 175 55%
Outro 3 2% 13 8% 16 5%
Profissional liberal autônoma (com
9 6% 17 11% 26 8%
curso universitário)
Total geral 160 100% 156 100% 316 100%
Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da pesquisa de survey Nepem/SPM

199
Gráfico 3. Categorias de trabalho remunerado a que pertencem
as mulheres negras delegadas na 3ª e 4ª CNPMs

Fonte: Elaboração própria a partir do banco de dados da pesquisa de survey Nepem/SPM

É possível constatar a existência de certas características homogêneas no


perfil da participação nas CNPMs em termos de renda, escolaridade, emprego,
por exemplo. Um desafio, portanto, é garantir que a realidade de baixo grau de
escolaridade e baixa renda não se traduzam em empecilhos à participação de mu-
lheres negras.

Mulheres negras e participação

De acordo com Pogrebinshi (2012, p. 9):

as conferências nacionais propiciam a participação direta de grupos sociais


e culturais que logram ter seus interesses minoritários representados ao vê-
-los convertidos em políticas públicas desafiando, assim, o argumento de
que cidadãos só se podem fazer representados nas instituições políticas in-
dividualmente, por meio de eleições, ou coletivamente, por meio de lobbies
e grupos de interesse.

Pogrebinschi (2012) aponta que a garantia da participação direta dos gru-


pos nas Conferências Nacionais propicia uma representação de interesses mais
justa, uma inclusão real das diferentes perspectivas e uma redefinição da prática
da igualdade política que não teria mais como precondição apenas a homogenei-
zação dos grupos, mas a garantia de participação de negros, negras, indígenas,
mulheres, entre outras coletividades historicamente excluídas:

200
As conferências acionais têm, assim, a habilidade de fazer com que a agre-
gação de preferências individuais resulte, de fato, em escolhas sociais – e,
mais do que isso, ao destronarem o pluralismo pelo multiculturalismo e
transformarem coletividades historicamente excluídas em sujeitos de direi-
to, as conferências nacionais convertem minorias em maiorias, e fazem de
interesses particulares políticas universais. (POGREBINSCHI, 2012, p. 9) .

Mais do que 80% das mulheres delegadas negras que participaram nas 3ª e
4ª CNPMs se consideraram feministas (ver Gráfico 4). Mais de 60% respondeu ser
filiada a algum partido político (ver Gráfico 5). E 65% em 2011 e 52% em 2016 das
delegadas negras que estavam na Conferência o fizeram a partir de representação
de movimento social, sendo que participavam ainda em algum outro movimento
social além do movimento que estavam representando nas CNPMS.

Gráfico 4. Você se considera feminista?

Gráfico 5. Você é filiada a algum partido político?

201
Como mencionado, a origem da participação das mulheres negras na
Conferência é majoritariamente oriunda da sociedade civil, sendo que, em 2011,
53% das participantes declararam representar a sociedade civil e 47% declararam
representação governamental; em 2016 a diferença foi ainda maior, sendo que
a representação da sociedade civil subiu para 65% versus 35% de representação
governamental,28 como é possível observar no gráfico a seguir:

Gráfico 6. Nesta conferência você é delegada representante do governo (federal,


estadual, municipal) ou da sociedade civil (movimentos, redes, sindicatos etc.)?

Considerando apenas as mulheres negras que participaram da 4ª


Conferência por representação de algum setor da sociedade civil, a grande maio-
ria dessas mulheres, como era de se esperar, estava na Conferência em represen-
tação de alguma organização do movimento feminista, que abarcava os mais di-
versos temas de interesse, desde os temas que historicamente ocupam a agenda
feminista, como maternidade, combate à violência contra a mulher, associações
com agendas de luta históricas das mulheres ou organizações das trabalhadoras,
trabalhadoras domésticas, movimentos de reforma urbana, movimentos de favela,
da luta pela terra e direito à moradia, passando por organizações das mulheres
privadas de liberdade, mulheres da economia solidária, mulheres catadoras, mu-
lheres ciganas, do movimento de mulheres negras, do movimento LQBT, mulhe-
res quilombolas.
Aproximadamente 6% das delegadas negras, representantes da sociedade
civil, falaram especificamente que estariam representando alguma organização do
movimento negro na CNPM de 2016.29 Em outra pergunta, indagada a partici-

28   Foram retiradas 2% de respostas nulas para os cálculos.


29   Como delegada(o), qual é a entidade/grupo/organização/rede/setor ou órgão do governo que
você representa?

202
pação em coletivo ou associação do movimento negro, 21% das delegadas negras
responderam que participavam como membros, e 27% falou que participava das
reuniões e atividades do movimento negro. É interessante constatar que 48% das
delegadas negras que participam de movimento feminista também têm alguma
interação com a luta antirracista, seja através de organizações do movimento ne-
gro misto, do movimento de mulheres negras, ou participando de atividades e
encontros, como se vê no gráfico a seguir:

Gráfico 7. Você participa do movimento negro?

No entanto, o Gráfico 7 também mostra que, na mesma pergunta, 83% das


entrevistadas brancas responderam não participar das atividades ou reuniões do
movimento negro. Como entender esse dado?
O movimento negro, assim como o indígena e o LGBTTI, costuma ser
considerado principalmente identitário, mais do que como movimento de luta
por direitos. E, de fato, uma dimensão importante desses movimentos consiste na
produção de espaços de interação onde os grupos possam criar e fortalecer a sua
identidade política e produzir, a partir de perspectivas e lugares de enunciação
semelhantes, referenciais próprios para a sua luta.

203
Isto pode estar explicando a pouca participação como membro de mulhe-
res que não pertençam ao grupo, mas não explica a baixa participação em ativi-
dades e/ou reuniões propostas por esses movimentos. E traz uma questão: se o
movimento de mulheres negras tem construído um caminho de entendimento
teórico e de construção de uma prática política que compreende a imbricação do
racismo e do patriarcado, qual o protagonismo do movimento feminista nacional,
das mulheres não racializadas na construção desse mesmo caminho?

Considerações finais

Coloca-se assim, como desafio da esquerda no século XXI, registrar


as ações das mulheres negras e faveladas que são marcas de conquis-
tas e pigmentações de ações transformadoras, inventivas e potencial-
mente revolucionárias. Disputar o olhar, sentimentos e pensamentos
para um mundo que vive mudanças todo o tempo e situar as ações
existentes das mulheres negras, nesses territórios, superando em
suas vidas o impacto do racismo institucional, é uma ação estraté-
gica para esquerda no contemporâneo e ganha ênfase no cenário do
golpe imposto no Brasil.
Marielle Franco, 2017.

A grande participação de mulheres negras nas 3ª e 4ª CNPMs nos diz sobre


a necessidade de se instituir uma agenda de defesa dos direitos das mulheres e de
elaboração de políticas contra a discriminação que levem em consideração a in-
terseccionalidade de gênero e raça. As Conferências como espaços de deliberação
e de exposição das mais diversas demandas acolhem uma enorme diversidade de
assuntos e reivindicações das mulheres, o que reflete os diferentes posicionamen-
tos sociais e a diversidade das perspectivas delas.
Mesmo tendo observado que a análise do perfil das delegadas nas duas úl-
timas CNPMs nos parece sugerir que o desenho institucional das Conferências
tendeu a ser mais democrático, mais inclusivo e a representar mais justamente o
componente racial da população brasileira, importa salientar que ainda existem
desafios gigantescos para romper com certas características homogêneas no perfil
da participação em termos de renda e escolaridade: são as mulheres negras mais
escolarizadas e com renda acima da média as que mais participaram nos dois
processos deliberativos. Quase a totalidade das mulheres negras que participaram
das CNPMs de 2011 e 2016 têm ensino médio completo, e sabemos que essa não
é a realidade da população de mulheres negras do Brasil. Portanto, esses dados
podem estar revelando a dificuldade de as mulheres com menor escolaridade e

204
menor renda virem a participar, de fato, do processo das Conferências (munici-
pais e estaduais) e de serem, afinal, eleitas delegadas nacionais para as CNPMs.
Neste capítulo quisemos focar no protagonismo das mulheres negras nas
lutas feministas e antirracistas. Contudo, não podemos ignorar que, em contextos
de governos mais permeáveis a reconhecer a necessidade de garantir a participa-
ção de grupos sociais historicamente vulnerabilizados, e mais permeáveis a reco-
nhecer a legitimidade das suas demandas, se abrem oportunidades de inserir essas
demandas dentro do Estado e as traduzir em políticas públicas. Esse contexto
parece estar mudando no Brasil.
A 4ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres coincidiu com o afas-
tamento da presidenta legitimamente eleita, Dilma Rousseff. Quem esteve presente
pôde constatar que um clima de instabilidade e desconcerto frente à possibilidade
de retrocesso que se instaurou nos espaços da Conferência. Essa desconfiança se
tornou ainda mais forte após o primeiro gabinete ministerial do governo interino
ser conformado sem a participação de mulheres negras, ou indígenas, ou bran-
cas, ou homens negros. É impossível não apontar a ironia, às vésperas do dia 13
de maio, dia da abolição formal da escravatura, e que o Movimento Negro tem
ressignificado como de combate ao racismo, de assistirmos, no Brasil, à ausência
absoluta de negros e negras na equipe ministerial e à diminuição do Ministério
das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, primei-
ra medida no novo governo.30
Ainda que as competências em matéria de igualdade racial e direitos das
mulheres formalmente tenham sido permanecidas no Ministério de Justiça e
Cidadania, o sentimento de perda de direitos na decisão de realocar tão impor-
tante Ministério foi muito grande. Em fevereiro de 2017 foi recriado o Ministério
dos Direitos Humanos, sem referência explícita às mulheres, ou à luta pela igual-
dade racial, mas a Seppir passa a fazer parte da estrutura organizativa desse mi-
nistério, enquanto a SPM volta a ser uma secretaria da Presidência da República.
Torna-se indispensável investigar os efeitos dessas mudanças para as políticas de
igualdade racial e de gênero no Brasil.
Após décadas de militância e a experiência de participação contida nas
Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, infelizmente, as reivindica-
ções históricas das mulheres negras continuam vigentes. A luta contra o racismo
patriarcal e suas consequências na vida das mulheres negras continua vigente. O
Estado brasileiro continua em dívida em sua obrigação de garantir o direito à vida

30   Ver Medida Provisória nº 726, de 12 de maio de 2016. Presidência da República. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/mpv/mpv726.htm>. Acesso em:
jan. 2018.

205
à população negra, vide os altos índices de homicídios contra a essa população
que nos fazem falar de genocídio da juventude negra, os altos índices de encarce-
ramento, violência policial, os altos números de feminicídios que afetam as mu-
lheres negras, as limitações em acesso a bens econômicos, emprego, salário justo,
o risco de perda de direitos trabalhistas, a sub-representação das mulheres negras
nos espaços de poder político, o racismo contínua limitando o acesso à saúde, as
mulheres negras continuam a enfrentar violência obstétrica.

Com a falácia da narrativa de “crise econômica”, busca-se derrubar os direi-


tos conquistados e, uma vez feito, serão as mulheres negras e pobres, mo-
radoras das periferias, principalmente das favelas, que estarão ainda mais
vulneráveis à violência e ao racismo institucional impregnado nos poros da
formação social brasileira (FRANCO, 2017, p. 94).

A acertada análise acima é de Marielle Franco (2017), vereadora do Rio de


Janeiro, assassinada no dia 15 de março de 2018. Mulher, negra, feminista, lésbica
e favelada, seu mandato e seus projetos se caracterizaram pela luta antirracista,
pela centralidade do feminismo, da luta pelos direitos da população LGBT, do
direito à cidade, e principalmente da garantia dos direitos nas favelas em um pe-
ríodo marcado por intervenção militar. No dia do seu assassinato, o movimento
de mulheres negras celebrava a reunião do Fórum de Mulheres Negras no marco
do Fórum Social Mundial. O tema desse ano foi a avaliação dos trinta anos do
primeiro encontro de mulheres negras.
De forma vergonhosa, para o Estado brasileiro, a luta das mulheres negras
e indígenas em 2018 continua sendo uma luta por sobrevivência.
Queremos finalizar com as palavras de Creuza de Oliveira, que, no marco
da avaliação dos trinta anos do movimento de mulheres negras, reconhece a im-
portância da liderança das mulheres negras para a sociedade brasileira e para o
mundo, e a ainda afirma que:

A gente sempre se organizou. As poucas políticas que conquistamos foi


através da nossa luta e agora, nesse momento, as mulheres continuam se
organizando [...] a gente não vai desistir, mesmo com esse retrocesso a gen-
te vai continuar lutando [...] nós que sustentamos essa sociedade [...] não
aceitamos nenhum retrocesso, não aceitamos nenhum direito a menos, a
gente quer é direito a mais e não a menos, então a luta continua (Creuza de
Oliveira, 2018).

206
Referências

ARAÚJO, Clara, Partidos políticos e gênero: mediações nas rotas de ingresso das mulheres
na representação política. Revista de Sociologia e Política, jun. 2005.: Disponível
em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=23802413>. Acesso em: jan. 2018.
AVRITZER, Leonardo. Conferências nacionais: ampliando e redefinindo os padrões de
participação social no Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
2012. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/1137>. Acesso
em: jan. 2018.
BAIRROS, Luiza. Nossos feminismos revisitados. Estudos feministas UERJ, v. 3, n. 2, p.
458-463, 1995.
BENTES, Nilma. Marcha das Mulheres Negras. In: FERREIRA, Cláudia (Coord.). Marcha
das Mulheres Negras. Articulação de Mulheres Negras Brasileiras, Brasília, 2015.
BORGES, Larissa; MAYORGA, Cláudia. Juventude negra: memorias de lutas e conquistas
políticas. In: RIBEIRO, Matilde (Org.). As políticas de igualdade racial: reflexões e
perspectivas. São Paulo, Editora Perseu Abramo, 2012.
BRITO, Benilda. Sociedade: mulher, negra e pobre: a tripla discriminação. Teoria e
Debate, n. 36, out. nov. dez. 1997. Disponível em: <http://csbh.fpabramo.org.br/o-
que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/sociedade-mulher-negra-
e-pobre-tripla-discr>. Acesso em: jan. 2018.
CARDOSO, Cláudia. Lesbianidade negra em debate: as falas de ativistas negras brasileiras.
III seminário internacional enlaçando sexualidades. Universidade do Estado da
Bahia, Salvador, 15-17 de maio 2013
CARNEIRO, Sueli. A Organização Nacional das Mulheres Negras e as Perspectivas
Políticas. In: GELEDÉS. Caderno IV. Edição comemorativa de 23 anos. Nov. 1993.
p. 13-18.
______. A Batalha de Durban. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 209, jan.
2002. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/
S0104-026X2002000100014/8779>. Acesso em: jan. 2018.
______. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir
de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS;
TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano
Editora, 2003a.
______. Mulheres em movimento. Estud. av., São Paulo, v. 17, n. 49, p. 117-133, dez. 2003b.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142003000300008&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: jan. 2018.
______. Sueli Carneiro (1950-). In: Mulher: 500 anos atrás dos panos. Disponível em.
http://www.mulher500.org.br/sueli-carneiro-1950/.

207
FERREIRA, Claudia (Coord.). Marcha das Mulheres Negras. E-book, 2015. Disponível
em: <http://www.amnb.org.br/arquivos/uploads/e-bookMMnegras200916.pdf>.
Acesso em: jan. 2018.
FRANCO, Marielle. A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente
à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra
e favelada. In: BUENO, Winnie et al. Tem saída?. Ensaios críticos sobre o Brasil.
Porto Alegre: Zouk, 2017.
GONZALEZ, Lélia. O Movimento Negro na última década. In: GONZALEZ, Lélia;
HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Editora Marco Zero Limitada. Rio de
Janeiro, 1982.
______. Racismo e sexismo na sociedade brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. Anpocs,
p. 223-244, 1984.

______. Por Un Feminismo Afrolatinoamericano. In: Isis Internacional & MUDAR –
Mujeres por un Desarrollo Alternativo. Mujeres. crisis y movimiento. América
Latina y el Caribe. Ediciones de las Mujeres, n. 9, 1988.
KAMBIWÁ, Avelin Buniacá. Palestra no Projeto Encontro Com da PUC Minas, 2017.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=in72ihOHEdg>. Acesso em:
jan. 2018.
LIMA, Márcia. Desigualdades raciais e políticas públicas: ações afirmativas no governo
Lula. Novos Estudos CEBRAP, n. 87, São Paulo, jul. 2010.
MOURA, Joana T. Vaz de; SILVA, Jenair A.; GOMES, Sandra C. As articulações do
movimento negro na I Conferência Nacional de Políticas Públicas de Juventude:
estratégias de atuação da sociedade civil em arenas participativas. Revista Brasileira
de Políticas Públicas e Internacionais, v. 2, n. 1, p. 62-81, jul. 2017.
OLIVEIRA, Guacira Cesar de; SANT’ANNA, Wânia. Chega de saudade, a realidade
é que....  Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 199, jan. 2002.
Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-
026X2002000100013/8776>. Acesso em: jan. 2018.
PEREIRA, Juliano G. Resistência: considerações sobre a trajetória política de jovens
negros no século XXI. Colóquio Int. Cultural Jovens Afro-Bras. Am., Encontros e
Desencontros abr. 2012.
PETRUCCELLI, José Luis. Raça, identidade, identificação: abordagem histórica conceitual.
2013 In: ______; SABOIA, Ana Lucia (Orgs.). Características étnico-raciais da
população: classificações e identidades. Rio de Janeiro, 2013.
PINTO, Ana; FREITAS, Felipe. Luiza Bairros: uma “bem lembrada” entre nós 1953-2016.
Afro-Ásia, 55., p. 215-276, 2017.
POGREBINSCHI, Thamy. Conferências nacionais e políticas públicas para grupos
minoritários. Texto para Discussão, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), n. 1741, 2012.

208
RIBEIRO, Matilde. Mulheres Negras Brasileiras de Bertioga a Beijing. Estudos Feministas,
Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 446, jan. 1995. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.
br/index.php/ref/article/view/16459>. Acesso em: jan. 2018.
RODRIGUES; Cristiano; PRADO, Marco. Movimento de mulheres negras: trajetória
política, práticas mobilizatórias e articulações com o Estado brasileiro. Psicologia
& Sociedade; 22 (3), p. 445-456, 2010.
SCHUMAHER, Schuma. Mulheres negras em movimento: um breve panorama das
últimas décadas. In: ______; VITAL BRAZIL, Érico. Mulheres negras do Brasil.
REDEH, Rede de Desenvolvimento Humano, 2006. 496p.
______. Branquitude para além do incômodo. 13 jul. 2017. Disponível em: <https://
partidanet.wordpress.com/2017/06/13/branquitude-para-alem-do-incomodo/>.
Acesso em: jan. 2018.
VERON, Dirce. Palestra do dia 16 de julho de 2004. In: Brasil. Presidência da República.
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. I Conferência Nacional de
Políticas para Mulheres: Anais – Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as
Mulheres, Brasília, 2004.
WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e
estratégias políticas contra o sexismo e o racismo. Revista da Associação Brasileira
de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S.l.], v. 1, n. 1, p. 7-17, jun. 2010. Disponível
em: <http://abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/article/view/303>.
Acesso em: jan. 2018.

Matérias de Jornal
HOMENS brancos representam 80% dos eleitos para a Câmara. Portal da Câmara
de Deputados. Brasília, 29 jan. 2015. Disponível em: <http://www2.camara.
leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/475684-HOMENS-BRANCOS-
REPRESENTAM-71-DOS-ELEITOS-PARA-A-CAMARA.html>. Acesso em: jan.
2018.
INSTALADO o conselho nacional das mulheres negras. Quilombo, Rio de Janeiro, mar/
abr. 1950. Escreve a mulher, n. 9, p. 4.
NASCIMENTO, Maria. O conselho nacional das mulheres negras. Quilombo, Rio de
Janeiro, mar/abr. 1950c. Escreve a mulher, n. 7/8, p. 5.
SUB-REPRESENTAÇÃO feminina no Legislativo é criticada em seminário. Senado
Notícias, 14 dez. 2016. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/
materias/2016/12/14/sub-representacao-feminina-no-legislativo-e-criticada-em-
seminario>. Acesso em: jan. 2018.

209
Fontes oficiais
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Síntese de Indicadores
Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro:
IBGE, 2016.
______. Estatísticas de gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Estudos e
Pesquisas. Informação demográfica e socioeconômica. N 38, 2018.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Retrato das desigualdades de
gênero e raça: 20 anos. Ipea, 2017.

Entrevistas
OLIVEIRA, Creuza. Entrevistada por Larissa Borges durante o Fórum Nacional de
Mulheres Negras 2018, Salvador, 14 de março de 2018.

210
O debate sobre legalização do aborto e a
inclusão de diferenças nas 3ª e 4ª Conferências
Nacionais de Políticas para Mulheres:
direito ao corpo e feminismos jovens
Laura Martello1

Introdução

O golpe de Estado consolidado em 2016 (GERALDES et al., 2016; SOUZA,


2016) que retirou do poder a primeira presidenta eleita no Brasil faz parte de uma
reação orquestrada por setores conservadores contra avanços conquistados nos
últimos anos pelos movimentos feministas, negro e LGBT, especialmente no cam-
po dos direitos sexuais e reprodutivos. Os avanços institucionais nesse sentido
foram muito modestos, devido à composição majoritariamente conservadora do
Congresso Nacional, mas nos planos social e político mais amplos é perceptível
que houve uma grande difusão das ideias feministas. Essa difusão pode ser per-
cebida pela efervescência de manifestações, mobilizações e intensa presença do
debate feminista e de gênero nas ruas, nos ambientes de trabalho, nas famílias, nas
escolas e universidades, na mídia e nos mais diversos âmbitos políticos e públicos.
A ofensiva conservadora mostra sua articulação em torno do controle so-
bre o corpo da mulheres, da sexualidade, das normas de gênero e se encontra
presente nos mais diferentes níveis, fortalecendo um discurso antifeminista em
todos os âmbitos da vida cotidiana e, especialmente, nos espaços de maior poder
político. Mulheres jovens, idosas, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, ne-
gras, ciganas, indígenas, deficientes e encarceradas têm sentido na pele essa rea-
ção violenta, mas têm também resistido firmemente e mostrado sua força, através
de formas irreverentes e criativas, que expressam a amplitude que os feminismos
jovens conquistaram e como as trocas intergeracionais também permitem maior
comunicação entre mulheres de várias idades, de distintos pertencimentos étnico-
-raciais, diferentes origens de classe e profissões.
As manifestações do “Fora Cunha” (contra o então presidente da Câmara
que impulsionou diversos projetos de lei contrários aos direitos das mulheres,

1   Doutoranda em Ciência Política na UFMG.

211
incluindo um projeto que restringia ainda mais os casos de aborto legal, que é
descrito também no Capítulo 1 deste volume, por Schuma Schumaher), contra a
violência sexual e contra o feminicídio foram as mais numerosas das últimas dé-
cadas. Tais mobilizações nos mostram que, ao contrário da suposta apatia frente
à ofensiva política da direita no Brasil, as mulheres se encontram, mais do que
nunca, organizadas, apoiando-se nos seus espaços cotidianos e articulando-se nos
planos local e translocal (ALVAREZ, 2014) latino-americanos. A pouca reverbe-
ração de tais ações no âmbito do Estado e da mídia se dá às custas de muita re-
pressão policial e de violência econômica e simbólica.
Um dos momentos mais emblemáticos do golpe parlamentar ocorreu, jus-
tamente, durante a 4a Conferência Nacional de Política para Mulheres: a votação
sobre a admissibilidade do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff
no Senado Federal. Um dia após a participação de Dilma na abertura do evento,
onde foi emotivamente aclamada pelas delegadas, grande parte das mesmas aban-
donou as atividades em curso nos grupos de trabalho, pois se sentiram instadas a
tomar ação frente ao que estava ocorrendo: sendo retirado o governo que possi-
bilitou a consolidação das políticas participativas e construiu uma estrutura ins-
titucional de Promoção de Políticas para Mulheres sem precedentes na América
Latina, provavelmente as deliberações que debatiam não iriam se efetivar.
Mobilizadas por tambores e cantos seguiram em direção à Esplanada dos
Ministérios: mulheres jovens, idosas, adultas, crianças, negras, brancas, indígenas,
quilombolas, de povos tradicionais, de comunidades de terreiros, lésbicas, hete-
rossexuais, bissexuais, travestis, transexuais, professoras, gestoras públicas, co-
merciantes, donas de casa de todas as regiões do Brasil, em defesa dos direitos das
mulheres e, sobretudo, do direito de manter o mandato da presidenta legitima-
mente eleita. Chegando lá, mesmo com quilômetros de barreiras físicas e policiais
que garantiam a distância do Congresso Nacional, foram recebidas pela polícia
com bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, elementos que não foram
utilizados com os grupos pró-Golpe, estes últimos vestidos de verde e amarelo,
que se encontravam do outro lado da esplanada. A violência policial dispersou a
manifestação e causou grande mal-estar físico e psicológico nas mulheres presen-
tes, especialmente nas mais idosas.
Nos dias seguintes, com a admissão do processo de impeachment pela
Câmara, a presidenta foi afastada por 180 dias e tomou posse o então vice-presi-
dente, Michel Temer. A Secretaria de Políticas para mulheres, que havia perdido seu
status ministerial ainda no governo Dilma,2 passando a integrar o Ministério das
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (MMIRDH), sofreu nova

2   Medida Provisória nº 696 de 2 de outubro de 2015.

212
ofensiva. Uma das primeiras ações do governo Temer foi a Medida Provisória nº
726, de 12 de maio de 2016, que extingue diversos ministérios, como o Ministério
da Cultura, além de outros órgãos importantes para os direitos das minorias so-
ciais, inclusive o MMIRDH. O Ministério de Direitos Humanos em seguida foi
reinstituído e a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial passou a ser parte de
sua estrutura, apesar de não haver mais menção à questão racial no nome do mi-
nistério. A Secretaria de Política para Mulheres passou a integrar o Ministério da
Justiça e posteriormente voltaria a ser ligada à Presidência da República. Ambas
as secretarias passaram a ser órgãos subordinados a estruturas institucionais que
desde então se encontram em mãos de religiosos e conservadores. Saímos da 4a
CNPM com as secretárias Eleonora Menicucci e Nilma Lino Gomes já exoneradas
e a sensação de que todos os anos de participação democrática e de difícil cons-
trução de políticas públicas para mulheres no Brasil tinham descido pelo ralo.
Mesmo tendo sido retomados, em parte, alguns projetos da SPM, com a recusa
dos movimentos sociais em dialogar com o governo golpista que tem avançado
rapidamente contra direitos historicamente conquistados e, com o perfil conser-
vador das novas dirigentes da Secretaria, vislumbra-se um enfraquecimento pro-
gressivo dos organismos de promoção de políticas para mulheres.
As temáticas que trataremos aqui, portanto, têm em comum o fato de se-
rem as pontas de lança da ofensiva da direita conservadora no Brasil, sendo, en-
tão, com certeza as mais mobilizadas pelo conservadorismo moral para obter van-
tagens no meio político, ameaçando a autonomia e a vida das mulheres. O debate
sobre a legalização do aborto e a emergência dos feminismos jovens e de suas
reinvindicações por respeito e autodeterminação, analisados de forma articulada,
versam tanto sobre as perversidades do golpe, quanto sobre as resistências a ele.
Apresentaremos, neste capítulo, a análise de alguns dados que se mostraram
relevantes na percepção das participantes das 3a e 4a Conferências Nacionais de
Políticas para Mulheres, a partir da Pesquisa “As mulheres das políticas para as
mulheres: Quem são aquelas que constroem o feminismo estatal participativo
brasileiro?”, cuja metodologia, caracterização e resultados descritivos já foram
apresentados nos capítulos anteriores. Os dados aqui analisados serão os refe-
rentes à inclusão da diversidade e das diferenças, especialmente no que tange à
questão de geração, gênero, sexualidade e reprodução. Iremos abordar o debate
sobre o aborto, analisando principalmente as percepções das participantes sobre a
questão da legalização e descriminalização do aborto no Brasil.
É importante ressaltar que não é nossa pretensão dar conta de todo o deba-
te que compreendem as duas grandes temáticas trabalhadas, não sendo possível
abordar os aspectos teóricos, políticos e éticos que implicam. Devido à extensão

213
dos dados quantitativos a serem apresentados e às reflexões pertinentes, decidi-
mos não fazer uma apresentação do histórico e conteúdo do debate sobre diver-
sidade e inclusão das diferenças nas políticas participativas e na construção de
políticas públicas para mulheres, tampouco do debate sobre aborto nas conferên-
cias de políticas públicas para mulheres. Tendo em vista que é possível encontrar
tais debates de forma aprofundada em alguns artigos de referência na área, iremos
incluir citações, quando pertinente, para que as(os) leitoras(es) possam consultar
quando for de seu interesse.
A inclusão de mulheres jovens nas Conferências Nacionais de Políticas para
Mulheres é um desafio que está longe de alcançar a representatividade desejada
para esses grupos minoritários. Esforços realizados nessa direção foram resulta-
do de uma grande pressão dos movimentos sociais e de uma intensa interação
das mulheres desses segmentos organizados com a Secretaria de Políticas para
as Mulheres. Nos planos municipais e estaduais também houve algumas inicia-
tivas notáveis, também fruto da mobilização dos movimentos e reivindicação
de demandas frente aos organismos locais e estaduais de promoção de políticas
públicas.
Mesmo com todas as mudanças positivas que ocorreram, a representati-
vidade desses segmentos nas Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres
ainda não pode ser considerada satisfatória nem no que tange ao número de de-
legadas pertencentes a esses grupos, nem no que concerne à efetivação do con-
teúdo de propostas aprovadas nos textos finais que contemplem suas demandas
específicas em políticas públicas concretas para essas mulheres. A baixa presença
de alguns grupos no corpo de delegadas nas CNPMs é o fator que aqui terá maior
implicação nos resultados. Isso ocorre, pois mesmo a amostra do survey tendo
sido realizada de forma aleatória e a estratificação incluir especificamente as mu-
lheres deficientes (além do critério regional e por tipo de representação: sociedade
civil e Estado), a sub-representação no contexto da CNPM acaba por ter implica-
ções na acurácia da expressão das percepções desses grupos. Entretanto, tentamos
corrigir ao máximo tais efeitos através de escolhas na forma de apresentação dos
dados, fazendo observações sobre os limites das análises, quando se aplica.

A opinião das delegadas das 3a e 4a CNPMs sobre a


descriminalização e a legalização do aborto no Brasil

Estávamos na nossa sala de pesquisa, entre computadores e entrevistadas
já no último dia da 3a Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, quan-
do uma colega de trabalho nos chama ao celular, a mim e a outra coordenadora

214
de campo: “venham para a plenária, está dando polêmica sobre a legalização do
aborto!”.
Chegando à plenária final, vimos que os ânimos estavam exaltados devido
ao debate em torno da mudança no texto das deliberações finais de “descrimina-
lização do aborto” para “legalização do aborto”. A votação, geralmente realizada
por contraste visual da aprovação das propostas, não estava fornecendo um con-
traste perceptível. Ou seja, cerca de metade das delegadas estava a favor de que o
texto expressasse sua posição favorável à “legalização do aborto”, enquanto quase
metade queria que se mantivesse apenas o apoio à “descriminalização do aborto”.3
Mesmo depois de duas ou três tentativas, não estava fácil de determinar qual seria
a maioria dos votos.
Quando se estava chegando a um ponto em que já não havia mais alterna-
tivas, a não ser a votação por registro de delegadas, o que seria impossível diante
do tempo gasto e do horário de saída dos ônibus, irrompe no auditório um grande
grupo de mulheres com tambores, a maioria com os seios desnudos, entoando
cantos em defesa da autonomia da mulher sobre o próprio corpo, o direito de
escolha e a responsabilidade da garantia do aborto legal, seguro e gratuito pelo
Estado como defesa da vida das mulheres. Enquanto parte das delegadas tinha um
certo olhar de julgamento sobre a ação realizada por feministas jovens de diversas
regiões do Brasil, grande parte das mulheres começou a cantar junto, e a apoiar.
A ação das jovens feministas, além de irreverente e estratégica, soube trazer
a emoção envolvida na questão pungente da legalização do aborto e encarnou,
performativamente, a importância histórica pelo direito ao próprio corpo nas lu-
tas das mulheres. Esse momento foi emblemático de como os processos de deli-
beração nos espaços de participação social também envolvem elementos de mo-
bilização e protesto, para além do discurso e da fala. Nele, muitas delegadas que
estavam tendo seu primeiro contato com ambientes de mobilização e articulação
feminista puderam se sensibilizar com as demandas apresentadas pelas mulheres

3   A descriminalização do aborto implica a retirada de toda a legislação punitiva que incide sobre
as mulheres que decidem interromper a gestação, assim como os profissionais de saúde que realiza-
rem os procedimentos para levar a cabo tal decisão. Há diferenças entre o período da gestação até
o qual se pode realizar tal interrupção em cada legislação, mas o mais recorrente é a permissão até
a 12ª semana. A legalização do aborto implica que, sendo considerada como direito sexual e repro-
dutivo fundamental para as mulheres, a interrupção de uma gravidez indesejada seja realizada de
forma legal, segura e gratuita através do sistema público de saúde. A importância que o feminismo
dá à defesa da legalização, que vai além da descriminalização, se deve ao fato de que as mais afetadas
com consequências e mortes devido ao aborto inseguro são as mulheres pobres, negras e indígenas.
A legalização chama o Estado a se responsabilizar pela saúde e pela vida das mulheres que decidem
interromper uma gravidez indesejada, garantindo assistência médica para que elas possam fazer o
procedimento com o menor impacto e risco possível a sua saúde.

215
organizadas em defesa de seus direitos humanos e refletir sobre a importância
de o Estado incorporar essas reivindicações como condição para o respeito às
diferentes perspectivas, experiências e posicionamentos e a garantia da vida das
mulheres.
Acalmados os ânimos, se realizou uma nova votação. O contraste de difícil
distinção foi decretado pela mesa diretora, que se encontrava diante da plenária.
Enfim, o texto que versava sobre a legalização do aborto foi, então, incluído na
versão final das deliberações. Mas para as que estavam presentes ficou, mais que
nunca, a impressão de que a temática do aborto ainda é um ponto polêmico e
pouco discutido, até mesmo nos espaços dos movimentos de mulheres e feminis-
tas, e entre mulheres que trabalham na construção e implementação de políticas
para mulheres, sejam elas ativistas, conselheiras ou gestoras.
Quase todas as mulheres presentes pareciam concordar que nenhuma mu-
lher deve ser presa ou punida por realizar um aborto. Porém, possivelmente de-
vido ao pertencimento religioso e por outros possíveis fatores que abordaremos
ao longo da análise dos dados do survey, muitas mulheres acabam não se posicio-
nando afirmativamente frente à legalização do aborto. Isso mostra como o direito
das mulheres de tomar decisões sobre o próprio corpo ainda não se consolidou
como direito fundamental e necessário para se conquistar a autonomia. Também
nos chama atenção para como ainda é necessária a conscientização sobre a impor-
tância da laicidade do Estado, fundamental, inclusive, para se garantir a liberdade
de crença e religiosa e para proteção de direitos individuais básicos, como o de
decidir sobre o próprio corpo e a própria vida.
O direito ao aborto legal e gratuito é concebido como um direito sexual e
reprodutivo básico para as mulheres em toda América Latina e no mundo como
um todo. O maior obstáculo para a conquista dos direitos sexuais e reprodutivos
das mulheres ao redor do mundo é uma forte influência das religiões, que ten-
tam influenciar os processos de decisão de acordo com seus princípios morais
específicos.
O debate sobre a descriminalização e a legalização do aborto no Brasil é
uma das principais pautas dos movimentos de mulheres e feministas desde, pelo
menos, o seu ressurgimento com maior força na década de 1970. O motivo de
tal centralidade é o profundo impacto negativo que a criminalização do aborto
possui na vida de milhares de mulheres, em especial das mulheres pobres, negras
e jovens, implicando números altíssimos de internações devido a complicações e
ainda um alto número de mortes.
Mesmo com todos os esforços de mobilização dos movimentos feminis-
tas, não houve avanço dessa questão no plano legislativo ou no âmbito do poder

216
executivo, principalmente devido ao peso que o debate sobre o aborto tem no
campo político, implicando, muitas vezes, a perseguição de representantes que
defendem a legalização ou a descriminalização. A questão também se tornou um
elemento de pressão em momentos eleitorais, sendo que a pressão conservadora
influenciou fortemente no posicionamento de candidatos e candidatas sobre o
aborto. Já havendo ocorrido muitas vezes ao longo de nossa história política, em
2010, a polêmica voltou a ser um fator decisivo nas eleições, levando, inclusive,
a uma declaração de Dilma Rousseff na qual se comprometia em não avançar
na legislação que descriminaliza o aborto. A legislação brasileira atual autoriza a
realização do aborto legal em casos de gravidez decorrente de estupro, de risco
de morte da mulher em decorrência da gestação e nos casos de feto anencefálico,
sendo esta última válida desde a decisão do Supremo Tribunal Federal pela ADPF
54 de 2012.
O Estado brasileiro é constitutivamente um Estado laico, no qual princí-
pios religiosos não deveriam fundamentar as leis e as políticas públicas, devendo
estas seguirem linhas que contemplem cidadãs de diversas religiões e também as
pessoas não religiosas. Apesar do caráter laico do Estado brasileiro, declarado na
Constituição de 1988, a influência histórica da Igreja Católica se manteve através
da presença de representantes católicos e, atualmente, vemos um aumento tam-
bém da influência das religiões protestantes, que têm elegido cada vez mais verea-
dores e deputados que advogam os interesses de suas respectivas religiões. Juntos,
católicos e evangélicos têm formado bancadas religiosas, que impulsionam uma
série de projetos contrários aos direitos das mulheres, retrocedendo direitos his-
toricamente conquistados e freando o avanço daqueles em discussão, em especial
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
A fonte científica de maior confiabilidade que possuímos hoje sobre o fenô-
meno do aborto no Brasil consiste nas Pesquisas Nacionais sobre Aborto (PNA),
realizadas em 2010 e 2016, pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
(Anis). Tais pesquisas foram realizadas a partir de amostras aleatórias represen-
tativas das mulheres alfabetizadas, através de inquérito domiciliar, utilizando-se a
técnica de urna, que garante melhor o sigilo das respostas e, consequentemente,
aumenta a probabilidade de respostas verdadeiras e confiáveis.
A PNA nos mostra que o aborto é um acontecimento frequente na vida
reprodutiva das mulheres brasileiras, sendo que, até os 40 anos, aproximadamen-
te 1 em cada 5 mulheres já realizou um aborto. É um fenômeno que ocorre com
frequência em mulheres de todos os grupos sociais: de todas as idades, sejam
casadas ou não, mães ou não, de todas as religiões, de todos os níveis educacionais,
de todas as classes sociais, de todos os grupos raciais, em todas as regiões do país,
e em todos os tipos e tamanhos de municípios.

217
Há, entretanto, uma heterogeneidade de sua distribuição entre os grupos
sociais, sendo que a maior frequência é encontrada entre as mulheres pobres,
pretas, pardas e indígenas, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Também foi encontrado um maior índice de abortos entre as mulheres jovens,
com 29% dos abortos ocorrendo em idades que vão de 12 a 19 anos, 28% dos 20
aos 24 anos, caindo para abaixo de 13% a partir dos 25 anos. Isso nos mostra que
o aborto é um fenômeno que atinge mais intensamente as mulheres jovens e que,
por isso, podemos identificar a legalização como um tema de extrema relevância
para a agenda dos feminismos jovens.
Apesar de atingir de maneira mais crítica às mulheres jovens, a incidência
do aborto é alta para mulheres de todos os grupos etários e sociais. Os resultados
da PNA nos sinalizam sobre como a questão deve ser abordada e a importância
de que continue sendo uma pauta central para os feminismos:

A frequência de abortos é alta e, a julgar pelos dados de diferentes grupos


etários de mulheres, permanece assim há muitos anos. Entre a PNA 2010
e a PNA 2016, por exemplo, a proporção de mulheres que realizaram ao
menos um aborto não se alterou de forma relevante. Ou seja, o problema
de saúde pública chama a atenção não só por sua magnitude, mas também
por sua persistência. As políticas brasileiras, inclusive as de saúde, tratam o
aborto sob uma perspectiva religiosa e moral e respondem à questão com a
criminalização e a repressão policial. A julgar pela persistência da alta mag-
nitude, e pelo fato do aborto ser comum em mulheres de todos os grupos
sociais, a resposta fundamentada na criminalização e repressão tem se mos-
trado não apenas inefetiva, mas nociva. Não reduz nem cuida: por um lado,
não é capaz de diminuir o número de abortos e, por outro, impede que mu-
lheres busquem o acompanhamento e a informação de saúde necessários
para que seja realizado de forma segura ou para planejar sua vida reproduti-
va a fim de evitar um segundo evento desse tipo. (DINIZ; CORREA, 2008).

218
O survey realizado pelo Nepem/UFMG nas 3ª e 4ª Conferências Nacionais
de Políticas para Mulheres perguntou a opinião das entrevistadas sobre a des-
criminalização do aborto.4 É importante ressaltar que houve uma mudança na
formulação da pergunta decorrente da mudança na situação legal do aborto no
país, através do julgamento da ADPF54, pelo Supremo Tribunal Federal em 2012,
que autorizou a interrupção terapêutica das gestações de fetos anencefálicos. Ao
ter de modificar a pergunta por fatores externos, verificamos o quanto a formula-
ção da pergunta influencia cognitivamente, gerando resultados muitos diferentes.
Porém, devemos considerar que a própria mudança legal na questão e o debate
público envolvido também pode influenciar nos posicionamentos individuais.
Iremos apresentar então o resultado do survey realizado no que tange à
opinião das delegadas das 3ª e 4ª CNPMs sobre a situação legal do aborto no
Brasil. Verificamos que em ambas as Conferências as delegadas mostraram-se
majoritariamente favoráveis à descriminalização do aborto.

4   As perguntas realizadas nos questionários estavam da seguinte forma:


3ª CNPM – 2011
47. – Atualmente no Brasil, por lei o aborto só é permitido nos casos em que a gravidez cause risco
de vida para mãe e nos casos de gravidez causada por estupro. Qual destas frases descreve melhor a
sua opinião sobre isso: (leia até a frase 3, enumerando-as)
1. A lei deve ficar como está
2. O aborto deveria ser proibido por lei em todos os casos
3. O aborto deveria deixar de ser crime em todos os casos?
4. Deveriam ser ampliadas algumas situações em que o aborto é legal no país, a exemplo dos fetos
com anencefalia
5. Outras respostas (NÃO LER): _________________________________________
8. NS (NÃO LER)
9. NR (NÃO LER)

4ª CNPM – 2016
Q 46. – (C.E. p.15 ) Atualmente no Brasil, por lei, o aborto só é permitido nos casos em que a gravidez
cause risco de vida para mãe, nos casos de gravidez causada por estupro e também em caso de fetos
com anencefalia. Qual destas frases descreve melhor a sua opinião, sobre isso: (LEIA OPÇÕES 1 a 3)
1. A lei deve ficar como está
2. O aborto deveria deixar de ser crime em todos os casos
3. O aborto deveria ser proibido por lei em todos os casos
4. Outras respostas (NÃO LER – ANOTAR): _____________________________

219
Grafico 1. Frequência das respostas das delegadas da
3ª CNPM (2011) sobre o tema do aborto no Brasil

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Como vemos no Gráfico 1, na 3ª CNPM aproximadamente metade (48%)
das delegadas respondentes se declararam favoráveis à descriminalização do abor-
to em todos os casos. Já 30% defenderam a ampliação do direito de interrupção
legal da gestação nos casos de anencefalia fetal, posição que tornou-se vigente
logo em seguida com a decisão ADPF54 do STF. Além disso, 13% foram favorá-
veis à manutenção da lei como estava em 2011, e apenas 7% se posicionaram pela
proibição do aborto em todos os casos.

220
Gráfico 2. Frequência das respostas das delegadas da
4ª CNPN (2016) sobre o tema aborto no Brasil

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

De acordo com o Gráfico 2, percebemos que, com a mudança na interpre-


tação da lei e com o debate público sobre a questão e, considerando a possível
influência também da nova formulação da pergunta, o número de delegadas que
se posicionou pela descriminalização do aborto em todos os casos foi ainda maior
(57%), enquanto uma parcela também maior (27%) se mostrou satisfeita com a
lei vigente em 2016. A porcentagem de entrevistadas que acredita que o aborto
deve ser proibido em todos os casos (8%) praticamente não sofreu alteração com
relação à pesquisa de 2011 (7%).

221
Gráfico 3. Frequência de “outras respostas” categorizadas -
Opinião sobre o aborto das delegadas da 4ª CNPM – 2016

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Quando analisamos as respostas abertas das entrevistadas que elegeram a
categoria “outros” no Gráfico 3, percebemos que muitas das respostas eram va-
riações das opções já apresentadas, mas como a questão é bem específica, decidi-
mos criar novas categorias para classificar as “outras” respostas. Mesmo na opção
aberta, a grande maioria (52,9%) foi favorável a uma lei mais ampla na garantia
dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, incluindo nessa categoria des-
criminalização e legalização. Um número significativo (29,4%) apontou que seria
favorável ao aborto apenas em caso de risco para a mãe, enquanto algumas sina-
lizaram pela realização de um plebiscito ou pela ampliação de políticas públicas
para a saúde integral das mulheres. Novamente apenas uma minoria (5,9%) de-
fendeu mais proibição.
Com o objetivo de entendermos melhor quais as características das dele-
gadas que se posicionam contra ou a favor da legalização do aborto, realizamos
tabelas de cruzamento com os dados sociodemográficos mais relevantes, como
região, renda, classe social, escolaridade e raça. Essas tabelas nos mostram uma
tendência mais favorável à descriminalização do aborto em todos os casos entre
os setores mais privilegiados da população. Porém, como as variações são peque-
nas e pouco significativas, decidimos não abordar tais temáticas para não tirar

222
conclusões precipitadas acerca desses dados. Os elementos sociodemográficos
que se mostraram mais significativos com relação ao posicionamento das dele-
gadas sobre o aborto foram a zona residencial e a idade. Sobre a questão etária e
suas influências no posicionamento das mulheres, abordaremos com maior pro-
fundidade na seguinte seção.

Gráfico 4. Opinião sobre o aborto por zona resindecial urbana


ou rural das delegadas da 3ª CNPM – 2011

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

O Gráfico 4 aponta que as delegadas da 3ª CNPM provenientes da zona ur-
bana possuem um posicionamento mais favorável à descriminalização do aborto
(50%) que as da zona rural (30%). As mulheres da zona rural, por sua vez, apre-
sentam grande proporção (37%) de apoio à ampliação da lei que foi realizada no
ano seguinte, e significativo apoio (23%) à manutenção da lei como era em 2011.

223
Gráfico 5. Opinião sobre o aborto por zona residencial urbana
ou rural das delegadas da 4ª CNPM – 2016

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

No Gráfico 5, vemos que tal diferença se mostrou ainda maior em 2016,


pois as delegadas da 4ª CNPM de zona rural optaram em sua maioria (46%) pela
manutenção da lei como está, enquanto apenas 32% foram favoráveis à descrimi-
nalização. O apoio à criminalização em todos os casos entre as mulheres de áreas
rurais cresceu de 2011 para 2016 (de 10% para 14%). Já entre as mulheres de áreas
urbanas, 23% são favoráveis à manutenção da lei, e o apoio à descriminalização
total chegou a 62%.
Uma diferença tão grande nos posicionamentos das mulheres que vivem
em zona rural e urbana pode ser devido aos efeitos do conservadorismo e da pres-
são religiosa que são mais intensos no meio rural. Considerando tal possibilidade,
nos voltamos para a participação em grupos religiosos e o pertencimento religio-
so das delegadas. Conforme se pode perceber no Gráfico 6, as delegadas que não
participam de grupos religiosos têm maior tendência a um posicionamento favo-
rável à descriminalização, sendo que a diferença entre aquelas que não participam

224
de nenhum grupo e aquelas que participam como membros ou filiadas é de 37
pontos percentuais. Essa questão, entretanto, só esteve presente no questionário
de 2016, não sendo possível comparação.

Gráfico 6. Opinião sobre o aborto por participação em grupos religiosos


ou ligados a Igreja das delegadas da 4ª CNPM – 2016

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

O pertencimento religioso mostrou, portanto, ser um fator de grande influ-


ência. Como pode ser verificado nos gráficos 7 e 8, as mulheres que não possuem
religião mostram-se esmagadoramente favoráveis à descriminalização do aborto
em todos os casos (87,5% em 2011 e 94% em 2016).

225
Gráfico 7. Opinião sobre aborto por pertencimento
religioso das delegadas da 3ª CNPM – 2011

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Entre as mulheres religiosas, entretanto, há uma grande variação de acordo


com a religião a qual pertencem, sendo que as de religiões afro-brasileiras e espíri-
tas são em grande maioria favoráveis à descriminalização em todos os casos (74%
em 2011 e 83% em 2016), havendo baixíssima presença de um posicionamento
proibicionista. As católicas também são majoritariamente favoráveis à descrimi-
nalização do aborto em todos os casos (38% em 2011 e 54% em 2016), seguido
pela manutenção da lei como está.

226
Gráfico 8. Opinião sobre aborto por pertencimento
religiosos das delegadas da 4ª CNPM – 2016

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Ainda analisando os gráficos 7 e 8, vemos que as protestantes são as que


mostram a maior taxa de apoio à manutenção da lei como está (30% em 2011 e
44% em 2016), mas ainda há uma proporção significativa que também é favorável
à descriminalização em todos os casos (28% em ambas as CNPMs). O posicio-
namento favorável à criminalização em todos os casos apresenta uma taxa muito
baixa, inclusive, entre as católicas e as protestantes, mostrando que a perspectiva
social das mulheres, enquanto grupo, ainda pesa mais que o seu pertencimento
religioso.
Entre as mulheres que são filiadas a partidos políticos, que são cerca de
60% das delegadas nas duas conferências, o posicionamento ideológico do par-
tido (os partidos foram classificados como de esquerda, de centro e de direita)
foi um fator que mostrou muita interação com a perspectiva da mulher sobre a
legalização do aborto.

227
Gráfico 9. Opinião sobre aborto por partido ao qual as delegadas da 3ª CNPM
(2011) são filiadas de acordo com a classificação no espectro ideológico

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Observando os Gráficos 9 e 10, percebemos que as delegadas pertencentes


aos partidos de esquerda são majoritariamente favoráveis à descriminalização do
aborto em todos os casos (58% em 2011 e 71% em 2016). Entre as mulheres dos
partidos de centro, predomina a corroboração com a lei estabelecida (39% em
2011 e 57% em 2016). Já entre as filiadas a partidos de direita, vemos uma maior
variação na opinião, mas mesmo que predomine a concordância com a lei, e que
haja uma significativa parcela favorável à descriminalização, parte significativa
acredita que o aborto deva ser criminalizado em todos os casos (15% em 2011 e
33% em 2016).

228
Gráfico 10. Opinião sobre aborto por partido ao qual as delegadas da 4ª CNPM
(2016) são filiadas de acordo com a classificação no espectro ideológico

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Para além do pertencimento religioso e do fator ideológico, a participação
em grupos de mulheres e a autodeclaração como feministas são também aspectos
que mais mostram sobreposição com os posicionamentos das delegadas sobre o
aborto. O Gráfico 11 nos mostra como a participação em grupos de mulheres ou
feministas mostra forte interação com um posicionamento favorável à descrimi-
nalização do aborto no Brasil.

229
Gráfico 11. Opinião sobre aborto das delegadas da 4ª CNPM (2016) por
participação em grupos de mulheres ou feministas

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

O Gráfico 12 aponta a grande diferença entre os posicionamentos das de-
legadas que declaram feministas ou não. Entre as que não se declaram feministas,
a maior tendência em 2011 foi se posicionar em defesa da ampliação do aborto
legal para abranger os casos de anencefalia (47%), havendo também uma signi-
ficativa parcela favorável à descriminalização em todos os casos (32%) e, sur-
preendentemente, uma parcela muito pequena que defende a proibição irrestrita
(5,7%). Entre as que não sabem o que é feminismo, prevaleceu o apoio à lei como
estava, e entre as que não sabem se classificar, apesar dos 20% que defendem a
criminalização em todos os casos predominou uma postura mais progressista,
sendo que 40% ampliariam a lei apenas aos casos de anencefalia e outros 40% para
todos os casos. Entre as que se declararam feministas, a maioria (51,4%) advoga
pela descriminalização total do aborto.

230
Gráfico 12. Opinião sobre aborto das delegadas da 3ª CNPM (2011)
por autodeclaração enquanto feministas

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Em 2016, a variação entre os posicionamentos se mostrou ainda maior,


sendo que as feministas têm uma chance duas vezes maior de se mostrarem favo-
ráveis a descriminalização que as não feministas (63,3% entre as que se declaram
feministas frente a 28,6% entre as que não se consideram feministas). Entre as
que não se declaram feministas e as que não sabem se classificar, apesar de uma
taxa relevante de apoio à descriminalização (28,6% e 35,7%, respectivamente) a
posição que prevaleceu foi a da manutenção da lei (47,6% entre as que não se
consideram feministas e 57% entre as que não sabem se classificar. A porcen-
tagem de delegadas que defendem a proibição do aborto em todos os casos se
mostrou muito baixa, não passando dos 7%, exceto entre aquelas que não sabem
o que é o feminismo. Esse dado nos mostra como o desconhecimento de questões
fundamentais relativas ao debate sobre o aborto, em especial dados e argumen-
tos apresentados pelas feministas, leva a uma predominância do posicionamento
proibicionista.

231
Gráfico 13. Opinião sobre aborto das delegadas da 4ª CNPM (2016)
por autodeclaração enquanto feministas

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Comparando os aspectos levantados ao longo desta seção, vemos que os
fatores que mostram maior interação com a perspectiva das delegadas sobre a
descriminalização ou não do aborto no Brasil são os de ordem política-ideológica.
A diferença abismal entre os posicionamentos das delegadas quando compara-
mos as que pertencem a partidos de esquerda, centro ou direita é emblemática.
Entretanto, vimos que nem 13 anos de governo de esquerda e de forte participa-
ção dos movimentos de mulheres e feministas na formulação de políticas para
mulheres possibilitaram a conquista da descriminalização do aborto. Os avanços
foram muito poucos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, em especial se
consideramos o âmbito legislativo.
Vimos que, no que tange ao pertencimento religioso, não é apenas a
participação em grupos religiosos que está relacionada ao posicionamento das
delegadas frente à descriminalização do aborto, pois há uma grande variação
quando consideramos a qual religião pertence. Nesse sentido, fica evidente que
o posicionamento político de algumas igrejas, como as evangélicas e a católica,
é o fator de maior pressão sobre o posicionamento das fiéis, assim como o lobby
das igrejas influencia profundamente no andamento da questão no plano político
nacional.

232
O contato com o feminismo pode ser considerado essencial para que as
delegadas tenham conhecimento dos argumentos que fundamentam a defesa dos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Contrapondo o direito ao próprio
corpo e necessidade de evitar as mortes e sofrimentos por abortos inseguros, com
o discursos predominantes na mídia e o senso comum que busca julgar e crimina-
lizar as mulheres que decidem interromper uma gravidez indesejada, as delegadas
podem ter uma compreensão mais ampla que fundamente seu posicionamento.
O espaço das CNPMs se mostrou como um lugar que favorece tais debates por
colocar no mesmo ambiente mulheres de diferentes inserções institucionais, ideo-
lógicas, religiosas, políticas. A intervenção das jovens feministas na 3a CNPM em
defesa da legalização do aborto nos mostra não apenas que existe uma grande
imbricação entre formas de protesto e deliberação política, mas também como
alguns grupos estão ausentes ou menos favorecidos no debate, e que por isso bus-
cam estratégias alternativas de vocalizar suas demandas.
A relação entre o componente geracional, ideológico e o posicionamento
frente à questão do aborto mostra uma interação complexa, que será objeto de
nossa análise mais cuidadosa na seguinte seção. Iremos analisar o que podemos
chamar de uma ausência das mulheres jovens nos espaços de deliberação e toma-
da de decisão acerca das políticas públicas para mulheres e seus graves impactos
nas pautas, agendas e propostas debatidas e na sua efetivação em termos de po-
líticas concretas, em especial no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos.
Para tal iremos recapitular o histórico da emergência das jovens feministas, suas
críticas ao adultocentrismo e às hierarquias geracionais nos movimentos de mu-
lheres e feministas. Apesar dos avanços conquistados pelas jovens feministas com
relação à incorporação de suas demandas nos Planos Nacionais de Políticas para
Mulheres (SILVA, 2015), a baixa participação de mulheres jovens nas CNPMs no
mostra que estamos diante de um problema grave e persistente de sub-represen-
tação das perspectivas feministas jovens, o que tem efeitos devastadores na cons-
trução das políticas para mulheres.

Inclusão das diferenças nas Conferências de Políticas para


Mulheres e a luta por representação das feministas jovens

O foco nas relações intergeracionais se deve à emergência recente das jo-


vens feministas como um “sujeito político” no campo do feminismo, contestan-
do diversas lógicas hierárquicas baseadas em pertencimentos etários e em tempo
e trajetória no movimento. No âmbito da participação institucional no Estado
(SILVA, 2009) e no contexto dos grandes encontros feministas latino-americanos

233
(ALVAREZ, 2003), a questão geracional se manifesta na luta por representação
das jovens feministas e na luta por reconhecimento das demandas específicas das
mulheres jovens (MARTELLO, 2013). Na tentativa de compreender as deman-
das das jovens feministas e sua crítica ao silenciamento de suas expressões no
movimento, consideraremos o adultocentrismo5 e etarismo enquanto lógicas de
dominação.
A emergência das “jovens feministas” como sujeito político no campo
do feminismo observado no contexto latino-americano e no contexto brasilei-
ro na última década tem confrontado um discurso recorrente de que o feminis-
mo não impactou as mulheres jovens e que elas não se interessam pelo femi-
nismo (GOMES-RAMIREZ; CRUZ, 2011; ADRIÃO; MELO, 2009; SILVA, 2009;
ZANETTI, 2008). Advinda de diferentes espaços de difusão das ideias feministas
como a academia, organizações não governamentais, órgãos governamentais de
gestão de políticas públicas, espaços comunitários, grupos culturais, diversos mo-
vimentos sociais ou por aproximação autodidata (GOMES-RAMIREZ; CRUZ,
2011), a inserção das mulheres jovens no feminismo no período recente se ca-
racteriza pela criação de organizações próprias, como a Red de Mujeres Jóvenes
Feministas de America Latina y Caribe, a Red Latinoamericana y Caribeña por los
Derechos Sexuales y Reproductivos, a Articulação Brasileira de Jovens Feministas.
Conjugando a leitura de que contextos socioculturais com suas especifi-
cidades produzem condições de inequidade diferenciadas, com a crítica às for-
mas desiguais de exercício de poder no movimento, as jovens feministas buscam
a construção de uma atuação política e agendas próprias (GOMES-RAMIREZ;
CRUZ, 2011). Não sendo um fenômeno exclusivo do feminismo, a recente orga-
nização da juventude, presente em diversos movimentos sociais, articula e mo-
biliza complexamente sua diferença geracional especialmente de duas formas:
(1) juventude como identidade política, que aglutina demandas específicas e es-
truturas visando a mudanças na realidade, e (2) juventude como identidade que
é acionada relacionalmente no processo de disputa pelos espaços de decisões nas
organizações sociais (COSTA, 2008). Esses são dois processos identitários simul-
tâneos e inter-relacionados das lutas sociais por reconhecimento jovem.
Analisando a emergência das jovens feministas enquanto sujeito político,
Áurea Carolina Silva (2009) situa o fenômeno no contexto da disputa pela noção
de juventude como sujeito político, destacando a participação como principal ca-
racterística das políticas para juventude:

5   O adultocentrismo é a dominação imposta pela ideia hegemônica em nossa sociedade de que a
adultez possui uma qualidade de responsabilidade maior que as de crianças, adolescentes, jovens e
idosas. É a orientação de todos os modos de vida que caracterizam as diferentes experiências etárias
e geracionais por uma única temporalidade e espacialidade adultocêntrica.

234
a chegada da identidade juvenil na esfera pública intenta desestabilizar a
hegemonia existente e quase exclusiva do poder adulto, na medida em que
reclama o direito de jovens participarem como interlocutores válidos nos
processos de tomada de decisões que afetam a coletividade, principalmente
as realidades dos próprios jovens. (SILVA, 2009, p. 51).

Segundo Adrião e Mello (2009), as jovens feministas entrevistadas em seu


trabalho de pesquisa relataram que não encontravam espaços de constituição au-
tônoma, nem no movimento feminista, nem nos movimentos de juventude, sen-
do que no feminismo não conseguiam ocupar espaços de liderança por serem
consideradas “inexperientes”, por não terem longa vivência e conhecimento do
movimento, nem representarem instituições que as legitimem. E nos movimentos
de juventude elas acabavam ocupando os mesmos lugares conferidos às mulheres
nos diferentes espaços sociais, ou seja, exercendo apenas funções “na base” ou
apenas trabalhos operacionais e estando ausentes dos espaços de poder e decisão.
Julia Zanneti (2008) argumenta que, como muitas jovens participavam do
movimento feminista, não era reconhecida a identidade de “jovem feminista”, e tal
reconhecimento não era demandado pelas jovens, sendo que até a última década
não era possível falar dessa identidade. Para ela, as jovens questionam as relações
que fundamentam o movimento ao reivindicar igualdade de participação e poder
decisório quanto às pautas. Segundo Silva (2009), a atuação das jovens feministas
questiona as hierarquias e o adultocentrismo, explicitando as assimetrias de níveis
de participação dentro do movimento e decompondo a agenda feminista na pers-
pectiva geracional, evidenciando as condições peculiares das jovens e ressaltando
a importância da troca entre gerações e legitimidade dos saberes e experiências
juvenis.
A organização das jovens feministas no Brasil teve como primeiro espaço
amplo de ação e articulação o Fórum Cone Sul de Mulheres Jovens Políticas –
Espaço Brasil, conhecido como “Forito”, que começa a ser articulado em 2001,
pela Fundação Friedrich Ebert – FES. Tendo uma duração de 8 anos, o Forito
reuniu não apenas feministas de partidos políticos, mas também mulheres que
atuavam em outros espaços e nos diversos movimentos sociais. De acordo com o
depoimento de Fernanda Papa (SILVA, 2009), participante do Forito e organiza-
dora da publicação que registrou a história desse projeto, as feministas do Forito
estiveram presentes nas 1ª e 2ª Conferências de Políticas para Mulheres (2004 e
2007) e nos Conselhos de Políticas para Mulher, no Projeto Juventude – que se
desdobrou na Política Nacional de Juventude –, nas Conferências e Conselhos de
Juventude, de Igualdade Racial e nos Encontros Feministas Latino-americanos e
do Caribe.

235
Silva (2009) nos mostra que, apesar de haver menções às mulheres jovens
no I PNPM ao citar vários segmentos de mulheres, essa é apenas uma alusão for-
mal, pois elas eram contempladas somente em ações isoladas ligadas à inserção do
mercado de trabalho e autonomia econômica, nos tópicos de educação e de abuso
sexual contra crianças e adolescentes. Já no II PNPM, todos os eixos temáticos es-
pecificam ações voltadas para mulheres jovens, ressaltando que as desigualdades
geracionais afetam as mulheres em todas as dimensões das suas vidas. O próprio
texto do II PNPM ressalta a presença de mulheres jovens no processo de elabora-
ção do plano. Articulado com a decisão de fazer o enfoque geracional perpassar
todo o texto do Plano, surgiu também um eixo específico voltado para o enfrenta-
mento às desigualdades geracionais, com foco nas mulheres jovens e idosas.
De acordo com Zannetti (2008) e Adrião e Mello (2009), o 10º Encontro
Feminista Latino-americano e do Caribe, ocorrido em outubro de 2005, em São
Paulo, no qual 25% das participantes eram mulheres com menos de 30 anos, tam-
bém pode ser considerado um marco em que as mulheres jovens articularam
ações a partir do lugar de jovens feministas para o encontro. Participaram da or-
ganização do evento e levaram suas reivindicações coletivas, inserindo o debate
sobre jovens feministas na Programação oficial do evento e garantindo a presença
de uma mulher jovem em cada mesa de “diálogo complexo”. Durante o Encontro,
houve o Fórum de Mulheres Jovens, com a participação de cerca de 100 jovens
de toda a América Latina e Caribe, articulando demandas, especificidades e estra-
tégias e a oficina de diálogo de compartilhamento de experiências entre “jovens
e velhas feministas” (intergeracional). No fim do Encontro, tomaram a Plenária
Final, quebrando todos os protocolos, e 30 jovens leram conjuntamente sua
Carta de reivindicações. O I Encontro Nacional de Jovens Feministas, em 2008,
no Ceará, consolidou a formação da Articulação Brasileira de Jovens Feministas,
com a participação de mais de 13 grupos de jovens feministas ou feministas com
representantes jovens. Em 2009 houve o I Encontro Nacional de Negras Jovens
Feministas, em 2011 o I Seminário Nacional Jovens Feministas Presentes, com
representantes de 17 estados da federação, e em 2017 o II Encontro Nacional de
Negras Jovens Feministas. Essas atividades mostram que as jovens feministas es-
tão atuantes politicamente, articulando-se e colocando cada vez mais a sua voz e
suas questões para o feminismo.
No momento “pós-processo de Beijing” vemos, portanto, um forte tensio-
namento das diferenças, sendo que, além das questões de classe, sexualidade e
origem étnico-racial, agora se percebe também a presença da questão geracional.
As jovens feministas, muitas advindas da difusão do feminismo em espaços como
academia, organizações não governamentais, órgãos governamentais de gestão de

236
políticas públicas, espaços comunitários, grupos culturais e diversos movimentos
sociais, passaram a questionar a hierarquização intensificada pela especialização
e profissionalização do movimento. Essas hierarquizações têm sido contestadas
através da criação de estruturas próprias, da formação de redes locais, nacionais
e transnacionais de articulação, já que sua condição de juventude as coloca em
certa vantagem quanto à utilização de meios tecnológicos que potencializam a sua
atuação e pelo próprio fato de essa ser uma forma já recorrente nos movimentos
sociais no período de sua inserção.
Transpassando as diversas estruturas e espaços no campo do feminismo,
essas organizações próprias e redes de articulação têm possibilitado a significa-
ção da experiência de desvalorização de suas contribuições devido à sua condição
de jovens. Trata-se de mais um impedimento à sua participação igualitária no
movimento. Têm também potencializado o compartilhamento de suas vivências,
consolidando a formulação de especificidades que caracterizam as jovens no mo-
mento atual e transformando-as em demandas e agendas próprias. É importante
ressaltar que a característica de mutabilidade e forte orientação ao presente e às
experiências concretas permitiram que a articulação das jovens se desse na in-
terseção com outras categorias sociais, estando presentes suas experiências como
jovens negras, jovens rurais, jovens lésbicas, jovens de origem popular e a partir
da identificação com grupos culturais e ideológicos.
Apresentaremos agora a participação das mulheres jovens nas 3ª e 4ª
CNPMs, que ainda é muito inferior à proporção de jovens na média populacional.
Estamos considerando jovens as mulheres que estão nas faixas etárias de 18 a 24
anos e de 25 a 31 anos. Manteremos, entretanto, as duas faixas etárias separadas
para fins analíticos, já que existe uma diferença significativa entre as inserções ins-
titucionais, vivências e percepções dos dois grupos. Como verificamos no Gráfico
14, as mais jovens (de 18 a 24 anos) possuem uma taxa muito baixa de presença,
tendo aumentado muito pouco, de 2,9% em 2011 para 3,7% em 2016. A porcen-
tagem de mulheres entre 25 e 31 anos se manteve aproximadamente a mesma nas
duas conferências. Já a presença de mulheres idosas (acima de 60 anos) é mais
próxima à proporção da população nacional, e teve um aumento da 3ª para a 4ª
CNPM: entre as de 60 a 66 anos a porcentagem passou de 8,9% em 2011 para
9,9% em 2016, e entre as mulheres de 67 anos ou mais passou de 2,6% para 3,4%.

237
Gráfico 14. Porcentagem das idades por faixas etárias das
delegadas da 3ª e 4ª CNPM – 2011 e 2016

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Vemos, portanto, que há uma predominância massiva das mulheres adultas


(de 32 a 59 anos), o que revela o adultocentrismo que estrutura os espaços das
CNPMs e que foi tão criticado pelas jovens feministas. Trabalhamos inicialmente
com a hipótese de que esse fosse um padrão das conferências de políticas públicas
em geral; porém, quando analisamos o padrão etário das conferências comparati-
vamente, concluímos que as CNPMs possuem uma disparidade ainda maior que
a média no que tange ao critério geracional. Retomamos aqui uma tabela que já
foi apresentada no capítulo metodológico, que nos mostra o quanto essa diferença
é alarmante. A utilização de outras faixas etárias aqui foi devido à necessidade de
equiparação com as utilizadas em outras pesquisas.

238
Tabela 1. Frequência por faixa etária, médias e medianas das delegadas participantes
das 3ª e 4ª CNPMs comparadas às médias das demais conferências nacionais
(Brasil, 2011 e 2016)
Faixa etária 3ª CNPM (2011) 4ª CNPM (2016) Nacionais (2011)
Até 18 anos 0,30% 0,30% 0%
De 19 a 34 anos 18,50% 21,10% 47,40%
De 35 a 60 anos 69,70% 65,20% 42,10%
Acima de 60 anos 11,60% 13,40% 10,50%
Total 100% 100% 100%
Mediana 44,5 anos 45 anos
Média 44,9 anos 45,1 anos
Fonte: Elaboração própria com dados da 3ª e 4ª CNPMs. Dados Nacionais (2011) de AVRITZER
(2011).

Se a participação de mulheres de 19 a 34 anos passou de 18,5% em 2011


para 21,1% em 2016, estas ainda permanecem 26 pontos percentuais abaixo da
média de participação da mesma faixa etária nas Conferências Nacionais em ge-
ral, que é de 47,4%. Já a participação das delegadas de 35 a 60 anos, mesmo tendo
caído de 69,7% em 2011 para 65,2% em 2016, ainda fica 23 pontos percentuais
acima da média das conferências. Isso nos revela o quanto os espaços de cons-
trução de políticas públicas e participação política de mulheres ainda são os mais
impermeáveis à inserção da juventude e os mais hierárquicos do ponto de vista
geracional.
A análise da opinião sobre aborto, ao ser segmentada pela natureza da ins-
tituição que as delegadas representam, ou seja, se estão na CNPM representan-
do uma organização da sociedade civil ou algum órgão estatal/governo, não nos
apresentou uma diferença significativa. Ao segmentarmos a natureza da represen-
tação por faixa etária, entretanto, vemos que há uma discrepância na composição
da 4ª CNPM (2016), a Conferência que teve uma maior participação da sociedade
civil proporcionalmente.

239
Gráfico 15. Natureza da instituição que as delegadas representam
por faixas etárias da 3ª CNPM – 2011

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Na 3ª CNPM a composição da representação estabelecida em regulamento


era de 50% de participação da sociedade civil e outros 50% de representantes do
governo. Ao analisarmos sua composição etária, encontramos que nessa confe-
rência se manteve uma proporção equilibrada entre as representantes dos dois
setores, como vemos no Gráfico 15.

Gráfico 16. Natureza da instituição que as delegadas representam


por faixas etárias da 4ª CNPM – 2016

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

240
Gráfico 17. Se a delegada é filiada a partido politico
por faixas etárias na 3ª CNPM – 2011

Na 4ª CNPM a proporção da representação foi alterada no plano estatu-


tário e passou a haver dois terços de representação da sociedade civil e um terço
de representação do governo. Nesse ano, a variação etária entre os dois setores
foi grande (Gráfico 16): entre as jovens de 18 a 24 anos, 90,9% são provenientes
da sociedade civil; já entre as de 25 a 31 anos encontramos o maior número de
representantes do governo (58,8%); nas seguintes faixas etárias a participação das
representantes do governo vai decaindo progressivamente; e as mulheres de 67
anos são todas provenientes da sociedade civil.
Consideramos também importante analisar se há um padrão etário para a
filiação partidária e para a classificação ideológica do partido ao qual são filiadas.
Podemos ver no Gráfico 17 um padrão crescente entre as faixas etárias, havendo
uma diferença de 42 pontos percentuais entre as mais jovens – 18 a 24 anos – que
são filiadas a partidos (33,3%) até as de idade mais avançada – 67 anos ou mais
(77,8%).

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Quando analisamos a classificação ideológica dos partidos aos quais essas


delegadas são filiadas, vemos que também há um padrão etário nessa segmen-
tação. No Gráfico 18 vemos que as mulheres jovens delegadas da 3ª CNPM são
100% pertencentes a partidos de esquerda.

241
Gráfico 18. Partido ao qual as delegadas da 3ª CNPM (2011) são filiadas,
de acordo com a classificação no espectro ideológico, por faixa etária.

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Na 4ª CNPM verificamos uma mudança significativa na proporção de mu-


lheres jovens de 18 a 24 anos que são filiadas a partidos políticos, chegando a
45,5%, um aumento de 12 pontos percentuais com relação a 2011. Já entre as
mulheres de 25 a 31 anos – a faixa etária que tem maior número de participantes
do governo em 2016, como vimos anteriormente –, a taxa de filiação partidária
cai de 47,2% em 2011 para 23,5% em 2016. Nas seguintes faixas etárias a taxa de
filiação partidária das delegadas volta a crescer progressivamente, como vemos
no Gráfico 19.

242
Gráfico 19. Se a delegada é filiada a partido políticos
por faixas etárias na 4ª CNPM – 2016

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Ao analisarmos a classificação ideológica dos partidos aos quais as delega-
das são filiadas, vemos uma diferença ainda mais marcante na 4ª CNPM. Nela,
todas as mulheres jovens, de 18 a 25 e de 26 a 31 anos, são pertencentes a partidos
de esquerda. Entre as outras faixas etárias, destacamos também as mulheres de 53
a 59 anos, que são 93,7% de partidos de esquerda, e as de 67 anos ou mais, que são
87,5% de partidos de esquerda. Os partidos de direita encontram mais expressão
entre as mulheres de 39 a 45 anos (18,9% das delegadas pertencentes a essa faixa
etária) e o pertencimento aos partidos de centro são mais frequentes entre as mu-
lheres de 60 a 66 anos (25%).

243
Gráfico 20. Partido ao qual as delegadas da 4ª CNPM (2016) são filiadas, de
acordo com a classificação no espectro ideológico, por faixa etária

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

A autodeclaração das delegadas, enquanto feministas ou não, quando vista


em uma perspectiva geracional, nos mostra que as mulheres no auge de sua idade
adulta têm menor probabilidade de se autodeclararem como feministas. Em 2011,
partimos de 90% que se consideram feministas entre as delegadas de 18 a 24 anos,
chegando a 72,6% entre as de 39 a 45 anos, e novamente crescendo para 93,5% en-
tre as mulheres de 60 a 66 anos. A exceção aqui ficou no alto número de mulheres
acima de 67 anos que não se consideram feministas.

244
Gráfico 21. Autodeclaração enquanto feministas das
delegadas da 3ª CNPM (2011) por faixa etária

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Em 2016 vemos ainda de forma mais imbricada a relação entre a crítica


ao adultocentrismo e o feminismo: entre as delegadas jovens de 18 a 25 anos da
4ª CNPM, 100% se declaram feministas. Essa porcentagem vai decaindo nas fai-
xas etárias seguintes e se mantém por volta dos 78% entre as mulheres adultas.
Entretanto, as mulheres de 67 anos ou mais voltam a expressar um alto índice
(100%) de autodeclaração enquanto feministas. Como observamos no Gráfico 22,
pode haver um padrão adultocêntrico que influencia a probabilidade de identifi-
cação com o feminismo devido ao pertencimento geracional.

245
Gráfico 22. Autodeclaração enquanto feministra das
4ª CNPM (2016) por faixa etária

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

O pertencimento religioso das delegadas da 3ª CNPM, quando analisado
numa perspectiva geracional (Gráfico 23), nos mostra que há uma grande dife-
rença entre as jovens, as adultas e as idosas. Entre as jovens não há presença do
espiritismo ou de religiões afro-brasileiras, e há uma presença muito mais expres-
siva daquelas que se declaram sem religião e das que pertencem a outras religiões.
As mulheres pertencentes à religião afro-brasileira se concentram nas faixas etá-
rias mais avançadas, tendo sua maior proporção (33.3%) entre as mulheres de 67
anos ou mais.

246
Gráfico 23. Pertencimento religioso das delegadas da
3ª CNPM (2011) por faixa etária.

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Na 4ª CNPM o padrão de pertencimento religioso por faixas etárias nos
mostra variações muito interessantes (Gráfico 24): uma menor expressão de ca-
tólicas entre os grupos mais jovens, havendo uma diminuição progressiva que vai
de cerca de 60% entre as idosas, chegando a 16,7% entre as jovens de 18 a 24 anos;
um crescimento na proporção de delegadas protestantes entre as mais jovens, ha-
vendo um aumento progressivo de cerca de 10% entre as idosas para chegar aos
33,3% entre as jovens de 18 a 24 anos; um crescimento quase exponencial das de-
legadas que se declaram sem religião, saindo de uma taxa de 9,1% entre as idosas,
para chegar aos 32% entre as mulheres de 25 a 31 anos, e aos 50% entre as de 18
a 24 anos.

247
Gráfico 24. Pertencimento religioso da deladas
da 4ª CNPM (2106) por faixa etária

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Como nosso objetivo aqui é também observar os padrões geracionais no


que tange aos posicionamentos sobre o aborto e pensar a relação entre os feminis-
mos jovens e esse debate, apresentaremos a estratificação etária cruzada com os
posicionamentos das delegadas sobre a descriminalização do aborto.
No Gráfico 25 percebemos que é gritante a diferença nos posicionamentos
sobre o aborto de acordo com as faixas etárias das delegadas da 3ª CNPM, sendo
que entre as jovens de 18 a 25 anos 70% são favoráveis à descriminalização do
aborto. Entre as delegadas das outras faixas etárias, mesmo havendo uma sig-
nificativa presença daquelas que defendem a descriminalização, há uma maior
expressividade da perspectiva pela manutenção da lei como era em 2011 ou pela
alteração para abranger o caso dos fetos anencefálicos, posição já amplamente
aceita em diversos âmbitos políticos e institucionais no momento da conferência.
A opinião de que o aborto deve ser proibido em todos os casos quase não se faz
presente entre as jovens delegadas, considerando aqui as de 18 a 31 anos.

248
Gráfico 25. Opinião sobre aborto por idades em faixa etária
das delegadas da 3ª CNPM (2011)

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Na 4ª CNPM a diferença geracional se torna ainda mais marcante no que


tange à opinião sobre o aborto, sendo que 90% das mulheres jovens de 18 a 24
anos se declararam favoráveis à descriminalização do aborto em todos os casos.
Essa proporção continua alta entre as delegadas de 25 a 31 anos (64,7%) e vai
decaindo até chegar ao ponto mais baixo entre as de 39 e 45 anos (43,3%), faixa
etária na qual encontramos maior expressão daquelas que defendem a crimina-
lização do aborto em todos os casos. Após essa faixa etária, a taxa de favoráveis
à descriminalização volta a crescer. A proporção de delegadas que sustentam a
manutenção da lei como está gira em torno dos 30% entre as mulheres de 25 até
as de 52 anos.

249
Gráfico 26. Opinião sobre aborto por idades em faixa etária
das delegadas da 4ª CNPM (2016)

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

Os resultados do survey nos mostram que a autodeclaração como “femi-


nistas” e a participação em grupos de mulheres são fatores que mais influenciam
para que as delegadas sejam favoráveis à descriminalização do aborto em todos
os casos. O que nos mostra que não é o fator puramente etário que influencia na
posição das mulheres, pois é possível ver que, quanto maior o tempo de contato
com o feminismo, maior a chance de ser favorável à descriminalização do aborto,
como vemos no Gráfico 27. Esse fator pode explicar por que as mulheres acima
de 45 anos têm uma posição mais favorável à descriminalização do aborto do que
as mulheres de 39 a 45 anos.

250
Gráfico 27. Opinião sobre aborto das delegadas da 4ª CNPM
por tempo de contato com as ideias feministras e/ou com o feminismo

Fonte: Elaboração própria a partir do Banco de dados da Pesquisa das 3ª e 4ª CNPMs (Nepem/SPM).

A análise dos fatores ideológicos, políticos, religiosos e geracionais que in-


teragem de forma complexa no campo de debate e participação para a construção
de políticas públicas para mulheres não nos permite estabelecer determinantes
causais dos posicionamentos das delegadas das 3ª e 4ª CNPMs. Entretanto, os da-
dos aqui apresentados nos indicam que a crítica realizada pelas jovens feministas
ao adultocentrismo existente no movimento pode ter um sentido mais profundo
que apenas uma demanda por representação proporcional das diferentes faixas
etárias nos espaços de poder e tomada de decisão em torno das políticas para
mulheres.
Os dados nos mostram que há uma tendência a um maior conservado-
rismo entre as mulheres adultas delegadas das CNPMs que entre as jovens e as
idosas. Interpretando tal dado em conjunto com a análise qualitativa que a parti-
cipação nos processos das CNPMs nos permitiu, podemos concluir que há uma
retroalimentação entre a estrutura hierárquica em termos geracionais no campo
do movimento e uma manutenção de lógicas mais tradicionais e conservadoras
nas dinâmicas do campo, seja quanto ao conteúdo das reivindicações e propostas,
seja em relação às formas de expressão e manifestação. O lento avanço do debate
sobre a descriminalização e a legalização do aborto em termos mais concretos

251
no Brasil é um exemplo disso. E as jovens feministas estão contestando e criando
alternativas para avançar na pauta dos direitos sexuais e reprodutivos e defender
a vida das mulheres.

Conclusão

O ponto central do debate sobre o aborto é a questão da autonomia das


mulheres (BIROLI, 2014). Apesar de a SPM ter elegido o tema “Autonomia” como
central na construção de seu programa de políticas públicas, o foco de tais políti-
cas foi no âmbito da autonomia econômica, além do tradicional foco no enfrenta-
mento à violência doméstica. Apesar de a ampliação do direito ao aborto figurar
nas deliberações de todas as CNPMs, não houve ação ou política específica nesse
sentido (exceto pelo apoio a pesquisas sobre aborto induzido no Brasil, como a
PNA), nem de mobilização nem de difusão de informações sobre o aborto ou o
apoio a mulheres que decidiram realizar aborto – no exemplo de linhas de aten-
dimento adotadas por outros países. Nesse sentido, vemos como a criminalização
restringe mesmo o acesso livre à informação que poderia salvar a vida de muitas
mulheres.
A I CNPM teve como deliberação aprovada a proposta de revisão da le-
gislação punitiva sobre aborto. A partir dessa demanda foi criada uma Comissão
Tripartite, composta por representantes do Executivo, do Legislativo e da socie-
dade civil, que elaborou a correspondente proposta de anteprojeto de lei a ser
entregue à Câmara Federal. Entretanto, era o momento onde foram publicadas
as primeiras denúncias do Mensalão, e o governo recuou diante das pressões da
CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). O projeto foi apresentado
pela então ministra Nilcea Freire não ao Presidente da Câmara, mas à Comissão
de Seguridade e Justiça, e o desfecho foi desastroso:

O anteprojeto da Comissão Tripartite, que foi incorporado na forma


de substitutivo ao PL 1.135/1991 – de autoria de Eduardo Jorge (PT-SP)
e Sandra Starling (PT-MG), então sob a relatoria da Deputada Federal
Jandira Feghali (PCdoB-RJ) –, instituía o direito à interrupção da gravidez
até a 12ª semana, e até a 20ª nos casos de estupro, exigindo do SUS e dos
planos de saúde a realização do atendimento. Após 17 anos de complexa
tramitação, em 2008 o PL 1135/1991 foi rejeitado, tanto na Comissão de
Seguridade Social e Família, quanto na Comissão de Constituição e Justiça
e de Cidadania. Este episódio foi um marco, revelando o contexto de maior
retração do debate sobre o direito ao aborto, tanto no Congresso quanto no
âmbito do Executivo. (BIROLI, 2016).

252
A questão dos direitos sexuais e reprodutivos esteve longe de ser uma prio-
ridade nesses 14 anos de governos do Partido dos Trabalhadores. Uma das prin-
cipais razões é seguramente a pressão política dos grupos de direita e conserva-
dores, e mesmo de parte da base aliada do próprio governo que se identifica ou
faz parte da bancada religiosa. Tendo sido um dos fatores de maior polêmica no
debate da mídia em torno das eleições, os candidatos e candidatas foram pressio-
nados a assumir publicamente um posicionamento contrário à descriminalização
e à legalização do aborto (BIROLI; MIGUEL, 2016), que acabou impedindo que
houvesse ações mais contundentes da SPM no debate sobre o aborto.
Após o golpe, vimos o avanço conservador na Secretaria de Políticas para
Mulheres, sendo a nova secretária uma mulher evangélica e favorável à crimina-
lização do aborto em todos os casos, inclusive os já garantidos por lei. Com base
nos dados apresentados constatamos que a criminalização do aborto em todos
os casos é defendida apenas por 14% das delegadas da CNPM de religião protes-
tante, enquanto 44% acreditam que a lei deve permanecer como está e 28% são
favoráveis à descriminalização do aborto em todos os casos. A posição na nova
coordenação da SPM representa, portanto, uma minoria conservadora dentro de
seu próprio segmento religioso.
As experiências de deliberação no âmbito das CNPMs nos mostram que,
mesmo a legalização do aborto ainda sendo um tema controverso entre as mu-
lheres que constroem as políticas para mulheres, essa, ainda assim, é a posição
majoritária. A análise dos dados nos comprova que a descriminalização do aborto
em todos os casos é a posição de mais de 57% das delegadas, enquanto 28% é
favorável à manutenção da lei como ela se encontra atualmente. Essa constatação
nos indica que as ações de promoção dos direitos sexuais e reprodutivos no âm-
bito das políticas públicas para mulheres ainda não refletem as perspectivas das
mulheres participantes da CNPM.
Se analisamos o posicionamento das mulheres mais jovens, vemos uma di-
ferença ainda maior, já que 70% das mulheres até 24 anos são favoráveis à descri-
minalização do aborto em todos os casos. A baixa presença de mulheres jovens
como delegadas nas conferências seguramente se reflete na pouca incorporação
de suas pautas como prioridade na agenda e, especialmente, na concretização des-
tas na execução das políticas públicas para mulheres. Os fatores estruturais que
excluem as mulheres jovens dos espaços de deliberação foram denunciados pelas
jovens feministas, mas apesar de toda a mobilização e articulação realizada ao
longo das CNPMs e da incorporação de algumas demandas nos planos, o número
de mulheres jovens presentes nesse espaço ainda está muito abaixo de sua real
proporção na população brasileira. Estamos, portanto, diante de um persistente

253
problema de sub-representação que tem impactado as políticas para mulheres.
Os feminismos jovens, entretanto, não deixaram de se mobilizar intensa-
mente em prol dos direitos sexuais e reprodutivos e, em especial, em defesa do
aborto legal, seguro e gratuito. Uma série de estratégias de protesto, de comuni-
cação e mídia alternativas e de apoio através de grupos continua sendo levada a
cabo e, apesar da reação conservadora em toda a América Latina, as feministas
seguem com todo vapor em sua campanha em defesa dos direitos, da vida e da
autonomia das mulheres.

Referências

ADRIÃO, Karla Galvão; MÉLLO, Ricardo Pimentel. As jovens feministas: sujeitos políticos
que entrelaçam questões de gênero e geração? In: Anais do Encontro da Associação
Brasileira de Psicologia Social, 2009.
ALVAREZ, Sonia E. et al. (Ed.). Translocalities/translocalidades: Feminist politics of
translation in the Latin/a Américas. Duke University Press, 2014.
________. Encontrando os feminismos latino-americanos e caribenhos. Rev. Estud. Fem.,
Florianópolis, v. 11, n. 2, Dec., 2003.
BIROLI, Flávia. Autonomia e justiça no debate sobre aborto: implicações teóricas e
políticas. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 15, p. 37, 2014.
BIROLI, Flavia. Aborto em debate na Câmara dos Deputados. Cfemea, Ipas e Observatório
de Sexualidade e Política, 2016.
______; MIGUEL, Luis Felipe (Ed.). Aborto e democracia. São Paulo: Alameda, 2016.
COSTA, Elisa G. Juventud, generación y prácticas políticas: procesos de construcción de
la categoría juventud rural como actor político. Revista Argentina de Sociología, 6
(11), p. 237-256, 2008.
CUNHA, Eleonora. Conferências de políticas públicas e inclusão participativa. In:
AVRITZER, Leonardo; SOUZA, Clóvis. (Org.). Conferências nacionais: atores,
dinâmicas participativas e efetividades. Brasília: Ipea, 2013.
DINIZ, Debora; CORRÊA, M. Aborto e saúde pública: 20 anos de pesquisas no Brasil.
Brasília: UnB, 2008. p. 207-16.
______; MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de
urna. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, p. 959-966, 2010.
FARIA, C. F.; SILVA, V. P.; LINS, I. L. Conferências de políticas públicas: um sistema
integrado de participação e deliberação? Revista Brasileira de Ciência Política, v. 7,
p. 249-284, 2012.
GERALDES, Elen Cristina et al. Mídia, misoginia e golpe. Brasília: FAC-UnB, 2016.

254
GÓMEZ-RAMÍREZ, Oralia; CRUZ, Luz Verónica Reyes. Las jóvenes y el feminismo:
¿indiferencia o compromiso?. Debate Feminista, p. 43-63, 2011.
LUNA, Naara. Aborto no Congresso Nacional: o enfrentamento de atores religiosos e
feministas em um Estado laico. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 14, p. 83,
2014.
LUNA, Naara. A controvérsia do aborto e a imprensa na campanha eleitoral de 2010.
Caderno CRH, v. 27, n. 71, 2014.
MARTELLO, Laura. Tensões e desafios na construção de espaços e encontros entre
feministas jovens autonomistas no contexto brasileiro e latino-americano (2011-
2014). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2015.
MAYORGA, Claudia. A questão do aborto em tempos de cólera. Revista em Debate, v. 3,
n. 2, p. 31-38, 2011.
______; MAGALHÃES, Manuela de Sousa. Feminismo e as lutas pelo aborto legal ou
por que a autonomia das mulheres incomoda tanto. Direito de decidir – múltiplos
olhares sobre o aborto, v. 1, 2008.
POGREBINSCHI, Thamy. Conferências nacionais e políticas públicas para grupos
minoritários. Texto para discussão 1741. Rio de Janeiro: Ipea, 2012.
SILVA, Áurea Carolina de Freitas. Mulheres jovens e o problema da inclusão: novidades no
II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. In: PAPA, Fernanda de Carvalho;
SOUSA, Raquel. (Org.). Jovens Feministas Presentes. São Paulo: Ação Educativa:
Fundação Friedrich Ebert; Brasília: Unifem, 2009.
______. Ampliando os limites do Estado: conflito e cooperação entre agentes estatais e da
sociedade civil na luta por inclusão das mulheres jovens na agenda governamental.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
2015.
SOUZA, J. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de
Janeiro: Leya, 2016.
ZANETTI, Julia. Jovens Feministas: um estudo sobre a participação juvenil no Feminismo.
In: Anais Fazendo Gênero 8, 2008, Florianópolis, SC.

255
Divisão sexual do trabalho e usos do tempo:
a inserção temática e o feminismo acadêmico
na SPM e as percepções das mulheres participantes
das CNPMs no Brasil

Breno Cypriano1

Introdução

Em recente divulgação de resultados provenientes dos dados da Pesquisa


Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2016, o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontou que, ao se considerar apenas
o tempo dedicado aos afazeres domésticos e aos cuidados de pessoas, a desigual-
dade de gênero no Brasil é ainda um problema crucial, já que as mulheres traba-
lham praticamente o dobro do tempo (20,9 horas semanais contra 11,1 horas) em re-
lação aos homens nessas atividades (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA
E ESTATÍSTICA, 2017)2. Porém, se observarmos a série temporal dos dados das
pesquisas anteriores, reunidos no Portal do Retrato das Desigualdades em Gênero
e Raça, entre os anos de 2001 e 2015, percebe-se uma ligeira diminuição des-
sa desigualdade na alocação dos usos do tempo, como apresentado no gráfico 1
(INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2017)3. Há de se des-
tacar que essa diminuição não se deveu pelo aumento da participação dos homens
nas tarefas domésticas e de cuidados, mas, à diminuição gradativa do trabalho
das mulheres em tais atividades, talvez pela diminuição do número de filhos, pela
delegação do trabalho doméstico, geralmente, a outras mulheres, pelo aumento
de creches no Brasil ou por outros fatores espúrios. O que se torna importante e
central, neste caso, é evidenciar a relevância ao acesso dessas informações para

1   Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal


de Minas Gerais (PPGCP/UFMG). Agradeço o convite das professoras Marlise Matos e Sonia E.
Alvarez para a participação nesta coletânea. Estendo os meus agradecimentos a Tatau Godinho e
Cristina Queiroz, que durante a minha passagem como consultor em Gênero e Usos do Tempo na
Secretaria de Políticas para as Mulheres me proporcionaram a possibilidade de compreensão da di-
nâmica das políticas públicas nesta temática.
2   Cf. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/
18568-tarefas-domesticas-impoem-carga-de-trabalho-maior-para-mulheres.html
3   Idem.

257
o planejamento, a criação e a execução das políticas públicas voltadas para a au-
tonomia econômica e o empoderamento de mulheres, como também buscar al-
ternativas para a transformação das desigualdades na divisão sexual do trabalho,
buscando-se, afinal, a efetiva incorporação dos homens nas atividades domésticas
e do cuidado.

Gráfico 1: Média de horas semanais dedicadas a afazeres domésticos pela


população de 10 anos ou mais de idade, por sexo (Brasil, 2001-2015)

Fonte: Ipea, 2017.

Diante dessas questões, este capítulo busca compreender como a temática


dos usos do tempo e suas pesquisas foram introduzidas no século XX como uma
forma de se auferir empiricamente sobre a vida cotidiana das famílias inseridas
em uma sociedade industrializada, comparando, dessa forma, as atividades remu-
neradas/mercantis com as não remuneradas. Cabe ressaltar que, para os estudos
de gênero (ou estudos de mulheres) e dos usos do tempo, ganharam visibilidade
a partir da realização do ciclo de Conferências sobre a Mulher (1975-1995) rea-
lizado pela ONU, o que colocou em pauta a necessidade de se perceber o “não
trabalho” realizado por mulheres no ambiente doméstico, ou seja, era necessário
demonstrar empiricamente a subordinação econômica feminina. Dessa forma, a
interseção entre gênero e usos do tempo seria necessária principalmente para a
formulação e para a implementação de políticas públicas eficientes, onde são ne-
cessários informações e indicadores específicos. Cabe ressaltar que a importância
deste capítulo no contexto deste volume, sobre os diversos feminismos no con-
texto das Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, é, justamente,
enfatizar a importância do feminismo acadêmico e sua complexa relação com a
construção do Estado brasileiro e a formulação das políticas públicas.

258
No Brasil, especificamente, por essa razão, a Secretaria de Política para
as Mulheres (SPM),4 a partir das demandas das duas primeiras Conferências de
Políticas para as Mulheres, empenhou-se para que as estatísticas oficiais brasilei-
ras incorporassem quesitos referentes a sexo. Em razão desse objetivo, instituiu,
em 2008, o Comitê Técnico de Estudos de Gênero e Uso do Tempo (CGUT),
que contava com a participação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Participaram, como
convidadas, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONU Mulheres,
entidades das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e Empoderamento das
Mulheres.
Além da discussão temática sobre a divisão sexual do trabalho e os usos
do tempo, o capítulo também se centra no esforço para destacar a importância
política no Brasil em problematizar tal temática, visando aos aspectos institucio-
nais e específicos destas estratégias e, por fim, realiza uma descrição e avaliação
das percepções das participantes das duas últimas CNPMs, a respeito da divisão
sexual do trabalho e suas avaliações quanto ao uso de tempo nas tarefas domésti-
cas. Pretende-se compreender como se dá essa percepção para esse segmento de
mulheres, inclusive comparando-se as suas respostas também à avaliação que te-
riam sobre como teria se transformado no país a situação das mulheres no tempo,
especialmente no comparativo histórico e sobre como essa situação teria, afinal,
evoluído. Atenção e comparação dessas percepções também são realizadas em re-
lação a como estas responderam quando perguntadas sobre qual seria a maior
desigualdade entre homens e mulheres no país e também qual seria o principal
problema ainda a ser enfrentado pelas mulheres no seu município, estado, país.
O capítulo se dividirá em: (i) uma discussão sobre a trama conceitual que
fomenta as discussões sobre a temática da divisão sexual do trabalho e dos usos do
tempo no campo teórico; (ii) a apresentação da inserção da discussão no contexto
do feminismo acadêmico brasileiro; e (iii) as percepções das participantes das 3ª e
4ª CNPMs sobre a temática das desigualdades e divisão sexual do trabalho.

4   Utilizar-se-á aqui a referência ao órgão como Secretaria de Política para as Mulheres (SPM),
ainda que atualmente esta secretaria tenha perdido o status de ministério após a reforma ministerial
e hoje seja uma Secretaria Especial vinculada ao Ministério da Justiça e Cidadania.

259
O emaranhado conceitual feminista – a dicotomia público/
privado, cuidado, divisão sexual do trabalho, usos do tempo
e patriarcado

Esta primeira parte é uma discussão sobre a teoria política feminista,5 que
busca na gênese e na história dos conceitos o entendimento a partir de um ema-
ranhado nodal, que ao se articular dá sentido e estrutura a um campo de conheci-
mento produzido pelo saber feminista. A partir dessa noção, como discutido em
Cypriano (2015), a divisão entre o público e o privado, a noção de cuidado, bem
como o conceito de divisão sexual do trabalho (HIRATA; KERGOAT, 2007) e a
questão dos usos do tempo, são conceitos da teoria política feminista que trazem
a perspectiva de politização do feminismo. Essa politização vem contribuindo
para um entendimento sobre o patriarcado (como conceito centrípeto/central)
que, por sua vez, originou uma visão crítica feminista do Estado e do debate mais
específico sobre as políticas públicas numa perspectiva de gênero, ou a conhecida
transversalidade de gênero.
“O pessoal é político” tornou-se a afirmação que amparou grande parte dos
projetos teóricos da maioria das pensadoras feministas. A problematização da dis-
cussão entre a dicotomia conceitual público/privado unifica os feminismos, já que
todas as correntes possuiriam uma discussão específica sobre o conceito de públi-
co e o de privado, desde o feminismo liberal, o feminismo tradicional marxista,
o radical, o socialista, o psicanalítico, o pós-moderno e até o pós-estruturalista,
que se aproximam, também, no compartilhamento do conceito de patriarcado,
tomando-o como central para a discussão teórica (ELSHTAIN, 1981). A partir
desses esforços, a família (burguesa, nuclear e patriarcal, principalmente) se tor-
nou, e vem se mantendo desde então, central à política do feminismo e um foco
prioritário da teoria feminista.6

5   A partir da discussão sobre teoria política feminista discutida em Cypriano (2015), após expor
uma miríade de elementos que informam sobre esse campo do conhecimento, faria sentido entender
e definir a teoria política feminista como uma estratégia discursiva e de produção de conhecimento, que
informa e é informada pela práxis do ativismo político e das múltiplas e diferentes experiências e rela-
ções entre as(os) atrizes/atores dentro desse campo, que busca, ainda que na sua acomodação disciplinar
dos campos de que faz parte, a saber, a filosofia e a teoria política, o reconhecimento definitivo dessas
áreas por poder informar outra visão e entendimento sobre “a” política. Esse esforço deve ser ampliado,
inclusivo e informado, já que esse tipo específico de saber é consequência de articulações locais e
globais, envolvendo permanentes disputas de poder, como também abrangendo uma multiplicidade
política de atrizes/atores em esferas variadas.
6   Algumas críticas à concepção nuclear e patriarcal da família seriam: para Iris Young (1996), ao
se analisar as questões de gênero e sexualidade como questões de justiça, nota-se que a tradicional
concepção de família limitaria consideravelmente o alcance da justiça, já que o acesso à justiça seria

260
O que acontece na vida pessoal, particularmente nas relações entre os se-
xos, não seria imune à dinâmica de poder, que recorrentemente tem sido notada
como a face distintiva do político. Para Okin (2008 [1998]), o domínio da vida
doméstica e pessoal e aquele da vida não doméstica, econômica e política não
podem ser interpretados isolados um do outro, por isso, as feministas afirmam
que a separação das esferas público/privada legitima a estrutura de dominação
patriarcal de gênero da sociedade e protege uma esfera significante da vida hu-
mana (e especialmente da vida das mulheres) do exame atento ao qual o político
é submetido. É relevante perceber, então, como as esferas “públicas” são generi-
ficadas, já que foram construídas sob a dominação masculina e pressupõem a
responsabilidade feminina pela esfera doméstica. E é importante notar que esses
conceitos foram construídos historicamente (OKIN, 2008 [1998]).
Segundo Susan Okin (2008 [1998]), a noção do que é “o privado” referir-
se-ia à esfera ou às esferas da vida social nas quais a intrusão ou interferência
em relação à liberdade requer justificativa especial, enquanto “o público” indica
uma esfera ou esferas vistas como, geral ou justificadamente, mais acessíveis.
Com isso, na teoria política faz-se o uso do conceito de público e privado para se
referir à dicotomia entre Estado e sociedade e, também, à dicotomia entre vida
não doméstica e doméstica, ou íntima. A primeira forma de distinção, referente
ao liberalismo clássico, seria entre o Estado e a sociedade civil, enquanto, numa
outra chave teórica, os “românticos” (KYMLICKA, 2006 [1990], p. 331) pro-
põem a separação entre o pessoal ou íntimo da noção de público que abrangeria
o Estado e a sociedade civil. Esse deslocamento, até mesmo já incorporado pelo
liberalismo, significou um avanço para o feminismo, já que nas disputas sobre a
primeira dicotomia (Estado versus sociedade civil), as teóricas feministas dariam
maior prioridade à vida social do que à política e, através da segunda dicotomia, a
noção do político seria mais presente para as lutas feministas e suas teorizações –
“a politização do social” (Cf. FRASER, 1989). De acordo com Anne Phillips (1991,
p. 95, tradução nossa):

constrangido às “formas ilegítimas” de família, como os casais homossexuais; para Bette Tallen (2008
[1990]), ao negar a centralidade de famílias homoparentais, principalmente às famílias conformadas
por lésbicas, algumas teóricas feministas ignorariam a questão lésbica, e, por isso, levaria ao separa-
tismo teórico das lésbicas, que, por sua vez, desafiam os papéis tradicionais na família, como também
a noção de maternidade como uma metáfora política dominante; sobre as reinvenções dos vínculos
amorosos, que se envolveriam em redes também sociais e políticas, centrando-se nas relações amo-
rosas homoeróticas e heteroeróticas alternativas e nas configurações da família moderna, a discussão
de Marlise Matos (2000) contempla as diversidade e multiplicação das relações familiares e amorosas
na cena contemporânea, ou modernamente tardia.

261
[...] novos tópicos estão sendo colocados na agenda política, e em vários
casos [a] redefinição sobre o que conta como preocupações públicas tem
transformado as oportunidades para as mulheres se tornarem politicamente
ativas. A política que antes parecia definida por abstrações exóticas tem sido
remodelada para incluir a textura da vida diária, oferecendo para alguns o
que era a primeira abertura para o “debate político”.

A subordinação das mulheres na esfera privada, dentro de casa, se rela-


cionaria à esfera pública, na medida em que a “[...] igualdade na família seria a
condição para a democracia no Estado” (PHILLIPS, 1991, p. 102, tradução nossa).
Ampliar, então, as concepções sobre poder e dominação, focando em diversos es-
paços, é uma das maiores contribuições teóricas do feminismo, que segundo a au-
tora, teria sido notada por Bowles e Gintis (1986), ao demonstrar que dominação
não diz respeito a um único lugar. “A” política deveria ser vista como uma questão
“[...] do ‘devir’, como algo que não pode ser reduzido a uma oferta de recursos,
mas que envolve transformar os interesses que são perseguidos” (PHILLIPS, 1991,
p. 102, tradução nossa) e os principais locais da democracia ou da necessidade da
democratização seriam: o Estado liberal democrático, a economia capitalista e a
família patriarcal (o que conflui na ideia redimensionada da justiça social).
De outra forma, esse dimensionamento pode ser reposto na compreensão
politizada da família através das relações entre mulheres e homens e pais/mães e
filhos que seriam estruturadas pela regulação estatal, pelas condições econômi-
cas e pelo poder patriarcal. Diante dessa questão, para Elshtain (1981), a relação
conflitual entre o “externo” e o “interno” à família geraria tensões que seriam cau-
sadas pela excessiva politização provocada pela vigência de uma esfera pública
excessivamente forte, o que, então, causaria a seguinte enfermidade: “[pais e mães]
que estão frustrados e humilhados, tornados dependentes e indefesos na vida do
trabalho e na cidadania, terão dificuldade em incutir crenças como alicerces e
maneiras de ser em suas famílias” (ELSHTAIN, 1981, p. 337).
Carole Pateman (1993 [1988]) diz que seria, justamente, na discussão que
as teóricas feministas liberais fazem sobre a dicotomia público/privado que os
questionamentos referentes à busca pela universalização dos princípios e direitos
insurgiriam e motivariam críticas. Isso converge para que toda a “teoria políti-
ca feminista” trate a questão sobre “o” político, referindo-se a essa problemática.
Assim, seriam a “denúncia” e a crítica ao caráter patriarcal do liberalismo (e das
demais teorias hegemônicas) dois dos elementos-chave em toda essa discussão.
Existem, ainda, divergências sobre esse tema dentro da própria teoria feminista,
quais sejam: a variação do sentido e o alcance das críticas feministas ao conceito
de público e privado (oriundo das diversas fases do feminismo e nas diferentes

262
vertentes do movimento) e a discussão do movimento feminista contemporâneo
sobre a própria existência dessa distinção. É preciso ressaltar, também, que o pró-
prio liberalismo é impreciso, ambíguo ao definir público e privado, tornando a
questão ainda mais complexa.
Jean Bethke Elshtain (1981) cunha uma própria distinção entre o público
e o privado que se baseia na noção de que as “atividades” seriam diferentes – isto
é, há coisas que são políticas e outras que não são. Com isso, segundo Phillips
(1991), ela chamaria a atenção para evitar o problema de se pensar “[...] que [se]
tudo em nossas vidas é um problema político, então nós estaremos abertos a pen-
sar que tudo tem uma solução política” (PHILLIPS, 1991, p. 105, tradução nossa).
A associação entre o pessoal e o político não deveria se exaurir em toda e qual-
quer forma de democratização. Para Phillips, haveria distinções entre estes dois
conceitos, o “pessoal” e “o” político, que se sobrepõem um ao outro: é recorrente
haver interpretações enganadas quanto “ao que seria um problema político”, pois
poderiam referir-se aos locais onde há a atividade de estender o controle sobre
decisões que todos e todas estão envolvidos, como é no trabalho, ou referir-se
também aos espaços tradicionalmente que seriam definidos como “a” política.
Haveria um sério problema aí: o “feminismo consultaria justamente a ênfase ex-
clusiva na ‘política’ como convencionalmente definida e tem salientado muitas ve-
zes as questões mais imediatas de tomar o controle onde vivemos e trabalhamos”,
e, como a autora alerta, “essa insistência positiva sobre a democratização da vida
cotidiana não deve se tornar um substituto para uma vida política mais vivaz e
vital” (PHILLIPS, 1991, p. 119, tradução nossa). De maneira geral, as contribui-
ções feministas para politizar e democratizar as relações do privado incidiram nas
seguintes ações detalhadas:

Feministas têm criticado a ortodoxa divisão entre o público e o privado,


apresentando um desafio poderoso e radical às noções existentes de demo-
cracia. Elas têm ampliado o nosso entendimento das precondições para a
igualdade democrática, e trazido para a discussão a divisão sexual do traba-
lho em casa e no trabalho. Elas têm desafiado (ainda que com algumas im-
portantes reservas) a noção de que o que acontece no privado é um interesse
privado, e faz que pareça ser um caso sem resposta para a democratização
das relações e decisões em casa. Elas alargaram a nossa concepção sobre
as práticas que são relevantes, colocando na órbita da democracia a forma
como falamos com o outro, a forma como nós nos organizamos, a forma
como escrevemos. Elas se apegaram a uma visão de democracia como algo
que importa em cada detalhe e onde estivermos. Com todas essas extensões
maravilhosas, o feminismo permanece preso no que Sheldon Wolin (1982:

263
28)7 considera como política do seu próprio quintal? (PHILLIPS, 1991, p.
115-116, tradução nossa).

Outra importante contribuição para o debate sobre as noções referentes


ao político, ou à (des)politização de conceitos, é a contribuição do conceito de
“cuidado” que, para Joan Tronto (1996, p. 151), seria imprescindível a uma “teoria
política feminista”, já que este seria um conceito concebido como essencialmente
apolítico. Para avançar numa direção oposta, ou seja, a de se politizar o cuidado, a
autora sugere a seguinte conceituação: cuidado seria “[...] uma espécie de atividade
que inclui tudo o que fazemos para nos manter, continuar e reparar nosso ‘mundo’
para que possamos viver nele o tão bem quanto for possível. Este mundo inclui
nossos corpos, nossos egos, e o nosso ambiente, tudo o que nós procuramos se
entrelaça em uma complexa rede de vida sustentável” (FISHER; TRONTO, 1991,
p. 40 apud TRONTO, 1996, p. 142, tradução nossa, itálicos da autora). Através
desse esforço, Tronto procura denunciar que a própria exclusão e a não tematiza-
ção do cuidado (como de outros conceitos utilizados pelas feministas) nos espa-
ços políticos seriam, em si mesmas, um projeto profundamente político. Logo, a
recente discussão conceitual nessa direção envolveria necessariamente uma trama
complexa de processos relativos ao cuidado que, por sua vez, revelaria uma for-
ma estratégica na nossa atual situação política, como também uma vital atividade
ontológica.
Somado à discussão sobre o público e o privado, de acordo com Hirata e
Kergoat (2007),

bem como a questão do cuidado, as análises passaram a abordar o trabalho


doméstico como atividade de trabalho tanto quanto o trabalho profissional.
Isso permitiu considerar “simultaneamente” as atividades desenvolvidas na
esfera doméstica e na esfera profissional, o que abriu caminho para se pen-
sar em termos de “divisão sexual do trabalho”. (HIRATA; KERGOAT, 2007,
p. 597-598).

Para essas autoras:

A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social de-


corrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator

7   O teórico político Sheldon Wolin possuiu uma visão demasiadamente realista (para não dizer
pessimista) sobre os movimentos populares, já que, mesmo com a surpreendente variedade e abran-
gência desses movimentos, ele salienta que é necessário reconhecer que a sua vitalidade e importân-
cia democrática têm limitações políticas, devido ao localismo e a limitações. A política deve deter-se
com problemas abrangentes, e não com questões paroquiais levantadas por esse tipo de movimento,
evitando-se assim uma “política de quintal” (PHILLIPS, 1991, p. 48-49).

264
prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma
é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação
prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reproduti-
va e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior
valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc). (HIRATA;
KERGOAT, 2007, p. 599).

Diante de tal definição, as autoras acrescentam que haveria a necessida-


de de se pensar a divisão sexual do trabalho para além do plano conceitual, in-
cluindo uma discussão sobre princípios e modalidades. Os princípios estariam
relacionados à “separação”, relacionando à diferença entre trabalhos de homens e
mulheres, e à “hierarquia”, a valorização diferenciada entre esses trabalhos. Com
relação às modalidades, as autoras entendem, “[...] por exemplo, a concepção do
trabalho reprodutivo, o lugar das mulheres no trabalho mercantil etc.” (HIRATA;
KERGOAT, 2007, p. 600).
Diante da desigualdade na divisão sexual do trabalho, principalmente pela
não valorização do trabalho reprodutivo e as tarefas do cuidado, segundo Barajas
(2016), “[...] pesquisas sobre uso do tempo e trabalho não remunerado permitem
mostrar que a carga de trabalho não remunerado, desigual, tem embasamento
na discriminação contra mulheres.” (BARAJAS, 2016, p. 22). De acordo com essa
autora, é importante ressaltar que as pesquisas sobre os usos do tempo ainda per-
mitem quantificar o trabalho e contribuição “invisível” das mulheres, principal-
mente na esfera privada. Sobre a dinâmica dessa temática, Neuma Aguiar (2011)
pontua que:

Pesquisas de uso do tempo medem a quantidade de tempo despendida por


uma determinada população em atividades cotidianas. Essas dimensões
temporais servem para orientação prática e estão imersas na cultura. Os
ritmos temporais estão vinculados a períodos históricos, e há mudanças nas
práticas que demoram a ocorrer, e outras que são mais aceleradas. Uma
das finalidades das pesquisas de uso do tempo é a da condução de com-
parações internacionais sobre as formas de organização do dia a dia das
populações, permitindo observar distintos impactos da organização eco-
nômica, da estrutura política e de distintas formas culturais de orientação
cotidiana. O primeiro grande projeto de impacto internacional foi condu-
zido por Alexander Szalai e associados em 1966. Para interpretar os dados
do Brasil, Amaury de Souza (1976) inseriu os seus achados dentro de um
quadro comparativo com os dados obtidos por Szalai e associados. Para
compreendermos bem tal quadro, buscamos ajuda nos textos publicados da
pesquisa internacional comparada efetuada por Szalai (1972). (AGUIAR,
2011, p. 74).

265
Diante disso, a importância política das temáticas da divisão sexual do
trabalho e dos usos do tempo deve levar em consideração que “[a] formulação,
implementação e avaliação de políticas exige, para avançar na igualdade entre ho-
mens e mulheres, pesquisas (argumentos) em maior número e qualidade [...]”
(BARAJAS, 2017, p. 22). Na configuração desse plano e emaranhado conceitual,
há de se destacar que a política, tal como é compreendida pela dinâmica de cons-
trução do Estado Moderno, é patriarcal. O patriarcado, que é a ideia norteadora e
centrípeta até hoje do campo feminista do conhecimento político, que anos mais
tarde também foi um conceito muito trabalhado por autoras como Pateman (1993
[1988]) e Walby (1990), pode ser aqui, então, compreendido como uma forma de
poder político que reforça o direito patriarcal como uma forma específica de direito
político, singular, em que todos os homens exercem pelo fato de serem homens, não
só na esfera privada como na esfera pública. Walby aponta a discussão sobre o
Estado e o patriarcado em sua obra relativa à divergência das correntes feministas
liberal, marxista, da teoria feminista de sistemas-duais e do feminismo radical. O
que Walby conclui é que há certo avanço nas políticas de bem-estar, ainda que o
Estado continue patriarcal como também ainda permanece capitalista e racista.
Porém, ainda que as mulheres possam, com essas políticas, sar da esfera privada e
entrar em certas posições na esfera pública, elas não conseguem acender a certas
posições desejáveis em cargos públicos, pois não há ainda igualdade de ascensão
nessas esferas de poder, como a autora observa (WALBY, 1990, p. 171-172).
Para outra autora feminista, Catharine MacKinnon (1995 [1989]), o femi-
nismo carecia de um tratamento teórico sobre o Estado, como também de uma
abordagem crítica sobre o poder em uma forma institucionalizada e burocrati-
zada. Pelo movimento feminista até então desconsiderar a dimensão de gênero
como uma determinante da conduta estatal, dá-se a impressão de que a conduta
do Estado era indeterminada, mas, ao contrário, o poder masculino dentro do
Estado é sistêmico. Por isso, o regime estatal masculino é coativo, legitimado e
epistêmico. Essa autora, portanto, propõe uma “teoria feminista do Estado” que
insere e considera em sua discussão, sobre a análise do poder institucionalizado
do Estado, as questões legais e a interpretação social da mulher.
O debate internacional em relação às opressões e desigualdades entre os
sexos era ainda latente e pouco problematizado na década de 1970, quando a
Organização das Nações Unidas deu importantes passos. Em 1975 instaurou-se
o Ano da Mulher e no período de 1975-1985 foi decretada a “Década da Mulher”,
período no qual se realizaram quatro grandes Conferências Mundiais sobre a
Mulher, entre os anos de 1975 e 1995. Do ponto de vista pragmático, esse pro-
cesso de mobilização internacional assinalou que a intervenção sobre as desigual-
dades e as opressões sofridas pelas mulheres deveria ser assunto de Estado e que

266
a formulação de políticas públicas voltadas para demandas específicas contribui-
riam com a promoção da igualdade de gênero.
Dessa forma, passou-se a utilizar, a partir da Terceira Conferência Mundial
da Mulher, a noção de “transversalidade de gênero” (gender mainstreaming) tanto
como um conceito, quanto também como uma prática das políticas públicas e
sociais. Esse conceito é discutido, neste volume, também no capítulo que proble-
matiza as redes de participação e ativismo das delegadas (capítulo 3). Atualmente,
esse é um dos conceitos orientadores do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à
Violência contra Mulheres. Segundo Sylvia Walby (2005), ao incluir a perspectiva
de gênero na agenda governamental, tal noção faz que se reoriente e transforme
os paradigmas antes vigentes das políticas públicas (que geralmente são burgue-
ses, patriarcais, brancos, heterossexuais). Dessa forma, ficou-se estabelecido que:

Transversalidade da perspectiva de gênero é o processo de avaliação das


implicações para mulheres e homens de qualquer ação planejada, incluin-
do legislação, políticas ou programas, em todas as áreas e em todos os ní-
veis. É uma estratégia para fazer com que as preocupações e experiências
das mulheres, bem como as dos homens, sejam uma dimensão integrante
da concepção, implementação, monitoramento e avaliação de políticas e
programas em todas as esferas políticas, econômicas e sociais para que as
mulheres e os homens se beneficiem igualmente e a desigualdade não seja
perpetuada. O objetivo final é alcançar a igualdade de gênero. (UNITED
NATIONS ECONOMIC AND SOCIAL COUNCIL, 1997, tradução nossa).

Mas cabe destacar que tal perspectiva é fortemente contestada por analis-
tas e teóricas. De acordo com Alyson Woodward (2008), as contestações surgem
porque a transversalidade de gênero é uma novidade, sendo uma técnica e uma
prática advinda da governança global. As contestações também são decorrentes,
para a autora, da popularidade da ideia, já que o termo “transversalidade” tem
sobrevivido, enquanto a discussão em torno da noção de “gênero”, propriamente,
tem se perdido.
A partir da noção de transversalidade, Woodward (2008) problematiza
alguns pontos interessantes. O primeiro deles é que o debate sobre “igualdade
de gênero” retomaria as discussões sobre igualdade versus diferença, que fica-
ram conhecidas como o “Dilema de Wollstonecraft”. A autora ressalta que, pa-
radoxalmente, homens e mulheres devem ser tratados como iguais diante da lei,
por buscarem os mesmos direitos, porém eles ainda manteriam suas diferenças.
Outro ponto-chave para a autora seria o gesto ambicioso de se “integrar todas as
políticas” sob uma mesma ótica. A última questão ressaltada pela autora é que
gênero é uma concepção que ultrapassa o conceito de “mulheres”. Porém, como

267
Woodward acrescenta, muitas políticas e relatorias de transversalidade de gênero
vão entender esse conceito como “o problema da mulher”, ou como outra questão
que não diz sobre as desigualdades entre homens e mulheres, e isso é um proble-
ma primário.
Diante dessas questões de políticas públicas, o eixo sobre a questão de au-
tonomia econômica das mulheres e as questões no mundo do trabalho foi uma
das bandeiras que o movimento feminista discutiu extensivamente (ver o capítulo
1 de Schumaher, neste volume), tendo refletido bastante sobre a tensão existente
entre a esfera pública e a privada. A dupla jornada de trabalho das mulheres e, de-
pois, os estudos sobre o uso do tempo tornaram-se pautas importantes da agenda
feminista. A teoria feminista denuncia a dualidade diante da questão da produção
versus a reprodução e que, por muito tempo, a ideia de trabalhos complementares
(trabalhos domésticos e de cuidado seriam responsabilidade das mulheres) foi
uma estratégia de dominação utilizada por homens para manter as mulheres em
posições socialmente desvalorizadas. A sobrecarga de trabalho com os filhos e
o trabalho doméstico faz que as mulheres tenham menos horas do seu dia para
lazer e descanso, por isso a questão sobre políticas públicas para se repensar a
divisão sexual do trabalho e o trabalho doméstico, bem como sobre paternidade,
tem entrado em discussão em países de bem-estar social e outros que estão com-
prometidos com políticas de gênero e para as mulheres.
No caso do Brasil, pensando na necessidade de se produzir indicadores de
gênero que subsidiassem a formulação de políticas públicas para as mulheres, a
SPM, guiada pela Ação 11.2.22, do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
(II PNPM) de “Instalar o Comitê de Gênero e Uso do Tempo no âmbito do IBGE”,
criou o CGUT. Diferente do que estava no plano, foi no âmbito da SPM que se
instalou, em 2008, o Comitê Técnico de Estudos de Gênero e Uso do Tempo,
que contou com a participação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Participaram como
convidados: a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONU Mulheres,
entidade das Nações Unidas para a promoção da igualdade de gênero e do empo-
deramento das mulheres. Segundo Lourdes Bandeira:

O pioneirismo da SPM responde às demandas sociais das mulheres, expres-


sadas nas Conferências Nacionais sobre os Direitos das Mulheres e con-
substanciadas nos I e II PNPM. Seguramente as análises sobre o trabalho
reprodutivo e a economia dos cuidados ainda são incipientes e padecem de
falta de estatísticas adequadas. Perante tal fato, a SPM e IBGE juntaram-se
em uma parceria para suprir esta lacuna e desenhar a pesquisa em curso, a
PNAD Contínua, que investiga sobre os usos do tempo, na complexa dinâ-
mica da divisão sexual do trabalho. (BANDEIRA, 2011, p. 59).

268
A partir dessa prática, a próxima discussão deste capítulo focará especifi-
camente em um breve levantamento histórico sobre a produção acadêmica dos
estudos de gênero, divisão sexual do trabalho e pesquisas sobre usos do tempo no
Brasil e a relação dos núcleos de pesquisa sobre mulheres e feminismo presentes
em todo o território nacional.

Estudos e pesquisas sobre as mulheres, feminismo e gênero e


os usos do tempo no Brasil

O feminismo acadêmico ocuparia, atualmente, espaços em várias matri-


zes disciplinares, porém, com o efeito da institucionalização, também surgiram
os Estudos de Mulheres, Estudos de Gênero e Estudos Feministas, que envolveram
tanto razões acadêmicas, como razões políticas (JAGGAR, 2009, p. 191). Segundo
Wendy Brown (1997, p. 81, tradução nossa), “[o] desejo pelo status disciplinar foi
significado pela pretensão de uma teoria e método distintos (assim como os estu-
dos sobre as mulheres necessariamente desafiaram a disciplinaridade) e o desejo
de vencer o desafio radicalizado dos primeiros objetos dos estudos das mulheres
em institucionalizar esse desafio no currículo”.
A partir da década de 1960, o feminismo acadêmico ocidental definiu metas
para essas disciplinas, que passaram por disputas internas, apontando a fragmen-
tação e as fraturas dos Estudos da Mulher, porque essa disciplina não seria de uma
conversação única, mas estaria engajada em vários domínios do conhecimento e
em diversas correntes teóricas. Também essa institucionalização foi, políticamen-
te e teoricamente, incoerente, ao passo que seria implicitamente conservadora por
circunscrever as discussões unicamente às “mulheres” como os principais objetos
de estudo.
Em represália a esse movimento, o papel de algumas teorias e autoras, como
as teorias pós-coloniais, queer e raciais, foi de desestabilizar a categoria “mulhe-
res” e, além de denunciar o determinismo biológico, atribuíram questionamentos
importantes sobre as questões raciais e as sexualidades menosprezadas. Na década
de 1970, principalmente, devido à “[...] questão da divisão entre os ‘estudos das
mulheres’ e da teoria feminista, a insídia política da divisão institucional entre
‘estudos étnicos’ e ‘estudos das mulheres’, [e] uma divisão da mesma forma preo-
cupante entre queer e teoria feminista [...]” (BROWN, 1997, p. 82, tradução nos-
sa), algumas estratégias foram tomadas renegociando teorias, metodologias e os
conceitos centrais.
No Brasil, o trabalho de livre-docência “A mulher na sociedade de clas-
se: mito e realidade”, de Heleieth Saffioti, defendido sob orientação do professor
Florestan Fernandes, em 1967, inaugurava uma série de estudos feministas que

269
se dedicavam a pesquisar a divisão sexual do trabalho, muito influenciadas na
época pelas teorias marxistas e socialistas. De acordo com Heilborn e Sorj (1999),
a temática de gênero era um dos interesses centrais da Ford Foundation naquele
momento, por isso, as diversas dotações para pesquisas que a Ford Foundation,
nas décadas de 1970 e 1980, investiu na área acadêmica possibilitaram às feminis-
tas, através da Fundação Carlos Chagas, a realizar pesquisas inéditas no cenário
nacional.
De acordo com Albertina Costa (1994), é durante a década de 1980 que a
temática “cresce e se diversifica vertiginosamente”, o que dá início à instituciona-
lização dos núcleos de estudo e pesquisa (ver Quadro 1). Segundo a autora, esses
núcleos de estudo sobre a mulher e gênero funcionaram, no meio acadêmico, de
forma diversificada cumprindo a “função tríplice”, extensão, ensino e pesquisa e
serviram também como um meio de apoio aos cursos de pós-graduação e como
uma forma de favorecer a formação de novas pesquisadoras e pesquisadores.

Quadro 1: Primeiros núcleos universitários de estudos


sobre relações de gênero (ano de fundação)
Ano Núcleo
1980 Núcleo de Estudos sobre a Mulher (PUC/RJ)
1981 Núcleo de Estudos, Documentação e Informação sobre a Mulher (Nedim/UFC)
1983 Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (Neim/UFBA)
Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher (Núcleo Mulher/UFRGS)
1984 Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem/UFMG)
Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Gênero (NEG/UFSC)
1985 Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero (Nemge/USP)
Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos (Ciec/UFRJ)
1986 Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre a Mulher (Nepem/UnB)
Núcleo de Assistência ao Autocuidado da Mulher (Naam/USP)
GT Sexo e Relações de Gênero/Núcleo de Documentação e Informação
1987
Histórica e Regional (NDIHR/UFPB)
1988 Grupo de Estudos de História da Educação da Mulher (Gehem/FAE/UFMG)
Núcleo Temático Mulher e Cidadania (NTMC/Ufal)
1989 Núcleo Nisia Floresta de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações Sociais
de Gênero (Nepam/UFRN)
Gênero e Sociedade (Iuperj)
Núcleo de Estudos, Pesquisa e Assistência à Saúde da Mulher (EPM)
Pagu Centro de Estudos do Gênero (PAGU) (Unicamp)
1990
Núcleo de Estudos sobre Gênero Afetividade (NEGA/UFMG)
Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (Geerge/UFRGS)
Núcleo de Estudos Teológicos da Mulher na América Latina (Netmal/IMS)
Fonte: COSTA, 1994.

270
No final da década de 1980, em 1989, o Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher realizou um levantamento de grupos, instituições e associações de mu-
lheres através das relações dos participantes nos 8º e 9º encontros feministas, que
aconteceram em Petrópolis e Garanhuns, respectivamente, e buscaram catalogar
as principais áreas de atuação, os objetivos/atividades e a clientela destes. Diante
desta publicação, foi feito um recorte dos grupos que realizavam como atividade
“estudo-pesquisa”. Cabe ressaltar que a produção de conhecimento não se limita-
va aos núcleos acadêmicos, mas também abarcava instituições governamentais,
como recém-criados organismos de políticas para as mulheres, conselhos, subse-
cretarias, mas também organismos não-governamentais e movimentos feministas
e outros movimentos sociais.

Quadro 2: Lista de instituições que realizavam


estudo-pesquisa em 1989 (CNDM)
Ano de
UF Tipo Núcleo Cidade
fundação
Cema – Centro da Mulher
Alagoas Outros 1982 Maceió
Alagoana
Núcleo de Núcleo de Estudo e Pesquisa
Alagoas 7/1985 Maceió
Estudo/Ufal sobre a Condição Feminina
Instituições
Distrito Comissão de Apoio à Mulher
Governamentais/ 2/1986 Brasília
Federal Trabalhadora Rural
Mirad/Sepai
Distrito Núcleo de Núcleo de Estudos e Pesquisas
12/1986 Brasília
Federal Estudo/UnB sobre a Mulher – NEPeM
Instituições Coordenação de Proteção
Distrito
Governamentais/ ao Trabalho da Mulher e do 11/1975 Brasília
Federal
MT Menor
Espírito Centro de Integração da
Outros 4/1983 Vitória
Santo Mulher
Instituições
Secretaria de Estado da
Goiás Governamentais/ 3/1987 Goiânia
Condição Feminina
Secretaria
Transas do Corpo – Ações
Goiás Outros Educativas em Saúde e 4/1987 Goiânia
Sexualidade
União de Mulheres de
Goiás Outros 8/1987 Abadiana
Abadiania – UMA
Assessoria de Assuntos para a
Maranhão Outros Mulher do Conselho Regional 1987 São Luís
de Medicina
Núcleo de Estudos e Pesquisas
Minas Núcleo de Belo
sobre a Mulher da UFMG – 9/1984
Gerais Estudo/UFMG Horizonte
Nepem

271
Minas Grupo de Trabalho – A Mulher Belo
Outros 12/1985
Gerais na Literatura Horizonte
Conselho Municipal dos
Pará Outros 3/1987 Belém
Direitos da Mulher Belém/PA
Associação Brasileira de
João
Paraíba Outros Mulheres na Carreira Jurídica 4/1987
Pessoa
Subcomissão Paraíba
Grupo de Mulheres Negras de João
Paraíba Outros 3/1987
João Pessoa Pessoa
Grupo Feminista Maria João
Paraíba Outros 10/1974
Mulher Pessoa
Centro Mulher – Centro de
Pernambuco Outros 9/1984 Recife
Estudos e Documentação
Grupo de Estudos e Pesquisas
Núcleo de
Pernambuco da Condição da Mulher da 9/1986 Recife
Estudo/UFPE
UFPE – Gepem
Pernambuco Outros Grupo de Estudos da Mulher 6/1985 Recife
SOS Corpo – Grupo de Saúde
Pernambuco Outros 3/1982 Recife
da Mulher
Associação de Mulheres de
Paraná Outros 10/1985 Curitiba
Carreira Jurídica/PR
Conselho Estadual da
Paraná Outros 10/1985 Curitiba
Condição Feminina
Movimento Popular de
Paraná Outros 1980 Curitiba
Mulheres do Paraná
Rio de Rio de
Outros Centro da Mulher Brasileira 10/1975
Janeiro Janeiro
Rio de Centro de Estudos e Pesquisas Duque de
Outros
Janeiro da Baixada Fluminense Caxias
Rio de Ciec- Programa de Estudos Rio de
Outros 8/1986
Janeiro Feministas Janeiro
Rio de Rio de
Outros Grupo Ceres 3/1975
Janeiro Janeiro
Grupo de Pesquisas sobre as
Rio de Rio de
Outros Condições de Saúde e Trabalho 7/1987
Janeiro Janeiro
da Mulher
Rio de Grumin – Grupo Mulheres Rio de
Outros
Janeiro Educação Indígena Janeiro
Rio de Núcleo de Laboratório de Estudos Sobre Rio de
3/1988
Janeiro Estudo/IUPERJ a Mulher Janeiro
Mulheres por um
Rio de Rio de
Outros Desenvolvimento Alternativo 8/1984
Janeiro Janeiro
(Mudar/Dawn)
Rio de Núcleo de Núcleo de Estudos sobre a Rio de
6/1980
Janeiro Estudo/ PUC Rio Mulher Janeiro

272
Rio de Núcleo de Recursos Humanos
Outros 12/1980 Niterói
Janeiro em Saúde
Rio de OAB/MULHER – Comissão Rio de
Outros 9/1985
Janeiro Feminina/RJ Janeiro
OAB/MULHER – Sub
Rio de Barra
Outros Comissão da Mulher 7/1987
Janeiro Mansa
Advogada Barra Mansa
Conselho Municipal dos
Roraima Outros 9/1987 Boa Vista
Direitos da Mulher
Centro de Informação e
Rio Grande Porto
Outros Pesquisa Angelina Gonçalves 4/1986
do Sul Alegre
– Cipag
São
Associação de Mulheres de São
São Paulo Outros 5/1987 Caetano
Caetano do Sul
do Sul
São Paulo Outros Centro de Memória Sindical 6/1980 São Paulo
Coletivo de Pesquisa sobre a
São Paulo Outros 1975 São Paulo
Mulher
Comitê Técnico Permanente de São
São Paulo Outros Estudo e Defesa dos Direitos 6/1988 José dos
da Mulher Campos
Conselho Estadual da
São Paulo Outros Condição Feminina de São 4/1983 São Paulo
Paulo
Conselho Estadual da São
São Paulo Outros Condição Feminina de São 3/1986 José dos
José dos Campos Campos
Conselho Estadual da
São Paulo Outros 6/1986 Marília
Condição Feminina de Marília
Grupo de Saúde da Mulher
São Paulo Outros Div. Saúde Materna e da 12/1983 São Paulo
Criança
Instituto de Estudos
Interdisciplinares sobre as
São Paulo Outros 1982 São Paulo
Relações Sociais de Gênero –
Ieros
Mulher – Imagens do
São Paulo Outros 1986 São Paulo
Cotidiano Campos
Núcleo de Núcleo de Estudos da Mulher e
São Paulo 1986 São Paulo
Estudo/USP Relações Sociais de Gênero
São Paulo Outros Rede Mulher 1983 São Paulo
Fonte: CNDM, 1989.

Sobre a temática do uso do tempo, as pesquisas realizadas pelo húngaro


Alexander Szalai, nos países da antiga URSS, e, no Brasil, por Amaury de Souza

273
(em 1973), foram seguidas pelo pioneirismo da professora Neuma Aguiar, tanto
teórico, quanto metodológico, ao introduzir a discussão do uso do tempo para
os estudos feministas e de gênero na academia brasileira, após a realização, em
1978, do seminário “A mulher na força de trabalho na América Latina”, na sede
do Iuperj. Esse seminário foi o embrião para a formatação, tendo alavancado o
grupo de trabalho nos encontros da Associação Nacional de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (Anpocs), em 1979, conhecido como GT “A Mulher na força de
trabalho”, que congregou pesquisadoras e pesquisadores que debateram as temá-
ticas, tanto da mulher no mercado de trabalho quanto a discussão de novas me-
todologias para os novos estudos feministas, que recém surgiam no Brasil. Como
Britto e Neto (1982) afirmam:

A preocupação com a temática “Tempo de Trabalho”, de sua utilização na


investigação microanalítica e de sua condução, em uma instância, a um
corpo teórico abrangente, fico patenteada com a resolução do Grupo de
Trabalho Mulher na Força de Trabalho da Anpocs, em sua Reunião Anual
de 1981 de, na medida do possível explorar-se essa vertente na busca de uma
avaliação tanto quanto possível, nacional. (BRITTO; NETO, 1982, p. 1).

Quadro 3: GT Mulher e a Força de Trabalho nos


Encontros da Anpocs 1979/1989
Encontro
da Ano Local Trabalhos apresentados no GT “A Mulher na Força de Trabalho”
Anpocs
Alice Rangel de Paiva Abreu (USP) – O Mundo da Costura: algumas
considerações sobre o trabalho assalariado e atividades independentes
na indústria da confecção
Fanny Tabak (PUC/SP) – Associações Femininas como Grupos de
Pressão Política
Lúcia Ribeiro de Souza (IBGE) – O trabalho feminino e a estrutura
Belo familiar
III 1979
Horizonte Maria Moraes, Cristina Bruschini e Carmem Barroso – Unidades
Domésticas, Organizações de Mulheres e Estratégias de Sobrevivência
no Brasil***
Parry Sccott (UFPE) – A Produção Doméstica e a Mulher no Recife
Zaira Ary Farias (UFC) – Aspectos relacionados com a situação da
mulher – dona de casa face ao trabalho doméstico e extradoméstico:
algumas notas

274
Felícia R. Madeira e Maria Q. de Moraes (USP) – Notas Preliminares
sobre a evolução do trabalho feminino no Brasil 68/78: algumas
reflexões sobre o tema “mulher e trabalho”***
Cheywa Spindel – A mulhera na indústria do vestuário
Amélia Rosa Sá Barreto Teixeira, Ana Clara Torres Ribeiro e
Filippina Chinelli Casa e Fábrica: a organização política da Mulher
trabalhadora***
Heleieth Saffioti – O impacto da industrialização na estrutura do
emprego feminino
Neuma Aguiar (Iuperj) – Um guia exploratório para a compreensão do
Rio De
IV 1980 trabalho feminino***
Janeiro
Liliana Acero – La Mujer en el proceso de trabajo – una fábrica textil
Maria Valéria Junho Penha (UFRJ) – A Revolução de 30, a família e o
trabalho feminino
Simon Schwartzman – A Igreja e o Estado Novo: O Estatuto da Família
Selene Herculano dos Santos – A mulher de formação universitária em
algumas empresas estatais
Vera Maria Cândido Pereira (UFRJ) – A dupla subordinação das
mulheres – análise de depoimentos de operárias têxteis
Zahidé Machado Neto (UFBA) – Mulher e Estado – Funcionária
Pública: A dona de casa nas “repartições”
Alda Brito (UFBA) – Emprego Doméstico no Capitalismo – O caso de
Salvador
Alice Range Paiva de Abreu – Algumas considerações sobre a posição
trabalhista de costureiras externas na indústria de confecção no Rio de
Janeiro
Francisca Laíde de Oliveira, Jane Souto de Oliveira, Rosa Maria Porcaro,
Tereza Cristina Costa – Desvendando o trabalho da Mulher: notas para
uma discussão
Heitor Mansur Caulliraux (UFRJ) – Formas de resistência na indústria
do vestuário
Nova Heleith Saffioti e Vera Lúcia Botta Ferrante (Unesp/Araraquara)–
V 1981
Friburgo Mulher e trabalho numa zona rural paulista
Maria José Carneiro – Ajuda e trabalho: a subordinação da mulher no
campo
Maria Valéria Junho Pena (UFRJ) – Lutas Ilusórias: As mulheres na
política operária da Primeira República
Marina Figueiredo de Mello (Puc Rio) – O mercado de trabalho: uma
abordagem da participação feminina
Zahidé Machado Neto (UFBA) – A força de trabalho da mulher no
espaço do bairro
Zaira Ary Farias (UFC) – A situação das mulheres na sociedade de
classes: o valor social do trabalho doméstico

275
Alda Britto e Zahidé Machado Neto (UFBA) – Tempo de Mulher,
Tempo de Trabalho: Entre Mulheres Proletárias em Salvador***
Heleith Saffioti e Vera Lúcia Botta Ferrante (Unesp/Araraquara)–
Trabalhadoras rurais: exclusão e contradição
Maria Coleta Oliveira (USP)- O trabalho feminino e trabalho familiar:
um estudo sobre trabalhadoras agrícolas em São Paulo, Brasil
Mariza de Athayde Figueiredo – Orçamento de tempo: método aplicado
Nova
VI 1982 pelas Ciências Sociais nas pesquisas de campo***
Friburgo
Neuma Aguiar (IUPERJ) – Orçamento de tempo em perspectiva
comparada: uma proposta de pesquisa***
Zaira Ary Farias – Contribuições recentes para o estudo de orçamento
de tempo: uma resenha***
Zuleica Oliveira, Márcia Vianna e Juarez Oliveira – Aspectos
sociodemográficos do trabalho feminino nas áreas urbanas do estado de
São Paulo: 1970-1976
Anamaria Beck, Claudia Maria Costa, Eugenio Pascele Lacerda, João
Carlos Torrens – Um trabalho atoa: a produção e a comercialização da
renda de bilro e suas implicações para a economia familiar
Gilda de Castro Rodrigues (UFPB) – Camponesas no Cariri Paraibano
Luciano Figueiredo e Ana Maria Bandeira Magualdi – Negras de
tabuleiros e vendeiras: a presença feminina na desordem mineira no
século XVIII
Marcus Figueiredo – Estudo comparativo do papel socioeconômico
das mulheres chefes de família em duas comunidades negras de pesca
Águas de artesanal (costa atlântica)
VII 1983
São Pedro Maria Malta Campos, Marta Grosbaum, Regina Pahim, Fúlvia
Rosemberg – Profissionais de creche
Maria Lúcia Sá Maia (UFPA), Edna Castro (UFPA), Edila Moura (FUA),
Ernesto Pinto (FUA), Marilene Silva (FUA) – A mobilidade do trabalho
feminino e a reprodução da força do trabalho: análise da família
operária em Belém e Manaus
Marise Vianna – Determinantes psicossociais da consciência social das
empregadas domésticas de São Paulo: um estudo de caso
Neuma Aguiar e Vanda Aderaldo – Trabalho feminino e propaganda
governamental
Águas de
VIII 1984 Sem informações
São Pedro

276
Gilda Castro (UFPB) – O mito de Adão e Eva: A legitimidade da
dominação masculina
Cristina Bruschini – Mulher e trabalho : uma avaliação da década da
mulher 1975-1985
Heleieth Saffioti – Força de trabalho feminina no Brasil: no interior das
cifras
Maria Moraes Silva – Trabalhadores e trabalhadoras rurais no estado de
São Paulo
Águas de
IX 1985 Manoel Tourinno, Janett Ferreira e Margarida Zaroni – Modernização
São Pedro
agrícola na região cacaueira e o trabalho da mulher: efeitos do salário,
tecnologia e estrutura fundiária
Paulete Goldenberg – Mulher, trabalho e aleitamento: uma questão
sobre reprodução social
Rosa Lúcia Moyses – Sobre o processo e a divisão sexual do trabalho nas
indústrias farmacêuticas e de cosméticos
Zaira Ary (UFC) – Ciências Sociais e a “questão da mulher”:
apontamentos sugestivos
Campos
X 1986 Não foi realizado o GT
do Jordão

277
Naumi Antonio de Vasconcelos (Ieros/PUCSP) – Reflexões sobre o
poder macho – Ícaros, Laios, Édipos / ou/ Macunaíma, mon amour (1ª
versão)
Ícaros, Édipos, Laios: ascensões e quedas ou Macunaíma, mon amour
(2ª versão)
Edgar de Assis Carvalho (Unesp/PUCSP) – Poder masculino e
Contrapoderes femininos em sociedades sem classes (1ª e 2ª versão)
Norma Telles (Ieros/PUCSP) – A crise do poder do macho e outras
crises (1ª versão)
A crise do poder do macho (2ª versão)
Marijane Lisboa (Ieros/PUCSP) – A crise de identidade do macho ( 1ª e
2ª versão)
Zuleika Lopes de Cavalcanti de Oliveira (IBGE/RJ) – A crise e os
arranjos familiares de trabalho urbano – mudanças e composição da
força de trabalho urbano familiar (1ª versão)
A Crise e os Arranjos Familiares de Trabalho Urbano (2ª versão)
Neuma Aguiar e David P. Morais (Iuperj) – Crise e desenvolvimento –
trabalho e gênero em uma plantação canavieira (1 ª e 2ª versão)
Edila Ferreira Moura (UFPA) – A mulher frente à ação dos grandes
Águas de projetos: formas de resistência e resignação (2ª versão)
XI 1987
São Pedro Teresita de Barbieri (Unam) e Orlandina de Oliveira (Unam/Colegio
de México) – La Presencia de las Mujeres em América Latina em uma
Década de Crisis (1 ª e 2ª versão)
Cheywa R. Spindel (Idesp/SP) – A mulher frente à crise econômica dos
anos 80 – algumas reflexões com base em estatísticas oficiais (1ª versão)
A mulher frente à crise econômica dos anos 80 – novas reflexões sobre
um velho problema (2ª versão)
Maria Dirlene Trindade Marques (UFMG) – Relações de poder e
dominação sobre a força de trabalho feminina (2ª versão)
Maria Helena Machado (Ensp/Fiocruz-RJ) – A participação da mulher
na força de trabalho em saúde no Brasil – 1970-80 (1 ª e 2ª versão)
Maria Aparecida M. Silva (Unesp) – O capital na agricultura e a nova
divisão sexual do trabalho (1 ª e 2ª versão)
Sandra Azeredo (UFMG) – Relações entre empregadas e patroas (1 ª e
2ª versão)
Edgard de A. Carvalho – Pensamento selvagem e relações de gênero (1ª
versão)
Maria D. T. Marques, Silvia E. C. Morales e Heloisa Helena Gonçalves –
Poder e dominação sobre a força de trabalho feminina (1ª versão)

Águas de
XII 1988 Não foi realizado o GT
São Pedro

278
Michele Ferrand (CNRS-Paris) – Reflexões metodológicas sobre uma
abordagem em termos de relações sociais de sexo (1ª e 2ª versão)
Lena Lavinas (IPPUR/UFRJ) – Identidade de gênero: um conceito da
prática (1ª e 2ª versão)
Heleieth I. B. Saffioti (PUCSP) – Ideologia e razão dualista (1ª e 2ª
versão)
Alda Britto da Motta (UFBA) – Emprego doméstico: revendo o novo (1ª
e 2ª versão)
Mary Garcia Castro (UFBA) – A busca por uma identidade de classe
XIII 1989 Caxambu
pelas empregadas domésticas da América Latina e do Caribe (1ª e 2ª
versão)
Maria de Moraes Silva (UNESP) – Quando as andorinhas são forçadas a
voar (1ª e 2ª versão)
Naumi Antonio de Vasconcelos (Cenp) – Uma abordagem psicanalítica
do machismo brasileiro (machismo e agressividade no brasil: um caso
de desmame difícil) (1ª e 2ª versão)
Florisa Verucci (OAB-SP) – A mulher e a família na nova constituição
brasileira (1ª e 2ª versão)
Fonte: Elaborações próprias a partir do site da Anpocs.
*** trabalhos voltados para a temática dos usos do tempo.

Desde as acaloradas discussões das décadas 1979-1989 na Anpocs aos anos


subsequentes, até a introdução na PNAD, pelo IBGE, de questões relativas ao tra-
balho doméstico, a importância da temática do uso do tempo ganhava importân-
cia no cenário nacional com os cursos de Metodologia Quantitativa na UFMG e
com a realização do congresso da International Association of Time-Use Research
(Iatur), também na UFMG, pela primeira vez no Brasil, em 2000.
Os trabalhos e pesquisas acadêmicos de grande fôlego em uso do tempo no
Brasil ficaram restritos a duas pesquisas realizadas em metrópoles brasileiras, uma
realizada por Amaury Souza (1973) e a outra por Neuma Aguiar (2001). Segundo
Neubert (2011, p. 48), outros trabalhos importantes de pesquisa vinculados ao
grupo de pesquisa de Aguiar foram: “o estudo de Souza (2007) sobre o tema da
masculinidade, a análise desenvolvida por Neto (2009) a respeito das atividades
de deslocamento e a análise desenvolvida por Neubert (2006) sobre a dimensão
da desigualdade ocupacional.” O desenvolvimento das pesquisas com diários nas
capitais da Guanabara (realizada por Souza) e na Região Metropolitana de Belo
Horizonte (por Aguiar), foram pioneiras nesse tipo de estudo no Brasil. Neuma
Aguiar (1998) também desenvolveu a pesquisa de usos do tempo no contexto
rural nas plantações rurais, utilizando o método dos diários e os desafios da sua
aplicação com analfabetos.

279
No que tange à participação brasileira no evento da International Association
for Time-Use Research (Iatur), desde a primeira edição no Brasil, em 2000, pode-se
notar que foi após a criação do CGUT, em 2008, que nos anos de 2010-2011 hou-
ve aumento da participação brasileira no evento, que não ficou mais restrita em
sua maioria aos pesquisadores da UFMG e ao grupo de pesquisa coordenado pela
professora Neuma Aguiar. Passou a ocorrer a inclusão da participação de alguns
pesquisadores de outras instituições, principalmente da SPM e do IBGE. Porém,
de acordo com as atas das reuniões do CGUT, sistematizadas em Cypriano (2013),
o papel da professora Neuma Aguiar em articular a relação do Comitê com a
Instituição internacional foi crucial para a realização do evento em 2013 no Brasil
novamente.
Somada à contribuição da Professora Neuma Aguiar à temática de gênero
e usos do tempo, na configuração desse campo do conhecimento há também
a importância de acadêmicas que contribuíram direta ou indiretamente na
construção da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). Segundo Marina
Brito (2015):

Várias feministas acadêmicas e militantes ocuparam ou ocupam cargos co-


missionados na SPM. Algumas delas vieram a ocupar posições nesse staff
por seu reconhecido papel na atuação em organizações da sociedade civil,
outras por via dos partidos políticos ou redes formadas entre as feministas
que, ao serem chamadas para a Secretaria, acabaram levando consigo cole-
gas que conheceram durante seus trabalhos realizados na esfera da socie-
dade civil. A presença de mulheres com este perfil, atuando não apenas na
SPM, mas também em outros Ministérios e agências estatais, criou alguns
importantes canais de diálogo entre os movimentos e o Estado. Algumas
das ativistas que assumiram cargos durante os anos 2000 continuaram a mi-
litar em movimentos feministas e de mulheres, mesmo que de forma muito
menos intensa e recorrente quanto antes. (BRITO, 2015, p. 183).

Destacando-se a importância de Lourdes Bandeira, Hildete Pereira e Tatau


Godinho e, posteriormente, da própria ministra Eleonora Menicucci. Todas est-
sas doutoras revelam a diversidade de reportórios na atuação feminista, visto o
entrelaçamento de suas trajetórias como militantes, acadêmicas e também como
femocratas. Sobressai-se, assim, dois fatores relevantes na trajetória da Secretaria
de Políticas para as Mulheres: (i) as duas ministras que mais tempo ficaram na
Secretaria eram docentes em universidades públicas; e (ii) havia o incentivo à
contratação, tanto nos cargos comissionados como nas consultorias temáticas, de
profissionais com origem acadêmica.

280
Há de se ressaltar ainda a estrutura organizativa da SPM, que, desde a sua
criação, se configurava em três áreas/subsecretarias: a de Enfretamento à Violência
contra as Mulheres; a de Autonomia Econômica; e a de Áreas Temáticas. Pela pró-
pria dinâmica institucional e organizacional, desde a sua fundação, cabe destacar
que a temática da divisão sexual do trabalho e dos usos do tempo era contempla-
da por essa dinâmica institucional.
Para além da dinâmica dentro da SPM, há também de se lembrar da im-
portância de pesquisadoras(es) dos outros órgãos que configuraram o CGUT, e
grande parte também tinha uma relação estreita com o feminismo acadêmico (ver
Quadro 4).

Quadro 4: Participantes do Comitê de Gênero e Usos do Tempo entre 2009-2013


Órgão Participantes
Ana Maria Mesquita
Breno Cypriano
Cláudia Pedrosa
Cristina Queiroz
Daniel Piza
Eleonora Menicucci (Ministra)
Fábia Oliveira
Gabriela Parente
Guaia Monteiro
Hildete Pereira
Lourdes Bandeira (Secretária)
Luana Pinheiro***
Luane Cruz
Luciana Santos
SPM Marcela Rezende
Mariana Mazzini
Paloma Sanches
Renata Laviola
Renata Rossi
Renata Sakai
Rosa Maria Silva
Rodrigo Giacomitti
Silvana Zuccolato
Tais Cerqueira
Taís Machado
Tatu Godinho (Secretária)
Thiago Cantalice
Valéria Moraes
Vera Soares

281
Ana Lucia Sabóia
Bárbara Cobo
Betina Fresneda
Cintia Agostinho
Cristiane Soares
Danielle Macedo
IBGE Fatmato Hany
Jacqueline Manhães
Lara Gama Cavalcanti
Márcia Quintslr
Ricardo Silva
Roberto Neves Sant’Anna
Rosane Oliveira
Luana Pinheiro
Marcelo Galiza
Maria Abreu
Ipea Natália Fontoura
Paula Costa
Paula Rincon
Ana Carolina Querino***
Danielle Valverde
ONU Mulheres Cleiton Lima
(Unifem) Juana Lucini
Shirley Villela
Ana Carolina Querino
OIT Márcia Vasconcelos
Fonte: Elaboração própria a partir de Cypriano, 2013.
*** as servidoras mudaram de órgão durante o período analisado.

Por fim, cabe destacar também a atuação do IBGE na contribuição para


a disseminação da temática no Brasil, tanto para as pesquisas de uso do tempo,
quanto também para a sua importante atuação dentro do CGUT. De acordo com
Cavalcanti, Paulo e Hany (2009):

A identificação da necessidade de se investigar o uso do tempo não é nova


no instituto. Desde a década de 90, a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD) já vem investigando se as pessoas realizam afazeres
domésticos e quantas horas por semana dedicam a esta atividade, além do
tempo gasto no deslocamento casa-trabalho. Em 2001, o IBGE também re-
alizou um pequeno teste de pesquisa de uso do tempo em alguns bairros do
Rio de Janeiro, através do Curso de Desenvolvimento de Habilidades em
Pesquisa (CDHP), que proporciona treinamento em pesquisa aos funcioná-
rios do Instituto. Em 2007, o IBGE sediou o Seminário Internacional sobre
Uso do Tempo, realizado em parceria com o Unifem e com o apoio da SPM.
O seminário reuniu representantes de institutos de estatística de diferentes
países, de organismos internacionais e de gestores públicos para estudar as
melhores práticas na obtenção de estatísticas de uso do tempo. A partir desta

282
experiência acumulada e da participação do IBGE no Comitê de Estudos de
Gênero e Uso do Tempo, o Instituto identificou uma boa oportunidade para
a realização de um teste, inserindo então um suplemento da Pesquisa do
Uso do Tempo no teste da PNAD Contínua, cujo período de referência da
coleta foi de outubro a dezembro de 2009, em cinco Unidades da Federação
(UF). No Rio de Janeiro, o período de referência da coleta é de outubro de
2009 a setembro de 2010. A PNAD Contínua é a pesquisa que substituirá
a atual PNAD e a Pesquisa Mensal de Emprego (PME), a partir de 2011, e
fará parte do novo Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares do IBGE.
Concluiu-se que este ambiente de teste seria propício para a inserção da in-
vestigação sobre uso do tempo, já que um tema novo e complexo como este
precisaria passar por uma avaliação metodológica antes de ser aplicado em
definitivo no país inteiro.” (CAVALCANTI; PAULO; HANY, 2010, p. 2-3).

Além das contribuições da SPM e do IBGE, haveria de se destacar a impor-


tante contribuição das pesquisas e estudos produzidos pelo Ipea, como cita, por
exemplo, Fontoura e Araújo (2016).

O que as mulheres das políticas para as mulheres pensam


sobre as questões da divisão sexual do trabalho e os usos do
tempo?

Esta última seção do capítulo contempla a parte metodológica e a análise


dos dados referentes às pesquisas de survey realizadas pelo Núcleo de Estudos
e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem/UFMG) na 3ª Conferência Nacional de
Políticas para as Mulheres, em 2011, e na 4ª Conferência Nacional de Políticas
para as Mulheres, em 2016. Uma das dimensões da pesquisa foi compreender a
percepção, para esse segmento de mulheres, sobre as questões referentes à dinâ-
mica da divisão sexual do trabalho e os usos do tempo no Brasil. Há de se desta-
car que uma primeira consideração sobre o tratamento dos dados é o perfil das
delegadas entrevistadas pela pesquisa (tanto da sociedade civil como do Estado),
que vai de encontro à dimensão que aqui é ressaltada neste capítulo: a relevância e
centralidade da dimensão acadêmica do feminismo. A maioria das delegadas res-
pondentes tem curso superior completo ou pós-graduação, sendo 63% em 2011,
e 64,7% em 2016. Somado ao dado de escolaridade, outro indício dessa questão
é discutido no capítulo sobre redes de Marlise Matos e Sonia E. Alvarez, pois
há também a evidência de que uma parte das trajetórias políticas dessas delega-
das, dentro do feminismo, começou na militância em movimentos estudantis e
universitários.

283
Passando a discutir os dados de percepção das delegadas em ambas as con-
ferências, os principais eixos de análise aqui tratados são: (i) as principais desi-
gualdades existentes entre homens e mulheres; (ii) o problema das mulheres no
Brasil; (iii) o que deve mudar para melhorar a vida das mulheres; (iv) questões
de concordância e discordância; (v) os motivos que levam as mulheres a ter uma
posição inferior aos homens no mercado de trabalho; e (vi) a visibilidade dos
programas ou políticas realizados pela SPM. Destaca-se que na pesquisa realizada
há a replicação de algumas perguntas da Pesquisa da Fundação Perseu Abramo,
“Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”.8 Na apresentação
dos dados abordar-se-á, quando possível, essa comparação.
Com relação à questão “Em sua opinião, atualmente qual é o principal
problema enfrentado pelas mulheres no Brasil? E o segundo? E o terceiro?”, essa
pergunta espontânea foi aplicada apenas na Conferência de 2016, elencando o
primeiro, o segundo e o terceiro problemas das mulheres no Brasil e, posterior-
mente, codificados em categorias (Gráfico 2). Portanto, para essa pergunta não há
comparação com a pesquisa realizada na Conferência de 2011. Sobre esse aspecto,
percebe-se que quando as delegadas foram perguntadas sobre qual é o primeiro
problema, há a relevância do problema relacionado à violência (39,7%). Porém,
ao somar os três problemas elencados por elas, percebe-se que o problema relativo
a trabalho e renda tem grande relevância (62%), juntamente ao problema da vio-
lência (60,8%).

8   A pesquisa foi realizada em duas etapas, nos anos 2001 e 2010 (em parceria com o Sesc). Cabe
salientar que a pesquisa traz questões de atitude e percepções sobre temas, como: percepção de ser
mulher, machismo e feminismo; divisão sexual do trabalho e tempo livre; corpo, mídia e sexualida-
de; saúde reprodutiva e aborto; violência doméstica; democracia, mulher e política (FUNDAÇÃO
PERSEU ABRAMO, 2010).

284
Gráfico 2: Problema das mulheres no Brasil (principal, segundo e terceiro)

Fonte: Elaboração própria.

Passando a analisar a questão: “Pensando no mundo de hoje, quais são para


você as principais desigualdades que existem entre as mulheres e os homens? O
que mais é desigual? E em segundo lugar? E em terceiro lugar?”, essa pergunta
espontânea está presente nos questionários aplicados nas duas ondas da pesquisa
(Gráfico 3). A resposta das delegadas, tanto em primeiro e em segundo lugar, dá
dimensão do trabalho/profissional/salário/renda como a principal desigualdade en-
tre os sexos. Em 2011, 96,2% das delegadas relataram essa dimensão, e, em 2016,
98,2% das delegadas. Cabe destacar que a desigualdade na política e no poder
aparece como uma dimensão relevante em 2016, talvez por conta do processo de
impeachment que a presidenta Dilma Rousseff sofria.

285
Gráfico 3: Desigualdades que existem entre homem e mulher?
Em primeiro lugar? E em segundo?

Fonte: Elaboração própria.

Diante dessas duas primeiras perguntas, constata-se que é evidente que a


desigualdade de gênero para as participantes ocorre principalmente no ambiente
profissional, na esfera do trabalho, porém quando se busca conceitualizar a noção
de “problema para as mulheres”, este inclui também a ideia de violência e de dis-
criminações. Essa comparação traduz algumas questões relativas aos problemas
cognitivos que surgem em pesquisas de survey e percepção. Tal questão fica mais
evidente com a pergunta “Se você pudesse mudar qualquer coisa para que a vida
de todas as mulheres melhorasse, qual seria a primeira coisa que você faria? E a
segunda? E a terceira?” (Gráfico 4). Muitas delegadas responderam que deveria
ser alguma mudança relativa à equiparação profissional e de renda como um dos
principais aspectos, mas questões como educação e creche, combate às discrimi-
nações e autonomia, bem como políticas públicas/participação política influem
diretamente no combate à desigualdade na divisão sexual do trabalho e nos usos
do tempo. Nessa questão o efeito da conjuntura política vivida pela presidenta
Dilma Rousseff também nos pareceu evidente: 62,9 % viram a equiparação pro-
fissional e de renda como uma questão mais relevante em 2011 e 65,2% aponta-
ram a participação política e no poder e as políticas públicas como os principais

286
aspectos a se mudar, para melhorar a vida das mulheres. Há de se destacar que
tal resultado também pode ser efeito de como o tema das mulheres na política foi
sendo gradativamente colocado em discussão pública ao longo desses anos, muito
em função, evidentemente, dos movimentos, da própria SPM, de como o governo
incorporou a pauta, das campanhas de conscientização estimuladas pela Justiça
Eleitoral, entre outros fatores.

Gráfico 4: O que deve mudar para melhorar a vida das mulheres?


Em primeiro lugar? Em segundo? Em terceiro?

Fonte: Elaboração própria.



Passando para uma lista de questões estimuladas realizadas nas duas ondas
da pesquisa que estão relacionadas a temas ligados à família e a outras relações so-
ciais no Brasil, perguntou-se às delegadas se elas concordam totalmente, concor-
dam em parte, discordam em parte, ou discordam totalmente com as afirmativas
colocadas – a opção não concorda, nem discorda não é estimulada, só foi anotada,
caso a delegada falasse espontaneamente. Foram selecionadas quatro afirmativas:
(i) “Uma pessoa sozinha pode criar os filhos tão bem quanto um casal que vive
junto”; (ii) “Quando têm filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe fora e

287
a mulher fique em casa”; (iii) “Homens e mulheres deveriam dividir igualmente
o trabalho doméstico”; e (iv) “É principalmente o homem quem deve sustentar
a família”. A análise de tais afirmativas procura exemplificar como as colocações
teóricas de autoras como Okin (2008 [1998]), Phillips (1991), Tronto (1996),
Pateman (1993 [1988]) e Walby (1990), sobre as dinâmicas do público e privado,
do cuidado e do patriarcado, são questões ainda em disputa dentro da própria luta
das mulheres e feministas, neste caso, através da visão das delegadas.
Como pode ser observado no Gráfico 5, a maioria das delegadas respon-
deu que concordam totalmente, em ambas as ondas da pesquisa, sobre as afir-
mativas (i) e (iii). Já sobre as afirmativas (ii) e (iv), há uma maioria que discorda
totalmente sobre elas, mas há de se destacar que na discussão sobre “Quando têm
filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe fora e a mulher fique em casa”,
há respostas que concordam com a alternativa, talvez por creditarem uma impor-
tância no papel da maternidade e do cuidado, ou talvez por acreditarem na ideia
de “papéis sexuais” diferenciados, recolocando uma abordagem mais tradicional
sobre o papel das mulheres na esfera privada.
Na pesquisa da Fundação Perseu Abramo, em ambas as ondas, tanto em
2001, quanto em 2010, foram realizadas três dessas questões (as alternativas eram
diferentes, se concorda, se discorda e nem concorda, nem discorda): sobre a se-
gunda afirmativa, “Quando têm filhos pequenos, é melhor que o homem trabalhe
fora e a mulher fique em casa”, 85% das respondentes concordavam, em 2001, e
75% em 2010; sobre a terceira afirmativa, “Homens e mulheres deveriam dividir
igualmente o trabalho doméstico”, 87% das respondentes concordavam, em 2001,
e 93%, em 2010; e sobre a quarta afirmativa, “É principalmente o homem quem
deve sustentar a família”, 55% das respondentes concordavam, em 2001, e 51%,
em 2010. Evidencia-se que as amostras, por contemplarem públicos diferentes,
apresentaram resultados discrepantes. Nas afirmativas (ii) e (iv) a tendência da
amostra brasileira é concordar com as alternativas, apresentando uma visão talvez
mais tradicional que a das delegadas das conferências, ponto que é discutido em
maior detalhe no capítulo 4 deste volume.

288
Gráfico 5: Se concorda, concorda em parte, não concorda nem discorda,
discorda em parte, discorda totalmente com as afirmações

Fonte: Elaboração própria.

As últimas discussões sobre os dados referem-se à construção das polí-


ticas públicas promovidas pela Secretaria de Políticas para as Mulheres. Diante
da pergunta estimulada realizada em 2016, “Desta lista de programas e ações da
SPM, qual você considera o mais importante?”, as respondentes indicaram como
mais importante: o Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher (26,1%) e o
Programa Mulher, Viver sem Violência (23,4%). Os programas referentes à temá-
tica da divisão sexual do trabalho e usos do tempo ficaram em quinto e sétimo
lugar: Fortalecimento da política de autonomia econômica das mulheres (11,4%)
e Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça (2,7%).

289
Gráfico 6: Indica qual Programa ou ação da SPM, dentro da lista dos
programas avaliados, a respondente considera o primeiro mais importante

Fonte: Elaboração própria.

Abordando mais especificamente a dimensão da divisão sexual do trabalho,


a pergunta estimulada “Existem vários motivos que levam as mulheres a terem
uma posição inferior aos homens no mercado de trabalho. A Secretaria de Política
para as Mulheres tem algumas iniciativas para tentar superar isso. Qual dessas
inciativas você acha mais importante de serem realizadas pela Secretaria? E em
segundo lugar? E em terceiro lugar?”, realizada na onda da pesquisa de 2016, apre-
senta especificamente algumas questões mais concretas referentes às melhorias
em termos de políticas públicas que visam superar as desigualdades de gênero,
que foram elencadas e centrais nas outras perguntas. Como pode ser observado
no Gráfico 7, os principais motivos apontados pelas delegadas foram: em primei-
ro lugar, com 79,1%, apoiar projetos que visam desnaturalizar a divisão sexual do
trabalho que estrutura as desigualdades na vida das mulheres; em segundo lugar,
com 75,7%, articular com outros Ministérios e com os outros poderes de forma
a garantir mais direitos trabalhistas para as mulheres; e, em terceiro lugar, com
64,4%, promover políticas públicas com foco na mudança e alteração do cotidiano
e no uso do tempo das mulheres.

290
Gráfico 7: Principais iniciativas da SPM para superar as desigualdades no
mercado de trabalho (primeiro, segundo e terceiro lugar)

Fonte: Elaboração própria.

Cabe ressaltar que, além das alternativas colocadas na questão anterior, ha-
veria alternativas para a utilização das políticas públicas como ferramentas cen-
trais e formas de superação da divisão sexual desigual do trabalho e a desigualda-
de nos usos do tempo entre os sexos. De acordo com Bandeira e Petrulan (2016,
p. 58):

Outras importantes políticas, como a ampliação dos serviços voltados a


idosas(os), instalação de restaurantes populares, ampliação da licença pa-
ternidade e/ou criação da licença parental são exemplos entre diversas pos-
sibilidades que poderão pautar a atuação do Estado brasileiro nos próximos
anos para promover uma maior igualdade de gênero no que tange aos usos
do tempo.

A partir dessas análises apresentadas, o que se pode chamar atenção neste


caso é que a discussão sobre o público e o privado, o cuidado, a divisão sexual do
trabalho e os usos do tempo quando verificados empiricamente é crucial para o
entendimento da política e das formas das mulheres de atuarem politicamente
enquanto atrizes políticas, tornando-se fatores imprescindíveis para a elaboração
e formulação de políticas públicas.

291
Considerações finais

A importância de se discutir temas tão cruciais na construção das políticas


para as mulheres, como é a questão da divisão sexual do trabalho e dos usos do
tempo, serve para resgatar o esmero desprendido no Brasil para se construir um
campo de pesquisas acadêmico e, após a entrada no Estado e em outros espaços
públicos, tentar colocá-los na configuração das próprias políticas públicas, ainda
que de forma muito tímida. Este capítulo serve também como registro histórico,
por tratar da importância da criação de um Comitê específico na discussão sobre
os usos do tempo no Brasil e ao mesmo tempo retraçar algumas de suas ações e
repercussões no desenho das políticas públicas. Esses registros também buscaram
resgatar a interposição entre a construção do campo de pesquisa e estudos sobre
as mulheres, feminismo e gênero no Brasil, e as trajetórias feministas, que muitas
vezes estão marcadas pelo entrelaçamento de múltiplas posições e repertórios nos
cenários políticos e públicos: das militantes, acadêmicas e femocratas.
Para aquelas que participaram do processo de discussão e construção de
propostas para as políticas para as mulheres e foram analisadas pelos dados das
duas ondas da pesquisa sobre as CNPMs, percebeu-se uma clareza quanto à re-
levância da temática da divisão sexual do trabalho e usos do tempo, porém não
há clareza quanto à dimensão política/prática desta. Faltaria conhecimento sobre
as políticas que foram formuladas no cenário brasileiro e/ou necessitaria de no-
vas políticas para se resolver os problemas, como problematizado por Bandeira e
Petrulan (2016). A SPM e as Conferências foram momentos importantes para se
articular, na prática, a transversalidade de gênero, dentro de um Estado ainda pa-
triarcal. Caminhava-se, talvez, para um tímido começo em esforços de despatriar-
calização com tais iniciativas, porém, o cenário atual indica o caminho inverso,
com o desmonte dos programas e políticas aqui citados. Caminhamos agora para
uma repatriarcalização?

Referências

AGUIAR, Neuma Figueiredo. Múltiplas temporalidades de referência: trabalho domésti-


co e trabalho remunerado em uma plantação canavieira. Belo Horizonte: UFMG,
1998. 40 p. (Textos Sociologia e Antropologia, n. 53).
______. Múltiplas temporalidades de referência: trabalho doméstico e trabalho remunerado:
análise dos usos do tempo em Belo Horizonte: um projeto piloto para zonas me-
tropolitanas brasileiras. Belo Horizonte: UFMG/CNPq, 2000. Projeto de pesquisa.
Mimeo.

292
______. Mudanças no uso do tempo na sociedade brasileira. Política & Trabalho, João
Pessoa, PB, n. 34, p. 73-106, 2011.
BANDEIRA, Lourdes Maria. Importância e motivações do estado brasileiro para pesqui-
sas de uso do tempo no campo de gênero. Revista Econômica, Rio de Janeiro, v. 12,
n. 1, p. 47-63, 2010.
______; OLIVEIRA, Eleonora Menicucci. Trajetória da produção acadêmica sobre as re-
lações de gênero no grupo de trabalho e política. Ciências Sociais Hoje, São Paulo,
v. 1, p. 52-69, 1991.
______; PETRULAN, Renata. As pesquisas sobre uso do tempo e a promoção da igualda-
de de gênero no Brasil. In: FONTOURA, Natália; ARAÚJO, Clara (Org.). Uso do
tempo e gênero. Rio de Janeiro: Uerj, 2016.
BARAJAS, María de la Paz Lopez. Avanços na América Latina na medição e valoração
do trabalho não remunerado realizado pelas mulheres. In: FONTOURA, Natália;
ARAÚJO, Clara (Org.). Uso do tempo e gênero. Rio de Janeiro: Uerj, 2016.
BOWLES, Samuel; GINTIS, Hebert. Democracy and capitalism: property, community and
the contradictions of modern social thought. New York, NY: Routledge, 1986.
BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Política para as Mulheres. Experiencias
de Transversalidad de Género en Políticas Públicas en América Latina y el Caribe.
Mimeo, 2010.
______. II plano nacional de políticas para as mulheres. Brasília: Presidência da República.
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2008.
BRITO, Marina. Sobre a relação entre os movimentos feministas e o estado no Brasil (2003-
2014). Tese (Doutorado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.
BRITTO, Alda Britto; NETO, Zahidé Machado. Tempo de mulher, Tempo de trabalho:
entre mulheres proletárias em Salvador. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS,
6. Anais… Nova Friburgo, 1982.
BROWN, Wendy. The impossibility of women’s studies. Differences, Durham, NC, v. 9, n.
3, p. 79-101, 1997.
CAVALCANTI, Lara; PAULO, Maria Andrade; HANY, Fatmato. A pesquisa-piloto de uso
do tempo do IBGE 2009/2010. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO
GÊNERO, 9. Anais... Florianópolis, 2009.
CONSELHO NACIONAL DE DIREITOS DA MULHER. Grupos, instituições, associações
de mulheres. Brasília: Conselho Nacional de Direitos da Mulher, 1989. 216 p.
COSTA, Albertina. Os estudos da mulher no Brasil ou a estratégia da corda bamba. Revista
Estudos Feministas, Rio de Janeiro, N.E, 1994, p. 401-409.
CYPRIANO, Breno. Relatório final sobre a realização da 35ª conferência internacional
sobre o uso do tempo. Mimeo. 2013.

293
______. Teoria política feminista e seus “nós”: “a” política e “o” político (re)pensados a
partir da construção dos saberes políticos do norte/sul global. Tese (Doutorado
em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.
ELSHTAIN, Jean Bethke. Public man, private woman: women in social and political
thought. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1981.
______. Meditations on modern political thought. University Park, PA: The Pennsylvania
State University Press, 1986.
FONTOURA, Natália; ARAÚJO, Clara (org.). Uso do tempo e gênero. Rio de Janeiro: Uerj,
2016. 268 p.
FRASER, Nancy. Talking about needs: interpretive contests as political conflicts in wel-
fare-state societies. Ethics, Chicago, IL, v. 99, n. 2, p. 291-313, 1989.
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e
privado. Relatório de pesquisa. Mimeo. 2010.
HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. Estudos de gênero no Brasil. In: MICELLI, Sérgio et
al. (Orgs). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). Volume 2 – Sociologia.
São Paulo/Brasília: Editora Sumaré/Anpocs/Capes, 1999.
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do tra-
balho. Cad. Pesqui. [online], vol. 37, n. 132, p. 595-609, 2007.
JAGGAR, Alison M. Abortion right and gender justice worldwide: an essay in political
philosophy. In: TOOLEY, M. et al. Abortion: three perspectives. New York/Oxford:
Oxford University Press, 2009.
KERGOAT, Daniele. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo [verbete]. In:
HIRATA, H. et al. (Org.). Dicionário critico do feminismo. São Paulo: Editora
Unesp, 2009. p. 67-76.
KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. Tradução de Luís
Carlos Borges. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2006 [versão original: Contemporary
political philosophy: an introduction. Oxford, GBR: Oxord University Press, 1990].
MACKINNON, Catherine A. Hacia una teoría feminista del estado. Traducción de Eugenia
Martín. Madrid: Cátedra, 1995 [versão original: Toward a feminist theory of the
State. Cambridge: Harvard University Press, 1991].
MATOS, Marlise. Reinvenções dos vínculos amorosos: cultura e identidade de gênero na
modernidade tardia. Belo Horizonte: Editora UFMG; Iuperj, 2000.
______. Os novos desafios criados pela multiplicação das identidades de gênero: para
onde fomos?. Interseções: Revista de Estudos Interdisciplinares, Rio de Janeiro, ano
4, n. 2, p. 159-174, 2002.

294
NEUBERT, Luiz Flávio. Atividades diárias e desigualdade social: um estudo sobre o
tempo de lazer e o tempo de trabalho remunerado em Belo Horizonte. 2006.
90 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.
______. Desigualdade ocupacional e o uso do tempo: um estudo sobre os determinantes
do tempo de trabalho remunerado e do tempo livre entre indivíduos adultos inse-
ridos no mercado de trabalho em uma cidade brasileira e nas regiões metropolita-
nas norte-americanas. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.
OKIN, Susan Moller. Justice, gender and the family. New York, NY: Basic Books, 1989.
______. Liberalismo político, justicia y género. In: CASTELLS, C. (Comp.). Perspectivas fe-
ministas en teoría política. Traducción de Carme Castells. Barcelona, ESP: Editorial
Paidós, 1996. p. 127-148 [versão original: Political liberalism: justice and gender.
Ethics, Chicago, IL, n. 105, p. 23-43, 1994].
______. Gênero, público e privado. Tradução de Flávia Biroli. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, v. 16, n. 2, p. 305-332, 2008 [versão original: Gender, the public,
and the private. In: PHILLIPS, A. (Ed.). Feminism and politics. Oxford, GBR/ New
York, NY: Oxford University Press, 1998. p. 116-141].
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini. Rio de Janeiro, RJ:
Editora Paz e Terra, 1993 [versão original: The sexual contract. Palo Alto, CA:
Stanford University Press, 1988].
______. Críticas feministas a la dicotomía público/privado. In: CASTELLS, C. (Comp.).
Perspectivas feministas en teoría política. Traducción de Carme Castells. Barcelona:
Editorial Paidós, 1996. p. 31-52 [versão original: Feminist critiques of the pub-
lic/private dichotomy. In: PATEMAN, C. The disorder of women. Cambridge, MA:
Polity Press, 1989. p. 118-140].
______. El estado de bienestar patriarcal. Traducción de Aroma de la Cadena y Eloy
Neira. Contextos, Programa de Estudios de Género de la Pontificia Universidad
Católica de Perú, Lima, año 2, n. 5, Lima, 2000. [versão original: The patriarchal
welfare state. In: PATEMAN, C. The disorder of women. Cambridge, MA: Polity
Press, 1989. p. 179-209]
PHILLIPS, Anne. Engendering democracy. University Park, PA: The Pennsylvania State
University Press, 1991.
SOUZA, Amaury de. As 24 horas do dia do carioca. Rio de Janeiro, [1973]. Relatório de
pesquisa apresentado ao Iuperj. Mimeo.
SOUZA, Márcio Ferreira de. A percepção do tempo na vida cotidiana sob a perspectiva de
gênero: o dia a dia em Belo Horizonte. 2007. 208 f. Tese (Doutorado em Sociologia)
– Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2007.

295
TALLEN, Bette S. How inclusive is feminist political theory?: questions for lesbians. In:
JAGGAR, A. M. (Ed.). Just methods: an interdisciplinary feminist reader. Boulder,
CO/ London, GBR: Paradigm Publishers, 2008. p. 205-212 [versão original: How
inclusive is feminist political theory?: questions for lesbians. In: ALLEN, J. (Ed.).
Lesbian philosophies and cultures. Albany, NY: State of New York University Press,
1990. p. 241-257].
TRONTO, Joan. Care as a political concept. In: DI STEFANO, C; HIRSCHMAN, N.
(Ed.). Revisioning the political: feminist reconstructions of traditional concepts in
Western political theory. New York, NY: Westview Press, 1996. p. 139-156.
UNITED NATIONS ECONOMIC AND SOCIAL COUNCIL (Ecosoc). Mainstreaming
the gender perspective into all policies and programmes in the United Nations System.
Mimeo. Geneva: UN, 1997.
WALBY, Sylvia. Theorizing patriarchy. Oxford: Blackwell, 1990.
_______. Gender mainstreaming: productive tensions in theory and practice. Social
Politics: International Studies in Gender, State & Society, v. 12, n. 3, 2005, p. 321-343.
WOODWARD, Alison E. Too late for gender mainstreaming? Taking stock in Brussels.
Journal of European Social Policy, v. 18, n. 3, p. 289-302, 2011.
______. Building velvet triangles: gender and informal governance. In: PIATTONI, S.;
CHRISTENSEN, T (Eds.). Informal governance and the European Union. London:
Edward Ellgar, 2004.
______. Too late for gender mainstreaming? Taking stock in Brussels. Journal of European
Social Policy, v. 18, n. 3, p. 289-302, 2008.
YOUNG, Iris Marion. Reflections on families in the age of Murphy Brown: on gender,
justice, and sexuality. In: DI STEFANO, C; HIRSCHMAN, N. (Ed.). Revisioning
the political: feminist reconstructions of traditional concepts in western political
theory. New York, NY: Westview Press, 1996. p. 251-270.

296
Mulheres na política, as conferências
e o ciclo democrático

Flávia Biroli1

As análises da participação política das mulheres no Brasil contemporâneo


e, especificamente, das Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres, que
são o tema deste livro, nos situam em um contexto específico, o do ciclo demo-
crático que se abriu com o fim da ditadura de 1964 e, entendo, encerrou-se com a
deposição de Dilma Rousseff em 2016.
Independentemente da compreensão que se tenha do que houve em 2016,
é inegável que profundas alterações nos afastaram do ciclo anterior. Além do
desrespeito à competição eleitoral e a seus resultados, a ampliação do papel do
Judiciário na regulação não apenas da competição, mas do espectro da pluralida-
de política, e a criminalização e desconstrução do principal partido de esquerda
nesse ciclo, o Partido dos Trabalhadores (PT) – que, pelas evidências que temos
até o momento, parece estar sendo acompanhada pelo enfraquecimento do par-
tido de centro que teve também papel central na política brasileira desde os anos
1990, o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), e de uma crise ampla do
sistema partidário –, modificaram a face da política nacional.
O processo político que tem sido caracterizado por uma série de pesquisa-
doras e pesquisadores como um golpe parlamentar (JINKINGS; DORIA; CLETO,
2016; BUENO et al., 2017) se estendeu para além da deposição de Rousseff.
Destaco a adoção acelerada de uma política radical de austeridade e desregulação
das garantias sociais, tornando o Brasil um caso para a compreensão dos novos
padrões na adoção da agenda neoliberal em países periféricos e seus efeitos para a
democracia. A Emenda Constitucional 95, aprovada em novembro de 2016 e que
estabeleceria, por vinte anos, um teto para os gastos públicos que, na prática, in-
viabiliza o pacto social expresso na Constituição de 1988, pode ser tomada como
expressão máxima dessa política, juntamente com a legislação trabalhista aprova-
da em seguida, em 2017. Essa legislação levaria à inclusão do Brasil, em maio de
2018, na lista dos 24 casos que a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
considera como as principais violações das convenções de trabalho no mundo.

1   Universidade de Brasília – Instituto de Ciência Política.

297
Em suas diferentes frentes, esse processo político incide sobre variáveis que
foram consideradas fundamentais para a redução das desigualdades em todo o
ciclo democrático, que se acentuou nos anos 2000 (ARRETCHE, 2018). A consti-
tucionalização de direitos fundamentais nas áreas de saúde, educação, seguridade
e moradia produziu o contexto legal de implementação de políticas públicas que,
por sua vez, geraram expectativas sociais com papel significativo em um contexto
eleitoral plural. A existência de partidos de esquerda competitivos, agora colo-
cada em xeque com a criminalização e desconstrução do PT, também foi vista
como um fator na incorporação da agenda distributiva por partidos em um amplo
espectro ideológico. Pode-se, ainda, compreender que, em conjunto, esses fato-
res estabeleceram limites à incorporação da agenda neoliberal do Consenso de
Washington, durante os anos 1990, e foram importantes para a construção do
ambiente político que levaria o PT ao poder nas eleições de 2002, com legitimida-
de para implementar novas políticas e aprofundar políticas de caráter distributivo
já existentes.
Encerrando um ciclo, o ano de 2016 nos legaria um sistema político menos
plural, um contexto ético-político alargado “à direita”, ampliando a expressão de
visões antidemocráticas e anti-igualitárias, e limites rígidos para a manutenção de
políticas de caráter distributivo, transformados em norma constitucional válida
por vinte anos pela Emenda Constitucional 95.
A agenda de gênero passaria a estar em disputa mais abertamente desde
o início dos anos 2000, de um lado porque nesse período ganharia expressão a
reação, capitaneada por setores da Igreja Católica, à legitimidade da agenda de gê-
nero e da diversidade sexual nas conferências das Nações Unidas dos anos 1990;
de outro porque a “politização reativa” (VAGGIONE, 2016), no ambiente nacio-
nal, assumiria crescentemente um caráter de reação aos governos do PT. Isso se
deu justamente pelo fato de os governos petistas, em um contexto de ampliação
da participação dos movimentos sociais que é discutido neste livro, terem incor-
porado mais diretamente essas pautas da perspectiva dos movimentos feministas
e LGBT que atuaram no âmbito estatal no período e que foram, historicamente,
bases sociais do partido.
Mas é no processo aberto com a deposição de Dilma Rousseff que a reação
às agendas da igualdade de gênero e da diversidade sexual se tornaria mais aguda
dentro do Congresso e em alguns setores da sociedade brasileira. Mobilizada por
grupos religiosos reacionários, numa aliança entre católicos e evangélicos que de-
fine o padrão nacional da campanha contra a chamada “ideologia de gênero”, co-
loca em xeque ao mesmo tempo as agendas mencionadas, a produção de conhe-
cimento normativamente referenciada por elas e a legitimidade dos movimentos

298
feministas e LGBT como atores políticos (BIROLI, 2018a). Nesse processo, este-
reótipos de gênero que pareciam marginais no debate público brasileiro voltaram
às páginas de jornais e revistas de circulação nacional e circularam em outros
espaços de informação e conexão (BIROLI, 2016).
O ano em que Rousseff foi deposta corresponde também a uma fronteira
nas relações entre os movimentos feministas e o Estado. Em diferentes graus, es-
ses movimentos atuaram no ambiente estatal, participando do processo de cons-
trução do Estado e da consolidação do pacto social distributivo, em todo o ciclo
democrático. O estreitamento das relações entre feminismos e Estado pode ser
tomado, inclusive, como um dos aspectos que caracterizam o que entendo ter sido
um ciclo dentro do ciclo democrático, isto é, o período iniciado com a chegada
do PT ao Governo Federal, em 2003, em que se fortaleceu o caráter distributivo
e participativo do Estado. Nesse período, a maior permeabilidade do Estado aos
movimentos sociais foi expressa de diversas formas, sendo uma delas a ativação
das Conferências de Políticas Públicas. No caso dos movimentos feministas e de
mulheres, as Conferências de Políticas para Mulheres foram um espaço privilegia-
do desse trânsito dos movimentos no ambiente estatal. Compuseram o complexo
institucional-participativo de promoção da agenda da igualdade de gênero e racial
neste ciclo dentro do ciclo, operando em conjunto com a Secretaria Especial de
Políticas para Mulheres (SPM) e com a Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (Seppir), ambas criadas no ano de 2003 e que tiveram status
de ministério até o início de 2016, quando a reforma ministerial realizada ainda
no governo de Rousseff, já sob forte pressão, as fundiu à Secretaria de Direitos
Humanos.
Embora os obstáculos à participação política das mulheres tenham se man-
tido durante todo o período, posicionando-nos entre os países com os piores índi-
ces de representação feminina no contexto das Américas e também mundialmen-
te, o ciclo democrático permitiu a construção de novos direitos, em conquistas
que resultaram da atuação política sistemática das mulheres nos movimentos, no
âmbito estatal e no ambiente transnacional. Novamente, os anos 2000 veriam essa
participação ampliar-se na medida em que aumentaria a oportunidade de parti-
cipação das feministas no ambiente estatal. As reações de caráter conservador, de
maneira contraditória, reconhecem a importância dos movimentos como atores
políticos enquanto tentam deslegitimar sua agenda e sua atuação (BIROLI, 2018b,
cap. 5).

299
O ciclo democrático, contexto das disputas

Permito-me, brevemente, recuar ao início do ciclo democrático mais am-


plo, antes de voltar a esse ciclo dentro do ciclo e à análise das Conferências neste
livro. Ainda nos anos 1970, delineava-se o contexto concreto de desenvolvimento
de identidades, normas e instituições que balizariam o processo político nas dé-
cadas seguintes. São muitos os eventos expressivos no final dessa década, entre os
quais destaco as greves dos metalúrgicos nos anos de 1978 e 1979, a nova lei dos
partidos políticos, em 1978, que marca o fim do bipartidarismo, e, no mesmo ano,
o lançamento do Movimento Negro Unificado (MNU); em 1979, a lei da anistia
mostraria a capacidade dos atores do regime de balizar o processo de transição,
enquanto o lançamento do Partido dos Trabalhadores (PT) expressaria a potência
do ambiente ético-político que tomou forma na oposição ao regime ditatorial,
nos anos anteriores. Novas linguagens e identidades coletivas expressavam, por
outro lado, as ambivalências internas ao campo democrático (SADER, 1988). A
participação das mulheres na oposição à ditadura e a afirmação dos movimentos
feministas como sujeitos políticos no novo regime se deram de modo que arti-
cularam visões distintas quanto à autonomia desejável em relação a partidos e
ao Estado, ao diálogo tenso com o ideário marxista e com a influência de setores
progressistas da Igreja Católica (ALVAREZ, 1990).
A construção institucional dos anos 1980, que tem como marco principal a
Constituição de 1988, expressaria, mais uma vez, a capacidade de atores influen-
tes do regime de exercer controle sobre a nova institucionalidade, restringindo-a.
Mas também revelaria os efeitos da inclusão de novas pautas e atores, na estrutura
de oportunidades que se abriu. A igualdade constitucional entre homens e mulhe-
res e a promoção de direitos específicos para as últimas, considerando o contexto
de desigualdades existentes, é um de seus desdobramentos, algo a que voltarei a
seguir.
A constitucionalização de direitos universais em setores básicos, como
saúde, educação, moradia e seguridade, estabeleceu o arcabouço de direitos para
políticas de caráter distributivo e para sua centralidade política em todo o ciclo,
como dito anteriormente. É certo que a incorporação da agenda neoliberal a par-
tir do final dos anos 1980 limitou a efetividade desse pacto. Por outro lado, foi
justamente esse pacto que ampliou as possibilidades de resistência e modulou essa
incorporação, que foi seletiva e coexistiu com ganhos de legitimidade na agenda
de direitos humanos e na agenda de direitos das mulheres, ativados em um am-
biente transnacional de maior centralidade dessas agendas, com as conferências
das Nações Unidas no período (as Conferências de Viena, em 1993; Cairo, em
1994; e de Beijing, em 1995, são alguns exemplos).

300
Ao mesmo tempo, as novas formas de participação previstas na carta de
1988 estabeleceram o arcabouço institucional para uma relação renovada entre
Estado e movimentos sociais, que seria ativada sobretudo a partir do início dos
anos 2000. As Conferências de Políticas Públicas são um exemplo de como isso
se daria.

Feminismos políticos, protagonistas no ciclo democrático

“O feminismo no Brasil, antes de ser estatal, foi político, no sentido de ser


ideologicamente engajado.” Essa afirmação foi feita por Céli Pinto, em seu capítu-
lo no primeiro volume deste livro. Embora o trecho da autora, que aqui destaco, se
referisse à atuação dos movimentos na oposição à ditadura, entendo que pode ser
ampliado para se pensar nas características do feminismo como ator político em
todo o ciclo democrático. Em outras palavras, compreendo que os movimentos
feministas foram atores na construção do Estado democrático em todo esse pro-
cesso. Ainda que de uma posição marginal, incidiram sobre a “ossatura” patriarcal
do Estado, encontrando resistências, mas produzindo efeitos.
A construção de organismos de políticas focados nas mulheres já nos anos
1980, como os conselhos municipais, estaduais e nacional de direitos e da con-
dição feminina, é uma de suas dimensões. Criado em 1984 a partir da pressão
continuada de lideranças que tinham, ao mesmo tempo, redes de contato entre
elites partidárias e do Judiciário e atuação nos e junto aos movimentos feministas
do período, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) seria funda-
mental, como foi descrito nos textos de Céli Pinto e Schuma Schumaer no pri-
meiro volume deste livro, para que a larga sobrerrepresentação dos homens na
Constituinte não significasse a exclusão ou mesmo marginalidade da agenda de
direitos das mulheres.
Em outro local (BIROLI, 2018b), discuti mais detalhadamente esse proces-
so, considerando um ponto que me parece fundamental: a Carta das Mulheres aos
Constituintes, que foi entregue em março de 1987 ao deputado Ulisses Guimarães,
em conjunto com as emendas apresentadas pela bancada feminina (30) e com as
emendas populares que versavam sobre os direitos das mulheres (4 entre as 122
apresentadas), mobilizaram noções de igualdade que mostram o engajamento em
uma agenda distributiva e a preocupação interseccional tanto quanto o foco nas
desvantagens específicas das mulheres. Trabalharam pela exclusão de qualquer
forma de discriminação; pela igualdade entre homens e mulheres, pela constitu-
cionalização de direitos universais em temas fundamentais, como saúde e educa-
ção; assim como por direitos específicos nas áreas de trabalho, seguridade, saúde e

301
reprodução, expondo a posição das mulheres nas relações de poder e mobilizando
as clivagens de classe, raça e sexualidade.
A defesa do direito universal à saúde, na forma de um Sistema Unificado de
Saúde (SUS), é um dos pontos relevantes para se compreender as diferentes con-
cepções e dimensões da igualdade que foram mobilizadas. A Carta das Mulheres
defendia a criação do SUS; a gestão e fiscalização desse sistema pela população
organizada em Conselhos, por meio dos quais participaria de decisões sobre pro-
gramas e financiamento; a garantia de Assistência Integral à Saúde da Mulher
em todas as fases de sua vida, “independentemente de sua condição biológica de
procriadora”, através de programas governamentais formulados, implementados e
controlados com a participação das mulheres; vedava ao Estado e a entidades es-
trangeiras e nacionais, públicas ou privadas, a interferência no exercício da sexu-
alidade e ações para o controle da natalidade. Por fim, o direito ao aborto, dados
os obstáculos encontrados, ficou submerso na defesa do direito das mulheres a
conhecer seu corpo e a decidir o que nele se passa e na pauta da “livre opção pela
maternidade”.
Não há um vácuo entre essa luta e os anos 2000, mas mudanças nos pa-
drões de interação com o Estado. Eles se explicam pela menor permeabilidade do
Estado brasileiro à atuação feminista a partir do final dos anos 1990, representa-
da pela redução do recursos e enfraquecimento institucional do CNDM, por um
lado. Por outro, no entanto, abrem-se novos processos de ação a partir da cen-
tralidade adquirida pela agenda de gênero e antirracista no ambiente transnacio-
nal. A “confluência perversa” (DAGNINO, 1994) entre a competência e potência
dos movimentos e a agenda neoliberal produziu uma centralidade despolitizada.
Adaptada ao “receituário neoliberal de muitos governos latino-americanos e insti-
tuições intergovernamentais no pós-Consenso de Washington” (ALVAREZ, 2014,
p. 30), a agenda mais radical dos feminismos latino-americanos pôde ser transfi-
gurada em pautas como a do “empoderamento das mulheres” (FALQUET, 2011,
p. 121). A mobilização de agendas fortalecidas nesse ambiente não foi, no entanto,
limitada aos pressupostos neoliberais. Isto é, organizações e lideranças ultrapassa-
ram o espaço reservado a elas, apresentando também pautas alternativas e cons-
tituindo-se, como atores políticos, em tensão com o enquadramento estabelecido.
Por isso me parece fundamental registrar, retomando discussão feita an-
teriormente (BIROLI, 2018b), que foi também nos anos 1990 e no processo de
mobilização na esfera internacional que foi criada uma das principais coalizões
feministas de abrangência nacional, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB),
fundada em 1994, segundo documentos da própria organização, “para coordenar
as ações dos movimentos de mulheres brasileiras com vistas à sua consolidação
como sujeito político” na Conferência de Beijing. A história da AMB é, de certo

302
modo, a história desse cenário complexo de que venho tratando. Tem atuado nas
esferas internacional e nacional, participando formalmente de processos políti-
cos, com presença em Conselhos e Conferências. Ao mesmo tempo, atua na po-
tencialização e organização dos movimentos, de marchas e protestos, e apresenta
uma agenda radical de luta antirracista e anticapitalista conectada à agenda de
luta das mulheres e da população LGBT. “Democratização radical do Estado no
Brasil”, “controle social da população em todos os níveis de governo”, “igualdade
de direitos e boas condições de vida para as mulheres, garantindo solidariedade e
promovendo justiça social, econômica e ambiental, contrapondo-se à perspectiva
neoliberal nos processos de desenvolvimento da economia capitalista na região”,
são pontos enunciados como objetivo permanente da organização.2
Em 2000, seria fundada a Marcha Mundial de Mulheres, originada do mo-
vimento “2000 razões para marchar contra a pobreza e a violência”. O destaque
conjunto à pobreza e à violência é significativo aqui. Segundo os documentos dis-
poníveis, a Marcha defende “a visão de que as mulheres são sujeitos ativos na
luta pela transformação de suas vidas e que essa luta está vinculada à necessi-
dade de superar o sistema capitalista patriarcal, racista, homofóbico e destrui-
dor do meio ambiente”.3 É certo que um referencial programático radical não
garante radicalidade na atuação efetiva, dados os constrangimentos que existem
quando mulheres que são parte desses movimentos atuam no âmbito estatal e nas
organizações internacionais, em que pesa também o acesso a financiamentos que
contribuem para a viabilidade e longevidade das organizações. Pode, no entanto,
modular ações e incidir sobre as esferas formais de participação, o que ajuda a
explicar a radicalidade da agenda das conferências realizadas no período.
Assim, os movimentos feministas brasileiros adentram os anos 2000 car-
regando as ambivalências da década anterior. Também se recoloca a questão da
relação com o Estado e do grau de autonomia dos movimentos em um novo con-
texto de oportunidades, aberto com a chegada do PT ao Governo Federal. Com a
redemocratização, a fronteira entre a atuação no âmbito estatal e o ativismo dos
movimentos se tornaria mais porosa, devido aos novos dispositivos de partici-
pação (LAVALLE; SZWAKO, 2015), como dito anteriormente. Nos anos 2000,
entretanto, é que se abriria um período de “permeabilidade inédita do Estado”
(ABERS; SERAFIM; TATAGIBA, 2014) aos movimentos, uma das características
do que venho chamando de ciclo dentro do ciclo.

2   Página eletrônica da Articulação de Mulheres Brasileiras, disponível em: <http://


articulacaodemulheres.org.br/historia/> (acesso em: 1o ago. 2017).
3   Página eletrônica da Marcha Mundial de Mulheres, disponível em: <https://marchamulheres.
wordpress.com/> (acesso em: 1o ago. 2017).

303
Feminismos nas Conferências

As Conferências Nacionais de Políticas para Mulheres, analisadas neste li-


vro, são, assim, ambiente e recurso fundamental de realização da relação entre
os feminismos e o Estado no ciclo dentro do ciclo democrático, aberto com a
chegada do PT ao Governo Federal, em 2003. Sua análise nos permite refletir so-
bre duas tendências registradas pelas intelectuais feministas que organizaram este
livro e que coexistiram nesse início dos anos 2000. Uma delas é o “sidestreaming
feminista” (ALVAREZ, 2014, p. 17), isto é, “o fluxo horizontal dos discursos e prá-
ticas de feminismos plurais para os mais diversos setores paralelos na sociedade
civil”, com a “resultante multiplicação de campos feministas”. A outra corresponde
aos esforços para despatriarcalização do Estado (MATOS; PARADIS, 2014), com
efeitos e limites discutidos de maneira competente em vários capítulos deste livro,
que ultrapassa a análise específica das Conferências e nos proporciona uma com-
preensão ampla desses esforços e das barreiras encontradas.
A coexistência entre o sidestreaming e os esforços de despatriarcalização
no âmbito estatal não pode ser tomada como uma correspondência direta. Daí
a relevância de se colocar a questão: quem são as mulheres que participaram das
Conferências de Políticas para Mulheres? Quem são elas relativamente à socie-
dade brasileira, mas também quem são elas se consideramos o campo político-
-partidário, de um lado, e os feminismos em sua caracterização múltipla atual, de
outro?
O livro mostra que se trata de um grupo peculiar de mulheres. Altamente
escolarizadas e com renda média também elevada, compõem um grupo peculiar
também partidária e ideologicamente. Trata-se, ainda, de um grupo bastante en-
gajado na participação estatal. Sua atividade nas Conferências não se restringe às
de políticas para mulheres – pelo contrário: mais de 40% das participantes estive-
ram engajadas também em conferências nas áreas de saúde, educação e assistência
social, entre outras. O capítulo de Céli Pinto analisa um fato relevante, o de que a
participação envolve grupos próximos ideologicamente ao governo constituído, o
que se revela nos dados sobre filiação partidária e colabora para explicar a ampla
identificação das participantes com as políticas do governo, expressa de maneira
bastante semelhante em 2011 e 2016, embora as conferências desses anos tenham
se dado em contextos tão distintos. Como nos lembra a autora, em 2011 o hori-
zonte de atuação dos feminismos, junto ao Estado, era reforçado pela chegada de
uma mulher à Presidência da República, pela primeira vez na história do país; em
2016, a conferência coincide com o afastamento de Rousseff.

304
Embora se trate de um grupo fortemente engajado, assim, na participação
estatal e na política partidária, ele não se destaca fortemente do conjunto mais
amplo das mulheres no que diz respeito às barreiras para tomar parte na política
eleitoral, candidatando-se. Tratando-se de mulheres e, sobretudo, das negras (que
são cerca de metade das participantes das conferências analisadas e quase 70%
quando se consideram apenas as participantes da sociedade civil, sem contabi-
lizar aquelas que integram governos), atividade política intensa e engajamento
partidário não se traduzem em candidaturas e em sucesso eleitoral. Ainda que
sejam ativas em associações da sociedade civil, na participação estatal e, em sua
maioria, filiadas a partidos políticos de esquerda, as barreiras para a participação
político-eleitoral parecem incidir também sobre elas. A forte identificação com o
feminismo também não as peculiariza nesse quesito.
Como escreveu Danusa Marques em seu capítulo neste livro, “a principal
forma de atuação política [dessas mulheres] é não eleitoral e articulada a mo-
vimentos e associações da sociedade civil, como os movimentos de mulheres e
sindicatos”. Pode ser, alerta a autora, que a participação seja um elemento na cons-
trução de candidaturas posteriormente, o que teria que ser investigado. E, se as
Conferências fazem parte da própria dinâmica de construção dos feminismos no
período, parece ser um ponto-chave, de fato, compreender em que medida essa
experiência coletiva se desdobrará em candidaturas de mulheres. O ponto é que,
para as mulheres, filiação a partido e altos níveis de engajamento político não cor-
respondem à integração competitiva para a concorrência eleitoral, como exposto
por Marques.
Por outro lado, os dados indicam que pode existir uma peculiaridade no
perfil das participantes se consideramos a multiplicação dos campos feministas.
Se, desde os anos 1970, os feminismos têm se mostrado diversos em suas posi-
ções quanto à aproximação de partidos e do Estado, vista como um risco para
a autonomia dos movimentos, no contexto das Conferências há um elemento a
mais a ser analisado. Há uma correlação significativa entre a participação, a filia-
ção ao PT e a partidos aliados no governo, como o PCdoB, e a identificação com
as políticas assumidas pelo governo no período. Ao mesmo tempo, predominam
as mulheres adultas, entre 32 e 59 anos, e a representação das jovens é pequena,
levando a considerações, como as que foram feitas neste livro por Laura Martello,
sobre a impermeabilidade desses espaços de participação a jovens que são parte
importante do processo de multiplicação dos campos feministas. Pode-se refletir,
assim, sobre a distância entre as experiências de participação institucional e os
padrões renovados de atuação política entre feministas jovens que compõem co-
letivos em todo o país. Os dados da pesquisa parecem indicar filtros de ao menos

305
dois tipos na trajetória política das mulheres atuantes politicamente no período,
envolvidas em grande medida com movimentos e organizações feministas: (1)
filtro no trânsito das jovens feministas dos coletivos e movimentos para a partici-
pação estatal, uma vez que, entre as primeiras, pode haver menor engajamento na
política partidária, algo que parece ter sido chave para o acesso às Conferências;
(2) filtro no trânsito das feministas, presentes ou não em espaços de participação
como as Conferências, para a competição eleitoral, uma vez que atuar politica-
mente e fazê-lo nos espaços estatais não significam algo que esteja, para as mu-
lheres feministas (e para a maioria de mulheres negras presentes na conferência),
relacionado a uma atuação eleitoral como candidatas.
Vale, ainda, observar outros aspectos da composição etária das Conferências
analisadas neste livro. Embora a ampla maioria das mulheres que delas participa-
ram se declare feminista, é entre as delegadas jovens, de 18 a 25 anos, que, em
2016, 100% se declararam feministas. Laura Martello nos mostra que essa adesão
se repete apenas entre as que têm mais de 67 anos. Declarar-se feminista carrega
diferentes sentidos, no entanto. Nem todas são a favor da descriminalização do
aborto, embora a maioria o seja. E, nesse ponto, a incidência da religião entre as
participantes parece ser um elemento importante. Visões de mundo religiosas, é
bom lembrar, não compõem apenas os segmentos conservadores e antifeministas.
Constituem também os valores e atitudes de mulheres que se declaram feminis-
tas, situam-se ideologicamente no campo da esquerda e dedicaram seu tempo à
construção da agenda de políticas para mulheres. Penso em duas frentes em que
essa conexão pode ser explorada. De um lado, visões religiosas podem limitar e
constranger atitudes afins aos feminismos; de outro, em sentido distinto, a religio-
sidade de mulheres empenhadas na construção de políticas de Estado com forte
orientação feminista nos mostra que é possível uma expansão de valores feminis-
tas para além das fronteiras entre pessoas religiosas e não religiosas. Se a laicidade
se mostra inegociável historicamente para a promoção de direitos para as mu-
lheres e para as pessoas LGBT, os pertencimentos religiosos dos indivíduos não
implicam, em si, uma recusa desses direitos e da atuação política em sua defesa.
Outra frente na análise dos valores das participantes, em sua relação com
os feminismos, foi explorada por Solange Simões em seu capítulo. A autora nos
lembra de que os movimentos de mulheres brasileiras expõem alianças bem-su-
cedidas entre diferentes segmentos, com forte participação de mulheres sindica-
lizadas, negras e integrantes de movimentos negros. As posições reveladas pelas
participantes no survey que compôs a pesquisa mostram, no entanto, que o femi-
nismo é visto por elas de diferentes formas, com menor ou maior aproximação
de visões liberais, igualitárias e/ou interseccionais. A forte presença da associação

306
entre igualdade de gênero e trabalho e entre feminismo e igualdade de classe tem
como contraponto, segundo a análise feita por Simões, a menor atenção ao racis-
mo e à homofobia. Um dado relevante, também destacado pela autora, é o fato
de que, entre as mulheres que disseram engajar-se em algum ativismo para além
do próprio feminismo, 43% atuem em sindicatos e 35% em movimentos negros.
É possível, no entanto, que, menos do que exclusões, esses dados revelem
o forte compromisso histórico dos feminismos brasileiros com a construção de
um país igualitário, remontando ao que discuti no início do texto – o compro-
misso com a universalização de direitos, com um pacto social distributivo, com a
democratização do Estado – e, ainda, à filiação da maior parte das participantes
a partidos de esquerda. Pode ser importante, é claro, refletir sobre como ampliar
as conexões entre a agenda distributiva e as agendas antirracista e da diversidade
sexual, de modo que amplie a abordagem antipatriarcal. Trata-se, ao que parece,
de uma agenda em aberto, para utilizar a expressão de Johanna Monagreda em
seu capítulo sobre gênero e raça nas Conferências. Como dizem Marlise Matos,
Breno Cypriano e Marina Brito também neste livro, a complexidade das opressões
interseccionais precisa ser levada em conta de maneira mais aprofundada na ava-
liação das políticas de Estado implementadas e de seus efeitos. E, de forma mais
ampla, parece necessário fazer frente aos retrocessos em curso hoje, de modo
que fortaleça o que definiram como o “nó estratégico das políticas de gênero e
feministas”, isto é, sua característica potencialmente antipatriarcal, antirracista e
antiLGBTfóbica.
Nesse ponto, é possível tocar em uma temática transversal a todo o livro,
a análise do caráter patriarcal do Estado e dos limites ao processo de despatriar-
calização – ainda que em um contexto favorável, de ampliação da participação
e de capilarização social do feminismo. A indagação que, entendo, coloca-se a
partir de muitas das análises apresentadas é em que medida a atuação feminista
no ciclo democrático e, em especial, no ciclo democrático que se abriu com a
chegada do PT ao Governo Federal, produziu políticas capazes de incidir sobre
o Estado, transformando-o. Aproximando-se de outra forma da mesma questão,
os organismos de políticas para mulheres, as conferências e os Planos de Políticas
Públicas produziram políticas de governo e agendas com baixa permanência em
circunstâncias de mudança política ou políticas que transformaram, mesmo que
em medida pequena, a “ossatura” do Estado?
De maneira geral, os textos parecem apontar para a tendência de despatriar-
calização do Estado, enquanto analisam criticamente seus limites. A “ossatura”
patriarcal do Estado é atualizada nas resistências conjunturais às transformações,
ativadas no período de maior abertura à agenda feminista e ampliadas após a

307
deposição de Dilma Rousseff, em 2016. Schuma Schumaer, em seu capítulo, vê
na conjuntura política – e, eu diria, no equilíbrio de forças que a caracterizou –
limites para a intervenção feminista no campo estatal. Essa intervenção não teria
permeado “de forma efetiva a estrutura do Estado para a implantação de políticas
mais permanentes”. Assim, o reconhecimento do protagonismo do feminismo nas
transformações políticas, que ela ressalta, parece apresentar-se sempre em con-
junto com a necessidade de compreendermos as atualizações do patriarcado no
Estado e no cotidiano da sociedade.
Um ponto que me parece fundamental é que, nas diversas análises deste
livro, o diagnóstico dos limites à despatriarcalização do Estado não suspende a
importância do Estado – das instituições em sentido mais abstrato, das políticas
públicas e da alocação de recursos para essas políticas – para a superação das
desigualdades de gênero. Na construção de pesquisas que promovem evidências
importantes, como as pesquisas de uso do tempo, discutidas no capítulo escrito
por Breno Cypriano, no processo de construção dos organismos de políticas para
mulheres, analisado em detalhes nos textos de Débora Gonzalez e Layla Carvalho,
revelam-se ao mesmo tempo os padrões da relação entre feminismos e Estado no
período e a relevância incontornável do Estado.
É, sem dúvida, de grande relevância que no ciclo dentro do ciclo democrá-
tico o Estado tenha, como dizem Matos, Cypriano e Brito, assumido a “respon-
sabilidade de implementar políticas públicas que tenham como foco as mulheres,
a consolidação da cidadania e a igualdade de gênero”, uma vez que “a atuação do
Estado, por meio da formulação e implementação de políticas, interfere na vida
das mulheres, ao determinar, reproduzir ou alterar as relações de gênero, raça e
etnia e o exercício da sexualidade”.
As Conferências aqui analisadas ocorreram em um período em que essa
responsabilidade foi assumida, ainda que os efeitos dessa responsabilização esta-
tal tenham sido limitados pela conjuntura política e pela “ossatura” patriarcal do
Estado. O que ocorre quando o ciclo democrático se encerra? Em que medida o
processo atual de fechamento da democracia tem o gênero como um elemento
central? Entendo que sim.
A centralidade do gênero no golpe de 2016 vai, parece-me, muito além
da campanha misógina contra Rousseff e da ampliação dos estereótipos de gê-
nero e de visões anti-igualitárias no debate público. No momento em que este
livro é finalizado, o Estado brasileiro se desresponsabiliza, em larga medida, de
sua condição de promotor de relações de gênero mais igualitárias. Isso ocorre
com o desmonte de organismos de políticas para mulheres, que têm estrutura
e recursos reduzidos. A adoção de uma agenda radical de austeridade também

308
incide negativamente sobre a construção da igualdade de gênero, uma vez que a
redução da oferta de equipamentos públicos e de recursos no âmbito da saúde,
da educação e da seguridade afeta especialmente as mulheres, que são as princi-
pais responsáveis pelo cuidado e são, assim, oneradas de maneira singular pela
mercantilização e pela transferência de mais responsabilidades para as unidades
familiares. Políticas de governo que se definem, ao mesmo tempo, por alianças
com setores reacionários e pela ruptura do diálogo com os movimentos feminis-
tas também incidem no ambiente social, somando-se a resistências à despatriar-
calização e ampliando-as, em vez de fortalecer o papel do Estado na redução das
desigualdades e das opressões.
Apesar disso, os movimentos feministas têm se fortalecido. Plurais e capila-
rizados, contam hoje com as experiências nos espaços de participação institucio-
nal, entre elas as das Conferências aqui analisadas. Renovaram-se nos encontros
que um período de maior abertura à agenda de gênero e da diversidade sexual
produziram, nas próprias Conferências, nas marchas das Vadias, das Margaridas,
das Mulheres Negras, renovaram-se também nos debates públicos que se deram
em diversos espaços e que forçaram a entrada da temática de gênero nos meios de
comunicação. O encerramento de um ciclo democrático não significou, é certo,
a anulação dos feminismos como atores políticos ou a restrição de seu potencial.

Referências

ABERS, Rebecca Naeara; SERAFIM, Lizandra; TATAGIBA, Luciana. Repertórios de in-


teração Estado-sociedade em um Estado heterogêneo: a experiência na Era Lula.
Dados, v. 57, n. 2, p. 325-57, 2014.
ALVAREZ, Sonia E. Engendering democracy in Brazil: women`s movement in transition
politics. Princeton: Princeton University Press, 1990.
______. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu,
n. 43, p. 13-56, 2014.
ARRETCHE, Marta. Democracia e redução da desigualdade econômica no Brasil: a inclu-
são dos outsiders. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 33, n. 96, p. 1-26, 2018.
BIROLI, Flávia. Political violence against women in Brazil: expressions and definitions.
Direito & Práxis, v. 7, n. 3, p. 557-589, 2016.
______. Reação conservadora, democracia e conhecimento. Revista de Antropologia, v. 61,
n. 1, p. 83-94, 2018a.
______. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2018b.

309
BUENO, Winnie et al. (Orgs.). Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil. Porto Alegre:
Zouk, 2017.
DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de ci-
dadania. In: ______ (Org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
FALQUET, Jules. Por las buenas o por las malas: las mujeres em la globalización. Bogotá:
Universidad Nacional de Colombia/Pontificia Universidad Javeriana, 2011.
JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO, Murilo (Orgs.). Por que gritamos golpe?. São
Paulo: Boitempo Editorial 2016.
LAVALLE, Adrian; SZWAKO, José. Sociedade civil, Estado e autonomia: argumentos,
contra-argumentos e avanços no debate. Opinião Pública, v. 21, n. 1, p. 157-187,
2015.
MATOS, Marlise; PARADIS, Clarisse Goulart. Desafios à despatriarcalização do Estado
brasileiro. Cadernos Pagu, n. 43, p. 57-118, 2014.
RUBIM, Linda; ARGOLO, Fernanda (Orgs.). O golpe na perspectiva de gênero. Salvador:
EDUFBA, 2018.
SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos
trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-80. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
VAGGIONE, Juan Marco. Sexualidad, derecho y religión: entramados em tensión.
In: SÁEZ, Macarena; FAÚNDES, José Manuel Morán (Eds.). Sexo, delitos y pe-
cados: intersecciones entre religión, género, sexualidad y el derecho em América
Latina. Washington, DC: Center for Latin American & Latino Studies, American
University, 2016. p. 18-52.

310
esta obra foi composta
em Minion Pro 11/14
pela Editora Zouk e impressa
em papel Offset 129g/m2
pela gráfica Rotermund
em agosto de 2018

Você também pode gostar