Você está na página 1de 296

Caminhos da escrita

em tempos de
interseccionalidades

Neli Gomes da Rocha


(Organizadora)
Caminhos da escrita
em tempos de
interseccionalidades

Neli Gomes da Rocha


(Organizadora)

2021
Universidade Federal do Paraná - UFPR Diretora de Extensão, Arte e Cultura e
Reitor Coordenadora do Núcleo de Estudos
Ricardo Marcelo Fonseca Afro-Brasileiros e Indígenas Institucional
Vice-Reitora Mônica Luiza Simião Pinto
Graciela Bolzón de Muniz
Superintendência de Inclusão, Políticas Universidade Estadual de Ponta Grossa -
Afirmativas e Diversidade UEPG
Paulo Vinicius Baptista da Silva Reitor
Coordenação de Políticas Afirmativas Miguel Sanches Neto
Nathalia Savione Machado Vice-reitor
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros Everson Augusto Krum
Megg Rayara Gomes de Oliveira
Pró-Reitora de Assuntos Estudantis - PRAE
Associação Brasileira de Ione da Silva Jovino
Pesquisadores/as Negros/as - ABPN Coordenadoria de Comunicação Social -
Diretoria CCOM
Gestores 2020-2022 Luciane Silva Navarro
Presidente NUREGS - Núcleo de Relações Étnico-Raciais,
Prof. Dr. Cléber Santos Vieira de Gênero e Sexualidade
Profa. Dra. Silvani dos Santos Valentim Aparecida de Jesus Ferreira
Diretor de Relações Institucionais
Prof. Dr. Delton Aparecido Felipe Universidade Federal do Acre - UFAC
Diretora de Relações Internacionais Reitora
Profa. Dra. Maria Malcher Margarida de Aquino Cunha
Diretora de Áreas Acadêmicas Vice-reitor
Profa. Dra. Vera Rodrigues Josimar Batista Ferreira
NEABI UFAC
Instituto Federal do Paraná - IFPR Flávia Rodrigues Lima da Rocha
Reitor Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque
Odacir Antonio Zanatta
Pró-reitor de Extensão, Pesquisa, Pós-
graduação e Inovação
Marcelo Estevam
Coordenação Editorial - NEAB UFPR
Paulo Vinicius Baptista da Silva

Conselho Editorial - NEAB UFPR


Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos – UFABC
Dr. Alex Ratts – UFG
Dr. Alexsandro Rodrigues - UFES
Dr. Ari Lima – UNEB
Dra. Aparecida de Jesus Ferreira – UEPG
Dra. Conceição Evaristo – Escritora
Dr. Eduardo David de Oliveira – UFBA
Dra. Eliane Debus – UFSC
Dra. Florentina da Silva Souza – UFBA
Dr. José Endoença Martins – FURB
Dra. Lucimar Rosa Dias – UFPR
Dr. Marcio Rodrigo Vale Caetano – UFRG
Dr. Moisés de Melo Santana – UFRPE
Dra. Nilma Lino Gomes – UFMG
Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – USFCAR
Dra. Wilma Baía Coelho – UFPA

Projeto gráfico e diagramação


Andrei Cavalheiro
Beatriz Vieira de Oliveira
Daniel Alexsander Silva da Luz

Observação: Os conteúdos e a revisão da Publicação Especial aqui


apresentada são de integral responsabilidade de suas autoras e
autores.

'
Comitê Científico das publicações
especiais*
Andréa Pires Rocha (UEL)
Ana Lucia Silva Souza (UFBA)
Ana Cristina Conceição Santos (UFAL)
XI COPENE - Congresso Brasileiro de Anny Ocoro Loango (Untref)
Pesquisadores/as Negros/as Carlos Alberto Ivanir dos Santos (UFRJ)
Curitiba - Paraná Cristiane Sousa da Silva (IFCE)
9 a 12 de novembro de 2020 (parte I) Daniela Ferrugem (UFRGS)
23 a 26 de maio de 2021 (parte II) Erica Portilho (Instituto Hoju)
Gabriel Swahili Sales de Almeida (UFBA)
Coordenação Geral - XI COPENE Henrique Antunes Cunha Junior (UFBA)
Prof. Dr. Paulo Vinicius Baptista da Silva - Iris Maria da Costa Amâncio (UFF)
(SIPAD e NEAB-UFPR) Joana D'Arc de Oliveira (USP)
Profa. Dra. Nicéa Quintino Amauro (ABPN) Joselina da Silva (UFRRJ)
Profa. Dra. Megg Rayara Oliveira - (NEAB-UFPR) Luciane Ribeiro Dias Gonçalves (UFU)
Infraestrutura online Maria Anória de Jesus Oliveira (UNEB)
Profa. Ms. Nathalia Savione Machado Maria da Conceição dos Reis (UFPE)
(SIPAD-UFPR) Maria José de Jesus Alves Cordeiro (UEMS)
Executiva Local - Produção Maria Nilza da Silva (UEL)
Profa. Ms. Neli Gomes da Rocha Maria Simone Euclides (UFV)
(ABPN) Mariana Gino (UCAM)
Mariana Aparecida dos Santos Panta (UEL)
Coordenação Comitê Científico Neli Gomes da Rocha (UFPR)
Profa. Dra. Aparecida de Jesus Ferreira Paulo Vinicius Baptista da Silva (UFPR)
NUREGS / UEPG Ricardo Matheus Benedicto (Unilab)
Profa. Dra. Eliane Santana Dias Debus - UFSC Rosa Margarida de Carvalho Rocha
Profa. Dra. Megg Rayara Oliveira - NEAB / UFPR Sirlene Ribeiro Alves da Silva (Colégio Pedro II)

*Agradecemos a cada pessoa do Comitê


Científico pela emissão dos pareceres na
modalidade publicação especial.
“Eu entrego. Eu confio. Eu aceito. Eu agradeço”
In memorian AZOILDA LORETTO DA TRINDADE

Figura 1 – Retrato 01 de Azoillda Loretto da Trindade


Fonte: Acervo Canal Futura – Projeto A cor da Cultura.
Sumário

Apresentação 11
Neli Gomes da Rocha

1 - O FEMININO EM TEMPOS DE DIÁLOGOS COM A


AMPLIAÇÃO DA INSERÇÃO EDUCACIONAL E
PROFISSIONAL

Professoras doutoras negras e suas práticas de insurgências nos 19


espaços acadêmicos
Ana Cristina Conceição Santos
Cristiane Sousa da Silva
Joselina da Silva
Maria Simone Euclides

A mulher negra no ensino superior: A corporificação da docência 24


e seus desafios.
Leudiane Oliveira de Lima

Vozes feministas negras na perspectiva geracional: diálogos sobre 40


a trajetória de Valéria Neves
Sulamita Rosa da Silva

Por uma academia feminista e antirracista: cartas de duas 55


docentes negras
Luciana Rodrigues
Loiva de Oliveira

Relações de trabalho e mulherismo: a luta das mulheres negras 75


mães trabalhadoras no cotidiano profissional.
Cibele Henriques

2 - DOCENTES NEGRAS E A LEGISLAÇÃO ANTIRRACISTA

Aprendizagem étnico-racial: no passado das “sinhás e os 97


senhores” ao sistema contemporâneo do empoderamento
Lilian Soares da Silva

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 9


Professoras negras em Santa Catarina no século XX: 111
profissionalização, história, memória, “raça” e gênero
Elida Regina Nobre Rodrigues

Professoras negras e suas autorias: Um recorte do estado do 131


conhecimento
Elida Regina Nobre Rodrigues

3 - O CONTEÚDO CURRICULAR EM VIAS DE


RESSIGNIFICAÇÃO

A preença/ausência da interseccionalidade: classe, gênero, raça 147


e etnicidade nos currículos, práticas e formação de professores
(as)
Claudia Cristina Ferreira Carvalho

Presencias y ausencias epistémicas Currículo, pensamiento 160


afrocolombiano y formación docente intercultural
Elizabeth Castillo Guzmán

O pensamento decolonial e suas contribuições para o debate 190


racial no campo da educação.
Denise Gonçalves da Cruz

4 - ESPACIALIDADE E DIVERSIDADE NO PROCESSO DE


APRENDIZADO

Uma Brinquedoteca afro-brasileira em Arraias 211


Maria Aparecida de Matos

“Dos filhos deste solo, és mãe gentil?”: Educação e 235


afroindígenas na “reforma” do estado brasileiro (1985-2018).
Edivânia Ferreira Agostinho

Educação antirracista: caminho entre a escola e a rua 260


Luiza Rodrigues de Oliveira
Abrahão de Oliveira Santos

Gestão da educação infantil: Lugar de atuação para a educação 280


das relações étnico-raciais
Andreza Mara da Fonseca

10 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Apresentação
PUBLICAÇÃO
ESPECIAL
XI COPENE
Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades O


ato de escrever é um ato de criar alma, é alquimia. É a busca
de um eu, do centro do eu, o qual nós mulheres de cor somos
levadas a pensar como “outro” — o escuro, o feminino. Não
começamos a escrever para reconciliar este outro dentro de
nós?
[...]
Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo,
para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre
você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo.

GLORIA ANZALDÚA (1980) Falando em línguas: uma


carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo

O XI Congresso de Pesquisadores/as Negros/as obteve um dado


importante, a consistente presença de mulheres negras na
organização, no envio de propostas acadêmicas e nas inscrições
do congresso. E, nem mesmo a realidade brutal da pandemia de
2020-2021, que nos assolou, as fez recuar no interesse em dizer ao
que veio. A presença de mulheres negras no cabedal da
intelectualidade mundial já não mais ficará restrita aos parcos
dedos de uma mão e este XICOPENE é um marco.
O foco nesta edição da Coletânea “Publicações Especais
XICOPENE II” é a escrita feminina, protagonista em por
diferentes frentes e perspectivas, teremos oportunidade de
aproximação com os pontos de reflexão das intelectuais

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 11


contemporâneas inseridas dos espaços acadêmicos e culturais;
aos políticos e educacionais.
Do ponto de vista metodológico teremos aqui desde pesquisas
autobiográficas e as escritas de si ao debate caloroso e
fundamental do conteúdo curricular. Temáticas urgentes em
tempos de avanços na representatividade e na escuta de muitas
linguagens narrativas e simbólicas. A noção de escrevivências
EVARISTO (2007) é ampliada do seu campo de atuação originário
da literatura e adentra aos bancos acadêmicos, mostrando a que
veio, expressando toda sua complexidade que urge, calibrando
visões destoantes do pensamento eurocentrado e agora se mostra
envolto do matriarcado enquanto campo epistêmico.
A edição está dividida em eixos temáticos comuns e são frutos
das propostas recebidas a exemplo da temática “Nós por Nós -
Matriarcado Afreekana Narrativas Cruzadas Negro ao Brasil”
proposta por Erica Portilho (Instituto Hoju) com o objetivo de
proporcionar maior reflexão para a população negra sobre os
locais que ocupamos na estrutura social, buscando tornar
acessível o contato com os principais conceitos discutidos em
produções acadêmicas, que tratem sobre a questão racial e formas
de enfrentamento do racismo através do autocuidado,
autoconhecimento e inteligência emocional. Fornecendo
subsídios para o desenvolvimento da autoestima. Tornar
discussões e conhecimento antirracista mais acessíveis, em uma
linguagem mais abrangente explicando como chegamos na
situação atual, como estamos. Apresentar possíveis formas para
sair desse lugar, através das movimentações já realiza das por
cada coautor, fazendo com que seja possível reconhecer múltiplas
formas de lidar com a sociedade sem adoecer. Pontos de vistas que
ressaltam a necessidade de maior atenção para as ações
desenvolvidas no enfrentamento cotidiano a partir das mudanças
de hábitos visando o bem viver.
Outra abordagem aqui apresentada é a temática “Professoras
doutoras negras e suas práticas de insurgências nos espaços
acadêmicos” sob a coordenação de Maria Simone Euclides (UFV -
Universidade Federal de Viçosa), Ana Cristina Conceição Santos

12 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


(Universidade Federal de alagoas - Campus do Sertão), Cristiane
Sousa da Silva (Instituto Federal do Ceará), Joselina da Silva
(Universidade Federal Rural RJ) com o objetivo de reunir
pesquisas concluídas e em desenvolvimento sobre o pensamento
das mulheres negras, suas ações teóricas e analíticas nos espaços
acadêmicos, e suas interconexões: raça, gênero, sexualidade,
geração, entre outras. Nesta direção, deixam de ser analisados
como produção intelectual, o fazer teórico, científico e política de
professoras, doutoras negras inseridas nas instituições de ensino
superior, as quais revelam outros olhares e outras práticas
discursivas. Conduzindo importantes problematizações para a
forma complexa do pensar sob a ótica do feminino, suas
peculiaridades e subjetividades por vezes ocultada pela suposta
objetividade acadêmica.
Convidamos para a leitura atenta dos escritos da intelligentsia¹
feminina construindo a duras penas formas resignificadas de
pensar e de agir sem deixar de lado as contribuições das gerações
que nos forjaram como seres críticos e questionadoras.

Neli Gomes da Rocha² (UFPR)

VIEIRA, Carlos Eduardo. “Intelligentsia e intelectuais – sentidos, conceitos e


1

possibilidades para a história intelectual”. Revista Brasileira de História da Educação,


n. 16, jan./abr. 2008, p. 63-85.
2 Cientista Social, Mestra em Sociologia, Doutoranda em Educação pela UFPR.
Pesquisadora das Estéticas Capilares Negro-africanas e Autocuidados ancestrais. Mãe
de José Abdias e Djavan. Produtora Cultural. Contato: neligomes30@gmail.com

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 13


REFERÊNCIAS

AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte:


Letramento, 2018.

ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as


mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista de Estudos
Feministas, vol. 8, n. 1, Florianópolis, 2000, pp. 229-236.

CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen Livros,


2019.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro. São Paulo:


Boitempo, 2019.

CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality,


Identity Politics, and Violence against Women of Color. Stanford
Law Review, vol. 43, 1991, pp. 241-279.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos


lugares de nascimento de minha escrita. In: Alexandre, Marcos
A. (org.) Representações performáticas brasileiras: teorias,
práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, p.
16-21, 2007.

_________________. Becos da Memória. 200p. Rio de


Janeiro: Pallas, 2017.

_________________. Literatura negra: uma poética de


nossa afro-brasilidade. Scripta. v.13, n.25, p. 17-31, 2009.

_________________. Ponciá Vicêncio. Rio de Janeiro:


Pallas, 2017.

GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia


Gonzalez, em primeira pessoa. São Paulo: UCPA, 2018.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática

14 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 1986.

LORDE, Audre. Las herramientas del amo nunca desmontan la


casa del amo. In: LORDE, A. La hermana, la extranjera: artículos e
conferencias. Madrid: Ed. Horas y horas, 2003, pp. 115-120.

LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Revista de


Estudos Feministas, vol. 22, n. 3, Florianópolis, 2014, pp. 935-952.

NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e


intelectual: possibilidades nos dias de destruição. São Paulo:
Editora Filhos da África, 2018.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? BH:


Editora UFMG, 2010.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 15


16 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades
1 - O Feminino em tempos
de diálogos com a ampliação
da inserção educacional
e profissional

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 17


18 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades
PROFESSORAS DOUTORAS NEGRAS
E SUAS PRÁTICAS DE INSURGÊNCIAS
NOS ESPAÇOS ACADÊMICOS
Ana Cristina Conceição Santos - Universidade Federal de
Alagoas - Campus do Sertão
Cristiane Sousa da Silva - Instituto Federal do Ceará
Joselina da Silva - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Maria Simone Euclides - Universidade Federal de Viçosa

As questões atinentes às relações raciais negras brasileiras,


têm obtido maior espaço e visibilidade na seara acadêmica, nos
últimos decênios. No entanto, percebemos a ausência de uma
robusta bibliografia voltada a dialogar teoricamente a respeito
das mulheres negras e o seu pensamento, em diferentes tempos
históricos o que tem contribuído para que este tenha sido
invisibilizado e pouco estudado nos espaços acadêmicos. Nesta
direção, deixam de ser analisados como produção intelectual, o
fazer teórico, científico e política de professoras, doutoras negras
inseridas nas instituições de ensino superior, as quais revelam
outros olhares e outras práticas discursivas. Assim, essa
Publicação Especial tem como objetivo reunir pesquisas
concluídas e em desenvolvimento sobre o pensamento das
mulheres negras, suas ações teóricas e analíticas nos espaços
acadêmicos, e suas interconexões: raça, gênero, sexualidade,
geração, entre outras. Desejamos reunir de forma inédita
discussões sobre intelectuais negras, suas vozes, epistêmes e
interlocuções em prol de um conhecimento e ciência antirracista,
antissexista e humanamente humano.
Antes de mencionar como tem sido a presença de mulheres
negras nas instituições de ensino superior, é preciso demarcar
como é estar neste espaço. De acordo com a reportagem do jornal
Gênero e Número de 20 de junho de 2018, menos de 3% entre os
docentes da pós-graduação são doutoras negras. Fazemos parte

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 19


de um projeto de nação racista, no qual, não conta com a nossa
presença, professoras negras, em lugares considerados de status.
Neste projeto de nação, estamos sempre nos lugares
subalternizados, são os presídios, são os centros educacionais,
são as desigualdades, são os sofrimentos, as amarguras que estão
postas para nós (Zelma Madeira - UECE, 2015, apud EUCLIDES,
2017, pág. 31).
Ser professora, para nós, é romper barreiras erigidas pelo
racismo. É dar conta de ser forte e digladiar contra as
adversidades que nos atravessam cotidianamente. E de um certo
modo, uma conquista para parte da nossa família, irmãs, irmãos,
primos, mãe, pai, entre outros. Somos as que, provavelmente,
abriremos as portas, os caminhos para que posteriormente
outras gerações se adentrem, quer seja por cotas raciais ou não.
Essa assertiva é ratificada pela professora doutora Maria
Aparecida Silva (2017), em seu livro Trajetória de Mulheres
Negras, a partir de sua autobiografia, ao narrar que: “o
importante é o orgulho que meus familiares sentem de mim, por
ter conquistado o que eles não tiveram chance, e ser hoje a única
da família, mulher negra, com título de mestre e doutora.” (p. 49).
José de Carvalho Jorge, professor e pesquisador da
Universidade de Brasília, (2006), utiliza a expressão
"confinamento racial” para falar da “branquitude” que impera
no espaço acadêmico, bem como a maneira que as questões
raciais são tratadas na universidade. Para ele, “a segregação
racial no meio universitário jamais foi imposta no Brasil
legalmente, mas sua prática concreta tem sido a realidade do
nosso mundo acadêmico, através de mecanismos que esse
próprio mundo acadêmico cria e recria”, e nem tem mostrado
interesse, até recentemente, em desativá-lo, como por exemplo,
nas etapas de seleção de professores nos concursos públicos, as
dimensões subjetivas e simbólicas, a ideia de capacidade e
incapacidade podem seguir veladamente impedindo o ingresso
de concorrentes afrodescendentes Aquilo que denominamos por
racismo institucional, naturalizado e reproduzido
cotidianamente.

20 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Além da segregação racial, gênero também configuraria este
lugar como um espaço de arbitrariedade e poder masculino.
Consequentemente, os desdobramentos da dominação masculina
e a “superioridade racial”, coadunam com a relação entre poder e
saber; assim como quem tem direito à fala, e a assunção da
mesma. Sueli Carneiro (2003, apud SANTOS, 2015) reitera que ao
se interseccionalizar raça e gênero remete-se para vivências
diferenciadas entre mulheres brancas e negras sendo que as
mulheres negras trazem experiências que destina, muitas vezes,
a época da escravidão.
Como bem destacado por Oliveira (2006), nas escolas, nas
universidades, nos institutos de pesquisa, os conhecimentos são
construídos tendo o homem branco, hétero e adultos como
referencial de ser humano. Dessa maneira, não apenas alguns se
apropriam de informações e conhecimentos em benefício
próprio, mas apenas sobre alguns e por alguns são construídos os
conhecimentos. Nestes cenários, como é possível pensar a
presença de mulheres negras na docência e a intelectualidade
negra na academia?
Joselina da Silva (2010), ao analisar indicadores oficiais, até o
ano de 2005, evidenciou que apenas 251 professoras negras
atuavam no ensino universitário em um universo de 63.234
professoras e professores doutores. Situar mulheres e mulheres
negras nas instituições de ensino superior, é não deixar de
mencionar nossas presenças nas ausências, provocando análises,
construindo novas categorias que ajudam na compreensão das
desigualdades, e mais que isso, contribuem na proposição de
agendas antirracistas, sexistas e anti lgbtqi+fóbicas, como por
exemplo, a retomada dos estudos de gênero e interseccionalidade
de raça, sexualidade por exemplo. Temáticas contextualizadas e
até pouco tempo não pautadas nas instituições de ensino
superior. Temáticas sobre a condição das mulheres negras,
dentro e fora dos espaços acadêmicos, transversalizadas nas
disciplinas, no olhar sobre o racismo, nas pautas de gênero e anti
lgbtqi+fóbicas. Se pensarmos assim, sim, as mulheres negras nas
universidades apresentam novas narrativas e novas propostas de

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 21


investigação que possivelmente não apareceriam de modo
recorrente de denúncia e anúncio na superação das desigualdades
para a população negra.
Desta forma, podemos pensar em uma estratégia importante
para desconstruir a posição de nós mulheres negras dentro da
academia, trazendo para o centro os nossos conhecimentos,
nossas formas de subverter e resistir ao espaço acadêmico
brancocêntrico e romper com os obstáculos e barreiras
curriculares e epistemológicas.
Por isso, faz-se necessário e é preciso criar novos papéis
refutando a ordem colonial, uma prática insurgente que preze em
transformar as experiências em objetos presente, ou seja, um
processo de desconstrução de práticas naturalizadas e
enraizadas no fazer docente e assim sermos capazes de
descolonizar a vida, a forma como a gente se vê, nossa mente e
nossos saberes contribuindo para a criação de novas maneiras de
intervir no dia a dia, favorecendo o intercâmbio da relação
teoria/prática no combate do racismo epistêmico e tendo como
protagonistas, as mulheres negras
Como afirma Kilomba (2019), onde há opressão, há resistência.
Em outras palavras, a opressão forma as condições de resistência,
e no caso desse dossiê, reunimos várias formas de resistência na
academia por meio das práticas insurgentes de mulheres negras
que fazem do espaço acadêmico, um local de microrrevolução e de
combate ao racismo, ao sexismo, a lgbtqi+fobia e tantas outras
formas de discriminação. Um novo olhar para a educação forjada
na capacidade de resistir à opressão, e assim transformar
ausência em presença, a fim de entrar na luta como sujeitos e não
como objetos.
Assim, a presença negra nos espaços acadêmicos introduz
novas lentes para compreender as trajetórias negras na educação
formal. São vozes e fazeres de um pensamento muitas vezes
ancorado na materialidade da negritude em suas trajetórias de
vida; de travessias marcadas por desafios e enfrentamentos,
resiliências e também potencialidades no que tange a
dialogicidade antirracistas.

22 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


REFERÊNCIAS:

CARVALHO, José Jorge. O confinamento racial do mundo


acadêmico brasileiro. PADÊ:estudos em filosofia, raça, gênero e
direitos humanos. UniCEUB, FACJS Vol.2,N.1/2007.ISSN 1980-8887
Disponível em:
http://publicacoes.uniceub.br/index.php/pade/article/view/144/1
33 Acesso em: 05 de abr. 2021.

EUCLIDES, Maria Simone. Mulheres negras, doutoras, teóricas e


professoras universitárias: desafios e conquistas, Tese
(doutorado), Universidade Federal do Ceará, 2017.

OLIVEIRA, Eliana de. Mulher negra professora universitária:


Trajetória, conflitos e identidades. Brasília: Líber Livro Editora,
2006.

SANTOS, Ana Cristina Conceição. Mulheres negras, negras


mulheres: ativismo na capital baiana – 1980-1991, Tese
(doutorado), Universidade Federal do Ceará, 2015.

SILVA, Joselina da. Doutoras professoras negras: o que nos dizem


os indicadores oficiais. PERSPECTIVA. Florianópolis, v. 28, nº 1,
PP. 19-36, jan./jun. 2010.

SILVA, Maria Aparecida. Trajetória de mulheres negras ativistas.


Curitiba: Appris, 2017.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 23


A MULHER NEGRA NO ENSINO SUPERIOR:
A corporificação da docência
e seus desafios.
Leudiane Oliveira de Lima

INTRODUÇÃO

Perceber as relações de gênero e raça presentes no nosso dia a


dia aparentemente não é uma tarefa difícil, visto que desde muito
cedo o tratamento às mulheres e homens apresentam-se de
maneira diferente, quando nos voltamos para fator raça e etnia,
as diferenças tornam-se mais acentuadas ainda. Diante desta
percepção, constatamos que as desigualdades de gênero e raça
são as mais comuns e consequentemente as mais injustas, uma
vez que estes segmentos se encontram em desvantagens em todo
processo histórico brasileiro.
A realidade da mulher negra brasileira está circundada
historicamente de estigmatização e estereótipos que são
conscientemente e inconscientemente perpassados por gerações,
sendo negado à esta, a sua identidade de sujeito político da
história deste país, como enfatizado por Sueli Carneiro (2003) que
tal ação contribui fortemente para a subvalorização dessas
mulheres deixando às camadas mais vulneráveis, enquanto
mulher e enquanto negra, carregam consigo uma tripla
discriminação. Heleieth Saffioti (1987) afirma que a
discriminação contra a mulher e o negro no Brasil é socialmente
construída para beneficiar os dominantes, ou seja, quem controla
os poderes político e econômico. A autora chama a atenção para os
sistemas de dominação e exploração – patriarcado, racismo e
sexismo – aos quais esta mulher está submetida, e, este tripé –
como a autora denomina – garante a estruturação de um sistema
de relações em que se consolida o poder, e este poder no qual
enfatiza Saffioti veementemente tem cor e gênero, ou seja, é

24 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


branco e masculino. Por isso que, ver a mulher negra como
sujeito, entender o seu papel na sociedade, compreender a divisão
sexual do trabalho e o espaço que esta mulher ocupa no mercado
de trabalho é de grande relevância às questões raciais e de gênero.
Diante do cenário desigual que circunda a vida das mulheres
negras na sociedade brasileira é que nos propomos em realizar
este trabalho. Embora, saibamos que as mulheres ao longo dos
anos têm conseguido aos poucos adentrar em muitos espaços que
dantes lhes eram negados, é importante ressaltar que o fato
destas mulheres terem conquistado estes espaços e alguns
direitos na sociedade contemporânea, ainda nos deparamos com
situações que nos causam várias inquietações, tais como: a
ausência ou até mesmo a pequena presença de mulheres,
sobretudo mulheres negras, nos cargos mais prestigiados. E, não
iremos mais longe, olhemos ao nosso redor, para nossa
comunidade acadêmica e podemos perceber uma ínfima presença
de mulheres negras no corpo docente de nossas universidades. De
acordo com o censo da Educação Superior divulgados pelo Inep
(Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira ) em 2019, ao todo são quase 390 mil professores em
exercício, dentre esses, 52,9% são brancos e apenas 16,4% são
negros (professores autodeclarados negros e pardos).
É apartir deste cenário que nos propomos em refletir sobre a
presença das mulheres negras no ensino superior na UESPI
(Universidade Estadual do Piauí) em Teresina, buscando entender
a reduzida participação destas mulheres no exercício da docência
no Centro de ciências humanas e letras e a partir de suas
trajetórias acadêmicas identificar desafios encontrados por elas
no seio acadêmico, bem como, no exercício da profissão. Para
compreensão deste problema, este estudo tem por objetivo geral
analisar o processo de inserção das mulheres negras na docência
no ensino superior da instituição acima citada, investigando o
quadro de docentes no ano de 2018, apresentando as diferenças
quanto variáveis gênero e raça. Para o desenvolvimento deste
trabalho utilizamos do procedimento metodológico qualitativo
das ciências sociais de análise dos dados e informações,

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 25


ocupando-se de técnicas como: a observação participante,
entrevistas e levantamento de dados quantitativos junto ao CCHL
(Centro de ciências humanas e letras), das professoras em
exercício, efetivas e substitutas, fazendo um comparativo em
relação a professores do gênero oposto e a professoras
autodeclaradas como brancas.

A MULHER NEGRA, ENTRE TRAVESSIAS E


ATRAVESSAMENTOS

Pensar a trajetória das mulheres negras no ambiente


acadêmico e as relações de poder dentro das instituições de
ensino superior implica em refletir também sobre a condição da
mulher negra na sociedade brasileira, assim como as relações de
gênero¹ e raça² que as atravessam em suas histórias de vida,
refletir ainda como essas mulheres foram se constituindo e
ocupando os espaços de poder e elitizados, como o ambiente
acadêmico.
As desigualdades de gênero assim como as de raça
apresentam-se de diversas formas na vida cotidiana brasileira, os
processos de discriminação e marginalizados destes sujeitos – a
mulher e o negro – foram construídas em nossa sociedade

1 Gênero é uma categoria que vai além do aspecto biológico, sendo este uma construção
social, por meio da qual se organiza a sociedade, estabelecendo a diferenciação de
papéis, de valores, deveres dos indivíduos que serão representados na vida em sociedade
(SAFFIOTI, 2015). Etimologicamente a palavra gênero, durante muito tempo foi
compreendida como algo puramente biológico, mas na contemporaneidade essa
categoria incorpora diferentes significados, dos quais dependem o contexto que se
encontra inserida. Conforme Joan Scott (1995) gênero é uma categoria que assume
vários empregos e conceitos, uma vez que podemos substituir, sexo por gênero e gênero
por mulher.
Raça aqui trabalhada, não corresponde a conceitos biológicos ou genéticos, conceitos
estes que foram por anos usados para reforçar um discurso racista, errôneo e autoritário
hierarquizante (GUIMARÃES, 2002), é importante ressaltarmos que “o conceito de raça,
tal como o empregamos hoje, nada tem de biológico. É um conceito carregado de
ideologia, pois, como todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada: a
relação do poder e de dominação. O racismo atual não necessita mais de fundamentos
biológicos, ele se baseia nas diferenças culturais e de marcas existentes. O que mudou
foram apenas os termos ou conceitos, mas as vítimas do racismo de hoje são as mesmas
de ontem” (MUNANGA; OLIVEIRA, 2002, p. 16).

26 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


mediante a significados correlacionados às características e
particularidades fenótipas destes grupos. Quando se trata da
mulher negra, as consequências e desigualdades são ainda
maiores, tendo em vista que as condições hierárquicas nas quais o
negro e a mulher foram submetidos serviram para impulsionar
diversas formas de dominação que muitas vezes são
naturalizadas. Nós, enquanto mulheres e negros

Somos lançados em dilemas cruéis e curiosos: um


humano não reconhecido como humano não é
humano, sendo assim, não devemos nos referir a
ele como se fosse. Podemos encarar isso como uma
formulação de racismo explicito que exibe sua
contradição ao mesmo tempo que impõe a norma.
Da mesma maneira precisamos entender que
normas de gênero são transmitidas por meio de
fantasias psicossociais que não são originalmente
criadas por nós, podemos ver que as normas do
humano são formadas por modos de poder que
buscam normalizar determinadas versões do
humano em detrimento de outras, fazendo
distinções entre humanos ou expandindo o campo
do não humano conforme a sua vontade (BUTLER,
2018, p.44).

Segundo o exposto por Judith torna-se evidente que tanto as


normas predispostas em relação a gênero quanto à raça são
desumanas ao demarcar uma condição de existência e
importância das pessoas no convívio social. Portanto, se faz
necessário estudar os processos de discriminação através do
cruzamento das categorias raça e gênero. Dessa maneira,
buscamos analisar a participação das mulheres negras na
docência no ensino superior pelo viés de interseccionalidade,
uma ferramenta teórico-metodológica bastante utilizada por
estudiosas do movimento feminista e do movimento negro, tais
como Lélia Gonzalez (1984, 2008), Heleieth Saffioti (1987), Angela
Davis (2016), Sueli Carneiro (2003, 2011), Neusa Santos Souza
(1983) e dentre outras. Conforme Lélia Gonzalez (1984) para
compreender das opressões e discriminações sofridas pelas
mulheres negras não podem ser levados em conta apenas uma

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 27


categoria, ou seja, gênero, mas também raça e classe social. Pois,
o cruzamento dessas categorias atravessa toda a vida das
mulheres negras.
Em seus estudos da diferença, Kimberlé Creenshaw reforça que
existem “diferenças que fazem diferença” (2002, p.173), pois
todas as mulheres sofrem de fato discriminação, estão sujeitas as
mais variadas opressões de gênero, mas dentro do recorte
“mulheres” existem várias diferenças que dão um peso a mais
nestas formas de discriminação, assim como raça, classe,
religião, orientação sexual e dentre outros fatores relacionados à
identidade social. Portanto, gênero, raça e classe são sistemas
sociais distintos de dominação que se intersectam mutuamente
em uma estrutura de dominação. Para tanto, a autora supracitada
formula o conceito de interseccionalidade tornando visível a
multiplicidade das formas de dominação.

A interseccionalidade é uma conceituação do


problema que busca capturar as consequências
estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou
mais eixos da subordinação. Ela trata
especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros
sistemas discriminatórios criam desigualdades
básicas que estruturam as posições relativas de
mulheres, raças, etnias, classes e outras
(CREENSHAW, 2002, p.177).

Este conceito nos mostra a importância da observação das


particularidades de cada grupo, tendo em vista que, cada grupo
sofre abusos exclusivamente específicos, como no caso das
mulheres negras. Pois, ser mulher negra na sociedade brasileira,
conforme Souza (1983) é ser constantemente massacrada, uma
vez que, esta mulher carrega consigo desvantagens acumulativas
ao longo da história, danos causados pela marca de inferiorização
de seu grupo étnico-racial e pela submissão da condição social de
gênero.

28 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


“EU, MULHER NEGRA, RESISTO!”3

A compreensão da identidade feminina na profissão docente


reflete um processo de construção social que caracteriza este
trabalho como representação de um grupo, o das mulheres. Uma
vez que tanto às mulheres quanto aos homens foram impostos
padrões de comportamentos que justificassem o exercício de
algumas profissões. Dessa forma, salientamos que a escolha da
carreira profissional destas está relacionada à incorporação das
interações sociais ao longo de sua história de vida, ou seja, através
do habitus, como foi percebido durante as entrevistas a partir das
falas das professoras entrevistadas. Portanto, pra compreensão
do que entendemos por habitus, voltamo-nos para a
entendimento de campo, sendo este as relações objetivas
históricas entre posições que são fundadas através das estruturas
de poder. Desse modo, o habitus compreende as relações que são
dadas por este campo e internalizadas dentro dos corpos dos
indivíduos. Assim sendo, a relação entre estas categorias, pode
ser compreendida pela interiorização da exterioridade e
conseguinte a exteriorização da interioridade (BOURDIEU, 1983).
Dessa maneira, interessamo-nos em entender de que forma as
condições relacionais objetivas que caracterizam a posição dos
agentes na estrutura social dão origem as disposições e as
predisposições para a ação. De acordo com Miranda e Silva (2015,
p.18) “[...] o habitus e campo, atendem a complexidade da
construção das identidades nas sociedades hipermodernas, dos
conflitos no campo da cultura, das relações sociais, do político e
do simbólico”.
A presença significativa dessas mulheres nesta ocupação pode
ser constatada a partir dos dados⁴ obtidos nesta pesquisa junto à

3 Utilizamo-nos de um verso do poema “Resisto” de Alzira Rufino (1988, p.14), pois a


autora nos apresenta em seus versos as representações e interpretações da luta diária de
resistência das mulheres negras em uma sociedade machista e racista, evidenciando as
opressões discriminatórias e hierarquizantes que são inscritas sobre os nossos corpos.
4 Amostra percentual apresentada neste trabalho foi feita a partir dos dados obtidos
junto da direção do CCHL da UESPI, da quantidade de Docentes ativos em 2018
(CEPEX/CONSUN 2018).

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 29


direção do Centro de Ciências Humanas e Letras da universidade
observada, onde constatamos o total de 61% mulheres e 39%
homens ativos no quadro de docentes. E, quando nos voltamos
para as mulheres, e buscamos identificar e quantificar as
mulheres negras, constatamos a partir deste percentual que estas
compõem apenas 8,5% do quadro de professores do centro
investigado.
Diante disso, para compreender a realidade destas mulheres,
como elas estavam inseridas naquele ambiente, bem como as
assimetrias raciais que colocam estas mulheres em condições de
vulnerabilidade, trazemos para esta interpretação a trajetória de
vida pessoal de algumas delas, os desafios encontrados no
exercício da profissão, desafios estes vinculados à sua cor de pele
e os mecanismos de superação adotados por elas. Neste intento,
realizamos entrevistas com as docentes negras em exercício do
centro acima citado. Sabendo das opressões machistas, sexistas,
racistas, discriminatórias e hierarquizantes que são postas sobre
os corpos negros historicamente, ouvimos atenciosamente a fala
de cada uma das docentes entrevistadas, ao descrever as
situações cotidianas onde apresentam-nos as formas mascaradas
destas opressões.
A identidade em Nilma Lino Gomes (2002), bem como sua
construção não consiste num ato de isolamento, mas presume-se
que ela se dá através da interação, do diálogo do interior com o
exterior, no qual denomina de “diálogos abertos”, uma vez que “a
ideia que o indivíduo faz de si mesmo, de seu “eu”, é intermediada
pelo reconhecimento obtido dos outros em decorrência de sua
ação” (GOMES, 2002, p.39). Este caráter relacional de construção
de identidade pode ser percebido no relato da professora
Dandara5 1, ao contar-nos que o seu processo de conscientização

5 Com a intenção de garantir o anonimato das nossas entrevistadas, chamamo-lo as de


Dandara, especificando em 1, 2, 3 e assim por diante. A adoção de tal nome se deu em
virtude de ele referir-se à um grande nome da história e da cultura da população negra
brasileira. Dandara assim como minhas interlocutoras apresenta um senso de
liderança, bravura e não se conforma com os padrões e muito menos que a realidade que
lhe é imposta. Embora a história oficial tenha negado a Dandara o protagonismo que lhe
é cabido, aqui fazemos uso de relembrá-la e homenageá-la dando seu nome às
professoras entrevistadas.

30 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


de identidade negra se deu a partir da infância na escola quando
ela se deparara com olhares e apontamentos sobre seus traços
físicos, segundo ela é sob os rótulos recebidos quando criança que
“a você vai se percebendo enquanto menina, enquanto mulher
negra, [...] começando a se perceber a partir do olhar do outro, e do
olhar de estranhamento e do olhar negativo”. Assim sendo, a
consciência, ideia de pertencimento e identificação aqui implica
na construção do olhar do outro, ou seja, de sujeitos de um outro
grupo étnico-racial ou até mesmo de sujeitos pertencentes ao um
mesmo grupo étnico-racial, sobre si mesmos, a partir da relação
com o outro. A professora Dandara 1 se percebeu como tal quando
a representação de si, a que ela tinha dentro de casa, através de
seus semelhantes é confrontada com a do outro. Pois, “um olhar
[...], quando confrontado com o do outro, volta-se sobre si mesmo,
pois só o outro interpela a nossa própria identidade” (GOMES,
2002, p.39).
O processo de construção e a consciência da condição de ser
mulher negra relatado pelas professoras Dandaras 1, 2 e 3
apontam para o pensamento de Lélia Gonzalez (RATTS & RIOS,
2010), onde o tornar-se mulher negra endossa um processo social
de construção de identidade, que por sua vez consiste em formas
de resistência política, uma espécie de enfrentamento e
valorização do que é ser negra, exercer o papel de sujeito, ou seja,
protagonista de sua própria história, subvertendo a lógica do
lugar determinado às mulheres negras na sociedade brasileira.
Diante de nossas observações e das entrevistas com as
professoras negras em exercício na Universidade Estadual do
Piauí, constatamos que o reconhecimento do lugar à margem
demarcados para este grupo, constatamos ainda que a
consciência e o questionamento deste lugar contribuiu para que
essas mulheres transpusessem as barreiras que a elas foram
impostas desde muito cedo, e, elas subverterem a lógica do lugar
subalternizado, passivo, o qual lhes foi determinado pela
sociedade brasileira (GONZALEZ, 1984). E, desde então,
apresentam-se como sujeitos de sua história, como mulheres
detentoras e produtoras de conhecimento.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 31


E, neste processo de subversão, ao adentrar na academia essas
professoras se depararam com diversos desafios, desde a sua
condição de educandas à condição de educadoras. Diante disso, a
superação dessas dificuldades conforme a professora Dandara 5
“é [...] imperativa, a gente sempre busca, conscientemente, fazer o
melhor, né”. Assim sendo, a nossa consciência de ser mulher
negra perpassa e pressupõe desde cedo, nas palavras da
professora Dandara 4 por “uma atitude de aguerreamento de
encarar a realidade” tal qual é manifesta para nós, mulheres
negras.

“os desafios foram todos e são todos sempre, em


todo caso e todos os dias e é em relação a cor, a
etnia, a raça... é não faço conta de quantas
dificuldades eu passei e desafios eu tive que
superar em razão de ser uma mulher negra, negra,
pobre, nordestina [...] ou você supera, você tem
uma atitude de aguerreamento, de encarar aquela
realidade e dizer: “Eu sei, eu posso, eu sei fazer, eu
tenho conhecimento!” [...] Então, é... essa questão
você precisou superar? Precisar???? Foi uma
necessidade urgente de superação! Há uma
necessidade em nós negros [...] e ela é urgente, ela é
cotidiana, de encarar os desafios, de ultrapassar os
desafios” (Professora Dandara 4, grifos meus).

De acordo com Carlos Hasenbalg (2005), as desvantagens


destes grupos nas esferas competitivas forçam a criação de
estratégias, portanto, o duplo esforço, ou seja, um esforço maior é
reforçado constantemente junto a necessidade de mostrar que se
tem competência; o que é percebido nas falas das docentes
entrevistadas. A autoafirmação constante, se impor nos lugares,
lugares estes que socialmente foram construído para não
presença do negro e da negra, como evidenciou Lélia Gonzalez
(1982), que para a sociedade brasileira, ou melhor, a classe
dominante e branca, o nosso lugar não é nas posições de poder.
Tendo em vista que

incentivos e bloqueios a esse projeto eram


engendrados pela estrutura das relações raciais

32 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


que se comportavam de modo ambíguo – ora
impondo barreiras, ora abrindo brechas à
ascensão social do negro – mas que, dentro dessa,
ambivalência cumpria as mesmas e inequívocas
funções de fragmentar a identidade, minar o
orgulho e desmantelar a solidariedade do grupo
negro. (SOUZA, 1983, p.21)

A autora Neusa Santos Souza (1983), reforça ainda mais a ideia


de que a elite brasileira – branca, capitalista e racista – demarcou
um lugar para o negro, ao salientar que a sociedade determinou
também a maneira como este seria tratado, concebendo
paralelismo entre a cor e a posição de inferioridade. Então, a
necessidade de se autoafirmar, como “eu sei, eu posso, eu sei
fazer, eu tenho conhecimento” (Professora Dandara 2), dar
sempre o melhor em tudo lhes for imposto, em tempo denuncia
uma violência simbólica que estas mulheres sofrem em virtude de
sua condição étnica.
Os testemunhos das professoras entrevistadas denunciam que
elas têm plena consciência de sua condição de mulher e negra,
como também, carregam consigo orgulho de sua
afrodescendência, em seus discursos de forma alguma
percebeu-se o contrário. É importante destacar aqui que algumas
dessas professoras atuam de forma ativista no centro pesquisado,
na comunidade acadêmica quanto em geral. De certo modo, a
partir da dimensão dos obstáculos que atravessa a trajetória
destas professoras podemos afirmar que são consequências
estruturais e dinâmicas de interação entre dois eixos de
dominação e subordinação, raça e gênero, como corrobora
Creenshaw (2002). Assim sendo, é ímpar mostrar os testemunhos
das docentes em relação a essa forma perversa de discriminação
ainda presente no campo acadêmico. Visto que mesmo depois de
alcançado uma posição elevada dentro deste ambiente, estas
mulheres ainda são vistas de maneira subalternizada tanto pela
comunidade interna e externa, quando são invisibilizadas, e,
quando vistas, algumas vezes, é com desconfianças quanto as
capacidades de produzir conhecimento. A qualificação destas
mulheres não garantiu, em alguns momentos, o reconhecimento

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 33


do lugar que sua titulação dá nos espaços de poder, mesmo dentro
do ambiente em que ela circula academicamente ou em outros
lugares fora da academia. Assim, quando observada a vivência
destas mulheres verifica-se que essas situações comprovam que a
escola, aqui no caso, a universidade age no papel de reproduzir a
dominação e produzir violência sobre estes corpos, mesmo que de
caráter simbólico, uma vez que esta violência não opera na
“ordem das intenções conscientes” (BOURDIEU, 2012 p.74).
No entanto, a Universidade Estadual do Piauí, como ressaltou
algumas professoras têm avançado constantemente nos debates
das questões étnico-raciais, ao ser a primeira instituição pública
do estado a aderir a política de cotas. Portanto, a universidade é
locus do trabalho de debate, de discussão, de criticidade das ações
políticas e as representações sociais sobre a problemática negra.
As reflexões que se tem diante desta investigação são que embora
a universidade apresente em seu âmago práticas democráticas,
esta reproduz o imaginário social sobre alguns corpos e sobre os
lugares a serem ocupados estes. Quando se analisa a trajetória
destas mulheres, torna-se evidente as relações assimétricas no
cotidiano da vida acadêmica, reitera mais ainda que a
participação, a presença mínima deste segmento, mulher negra,
nos espaços de poder, na docência no ensino superior, é fruto das
“desvantagens cumulativas” que foram inscritas sobre estes
corpos e naturalizadas, que atuam como obstáculos e
configurando fronteiras, seja nos espaços públicos ou privados,
que são vivenciados cotidianamente por elas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa observamos as relações assimétricas no


ambiente acadêmico, em especial na ocupação docência no CCHL
– Centro de Ciências Humanas e Letras. Após uma investigação
quantitativa do quadro de docentes, as descrições das histórias de
vida das professoras estudadas e suas experiências enquanto
educadoras no ensino superior procuramos mostrar os desafios,
aas dificuldades e as desigualdades enfrentados por elas no

34 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


exercício da docência. Constatamos que as suas experiências de
vida trazem particularidades próprias, uma vez, que nem todas as
entrevistadas apresentaram uma infância sofrida como menina
negra. Além disso, nota-se ainda a importância da família em
dois aspectos, como incentivo aos estudos, como também na
construção da identidade racial e proteção desses sujeitos
enquanto criança negra. No que diz respeito à participação destas
mulheres no meio educacional, compreende-se que as
educadoras atuam conscientes de sua condição de mulher negra,
comprometidas com a transformação das posturas ideológicas de
exclusão que ainda repousam sobre o ensino superior, tendo em
vista que, elas passam por situações ainda comprovadamente
preconceituosas e discriminatórias.
O que se evidencia neste estudo sobre a mulher negra atuante
na docência do ensino universitário na UESPI, é que a presença
desta nesse nível de ensino e instituição, ainda continua pouco
visível, revelando o abismo existente ainda entre os grupos
racializado e àquele que mesmo que se reconheça ainda carrega
consigo “modelo ideal” de produtor e detentor de conhecimento
científico, o branco. A partir desta percepção, fica evidente que
dentre as relações de poder e o poder simbólico que envolvem a
profissão docência no ensino superior, mesmo com todas às
titulações que esta exige, as mulheres negras ainda não são vistas
como sujeitos capazes de produzir e contribuir com o
conhecimento científico. Bell Hooks (1995, p.468) atesta que o
trabalho intelectual das professoras negras é assaltado por
dúvidas e suspeitas, muito disso, é resultado do “conceito
ocidental sexista/racista de quem e o que é um intelectual, que
elimina a possibilidade de nos lembrarmos de negras como
representativas de uma vocação intelectual”. Diante desse
quadro, podemos afirmar que a universidade embora tenha
avançado nos debates ainda é um universo de segregação racial,
bem como reprodução das estruturas racista e machista. A
realidade da opressão sofrida por estas mulheres negras, em suas
trajetórias acadêmicas revela que mesmo se tratando de
representações específicas, a questão racial na universidade, não

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 35


se afasta da realidade de outros segmentos da sociedade.
Demarcando assim sobre si a violência simbólica, de diversas
formas, ora visíveis, como reforçado por boa parte de nossas
entrevistadas, ora mascaradas.

Informações da autora
Nome: Leudiane Oliveira de Lima
Afiliação institucional: Universidade Federal do Piauí - UFPI
e-mail: leudye@gmail.com
ORCID: 0000-0002-4475-8636
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/1909608154735046

36 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. "Esboço de uma teoria da prática", pp. 46-81


in Ortiz, R. (Org.). Bourdieu (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
São Paulo: Ática, 1983.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11° ed. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 2012.

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais


Anísio Teixeira (Inep). Censo da Educação Superior 2018 –
Divulgação dos Resultados. Disponível em:
http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior
/documentos/2019/apresentacao_censo_ superior2018.pdf.
Acessado em: 14 de agosto de 2020.

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e política das ruas: notas


para uma teoria performativa de assembleia/ Judith Butler;
tradução Fernanda Siqueira Miguens; revisão técnica Carla
Rodrigues; - 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher


negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero.
In: ASHOKA e TAKANO CIDADANIA (Org.) Racismos
contemporâneos. Rio de Janeiro, Ashoka e Takano Cidadania,
2003, p.49-58.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil/


Sueli Carneiro – São Paulo: Selo Negro, 2011. – (Consciência em
debate/coordenadora Vera Lúcia Benedito).

CREENSHAW, Kimberlé. A interseccionalidade na discriminação


de raça e Gênero. In: Revista Estudos Feministas. nº1. Salvador,
2002a.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo,


2016.

GOMES, Nilma Lino. EDUCAÇÃO, RAÇA E GÊNERO: Relações

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 37


imersas na alteridade. Cadernos Pagu (6-7), 1996, p.67-82.

GOMES, Nilma Lino. Educação e identidade negra. Aletria:


Revista de Estudos de Literatura/ ISSN 2317-2096, 2002.

GONZALES, Lélia; HASENBALG, Carlos. O lugar do negro/ Lélia


Gonzales e Carlos Hasenbalg; Coleção 2 pontos; V. 3. – Rio de
Janeiro: Marco Zero, 1982.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In:


SILVA, Luís Augusto. ANPOCS, Ciências Sociais Hoje, 1984,
p.223-244.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raças e


democracia/ Antonio Sérgio Alfredo Guimarães. – São Paulo:
Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2002.

HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no


Brasil/ Carlos Hasenbalg; traduzido por Patrick Burglin; prefácio
de Fernando Henrique Cardoso. – 2. ed. – Belo Horizonte: Editora
UFMG; Rio de Janeiro; IUPERJ, 2005.

HOOKS, Bell. Intelectuais negras. Revista Estudos Feministas.


Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, 1995, p.464-478.

LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE,


Mary. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Editora
Contexto, 2004. p. 443-481.

MIRANDA, José da Cruz Bispo de; SILVA, Robson Carlos da. Entre o
derreter e o enferrujar: os desafios da educação e da formação
profissional. – Fortaleza: EdUECE, 2015.

MUNANGA, Kabengele.; OLIVEIRA, Iolanda. (Orgs.). Construção


da identidade negra no contexto da globalização. Cadernos
Penesb: Relações Raciais e Educação: Temas Contemporâneos,
Niterói: EDUFF, v. 4, 2002.

RATTS, Alex & RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez. 1ª ed. São Paulo. Selo
Negro, 2010, p. 60-70.

38 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


RUFINO, Alzira. Eu, mulher negra, resisto. Santos, Edição da
Autora, 1988.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho/ Heleieth I. B. Saffioti.


São Paulo: Moderna, 1987.

SAFFIOTI, Heleith I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo.


Fundação Perseu Abramo, 2015.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica.


Educação e realidade, v.20, n.2, p.71-99, 1995.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da


identidade do negro brasileiro em ascenção social/ Neusa Santos
Sousa; Coleções Tendências, v.4. – Rio de Janeiro: Edições Graal,
1983.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 39


VOZES FEMINISTAS NEGRAS
NA PERSPECTIVA GERACIONAL:
diálogos sobre a trajetória de Valéria Neves

Sulamita Rosa da Silva

INTRODUÇÃO

Depois que aprendi a falar na primeira pessoa do singular e


também do plural (SILVA, 2020) produzo epistemes a partir do
vivido, reconhecendo-me como mulher negra autodefinida e
autoavaliada (COLLINS, 2019). Depois que aprendi a ler
(RODRIGUES, 2020), amparada nas vozes feministas negras,
busco visibilizar as vozes de outras mulheres negras, que a partir
de suas experiências, tecem conhecimentos e saberes em uma
perspectiva decolonial.
Valéria Neves é uma mulher negra de 61 anos, nascida no Rio de
Janeiro. Realizou e continua a executar ações importantes na luta
contra o racismo e no reconhecimento da autenticidade das
mulheres negras. Produz ações que tiveram influências em
diferentes gerações, atuando no movimento de combate ao
racismo desde sua juventude, que se deu por volta do período da
ditadura militar, resistindo e deixando legados no contexto em
que atua.
Neste estudo foi abordado sua obra Letras de uma juventude
publicada em 2017, análise de alguns trechos presentes na carta
que escreveu a Carolina Maria de Jesus para seleção da formação
da Festa literária das periferias – FLUP/RJ em 2020 e uma análise
do projeto Negras em ação, que coordenou e realizou para um
evento do Movimento Negro Unificado – MNU/RJ em 2019.
Com base no conceito de escrevivências de Evaristo (2006),
externo aqui as vivências de Valéria na perspectiva geracional,
pois escrever, registrar e publicizar é um ato político e histórico
para as mulheres negras, no enfrentamento a invisibilidade que o

40 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


racismo provoca em nossas histórias.
Por conseguinte, o objetivo desse estudo foi abordar a trajetória
de Valéria Neves na perspectiva geracional, refletindo sobre suas
atuações no enfrentamento ao racismo e sexismo na sociedade
brasileira. Como procedimentos metodológicos realizei um
estudo bibliográfico baseada em Collins (2019), Ribeiro (2017),
Jesus (2019), dentre outros, acrescido de uma entrevista narrativa
realizada de modo online com Valéria.
Valéria nasceu em 1959, estando na militância negra desde sua
juventude. Atualmente é Coordenadora Estadual de Mulheres
MNU RJ, e prossegue na luta. Nosso encontro entrecruzou-se com
a formação oferecida pela FLUP/RJ sobre Carolina Maria de Jesus
na reescrita do livro Quarto de despejo com mulheres negras de
nosso tempo, ocorrendo de modo online e abrangendo diferentes
localidades brasileiras. Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914 e
faleceu em 1977, cujos escritos de suas obras, expandiram-se por
todo o mundo, descolonizando a literatura e demonstrando a
realidade das mulheres negras periféricas.
Eu sou Sulamita Rosa da Silva, nasci em 1995 no interior do Rio
de Janeiro, e fui me descobrindo negra a medida que fui tendo
contato com as questões raciais, em 2014, ao cursar a graduação
na Universidade Federal do Acre/Ufac, e na minha atuação
enquanto professora substituta na referida universidade no
Campus Sede, no ano de 2018 a 2020. Quando ingressei enquanto
docente, tinha receio de ser a única atuante naquele ambiente, o
que conduziu-me para a elaboração de minha dissertação de
mestrado, que foi sobre as trajetórias das professoras negras dos
cursos de formação de professores da Ufac (SILVA, 2020).
A escolha dos pseudônimos que representassem as professoras
entrevistadas, possibilitaram que através de uma busca
autoformativa, eu conhecesse vários nomes de intelectuais
negras que tanto contribuiram, para a tessitura epistemológica
de um pensamento feminista negro no Brasil, dentre eles, trago
nesse texto, Carolina Maria de Jesus, cujos escritos na primeira
pessoa, potencializaram ainda mais meu processo de tornar-me
sujeita.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 41


Autoafirmei-me enquanto mulher negra, professora e
pesquisadora, que teoriza a partir do vivido (RODRIGUES, 2020), e
produz epistemologias do sul (SANTOS, 2009) que considera os
saberes étnico-raciais, de gênero e geração que são produzido no
e pelo sul global, representando os grupos que foram
subalternizados pela colonialidade do ser, saber e poder
(TORRES, 2019).
Em minhas caminhadas autoformativas realizei o processo de
seleção da FLUP/RJ este ano de 2020, sobre Carolina Maria de
Jesus, onde conheci Valéria. Nesse sentido, abordei as percepções
sobre raça, gênero e geração nesse escrito, marcadores estes que
nos interseccionam cotidianamente. Raça é uma categoria
utilizada não com cunho biologizante, mas de maneira política e
social, que organiza os discursos e as relações de poder
instituídas nas sociedades (HALL, 2013). No tocante a gênero, este
pode ser visto como uma categoria também não fixa, e que é
construída através de práticas sociais estando imersa nas
instituições (LOURO, 1995).
No que se refere à geração, as imposições biológicas sobre as
mulheres fazem com que estas, em sua maioria, possam conceber
o envelhecer feminino como algo penoso, pois a sinalização da
velhice representa a perda dos padrões de feminilidade impostos
pela cultura ocidental (CABRAL, 2005)
Não obstante, Prandi (2001, p. 07) diz que a concepção africana
de tempo é diferenciada da perspectiva ocidental, pois ao invés de
remeter-se a algo a ser evitado ou banalizado, a velhice está
ligada aos ideais de “aprendizado, saberes e competências”.
Tendo como base a epistemologia do pensamento feminista
negro, que se configura como experiências e visões de mundo que
conformam a sabedoria coletiva do ponto de vista das mulheres
negras (COLLINS, 2019, p. 147), encontramos a perspectiva
geracional sendo valorizada nas comunidades tradicionais
africanas.
Collins (2019) ao ressaltar a valorização da experiência vivida,
considera que: “A centralidade das mulheres negras em famílias,
igrejas e outras organizações comunitárias as permite

42 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


compartilhar com irmãs mais jovens, menos experientes, seus
conhecimentos concretos sobre o que é ser uma mulher negra que
se define por si própria [...]” (COLLINS, 2019, p. 152).
A autodefinição, se constitui de um conhecimento de modo a
substituir as imagens de controle apregoadas de modo negativo
sobre as mulheres negras, e construir conhecimentos que
contribuam no “aprender a falar com uma voz única e autêntica”
(COLLINS, 2019, p. 184). Neste sentido, ao me dirigir à Valéria, foi
um processo de aprendizado, os quais os saberes por ela
constituídos foram compartilhados comigo por meio da
oralidade, da carta escrita a Carolina e de sua obra literária.

TRAJETÓRIAS, ENCONTROS E PROCESSOS


FORMATIVOS

Nasci em Volta Redonda RJ. Durante minha infância e


adolescência, sofria com o processo de internalização do racismo.
Somente com o ingresso na universidade que as reflexões sobre
meus saberes estético-corpóreos (GOMES, 2017) foram
despertadas, autoafirmando minha negritude. Durante meus
percursos autoformativos, me deparei com outras extensões
formativas, como a da FLUP/RJ denominada: Uma revolução
chamada Carolina. A formação ocorreu em um período de 14
semanas, de Maio a Agosto de 2020, proporcionando encontros
que remetessem à obra de Carolina Maria de Jesus.
Durante a minha escrita da carta a Carolina, descrevi que ao ver
sua imagem e ler suas escrevivências, pude pensar quão profunda
foi a dor sentida, da solidão afetiva e institucional, sentimentos
estes que Piedade (2017) nomeia de Dororidade, que é a dor que
muitas de nós sentimos, desde nossas ancestrais.
Isso me fez rememorar a respeito do que Valéria descreveu em
sua carta, sobre as dores internas que experienciou durante suas
vivências, externando também o lamento que sentiu ao refletir
sobre a dura realidade vivenciada por Carolina:

[...] Primeiro quero que saiba que eu nunca fui


despejada. Eu tenho o privilégio de dormir até hoje

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 43


no quarto em que nasci. E tenho uma grata
felicidade por isso. Estranhamente também um
quarto onde guardo tempo pra momentos de
tristeza e saudades. Deste quarto papai saiu um dia
após conversar muito comigo. Ambos não
sabíamos que era nossa última conversa. Longa a
conversa. Alegrias, planos, desejos, sonhos para
um futuro que ele nunca viveu. Ele me abraçou
forte pra sair. Me prometeu dar o violão, mesmo
acreditando que o piano era melhor para uma
menina, estava convencido que minha felicidade
poderia estar ligada ao violão e minha vontade
merecia ser respeitada. Ah! Você deveria ter
conhecido meu pai! Ele era maravilhoso! Grande e
gentil. Era um homem muito bom. Pra nós, sua
família, mas pra todos ao redor. Onde meu pai
estivesse a alegria estaria também. Costumavam
fazer par nas reuniões e nas festas. Seu sorriso era
lindo e o som do riso era contagiante. Mas ele não
voltou. De madrugada quando dormíamos vieram
alguns colegas da polícia, da delegacia onde ele
trabalhava. Diziam que eram amigos dele. Pra
avisar que ele foi morto. Amigos. Muito estranho,
nunca vi amizade em seus olhos. Não sei se você
conheceu essa dor. É uma dor que não se perde. Ela
permanece comigo. Eu boto no baú de lembranças.
O compartimento de lembranças ruins eu fecho
com cadeado. Pra que essas lembranças esqueçam
de mim. Mas elas são fortes, soltam o cadeado e
voltam pra mim (VALÉRIA NEVES, 2020,
informação oral).

Nestre trecho, Valéria também externa a respeito da dor que


sentiu ao perder seu pai. Dores estas que carregará durante toda a
vida, restando consigo as lembranças de quando o tinha presente.
A obra de Valéria Letras de uma juventude publicada em 2017
contém 28 poesias escritas há mais de 40 anos, que representam
pedaços de seu passado, publicizando através das letras ali
enunciadas, sentimentos de amor, dores e lembranças.
Todavia, ao realizar a entrevista com Valéria, ela citou que “eu
achava que a literatura formal, o espaço literário não me
pertencia porque eu nao me formei em Letras” (VALÉRIA NEVES,

44 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


2020, informação oral). O sentimento de não pertencer ao espaço
da literatura permeou o imaginário de Valéria, e que também faz
parte do pensamento de muitas mulheres negras, que são vistas
pela sociedade como forasteiras de dentro (RIBEIRO, 2017)
naturalizando o não pertencimento e de sempre serem vistas
como outras (KILOMBA, 2019).
No entanto, por meio do incentivo de seu amigo de infância,
Valéria publicou suas poesias, a fim de registrar suas palavras e
não deixá-las irem consigo. Aos 58 anos de idade publicou seu
livro, e continua a realizar ações que repercutem na valorização e
na potencialização das mulheres negras.

NARRATIVAS E ESCREVIVÊNCIAS NEGRAS:


ABORDAGENS SOBRE A TRAJETÓRIA DE VALÉRIA
NEVES

O exercício da escrita foi marcante para Valéria desde sua


infância, cuja relação de leitura que sua avó a apresentava,
contribuiu para que criasse o hábito da leitura e da escrita.
Externalizar as vivências por meio das palavras, também foi uma
das estratégias que Valéria adotou para viver e autoafirmar-se
enquanto mulher negra. O ato de escreviver encontrou-se
presente na carta que ela elaborou à Carolina, ressaltando como a
escrita é importante em sua vida:
[...] Talvez as palavras tenham preservado minha
sanidade. Diante de tantas dores e adversidades, as
palavras e poder escrevê-las me manteve pensante
em possibilidades. Me manteve ativa e lúcida. Pois
há dores que são tão grandes que pra parar de
sentir só morrendo. E como a morte física exige
coragem e capacidade, então deixa-se a mente
morrer. E assim a realidade cruel deixa de ser
percebida por uma mente que fica morta. Em geral
dói menos assim. Então eu na verdade, sobrevivi.
Fisicamente e mentalmente as palavras
garantiram minha sanidade. E agarrada que estou
nessa oportunidade escrevo a você (VALÉRIAS
NEVES, 2020, informação oral).

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 45


No início da carta é explicitado como a escrita tem o poder de
nos auxiliar a enfrentar as dores e sobreviver diariamente
enquanto mulheres negras. Carolina Maria de Jesus (2014) em sua
obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, também relata
através da escrita, como era a realidade de uma mulher negra
retinta e pobre na favela. A dor da fome e da marginalização
faziam parte de sua cotidianidade, de modo que foi através da
escrita, que encontrara forças para não apenas sobreviver, como
também sonhar:

Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de


xingar eu escrevia. Tem pessoas que, quando estão
nervosas, xingam ou pensam na morte como
solução. Eu escrevia meu diário [...] Cansei de
suplicar as editoras do país e pedi à editora
Seleções [do Reader’s Digest] nos Estados Unidos
se queria publicar meus livros em troca de casa e
comida e enviei uns manuscritos para eles ler.
Devolveram-me... Depois que conheci o repórter
[Audálio Dantas] tudo transformou-se ( JESUS,
2014, p. 195)

Na entrevista acima publicada no livro em sua décima edição,


Carolina ressalta como é difícil a publicização de nossos escritos
pelo mercado editorial. Isso me rememorou a fala de Valéria na
entrevista concedida de modo online, no qual ela destacou que “
dói imensamente saber que uma pessoa tão inteligente, tão capaz,
tão maravilhosa ter sofrido tanto, por tantos anos, até que um
homem branco se interessasse pelas suas palavras” (VALÉRIA
NEVES, 2020, informação oral).
No que se refere à família de Valéria, eram de classe pobre, no
qual sua avó não havia concluído o ensino fundamental. Porém, o
gosto pela leitura fazia parte de sua vida, de modo que lia os
jornais e os recontava a Valéria enquanto ainda era criança.
Através do reconto das histórias e das amostras das letras das
notícias, Valéria aprendeu a ler em casa com sua avó.
A avó de Valéria, cujo nome era Iracema, havia tido uma pensão
para vender comida e auxiliar no sustento de sua família, no
tempo que morava em Gamboa, auxiliando também no cuidado

46 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


dos filhos das mulheres que ficavam na pensão, consolidando
uma grande extensão familiar para além de seus parentes de
sangue. Posteriormente, seus familiares migraram para Pilares.
Os tempos que viviam em Gamboa eram narrados para Valéria
enquanto ainda era criança, em que a maneira matriarcal de viver
era narrado e experienciado por suas mais velhas, aprendendo
sobre esses valores afro-civilizatórios constituídos de memória e
ancestralidade.
Durante a entrevista, Valéria relatou que quando cursou
Enfermagem na universidade, utilizava seu cabelo crespo black
power, e havia uma professora que sentia-se incomodada
dirigindo-lhe sempre olhares com vieses de opressão. Valéria
ressaltou que em um certo dia, a professora havia dito que só
poderiam ir realizar as atividades com uma rede no cabelo, mas
com sentimentos de deboche e direcionamento de olhares fixos à
Valéria.
Valéria resolveu fazer tranças nagô e colocar a rede em seu
cabelo em forma de penteado. Quando apareceu no dia das
atividades e a professora a viu, Valéria disse que sentiu a fúria
emanada pelo olhar da docente: “ela queria me ver feia”, disse
Valéria. Inúmeras violências são direcionadas aos nossos corpos,
no qual a utilização de nosso cabelo natural ressalta os aspectos
de nossa negritude, e como Kilomba (2019, p. 128) nos diz
“tornar-se muito negra é, ao mesmo tempo, associado à ideia de
primitividade”.
Por conseguinte, a ridicularização de nossos cabelos também
associa-se a ideia da branquitude de nos ver como primitivos,
sujos e selvagens, sendo passíveis de humilhação pública. No
entanto, a valorização de nossa negritude torna-se ativa à medida
que tornamo-nos sujeitas. Ler autoras negras e escrever para
mim foi um ato descolonizador, no qual deixei minhas raízes
crescerem e revelarem a mulher negra que me tornei. Ao ler uma
poesia do livro de Valéria, denominada Clamor, resgatei
memórias de dores e lutas ancestrais que ainda repercutem no
cotidiano de nosso povo, batalhas estas muito árduas, mas que
constituem nossas cotidianidades:

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 47


[...] Eu canto
Eu lamento
Eu sinto
Meu povo sofrer, vagar pelo chão
Sentindo a carência de tal compaixão
E agora meu Deus, onde anda você
Que não traz solução
E eu vejo
Não calo
Eu grito [...] (NEVES, 2017, p. 31).

A poesia citada ecoa de fato como um clamor diante de tantas


opressões que experienciamos, as quais formam cicatrizes
transatlânticas que nos atravessam. No entanto, muitos sujeitos
negros, devido aos efeitos do racismo, não obtém forças o
suficiente para gritarem. Durante minha infância e adolescência
também vivenciava o não falar, respaldando-me em Fanon (2008,
p. 25) quando anuncia que “[...] há muito tempo que o grito não faz
mais parte de minha vida”. Em contrapartida, o grito de Valéria
ressoa através de sua escrita artística e de suas ações no coletivo,
impulsionando mais novas e mais velhas na luta antirracista e
antissexista.
Desde sua juventude, Valéria reafirma sua negritude
participando do Instituto de pesquisas das culturas negras-
IPCN, e posteriormente, filiando-se ao MNU, não recordando-se
com precisão das datas de suas filiações. Disse que conhecia Lélia
González, e que ela a admirava pelo fato de ser jovem e afirmar
sua identidade negra:

Eu me lembro de Lélia. Lélia foi do MNU, Lélia se


afastou do MNU. Lélia foi do PT, Lélia se afastou do
PT. Porque é obvio, o entendimento enquanto uma
mulher preta e pesquisadora, de que esses espaços
onde o machismo também era uma forma de
opressão. Lélia tinha uma visao lá na frente. E eu vi
isso acontecer (VALÉRIA NEVES, 2020, informação
oral).
Valéria foi contemporânea de Lélia González, e citou a
importância que foi ter estado no movimento durante sua

48 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


juventude e presenciar os discursos e atuações de Lélia face a face,
refletindo em como o racismo juntamente com o sexismo,
colidem diretamente sobre a vida de mulheres negras, e como isto
faz com que nos afastemos um pouco da caminhada da militância,
que se torna muita das vezes solitária e penosa.
Nesta perspectiva, foi no período da ditadura militar que
Valéria começou a atuar nos movimentos. Narrou que havia
passado no concurso para trabalhar no hospital militar, e que
uma vez, a interrogaram a respeito de sua participação no
movimento negro, na entrevista ela ressaltou:

Fui a decima classificada no hospital militar. Uma


vez eu fui chamada na chefia porque eu era
encontrada no IPCN. Tinham fotos minhas todas
em cima da mesa, minha chefe, três militares de
pé, quando ela mostrou as fotos eu pensei na hora
na minha mãe. A senhora confirma que é a
senhora? Eu falei, claro que confirmo, sou eu nessa
foto. E esse lugar eu posso dizer a senhora e a
senhora mesmo pode ir até lá, isso aqui é um local,
uma biblioteca maravilhosa. - Uma biblioteca? É
um instituto de pesquisa das culturas negras.
Diversas culturas egípcias, ai eu fui falando: são
um espaço onde a antropologia, história, o espaço
sede material, é uma referencia internacional de
cultura, um espaço intelectual. Qualquer pessoa
pode entrar lá. Se eu não conseguisse sair dessa
fala, eu não sairia, eu sairia daquela sala, mas eu
não voltaria pra minha casa (VALÉRIA NEVES,
2020, informação oral).

O período da ditadura militar que Valéria vivenciou foi relativo


aos anos de 1964 a 1985. Esse período foi repleto de censuras e
repressões contra quaisquer formas de manifestações contra as
opressões sociais, raciais, de gênero dentre outras impostas
sobre os grupos minoritários. Como destaca Ratts e Rios (2010, p.
87) “em tempos de ditadura, qualquer denúncia de racismo era
recebida como tentativa de criar sentimentos antinacionais”.
Valéria então pensou em estratégias de como saber conduzir a
conversa, para que pudesse voltar para a casa. Referente à atuação

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 49


de Valéria ao MNU do Rio de Janeiro, ela atua como coordenadora
estadual de mulheres, e em 13 de julho de 2019 organizou e
executou o projeto Negras em ação (MNU, 2020), sendo realizado
dentro do museu de samba da cidade.
Foram feitas palestras sobre cultura, política, saúde, trabalho,
além da realização de uma feira afroempreendora, no qual todos
os participantes foram responsáveis pela organização da feira,
havendo barracas de comidas de origem afro-brasileiras, roupas,
acessórios, sendo vendidos por intermédio de uma moeda
específica do evento, chamada Zimbo:

Figura 1: Moeda representativa do Zimbo no evento Negras


em ação

FONTE: PRODUÇÃO DE BRUNO RICO

A palavra Zimbo do segmento étnico bantu foi muito presente


nas vivências da família de Valéria, que é iniciada nas religiões de
matrizes africanas numa vertente ketu, iorubá. O Brasil é uma
mistura dessas etnias, e na família de Valéria o bantu esteve
fortemente presente em suas tradições orais, havendo também o
reconhecimento e a valorização para com outras vertentes
africanas.
Zimbo representa dinheiro, elemento de troca para o comércio,
escolhendo esse nome como identificação da moeda do evento em
homenagem a memória da sua família: “de alguma maneira eu
sou iorubá, de alguma maneira eu sou bantu, de alguma maneira
eu sou fon, são os meus retalhos, os meus pedaços, de alguma
maneira eu sou indígena, todos esses pedaços formam a grande

50 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


colcha que sou eu” (VALÉRIA NEVES, 2020, informação oral).
Na fala de Valéria estão contidos sentimentos ancestrais que
compõem sua identidade negra. A valorização do legado de sua
família ao resgatar palavras que estavam contidas em suas
oralidades, revelam processos de autodefinições reafirmando seu
pertencimento étnico-racial. Ressaltou também durante a
entrevista, a ideia que teve de inserir as biografias de mulheres
negras no Zimbo, simbologia esta que representara valor e
potência em movimento. Na entrevista ela ressaltou:

E ai cada moeda tinha o rosto de uma mulher preta


que tenha sido importante na nossa história.
Porque até hoje o Tesouro Nacional nunca se
indignou a colocar numa moeda, que é um espaço
de poder, é um simbolo de poder, a moeda
representa uma nação, e até hoje esse país, nunca
se indignou a colocar numa moeda, o rosto de uma
mulher preta e o nome de uma mulher preta. A
gente ja teve moeda com o rosto da princesa Isabel
(VALÉRIA NEVES, 2020, informação oral).

Em sua fala percebemos que através da indignação veio a tona a


ideia de produzir na circulação do evento, uma moeda de valor
com as figuras de mulheres negras, ressaltando quem foram
algumas das líderes que tanto contribuiram com a história e a
preservação da cultura do povo negro no Brasil.
Como exemplo exposto na moeda do evento, trouxemos um
dos zimbos que representou a imagem de Tereza de Benguela
como mostrado na figura, sendo identificada e homenageada
através da moeda de valor em circulação nos trabalhos
desempenhados durante a feira afroempreedora. Tereza de
Benguela foi uma líder quilombola que tanto contribuiu na luta
antirracista e resistência aos processos de escravização do povo
negro e indígena. Líderes estas que tiveram seus nomes
invisibilizados pela história eurocêntrica, mas que através do
feminismo negro, tem gradativamente sido reconhecidas e
citadas em diferentes fontes e meios de comunicação.
E assim, Valéria continua a realizar ações em prol da
valorização do povo negro, influenciando demais mulheres

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 51


negras no reconhecimento de suas negritudes e nos processos de
escritas literárias descoloniais, na primeira pessoa, registrando e
deixando legados que se repercutirão através do tempo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve como foco abordar narrativas e escritas


de Valéria Neves refletindo sobre suas atuações e escrevivências
negras. Oralidade esta que representa uma epistemologia
feminista negra produzida no e pelo Sul global, cujos encontros
proporcionaram-me ainda mais potências para autodefinir-me
no exercício de minhas produções teórico-práticas,
descolonizando conhecimentos para além das linhas abissais
(SANTOS, 2009) de Academus, valorizando intelectualidades
feministas negras de modo intergeracional.
O processo formativo da FLUP/RJ com outras mulheres negras
resultou no meu encontro com Valéria, ainda que de forma
virtual, possibilitando trocas de experiências através de
memórias e escritas narrativas, ressignificando saberes. Valéria
Neves coordenadora estadual de mulheres no MNU/RJ e escritora,
produz ações que contribuem no empoderamento de mais novas e
mais velhas. Nosso encontro se deu por meio dos escritos de
Carolina Maria de Jesus, catadora de papel e escritora, que através
da publicização de suas obras, descreveu a realidade marginal
vivenciada por muitas mulheres negras periféricas, ecoando
vozes representacionais numa relação que resiste além do tempo.
Gerações feministas negras que se encontram,
autodefinem-se, e avançam pelo direito a voz e ao
reconhecimento de suas potencialidades, em uma relação de
transcendência.
Informações da autora
Nome: Sulamita Rosa da Silva
Afiliação institucional: Núcleo de estudos afro-brasileiros e indígenas da Universidade
Federal do Acre
E-mail: sulaczs.sr@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3618-4775
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/5805756659050102

52 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


REFERÊNCIAS

CABRAL, Benedita Edina Lima. Mulher e velhice. In: MOTTA, Alda


Britto da; AZEVEDO, Eulália Lima; GOMES, Márcia. Reparando a
falta: dinâmica de gênero em perspectiva geracional/Alda Britto
da Motta, Eulália Lima Azevedo e Márcia Gomes (Organizadoras).
– Salvador: UFBA / Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a
mulher, 2005.

COLLINS, Patricia Hill. Epistemologia feminista negra. In:


COSTA, Bernardino Joaze; TORRES, Maldonado Nelson;
GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e pensamento
afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza,


2006.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador:


EDUFBA, 2008.

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes


construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 2017.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. 2


ed. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

JESUS, Carolina. Quarto de despejo: diário de uma favelada. –


10.ed. – São Paulo: Ática, 2014.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo


cotidiano. Editora Cobogó. Rio de Janeiro, 2019.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, História e Educação: construção


e desconstrução. Educação e Realidade. 1995.

MNU RJ. Negras em ação MNU. Disponível em:


ht t ps://w w w.youtube.com/w atch?v=dGHKtYsgGbQ&t=212s.
Acesso em de Jul de 2020.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 53


NEVES, Valéria. Cartas para Carolina – Valéria Neves. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=UuiMZzyTa8A. Acesso
em 27 de Jul de 2020.

NEVES, Valéria. Letras de uma juventude. 1.ed. Rio de Janeiro.


Editora Conexão 7, 2017.

PRANDI, Reginaldo. O candomblé e o tempo: concepções de


tempo, saber e autoridade da África para as religiões
afro-brasileiras. Rev. bras. Ci. Soc. vol.16 no.47 São Paulo, 2001.

PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017.

RATTS, Alex; RIOS, Flávia. Lélia González. São Paulo: Selo Negro,
2010.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte:


Letramento, 2017.

RODRIGUES, Vera Regina. Quando a mulher negra fala: afeto,


teoria e política em (des) construção, 2020. Disponível em:
https://pensehumanas.com.br/assets/uploads/files/pensehuman
as-posts-quando-a-mulher-negra-fala-vera-rodrigues-maio20
20-pdf-13-05-2020.pdf Acesso em 12 Ago 2020.

SANTOS, Boaventura. Para além do Pensamento Abissal: das


linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS,
Boaventura de Souza; MENEZES, Maria Paula. Epistemologias do
Sul. Biblioteca Nacional de Portugal, Coimbra, 2009.

SILVA, Sulamita Rosa da. Quantas professoras negras você já teve


na universidade? Portal Geledés. 2020. Disponível em :
https://www.geledes.org.br/quantas-professoras-negras-voce-j
a-teve-na-universidade/ Acesso em 22 out 2020.

TORRES, Maldonado Nelson. Analítica da colonialidade e da


decolonialidade: algumas dimensões básicas. In:
Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. 1 ed. Belo
Horizonte: Autêntica Editora. 2019.

54 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


POR UMA ACADEMIA FEMINISTA
E ANTIRRACISTA:
cartas de duas docentes negras
Luciana Rodrigues
Loiva de Oliveira

“A nossa escrevivência não pode ser lida como


história de ninar os da casa grande, e sim para
incomodá-los em seus sonos injustos”

Conceição Evaristo
INTRODUÇÃO

Como duas mulheres negras (uma de pele clara e outra de pele


escura), mães, educadoras, feministas, vinculadas a movimentos
e lutas antirracistas de nossa Améfrica Ladina - como nos ensina
a intelectual negra brasileira Lélia Gonzáles (1988) - apostamos
em uma produção de escrita coletiva e, portanto, em uma
produção a partir do lugar de inserção acadêmica que, como nos
fala a intelectual chicana Glória Anzaldúa (2019), não separe vida
e escrita. E ainda, como nos convida a pensadora e feminista
afroamericana bell hooks (1995), uma escrita que se inspire em
uma política do cotidiano na qual trabalho intelectual e
experiência de vida andam juntas nos auxiliando tanto na
compreensão de nossas realidades singulares, na realidade das
instituições em que nos inserimos, em nossa sociedade de modo
geral. Isso é o que nos constitui.
Assim, falamos não só do lugar de mulheres negras, mas de
mulheres-mães, professoras, extensionistas, orientadoras,
supervisoras e pesquisadoras que ocupam o espaço da academia
como campo de trabalho. Nosso corpo é território e acolhida para
todas as versões de nós mesmas. Versões que não separamos, nem
escondemos no exercício de busca pela produção de uma
academia feminista e antirracista (BATTISTELLI; RODRIGUES,

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 55


PRELO, 2021), pois como nos mostra a poeta e intelectual
afroamericana Audre Lorde (2020), não somos fragmentadas, em
tudo o que fazemos nós carregamos conosco tudo aquilo que
somos. Em suas palavras:
Sou um ser humano. Sou uma mulher negra, poeta,
mãe, amante, professora, amiga, gorda, tímida,
generosa, leal, irritável. Se eu não trouxer tudo o
que sou ao que estiver fazendo, então não trago
nada, ou nada de valor duradouro, pois omiti
minha essência (LORDE, 2020, p.104).
Ao manifestarmos quem somos colocamos em evidência o
conservadorismo, o racismo e as heranças do patriarcado
inscritas na formação sócio-histórica da realidade brasileira, as
quais repercutem no cotidiano das relações sociais que se
estabelecem nos diferentes espaços e instituições da sociedade,
seja no âmbito da formação, do trabalho ou da militância
profissional. E se damos visibilidade a esses sistemas de
dominação (HOOKS, 2019) é para que possamos compreender e
reconhecer seus efeitos perversos em nossas relações cotidianas
que, incluem, portanto, as relações que se estabelecem no espaço
acadêmico.
Como nos fala Ramón Grosfoguel (2016), nossas universidades
possuem uma estrutura epistêmica moderno-colonial que funda
e segue sustentando um privilégio de produção de conhecimento
legítimo e verdadeiro atrelado exclusivamente a homens brancos
ocidentais. Isso não apenas produz uma injustiça cognitiva, como
coloca a universidade como estratégia utilizada para privilegiar
projetos imperiais, coloniais e patriarcais que resultam na
inferiorização de conhecimentos produzidos fora do eixo Norte
Global e, consequentemente, genocídios e epistemicídios dos
sujeitos coloniais. A universidade ocidentalizada, como
mecanismo de um Projeto Colonial dominante é, assim,
epistemicamente racista e sexista:

Desde o século XVI, o racismo/sexismo


epistemológico e o fundamentalismo eurocêntrico
que produz esta hierarquia epistêmica global se
reproduz pelo mundo por meio da globalização da

56 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Universidade ocidentalizada [...]. Sem a
globalização de Universidade ocidentalizada, seria
muito difícil para o sistema-mundo reproduzir
suas múltiplas hierarquias de dominação e
exploração global. Neste sentido, a descolonização
do conhecimento e da Universidade constituem
pontos estratégicos fundamentais na luta pela
descolonização radical do mundo. (GROSFOGUEL,
2012, p. 339).

Portanto, nos espaços universitários nos encontramos em um


ambiente prioritariamente branco onde sofremos em nossos
corpos os efeitos do sexismo, do racismo e do pacto narcísico da
branquitude - aquele acordo tácito do qual nos fala Maria
Aparecida Bento (2014) e que faz pessoas brancas silenciarem
frente ao legado de privilégios que receberam de uma herança
escravocrata. Um acordo de cumplicidade que faz “brancos não se
reconhecerem como parte absolutamente essencial na
permanência das desigualdades raciais no Brasil” (BENTO, 2014,
p.26). Pacto que em nosso cotidiano acadêmico se expressa na
indiferença de nossas existências, no silenciamento de nossas
falas e no questionamento quanto a validação de nossas
produções, uma vez que não se situam em uma epistemologia
inscrita em um cânone acadêmico branco-euro-estadunidense
centrado.
Se buscamos o exercício de uma produção acadêmica
sustentada em uma ética e política feminista negra, nossa
presença no universo acadêmico não pode estar pactuada com a
manutenção de um Projeto Colonial e todas as violências que se
colocam em jogo a partir dele. Nesse sentido, nosso trabalho está
implicado com a mudança, com a transformação social que exige
que possamos repensar e modificar o modo como as relações se
estruturam em uma sociedade como a brasileira, ou seja, fundada
sobre um racismo estrutural (ALMEIDA, 2019). Por isso, assim
como Lélia Gonzáles, bell hooks, Audre Lorde e Glória Anzaldúa,
a escritora Conceição Evaristo nos é inspiração para pensarmos
nosso campo de atuação como docentes e pesquisadoras. Quando
ela nos conta sobre a produção de suas histórias, de histórias que

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 57


se produzem pela mescla da ficção e das vivências experienciadas
pelas mulheres negras deste país, Conceição nos diz: “nossa
escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da
casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”
(EVARISTO, 2007, p.2). Compreendemos que esse é também um
posicionamento que precisamos assumir frente a uma
universidade que, hegemonicamente, opera em um Projeto
Colonial.
Nessa empreitada, precisamos seguir o convite que bell hooks
(2019) nos oferece, aquele que nos convida a erguermos nossas
vozes, a produzirmos mais do que informações e conteúdos
acadêmicos, mas também testemunhos. Como nos fala Audre
Lorde (2019), o silêncio não vai nos salvar. E é como um ato de
erguer a voz, para a afirmação de uma produção de pensamento
que nos auxilie a descolonizar nossa academia que esse texto foi
gestado. Um texto que se utiliza da escrita de cartas como
ferramenta de diálogo que nos possibilita, como mostra Glória
Anzaldúa (2019) em sua carta endereçada às mulheres do, então
chamado, “Terceiro Mundo”, uma certa intimidade na escrita, ao
mesmo tempo em que permite trazer ao texto realidades pessoais
e sociais. Assim, nossa escolha em escrever cartas fala de nossa
busca por uma política de escrita pautada pelo acionamento de
memórias e pactuada com a descolonização dos processos
hegemônicos de pesquisa e escrita na academia (BATTISTELLI;
OLIVEIRA, PRELO, ano 2021), em um exercício de endereçamento
do conhecimento produzido (BATTISTELLI, 2017).

O perigo ao escrever é não conectar nossa


experiência pessoal e visão do mundo com a
realidade da sociedade que vivemos, com nossa
intimidade, nossa história, nossa economia e
perspectivas. O que nos valida como seres
humanos, nos valida como escritoras. O que
importa são as relações significativas, seja com
nós mesmas ou com os outros. Devemos usar o que
achamos importante para chegarmos à escrita
(ANZALDÚA, 2019, p. 90).

Assim, é a partir de nossos lugares, nossas experiências e,

58 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


portanto, ancoradas em nossos corpos, que convidamos nossas
leitoras e leitores à um diálogo sobre possibilidades de resistência
no ser docentes e pesquisadoras negras em um universo
acadêmico hegemonicamente branco, masculino, patriarcal,
eletista e norte global centrado. Pois, se o “Brasil como estado
colonial foi projetado pelos homens do poder para ser excludente,
racista, machista, homofóbico, concentrador de renda, inimigo
da educação, violento [...]” (SIMAS; RUFINO, 2020, p.12),
precisamos aprender a encantar o mundo em uma política de
afirmação da vida na pluridiversidade de seus seres, saberes e
modos de existência e não na imposição de um único modo de
vida, considerado melhor, mais bonito, exemplar, mais saudável e
único legítimo - aquele do colonizador, que opera
incessantemente na hierarquização dos corpos e suas produções.

ACEITANDO O CONVITE DE BELL HOOKS: POR UMA


POLÍTICA DO COTIDIANO

Nesta sessão socializamos duas cartas que traduzem um pouco


de nossas trajetórias de vida e de trabalho, nossa inserção e
desafios frente ao espaço da academia. Reconhecemos o quanto é
desafiador escrever sobre nós mesmas, pois, é mexer com
sentimentos, construções e silenciamentos que nos afetam. Mas
de outra forma entendemos que nossas escritas contribuem para
desvendar as artimanhas do racismo estrutural presentes em
nossa sociedade, para a partir daí construirmos e fortalecermos
estratégias coletivas de resistências.

Carta 1: O aquilombamento é importante

Cara irmã,

Te escrevo para compartilhar um pouco sobre como tem sido


minha experiência como professora do curso de Psicologia – uma
professora negra de pele clara – nessa nossa universidade do sul
do país. Sim, esse sul que tanto se orgulha de suas heranças

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 59


europeias, mas se esquece de suas heranças negras e indígenas.
Como diz Maria Aparecida Bento, lembramos mais de nosso pai
colonizador do que de nossa mãe negra, indígena (BENTO, 2014).
E se te escrevo é porque que minhas palavras encontrarão
acolhida e respeito em ti. Sei que me tu me entendes, pois
compartilhamos experiências comuns como colegas de
instituição acadêmica, ainda que nossas diferenças da tonalidade
negra nos tragam experiências distintas. Sei, ainda, que outras
mulheres negras na extensão dos territórios universitários
também compartilham experiências semelhantes, pois nossas
vivências negras têm um comum que não falam apenas de
experiências individuais, mas coletivas. O pessoal é político,
como afirma bell hooks em seu livro “Erguer a voz” (HOOKS,
2019).
Uma das situações que me marcaram desde o início de meu
exercício como docente foi ouvir os rumores de que havia uma
tensão no ar sobre a minha nomeação frente a vacância de uma
vaga de professor/a pelas ações afirmativas (para pessoas negras)
de um concurso público onde eu era a próxima da lista. A tensão
dizia respeito a possibilidade de ignorar que essa vaga era das
ações afirmativas e passar à nomeação da próxima pessoa da lista
das vagas universais. Para além dos desafetos que possam haver
em relação a uma candidata, a ideia de ignorar uma vaga
destinada a pessoas negras é mais um dos inúmeros exemplos do
que é possível acontecer em uma sociedade constituída pelo
racismo estrutural. Alguém acharia plausível tentar pular a
nomeação de uma candidata aprovada em um concurso público
em uma lista única e universal? Não me parece que essa ideia seria
passível de ganhar corpo, mas ela é quando se trata das ações
afirmativas.
Esse foi o primeiro tensionamento sobre meu corpo
mulher-negro-docente em uma academia hegemonicamente
branca. É assustador pensar que menos de 5% das/os docentes em
nossa universidade são negras/os¹. E, além de ser uma mulher
negra, eu sou mãe e lésbica, mais dois campos que são elementos

1 Informação disponibilizada em: <https://adufrgs.org.br/noticias/77403/>. Acesso em


22 de julho de 2020.

60 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


de discriminação em uma sociedade regida pela hegemonia
branca, masculina que, na lógica produtivista, não se importa
com as implicações de ser mãe e acadêmica. E se situações como a
que te contei acontecem entre colegas, que violências tantas
ocorrem no cotidiano de alunas/os negras/os e indígenas nos
corredores e nas salas do espaço universitário?
Comecei a trabalhar na universidade no ano em que as sutilezas
do racismo de cada dia estavam estourando na minha unidade de
trabalho. As/os alunas/os já denunciavam isso há tempos. E
elas/es já haviam produzido movimentos nesse espaço, como a
inclusão no currículo de uma disciplina sobre relações-étnico
raciais e psicologia – disciplina que atualmente ministro com
outros dois colegas. Esse foi um passo bem importante na luta
antirracista e por uma academia que se descolonize. Mas ainda é
pouco, pois continuam circulando discursos que proferem que
hoje tudo é racismo ou que uma ação racista não foi exatamente
racismo (o que dá no mesmo, pois a base desses comentários é a
rejeição) ou, ainda, que um comentário racista foi apenas uma
brincadeira e que ao invés de falarmos em racismo, precisaríamos
focar na questão do assédio moral. O pacto narcísico da
branquitude – como nomeia Maria Aparecida Bento (2014) –
parece ser pacto de sangue. Daqueles que são feitos para não
serem desfeitos. E estar em meio a isso, na condição de
estrangeira a esse pacto, pesa em nossos corpos. Um peso que
silencia e, por vezes, nos adoece.
Para mim há um sentimento grande de solidão na universidade.
De cansaço e, em certos momentos, de impotência frente ao pacto
da branquitude que nos silencia e nos coloca no lugar de loucas e
raivosas...ou que, simplesmente, nos ignora. É dolorido se deparar
com falas do tipo “tu tem que falar que tá bem para as pessoas”,
assim como, “tu já pensou em ir em um psiquiatra” – conselho
dado depois de uma fala-cometário minha sobre colonialidade e
racismo na academia. Que tipo universidade é essa que nos
aconselha a nos medicarmos para suportar suas violências
cotidianas, ao invés de repensar suas práticas? Qual é o corpo que
pode ter emoções neutralizadas frente a episódios racistas no

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 61


próprio local de trabalho? A despeito daquelas e aqueles que lutam
por uma outra produção de conhecimento e práticas que tenham
como horizonte o cuidado coletivo, a academia ainda é colonial,
portanto, branca, racista e machista.
É machista quando algum colega se autoriza a erguer a voz para
desqualificar nosso ponto de vista, mostrando a todas/os como
estamos erradas em nosso posicionamento – que é apenas
diferente, nem melhor ou pior - o que me faz pensar em como,
muitas vezes, parece que há mais cuidado e respeito a
perspectivas, correntes teóricas e autoras/es do que na relação
entre nossos pares na universidade. É, também, machista quando
não se importa com os efeitos de ser mãe de um filho pequeno e
docente, se alinhando às imposições produtivistas. É racista
quando tenta impedir uma professora negra de assumir seu lugar
de direito; quando uma colega branca olha e diz que minha
declaração racial foi aceita pela comissão de aferição das ações
afirmativas só por causa do meu cabelo; quando não consegue (ou
não quer) pensar os efeitos de um corpo docente prioritariamente
branco, fazendo de conta que denúncias por racismo dirigidas a
seus membros bastam para resolver o problema das tensões
raciais. A maquinaria dos privilégios segue colocando a sujeira
para debaixo de seu tapete branco.
Em meio a isso (e muito mais) eu tenho me fortalecido no
trabalho desenvolvido com alunas/os na extensão, na pesquisa e
na sala de aula. Parece incrível, mas em minha experiência as/os
estudantes tem se mostrado muito mais implicados com o
reconhecimento do racismo em nós, com o pensamento crítico
sobre suas relações e práticas e com o compromisso da
transformação em na direção ao exercício da luta antirracista do
que os próprios docentes.
É nesses espaços que tem se tornado possível a construção de
práticas que falam de minha aposta em uma educação como
prática de liberdade, como nos convida bell hooks. Uma educação
que seja muito mais do que informar conteúdos, onde o que
também esteja em jogo seja a aprendizagem de modos de ser e
estar no mundo e de relações mais acolhedoras e de respeito. De

62 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


epistemologias plurais e não euro e norte americana centradas.
De sustentar o conflito racial, ao invés de apaziguá-lo com panos
quentes. De não ser aquela negra (que “nem é tão negra assim”)
para chamar de sua. Uma prática sustentada no feminismo negro,
em uma política antirracista. Isso, muitas vezes, tem um preço –
de estar sozinha enquanto o teatro da branquitude segue
encenando suas melhores peças, inclusive, com cartazes e frases
antirracistas que não passam de decoração para sustentação do
privilégio branco.
Hoje tenho um pouco mais de pertença no espaço acadêmico
por estar em um coletivo da universidade prioritariamente de
mulheres negras, onde nossas experiências e nossas produções
não se excluem, nem são excluídas, onde não somos julgadas, não
somos aquilo que saiu da curva da normalidade, nem as exóticas,
nem aquelas pelas quais se sente pena ou raiva. O
aquilombamento é importante. Não só porque nos (re)une, mas
porque exercita a instauração de um outro projeto de sociedade –
já disse Beatriz Nascimento, em seu texto sobre quilombo e
resistência cultural negra (NASCIMENTO, 2006).
Estar aquilombada me fortalece para as lutas e batalhas
cotidianas – aquelas frente as quais, geralmente, estamos
sempre sozinhas. Me fortalece ouvir uma aluna falar emocionada
sobre o que representa para ela chegar na universidade e
encontrar uma professora negra, como ela mesma. Me fortalece
ouvir um aluno negro me dizer com alegria a diferença que uma
professora negra possibilita em sua formação, seja em relação a
se sentir acolhido e compreendido, seja em função dos
referenciais negros que lhe foram apresentados. Me fortalece
uma aluna se emocionar dizendo o que significa para ela uma
professora que se posiciona e assume seus lugares de mãe, negra
e de uma mulher lésbica.
São essas vivências que sustentam minha caminhada pelos
territórios acadêmicos. Infelizmente, o pacto da branquitude
sempre será um muro a mais a enfrentar. Mas entre um pulo e
outro, tenho percebido o quanto o entre muros da branquitude
pode ser potente, espaço onde vamos nos fortalecendo e

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 63


encantando nossos mundos através do aquilombamento.

Um abraço,

(O nome será inserido após a avaliação)

Carta 2: Por uma educação a serviço da liberdade

Companheira,

Socializo contigo um pouco das vivências experimentadas no


espaço acadêmico como mulher negra, mãe, nascida em território
de fronteira e de origem periférica, numa região do país de
hegemonia branca e num espaço institucional hegemonicamente
branco, que passa a ser desafiado à convivência e construção com
o diferente a partir desse ingresso.
Chegar até aqui não foi tarefa fácil a começar pela manutenção
da própria vida, que emerge de um contexto em que as
desigualdades sociais ganham materialidade, seja, pelo alimento
escasso, pelas precárias condições de moradia, pelo difícil acesso
a condições básicas de água, energia elétrica e saneamento
básico, acesso restrito aos serviços de educação e saúde,
condições de trabalho exploradas e precárias...essas e tantas
outras expressões revelam lugares onde o racismo estrutural
impera, com toda a sua violência, em meio ao silêncio da
necessária sobrevivência cotidiana.
Sou filha de uma mulher negra, dona de casa, doméstica, que
teve uma vida toda de trabalho explorado e poucas condições de
acesso ao estudo. Embora na prática tenha constituído como uma
grande mestra. Seu sonho era ser professora. Inclusive nasceu em
15 de outubro, dia de homenagem aos professores em nosso país.
Mas foi um sonho frustrado, por um modo de educação familiar
enérgico, em que o lugar da mulher era restrito aos afazeres
domésticos (preparar o alimento, lavar, limpar, cuidar...) os quais
não eram (e infelizmente, por vezes, não são) reconhecidos como
trabalho.

64 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Somado a isso as condições de subalternidade de classe. Viver
na terra do padrão impunha limites à capacidade de sonhar em ser
alguém. E o que fazer quando se mora numa região rural e no
interior do Estado, sem acesso a água encanada, energia elétrica,
comunicação, sem acesso a informação, sem conhecimento de
seus direitos? Desde menina ela trabalhava, como doméstica,
lavadora, cuidadora, às vezes pelo alimento, uma lata de banha,
um pote de biscoitos, um corte de tecido… Às vezes por poucos
trocados que não eram suficientes nem para comprar um doce.
Lembro aqui, num outro contexto, mas igualmente desafiador da
face de uma mesma moeda, as palavras de Carolina de Jesus: “[...]
Fiz a comida. Achei bonito a gordura frigindo na panela. Que
espetáculo deslumbrante! As crianças sorrindo vendo a comidas
ferver nas panelas. Ainda mais quando é arroz e feijão, é um dia de
festa para eles” (JESUS, 2014, p. 43). Eis que um dia na idade adulta
foi embora. Saiu da casa dos pais, da região rural desse interior e
se casou. Mas essa lógica não foi rompida, só mudou de endereço.
Tudo isso me constitui. Aprendi com ela desde cedo que era
importante lutar e resistir e que eu deveria perseguir o sonho de
estudar.
E por isso posso avaliar hoje que sou uma exceção dentro da
regra, numa sociedade de classes, racista e patriarcal, sou
mulher, negra e de classe subalterna, professora universitária.
Existo e estou aqui! Daí emerge outro desafio, existir e ser capaz
de exercer a liberdade. Mas o que é essa tal liberdade?
O Código de Ética que orienta o meu trabalho profissional
enquanto assistente social, apresenta entre os princípios
fundamentais: “I – Reconhecimento da liberdade como valor
ético central [...]” (CFESS, 2012, p. 23). Parte-se da concepção de
que o exercício da liberdade está relacionado a capacidade de
autodeterminação, de escolha, de desenvolvimento de
potencialidades. Mas, como exercê-la nos moldes de uma
sociedade sob a égide do capital, racista e patriarcal? Esse é outro
desafio em nosso cotidiano pois a liberdade supõe o
reconhecimento da outra pessoa, na sua forma de ser, de viver, de
se organizar, de se inserir em determinado território. Isso requer

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 65


o exercício da ética não como normas ou padrões determinados,
mas, como um imperativo à materialização de valores que partem
do reconhecimento de nossas diferenças, como
complementaridade e não como algo inferior que pode ser
questionado, inferiorizado, invisibilizado, combatido ou
eliminado.
Lembro do início da vida acadêmica como estudante negra de
graduação e depois na pós-graduação. A dificuldade quanto ao
ingresso e igualmente a permanência, como estudante e
trabalhadora. A maioria das vezes eu era a única e muitas vezes
éramos tão poucas. Já as experiências de trabalho como babá,
diarista, doméstica e vendedora era o contrário. Na academia
nossas pautas inviabilizadas, nossos questionamentos tratados
como problema particular. Nossas leituras direcionadas,
exclusivamente, a partir de referências eurocêntricas,
reconhecidas teoricamente, mas, tão distantes de nossa
realidade. Esses autores/as escreviam a partir do seu lugar, de
suas produções e experiências, em sociedades muito diferentes
da nossa.
Daí nosso esforço é maior ainda, apreender teoricamente o
tema em debate sem perder nossa capacidade crítica de
reconhecer que a tais referências não dialogam como o “nosso
mundo”. E naquela época já podíamos ter conhecido as produções
de Conceição Evaristo, Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, bell hooks,
Magali Almeida, e tantas outras, mulheres, negras e intelectuais.
Mas os padrões inscritos e válidos pela biblioteca da Casa Grande
nos impediram esse acesso. Hoje é possível sistematizar essa
reflexão de forma mais nítida no que nos diz bell hooks (2020, p.
241):
Os que tinham uma origem étnica/racial diferente aprenderam
que não podiam dar voz a nenhum aspecto de sua cultura popular
nos ambientes da elite. Isso valia especialmente para o mundo
popular de falar ou para uma língua materna que não fosse o
inglês. A insistência em falar de um modo que não se coadunasse
com os ideias e maneirismos da classe privilegiada sempre
colocava a pessoa no papel de intrusa.

66 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Lembro das primeiras experiências enquanto docente, já faz
mais de uma década, mas parece que foi ontem. Muitos
aprendizados, construções e desafios que persistem. No período
de estudos de graduação, conciliar estudo e trabalho. Com o
ingresso no ensino superior como docente, dar conta dos
compromissos acadêmicos, em instituições privadas, a noite e
trabalhar em outras instituições, na gestão de políticas públicas
durante o dia. Para quem vive essa dinâmica sabe que a jornada
não termina quando se chega em casa. Após termos trabalhado
três turnos, ainda há que se ter forças para o cuidado da filha (no
meu caso), dar conta da lida doméstica e preparação das agendas
para o dia seguinte.
Recordo de experiências em que estudantes da minha área
profissional, maioria formada por mulheres, diziam que eu era
uma professora brasileira. Mas não era uma fala isolada das
estudantes uma vez que expressavam aquilo que meus colegas
professores/as manifestavam com outras habilidades. Mas, como
se ter uma nacionalidade diferente quando se nasce e se tem o
registro civil no Brasil? Pois bem, essa era a forma de referir que
essa “professora brasileira” não era natural e não era pertencente
àquele espaço. E não foi difícil compreender isso por meio dos
pactos cotidianos que a branquitute estabelece para manter seus
privilégios, às custas de modalidades sofisticadas de
silenciamento, questionamento a veracidade de fatos quando
expressos por mim, não valorização das ações desenvolvidas
(ensino, pesquisa, extensão), não reconhecimento quanto a
possibilidade de participação em instâncias de decisão
institucional. Conforme expressa bell hooks (2020, p. 273): “A
academia não é o paraíso. Mas o aprendizado é um lugar onde o
paraíso pode ser criado”. E isso pode ser verificado em
contraposição ao relato anterior. É preciso investir forças para
neste lugar construir “paraísos” possíveis, onde o ingresso
dos/as considerados “diferentes” (negros/as, indígenas, povo de
periferia) não seja questionado e onde sua permanência não seja
constantemente ameaçada.
Vivenciei nos últimos dois anos a acolhida solidária de

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 67


estudantes e de alguns profissionais. Que felicidade! Não estou
sozinha! Ouvi de várias estudantes: professora você era esperada
por nós! De outras: professora como eu estou feliz por seres
minha supervisora/orientadora; de outras ainda: como é
gratificante ter um trabalho avaliado por uma professora como
eu: mulher negra. Quando da constituição de um grupo de estudos
e pesquisas como espaço para o debate e construções
teórico-práticas sobre as relações étnico-raciais, a grata
surpresa da participação de estudantes de graduação, de
pós-graduação e de profissionais comprometidas com a luta
antirracista, antissexista, anticlassista e antilgbtfóbica, que
encontram nesse lugar, um espaço comum entre os seus. Esses
relatos calam profundamente no coração e na mente. Essas
construções têm sido fundamentais para enfrentar o racismo
institucional e o pacto da branquitute, naturalizado sob o
discurso da meritocracia, tão presente nos espaços acadêmicos,
como estratégias de manutenção do sistema de privilégios.
Sinto que a cada dia uma parte de mim adormece, com a
indiferença, com o silenciamento forçado, com os processos de
opressão que me impedem de respirar. Mas igualmente sinto que
minha vida e minha luta se fortalecem e se multiplicam, pois não
estou sozinha e exercito, em tempos tão adversos, a capacidade de
estar, de questionar, de construir estratégias frente a processos
alienantes de sentido e finalidade.
Por isso estou aqui, pois acredito que é fundamental
construirmos coletivamente possibilidades e, nessa direção “[...]
trabalhar pela liberdade, de exigir de nós e dos nossos camaradas
uma abertura da mente e do coração que nos permita encarar a
realidade [...] Isso é a educação como prática da liberdade” (hooks,
2020, p. 273).

Até breve!

(O nome será inserido após a avaliação)

68 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


AQUILOMBAMENTO NA ACADEMIA: ENEGRECENDO
UM ESPAÇO BRANCO

Quem trabalha a partir de um processo coletivo e


compartilhado sabe da sua riqueza. O que pode ser visto por
algumas pessoas como desorganizado ou sem finalidade aos
poucos vai sendo percebido como um outro modo de trabalho. No
espaço da academia, por vezes, é difícil de compreender algo que
não seja tão rígido no que tange a estrutura organizativa. Em
geral os grupos na universidade se constituem com um objetivo
fechado (a partir da linha de pesquisa ou de trabalho do/a
pesquisador/a) e as demais pessoas vão se agregando por
interesse temático, por disponibilidade de bolsa ou por demanda
de estudos.
O processo potente das construções coletivas se constitui por
elas acontecerem em diálogos abertos, com a troca de ideias, com
desejos e sonhos comuns que vão ganhando forma a cada troca, a
cada encontro. Resguardado o caráter científico e ritos
institucionais, a troca e produção de conhecimentos acontece
com a valorização de saberes e experiências já vivenciadas,
buscando romper com a frieza das formalidades e relações e com
peso do cumprimento de prazos que tende a incidir na perda do
que nos propomos realizar. Assim foi criado o coletivo Aya que,
como Grupo de Estudos e Pesquisas se traduz como um
coletivo-aquilombamento. Em sua origem Aya se constitui como
simbologia Adinkra, da África Ocidental, que significa
resistência.
Trata-se de um coletivo formado por estudantes de graduação e
pós-graduação, profissionais e professoras do Serviço Social, da
Psicologia e áreas afins e desenvolve estudos, pesquisas e
atividades extensionistas objetivando refletir sobre as relações
étnico/raciais (operando na intersecção com gênero e classe),
bem como, sobre o racismo estrutural, presente na sociedade
brasileira e, portanto, também no âmbito das instituições de
ensino e nos espaços de trabalho, sejam eles públicos ou privados.
O Aya é um espaço onde somos nós mesmas, sem julgamento e,

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 69


neste processo coletivo, nos transformamos juntas.
No movimento de construção de resistências nos
aquilombados no Aya, pois entendemos que esse espaço coletivo,
que agrega nossas diferenças, se constitui como possibilidade de
defender nossa sobrevivência e assegurar nossa existência de ser
(NASCIMENTO, 2019). Vemos os desafios cotidianos enfrentados
pelos/as estudantes, no espaço acadêmico, desde o ingresso, a
permanência até a diplomação. Enquanto trabalhadoras da
política de educação superior também vivenciamos muitos
desafios, desde o ingresso, condições e relações de trabalho, bem
como, de reconhecimento como trabalhadoras na política de
educação.
Os estudos e pesquisas desenvolvidos no Aya tem estreita
conexão com as atividades de ensino e de extensão, uma vez que
reconhecemos a importância da indissociabilidade do tripé
ensino-pesquisa-extensão no espaço acadêmico. Todavia,
entendemos que essa articulação deve ultrapassar o caráter
formal e contribuir para uma reflexão crítica acerca da forma de
constituição das relações étnico-raciais na sociedade em que
vivemos. A extensão tem uma contribuição importante nessa
pauta uma vez que “[...] o eixo tradicional pedagógico de
“estudante-professor” é substituído por
“estudante-professor-comunidade”, entendendo o/a estudante e
a comunidade enquanto sujeitos de conhecimento e participantes
do processo de construção [...]” (MACHADO, CURY, GUIMARÃES,
2019, p. 4). Isso possibilita com que as/os estudantes possam se
inserir nas ações de extensão, em territórios específicos e com
segmentos diferenciados, a partir do seu interesse temático, de
suas construções e saberes para além da vida acadêmica.
O mesmo ocorre no âmbito da pesquisa, a qual contribui para
desvendar determinada realidade para melhor incidir na
construção de novas trajetórias e respostas às questões de
pesquisa que emergem de uma realidade concreta. As pesquisas
desenvolvidas pelo Aya estão inscritas nos fundamentos da teoria
social crítica e do pensamento feminista negro buscando elucidar
e priorizar as produções de autoras/es negras/os, invisibilizadas

70 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


e, por vezes, questionadas frente a um modelo hegemônico da
supremacia branca que considera como legítimo apenas aquilo
que é validado na biblioteca da casa grande. É, portanto, ao
enfrentamento dessa universidade colonial que trabalhamos.

Informações da autora
Nome: Luciana Rodrigues, Loiva de Oliveira.
Afiliação institucional: Universidade Federal do Rio Grande do Sul
E-mail: lurodrigues.psico@gmail.com

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 71


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as


mulheres escritoras do terceiro mundo. In: PEDROSA, Adriano;
CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André (org.). Histórias das
mulheres, histórias feministas. v. 2. São Paulo: MASP, 2019, p.
85-94.

BATTISTELLI, Bruna M. Carta-grafias: entre cuidado, pesquisa e


acolhimento. 257 págs. Dissertação, Mestrado em Psicologia
Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2017.

BATTISTELLI, Bruna. M.; OLIVEIRA, Érika. C. S. Cartas: um


exercício de cumplicidade subversiva para a escrita acadêmica.
Revista Currículo sem fronteiras, [2021]. No prelo.

BATTISTELLI, Bruna. M.; RODRIGUES, Luciana. Contar histórias


desde aqui: por uma sala de aula feminista e amefricana.
Quaestio: revista de estudos de educação, [2021]. No prelo.

BENTO, Maria A. S. Branqueamento e branquitude no Brasil. In:


CARONE, Iray; BENTO, Maria A. S. Psicologia social do racismo:
estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 2014, p. 25-57.

BRASIL. Código de ética do/a assistente social. Lei 8.662/93 de


regulamentação da profissão. 10ª. ed. rev. e atual. Brasília:
Conselho Federal de Serviço Social, 2012.

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos


lugares de nascimento de minha escrita. Representações
performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo
Horizonte: Mazza Edições, 2007, p. 16-21.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de


amefricanidade. Tempo brasileiro, v. 92, n. 93, p. 69-82, 1988.

72 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


GROSFOGUEL, Ramón. Descolonizar as esquerdas
ocidentalizadas: para além das esquerdas eurocêntricas rumo a
uma esquerda transmoderna descolonial. Contemporânea,
Revista de Sociologia da UFSCar, v. 2, n. 2, p. 337, 2012.

GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas


universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e
os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI.
Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 25-49, 2016.

HOOKS, bell. Intelectuais negras. Estudos feministas, v. 3, n. 2, p.


464, 1995.

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática


da liberdade. 2. ed. 5ª tiragem. São Paulo: Editora WMF. Martins
Fontes, 2020.

HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como


negra. São Paulo: Elefante, 2019.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma


favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2014.

LORDE, Audre. A poeta como professora - a humana como poeta


- a professora como humana. In: Sou sua Irmã: escritos reunidos.
São Paulo: UBU, 2020, p. 103-105.

LORDE, Audre. A Transformação do silêncio em linguagem e em


ação. In: Irmã outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte:
Autêntica, 2019, p. 51-55.

MACHADO, Loiva Mara de Oliveira; CURY, Cristina Noronha;


GUIMARÃES, Naiara Thomassim. Contribuições do Serviço
Social para o fortalecimento dos movimentos sociais da classe
trabalhadora. In: III Seminário Nacional de Serviço Social,
Trabalho e Política Social (2019) - ISBN: 978-65-80460-61-8.
UFSC. Florianópolis (SC). Disponível em:
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/202633. Acesso em:
08 de nov. 2020.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 73


NASCIMENTO, Abdias. O quilombismo: documentos de uma
militância Pan-Africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio
de Janeiro: Ipeafro, 2019.

NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência


cultural negra. In: RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a
trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto,
2006, p. 117-125.

SIMAS, Luiz A. e RUFINO, Luiz. Encantamento: sobre política de


vida. Rio de Janeiro: Mórula, 2020.

74 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


RELAÇÕES DE TRABALHO E MULHERISMO:
a luta das mulheres negras mães
trabalhadoras no cotidiano profissional.
Cibele Henriques

Eu não sou mulher negra? Sou uma mulher negra


diaspórica trabalhadora afro-brasileira!
Sou repreendida dizendo que deveria ter limpado o
banheiro! Digo que vou fazer uma visita externa a
um usuário e sou interpelada “em qual motel”?
Sou acusada de possuir um “ego grande”, ser
“narcísica” e de fazer figuração!
Enfim, mulher preta não pode fazer nada! Quando
faz não é trabalho?
Sim, demorei a acreditar que não me aceitavam por
conta do “defeito de cor”, como nomeia a escritora
Ana Maria Gonçalves.
E, ainda que não promoviam hostilidades com
representações brancas, mas com negras/os
atrevidas/os todo dia, por que será?
Mas, o que me espantou foi o pseudo-antirracismo
daqueles que dizem ser antirracistas, mas se
omitem diante do racismo cotidiano.
Afinal, o que é ser negro (a) letrado no Brasil? É
estar disposto a usar uma “Máscara de Flandres”
para ser aceito? (HENRIQUES, 2020)

INTRODUÇÃO

A modernidade, o racismo e colonialismo foram processos


violentos de lactificação dos povos não brancos que incutiu
diferentes máscaras brancas aos diaspóricos por meio da
dominação/exploração das Américas. A mercantilização dos

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 75


corpos negros se deu por meio de um processo de desumanização,
desidentificação identitária e de assimilação forçada da cultura
eurocêntrica com o intuito de fazer com que negras/os se
lactificassem, tornam-se embranquecidos, metaforicamente
iguais a leite.
Na América latina, o sistema de poder colonial
capitalista/moderno produziu relações de “colonialidade” que
estruturou desigualdades raciais, sexuais, de gênero e do saber,
na modernidade contemporânea. Assim, os saberes religiosos, as
práticas sexuais e os conhecimentos ancestrais de matriz
africana foram desprezados e apartados da diáspora negra pela
instilação da força, do cativeiro e da indigência negra, bem como
pela instituição de uma cultura homogeneizada e lactificada, no
qual a branquidade tornou-se padrão estético e linguístico das
sociedades diaspóricas.
Falar português e, consequentemente falar bem o português é
um exemplo da “lactificação”, contudo isso não faz com que
negras/os retintas/os e ou de pele clara sempre estejam livres do
“complexo de inferioridade” que lhes é imputado com a
colonização, portanto mesmo falando o português culto serão
vistos como inferiores.
Não obstante, negras/os de pele clara, vulgo “mestiças/os”
serão concebidos pela “branquidade” como uma versão
inacabada dessa “lactificação”, pois transitam entre dois mundos
opostos – o branco e o negro – o que possibilita que circulem em
alguns lugares mais embranquecidos, e, em outros não porque
são espaços de reprodução da essencialidade branca. Assim, ser
negra/o de pele clara não é ser branco e, em concomitante não é
ser negra/o retinto, é ser a expressão viva do processo de
lactificação imposto pela “branquidade” a diáspora
afro-brasileira (FANON, 2008).
Deste modo, negras/os estão entre os dois mundos, possuem
traços africanos e portam consigo as marcas de ser colonizada/o.
É a versão não bem-sucedida do projeto de colonização, o qual
historicamente previu aculturação, a lactificação negra, o
aniquilamento de negras/os diaspóricas/os, mas não a

76 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


sobrevivência de diferentes nuances diaspóricas de cor.
No Brasil, as relações de colonialidade foram naturalizadas,
logo, as pessoas e as instituições construíram práticas sociais
hierárquicas no que tange à raça, gênero e classe que reproduziu
historicamente as “colonialidades”, que ao se tornarem “verdade
absoluta” são parte integrante da “colonialidade do saber”
(QUIJANO, 2005), pois não expressam as desigualdades raciais,
sexuais, de gênero, vividas pelas/os colonizadas/os, pelo
contrário, tais práticas são meritocráticas e expressam a
ideologia assistencial e coercitivo-penal do Estado Brasileiro.
É partindo desse pressuposto que o Brasil ainda é um Estado
Colonial no que tange as relações sociais de raça que organizamos
essa pesquisa qualitativa que se nutre de relatos vivos de
situações racistas vividas por negras/os diaspóricas/os numa
universidade pública. O chicote não bate nas costas nem nas
pernas, não sentimos o cheiro do sangue nas instituições, mas as
dores são sentidas na mente e se espraiam nos corpos de
negras/os que sentem outras formas de colonização – as
colonialidades.
As colonialidades são as opressões raciais de classe, gênero,
sexualidade, idade, território e religião que são experimentadas
por negas/os diaspóricas/os trabalhadores nos espaços de
formação profissional e nos espaços ocupacionais. Independente
do grau de escolaridade o legado da escravização forçada e da
construção de uma identidade escravizada ainda sentencia e
chicote-a as/os que desafiam sair do lugar social que lhes fora
imputado pelo colonizador, quem vai à escola do colonizador
aprende sua cartilha, mas também aprende a transgredir.

QUEM VAI À ESCOLA DO COLONIZADOR?

O sistema educacional que é a expressão máxima da


“colonialidade do saber”, no qual o saber é tido como civilizador
dentro das relações de colonização moderna. Lélia Gonzalez
(1984, p.238) menciona que o letramento oficial dado pela escola
pública, pelo qual passou quando criança foi o primeiro processo

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 77


de lavagem cerebral que a fez embranquecer, pois era a expressão
viva do colonialismo que a encarcerou num mundo culto que não
conversava com o seu “pretuguês”, que zombava de sua
linguagem diaspórica. Como explicita abaixo:
É engraçado como eles [sociedade branca elitista]
gozam quando a gente diz que é Framengo.
Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente
fala errado. E de repente ignoram que a presença
desses r no lugar do l nada mais é do que uma
marca linguística de um idioma africano, no qual o
l inexiste. Afinal quem é o ignorante? Ao mesmo
tempo em que acham o maior barato a fala dita
brasileira e corta os erres dos infinitivos verbais,
que condensa você em CE, o que em ta e por aí
afora. Não sacam que estão falando pretuguês
(GONZALEZ, 1984, p.283).

Para González (1984, p. 239) o “pretuguês” consistia numa


tentativa política de denunciar o preconceito racial da língua
portuguesa, que faz com que os afro-brasileiros não assumam
sua ancestralidade, que consiste na dificuldade em falar o r, e
tentem a todo custo atender às exigências da norma culta por
meio da patologização da linguagem e ancestralidade.
A afirmação do “pretuguês” foi de suma importância para a
produção de descolonizações numa margem temporal posterior à
escrevivência de Carolina de Jesus (1960), pois tal repressão
linguística fez com gerações não falassem por medo ou vergonha,
ou tentassem se adequar por meio de tratamento fonoaudiólogo,
ou seja, por meio da patologização, o que apenas produziu
silenciamento e o apagamento da história oral dos negros.
Ramos (1995, p.220) ao refletir sobre a “patologia social do
branco brasileiro” aclara que a branquidade que necessita de um
“sistema de pseudojustificações para sustentar a espoliação
negra” e a sua “brancura”, as quais são fincadas na “degradação
estética da cor negra”.
Também a falácia da liberdade do corpo negro embranquecido,
da “mulata exportação” foi desmascarada por Lélia Gonzalez
(1984, p.283), que por meio da militância transnacional com as

78 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


mulheres negras africanas e estadunidenses denunciou no
exterior que o Brasil estava produzindo corpos sexuais e
colonizáveis para os estrangeiros. As “mulatas” com lacre “tipo
exportação” ao serem levadas pelos estrangeiros para morar fora
do Brasil eram transformadas em empregadas domésticas, eram
obrigadas a se prostituir para sobreviver, eram novamente
escravizadas física e mentalmente.
Ainda, Gonzalez (1984) denunciou que as “mulatices à
brasileira” que exportou a bunda como produto nacional e
promoveu uma (re) escravidão sexual das mulheres tipo
exportação e reforçou a produção de corpos colonizados e de
linguagens sexistas no Brasil.

E por falar de pretuguês, é importante ressaltar


que o objeto parcial por excelência da cultura
brasileira é a bunda (esse termo provém do
quimbundo que, por sua vez e juntamente com o
abundo, provém de um tronco linguístico bantu
que ‘casualmente’ se chama bunda). E dizem que
significante não marca [...] Marca bobeira quem
pensa assim. De repente bunda é língua, é
linguagem, é coisa. De repente é desbudante
perceber que o discurso da consciência, o discurso
do poder dominante quer fazer acreditar que a
gente é tudo brasileiro, e de ascendência europeia,
muito civilizada, etc. e tal (GONZALEZ, 1984,
p.283).

Gonzalez (1984) a partir de uma leitura interseccional e


decolonial, que antecedeu Quijano (2005), evidenciou que a
produção da inferioridade, da dependência e das formas de
dominação das mulheres diaspóricas trabalhadoras
afro-brasileiras diante do “sistema colonial moderno do
patriarcado”. Teceu importantes considerações sobre a
descolonização da educação brasileira como forma de
emancipação das estruturas coloniais, racistas e sexistas.
A partir dos estudos de Gonzalez (1984), podemos evidenciar
que o colonialismo, o racismo e o sexismo transformaram o corpo
das mulheres diaspóricas e das suas descendentes em um “corpo

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 79


público”, um corpo sexualizado de iniciação sexual dos brancos,
que está sobre o olhar e vigilância de todos, que é infantilizado,
não pode parar de trabalhar, pois é expropriado
intermitentemente de si mesmo para ser usado pela “outra/o”.
Lélia Gonzalez (1984), a partir dos estudos fanonianos (1968),
buscou tecer feridas na sociedade brasileira racista e colonial, que
insistia difundir internacionalmente “o mito da democracia
racial”, no qual as mulheres negras nem existiam enquanto
sujeitas/os no exterior. Existiam apenas as suas bundas
colonizáveis e de exportação. Enfim, as mulheres diaspóricas
trabalhadoras afro-brasileiras antes das denúncias da ativista
supracitada eram a expressão da fragmentação do colonialismo,
mais um pedaço de carne a ser exportada.
Dentre tantas lutas, Lélia Gonzalez (1984) denunciou como
o colonialismo produziu o silenciamento dos negras/os, na
medida em que sua história foi contada pela consciência dos
brancos/as, que queriam estudar a “negradinha”, ao mesmo
tempo em que queriam enquadrar a “negradinha” como
irracional e colocar a “negradinha” num lugar de inferioridade,
como explicita abaixo.

I – Cumé que a gente fica?

Foi então que uns brancos muito legais


convidaram a gente prá uma festa deles, dizendo
que era prá gente também. Negócio de livro sobre a
gente, a gente foi muito bem recebido e tratado
com toda consideração. Chamaram até prá sentar
na mesa onde eles tavam sentados, fazendo
discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido,
discriminado, explorado. Eram todos, gente fina,
educada, viajada por esse mundo de Deus. Sabiam
das coisas. E a gente foi sentar lá na mesa. Só que
tava cheia de gente que não deu prá gente sentar
junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem,
procurando umas cadeiras e sentando bem atrás
deles. Eles tavam tão ocupados, ensinado um
monte de coisa pro criouléu da plateia, que nem

80 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


repararam que se apertasse um pouco até que dava
prá abrir um espaçozinho e todo mundo sentar juto
na mesa. Mas a festa foi eles que fizeram, e a gente
não podia bagunçar com essa de chega prá cá,
chega prá lá. A gente tinha que ser educado. E era
discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso.
Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente,
deu uma de atrevida. Tinham chamado ela prá
responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na
mesa prá falar no microfone e começou a reclamar
por causa de certas coisas que tavam acontecendo
na festa. Tava armada a quizumba. A negrada
parecia que tava esperando por isso prá bagunçar
tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que
nem dava prá ouvir discurso nenhum. Tá na cara
que os brancos ficaram brancos de raiva e com
razão. Tinham chamado a gente prá festa de um
livro que falava da gente e a gente se comportava
daquele jeito, catimbando a discurseira deles.
Onde já se viu? Se eles sabiam da gente mais do que
a gente mesmo? Se tavam ali, na maior boa
vontade, ensinando uma porção de coisa prá gente
da gente? Teve uma hora que não deu prá aguentar
aquela zoada toda da negrada ignorante e mal
educada. Era demais. Foi aí que um branco
enfezado partiu prá cima de um crioulo que tinha
pegado no microfone prá falar contra os brancos. E
a festa acabou em briga. Agora, aqui prá nós, quem
teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se não
tivesse dado com a língua nos dentes. Agora ta
queimada entre os brancos. Malham ela até hoje.
Também quem mandou não saber se comportar?
Não é a toa que eles vivem dizendo que ‘preto
quando não caga na entrada, caga na saída’...
(GONZALEZ, 1984, p.223, grifo nosso)

Como observado por Gonzalez (1984), na citação acima, as


mulheres negras ao gritarem suas dores denunciavam a
invisibilidade produzida pela colonialidade de seus corpos
inscritos numa territorialidade de violência, masculina e branca,
que produziu submissões sexuais e servis às mulheres negras, ao
mesmo tempo em que gerou insubmissões como dessa “neguinha

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 81


atrevida”.
Lélia Gonzalez era essa “neguinha atrevida”, foi insubmissa, e,
logo percebeu desde sua infância o peso das “colonialidades”, e,
por conseguinte da classificação racial feita pelos brancos que
reafirmam para ela lugares e papéis coloniais, mesmo sendo
letrada.
Ratts, A; Rios, F. (2010, p. 30) ao escreverem a bibliografia de
Lélia relatam que o peso das marcas coloniais era mais forte que a
sua tentativa de embranquecimento por meio do letramento
oficial. Quando menina, Lélia chegou a trabalhar como babá dos
filhos de um dirigente de clube, em que seu irmão Jaime jogava no
Rio de Janeiro. Contudo, na medida em que seu irmão Jaime,
jogador de futebol profissional, foi auferindo sucesso na carreira
futebolística, ela pode ir reagindo e recusando tais convites que
iam desde “trabalho de ganho como babá” até sua ida sem volta
para a casa dos dirigentes de futebol como “cria da casa”.
Foi em meio essas “colonialidades” que Lélia Gonzalez pode
então estudar “da infância à juventude” no colégio público no Rio
de Janeiro. Contudo, mal sabia que ia se deparar com outro
inimigo – “a colonialidade do saber” – que embranquecia
“negras/os letradas/os”¹ (MOURA, 1994) e os colonizavam,
mesmo inconscientemente, para serem reprodutores dessas
“colonialidades” para os demais diaspóricos (RATTS, A.; RIOS, F.,
2010, p.31).

Fiz escola primária e passei por aquele processo


que eu chamo de lavagem cerebral dado pelo
discurso pedagógico brasileiro, porque, na medida
em que eu aprofundava meus conhecimentos, eu
rejeitava cada vez mais minha condição de negra. E
claro, passei pelo ginásio científico, esses baratos
todos (GONZALEZ, 1979, p.202 apud RATTS, A.;
RIOS, F., 2010, p. 31).

1 De acordo com Clóvis Moura (1994, p.226) “negras/os letradas/os” seriam aqueles
pertencentes a classe média que ao serem letrados tiveram contato com as correntes
contestatórias de outros países, como os ativistas estadunidenses, dentre os quais
Angela Davis, Malcolm X, Martin Luther King e Madame Ali. Em contraponto,
“negras/os plebeus” eram da periferia, trabalhadores que não tinham tanta
escolaridade e, por conseguinte formação universitária e giravam ao redor das
entidades culturais com as escolas de samba.

82 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Partindo desses pressupostos podemos compreender que as
“colonialidades” estruturam as relações sociais e institucionais
promovendo uma série de barreiras às negras/os que asseguram
para o capital a extração de mais valor e a constituição de um
estoque racial negro precarizado, constituído em sua maioria por
mulheres afrodescendentes jovens e pobres, que estão muito
distantes de um perfil de trabalhador assalariado fordista e,
portanto, se assemelham mais as/os “trabalhadoras/es de
ganho”.

LÉLIAS E CAROLINAS: a intersecção das lutas


mulheiristas das mulheres negras trabalhadoras na
periferia.

Dados recentes do Cadastro Único do Sistema de Assistência


Social (2019), divulgados no Jornal Correio Brasiliense², revelam
que a indigência negra figura como majoritária, no interstício de
junho de 2018 a junho de 2019, as cidades metropolitanas de
Roraima e Rio de Janeiro tiveram o maior aumento da extrema
pobreza que atinge em sua maioria negras/os periféricas/os que
sobrevivem com renda mensal per capita de R$ 89,00. Esse
aumento estatístico também foi percebido no Distrito Federal. O
total de famílias inscritas no Cadastro Único em extrema pobreza
aumentou nesse período supracitado de 158.280 para 71.091
pessoas (CORREIO BRASILIENSE, 2019).
Tal dado sobre a extrema pobreza expressa como a
necro-colonial política do Estado Brasileiro faz com que as/os
negras/os sobrevivam libertos sob a experiência histórica da
indigência. Braga (2018) aponta que as reformas trabalhistas do
Sul Global têm promovido uma reconfiguração na pirâmide do
mercado de trabalho que é expressa pela extensão da
precarização das condições de vida e trabalho, como menciona
abaixo na entrevista dada ao editorial Folha de São Paulo, em 21 de

2 Matéria jornalística intitulada “Miséria extrema no país cresce e atinge 13,2 milhões
de brasileiros”, do ano de 2019.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 83


janeiro de 2018, intitulada “Precariado, tende a se alastrar no
Brasil, como nunca antes, diz Sociólogo”.

Até recentemente, você tinha duas grandes


tendências de precarização: o trabalho subalterno,
que ganha até 1,5 salários mínimo, exercido por
famílias de baixa renda vivendo em bairros mais
periféricos, e a outra é o PJ [pessoa jurídica],
exercido por setores profissionais, pessoas que
foram para a universidade, que falam várias
línguas e são qualificadas. Hoje ele tende a se
alastrar como nunca antes. Essa multiplicação
aponta para uma tendência de polarização nesses
setores profissionais onde você encontra as
classes médias: publicidade, jornalismo,
arquitetura, professores universitários. Você
também tem isso na área de saúde, como no caso de
enfermeiros e psicólogos. A tendência de
pejotização afasta essas pessoas da
aposentadoria, dos direitos trabalhistas e sociais
em benefício de uma renda insegura e jornadas
muito longas (BRAGA, 2018, p.1)

Ruy Braga compara o mercado de trabalho no Brasil


pós-reforma trabalhista à atual situação do mercado de trabalho
na África do Sul, na qual há um processo avançado de
precarização das condições de vida e trabalho e, por conseguinte
o aumento da violência estrutural nos centros urbanos e no
interior que atinge negras/os com qualificação básica e com
diplomação.

O que você tem como perspectiva de futuro é um


pouco o que já acontece no mercado de trabalho da
África do Sul. Você tem aumento dessas
oportunidades de emprego sem acesso a direitos,
colapso do setor formal, afastamento dos direitos
sociais, uma multiplicação de oportunidades
ultraflexíveis de trabalho, com aumento da
concentração de renda e violência social. O que a
reforma aponta é um aumento da violência social,
tendo em vista a desestruturação da renda e da
proteção do trabalho (BRAGA, 2018, p.2)

84 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Nesse sentido, as “colonialidades” – opressões raciais de
classe, gênero, sexualidade, idade, território e religiosidade –
estruturam a divisão racial do trabalho e se interseccionam
conformando um sistema moderno colonial de raça e gênero que
incide sobre os afro-brasileiros nos diversificados níveis de
formação e trabalho profissional.
A ativista Audre Lorde (2019) menciona não existe “hierarquia
de opressão”, pois são relações de poder que não podem ser
medidas e nem ter sobressalência de uma sobre as demais, e
vice-versa, haja vista que são sentidas e vividas pelos colonizados
na experiência da raça, gênero, sexualidade e idade, as quais
devem ser reveladas e denunciadas, haja vista que o
silenciamento e a neutralidade não produzirão seu
aniquilamento.
Assim, as “colonialidades” incidem nas mulheres
trabalhadores diaspóricas afro-brasileiras de modo
interseccional e sem distinção de classe no processo laboral e na
vida. Portanto, obter diplomas não livra e não libertam as
mulheres negras de serem oprimidas, violentadas e mortas, mas
potencializa a construção de uma linguagem política
transgressora e decolonial que promova ações transgressoras
que acabem com a neutralidade da dor e do silêncio (LORDE, 2019;
HOOKS, 2013).
Então, compreendemos que são as “colonialidades” no
cotidiano das mulheres diaspóricas trabalhadoras
afro-brasileiras as impõe a ter um duplo comportamento racial,
“ora branco, ora negro”, com vistas a sobreviver a tais opressões,
bem como para que possam se inserir no mercado de trabalho,
quer seja por meio de “trabalhos de ganho” precarizados e ou
trabalhos formais instáveis e estáveis.
Desse modo, enquanto existir tais “colonialidades” as
mulheres diaspóricas trabalhadoras afro-brasileiras não estão
libertas, estarão presas ao “matriarcado da miséria e ao
feminicídio”. Assim é preciso que as mulheres diaspóricas
trabalhadoras afro-brasileiras possam gestar lutas que tenham
uma matriz antirracista, anticolonial, antigenocida,

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 85


antiproibicionista, antimanicomial e que seja africanista e
diaspórica, pois somente por meio da descolonização que
poderemos criar fissuras reais nos muros que nos aprisionam à
ocidentalidade racista, colonialista, patriarcal e genocida que
mata nosso corpo e mente “em vida”.
A branquidade feminista não partilha das dores negras de
criar filhas/os negras/os que o Estado colonial se acha no direito
de tirar das mães pretas por meio da mácula colonial da violência
que é perpetuada pelos seus agentes de segurança pagos pelos
dinheiro suado do povo preto. Quando saíremos do “Matriarcardo
da Miséria” (CARNEIRO, ) forjado por esse Estado Colonial
brasileiro?
Gonzalez (1979) ao estudar o racismo, o colonialismo e o
sexismo, percebeu que as mulheres negras eram aquelas que
partilhavam as marcas da modernidade colonial, do escravismo,
do racismo e do sexismo. E ainda, que a colonialidade do
conhecimento contribuía para a perpetuação do racismo na
medida em que hierarquizava saberes e lugares.
Num diálogo contestatório com o feminismo brasileiro,
Gonzalez (1979) denunciou que as mulheres brancas letradas da
classe média brasileira não eram solidárias com as mulheres
negras e indígenas, não lutavam pelas suas dores e nem sequer
tinham um discurso e uma prática que denunciasse a opressão
racial, pelo contrário, apenas lutavam pela manutenção e
ampliação de seus privilégios, enquanto as mulheres negras
lutavam para sobreviver com seus filhos vivos nas periferias das
grandes cidades brasileiras.
Essa realidade das mulheres negras periféricas foi retratada
por Carolina de Jesus³, mulher negra, solteira, catadora de lixo e

3 Carolina Maria de Jesus (1914-1977) era natural de Sacramento (Minas Gerais), após a
morte de sua mãe, foi impelida a residir na zona norte da cidade de São Paulo, construiu
seu barraco e passou a catar lixo. Em 1947, grávida, desempregada e com apenas 33 anos
foi morar na favela do Canindé (atualmente a Marginal Tietê). Era semi-analfabeta,
cursou as séries iniciais do primário em minas gerais. Começou a registrar o cotidiano
da favela em 1955, os escritos somaram mais de vinte cadernos e deu origem ao livro
Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicado em 1960. Também publicado
internacionalmente em 72 países. Além desse livro, escreveu outras obras: Casa de
alvenaria, o diário de uma ex-favelada (1961); Pedaços de fome (1963); Provérbios (1963);
Publicações póstumas: Diário de Bitita (1982); Meu estranho diário (1996); Antologia
pessoal (1996) e “Onde estaes felicidade” (2014). Morreu em 13 de fevereiro de 1977, num
sítio no interior de São Paulo.

86 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


mãe de três filhos: João, Carlos e Vera, que antes da elucubração
contestatória de Lélia Gonzalez (1979), denunciou em seu livro
“Quarto de despejo: o diário de uma favelada” – a vida na
periferia de São Paulo na década de 1950, na favela do Canindé, rua
A, barraco nº 9.
Reivindicamos que a escrevivência de Carolina de Jesus é um
experiência mulherista que deu visibilidade mundial à realidade
vivida e sofrida pelas mulheres negras nas grandes cidades, que
desde a extinção da escravidão, experimentaram a fome, a dor, a
solidão, o abandono, o difícil dia a dia do “trabalho de ganho” nas
ruas com os filhos, a falta de remuneração fixa e a falta de serviços
públicos que as liberassem do cuidado com os seus filhos e lhes
fornecessem alimentação e acesso aos serviços de saúde e
moradia.
No trecho abaixo do seu livro “Quarto de despejo: o diário de
uma favelada, Carolina de Jesus fala da experiência do “13 de
maio” na cidade de São Paulo: a experiência amarela da fome.

13 de maio – Hoje amanheceu chovendo. É um dia


simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que
comemoramos a libertação dos escravos. Choveu,
esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente
come mais. A Vera começou pedir comida. E eu não
tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com
dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de
farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco
de banha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz.
Eram 9 horas da noite quando comemos. E assim
no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a
escravatura atual – a fome (JESUS, 1960, p.30)

Carolina de Jesus (1960) tinha consciência da sua condição de


mulher negra e sua escrita expressou a “rebeldia viva” da mulher
negra periférica que para sobreviver tinha que aprender a lutar
diariamente. Ainda teceu críticas importantes ao racismo e ao
sexismo cotidiano que sofreu ao criar os filhos como mãe solteira
no Canindé. Sua fala contestatória denunciou a “cor amarela” da
fome, o descaso dos políticos que promoviam uma modernização
do país para as elites brancas ao mesmo tempo em que produziam

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 87


privações alimentares para negras/os diaspóricas/os pobres que
residiam em barracos nas periferias das grandes cidades.
A obra de Carolina de Jesus é uma experiência do vivido. Relata
as mazelas da colonização, a herança de um legado escravocrata.
Pioneiramente de dentro da favela Carolina de Jesus ousou
promover descolonizações do conhecimento ao ser uma
“negra-vida” (RAMOS, 1995) que não deixou de imobilizar pelas
“colonialidade da fome” e construiu transgressões ao discurso
político de que as/os negras/os comeriam a fatia do bolo da
modernização acelerada brasileira.
Uma mulher negra que fala para outras/os o que deseja ser, ao
invés de ser classificada e lida como um objeto de estudo. Enfim,
uma mulher que mesmo sofrendo as mazelas da raça e da fome
reivindicou seu lugar de fala como uma mulher negra, mãe,
trabalhadora e periférica e tinha consciência da sua negritude,
como explicitado abaixo:

16 de junho –... O José Carlos está melhor. Dei-lhe


uma lavagem de alho e um chá de hortelã. Eu
zombei do remédio da mulher, mas fui obrigada a
dar-lhe porque atualmente a gente se arranja como
pode. Devido ao custo de vida, temos que voltar ao
primitivismo. Lavar nas tinas, cosinhar com
lenha. ...Eu escrevia peças e apresentava aos
diretores de circos. Eles respondia-me: – É pena
você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro a
minha pele negra, e meu cabelo rústico. Eu até
acho o cabelo negro mais iducado do que o cabelo
de branco. Porque cabelo de preto onde põe, fica. É
obediente. E cabelo de branco, é só dar um
movimento na cabeça ele já sai do lugar. É
indisciplinado. Se é que existe reencarnações, eu
quero voltar sempre preta. ...Um dia, um branco
disse-me: – Se os pretos tivessem chegado ao
mundo depois dos brancos, aí os brancos podiam
protestar com razão. Mas, nem o branco nem o
preto conhece a sua origem. O branco é que diz que
é superior. Mas que superioridade apresenta o
branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A
enfermidade que atinge o preto atinge o branco. Se
o branco sente fome, o negro também. A natureza

88 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


não seleciona ninguém (JESUS, 1960, p.64)

Esse reconhecimento da condição humana da/o negra/o


exigido por Carolina de Jesus é a ponta final aparente do iceberg
que tem sua raiz submersa no colonialismo. Fanon (2008, p.106)
afirma que o negro chega ao mundo querendo se reconhecido
como sujeito “ser homem entre os outros homens”, mas
descobre-se como objeto, “objeto em meio a inúmeros outros
objetos”. Tal feito é produto do esquema colonial e patriarcal, no
qual apenas o homem branco tem status de sujeito, ser universal e
humano, enquanto negras/os se constituem em um “não-ser”,
que busca o reconhecimento da “branquidade” que somente olha
a si mesmo e aos seus pares, em detrimento da “outra/o” –
negra/o. Assim, diante dessa aparição como não sujeita/o, a/o
negra/o nesse esquema colonial/patriarcal tende a ter um
comportamento racial duplo, a usar máscaras brancas nas peles
negras. Contudo tal máscara branca foi colocada pela sociedade
às negras/os na medida em que foram libertos e jogados/as na rua.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partimos da afro-perspectivação de que a luta das mulheres


diaspóricas afro-brasileiras não passa pelo crivo do feminismo
negro como sugere Sueli Carneiro (2003), mas pela matriz
afrocêntrica congo-angolense e iorubana do “Mulherismo
Afreekana”, termo cunhado por Cleonora Hudson-Weens, no
final da década de 1980, sob a qual as mulheres negras são a
matripotência de seu povo, portanto nunca estão sozinhas,
carregam consigo seu povo, seus filhos e a sua ancestralidade de
lutas pela liberdade, pelo acesso à terra, pela direito à sua
educação e a saúde.
No “Mulherismo Afreekana” são a matripotência dos homens.
Portanto, não buscam igualdade de direitos como as feministas
brancas reivindicam, pelo contrário, busca potencializar o povo,
o que inclui os homens negros. A mulherista e pesquisadora
Katiúscia Ribeiro ao dar uma entrevista à Revista Quilombo, em

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 89


2016, intitulada “Mulher preta: Mulherismo Africana e outras
perspectivas de diálogo” menciona que as mulheres pretas
precisam estar juntas para pensar seu lugar que foi distorcido
pela lógica ocidental e, ainda que essa tarefa perpasse pela
mudança de comportamento e pela desintegração à hegemonia
branca, o que inclui o feminismo, que não foi pensado para as
mulheres negras, nem incorporou suas demandas. Portanto,
enegrecer o feminismo não muda a condição das mulheres
negras, que continuaram a serviciar a “branquidade” que mata
sua subjetividade, filhos, nas comunidades e nos elevadores de
serviço.

O ventre do mundo é o africano! O ventre do mundo


é regido por matriarcas. A mulher preta tem o
sangue da vida, que rege seu Ara (terra sagrada).
Cabe a elas o gerenciamento de sua própria
perspectiva de mundo e pensar por essa via não é
colocar as mulheres pretas em lugar de
subalternidade, é sim dar a elas a centralidade de
poder que potencializa a todos ao verem nela o
lugar máximo de ser respeitado Há um provérbio
Africano que diz: ‘A mão que balança o berço
governa a nação e o destino’ (RIBEIRO, 2016, p.2).

É válido lembrar, como já explicitado, que a luta feminista


branca é ocidentalizada e não possui uma perspectiva
anticolonial, haja vista que nunca incorporou a pauta das
mulheres negras nas suas reivindicações pelo voto e pelo estudo
como a velha Sojourner Thuth denunciou em um de seus
discursos mais conhecidos intitulado “Eu não sou uma mulher”
proferido pela negra sulista na Convenção dos Direitos das
Mulheres de Ohio (1851), em Akron. Nesse discurso denunciou que
as mulheres brancas e homens brancos não estavam preocupados
com as condições de vida e trabalho das mulheres negras sulistas,
pois nem as consideravam mulheres e nem humanas.
As mulheristas Katiúscia Ribeiro e Aza Ngeri (2017)
apontam para a necessidade de se construir um “suleamento” da
episteme ocidental no âmbito educacional, para que as mulheres
diaspóricas afro-brasileiras possam tomar posse de sua

90 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


“afrocentricidade” e promover conhecimentos que sejam
potencializadores do povo negro. Ainda, Aza Ngeri (2019)
menciona que a educação se constitui como uma experiência
traumática para as pessoas negras que são tidas como irracionais
no padrão ocidental.
Assim, tais traumas produzidos pelo colonialismo
estruturam as relações de poder ao mesmo tempo em que
promovem a patologização da subjetividade negra engendrada
pela psiquiatria moderna, que a rotula ora como empobrecida e
sem as máculas da racionalidade, ora como criminosa, portanto
sem humanidade e até mesmo, com dificuldades de adaptação ao
meio social, pois não reconhecem a psiqué negra como
pertencente a uma cultura social coletiva ocidentalizada que
reivindica outras formas afrocentradas de estar no mundo, as
quais, ainda são lidas como modos de (des)razão.
Grada Kilomba (2019, p.2) ao refletir sobre o Colonialismo e
o racismo cotidiano no seu livro “Memórias da Plantação”
menciona que “O colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada.
Uma ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes
sangram", sob a qual o racismo e o sexismo se constituem como
violências do irracional, pois colocam o dominador/colonizador
como o civilizado e racional, enquanto, atribui ao
dominado/colonizado a irracionalidade e a incivilidade. Desse
modo, a/o colonizada/o se constitui como – a/o “outra/o” – sem
uma justificativa para tal feito, apenas para manter vivas as
relações de poder da “branquidade” sobre o território e negras/os
diaspóricas/os e, por conseguinte seu apagamento.

As mulheres negras foram assim postas em vários


discursos que deturpam a nossa própria realidade:
um debate sobre o racismo onde o sujeito é homem
negro; um discurso de gênero onde o sujeito é a
mulher branca; um discurso sobre a classe onde a
“raça” não tem lugar. É por causa dessa falta que
ideológica, argumenta Heidi Safia Mirza (1997),
que as mulheres negras habitam um espaço vazio,
um espaço que se sobrepõem às margens da ‘raça’
e do gênero, o chamado ‘terceiro espaço’. Nós

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 91


habitamos um tipo de vácuo de apagamento e
contradição ‘sustentado pela polarização do
mundo em um lado negro e de outro lado, de
mulheres ‘(MIRZA, 1997, p. 2 apud KILOMBA, 2019,
p. 56)

Audre Lorde (2019) em seu livro “Sister Outsider” nomeia as


mulheres negras como o “o outro do outro”, pois nunca pode ser
“si mesma”, nunca podem negar o uso do seu corpo que é um
nicho de satisfação e de desejo da/o “outra/o”. Como contraponto
a essa mácula do colonialismo ela reivindica que as mulheres
negras da diáspora quebrem com o silêncio da dor, pois a
neutralidade não ajuda a reversão dessas marcas coloniais.
Desse modo, compreendemos que a mulher diaspórica
trabalhadora afro-brasileira ainda figura na sociedade
contemporânea como continnum do mundo colonial, pois se
configuram numa espécie de criado-mudo, um objeto da
“outra/o”, com vistas a atender as vontades e desejos da
“outra/o”. Portanto, as mulheres diaspóricas são a expressão viva
das “colonialidades”, leiam-se opressões raciais de classe,
gênero, sexualidade, idade, território e religiosidade.

Informações da autora
Nome: Cibele Henriques
Afiliação institucional: Universidade Federal do Rio de Janeiro

92 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSANTE, M. Afrocentricidade: notas sobre uma posição


disciplinar. In: NASCIMENTO, E. AFROCENTRICIDADE: uma
abordagem epistemológica inovadora. – 1 ed – São Paulo: Selo
Negro, 2014.

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à


hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.
CORREIO BRASILIENSE. Miséria extrema no país cresce e atinge
13,2 milhões de brasileiros”. Brasilia, 2019.
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas - tradução de Renato da
Silveira - Salvador: EDUFBA, 2008.

GONZALEZ, L. A juventude negra brasileira e a questão do


desemprego. Resumo apresentado na Segunda Conferência Anual
do AFRICAN HERITAGE STUDIES ASSOTIATION – APRIL 26-29,
1979 (Painel sobre: The
PoliticalEconomyofStructuralUnemployment in the Black
Community). Pittsburgh, 28 de abril de 1979.
____________. Racismo e sexismo na cultura brasileira.
In: SILVA, L. A. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias e
outros estudos. Ciências Sociais, Brasília, ANPOCS n. 2, p.
223-244, 1984.
____________. Primavera para as rosas negras. Lélia
Gonzalez em primeira pessoa. São Paulo: UCPA; Diáspora
africana, 2018.
____________. “A categoria político-cultural de
amefricanidade”. In: Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.
92/93, pp. 69-82, jan. /jun, 1988.
GORENDER, J. Brasil em preto & branco: o passado escravista que

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – diário de uma


favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960. São Paulo: Ática.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 93


HENRIQUES, C. A Máscara de Flandres: o racismo estrutural
colonialista no processo de trabalho e formação profissional
negra. Tese de Doutorado: PPGSS/ESS/UFRJ. Rio de Janeiro, 2020,
282 f. Mimeo.
HOOKS, B. Intelectuais Negras. ESTUDOS FEMINISTAS, UFSC, 477
N 2/ 1995. Link:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/v iew/1646.
Acesso em 10/07/2017.
___________. Ensinando a transgredir: a educação como
prática da liberdade. Editora: Martins Fontes. São Paulo, 2013.
KILOMBA, G. O Brasil ainda é extremamente colonial. In:
GELEDÉS, 2017. Link:
https://www.geledes.org.br/o-brasil-ainda-e-extremamente-co
lonial Acesso em 19/07/2019.
_________. Memórias da Plantação: episódios de racismo
cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
LORDE, A. A Irmã Outsider: ensaios e conferências. Trad.
Esthefanie Borges. Ed. Autêntica, 2019.
NJERI, A. Educação afrocêntrica como via de luta antirracista e
sobrevivência na maafa. Revista Sul-Americana de Filosofia e
Educação. Número 31: mai.-out./2019, p. 4-17.

QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América


Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber:
eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas
latino-americanas. Buenos Aires: Clacso – Consejo
Latinoamericano de Ciências Sociales, 2005.
RAMOS, A. G. Introdução Crítica à sociologia brasileira. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1995.
RATTS, A; RIOS, F. Retratos do Brasil Negro: Lélia Gonzalez.
Coord. Vera Lucia Benedito. São Paulo; Selo Negro, 2010.
RIBEIRO, K; NJERI, A.; XAVIER, E. Apropriação Cultural – Canal
Unidiversidade. 2017. (Programa de rádio ou TV/Entrevista).

94 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


2 - Docentes negras
e a legislação antirracista

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 95


96 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades
APRENDIZAGEM ÉTNICO-RACIAL:
no passado das “sinhás e os senhores”
ao sistema contemporâneo do empoderamento
Lilian Soares da Silva¹

Eu sou uma mulher negra. Eu frequentei todas as


escolas públicas negras. Eu cresci no Sul onde tudo à
minha volta eram factos de discriminação racial, ódio e
segregação forçada.
HOOKS, 2014, p. 87.

Sou uma mulher negra, professora e sonhadora.


Sonho com a realização de todas as minhas conquistas
que um dia quem sabe,
estará em um livro.
SILVA, 2020².

INTRODUÇÃO

O artigo “As Sinhás e os Senhores: do passado ao sistema


contemporâneo” objetiva a reflexão das identidades
étnico-raciais no processo de ensino aprendizagem e na
construção da sociedade brasileira como trabalho de conclusão

1 Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana


Mackenzie – UPM (2020). Mestre em História da África, da Diáspora e dos Povos
Indígenas (2019) pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. Pós
Graduanda em Formação Pedagógica de Docentes para a Educação Profissional de Nível
Médio (2019), Pós-Graduanda em Educação Profissional Integrada à Educação Básica
na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (2016) e Graduada em Gestão de
Turismo (2013) pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo –
IFSP. Especialização Técnica de Guia em Turismo (2015) pela Universidade Anhanguera
de São Paulo - UNIAN/SP - (2015). Graduada em Pedagogia pela Universidade do Grande
ABC - UNIABC - (2008). Auxiliar Técnica de Educação e Professora de Educação Infantil
e Ensino Fundamental I na Secretaria de Educação da cidade de São Paulo (SME/SP).
2 A minibiografia foi escrita em 2020, quando solicitada pela UFRB a escrever um
pequeno texto sobre mim e a trajetória acadêmica para a composição de um artigo na
instituição de ensino. Todavia, hoje dia 01 de novembro de 2020 – Dia de Todos os
Santos – escrevendo esse artigo me deparo com Bell Hooks escrevendo a epígrafe de
destaque em seu livro “Eu sou uma mulher negra”, nada são coincidências ou por acaso.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 97


do curso em Especialização em Educação Profissional integrada a
Educação Básica na modalidade da Educação de Jovens e Adultos
(PROEJA) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de São Paulo (IFSP) sob orientação da Profa. Dra. Maria Patrícia
Candido Hetti.. Pautando-se em teorias raciais, estudos de caso e
pesquisas acadêmicas para a elaboração dessas linhas, linhas que
poderiam conter tantas e tantas histórias, tantos e tantos relatos
que não caberiam em um livro, mas que são fundantes para a
formação do Ser Humano e sua reflexão no papel social que exerce
no contexto social em que está inserido:

- Você é Sinhá? Você é Senhor?

A hierarquia social impõe a todas e todos determinados lugares


de privilégios e de ocupação de determinados espaços, seja ele na
Academia, seja ela no dia a dia. O cotidiano das grandes
metrópoles e das cidades rurais têm uma dinâmica própria que o
constituem como um território de reproduções, de legitimações e
de contextos que são semelhantes ao momento histórico das
Sinhás e dos Senhores do sistema escravista que se estão contidos
e contêm no sistema contemporâneo.
Para tal, o aporte teórico metodológico delineado com
bibliografias de Ângela Davis, Bell Hooks, Petronilha Beatriz
Gonçalves e Silva, Izildinha Baptista Nogueira, Givânia Maria da
Silva, Lilia Schwartz e entre outras. Ressalto que, somente
mulheres para compor o cenário das Sinhás e dos Senhores,
evidenciando o protagonismo feminino, mas poderiam ter
muitas outras como as docentes e professoras negras do Oiapoque
ao Chuí (este tema fica para outro capítulo, dada a sua relevância).
Diante disso, o artigo tem a priorização de apresentar as
perspectivas de formação das identidades étnicos-raciais,
pertencimento, reconhecimento e empoderamento da população
negra, indígena, afro-indígena e entre outras terminologias
individuais e coletivas construídas historicamente no Brasil e no
mundo pautadas ora na superioridade/inferioridade das raças,
ora no mito da democracia racial e por ora, atualmente, no

98 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


empoderamento étnicorracial.
Concluindo-se, em suma, as questões fundamentais para o
panorama do conteúdo será a identidade e educação em suas
interrelações históricas para o processo de ensino aprendizagem
do passado ao sistema contemporâneo, de uma escrita que está
nos livros e nos bancos escolares, de imagens estereotipadas e de
ações de racismo na prática.

PROCESSO HISTÓRICO

Ninguém falou sobre a África como berço da


civilização, sobre os africanos e os asiáticos que
chegaram à América antes de Colombo. Ninguém
mencionou os assassinatos em massa dos nativos
americanos como genocídio, ou a violação das
nativas americanas e das mulheres africanas como
terrorismo. Ninguém discutiu a escravatura como
a fundação para o crescimento do capitalismo.
HOOKS, 2014, p. 87.

O processo histórico dos sistemas escravistas ou da escravidão


brasileira e mundial são importantes para compreensão da
formação do país e suas singularidades, no qual “é na história que
encontramos as respostas para a especificidade do racismo
brasileiro, que já não se esconde mais na imagem indelével da
democracia racial, mas mantém a incógnita de sua originalidade
e de sua reiteração constante” (SCHWARCZ, 2012, p. 99)

Como regra, pessoas brancas abolicionistas ou


defendiam os capitalistas industriais ou não
demonstravam nenhuma consciência de
identidade de classe. Essa aceitação sem
objetivações do sistema econômico capitalista era
evidente também no programa do movimento
pelos direitos das mulheres. Se a maioria das
abolicionistas via a escravidão como um defeito
indecente que precisava ser eliminado, a maioria
das defensoras dos direitos das mulheres
enxergava a supremacia masculina de forma

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 99


similar – como uma falha imoral de uma
sociedade que, em seus demais aspectos, era
aceitável.

Coadunando com o pensamento de Angela Davis (2016, p. 76) a


respeito do processo histórico do sistema escravista e do
protagonismo feminino, a autora Bell Hooks (2014, p.91) destaca
que:
Quando as mulheres reformistas em 1830
escolheram em trabalhar para libertar os
escravos, elas estavam motivadas por um
sentimento religioso. Elas atacaram a escravatura,
não o racismo. A base do seu ataque era a reforma
moral. Elas não estavam a exigir a igualdade social
para o povo negro e isso foi uma indicação que elas
permaneciam comprometidas com a supremacia
racista branca apesar do seu trabalho
anti-escravatura. Enquanto elas fortemente
defendiam o fim da escravatura, elas nunca
defenderam a mudança na hierarquia racial que
permitia que o seu estatuto de casta fosse mais alto
do que as mulheres negras ou os homens. De facto,
elas queriam que a hierarquia se mantivesse.

Neste ponto, um relato evidencia-se que a luta e resistência ao


processo histórico escravista ou da escravatura não foi um
movimento de direitos de brancos e brancas, mas uma construção
do povo negro em liberta-se de suas algemas, de suas amarras e
de todo o sistema que os considerava a inferiorização da raça.
Lilia Moritz Schwartz (2012, p.73), apresenta as estatísticas
censitárias no Brasil:

Em 1900, por exemplo, diante da constatação de


que este era mesmo um país mestiço e negro,
preferiu-se simplesmente retirar o quesito ‘cor’ do
censo demográfico. Dessa maneira, embora os
censos tenham sido realizados no Brasil em 1872,
1890, 1920, 1940, 1950, 1970 e 1980, o item ‘cor’ não
foi utilizado pelo menos em três momentos: 1900,
1920 e 1970. Nos dois primeiros levantamentos, de
1872 e 1890, deu-se mais ênfase à obtenção de
informações sobre pretos, brancos e mestiços; no

100 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


de 1872, os grupos eram ainda diferenciados
segundo a condição de escravos e livres. Já o censo
de 1950 distribuiu a população em quatro grupos
segundo a cor: brancos, pretos, amarelos e pardos,
designação sob a qual reuniu aqueles que se
declararam índios, caboclos, mulatos ou morenos
ou nem sequer declaram sua cor. Já em 1960 a
pesquisa relativa à cor distinguiu cinco grupos:
brancos, pretos, amarelos, índios e pardos, tendo
divulgado, porém, as declarações que diziam
respeito aos índios no grupo dos pardos. Por fim,
em 1980, o IX Recenseamento Geral restringiu-se
aos mesmos grupos do censo de 1950 e enquadrou
no grupo dos pardos ‘os mulatos, os mestiços, os
índios, os caboclos, os mamelucos, os cafuzos etc.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


(IBGE) os dados da população brasileira com o Censo 2010 a
população de pretos e pardos já é maioria no território brasileiro.

Nós existimos!

Nós vamos resistir!

Nós vamos lutar, até um dia nossas crianças, mulheres e


homens puderem andar livres e sem o racismo os aprisionar!

IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL

Com relação ao conceito de genealogia, não apenas


do ponto de vista da herança genealógica,
pensando somente na família, herdeiros e as
gerações futuras no território quilombola, mas, ‘A
genealogia invocada com nomes, características
físicas, psicológicas, explicações sobre o nome das
comunidades, sobre as relações entre brancos e
negros. […] a genealogia que remete à
descendência de escravos, a religiosidade de
matriz africana, as festividades e as práticas de
construção de uma territorialidade específica’
(MAIA, 2012, p. 47). Tal ponto de vista é essencial

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 101


para entender as Comunidades Remanescentes de
Quilombo como territórios ancestrais negros,
escravocratas, rurais, agrícolas, familiares e com
tradições, costumes e hábitos próprios, que ao
longo dos anos e dos séculos foram transmitidos
de geração em geração, sem se perceber ou atentar
sobre a importância e a relevância de sua maneira
de ser, de viver e de produzir ser o motivo pelo qual
ainda permanecem e resistem nessas localidades.
SILVA; SOARES, 2020, p. 39.

A identidade étnico-racial perpassa desde a constituição das


famílias até constituição do indivíduo, por intermédio das
relações sociais, psicológicas e físicas dos sujeitos e dos lugares
que ocupam ou estão inseridos. De modo que, Izildinha Baptista
Nogueira (1998) afirma “pós o período abolicionista, a grande
massa negra, portadora de uma força de trabalho não qualificada
relativamente ao processo industrial, permaneceu literalmente à
margem do processo de socialização poque alijada do processo de
produção” (NOGUEIRA, 1988, p. 35). A produção não é somente do
ponto de vista econômico, mas a sociedade como um todo,
impactando diretamente na formação do Ser Humano, da
população negro e do seu desenvolvimento e reafirmação
identitária.

É nesse sentido que pretendo aqui pontuar,


simultaneamente, dois aspectos: de um lado, a
dificuldade, para o negro, de construir sua
identidade nacional enquanto negro, enquanto
indivíduo pertencente ao grupo dos negros; de
outro, o mesmo tipo de dificuldade em se
constituir como indivíduo no interior do corpo
social como um todo, pelas identificações com
seus semelhantes sociais. Tais dificuldades são o
subproduto, de um lado, do ‘não-lugar” social do
escravo, cuja identidade não correspondia a um
lugar de sujeito, no corpo social, mas a um lugar de
‘peça’, de objeto; de outro, ao fato de que, tendo
adquirido, pós-escravidão, o estatuto jurídico de
cidadão, portanto, o reconhecimento de seu lugar
de individuo social, não pode, por outro lado,
identificar-se com esse lugar no plano

102 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


socioeconômico. NOGUEIRA, 1998, p. 35.

Analisando a construção da identidade nacional brasileira e


seus meandros advindos da colonização de exploração
portuguesa, a divisão espanhola, a invasão holandesa e a
expropriação das riquezas pela Inglaterra e entre outros
processos ocorridos em nossos territórios. É importante
evidenciar os povos e comunidades tradicionais que habitavam o
país, como os Indígenas, Afro-indígenas, Quilombolas e
populações inteiras que constituíram as suas singularidades
enquanto indivíduos e coletivos. Coletivos que permanecem de
geração em geração nas mesmas terras e propriedades por
décadas e décadas, como as Comunidades Remanescentes de
Quilombo ou Comunidades Quilombolas, por intermédio da
genealogia, dos laços de parentesco, da (re)afirmação e da
legitimidade territorial e identitária étnico racial.

Com relação ao conceito de genealogia, não apenas


do ponto de vista da herança genealógica,
pensando somente na família, herdeiros e as
gerações futuras no território quilombola, mas, ‘A
genealogia invocada com nomes, características
físicas, psicológicas, explicações sobre o nome das
comunidades, sobre as relações entre brancos e
negros. […] a genealogia que remete à
descendência de escravos, a religiosidade de
matriz africana, as festividades e as práticas de
construção de uma territorialidade específica’
(MAIA, 2012, p. 47). Tal ponto de vista é essencial
para entender as Comunidades Remanescentes de
Quilombo como territórios ancestrais negros,
escravocratas, rurais, agrícolas, familiares e com
tradições, costumes e hábitos próprios, que ao
longo dos anos e dos séculos foram transmitidos
de geração em geração, sem se perceber ou atentar
sobre a importância e a relevância de sua maneira
de ser, de viver e de produzir ser o motivo pelo qual
ainda permanecem e resistem nessas localidades.
SILVA; SOARES, 2020, p. 39.

Para finalizar, as identidades são construídas e perpassam os

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 103


distintos territórios, territorialidades e dinâmicas socioespaciais
que, paralelamente formam, transformam e (re)criam os grupos
étnicos, de acordo, com seu pertencimento étnico-racial,
identitário e todo o processo constitutivo de si e do outro, do
indivíduo e do coletivo, que perante a sociedade contemporânea
luta para empoderar, valorizar e engajar o bem comum e o viver
bem.

PROCESSO EDUCACIONAL

Primeiramente, há que se destacar o processo educacional


proferido as populações negras em grandes metrópoles, nas
periferias ou nas áreas rurais, os conteúdos curriculares
obrigatórios e as diretrizes educacionais não estão de fato no
chão da escola, nos livros didáticos e no contexto social das
crianças, jovens e adultos, reproduzindo assim as “Sinhás e
Senhores” do passado escravista ao sistema contemporâneo.
Prova disso é constatada pela Profa. Dra. Givânia Maria da Silva
e uma das fundadoras da Coordenação Nacional de Articulação
das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ ):

Durante a pesquisa que deu origem a este trabalho,


a maioria das educadoras e dos educadores
entrevistados reclamou de uma imposição por
parte do Estado ao enviar à comunidade uma caixa
fechada já com os conteúdos programados e não
relacionados com as discussões das questões
quilombolas. A imposição interfere nos desejos e
sonhos da comunidade. A metodologia construída
pelo quilombo não se propõe a negar os
conhecimentos universais, mas não se restringe a
ficar apenas nele. Ou seja, reivindicar um currículo
que reconheça os sujeitos aos quais se dirigem suas
especificidades, suas formas de fazer, criar e
pensar. [...] Isso se deve ao fato de que as
populações tradicionais não aparecem nos
currículos, ou quando aparecem é sempre com
imagens negativas. A forma de representar a
diversidade nos símbolos que são utilizados pelas
escolas é uma questão ainda não resolvida pela

104 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


educação do nosso país. SILVA, 2010, p. 140.

A Educação Básica, incluindo-se todas as modalidades de


ensino da Educação Infantil ao Ensino Superior, têm-se os
currículos e os componentes obrigatórios construídos fora da
sala de aula e com “conhecimentos universais” que por ora não
englobam as especificidades das populações negras e das
comunidades tradicionais.
Uma das possibilidades de um processo de ensino
aprendizagem significativo, consciente e crítico dos discente e
docentes é por meio de atividades lúdicas, práticas e de rodas de
conversas, no qual, a oralidade, as vivencias e as experiencias
individuais e coletivas podem ser compartilhadas entre si e entre
outros. Coadunando com esse pensamento,

As oficinas pedagógicas têm funcionado como


respostas positivas à demanda da população
afrodescendente, no sentido de reconhecimento e
valorização de sai história, cultura e identidade,
pois estimula, e levam subsídios para uma política
curricular fundada em dimensões históricas,
sociais e antropológicas oriundas da realidade
brasileira, buscando combater o racismo e as
discriminações que atingem particularmente os
negros. Nessa perspectiva, propõem a divulgação e
produção de conhecimentos e a formação de
atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos
orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial.
BRAGA; SILVEIRA, 2007, p. 49.

Na referida publicação é apresentado um texto por Leci


Brandão como “ativista social, conselheira da Seppir, cantora e
compositora” e

A arte tem sido minha principal ferramenta para


ajudar na construção de uma vida melhor para as
comunidades brasileiras. Sou mulher, negra, de
origem humilde, filha de uma servente de escola
pública e conto, com muito carinho, que varri
muitas salas de aula e lavei muitos banheiros, já
que morava nos fundos da escola. Apesar de todas
as dificuldades, sempre estudei e sou privilegiada

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 105


por ter sido de escola pública numa época em que
os professores eram respeitados (...) houve um
tempo em que pensar ou questionar era proibido.
Atualmente, o momento histórico que vivemos nos
remete a muitas reflexões. O Brasil é o segundo
país negro do mundo. Na nossa frente só a Nigéria.
(...). O Brasil tem sido um país que prega a
democracia racial, constantemente, mas sabemos
que tal democracia é falsa porque a sociedade
dominante é perversa e o modelo social é injusto.
[...] A questão educação é fundamental para a
formação da cidadania no Brasil. Não chegaremos
a lugar nenhum sem sabedoria. Igualdade racial só
é possível com um povo consciente, sábio,
organizado. Li certa vez que ‘os direitos civis e os
direitos políticos não asseguram a democracia se
não houver direito social’. BRANDÃO, 2007, p. 179.

O direito social e o direito político não é só quando propiciasse


a inclusão e a vaga na unidade escolar, ou se é disponibilizado um
material didático ou as mínimas condições de infraestrutura nas
escolas, mas é um conjunto de legislações, direitos e deveres que
deveriam ser cumpridos de ambas as partes. Partes essas que, não
estão (ou não deveriam) ser implementadas dentro das quatro
paredes das salas de aula e, sim incluir a todo o entorno e a
Comunidade Escolar para participar ativamente do processo de
ensino aprendizagem, seja com a contribuição financeira,
trabalho, mão de obra ou propriedade intelectual e as
experiências de vida para a relação social construída para além
dos muros.
A educação não acontece só na sala de aula, na instituição de
ensino e na Comunidade Escolar, o processo educacional é
construído pelo individual e coletivo, por um trabalho do dia a dia
– como formiguinhas – onde quando percebesse o todo, cada
atitude de um Ser Humano colaborou para toda a sociedade.
Sociedade essa que, “faz-se necessária a capacitação dos
professores e professoras para que possam corresponder às
expectativas dos alunos que ouvem falar que vão aprender a
história da África e dos afrodescendentes, trabalhar as questões

106 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


da diversidade cultura e étnica nas práticas escolares”
(BRANDÃO, 2007, p. 180). Acrescenta-se que “o povo brasileiro
não quer saber apenas de carnaval e futebol. Ele quer educação,
emprego, saúde, segurança, moradia. Ele tem esse direito porque
o recurso público pertence ao povo” (ibidem).
Para tal,

Conforme afirma Kramer, uma nova proposta


pedagógica é um convite, um desafio, uma aposta.
Uma aposta porque, sendo ou não parte de uma
política pública, contém um projeto político
pedagógico de sociedade e um conceito de
cidadania, de educação e de cultura. Portanto, não
pode trazer respostas prontas apenas para serem
implementadas, se tem em mira contribuir para a
construção de uma sociedade democrática, a, onde
a justiça social seja de fato um bem distribuído
igualitariamente a toda coletividade. Uma
proposta pedagógica expressa sempre os valores
que a constituem, e precisa estar intimamente
ligada à realidade a que se dirige, explicitando seus
objetivos de pensar criticamente essa realidade,
enfrentando seus mais agudos problemas. Precisa
ser construída com a participação efetiva de todos
os sujeitos - crianças e adultos,
professores/educadores e profissionais não
docentes, famílias e população em geral - levando
em conta suas necessidades, especificidades,
realidade. Segundo a autora, isto aponta, ainda,
para a impossibilidade de uma proposta única,
posto que a realidade é múltipla e contraditória.
MEC, 1996, p. 18.

A proposta pedagógica antirracista deve partir da concepção de


identidade, do pertencimento étnico racial, da realidade e do
contexto social discente e docente, no qual, “a figura do professor
negro é a peça-chave para a realização dos projetos. Em sua
maioria, esses projetos são propostos e encaminhados por esses
sujeitos identificados com a causa anti-racista e autoclassificados
como negros” (SANTANA, ANO, p.49) e, assim sendo, “o contato
com outras pessoas negras engajadas na militância contribui

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 107


para a tomada de posição. Aos poucos, a percepção de que ser
negro no nosso país representa diferenciais, principalmente no
acesso às oportunidades e às formas de tratamento, vai sendo
elaborada no contato com os outros” (ibidem). De tal modo, fica
evidente o contato com o outro ou os outros para a construção do
processo de ensino aprendizagem, não é possível aprender
sozinho, mas é no desenvolvimento de diálogos, de conversas e de
trocas de experiências que nos (re)construímos como Seres
Humanos, como pessoas e engajados em causas coletivas e não
pensando apenas em nossos próprios umbigos.

(IN)CONCLUSÕES

O presente texto é uma contribuição para as pesquisas


acadêmicas, docentes e a reflexão do processo de ensino
aprendizagem, partindo da historiografia do sistema escravista,
da luta por direito as mulheres, da identidade e pertencimento
étnico racial para a construção na/da população negra. Educação
essa que é implementada não apenas na sala de aula, no espaço da
escola e sim em toda a Comunidade Escolar e seu entorno. Diante
disso, a reflexão da formação identitária perpassa pelos
recônditos da alma, do espírito e do corpo, o corpo negro e suas
singularidades, permeando as distintas segregações,
desigualdades e a desmistificação de que a democracia racial é
algo do passado das Sinhás e Senhores, mas, sim uma ferida
latente e sobrepujante no Brasil e no mundo.

108 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


REFERÊNCIAS

BRAGA, Maria Lúcia de Santana; SILVEIRA, Maria Helena Vargas


da. O Programa Diversidade na Universidade e a construção de
uma política educacional anti-racista. Brasília: Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO,
2007. 190 p. (Coleção Educação para Todos). Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br. Acesso em 01 nov. 2020.

BRANDÃO, Leci. Igualdade Racial só é possível com um Povo


Consciente, Sábio, Organizado. In: BRAGA, Maria Lúcia de
Santana; SILVEIRA, Maria Helena Vargas da. O Programa
Diversidade na Universidade e a construção de uma política
educacional anti-racista. Brasília: Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2007. 190 p.
(Coleção Educação para Todos). Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br. Acesso em 01 nov. 2020.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Angela Davis; tradução


Heci Regina Candiani. – 1 ed. – São Paulo: Boitempo, 2016.

HOOKS, Bell. Não sou eu uma mulher. Mulheres negras e


feminismo. - 1ª ed – 1981. Tradução livre para a Plataforma
Gueto. Janeiro 2014. Disponível em https://plataformagueto.files.
wordpress.com/2014/12/nc3a3o-sou-eu-uma-mulher_traduzid
o.pdf. Acesso em 01 nov. 2020.

MEC, Ministério da Educação. Proposta pedagógica e currículo


em educação infantil: um diagnóstico e a construção de uma
metodologia de análise / Ministério da Educação e do Desporto.
Secretaria de Educação Fundamental. Departamento da Política
de Educação Fundamental. Coordenação-Geral de Educação
Infantil. Brasília: MEC/SEF/ DPEF/COEDI, 1996. 114p. 1. Educação
infantil - proposta político-pedagógica. Disponível em
http://www.dominiopublico. gov.br/. Acesso em 01 nov. 2020.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil:


identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes,

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 109


1999.

NOGUEIRA, Izildinha Baptista. Significações do corpo negro.


Orientador: Iray Carone. 1998. 143 p. Tese (Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento Humano) - Universidade de São Paulo, São
Paulo, SP, 1998.

SANTANA, Patrícia Maria de Souza. Rompendo as barreiras do


silêncio: Projetos Pedagógicos discutem relações raciais em
escolas da rede municipal de ensino de Belo Horizonte. In:
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves; PINTO, Regina Pahim.
Negro e educação: presença do negro no sistema educacional
brasileiro. São Paulo: Ação Educativa, ANPED, 2001.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo


contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira - 1ª- ed. - São
Paulo: Claro Enigma, 2012.

SILVA, Lilian Soares da; SOARES, Liberací Maria Souza. História


social da propriedade na perspectiva do território quilombola.
In: SOBREIRA, Dayane Nascimento; OLIVEIRA, Júlio Ernesto
Souza de; SILVA, Rafael Sancho Carvalho da. História Agrária:
conflitos e resistências (do Império a Nova República). Salvador:
UFBA, 2020.

110 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


PROFESSORAS NEGRAS EM SANTA
CATARINA NO SÉCULO XX:
PROFISSIONALIZAÇÃO, HISTÓRIA,
MEMÓRIA, “RAÇA” E GÊNERO
Elida Regina Nobre Rodrigues
Tanto a profissionalização quanto a formação docente
defendiam como perspectiva a organização das massas e a
ampliação do controle sobre a escolarização da população, além
da ampliação do acesso ao sistema público de ensino.
No período compreendido nesta pesquisa: meados do século
XX, os investimentos na formação de professores de nível médio
para os anos iniciais da escolaridade tinham como objetivo
fundamental a escolarização das novas gerações. Pretendia-se
expandir a oferta escolar com a finalidade de ampliar o controle
ideológico sobre as massas e prepará-las para responder às
necessidades de um emergente mercado de trabalho (SCHEIBE E
VALLE, 2007). Em seus estudos, os autores citados identificam
três fases do movimento de formação de professores:

Três fases, que não estão constituídas por rupturas


ou descontinuidades, mas por mudanças mais ou
menos profundas na organização dos sistemas de
ensino (em âmbito federal, estadual e municipal),
parecem se destacar no movimento de formação
dos professores brasileiros: a primeira começa
com o advento da República (1889) e se prolonga até
o início de 1960, preconizando uma formação de
nível médio, considerada fundamental à
escolarização das novas gerações. A educação
passa a ser vista como um serviço público de
responsabilidade do Estado, devendo organizar as
massas e formar os cidadãos civilizados, visando o
fortalecimento de uma sociedade que pretendia se
tornar hegemônica; a segunda fase prossegue até
os anos de 1980, estando centrada principalmente
numa concepção tecnicista de formação
profissional, que permanece circunscrita ao

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 111


ensino médio. Esta fase se constitui sobretudo com
a chegada dos militares ao poder em 1964 e a
instituição de um regime autoritário e burocrático,
período em que ocorre uma importante expansão
da oferta escolar com a finalidade de ampliar o
controle ideológico sobre as massas e prepará-las
para responder às necessidades de um emergente
mercado de trabalho, com fortes características
monopolistas; e a terceira fase aparece claramente
após a instalação da Nova República (1985), quando
se propõe a formação para o exercício docente ao
nível superior. Nesta fase é atribuída à educação
escolar a missão de compensar o déficit
educacional e social, acumulado pela baixa
qualidade e produtividade dos sistemas públicos
de ensino, e participar efetivamente da
democratização da sociedade brasileira (SCHEIBE
E VALLE, 2007, p. 259).

Atendo-nos à primeira fase, foco central de nossa pesquisa,


registramos haver ocorrido neste período um crescimento
acelerado dos cursos normal no País, com vistas à ampliação da
formação de professores, em resposta à política de expansão da
rede escolar, no sentido de atender a uma demanda crescente de
matrículas. Essa expansão tinha em vista corrigir as deficiências
relativas ao sistema de ensino quanto à má distribuição de escolas
em âmbito nacional, pois seu maior número se concentrava no
ensino privado. Havia um número reduzido e mal distribuído de
escolas normais no País. De acordo com Tanure (2000), havia 546
escolas normais (de primeiro e segundo ciclo), segundo
publicação oficial do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais (Inep) em 1951. Destas, 258 estavam concentradas
em dois estados: São Paulo e Minas Gerais. Das 546 escolas,
apenas 168 eram públicas, isto é, estaduais, e 378, particulares ou
municipais. A partir de 1960, ocorreu uma ampliação das escolas
normais, mas não em número suficiente para atender à demanda:

O Censo Escolar de 1964 iria revelar que dos


289.865 professores primários em regência de
classe em 1964, apenas 161.996, ou seja, 56%,
tinham realizado curso de formação profissional.

112 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Dos 44% de professores leigos, 71,60% tinham
apenas curso primário (completo ou incompleto);
13,7%, ginasial (completo ou incompleto); 14,6%,
curso colegial (completo ou incompleto) (TANURE
2000, p. 77).

Era uma situação nacional, mas que apresentava variações nos


diferentes estados. Em Santa Catarina, de acordo com Auras
(1995, p. 13), havia, no ano de 1960, um déficit na formação de
professores. Estima-se que, de 9.000 atuantes no primário, 5.500
fossem leigos, ou seja, não possuíam nenhuma habilitação para o
magistério. Por esse motivo, ampliava-se o investimento na
formação de professores e também na promoção de concursos
públicos. Seguiu-se, a isso, um aumento considerável no número
de professores no magistério público estadual catarinense entre
1960 e 1970, com vistas a suprir a demanda crescente de
matrículas no ensino público. Este fluxo foi decorrente da
ampliação do número de estabelecimentos de ensino,
impulsionada pela política do governo de então, de expansão e
modernização socioeconômica.
Essas prerrogativas favoreceram o acesso à escolaridade a
diferentes populações do estado; entre elas, um contingente de
mulheres afrodescendentes que, na segunda metade do século
XX, encontraram maiores possibilidades de profissionalização.
Destaca-se que na década de 1960 o governo catarinense,
desafiado a modernizar-se, estava comprometido com as
exigências do desenvolvimento no modo de produção capitalista,
financiado pela Agência dos Estados Unidos da América para o
Desenvolvimento Internacional (Usaid). Desse modo, alguns
fatores concorreram para que nem todas as crianças fossem
atendidas. O modelo de educação proposto não considerou as
condições socioestruturais do estado, contribuindo para a
expulsão de crianças das classes populares da escola pública
(AURAS, 1995, p. 16). Dito de modo mais explícito, havia um
currículo para o ensino primário, organizado com viés elitizante,
que restringia o ingresso e a permanência de crianças das classes
economicamente menos privilegiadas.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 113


Se, por um lado, existiu um projeto estatal que estabeleceu
grandes linhas para a formação e o ingresso, também é
necessário reconhecer que cada um viveu a experiência de
escolarização (incluindo a formação) e atuação de modo
particular. Desse lugar e das particularidades das vivências e
experiências docentes, reconstruímos aspectos da profissão com
base na história oral, aproveitando fragmentos das histórias de
vida, formação e profissionalização de 15 professoras
afrodescendentes, a partir da história oral.
A história oral permite o protagonismo dos sujeitos, através da
história oral, são narradas situações, experiências vivenciadas
que tornam a narrativa uma ferramenta investigativa. Pela
perspectiva de Bastos (2004, p.169), a elaboração da memória dos
professores justifica-se por diferentes fatores:

[...] a memória de sua vida significa vivências;


assim, constitui-se em uma história de vida [...]
lembrar não é reviver, mas refazer, repensar,
construir com imagens e idéias de hoje as
experiencias do passado. A construção do passado
é relativa, é condicionada pelo presente. É o
presente que aponta o que é importante e o que é,
portanto, um interpretar; é quando emergem os
efeitos que se podem avaliar os acontecimentos.

É o que nos leva a utilizar este recurso como um dos


elementos possíveis para conhecer a história de vida de 15
professoras afrodescendentes aposentadas. Dos fragmentos de
suas histórias de vida, seguimos alguns fios que nos permitiu
saber de relações familiares, de classe, de raça, etnia e gênero,
individuais e coletivas, que colaboraram para tecer de modo
complexo suas vidas.
Dos aspectos particulares, pretendeu-se construir uma
narrativa articulada com o contexto, pois ajuda a compor o amplo,
rico e plural quadro da história da educação dos/as negros e
negras no estado de Santa Catarina.

114 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Profissionalização e Carreira Profissional

Abordar aspectos da história da profissão docente através da


carreira profissional de professoras afrodescendentes em Santa
Catarina, utilizando fontes orais por meio do recurso da narrativa
biográfica, nos permite dar visibilidade aos episódios narrados e
atribuir-lhes significados, analisando-os de modo
contextualizado. É deste lugar que o sujeito se manifesta. A
narrativa biográfica, responsável por recuperar, por meio da
memória, a trajetória dos sujeitos, ajuda-nos a trazer à reflexão o
que ele fala sobre si mesmo, especialmente no que diz respeito à
sua própria ação.
A reconstrução das trajetórias de vida das professoras
possibilita compreender processos, acontecimentos e relações
sociais a partir da perspectiva dos agentes nela envolvidos e a
compreender o debate teórico que a fundamenta. Em meados do
século XX, assim como também em períodos anteriores, a
população de origem buscava instrução e escolarização. O fato de
o terem conseguido, entrando na escola de forma mais massiva a
partir de 1950, não significa que sua escolaridade se restrinja a
este período. Apesar das proibições formais à escolarização dos
escravizados, se fazia de diferentes modos; estudos mais
recentes tem apontado que elas existiram. Fonseca (2007)
identifica o registro de crianças na instrução pública de Minas
Gerais no período da monarquia imperial. Como bem acentua
Veiga:

[...] a partir da Constituição de 1824, na vigência da


monarquia imperial, houve um crescente apelo
para a necessidade de instruir e civilizar o povo.
Como uma invenção imperial, em grande parte dos
discursos a aprendizagem da leitura, da escrita,
das contas, bem como a frequência à escola se
apresentava como fator condicional de edificação
de uma nova sociedade. Mas ressalte-se o
impedimento legal de frequência dos escravos às
aulas públicas em várias províncias do Império.
Esse fator tem sido interpretado também como
impedimento da frequência dos negros, gerando

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 115


uma série de equívocos na história da escola.
Portanto, observa-se na historiografia mais geral
e na historiografia da educação em particular a
permanência de um registro que invariavelmente
associa os negros aos escravos e vice-versa,
inclusive com ausência de ressalvas importantes,
como o aumento significativo da população negra
livre e a crescente diminuição da população
escrava a partir de metade do século XIX (MATTOS,
2006). Por isso, a sinonímia entre negros e
escravos precisa ser problematizada no sentido de
ampliarmos os estudos sobre a história do negro
no Brasil e aqui avançarmos especialmente na
investigação sobre os negros na história da
educação e da própria história da educação
brasileira (2008, p. 502-503).

Tais pesquisas transmitem que a exclusão dos negros/as vem


sendo arquitetada de longa data, mas também que tem sido
combatida e enfrentada pela população negra quando denuncia a
existência de racismo na instrução pública e luta pela
possiblidade de acesso ao ensino. Contudo, informa-se, a
educação constituía igualmente um importante instrumento de
dominação e controle. Nas análises históricas, a educação
aparece para os escravizados como uma necessidade no processo
de abolição do trabalho escravo, de modo mais particular por
ocasião das discussões da Lei do Ventre Livre, motivada pela
constituição de um novo modelo de sociedade a se construir.
Mesmo que houvesse proibições formais à escolarização dos
escravizados, o trabalho de Fonseca (2002, 2007) mostra que a
instrução pública de crianças afrodescendentes acontecia
segundo registros oficiais de Minas Gerais no período da
monarquia. O autor mostra também, segundo dados do senso de
1831, que, nos níveis de ensino acima da instrução rudimentar
e/ou de maior gradação, predominavam alunos brancos e a
instrução aos alunos afrodescendentes não era mais que
rudimentar, um indicativo de que a questão racial sempre esteve
na base da educação. Isto repercute particularmente em quem
aspirava ao magistério, e tem a ver com a perspectiva de muitas

116 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


famílias que fomentavam o interesse de suas filhas em ser
professoras. De um lado, porque esta atividade, além de ter sido
uma das primeiras a colocar a mulher no mercado de trabalho,
também atribuía a ela status e prestígio social, condição que
motivou muitas delas a se lançar na formação docente. De outro,
era entendida como possibilidade de conquistar uma profissão
promissora e de entrada no mercado de trabalho. A qualificação
educacional possibilitava ocupar posições de prestígio na
carreira e melhorar, por vezes, sua situação de vida.
Quando fala da história de vida dos professores, Nóvoa (1999, p.
18) costuma dizer que eles “são os protagonistas no terreno da
grande operação histórica da escolarização, assumindo a tarefa
de promover o valor da educação: ao fazê-lo, criam as condições
para valorizar suas funções e para melhorar seu estatuto
socioprofissional”. A profissionalização no magistério, no
período 1950-1960, tinha estreita ligação com as políticas
públicas de sua ampliação, vinculadas ao desenvolvimento
econômico do País. Neste caso, as prerrogativas educacionais
estavam atreladas ao contexto histórico vigente e à valorização
da profissão docente pelas políticas sociais de então. Tal situação
pode, no caso das professoras afrodescendentes, ter influído em
sua profissionalização e no investimento na carreira profissional.
Com a profissionalização, os professores também melhoravam o
próprio estatuto, aumentando seus rendimentos e reafirmando
sua autonomia como intelectuais que ajudavam na formação de
cidadãos para o crescimento do País (NÓVOA, 1999).
As oportunidades emergentes de profissionalização
abriram espaço para as 15 mulheres afrodescendentes de nossa
pesquisa, as quais, entre contingências individuais e coletivas,
conseguiram tornar-se professoras e constituir uma carreira
profissional a que daremos visibilidade através de suas
narrativas. Para Souza (2007, p. 5), “a narrativa é tanto um
fenômeno quanto uma abordagem de investigação e formação,
porque parte das experiências e dos fenômenos humanos
advindos das mesmas”.
A utilização do termo história de vida, no caso das docentes

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 117


com as quais realizamos a pesquisa¹, se apoia nos referenciais de
Souza. Segundo o autor, história de vida:

[...] corresponde a uma denominação genérica em


formação e em investigação, visto que se revela
como pertinente para a autocompreensão do que
somos, das aprendizagens que construímos ao
longo da vida, das nossas experiências e de um
processo de conhecimento de si e dos significados
que atribuímos aos diferentes fenômenos que
mobilizam e tecem a nossa vida individual e
coletiva. Tal categoria integra uma diversidade de
pesquisas ou de projetos de formação, a partir das
vozes dos atores sobre uma vida singular, vidas
plurais ou vidas profissionais, no particular e no
geral, através da tomada da palavra como estatuto
da singularidade, da subjetividade e dos contextos
dos sujeitos (2006, p.27).

Entre memórias, encontramos vestígios da opção pela carreira


profissional:
A opção pela carreira do magistério se deu por
gostar muito de criança. Eu sou de uma família de
professoras: minha vó, minhas tias, primas todas
eram professoras. Minha filha também é. Minha vó
era professora, Julia Chrispina do Nascimento²,
alfabetizava crianças na casa dela e depois as
crianças entravam na escola básica. São gerações
de professores. Concluí o Normal de Férias em
1962. Iniciei como professora primária aos 18 anos
em 1960, ingressei no Estado por meio de Concurso
(Professora Terezinha Nascimento Eufrázio, 2015).

Foi somente a partir desta primeira trajetória de escolaridade


que teve a oportunidade de fazer o Curso Normal, graças ao
Normal de Férias, como ela mesmo sinaliza.

1 As professoras, já apresentadas no capítulo anterior, serão identificadas pelos nomes


próprios, e assim serão referenciadas no texto a cada excerto apresentado.
2 Julia Chrispina do Nascimento é professora, mulher negra, filha de uma escrava,
nascida em 1903, conforme registrados à p. 44, deste texto.

118 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Foto de formatura e doc. do Curso Regional

Fonte: Acervo da entrevistada.

Gostar de crianças é um dos predicados femininos, também


associado a gênero. Esta foi a condição apontada pela professora
para exercer o magistério no ensino primário. Esse predicado é o
que aparece primeiro na fala da professora. Em seguida, vem a
influência familiar, de gerações de professores. Só gostar de
criança pode-se dizer não ser suficiente para uma carreira
docente; porém, a professora associa este exemplo à convivência
com professores (familiares), o que certamente lhe permitiu
conhecer a profissão e dela se aproximar, e, provavelmente, a fez
desenvolver o gosto pelo oficio. Afinal de contas, foi buscar,
através da formação, quando informa que concluiu o Normal de
Férias em 1962, a condição necessária ao exercício da docência,
até porque não basta gostar de crianças, nem basta ser boa mãe ou
boa tia.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 119


Foto de formatura e doc. do Curso Normal

Fonte: Acervo da entrevistada

Ser professor/a exige, além da competência, desenvoltura


interpessoal, equilíbrio emocional e, sobretudo, entender que,
além do desenvolvimento cognitivo, são importantes o
desenvolvimento humano e o respeito às diferenças (classe,
“raça/etnia”, gênero, cultura, etc.). É certo que questões como as
que surgiram no contexto da década de 1960, quando ser um bom
professor passava pelo cumprimento de outras prerrogativas,
como a do bom cumprimento de normas e regras de conduta
disciplinar e curricular como característica do bom
alfabetizador. O processo de ensino/aprendizagem, que sofre
alterações neste momento histórico, esteve fortemente
influenciado pela Escola Nova e pela tendência tecnicista. A
professora também se refere à sua formação no Normal de Férias,
que corrobora os escritos de Dallabrida (2011, p. 4) quando diz que
o governo do estado, para suprir a falta de professores naquele
período, institucionalizou cursos de orientação de professores
realizados anualmente nas férias de verão, extintos com o golpe
militar de 1964.
Numa análise do processo histórico de profissionalização do
professorado, Nóvoa acentua:

A profissão docente exerce-se a partir da adesão

120 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


coletiva (implícita ou explícita) a um conjunto de
normas e valores. No princípio do século XX, este
‘fundo comum’ é alimentado pela crença
generalizada nas potencialidades da escola e na
sua expansão ao conjunto da sociedade. Os
protagonistas deste desígnio são os professores,
que vão ser investidos de um importante poder
simbólico. A escola e a instrução encarnam o
progresso: os professores são os seus agentes. A
época de glória do modelo escolar é também o
período de ouro da profissão docente
(NÓVOA,1999, p. 19).

O entusiasmo das professoras pelo magistério, motivada pelo


exemplo de um coletivo de familiares, parece alimentar-se da
crença nas potencialidades da escola como agente de promoção
social. Na história de suas famílias, o interesse pela profissão
aparece de modo diversificado. Elas revelam diferentes estímulos
na motivação para a escolha da carreira. A autoridade familiar,
porém, foi a que exerceu maior influência em sua escolha. Das
entrevistadas, 46% declararam ter sido influenciadas pela
família. Parece existir, por parte sobretudo nas famílias de
origem africana, o sentimento de que a escola é algo importante.
Geralmente, os pais aventam a perspectiva de um futuro melhor
para os filhos, um futuro diferente do deles, um trabalho menos
árduo, mais valorizado e mais bem remunerado. Veem na carreira
docente a possibilidade de concretização dessa expectativa,
principalmente para as mulheres. A existência de professores na
família e a vocação também exerceram influência na escolha das
nossas entrevistadas.
Os depoimentos das professoras Luciana, Olga, Selma, Maria,
Elza e Tereza evidenciaram esse estímulo familiar. Em alguns
casos, o incentivo e a vocação estavam associados. O fato é uma
demonstração de que as famílias miravam um destino melhor
para essas professoras:

Optei pela carreira do magistério por orientação de


meus pais. Como era de São Francisco do Sul, foi
necessário mudar para Joinville, não havia Escola
Normal em São Francisco do Sul. Como era filha

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 121


única, minha família mudou em função de meus
estudos. A participação de meus pais foi total.
Minha mãe era lavadeira e meu, pai operário
(Professora Luciana Nair Borges, 2015).
Optei pela carreira por vocação e também em razão
da existência de outros professores na família.
Meu pai não permitia; pedi dos 16 aos dezenove
anos; somente aos 20 anos consegui entrar no
magistério. Ingressei em 1964 (Professora Olga
Maria da Rosa Agostinho, 2015).
Escolhi a carreira do magistério por gostar muito
de ler, de trabalhar com o ensino, entendo que por
vocação. Apesar de ter uma tia professora, não
entendo que tenha sofrido alguma influência,
meus pais também me apoiavam muito
(Professora Selma Antonia de Brito, 2015).
Trabalhei por vocação, gostava de escrever, de
ensinar, era uma ajudante da professora, eu tinha
19 anos quando fui para a 5ª série e entendo que
com essa idade já tinha discernimento para saber o
que queria; por isso que foi por vocação (Professora
Maria dos Reis Conceição, 2015).
Fui para a carreira do magistério por vocação;
também fui estimulada por meus pais (Professora
Elza Matias Martins, 2015).
Sempre tive vontade em ser professora. Acho que é
uma vocação e muita força de vontade; de outro
modo, não se segue a carreira (Professora Tereza
Pereira Anacleto, 2015).

A presença da família parece ter constituído fator


determinante em tal escolha profissional. Para os pais, tornou-se
consenso que a educação era o valor mais importante de uma
pessoa, de um país, mesmo e principalmente na fala do pai com
baixa escolaridade, que “fazia das tripas, coração” para que o
filho estudasse. Não foi por acaso que os pais de Nair Borges
chegaram a mudar de domicílio em função dos estudos da filha.
A vocação, outro indicativo de escolha da profissão, foi bastante
enfatizada na história de cada uma, pela concepção de magistério
que remete aos antigos mestres religiosos, cuja representação se
vinculava à ideia da missão extraordinária da vocação enquanto

122 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


doação. Esse entendimento fica bem evidenciado na fala das
professoras Tereza, Elza, Selma e Maria. A ideia de magistério vê
na vocação à docência uma aptidão inata, um dom especial com
que uma pessoa (homem ou mulher) já nasce. O vocábulo vocação,
do latim vocare – “chamar” -, que, no imaginário social, está
vinculado à religião judaico cristã (católica), sugere a existência
de pessoas nascidas com uma tendência, ou inclinação natural,
para realizar um ofício. Esta visão também era fruto da Escola
Normal de formação de professores de vertente mais catequética,
com fortes laços religiosos, que via o magistério como sacerdócio,
algo que se faz por amor ou caridade. A esse respeito, referindo-se
à identidade vocacional, vale dizer que são fruto das escolas
normais desde o início do século XX:
Marcadas desde sua origem por uma formação destinada às
mulheres, as Escolas Normais associam a atividade de ensinar a
uma concepção de dom e de vocação tipicamente feminina e, em
consequência, engendram uma relação fortemente missionária
com o magistério. Os fundamentos deste tipo de relação estão
associados a uma orientação religiosa, de predominância
católica. Estas Escolas constroem um perfil de professor baseado
em virtudes espirituais e morais, e estimulam uma prática
pedagógica pautada em valores humanistas e cívicos (VALLE,
2002, p. 211).
A vertente vocacional abordada pela autora tem comprometido,
historicamente, a profissão, resultando numa atividade de pouco
valor social e de baixa remuneração, sobretudo no ensino básico,
ocasionando uma desqualificação do profissional. A noção de
vocação não se pode restringir ao sentido moral, ético ou
religioso. A vocação deve surgir da singularidade com que se
constroem socialmente os indivíduos, respeitadas escolhas
pessoais que permitam aferir uma profissão e delinear um perfil
profissional. Ainda sobre o sentido da vocação no magistério,
Gaspar da Silva (2004, p. 112) assinala: “[...] há uma tensão a ser
explorada na visão que associa magistério a vocação. O espírito de
sacerdócio parece ser evocado pelo Estado, muito mais para
servir a seus próprios interesses do que para qualificar a atuação

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 123


docente”.
Por outro lado, Souza, Catani, Souza e Bueno (1996, p. 66),
acreditam que esta vertente também esteja associada à
feminização da profissão. Escrevem:
[...] a feminização do percurso escolar,
excepcionalmente aquele destinado à formação de
professores – as mulheres já na virada deste século
constituíram a maioria dos alunos das escolas
normais. Progressivamente, a partir da década de
50, as mulheres seriam predominantes entre os
alunos de alguns cursos superiores, notadamente
daqueles voltados à formação de professores do
ensino secundário e logo também seria a maioria
dos professores desses mesmos cursos. [...] Através
do recrutamento de mulheres, que tem
proverbialmente restringido seu espaço de
circulação intelectual e social, foi possível
neutralizar-se a ilegitimidade do professor como
interlocutor e produtor do saber.

No sistema de ensino brasileiro, ainda segundo as autoras


citadas, a vocação, considerada “sublime” na formação escolar
docente, serviu para:

esconder a ignorância teórica e técnica, ou o


engodo para encobrir a precariedade das condições
de trabalho dos professores. Exaltar qualidades
como abnegação, dedicação, altruísmo e espírito
de sacrifício e pagar pouco: não foi por
coincidência que esse discurso foi dirigido às
mulheres (1996, p. 67).

A construção de uma identidade profissional articula-se com o


fenômeno da profissionalização, praticado por ocasião das
reformas da educação, inscrito nas leis n. 5.692/71 e n. 5.540/1968.
De acordo com Valle (2002, p. 214), “[...] abrange
fundamentalmente duas dimensões: a organização burocrática (e
hierárquica) da administração educacional e a elevação dos níveis
de formação do corpo docente”. Conjugavam-se interesses
comuns e contraditórios das instâncias administrativas, dos
campos representativos do pessoal da educação e dos próprios

124 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


professores. Outros estímulos relativos às escolhas da profissão
foram explicitados pelas professoras, quanto a motivação para
opção pela carreira do magistério. Dentre estes, destacaram-se
influência na da família; geração de professoras na família;
vocação; gosto em dar aula e oportunidade no local de moradia.

Naquele tempo, para as mulheres só restava o


magistério, ser professora era mérito. Tinham
muito preconceito quanto ao trabalho feminino,
então só restava isso. Fui estimulada pela carreira
pela minha mãe que sempre dizia que queria que a
filha dela tivesse uma situação, não queria que
filha dela dependesse do marido. Minha mãe foi
grande colaboradora (Professora Maura Martins
de Vicenzi, 2015, p. 12).

É interessante notar, nesse relato, a ênfase quanto à


independência financeira da mulher que busca um novo papel na
sociedade. Salienta as limitações da mulher na vida pública e
também no mercado de trabalho, quando diz que não lhe restava
alternativa que não o magistério. Além disso, o estímulo da mãe
para ingressar na carreira dá conta da possibilidade de fugir ao
estigma da incapacidade atribuída às mulheres de governar a si
mesmas, enquanto que o trabalho lhes conferia autonomia
financeira, assegurando-lhes a condição de não precisar
submeter-se à autoridade masculina em casa, e também fora dela.
A existência de professores na família também exerceu papel
importante na vida de algumas professoras. O familiar docente
parece ter sido motivo de inspiração para Agostinho e Brito, ainda
que a segunda não admitisse esta influência. Parece ser
característica delas seguir o exemplo de familiares, no campo
profissional, como projeção que os indivíduos fazem de si para o
futuro, como antecipação de uma trajetória profissional a ser
viabilizada por certos investimentos na formação. Colocam em
perspectiva a imagem de si, a apreciação de suas próprias
aptidões e capacidades, a realização de seus desejos comuns.
No conjunto das narrativas, as professoras explicitam, de
forma direta ou indireta, situações de racismo e/ou

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 125


discriminação, seja no período de escolarização, seja no exercício
da profissão. Também identificam situações de racismo
institucional no processo de escolha de vagas e na tomada de
posse no local de trabalho.

Informações da autora
Nome: Maria Aparecida Clemêncio
Afiliação institucional: Universidade do Estado de Santa Catarina
E-mail: cida maravilha@gmail.com
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3089785123426262

126 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


REFERÊNCIAS

AURAS, Gladys Teive Mery Guizoni; SCHEIBE, Leda; KOCH, Zenir


Maria (Orgs). FAED/ UDESC 50 anos de educação (1963-2013).
Florianópolis: UDESC, 2014.

________________________, Modernização
Econômica e Formação do Professor em Santa Catarina.
Florianópolis: ed da UFSC, 1997.

DALLABRIDA, Norberto. In: VI Congresso Brasileiro de História


da Educação. Cultura escolar e perfil do corpo docente no Colégio
Estadual Dias Velho (1947-1964). 2011. (Congresso).

FONSECA, Marcus Vinícius. A educação dos negros: uma nova


face do processo de abolição da escravidão no Brasil. Bragança
Paulista: Universidade São Francisco, 2002.

FONSECA, Marcus Vinícius. Pretos, pardos, crioulos e cabras nas


escolas mineiras do século XIX. 2007. 283f. Tese (Doutorado em
Educação) Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São
Paulo, 2007. Orientação Marta Maria Chagas de Carvalho. F

NÓVOA, António. (Org.). Profissão Professor. Porto: Porto Editora,


1999.

VALLE, Ione Ribeiro. A era da profissionalização: formação e


socialização profissional do corpo docente de 1ª a 4ª série.
Florianópolis: Cidade Futura, 2003. 280p.

SCHEIBA, Leda; VALLE, Ione Ribeiro. A formação dos Professores


no Brasil e em Santa Catarina: do normalista ao diplomado na
educação superior. In: NASCIMENTO, Antonio Dias; HETKOWSKI,
Tania Maria. (Orgs.). Memória e formação de professores [online].
Salvador: EDUFBA, 2007. 310 p. ISBN 978-85-232-0484-6.
Available from SciELO Books . Disponível em:
http://books.scielo.org, Acesso em: mar. 2015.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 127


SILVA, Vera Lucia Gaspar da. Sentidos da profissão docente:
estudo comparado acerca dos sentidos da profissão docente do
ensino primário, envolvendo Santa Catarina, São Paulo e
Portugal na virada do século XIX para o século XX. 2004.264f.
Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2004.

SOUZA, Elizeu Clementino de. (Auto)biografia, histórias de vida e


práticas de formação (p. 59-74) In: Revista Memória e formação
de professores. (Org.). Antônio Dias Nascimento, Tânia Maria
Hetkowski. Salvador: EDUFBA, 2007. 310p.

TANURI, Leonor Maria. História da formação de professores. In:


Revista Brasileira de Educação, São Pulo, n. 14, p. 61-88,
mai./jun./jul./ago. 2000.

VALLE, Ione Ribeiro. Da “identidade vocacional” à “identidade


profissional”: a constituição de um corpo docente unificado. In:
Perspectiva. Florianópolis, v.20, n.Especial, p. 209-230,
jul./dez.2002.

128 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


ENTREVISTAS
AGOSTINHO, Olga Maria da Rosa. Entrevista concedida a Maria
Aparecida Clemêncio. Joinville, 31 de janeiro de 2015.,

ANACLETO, Tereza Pereira. Entrevista concedida a Maria


Aparecida Clemêncio. Criciúma, 06 de maio de 2015.

BORGES, Luciana Nair Borges. Entrevista concedida a Maria


Aparecida Clemêncio. Joinville, 31 de janeiro de 2015.,

BORGES, Maria Gedorvia. Entrevista concedida a Maria Aparecida


Clemêncio. Florianópolis, 28 de jan. de 2015. Entrevista.

BRITO, Selma Antonia de. Entrevista concedida a Maria Aparecida


Clemêncio. Florianópolis, 02 de abril de 2015.

CONCEIÇÃO, Maria dos Reis. Entrevista concedida a Maria


Aparecida Clemêncio. Joinville, 31 de janeiro de 2015.,

EUFRÁZIO, Terezinha Maria Nascimento. Entrevista concedida a


Maria Aparecida Clemêncio. Laguna, 13 de jan. de 2015.

LUCIO, Altair Alves. Entrevista concedida a Maria Aparecida


Clemêncio. Florianópolis, 15 de jan. de 2015. Entrevista.
Disponível no Acervo da Pesquisadora

LIZ, Maria Julia de Souza de. Entrevista concedida a Maria


Aparecida Clemêncio. Painel/ Lages, 25 de abril de 2015.,

MARTINS, Elza Matias. Entrevista concedida a Maria Aparecida


Clemêncio. Tubarão, 19 de jan. de 2015.

NASCIMENTO, Norma de Freitas do. Entrevista concedida a Maria


Aparecida Clemêncio. Florianópolis, 06 de jan. de 2015.

SILVA, Nair Soares da Entrevista concedida a Maria Aparecida


Clemêncio. Joinville, 31 de jan. de 2015. Entrevista.

SILVA, Neuzi Conceição Rosa da. Entrevista concedida a Maria


Aparecida Clemêncio. Florianópolis, 07 de março de 2015.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 129


SILVA, Tania Maria da. Entrevista concedida a Maria Aparecida
Clemêncio. Blumenau, 14 de março de 2015.,

WICENCIA, Maura. Entrevista concedida a Maria Aparecida


Clemêncio. Criciúma, 27 de janeiro de 2015.

130 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


PROFESSORAS NEGRAS
E SUAS AUTORIAS:
Um recorte do estado do conhecimento
Elida Regina Nobre Rodrigues

INTRODUÇÃO

Este artigo compõe um recorte do estado do conhecimento para


a produção da tese de doutorado em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em
andamento desde março de 2018, sob o título Professoras negras e
suas autorias: Um estudo sobre a produção acadêmica de
Doutoras Negras atuantes em universidades públicas do sul do
Rio Grande do Sul. Como foi possível perceber, o tema central são
as professoras negras doutoras, docentes em universidades
públicas no extremo sul do Rio Grande do Sul. O trabalho tem um
viés autobiográfico e busca analisar a produção acadêmica dessas
doutoras, autodeclaradas negras, através da análise de seus
escritos acadêmicos com acesso livre, e/ou disponibilizados pelas
professoras colaboradoras. Neste recorte trago o levantamento
dos dados que me auxiliaram a delinear o campo de estudo da
tese, bem como da metodologia adotada. Foram trabalhos
desenvolvidos, preferencialmente, por mulheres negras e
serviram de subsídio para me mostrar a relevância do estudo,
uma vez que, através deles, pude perceber que as professoras
negras estão indo além da docência na educação básica e
chegando ao ensino superior, mas sem esquecer de suas histórias
de vida e do meio físico e geográfico em que atuam.

APORTE TEÓRICO

A lógica machista, historicamente, privilegiou os homens em


detrimento das mulheres, não sendo diferente no meio
acadêmico, por isso, na escrita da tese, optei por priorizar os

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 131


estudos femininos/feministas, sobretudo de escritoras negras
como Angela Davis, Sojourner Truth, Djamila Ribeiro, Nilma Lino
Gomes, Conceição Evaristo, Chimamanda Adiche, Sueli
Carneiro... Mesmo obras literárias como as de Maria Firmina dos
Reis, Carolina Maria de Jesus, Paulina Chiziane, Toni Morrison,
Bianca Santana... E muitas outras, que têm contribuído para que
eu percebesse as lacunas existentes nos discursos machistas de
uma maioria branca, bem como, preenchê-las com outras visões
de mundo. Por se tratar de um recorte da tese muitas dessas
autoras não foram citadas neste escrito, no entanto penso que
nomeá-las é fundamental para compreensão do percurso
escolhido.

OBJETIVOS

Tenho como objetivo geral da tese analisar como a produção


científica das Professoras Doutoras negras, atuantes em cursos
das áreas humanas, é afetada academicamente pela consciência
da negritude, por meio de elementos autobiográficos nos seus
escritos, bem como perceber se a possível presença desses
elementos pode contribuir de alguma forma para a luta
antirracista.
Neste recorte, especificamente, procurei localizar, selecionar e
analisar escritos que me servissem de referência sobre o que já
havia sido trabalhado sobre o tema Professoras Negras, e se seria
possível encontrar resquícios autobiográficos nessas produções.

METODOLOGIA

A autobiografia está presente tanto no tema, quanto na


metodologia da tese e deste recorte. Para Marie-Christine Josso
(2012) um escrito autobiográfico seria a elaboração de um
autorretrato de todas as atividades que orientaram ou orientam o
sujeito, mesmo que não explicitamente, mas que evidenciam suas
posições existenciais adotadas ao longo da vida. Dessa forma,
acredito que faço parte do grupo a ser estudado, ao mesmo tempo

132 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


em que sou pesquisadora, sou pesquisada, o mesmo acontecendo
com as professoras, que suponho, não desvinculam o ser negra,
de sua atividade profissional.
Dados do Inep¹ (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira) apontam que as mulheres somam
57,2% das matrículas nos cursos de graduação, sendo maioria
também na conclusão dos cursos. Entretanto, na docência do
ensino superior, somam apenas 45,5% do corpo docente.
A seguir apresento um levantamento de trabalhos publicados
por pesquisadoras e pesquisadores que tratam do tema, ou que
apresentam proximidades com a pesquisa, realizados nos
últimos sete anos.
A consulta foi feita a partir do Google Acadêmico², na
Plataforma Sucupira³, no site acadêmico oasisbr⁴, na Revista
Brasileira de Educação5, na revista da Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros – ABPN, no site de Teses e Dissertações
Eletrônicas da PUCRS, no Repositório de trabalhos acadêmicos da
UFPEL, no Repositório de trabalhos acadêmicos da Unipampa e no

1 Disponível em
http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/mulheres-
sao-maioria-na-educacao-superior-brasileira/21206. Acesso em 18/02/2019.
2 O Google Acadêmico é um sistema Google especifico para literatura acadêmica, nele é
possível encontrar artigos, dissertações, teses, livros, resumos e toda espécie de
publicação científica, desde que esteja disponível, de forma virtual, em algum lugar,
permitindo fazer buscas avançadas e refinadas dentro do tema, também oferecendo a
possibilidade da pesquisadora ou pesquisador dispor de suas produções. Disponível em
https://canaltech.com.br/mercado/o-que-e-e-como-usar-o-google-academico/.
Acesso em 13/02/2020.
3 A Plataforma Sucupira é uma ferramenta que coleta informações, realiza análises e
avaliações, sendo a base de referência do Sistema Nacional de Pós-Graduação (SNPG),
com o compromisso de disponibilizar em tempo real e com mais transparência as
informações, processos e procedimentos que a CAPES realiza no SNPG para toda a
comunidade acadêmica. Disponível em
https://www.capes.gov.br/avaliacao/plataforma-sucupira. Acesso em 14/02/2020.
4 O Portal brasileiro de publicações científicas em acesso aberto - oasisbr é um
mecanismo de busca multidisciplinar vinculado ao Instituto Brasileiro de Informações
em Ciências e Tecnologia, que permite o acesso gratuito à produção científica de autores
vinculados a universidades e institutos de pesquisa brasileiros. Por meio do oasisbr é
possível também realizar buscas em fontes de informação portuguesas. Disponível em
http://oasisbr.ibict.br/vufind/. Acesso 16/07/2019.
5 Revista publicada pela ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação, dedicada à publicação de artigos acadêmico científicos, voltada a professores,
pesquisadores e estudantes da área das Ciências Humanas e Sociais.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 133


GT 216 da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação – ANPEd. As expressões de busca utilizadas variaram
de professoras negras, mulheres negras no ensino superior,
doutoras negras e autobiografia.
No Google acadêmico, utilizando a expressão professoras
negras, foram encontrados 462 resultados, desses, foram
escolhidos 12, por mais se aproximarem do tema.
No catálogo de teses capes SUCUPIRA foi utilizado o filtro 2014
a 2018, com a expressão professoras negras resultou 6.821
ocorrências, refinando a busca para doutoras negras resultou em
1313 trabalhos, desses, 96 apresentavam maior relevância, tendo
sido escolhidos 10 desses trabalhos para uma leitura posterior.
Um aspecto bem interessante da busca nesse site foi constatar o
aumento de ocorrência dos trabalhos envolvendo a temática
professoras negras, de acordo com os anos:

Tabela 1 – Ocorrência da temática professoras negras

Anos pesquisados Quantidade de resultados encontrados

2014 177

2015 182

2016 275

2017 298

2018 381

FONTE: ELABORADA PELA AUTORA, 2019.

Uma hipótese para esse aumento gradativo de interesse no


tema seria a de que as mulheres negras, que alcançaram o nível
superior, estão chegando ao mestrado e ao curso de doutorado e
que estão buscando explorar as temáticas que lhe são caras.

6 O GT 21 da ANPEd dedica-se ao estudo da educação e das relações étnico-raciais,


integrado por pesquisadoras e pesquisadores negros e não negros cuja produção
científica está centrada nessa área. Disponível em
http://www.anped.org.br/grupos-de-trabalho/gt21-educa%C3%A7%C3%A3o-e-rela%
C3%A7%C3%B5es-%C3%A9tnico-raciais. Acesso em 14/02/2020.

134 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


No oasisbr foram encontrados sete trabalhos bem relevantes,
entre 60 dos relacionados ao tema.
Na análise de 21 volumes da Revista Brasileira de Educação,
desde 2013, não foram encontrados resultados para os buscadores
usados anteriormente, a revista número 62, de 2015, é a que mais
fala de africanidades, sem, no entanto, tratar especificamente de
professoras negras no ensino superior.
Na revista da ABPN, com a expressão professoras negras foram
encontrados só dois trabalhos, por isso optei por utilizar a
expressão mulheres negras, para esse surgiram 39 resultados,
dos quais 4 mereceram relevância.
No site de Teses e Dissertações Eletrônicas da PUCRS, aplicado
o filtro de Ciências Humanas e, posteriormente, professoras
negras, foram encontrados 181 trabalhos, no entanto nenhum
tinha ligação direta com o tema.
No repositório da UFPel, com o filtro Ciências Humanas e
professoras negras foram encontrados 172 resultados, porém não
encontrei relação direta da temática com os trabalhos
encontrados.
Do repositório da Unipampa; universidade com 10 campi
espalhados pelo RS, um deles em Jaguarão, extremo sul do Brasil;
com o filtro Ciências Humanas e professoras negras foram
destacados 5 trabalhos que tinham relação direta com o tema,
desses, foram escolhidas 2 dissertações.
No GT 21 da ANPED, Educação e Relações Étnico-Raciais, foram
pesquisadas 97 publicações, no entanto nenhuma delas teve
relação direta com a pesquisa em curso, penso que a ausência
também pode nos dizer alguma coisa.
Além dos espaços buscadores já nomeados também pesquisei
em outras revistas e buscadores de trabalhos acadêmicos, pude
constatar que os resultados se cruzam, encontrando o mesmo
trabalho, em diferentes estágios, nos mais diversos espaços. Ao
total, bem mais de dois mil trabalhos foram encontrados com a
temática das professoras negras.
Acabei por selecionar para análise 20 trabalhos, entre artigos,
dissertações e teses, levando em conta para essa seleção, além da

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 135


relação com o tema, a autoria, dando preferência aos trabalhos
escritos por mulheres e sobre mulheres, bem como o aspecto
geográfico do extremo sul do Estado.

RESULTADOS E ANÁLISE

Na análise dos trabalhos foi possível elencar algumas


categorias, como o acesso, dos vinte trabalhos selecionados cinco
deles falam da questão do difícil acesso das professoras negras na
docência do ensino superior, quatro deles tinham relação direta
com as histórias de vida das professoras, como no artigo de Maria
Conceição Reis, Edilce Dionizia de Oliveira e Herlane do
Nascimento Ferreira (2019)7, em que aparecem as histórias de vida
e, se o fato de ser professora negra, influenciaria na discussão das
questões raciais em sala de aula.
Três deles deixaram clara a adoção da metodologia
autobiográfica, como o artigo de Cristiane Mare da Silva (2017)8
em que a autora se questiona quem é e qual seu papel como negra
nesse mundo branco, inspirada em um diálogo com bell hooks,
Lélia Gonzales e outras intelectuais negras que desafiaram-se a
falar de si. Outros três tinham como temática principal a Lei
10.639/2003, sendo que o fator da invisibilidade também apareceu
em muitos trabalhos, Renata Gonçalves (2018)9 em um artigo,
examina a ausência de docentes negros, sobretudo mulheres, no
ensino superior no Brasil, a autora acredita que é preciso avançar
no combate a violência racial e estruturante do ambiente
acadêmico, como forma de construir uma universidade mais
plural e democrática.
Assim como Cristiane Barbosa Soares e Fabiane Ferreira da
Silva (2018)10 que, em um recorte de uma pesquisa em andamento,

7 Disponível em
http://www.seer.ufal.br/index.php/debateseducacao/article/view/6103/0.
8 Disponível em
http://www.raiceslatddhh.fhuce.edu.uy/images/ponencias/Lit-ddhh_Ponencias.pdf#
page=76.
9 Disponível em
http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Poiesis/article/view/7358/426
10 Disponível em https://7seminario.furg.br/images/arquivo/35.pdf

136 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


fazem um trocadilho sobre as professoras negras romperem as
fronteiras da invisibilidade, referindo-se aos campi da Unipampa
da fronteira oeste do Estado, nas cidades de Alegrete, Itaqui, São
Borja e Uruguaiana, buscando visibilizar quantitativamente o
número dessas docentes chegando ao número de 2,3% entre 434
docentes, o número de professoras negras do magistério superior
nesses campi, levando em conta a especificidade da própria
universidade, como também de forma a superar as desigualdades
existentes no meio acadêmico.
Azânia Mahin e Romão Nogueira (2017)11 também buscam
explorar o fator quantitativo das professoras negras na
Universidade Federal de Santa Catarina, dando visibilidade a
essas mulheres que, de acordo com os autores, resistem e
transgridem o espaço acadêmico pela sua simples existência
nesse meio.
Outro aspecto que pode ser observável nessa categoria de
análise foi a quantia de dissertações – nove nos últimos cinco
anos, contra apenas duas teses de doutorado – o que me leva a
supor que as professoras negras estão alcançando os cursos de
mestrado, mas ainda há poucas no doutorado.
Como exemplo das dissertações trago a de Normelia Ondina
Lalau de Farias (2018)12 e a de Fernanda Aparecida de Souza
(2018)13 a primeira aborda as trajetórias de vida das professoras e
professores negros no extremo sul catarinense, seus principais
desafios na docência, bem como suas estratégias de
enfrentamento ao racismo. Já a segunda pesquisadora analisa a
participação de pesquisadoras negras na produção de
conhecimento científico na Universidade Federal de Minas
Gerais, também buscando dar visibilidade a essas mulheres nas
ciências, como um estudo que identifique não só a presença, mas
também a contribuição delas nesse espaço. Uma dissertação que

11 Disponível em
http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1499469299_ARQUIVO
_FazendoGenero2017.pdf
12 Disponível em http://repositorio.unesc.net/handle/1/6719
13 Disponível em Dissertação _ versão definitiva_Fernanda Aparecida de
Souza_12_11_2018.pdf

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 137


ressalta o protagonismo de intelectuais negras é a de Luana Dias
dos Santos (2018)14, que trata do protagonismo de intelectuais
negras brasileiras como Petronilha Gonçalves e Nilma Lino
Gomes, que colaboraram na elaboração e implementação de
políticas de ações afirmativas no país, bem como fizeram um
estudo sobre a produção intelectual das professoras negras que
estão chegando a docência no ensino superior.
Os artigos nos dão a ideia de que o tema está sendo necessário,
ou melhor, que as mulheres negras estão escrevendo, e que
querem ter representatividade.
Outro fator interessante de análise é o geográfico, ao
colocarmos os trabalhos no mapa, podemos visualizar o interesse
no tema em toda uma região litorânea do país, quem sabe as que
concentram o maior número de população negra, ou as que
tiveram um maior incentivo em educação superior nos últimos
anos, muitas hipóteses podem ser levantadas.

Figura 1 – Mapa do Brasil com os Estados dos trabalhos selecionados

FONTE: ELABORADO PELA AUTORA, 2019

14 Disponível em
https://www.repositorio.ufop.br/bitstream/123456789/10786/1/DISSERTA%C3%87%C3
%83O_IntelectuaisNegrasInsurgentes.pdf.

138 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Numericamente, a quantia de trabalhos, por Estados, ficou
assim distribuída:

Tabela 2: Quantia de trabalhos por Estado

Estado Quantidade de trabalhos

Ceará 1

Paraíba 1

Pernambuco 1

Bahia 1

Minas Gerais 3

Rio de Janeiro 1

São Paulo 3

Santa Catarina 2

Rio Grande do Sul 7

FONTE: ELABORADO PELA AUTORA, 2019.

A quantia de trabalhos sobre o tema, no Rio Grande do Sul, vem


a “desmentir” a teoria, de senso comum, de que quase não há
negros no Estado. Nós existimos, somos muitos e estamos
alcançando os níveis mais altos da educação no país, a seguir
apresento um mapa com a distribuição geográfica dos trabalhos
por região no Rio Grande do Sul.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 139


Figura 2 – Mapa do Rio Grande do Sul
com os municípios dos trabalhos selecionados

FONTE: ELABORADO PELA AUTORA, 2019.

Na análise do mapa por trabalhos, no Rio Grande do Sul, é


possível perceber uma ampliação do campo universitário dentro
do próprio Estado: 2 trabalhos são da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos – UNISINOS, Campus São Leopoldo e outro da
Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, Campus Canoas,
regiões acadêmicas tradicionais, localizadas na região
metropolitana de Porto Alegre. Um trabalho da FURG, da cidade
de Rio Grande e os outros 3 trabalhos são da UNIPAMPA, Campus
Jaguarão e Uruguaiana.

140 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


CONSIDERAÇÕES

Um ponto positivo dessa pesquisa foi não ter encontrado um


trabalho, com a mesma temática e metodologia que adotei para a
tese, realizado no Estado, o mais próximo foi o relato de um grupo
de estudos de Minas Gerais, que pesquisava a produção das
doutoras negras no ensino superior, que funcionou entre os anos
de 2012 e 2013, ficando, portanto, fora do meu filtro por datas. A
escrita sobre mulheres, feita em sua grande maioria, por
mulheres, me surpreendeu e me fez perceber que estou no
caminho certo, buscando uma maior visibilidade para a escrita
acadêmica da mulher negra, penso que quanto mais produção
tivermos, mais passos daremos rumo ao sucesso da luta contra o
racismo.
No ano de 2019 a escola de samba carioca Estação Primeira de
Mangueira foi campeã com o samba enredo intitulado “Histórias
para ninar gente grande”. Nesse samba os compositores exaltam
um Brasil que não chegou aos livros de história, a “História que a
história não conta”, com a perspectiva histórica contada por
negros, índios e mulheres. Lembro que, ao assistir o desfile na TV,
os narradores expuseram que os compositores fizeram uso de
artigos, monografias, dissertações e teses como fonte de
pesquisa para a composição. Suponho que tal fato nos mostre o
quanto é importante a função de reescrever a história, circulando
por suas brechas e meandros, para, como os compositores,
mostrar esse Brasil que não está no retrato.

Informações da autora
Nome: Elida Regina Nobre Rodrigues
Afiliação institucional: PUCRS
E-mail: elida.nr@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9445-4171
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/2450162234989201

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 141


REFERÊNCIAS

FARIAS, Normelia Ondina Lalau de. Trajetórias de docentes


negros/as universitários: Desafios entre a presença e o
reconhecimento a partir das relações raciais no Brasil.
Universidade do Extremo Sul Catarinense. 2018. Disponível em
http://repositorio.unesc.net/handle/1/6719

GONÇALVES, Renata. A invisibilidade das mulheres negras no


ensino superior. Universidade Federal de São Paulo. 2018.
Disponível em
http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Poiesis/arti
cle/view/7358/426

JOSSO, Marie-Christine. O Corpo Biográfico: corpo falado e corpo


que fala. Porto Alegre: Educ. Real, v. 37, n. 1, p. 19-31, jan./abr. 2012.
Disponível em: http://www.ufrgs.br/edu_realidade.

MAHIN, Azânia; NOGUEIRA, Romão. O lugar das professoras


negras na Universidade Federal de Santa Catarina. Universidade
Federal de Santa Catarina. 2017. Disponível em
http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1
499469299_ARQUIVO_FazendoGenero2017.pdf

REIS, Maria Conceição; OLIVEIRA, Edilce Maria; FERREIRA,


Herlane Victor. A influência da história de vida de professoras
negras na sua prática pedagógica. Universidade Federal de
Pernambuco. 2019. Disponível em
http://www.seer.ufal.br/index.php/debateseducacao/article/vie
w/6103/0

SANTOS, Luana Diana dos. Intelectuais negras insurgentes: O


protagonismo de Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Nilma
Lino Gomes. Universidade Federal de Ouro Preto. 2018. Disponível
e m
https://www.repositorio.ufop.br/bitstream/123456789/10786/1/D
ISSERTA%C3%87%C3%83O_IntelectuaisNegrasInsurgentes.pdf

142 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


SILVA, Cristiane Mare da. A produção do conhecimento e o papel
das intelectuais negras no Brasil. Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. 2017. Disponível em
http://www.raiceslatddhh.fhuce.edu.uy/images/ponencias/Lit-d
dhh_Ponencias.pdf#page=76

SOARES, Cristiane; SILVA, Fabiane. Professoras universitárias


negras rompendo a fronteira da Invisibilidade. Universidade
Federal do Pampa – campus Uruguaiana. 2018. Disponível em
https://7seminario.furg.br/images/arquivo/35.pdf

SOUZA, Fernanda Aparecida de. A participação de pesquisadoras


negras de programas de pós-graduação stricto sensu da UFMG
na produção do conhecimento científico. Centro Federal de
Educação Tecn. De Minas Gerais. 2018. Disponível em Dissertação
_ versão definitiva_Fernanda Aparecida de
Souza_12_11_2018.pdf

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 143


144 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades
4 - Espacialidade e
diversidade no processo de
aprendizado

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 145


146 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades
A PRESENÇA/AUSÊNCIA
DA INTERSECCIONALIDADE:
classe, gênero, raça e etnicidade nos currículos,
práticas e formação de professores(as)
Claudia Cristina Ferreira Carvalho

INTRODUÇÃO

O presente estudo compõe uma das dimensões da pesquisa


ampliada intitulada: Vulnerabilidades interseccionais-gênero,
sexualidades, raça, etnicidade: Para além delas é possível a
emancipação social através da educação? Estudo este, vinculado a
Faculdade de Educação/FAED da Universidade Federal da Grande
Dourados-UFGD é decorrente, em parte, das inquietações
apresentadas pelos discentes e a docente (co-autora do texto) no
decorrer das experiências oriundas dos Estágios Supervisionados
Curricular Obrigatório do Curso de Pedagogia, desenvolvidas nas
unidades escolares da região da Grande Dourados do Estado de
Mato Grosso do Sul, contemplando as cidades de Dourados,
Caarapó, Deodápolis, Douradina, Fátima do Sul, Glória de
Dourados, Itaporã, Marcaju, Rio Brilhante e Vicentina.
Trata-se de investigação em andamento realizada no âmbito de
uma Escola Pública que atende aos 60 ao 90 anos do Ensino
Fundamental na cidade de Dourados Mato Grosso do Sul,
pretende-se numa abordagem interseccional, transversal e
interdisciplinar, centrada nos estudos feministas critico
pós-coloniais, nas teorizações (de) coloniais e nos estudos
subalternos, compreender como os fatores da diversidade
multicultural crítica (raça, gênero, etnias, sexualidades,
territorialidade, regionalidade) se manifestam no currículo (suas
práticas) e na formação de professores. Dá-se especial atenção
aos modos como os fatores das desigualdades produzidas pelo
herança colonial, hétero-patriarcal e econômica interferem ou

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 147


não no acesso, no desempenho, na aprendizagem e na
permanência dos e das jovens e adolescentes. Além de buscar
compreender no âmbito escolar, são construídas ou não,
estratégias didáticas/pedagógicas, ferramentas tecnológicas –
manifestas nos currículos escolares e suas práticas- voltadas à
superação das desigualdades étnicos-raciais e de
gênero/orientação sexual.

APORTE TEÓRICO

Parte-se da premissa de que todo o conhecimento válido é


sempre situado, portanto, diz muito a respeito dos contextos e
das experiências sociais daqueles/as que lhe dão sentidos. Assim,
parece ser relevante destacar que a região da Grande Dourados é
marcada por um processo sócio histórico caracterizado por um
“encontrão colonial” que emergiu em 1861, no final do século XIX,
com a vinda de algumas famílias originárias dos Estados do Rio
Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo, para o Mato Grosso do
Sul que encontram na região os grupos étnicos indígenas de
língua Guarani- Caiuás (Kaiowá) e os Guarani (Ñandeva), os
Terena formada pelas Aldeias Bororó e Jaguapirú. Mas, tarde
como em todo o processo do Cone Sul, através do tráfico
transnacional, somaram-se os (as) negros (as) africanos
escravizados (as) para produzirem riquezas aos colonizadores,
resultando na atual organização de comunidades quilombolas,
tais como: Dezidério Felipe-na região de Picadinha distrito de
Dourados e a comunidade quilombolas de Rio Brilhante.
Ante sua face histórica, é possível afirmar que a fundação da
região da Grande Dourados foi/ e é, também caracterizada por
uma estrutura de relações sociais, culturais política e econômica
assentadas no “padrão colonial do poder” (QUIJANO, 1993). Um
padrão por vezes, justificado e justiçado na ideologia da
superioridade racial, na hierarquização dos gêneros, nos
genocídios e na expropriação dos/as nativos e da natureza, pela
subjugação e destruição das comunidades indígenas, pela
exploração de negros escravizados e a imposição de valores,

148 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


línguas, técnicas, tecnologias dos ocupantes e de hegemonia
cultural. Os processos migratórios na região marcam a relação de
equidade entre nativos (as) e colonizadores, sendo ela regulada
tanto pela “colonialidade de gênero” (LUGONES, 2008), quanto
pela “colonialidade do saber” (MIGNOLO, 2000). Nessas lógicas
abissais, destaca-se que tanto o conhecimento quanto o direito,
assentou/assenta num “eurocentrismo epistemológico”
(MUDIMBE, 1988) e na “falácia do ocidentalismo” (DUSSEL 2013)
transformaram a realidade européia e estadunidense em
narrativas históricas e culturais globais, invisibilizando a
distinção de outras realidades, colonizando os saberes, as
linguagens, as representações e a memória (MIGNOLO, 1995;
SANTOS, 2010). Ao promoverem o “desaparecimento do SUL”,
assentados numa “razão indolente” (SANTOS, 2000) e na falsa
neutralidade científica, alimentaram as “epistemologias da
cegueira” (idem) ou “epistemologias do ponto zero
(CASTRO-GÓMEZ, 200).
Dita essas palavras contextuais, o presente projeto de pesquisa
interessa-se de modo particular em problematizar de modo
interseccional como o sistema colonial aliançada ao capitalismo
interagem como o patriarcado para acentuar a invisibilidade, o
emudecimento, desigualdades em múltiplas camadas de
opressão e desigualdades injustas. destaca-se a relevância do
conceito de interseccionalidade (CREENSHAW, 1991;
YUVAL-DAVIS, 2011) que demonstra que o regime de opressão
patriarcal não poderá ser interpretado como uma via de mão
única, mas, como múltiplas camadas de trocas desiguais de
poderes, ou seja, existe uma pluralidade de lugares e modos de
enunciação ou de silenciamento que ajudam na produção de
conhecimentos interconectados entre classe, gênero, etnia,
religião, sexualidade e nação¹, sobretudo, na reinterpretação das
formas congregadas dos sistemas de dominação e subordinação.

1 Todavia, existe a crítica reflexiva de que nem todas as sociedades são reguladas por
categorias como classe ou gênero, ou raça. Do mesmo modo, nem o patriarcado e nem as
mulheres podem ser tomados como narrativas monolíticas e homogêneas, ao contrário,
são configurações intraculturais, interculturais e pluridimensionais.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 149


Esse conjunto de lógicas hierarquizadas do cânone universal de
pensar os sujeitos e seus saberes, relegaram aos condenados da
terra (FANON, 1975?) a interiorização em si do regime da sua
própria opressão, imposta pelos seus algozes, silenciando-os
ontologicamente e epistemologicam Como afirma Cheikh Anta
Diop²:

a história da humanidade permanecerá na


escuridão até que seja vislumbrada a existência de
dois grandes berços - o meridional, que inclui toda
a África, e o setentrional, que corresponde ao
espaço euroasiático - onde o clima forjou atitudes
e mentalidades específicos. (1976, p. 250).

Tal afirmação, faz eco a compreensão de como o encontro


transatlântico da península ibérica europeia, ainda regulam as
interações locais, considerando que esse processo desenfreou a
escravização dos corpos, memórias, historicidades, identidades,
saberes e movimentos dos povos africanos/as e suas
descendências, transformados/as de sujeitos em propriedades
(periféricos/as) de quem se imaginou e se imagina como “centro”
em detrimento da periferização do/a Outra/a. Tal realidade, ainda
presente em dias atuais, impõe o desafio da construção de
teorizações com capilaridade, para capturar - numa imaginação
epistemológica e ética - a ruptura das fronteiras extrativistas e
epistêmicas que criam e recriam a abissalidade das construções
científicas e, consequentemente, sua reprodução nas política de
produção de do conhecimento oficial escolar, que por muito
tempo carregou o peso das heranças coloniais em seus diferentes
contextos e origens. As estruturas de poder, neste ínterim, se
realizam através de uma necropolítica (MBEMBE, 2016)
epistemológica, aqui entendida como um exercício de narrativas
e práticas sociais de poder que visam, sobretudo, a
instrumentalização generalizada da existência de um tipo de
humano (colonizado) e a destruição material e simbólica de seus

2 Conversa com Carlos Moore, durante uma entrevista realizada em Dukat, Senegal, em
1976.

150 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


corpos e seus saberes.

PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU


OBJETIVOS)

A centralidade da pesquisa reside em compreender como os


currículos escolares e suas práticas, são ou não atravessados por
padrões de desigualdades sociais, associadas a diferentes
marcadores (renda, raça, gênero/sexualidade, regionalidades e
territorialidades, etc.). Nesse sentido, dá-se especial atenção aos
seguintes objetivos: a) Analisar como interagem e
retroalimentam os padrões de desigualdade (renda, raça, gênero/
sexualidade, regionalidades, etnicidade, etc) com os processos de
aprendizagem e desempenhos na escola dos(as) alunos(as) do 60
ao 90 anos do Ensino Fundamental; b) Apreender como tais
marcadores de vulnerabilização adensam a complexidade do
trabalho educativo, acarretando complexos desafios à
professores(as), gestores (as), alunos(as) e pesquisadores(as) do
campo educacional.
Tais objetivos específicos gestaram os seguintes
questionamentos: a) Como esses fatores das desigualdades
produzidas pelo herança colonial, hétero-patriarcal e econômica
interferem ou não no acesso, no desempenho, na aprendizagem,
na permanência dos e das jovens e adolescentes? b)Dê que modo
nos currículos escolares e suas práticas são construídas ou não,
estratégias didáticas/pedagógicas e/ou ferramentas tecnológicas
voltadas para a superação das desigualdades étnicos-raciais e de
gênero/orientação sexual? Assim, parte-se da hipótese de que, os
marcadores de desigualdades sociais, culturais, econômicos,
quando não percebidos na efetivação do currículo e suas práticas
são fatores que agravam a permanente e o desempenho escolar de
alunos (as).

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 151


METODOLOGIA

A presente pesquisa tomará como orientações


teórico-metodológica as abordagens qualitativa e quantitativa,
com vistas à compreensão-interpretativa de cunho avaliativo e
reaplicação dos métodos, produtos, saberes,
estratégias/tecnologias e experiências que emergem das escolas
públicas da região da Grande Dourados, em particular aquelas que
atendem aos Anos Finais do Ensino Fundamental. Tal abordagem
justifica-se, por se crer, que a mesma contribuirá na construção
de conhecimentos científicos que nasce da premissa de diálogos
interculturais entre saberes científicos e não-científicos,
emergentes na comunidade escolar.
Desse modo, a tradução intercultural, será uma das
ferramentas mobilizadas para tecer a análise do quadro empírico
das experiências, de modo a viabilizar a promoção da escuta
profunda e dialógica entre diferentes sujeitos promovendo a
participação ativa dos/as atores e atrizes sociais envolvidos/as. O
giro epistêmico reside em colocar no epicentro da crítica a falsa
neutralidade científica. A ousadia consistirá em construir uma
investigação libertadora, na qual seja possível as interações entre
os saberes científicos e os não científicos, unindo o epistêmico, o
político e o ontológico, para isso, adotar-se- a o uso de técnicas de
pesquisa e de pressupostos teóricos não
extrativista-epistemicídio. Para isso, adotar-se-á a ideia de uma
“escuta profunda”, nos termos designado por Santos (2010), uma
escuta que compreende que escutar vai além de meramente ouvir,
distingue-se da escuta arrogante eurocêntrica, sexista, racista
que pressupõe a única voz a ser ouvida. Trata, portanto, de uma
escuta que tem como postura, auscultar os múltiplos
silenciamentos e ausências produzidas pela racionalidade do
pensamento único.
Valendo-se dessas reflexões, busca-se a tradução intercultural
entre saberes científicos e os não-científicos e das
multiplicidades culturais que povoam as unidades escolares e os
sujeitos que as abitam, o processo de tradução terá como um dos

152 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


seus pressupostos a razão fronteiriça, uma posição de get
between em que possam emergir as múltiplas
experiências/tecnologias educacionais capturados como terreno
fértil em que se planta ações de emancipação social de atores
sociais, concretos em contextos concretos, tais como (alunos(as);
professores(as); técnicos(as) escolar; agentes de serviços gerais,
comunidade de pais e mães de alunos(as)
Assim, na condição de meta-tecnologias, estão previstos ao
longo da pesquisa a utilização como procedimentos/técnicas de
trabalho de campo:
a) A pesquisa documental- com o propósito de
triangulação de técnicas, propõe-se utilizar a análise
documental/ e dos registros fotográficos ( seguidos de
narrativas a respeito das imagens) como uma forma de
conhecer: a) a matriz organizativa, o histórico e a
contextualização das práticas curriculares; b) conhecer os
processos, métodos, as estratégias, as tecnologias sociais,
os materiais didáticos envolvidos nos processos de ensino
e aprendizagens e nas práticas curriculares.
b) A reunião do Grupo Focal terá os seguintes
encaminhamentos:
b.1. Os grupos deverão conter no mínimo 7 participantes
e no máximo 12. E serão organizadas e distribuídas em
encontros/reuniões, envolvendo grupos de docentes,
administradores, servidores que atuam em diferentes
áreas e setores da unidade escolar; b.2. O grupo focal terá a
duração aproximada de duas horas, em local e horário,
previamente agendados.
b.3. Será preenchido, pelos/as envolvidos/as, um
questionário para obtenção da caracterização dos
participantes antes do início do GF.
b.4. Para mediar o GF teremos um/a moderador/a (a
pesquisadora), um/a observador/a, um/a responsável pela
gravação dos encontros, e uma outra pessoa responsável
pelo registro escrito. A figura do mediador será
fundamental, no sentido de que, o debate entre as/os

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 153


participantes não sofra tanta interferência nem
monopolização da fala, dando asas à criatividade e
evitando os efeitos disciplinares e hierárquicos dos
participantes. As expressões não verbais serão
devidamente anotadas pelo observador.
b.5. A discussão do GF obedecerá a um roteiro, definido
de acordo com os objetivos deste estudo, elaborados pelos
pesquisadores.
B.c. Será observado o compromisso com a preservação
do anonimato dos participantes da pesquisa, assim como
será solicitada autorização para uso da gravação das falas
realizadas nos encontros do GF. Será também solicitada, a
assinatura de uma declaração textual, previamente
redigida pelos pesquisadores, sobre a livre vontade, de
cada pesquisado, em participar e colaborar com esta
pesquisa.
c) Entrevistas em profundidade: Implica na utilização
de entrevista semiestruturada, em profundidade como
forma de triangulação com os procedimentos de
entrevistas focais e pesquisas documentais e observação
participante. A técnica de entrevista individual, em
profundidade, terá como objetivo principal aprofundar nas
questões pertinentes a pesquisa, conhecendo as
percepções e os comportamentos dos sujeitos envolvidos.
d) Observação participante seguidas de Notas de
Campo/ Fotografias. Servirá para que as acadêmicas
tipifiquem a escrita investigação do seu próprio do ponto
de vista, daquilo que se ouve, se vê, experiência, ao tempo
em que, registra as suas ideias, suas estratégias, seus
palpites acerca do fenômeno observado em estudo:
d.1. Os aspectos a serem descritivos nas Notas de Campo:
a) Retratos dos sujeitos ( físico, comportamental,
psicosocial);
d.2. Reconstrução de diálogos- Trata-se de conversas
que decorrem entre os sujeitos como aquilo que os sujeitos
dizem em privado são registrados sem identificação dos

154 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


participes;
d.3. Descrição do espaço físico: espaços escolares, sala de
aula, do edifício ou local que está a observar; d) Relatos de
acontecimentos particulares: as notas incluem registro de
quem esteve envolvido no acontecimento, de que maneira e
qual a natureza da ação; f) d.4. Descrição de atividades:
incluirá descrição detalhada do comportamento, tentando
reproduzir a sequência tanto do comportamento, quanto a
sua sequência e os atores envolvidos;
d.5. O comportamento do observador: em investigação
qualitativa os sujeitos são as pessoas entrevistadas e que se
encontram no meio em que decorre a investigação,
considerando ainda, o escrutínio do próprio observador
(acadêmico envolvido);
d.6. Reflexividade: como frases, parágrafos que
refletem um relato mais pessoal do curso no
questionamento.

Isto foi proposto porque se acreditou na necessidade em se


ultrapassar a exclusão epistêmica e a negação ontológica, como
uma das dimensões cruciais de qualquer pesquisa que se propõem
contribuir com a justiça social e cognitiva.

RESULTADOS E ANÁLISE

Todavia, devido a paralisação da pandemia do COVID-19, sendo


recorrente, o fechamento/bloqueio das escolas, coordenações e
direções, nossos resultados são considerados
inconclusivos/abertos, pois ainda estão em andamento
levantamento empírico de vivências e análise documental que
possam informar aspectos ligados ao fenômeno em estudo.
Ainda que, numa análise em andamento, dos matérias didáticos
pedagógicos que subsidiam as práticas curriculares, em
destaque: os livros de História, Geografia, Artes e Língua
Portuguesa do 6 ao 9 ano, já é possível perceber que mesmo com o
advento da Lei 10639/03, o tema das questões étnicos-raciais

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 155


aparecem como pano de fundo em alguns dos materiais
analizados, contudo carecem em muitas unidades de melhor
problematização sócio-histórico, sem contar que as questões de
gênero ou sexualizadas são poucos vezes abordadas.
O que demonstra que a organização dos saberes curriculares
não é neutra, muito menos os conhecimentos por elas obtidos e as
teorias que lhe subjazem, refletindo nos conhecimentos
expressados e nas respostas aos interesses tanto cognitivos
(epistêmico), quanto sociais, éticos, políticos e culturais.
Revelam a necessidade dos conteúdos a eles vinculares,
problematizarem os efeitos dos confrontos gerados pela
monetarização neoliberal, pela militarização e pela lógica
patriarcal que, uma vez combinados, expressam a face perversa
da reconfiguração do Estado, da sociedade e dos mercados, onde a
misoginia e o racismo enquanto injustiça normalizada como
violência estrutural e simbólica, é central para a manutenção da
estrutura de poder desigual.

CONCLUSÕES (OU CONSIDERAÇÕES FINAIS)

Atenção o princípio da igualdade de oportunidades, da


equidade promotora da mobilidade social através dos processos
de educação formal, implica na necessita de visibilizar os
conhecimentos dos grupos subalternizados outrora ausentes nos
currículos e suas práticas. Enfrentar as ausências na forma de
violência epistemológicas, diz muito a respeito dos objetivos da
presente pesquisa em andamento, tendo em conta que, as
instituições educativas, tanto podem consolidar o
aprofundamento das desigualdades injustas, quanto podem ser
espaços das emergências das lutas emancipatórias
protagonizadas pelos sujeitos outrora colonizados (as).
Na mesma encruzilhada, encontram-se as dimensões social,
política e epistemológica, e a incapacidade, por vezes, da
universidade em desempenhar cabalmente a produção de
conhecimentos de alta cultura-científica úteis à transformação
social, nomeadamente para a formação qualificada do mundo do

156 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


trabalho, à promoção da justiça social, cognitiva e sexual, à
produção de saberes populares não-científicos que expressem as
aspirações daqueles (as) que se encontram em condição de
vulnerabilidade social, econômica e cultural, motivados pelas
classe, raça, etnicidade, gênero e sexualidades.
Assim, ao se observar o potencial emancipatório da Lei
10.639/03 (BRASIL, 2003), que alterou a Lei de Diretrizes e Base da
Educação ao determinar a obrigatoriedade da inclusão nos
currículos oficiais das Redes de Ensino - em todos os níveis e
modalidades de ensino - a obrigatoriedade de presença da
temática “História e Cultura Afro-brasileira e África”, convoca a
todos e todas à transformar as ausências em emergências daquilo
que têm sido produzido como inexistências, silenciamentos e
invisibilidades dos sujeitos coloniais e seus saberes. As políticas
das ações afirmativas, em seu caráter epistêmico, permitem que
grupos sociais subalternizados/as, vulnerabilizados/as e
oprimidos/as representem o mundo em seus próprios termos, de
acordo com suas narrativas, experiências e aspirações.

Informações das autoras


Nome: Claudia Cristina Ferreira Carvalho
Afiliação institucional: Dra. Profa. Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade
Federal da Grande Dourados, orientadora de Iniciação Cientifica- PROLIN
E-mail: claudiacarvalho@ufgd.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9521-2759
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/8982560843745120

Nome: Renata Figueiredo Silva


Afiliação institucional: Acadêmica de Pedagogia, Universidade Federal da Grande
Dourados, Bolsista de Iniciação Cientifica- PROLIN
E-mail: rfigueiredosilva@hotmail.com
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3089785123426262

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 157


REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394


[...] para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira"
[...]. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 10 jan. 2003.
PL 259/1999.

CASTRO-GOMEZ, Santiago. Ciências Sociais, violência


epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In: LANDER,
Edgardo. A Colonialidade do saber: eurocêntrismo e ciências
sociais, perspectiva Latino-americano. Caracas: IESALC, 2000. p.
87-95.

CRENSHAW, Kimberl. Documento para o encontro de


especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao
Gênero. Estudos Feministas, University of California Los,
Angeles, Ano 10, 1 semestre, 2002. p. 17-188.

DIOP, C. A. The African Origin of Civilization: myth or reality.


Chicago: Lawrence Hill, 1974.

DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda,


1999.

FANON, F. Condenados da terra. Coimbra: Livraria Letra Livre,


2015.

LUGONES, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa, Bogota, n.


9, p. 73-101, jul.-dic. 2008.

HODGEN, M. T. Early Anthropology in the Sixteenth and


Seventeenth Centuries. Filadélfia: University of Pennsylvania
Press.

MALDONADO-TORRES, Nelson. A topologia do ser e a geopolítica


do conhecimento: modernidade, império e colonialidade. In
SANTOS, Boaventura de Sousa & MENESES, Maria Paula,
Epistemologia do Sul. Coimbra: Almedina 2009.

158 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.

MOORE. C. Racismo & Sociedade: Novas bases epistemológicas


para entender o racismo. Belo Horizonte: Nandyala, 2012.

QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In:


SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. Coimbra:
Almedina, 2009.

SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas


globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos, São Paulo, n.
79, p. 71-94, nov. 2007.

______. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da


experiência. São Paulo: Cortez, 2013.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 159


PRESENCIAS Y AUSENCIAS EPISTÉMICAS
Currículo, pensamiento afrocolombiano
y formación docente intercultural

Elizabeth Castillo Guzmán

RESUMEN

Lo que hoy reconocemos como formación docente intercultural


en Colombia deviene de una larga travesía política del
movimiento indígena y de las organizaciones de comunidades
negras, quienes desde diferentes orillas de lucha impulsaron las
condiciones jurídicas y epistémicas para la emergencia de la
etnoeducación universitaria (Castillo, 2015). Se trata de un
conjunto de programas de educación superior encaminados a
formar maestras y maestros en el nivel superior, para enfrentar
las demandas educativas de las comunidades y poblaciones
reconocidas como étnicas (indígenas, afrodescendientes,
raizales, palenqueras y rom). Este artículo retoma esta
experiencia de 25 años para analizar las ausencias y/o presencias
del pensamiento afrocolombiano en cinco planes de estudio de
programas de etnoeducación universitaria y problematizar el
enfoque de interculturalidad que ha prevalecido en la formación
docente del país, así como el fenómeno de la pedagogía de las
ausencias que caracteriza el modelo racista bajo el cual fueron
formados los y las docentes del país antes de la reforma
multicultural de los años noventa del siglo pasado, y
recientemente, el racismo epistémico que ha operado en los
modelo de formación intercultural, en los cuales el componente
referido al pensamiento, la historia y las culturas de la
afrocolombianidad estuvo por varias décadas ausente de los
planes de estudio de estos programas universitarios

160 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Pedagogía de las ausencias y racismo en la formación
docente colombiana
La Sociología de las Ausencias es un procedimiento
transgresivo,
una sociología insurgente para intentar mostrar
que lo que no existe
es producido activamente como no existente,
como una alternativa no creíble,
como una alternativa descartable, invisible a la
realidad hegemónica del mundo
(Boaventura de Sousa Santos, 2006)

Desde finales del siglo XIX, cuando surge como política


educativa republicana, la formación de los maestros en Colombia
ha sido potestad de las escuelas normales superiores y las
facultades de educación de las universidades. Unas y otras han
sido a lo largo de la historia educativa nacional¹, las instituciones
autorizadas para orientar, investigar, evaluar, reformar y
direccionar la formación docente y la pedagogía como disciplina
fundante del oficio. Luego durante buena parte del siglo XX, la
formación inicial del docente se entendió como su escolarización
temprana con fines magisteriales. Para este propósito, las
escuelas normales superiores y sus internados fungieron como el
molde para cultivar la vocación magisterial. Así se configuró al
paso del tranvía y la modernidad, la figura del maestro como un
ser casi religioso, cuyo noble oficio implicaba votos de pobreza.
Nuestra literatura registra epopeyas de señoritas normalistas
que envejecieron en escuelas rurales a las que nunca llego la
electricidad, o de maestros que defendieron sus pizarras y sus
libros del fuego y la furia de la violencia bipartidista de los años
cincuenta.
A las escuelas de los años treinta del siglo XX llegaron hombres

1 Álvarez (1991), establece tres momentos legislativos para enmarcar la historia de las
políticas de formación docente en Colombia. El primero corresponde al período
republicano y su Decreto Orgánico de Instrucción Pública en 1870, el segundo se ubica
con relación a la promulgación de la Ley Orgánica de Educación en 1903, y el tercero
corresponde a la expedición de la Ley General de Educación de 1994.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 161


y mujeres iluminados por la fe en la educación, convencidos de la
trascendencia de su oficio y con la “Alegría de leer” como texto
perenne. Ochenta años después vimos arribar al ejercicio de la
enseñanza escolar los ejércitos de profesionales universitarios,
seleccionados bajo parámetros psicotécnicos y duras pruebas de
conocimiento, que ahora con la ciencia en la mano ponían en
crisis el acumulado de la pedagogía, las escuelas normales y las
licenciaturas. Ellas y ellos menos ilusionados que sus
antecesores, ocuparon un lugar viejo y contemporáneo a la vez,
que la política educativa ha moldeado, destruido y reinventado,
siempre con la imposibilidad de resolver plenamente la fórmula
que produce buenos maestros a bajo costo.
El surgimiento del Movimiento Pedagógico Nacional en los
años ochenta produjo una transformación en las maneras de
comprender la formación y el status del maestro colombiano. En
1982 y bajo la dirección de la Federación Colombiana de
Educadores (Fecode), tiene lugar un movimiento gremial, político
e intelectual de los maestros y las maestras de toda la nación
colombiana, que produjo un ambiente de debate y reflexión en
torno a la pedagogía y la educación como ámbitos de saber y el
oficio docente. Este proceso produjo importantes episodios como
la creación de la revista Educación y Cultura, la realización de
congresos pedagógicos y la definición de una plataforma de la
educación pública que fue materia prima para la constituyente
educativa en 1991 y la posterior fundamentación de la Ley General
de Educación en 1994 (CEID-FECODE, 2007: 33). Añado a este
balance, el haber logrado visibilizar al maestro y la maestra como
sujetos políticos en la arena de los movimientos sociales de
finales del siglo XX.
La historia de la formación docente en Colombia contiene
importantes tradiciones pedagógicas (Saldarriaga, 2004) que
dieron lugar a saberes, instituciones y prácticas respecto del
oficio de la enseñanza. A finales del siglo XX tuvo lugar una clara
disputa entre dos formas de pensar la educación, la pedagogía y el
oficio de los maestros. Dados los mandatos neoliberales y
empeños del Banco Mundial en intervenir sobre nuestras

162 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


políticas educativas, la batalla terminó venciendo la vieja idea del
profesor como sujeto de saber pedagógico y se impuso a punta de
concursos, el paradigma del profesional que aprende a posteriori
la pedagogía como complemento de sus prácticas.
En todo caso me interesa demostrar que, en todos los
momentos transitados en esta moderna invención del maestro, la
idea de una nación católica y castellanohablante gobernó la visión
sobre los niños, sus familias y la función de la escuela. Escasas
referencias estereotipadas respecto de lo indígena o lo campesino
o lo negro, así como la invisibilidad y/o estereotipia hacia
cualquier otra cultura que no fuera la del mundo andino, urbano y
mestizo, es un rasgo común en los contenidos propios del
currículo y la cultura escolar que se instaló en diferentes regiones
a lo largo y ancho del país.
La formación de maestros y maestras en Colombia ha estado
marcada y afectada por una visión monocultural sobre la
educación, la nación y sus poblaciones, y en sentido, moldeó una
idea única sobre el ser maestro y la forma escuela. Sólo con el paso
de los años, las luchas sociales y las investigaciones, un evento
como la Expedición Pedagógica Nacional hará notar una verdad
maravillosamente paradójica: Colombia es pluricultural incluso
en el modo de educar y de escolarizar, y por tanto debería dar
cuenta de ello en sus programas de formación docente a nivel de
las escuelas normales, los pregrados y los posgrados.
El episodio de los “Etnoeducadores” a partir de 1995 cambiará
esta trayectoria y dará lugar a un nuevo modelo de formación de
educadores, ahora para diversidad étnica, lingüística y cultural
recién reconocida por la Constitución de 1991. Sin embargo, este
acontecimiento no ha contado con resonancia ni reconocimiento
al interior del sistema que regula, investiga y teoriza sobre la
formación de docente en Colombia. Por el contrario, el “no
evento” es el rasgo que caracteriza este trasegar de dos décadas
que ha tenido lugar en seis (6) universidades de provincia y
lejanas al centro académico y administrativo bogotano.
Vendrán los vientos reformistas de los años ochenta, la
democracia plena en las geografías de anteriores dictaduras y la

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 163


entrada triunfal de un nuevo relato sobre lo nacional, esta vez en
tono de pluralismos religiosos, culturales y políticos. Con la
Constitución de 1991 se crean nuevos referentes para pensar la
educación como un derecho fundamental en una nación
pluriétnica. Es con este marco legislativo que se formula la ley de
educación de 1994 en la cual se establece que la educación para los
grupos étnicos es la Etnoeducación. Posteriormente, como la han
planteado Castillo y Caicedo (2007), con la promulgación del
decreto 804 en 1995, se establece la interculturalidad en el corpus
de la normativa educativa colombiana. Con esta reforma cobra
vida la noción de etnoeducación como parte del servicio
educativo que se ofrece en comunidades y territorios de grupos
étnicos.
De esta forma los logros en materia jurídica llegaron al máximo
nivel entre 1993 y 1998 con la promulgación de tres normas que al
menos en su formulación, planteaban una serie reforma a la
educación nacional:

Norma Definiciones en educación

Ley 70 de 1993 El derecho de las comunidades negras a una educación de


acuerdo a su cultura y tradiciones.

Ley 115 de 1994 La existencia de la etnoeducación como la educación para


grupos étnicos intercultural, comunitaria, bilingüe,
integral y participativa.

Decreto 804 de 1994 Reglamentación de la implementación administrativa,


pedagógica y docente de la etnoeducación para
territorios de grupos étnicos.

Decreto 1122 de 1998 La inclusión de los estudios afrocolombianos en el área de


ciencias sociales bajo la modalidad de Cátedra de
obligatorio cumplimiento.

En este momento se produce por primera vez en la historia


legislativa colombiana un cambio en la manera de concebir la
educación “nacional” y un ambiente de optimismo entre los
sectores sociales y las organizaciones étnicas. Sin embrago los
proyectos globales impusieron sus reglas y acomodaron el
“derecho a la educación” al modelo de tercerización que hoy tiene

164 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


en crisis la educación pública. Para bordear este punto retomo
algunos planteamientos del 2008 sobre este asunto de las normas
educativas multiculturales y los derechos de los grupos étnicos
La vieja disputa por transformar la escuela y su conocimiento
oficial heredado desde la Colonia no logra resolverse, ni siquiera
contando con el reconocimiento constitucional que se les otorga a
los grupos étnicos para orientar y administrar sus procesos
educativos. Al contrario, en la actualidad son cada vez más
restringidas las posibilidades concretas de autonomía educativa
para los pueblos y sus comunidades, pues son las políticas de
mejoramiento de la calidad y la ampliación de cobertura las que
definen lo que se debe enseñar y lo que se debe saber hacer para
asumir la condición multicultural. Los principios rectores de las
acciones institucionales en materia educativa, en muchos de los
territorios de los grupos étnicos y en el sistema educativo que
atiende a un número importante de esta población en ciudades y
municipios, están supeditados a este marco de las políticas
educativas nacionales, pues su carácter etnoeducativo aún está
por reconocerse. Tal como lo sugiere Kymlicka, la etnoeducación
se enfrenta al dilema de un reconocimiento discursivo hacia fuera
y de su negación concreta en el ámbito de las políticas educativas
de la nación multicultural (Castillo, 2008:25).

“Cuando alguien, con la autoridad de un maestro,


describe el mundo y tú no estás en él,
hay un momento de desequilibrio psíquico,
como si te miraras en el espejo y no vieras nada”
(Adriene Rich, Invisibility in Academe)

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 165


UNA EDUCACIÓN NACIONAL, UNA IDENTIDAD
NACIONAL
La creencia en la degeneración física, intelectual y
moral de las masas llevó a la formulación de una
Escuela Defensiva que a partir de prácticas de
higienización de la población apuntaba a la
moralización y vigorización de la raza (Sáenz,
2010:112)

Durante la primera etapa del siglo XX, los procesos de


escolarización de la población apuntaban de manera estratégica a
la construcción de una identidad nacional². Esta idea de lo
“nacional” se concibió bajo parámetros raciales, culturales y de
clase hecho por el cual no todos los habitantes fueron incluidos en
esta contabilidad del reconocimiento, como en el caso de indios y
negros. En ese sentido la escuela moderna actúo como plataforma
para el desarrollo del proyecto de una nación mestiza, y promovió
a través de sus políticas del conocimiento un modelo de
inferiorización de unas poblaciones y de superioridad de otras.
Como lo ha resaltado Herrera (2003) en sus estudios sobre los
manuales escolares de ciencias sociales para el período de 1900 a
1950, estos materiales hicieron con sus narrativas e iconografías
de la teoría de la superioridad de la raza, un saber escolarizado
según la cual “lo blanco europeo se encuentra por encima de los
mestizos y éstos, a su vez, en un nivel superior al que ocupan los
indígenas y los negros”, es decir una teoría del “hombre
nacional”.

Estas imágenes y representaciones de la diferencia


cultural, según las cuales lo indígena y lo
afrodescendiente, se asocia con lo salvaje, lo
periférico y lo atrasado, tendrán un enorme peso
en las políticas y normatividades educativas del
siglo XX, ocupadas fundamentalmente de
consolidar un proyecto nacional, monocultural. De
esta manera, los planes educativos del siglo XX

2 Álvarez (2007), Herrera (2003) y Sáenz (1992).

166 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


dejaron por fuera a las poblaciones étnicas, y se
concentraron en expandir un sistema educativo
nacional oficial directamente regulado por el
Ministerio de Educación Nacional, e interesado en
promover un proyecto de cultura nacional. Por
esta razón, las políticas educativas dejaron el
asunto de las poblaciones negras e indígenas en
manos de la iglesia docente, logrando que con el
tiempo fuese legitima la discriminación y
subordinación de la alteridad, como enfoque
educativo (Castillo y Caicedo 2008: 16).

Este proceso de escolarización sirvió como medio para


configurar una identidad nacional prescrita, es decir concebida
como algo que se moldea en el pueblo, como un sentimiento que se
siembra en el alma de las gentes. Esta identidad nacional enaltece
ciertos ideales de persona, ciertos valores y creencias, y de otra
parte, excluye y desvaloriza otros. Es por esta razón que esa
identidad nacional gravitó en torno a la cultura letrada, católica y
mestiza del mundo de las ciudades y las culturas del progreso
-fundamentalmente a las del mundo andino-. Lo “nacional” se
equiparó a una serie de representaciones que contenían culturas,
geografías y poblaciones claramente diferenciadas y
jerarquizadas. Como lo ha mostrado Álvarez, en su análisis sobre
este período:

[…] desde 1930 el asunto tuvo que ver más


claramente con la necesidad de formar una
conciencia nacional, lo cual exigía una estrategia
mucho más compleja, que pasó por la escuela, pero
fue mucho más allá de ella. La mirada se centró
entonces en el pueblo, en el alma nacional, en la
cultura popular, como una condición para
movilizar todos los recursos posibles hacia la
consolidación del Estado-nación, lo cual suponía
también una economía nacional. La población se
convirtió desde entonces en un factor estratégico
que debía ser incorporada a los circuitos
económicos que la reforma nacionalista iba a crear
(Álvarez 2010: 115).

Este modelo de educación nacional se mantuvo vigente hasta

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 167


finales del siglo XX, y a pesar de las reformas implantadas
durante las décadas siguientes, lo sustancial del enfoque se
expresaba de manera concreta en los manuales escolares, los
contenidos de los planes de estudio, las formas de cultura escolar
vigentes y los propios programas de formación docente de
Escuelas Normales y Universidades. Sin lugar a dudas podemos
afirmar que la idea de una sociedad diversa y diferenciada
cultural o racialmente no fue objeto de ninguno de los modelos
que sirvieron para solidificar el sistema escolar colombiano. Muy
por el contrario, con el paso del tiempo se fueron naturalizando
en el mundo de los saberes escolares, algunos estereotipos sobre
las poblaciones no nacionales como es el caso de indígenas,
comunidades negras y habitantes de los llamados territorios
nacionales³.
En ese sentido la ausencia de referentes para pensar la
educación desde un punto de vista del pluralismo cultural o la
diversidad estuvieron ausentes hasta 1991 cuando la Constitución
Política reconoció el carácter multiétnico de la nación
colombiana y posteriormente se promulgó una ley general de
educación que incluyó por primera vez la noción de
interculturalidad en 1994, como veremos más adelante.
Con la tesis la educación intercultural es educación indígena
podemos resumir el proceso gestado a partir de los años 70 del
siglo pasado. En Colombia educación intercultural hace su arribo
por cuenta de dos acontecimientos, en primer lugar, los proyectos
políticos de las organizaciones indígenas, y en segundo lugar por
la incidencia del grupo de Etnoeducación del Ministerio de
Educación Nacional durante el período 1982-1992. En el plano de
las luchas de los pueblos indígenas en Colombia, desde la década
de los años setenta estos habían planteado una radical propuesta
de creación de escuelas propias y formación de maestros
bilingües. Durante la primera década de existencia del Consejo
Regional Indígena del Cauca (CRIC), movimiento fundador de

3 Las investigaciones de Castillo (2010), Mena (2006) y Soler (2009), evidencian que los
saberes escolares promovidos a través de los textos escolares producen una
invisibilización y/o estereotipación de lo afrodescendiente y lo indígena.

168 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


estas luchas en Colombia, los fenómenos de represión política que
caracterizaron este período de la historia, hicieron de la
recuperación de las tierras y la defensa de los derechos humanos
la mayor tarea de líderes y comunidades.
Hacia mediados de los años ochenta tiene lugar en Colombia el
Primer Seminario de Etnoeducación auspiciado por el Ministerio
de Educación Nacional, es en este contexto en el cual se expone
oficialmente el enfoque de Etnoeducación, marco bajo el cual será
definido a mediados de los años noventa, el concepto de
interculturalidad como un rasgo propio de este modelo de
educación indígena.

La educación (no sólo está) ha sido impuesta a las


comunidades indígenas, sin tener en cuenta sus
características, intereses y necesidades, y sin
contar con su participación.
En este sentido, los programas educativos no han
sido más que instrumentos de dominación y
conservación de las estructuras socio-políticas,
en detrimento de las mismas comunidades y de su
auto-transformación. Como una respuesta a esta
situación, el grupo de trabajo del Ministerio de
Educación acogió al concepto de
ETNODESARROLLO, presentado por Bonfil Batalla
en la reunión de expertos sobre etnodesarrollo y
etnocidio en América Latina, organizada por
Unesco en San José de Costa Rica, en 1981.
De acuerdo con esta concepción, surge una
alternativa en el campo educativo que es la
ETNOEDUCACION, entendida como “un proceso
social permanente, que consiste en la adquisición
de conocimientos y valores, y en el desarrollo de
habilidades y destrezas, según las necesidades,
intereses y aspiraciones de las mismas
comunidades, que las capaciten para su
autodeterminación” (Bodnar, 1985: 79-83)

Estos estudios resaltan la circulación de representaciones estereotipadas que circulan


en estos materiales de enseñanza, y que, en su condición de saberes oficiales, mantienen
imágenes fijas y reducidas de la gente indígena, negra, palenquera, raizal y/o
afrocolombiana.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 169


Pocos años después con la Constitución de 1991 se crean nuevos
referentes para pensar la educación como un derecho
fundamental en una nación pluriétnica. Es con este marco
legislativo que se formula la ley de educación de 1994 en la cual se
establece que la educación para los grupos étnicos es la
Etnoeducación. Posteriormente, como la han planteado Castillo y
Caicedo (2007), con la promulgación del decreto 804 en 1995, se
establece la interculturalidad en el corpus de la normativa
educativa colombiana. Con esta reforma cobra vida la noción de
etnoeducación como parte del servicio educativo que se ofrece en
comunidades y territorios de grupos étnicos. La etnoeducación
empieza a incursionar en la arena de las políticas educativas
colombianas y de su brazo surgirá entonces de modo inédito el
concepto de interculturalidad en las redacciones de decretos,
resoluciones, directivas ministeriales y memorias de eventos del
Ministerio de Educación Nacional. Esta idea de la
interculturalidad se define como:

[...] la capacidad de conocer la cultura propia y otras


culturas que interactúan y se enriquecen de
manera dinámica y recíproca, contribuyendo a
plasmar en la realidad social una coexistencia en
igualdad de condiciones y respeto mutuo. Así las
cosas, la interculturalidad en Colombia ha estado
ligada a la Etnoeducación como política educativa
estatal. Aunque pareciera evidente que la
Etnoeducación encarna un proyecto intercultural
por su condición de “educar en la diferencia,” esto
no es del todo cierto, debido a que las formas de
apropiación y las construcciones de sentido de lo
que se entiende por Etnoeducación recogen las
trayectorias históricas de organizaciones e
individuos posicionados en diferentes lugares
políticos, geográficos, ideológicos e
institucionales (Castillo y Caicedo 2007:32).

En la normativa producida a partir de 1994 la interculturalidad


quedará localizada en el terreno de la Etnoeducación de forma
casi definitiva. Poco a poco la idea de la interculturalidad se
configura en su descripción como un rasgo constitutivo de las

170 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


educaciones étnicas (indígena, afrocolombiana, palenquera,
raizal y rom) y básicamente en dos dimensiones: 1. Como
capacidad de los sujetos étnicos para interactuar con otras
culturas; 2. Como cualidad de los sujetos y los saberes
etnoeducativos (Castillo y Caicedo 2007:29). De esta manera la
interculturalidad esencializa una mirada sobre las personas
portadoras de la diferencia étnica y cultural, es decir, los
interculturales son los Otros, en tanto sujetos marcados por una
condición de diferencia cultural, racial y/o étnica.

LA INTERCULTURALIDAD EN EL CURRÍCULO. LA
CÁTEDRA DE ESTUDIOS AFROCOLOMBIANOS

Durante el proceso de la reforma constitucional de 1991 tuvo


lugar un evento que debe ser mencionado en este apartado, pues
su naturaleza política sirve para comprender el tramite
diferenciado que ha operado en materia pública respecto a los
llamados grupos étnicos, bien sean indígenas o
afrodescendientes en cada caso. Al terminar su período de
existencia, la asamblea nacional constituyente de 1991 tuvo que
resolver algunos aspectos que quedaron sin legislar al interior de
la corporación. Uno de estos temas fue el referido al
reconocimiento de las comunidades negras como etnias de la
nación colombiana. Por esta razón se expidió un artículo
transitorio que luego en su cumplimiento dio origen a la ley 70 de
1993 por medio de la cual se reconocen los derechos de estas
poblaciones. En el marco de esta norma y como resultado de viejas
luchas antirracistas por parte de organizaciones e intelectuales
negros, se promovió la creación de la Cátedra de Estudios
Afrocolombianos (CEA), como un mecanismo para erradicar el
racismo y la invisibilidad producidos en el sistema educativo
nacional⁴.

4 Esta normativa, derivada de la reglamentación de la Ley 70 o de Comunidades Negras


de 1993, establece el carácter obligatorio de la CEA en todos los establecimientos
educativos de la educación básica y media en Colombia y determina que su ámbito de
aplicación opera en el grupo de “áreas obligatorias y fundamentales establecidas en el
artículo 23º de la Ley 115 de 1994, correspondiente a Ciencias sociales, historia,

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 171


La CEA surge como un mecanismo curricular de “saberes
escolares” basados en la historia y las culturas afrodescendientes
en Colombia con el fin de que todos los estudiantes,
independientemente de su condición racial, cultural y/o étnica
conozcan estos legados. Para lograr tal fin en 1998 se expidió en
decreto 1122 por medio del cual se determina que el sistema
escolar de la básica y la media debe incluir en el área de las
ciencias sociales, los contenidos de la CEA. Aunque el país y su
magisterio no estaba formado para esta nueva tarea pedagógica,
su emergencia en el conjunto de las políticas de conocimiento
oficial es muy importante y recoge las viejas propuestas
planteadas en 1971 por don Manuel Zapata Olivella, quien, en el
contexto del primer Congreso de las Culturas Negras de América
celebrado en Cali, propuso:

[…] que oficialmente se incorpore la enseñanza de


la Historia de África en la escuela primaria y
secundaria, a la par de que se exija por parte de los
profesores un mayor análisis del significado de la
presencia negra en nuestra comunidad a través del
proceso histórico desde su arribo e integración en
la vida económica, social y cultural” (Zapata
Olivella 1988, p. 19-21).

El surgimiento de la Cátedra de Estudios Afrocolombianos es


un hecho inédito en el continente para el momento de su
aparición y reviste especial importancia en este debate sobre la
interculturalidad en la educación colombiana, por tratarse de la
primera incidencia en materia curricular de corte “intercultural”
que promueve un movimiento étnico, en este caso de las
organizaciones afrocolombianas. Si bien es cierto que la
implementación de la CEA ha sufrido un lento proceso de
marginalidad frente a las políticas neoliberales de competencias

geografía, constitución política y democracia” (Decreto 1122, Artículo 2º). Igualmente,


en 2001, el Ministerio de Educación Nacional publica un documento de lineamientos
curriculares para la CEA, el cual es resultado del trabajo de un equipo de líderes
afrocolombianos, quienes diseñan una propuesta conceptual y pedagógica para este
nuevo campo del saber escolar (Ministerio de Educación Nacional, Decreto 1122 de 1998.
Serie Lineamientos Curriculares. Cátedra de Estudios Afrocolombianos).

172 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


y pruebas censales, la insistencia de los activistas y del
movimiento afrodescendiente en Colombia durante estas
décadas ha permitido algunos logros simbólicamente
destacables, sobre todo en ciudades como Bogotá, donde día a día
crece y se tensiona aún más la vida en aulas multiculturales.
Igualmente, como lo ha señalado Caicedo (2011) este proceso hizo
posible, entre otras cosas, el surgimiento de las pedagogías de la
afrocolombianidad en escenarios donde nunca antes habría sido
posible dar lugar y tramite curricular a ciertos saberes
provenientes de la tradición africana en Colombia.

La inserción de la CEA en el terreno de las políticas educativas


se diferencia del terreno de la Etnoeducación en la medida que
esta se plantea como un horizonte de conocimientos para todo el
conjunto de la población escolar colombiana, y no solo para los
sujetos de la diferencia étnica, es decir de los y las
afrodescendientes.

LA ETNOEDUCACIÓN COMO INTERCULTURALIDAD

La trayectoria de la Etnoeducación como proyecto


étnico-político, y como política educativa está asociada a tres
fenómenos que de manera alterna han definido su emergencia, y
su respectivo desarrollo:
El surgimiento de un proyecto educativo étnico, propuesto y
agenciado inicialmente por el movimiento indígena colombiano
en el marco de su lucha política por el territorio, el
reconocimiento cultural y la autonomía.
Los procesos de movilización, presión y negociación por
parte del movimiento indígena colombiano para lograr el
reconocimiento jurídico y político de su proyecto educativo, por
parte del Estado.
La transformación de las lógicas de comprensión y
representación de lo indígena y posteriormente, lo étnico en el
terreno de las políticas educativas.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 173


La noción de etnoeducación que conocemos hoy, es resultado
de un complejo recorrido, que ha sufrido cambios en su propia
delimitación como política educativa, como proyecto
étnico-político y como modelo pedagógico. En ese sentido,
la noción de etnoeducación resulta de un
desplazamiento y apropiación al terreno educativo
del concepto de etnodesarrollo propuesto por el
antropólogo mexicano Bonfil Batalla en 1982.
Desde este enfoque, se le atribuye centralidad al
concepto de autonomía, entendida como la
capacidad de decisión que tienen los grupos
étnicos respecto a sus recursos culturales (Castillo
y Rojas, 2004:76).

En este sentido, el abordaje en el terreno de las políticas


educativas, ha tenido la tendencia a indigenizar la noción de
Etnoeducación, señalando con esto cierta reducción del concepto,
y generando con ello tensiones en relación con el reconocimiento
del conjunto de grupos étnicos en Colombia. Es de anotar, que la
dinámica organizativa de las poblaciones afrocolombianas
visibilizada a finales de los años ochenta, contribuye a la
ampliación del concepto de Etnoeducación. De esta forma, el
reconocimiento étnico de las comunidades afrocolombianas y sus
derechos en materia educativa, se ha materializado en el decreto
804 de 1995, y en la formulación de los lineamientos de la Cátedra
de Estudios Afrocolombianos como un proyecto para el conjunto
de la población Colombiana, por medio del decreto 1122 de 1998.
Con un marco jurídico e institucional básico, la Etnoeducación
surge entonces como un planteamiento central para enfrentar en
el terreno educativo, los principios constitucionales referidos a la
naturaleza multicultural de la nación colombiana. Es así, como
las experiencias acumuladas en el campo de la educación
indígena, y la educación afrocolombiana fundamentalmente,
encuentran en el marco de política educativa, un escenario para la
puesta en práctica de la Interculturalidad, como principio central
de esta política que asume la posibilidad de educar de acuerdo a
las culturas locales (indígenas y afrocolombianas) y en diálogo

174 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


con la cultura global.
Se requiere entonces de un nuevo tipo de maestr@ capaz de
movilizar pedagógicamente la interculturalidad como una nueva
forma de relacionamiento y tramite de la diversidad étnica y
cultural en el mundo escolar.

LA ETNOEDUCACIÓN UNIVERSITARIA EN COLOMBIA

En Colombia contamos actualmente con cinco programas


universitarios ocupados de la formación y la investigación en
etnoeducación. Se trata de una población cercana a los 2500
estudiantes, localizados desde la Guajira hasta el Amazonas.
Somos cinco universidades publicas y dos derivadas, las
entidades responsables de las Licenciaturas en Etnoeducación
forjadas hacia 1995. Para iniciar esta reflexión es necesario dar
cuenta de la génesis de la etnoeducación universitaria, pues este
campo realmente proviene de las luchas étnicas y la movilización
social promovida por un movimiento pedagógico de carácter
étnico, que desde el movimiento indígena colombiano, lograría
en el mediano y largo plazo su propia reforma en la política
educativa nacional. Esta emergencia de un proyecto de educación
indígena va a determinar el surgimiento de una lógica distinta en
la construcción normativa y técnica por parte del Estado, pues las
demandas agenciadas desde las organizaciones sociales
plantearon al sistema educativo nacional una serie de exigencias
y retos que gradualmente afectaron la base de posteriores
reformas.
El surgimiento y puesta en marcha de las licenciaturas en
Etnoeducación, fue un proceso que estuvo marcado por dos tipos
de procesos, uno proveniente de las propias dinámicas en la lucha
por otras educaciones emprendida desde los movimientos
indígenas, que llamaremos político; y uno segundo, proveniente
de los cambios suscitados en la política educativa colombiana,
que para este caso se localizan en dos ejes, la filosofía contenida
en el decreto 804, y el enfoque de calidad académica y pertinencia
propuesto en el decreto 272 y los lineamientos rectores de la

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 175


acreditación previa, que denominaremos, institucional5.
El origen de las licenciaturas en etnoeducación surgidas a
finales de los años noventa está fuertemente asociado a la
experiencia previa que se había adelantado en el marco de los
procesos de profesionalización de los maestr@s indígenas
durante la década de los ochenta, y que habría de ser la
“impronta” conceptual y pedagógica con la que se formularían
los planes de estudio universitarios.
La profesionalización resulta de una demanda concreta del
movimiento indígena en términos de la cualificación de quienes
por cuenta del propio proceso organizativo y comunitario habían
asumido ser formadores de los niños y niñas de sus comunidades,
en la búsqueda de una escuela distinta a la oficial, y en la finalidad
de fortalecer a través de la educación escolarizada, la identidad y
la cultura indígena fundamentalmente6. El “hito de la
profesionalización” consistió en buena medida, en un proceso de
legitimación de l@s maestr@s indígenas, provenientes no del
mundo académico, sino de la experiencia en el movimiento
indígena, y su proyecto educativo que para entonces ya contaba
con la existencia de escuelas propias, promovidas y
administradas por las propias comunidade7 .
De esta forma, al finalizar el siglo XX el país contaba con un
magisterio indígena resultante de las experiencias formativas
agenciadas por las organizaciones desde la década de los setenta,
y los procesos de capacitación desarrollados en el marco de la
concertación con el Ministerio de Educación Nacional.

5 Es de señalar que los procesos de Acreditación Previa de los programas formadores de


formadores, marcan un hito en la redefinición académica, pedagógica e institucional en
la formación de los docentes como profesionales de la educación.
6 De esta manera en 1986 se expide por el Ministerio de Educación Nacional la
Resolución 9549 con la cual se crea un sistema especial de profesionalización para
maestr@s que laboran en comunidades indígenas dirigido por los Centros
Experimentales Piloto. Como ya se mencionó, la estrategia de la profesionalización
surge con el propósito de cualificar la experiencia de quienes se venían desempeñando
en esta función desde la década de los setenta y no contaban con el título de normalistas
o bachilleres pedagógicos.
7 En 1996, como resultado de las propuestas y exigencia de las organizaciones
indígenas, ya se había promovido 50 experiencias de profesionalización de maestros
indígenas realizadas en 18 departamentos, con aproximadamente 40 etnias.

176 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Estos procesos de profesionalización promovidos por las
organizaciones indígenas en regiones como el departamento del
Cauca (8), asociaron de manera importante a las Universidades y
las Normales en su desarrollo. De esta manera, surgió a la par con
la profesionalización, una especie de “etnización” al propio
interior de la Universidades participantes en estas experiencias.
Este fenómeno se expresaba en parte en la afectación conceptual
y política de profesores e investigadores universitarios. En este
sentido, la sensibilización-politización lograda al interior de las
universidades se constituiría en una condición esencial para los
procesos que hacia mediados de la década de los noventa se
promoverían, aún en la adversidad de una cultura universitaria
poco dispuesta a flexibilizar sus esquemas administrativos y de
formación académica. De esta manera, los procesos de
profesionalización abrieron un espacio importante para
replantear la formación de docentes en ejercicio, provenientes de
contextos indígenas, y con unas necesidades de formación muy
particulares en términos de modalidad, orientación curricular y
enfoques metodológicos.
Un segundo proceso que influyó en la emergencia de las
licenciaturas, como ya lo mencionamos, es el de las reformas de
orden institucional de la educación colombiana. De una parte, el
decreto 804 expedido en 1995 retoma el planteamiento que se
formula en la ley 115 de 1994, define la existencia de la
etnoeducación como un campo específico del servicio cuya
finalidad es “afianzar los procesos de identidad, conocimiento,
socialización protección y uso de las lenguas vernáculas,
formación docente e investigación en todos los ámbitos de la
cultura”. De esta manera, se determinará que la Etnoeducación
“hace parte del servicio educativo y se sustenta en un
compromiso de elaboración colectiva, donde los distintos
miembros de la comunidad en general intercambian saberes y
vivencias con miras a mantener, recrear y desarrollar un proyecto
global de vida de acuerdo con su cultura, su lengua, sus
tradiciones y sus fueros propios y autóctonos (decreto 804).

8 Concretamente la experiencia del Consejo Regional Indígena del Cauca CRIC

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 177


A partir del Decreto 804 se establecen tres dimensiones en
relación con la aplicación de sus postulados:
1. El derecho de los grupos étnicos en el direccionamiento y
orientación de sus procesos educativos en el contexto de las
entidades territoriales donde se encuentran, y en
concertación con sus formas de organización y gobierno
reconocidas por el Estado.
2. El deber de las entidades territoriales con presencia de
población étnica de asumir en sus planes de desarrollo
educativo, la puesta en marcha de programas etnoeducativos.
3. La formación de los etnoeducadores podrá ser asumida por
las instituciones de educación superior, y “de conformidad
con lo dispuesto en al artículo 113 de la ley 115 de 1994, el
Consejo Nacional de Educación Superior, CESU, y el Ministerio
de Educación Nacional respectivamente, fijarán los criterios
para la acreditación de programas de licenciatura en
Etnoeducación o de normalista superior en Etnoeducación”.

A la par, se encuentra la implementación de la Ley 30 de


educación superior, y la reforma a la formación universitaria de
maestros materializada en el decreto 272 de 19989, generan a
nivel nacional, y para el conjunto de todos los programas de
licenciatura, una dinámica muy importante reconocida como la
acreditación previa 10.
Con este marco normativo como fondo, se inicia entonces a
partir de 1995 el surgimiento de las Licenciaturas en

9 Norma por medio de la cual se establecen los requisitos de creación y funcionamiento


de los programas académicos de pregrado y postgrado en Educación ofrecidos por las
universidades y por las instituciones universitarias.
10 Decreto 272: “Artículo 15o.- En concordancia con lo preceptuado en el artículo 113 de la
Ley 115 de 1994, a partir de la vigencia de este Decreto los programas de pregrado y
especialización en Educación que se pretendan ofrecer, requerirán de acreditación
previa otorgada por el Ministro de Educación Nacional, previo concepto del Consejo
Nacional de Acreditación -CNA-. Dicho concepto estará basado en la aplicación de los
criterios y procedimientos que para el efecto elabore el CNA, los cuales incluirán los
requisitos establecidos en el presente Decreto”. Para este proceso se estableció un
período de dos años (1998-2000) a fin de que todos los programas existentes y
registrados en el ICFES, dieran cumplimiento a esta normatividad. Al respecto es
importante decir, que los programas de licenciatura en Etnoeducación no fueron objeto
de ningún tratamiento especial o excepcional.

178 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Etnoeducación, con un enfoque indígena inicialmente, que se
mantiene de manera más o menos general en casi todos los
programas vigentes. Entre 1995 y el 2004 este campo de
formación se amplía, y en la actualidad el país cuenta siete
programas de Licenciatura en Etnoeducación 11. Tal vez uno de los
aspectos más interesantes en este proceso de ingreso de la
Etnoeducación a las universidades, tiene que ver con los
acontecimientos que preceden y en parte dan origen a estas
propuestas, que han logrado una importante experiencia que bien
merece ser tenida en cuenta para analizar en su conjunto el
desarrollo de la Etnoeducación como política pública.
El panorama que tenemos es el siguiente 12:

Institución y
Población estudiantil
Año creación Programa

Universidad Población indígena, afrocolombiana y mestiza de la


del Cauca (1996)13 región del suroccidente colombiano. Con dos
maestrías creadas en el 2015, la de Estudios
Interculturales y la de Revitalización y enseñanza
de las lenguas Indígenas.

Universidad de Población indígena y afrocolombiana de Bolívar,


la Guajira (1996) Cesar, Magdalena y Guajira.

Universidad Tecnológica Especialmente población urbana de Pereira, y


de Pereira (1995) proveniente de los municipios de la zona cafetera.

Universidad Nacional Población indígena y afro de todo el país. Con una


Abierta y recién creada Maestría en Educación Intercultural,
a Distancia (2000) la primera de esa naturaleza en Colombia

Universidad Pontificia Población indígena y afrocolombiana de Antioquia,


Bolivariana (2000) Amazonía, Cauca, Choco, Putumayo y Llanos
Orientales.

11 Estos programas se realizan en cinco universidades públicas y dos universidades


privadas de naturaleza confesional. Las primeras son las universidades de Amazonía,
Cauca, Guajira, Nacional Abierta y a Distancia, y Tecnológica de Pereira; las segundas
son la Pontificia Bolivariana y la Universidad Mariana.
12 Algunos de los datos retoman la información reportada por Cerón et al. (2001)
Fundamentos de la Etnoeducación. Popayán: Editorial Universidad del Cauca
13 La fecha en paréntesis indica el primer registro en el ICFES, anterior a la Acreditación
Previa.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 179


La apuesta de l@s etnoeducador@s universitarios

Frente al panorama de programas y modalidades de formación


existentes en la región, sobresalen cuatro universidades. La
Universidad Nacional Abierta y a Distancia (UNAD) ofrece la
Licenciatura en Etnoeducación en Pasto y Cauca, cuya modalidad
se desarrolla a través de créditos contenidos en 161 en el ciclo
obligatorio y 121 en el ciclo básico y de formación específica. El
programa ofrecido por la UNAD no requiere de la presencialidad
de los estudiantes, debido a que las clases se realizan por medio de
asesorías. Por su parte la Universidad Pontificia Bolivariana
cuanta también con un programa de Licenciatura en
Etnoeducación, con presencia en los departamentos de Cauca,
Caquetá, Putumayo y Nariño con una duración de 10 semestres
bajo una modalidad presencial. Finalmente, la Universidad del
Cauca ofrece la licenciatura en Etnoeducación con su sede
principal en la ciudad de Popayán y con una subsede en el
municipio de Santander de Quilichao donde se desarrolla el
programa gracias a un convenio interinstitucional con la alcaldía
local de ese municipio. La licenciatura se desarrolla bajo la
modalidad semipresencial con una duración de 12 meses.

180 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


UNIVERSIDAD PERFIL DEL EGRESADO ESTRUCTURA CURRICULAR

Universidad Desarrollar crítica y Ambiente y


Pedagogía
constructivamente, al interior Comunidad
del Cauca
de la escuela y por fuera de ella, 6 cursos 9 cursos
los principios, fines y objetivos
de la Etnoeducación como Gestión
Investigación
Comunitaria
campo disciplinar.
Proyectar y articular su práctica 5 cursos 9 cursos
etnoeducativa a la comunidad
educativa y sociocultural con la
que interactúa, de modo que
aporte a la resolución de sus
múltiples problemas
económicos, sociales y políticos.
Coordinar procesos de
investigación participativa
tendientes a brindar un
entendimiento profundo de las
condiciones socioculturales,
económicas y políticas de las
diferentes comunidades.

Universidad Profesional de la educación con Sociocultural Pedagógico-


Pontificia capacidad para promover en el y Etnológico Didáctica
Bolivariana contexto de las comunidades el
desarrollo integral de valores y 11 cursos 11 cursos
actitudes que favorezcan la
educabilidad y la formación Investigación Lingüística
integral del ser humano,
favoreciendo el reconocimiento
a la identidad cultural. 10 cursos 9 cursos

Pedagógico y Investigación
Universidad Un profesional capaz de adquirir y Nuevas
conocimientos, actitudes y Etnoeducativo Tecnologías
Nacional
Abierta aptitudes para abanderar
12 cursos 17 cursos
y a Distancia procesos comunitarios; por lo
UNAD. que tendrá un conocimiento de Sociocultural Comunicación y
su realidad sociocultural que le y Humanístico Segundo Idioma
permita dinamizar y orientar la
construcción de procesos de 14 cursos 8 créditos
transformación social, Desarrollo Ambiente
asumiendo un liderazgo Comunitario y Territorio
legitimado por la diferencia
cultural, lingüística y social. 2 cursos 3 cursos

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 181


Se planteó la necesidad de diferenciar dos modelos
etnoeducativos por medio de lo que se ha venido definiendo como
“etnoeducación hacia adentro” y “etnoeducación hacia fuera”. El
primero de ellos consistente en formar bajo los principios
organizativos para el fortalecimiento del grupo étnico, el
conocimiento propio y posibilitar la construcción de un
pensamiento pedagogía propio. En este sentido la etnoeducación
hacia dentro se asume como una manera de focalizar la formación
política para el autoreconocimiento étnico, territorial, cultural y
posibilitar el agenciamiento político. Particularmente, este tipo
de formación que tiene más juego en los contextos rurales donde
hay presencia organizativa debería potenciar la formación
política y cultural que no se oferta en los programas
universitarios. El segundo modelo es denominado de
“etnoeducación hacia fuera” orientado a formar en el
reconocimiento de las otras culturas con el fin de educar en la
diversidad y de cara al logro de la interculturalidad. Básicamente,
este modelo propende por un tipo de formación que resalte
valores de la multiculturalidad. Esto es de vital importancia
debido a que en las zonas ruarles del pacifico la presencia de
población indígena ha sido histórica y los conflictos interétnicos
forman parte de la cotidianidad. Es ahí donde se habla de la
necesidad de una formación que desde la etnoeducación
privilegie la interculturalidad en las escuelas y en las
comunidades.
Este último modelo de formación adquiere mayor sentido en
departamentos como Huila y Tolima, los cuales no han contado
con una presencia histórica fuerte de poblaciones negras, pero
que hoy por las condiciones de desplazamiento y migración,
producto del conflicto armado y la crisis económica por la que
atraviesa el país, se han visto abocados a la presencia de
poblaciones afrocolombianas. Según lo manifestado por los
diferentes actores en estos departamentos, las situaciones
conflictivas por la que pasan los afrodescendientes están
relacionadas con las prácticas de racismo y la discriminación.
Problemática que afecta principalmente a los niños, niñas y

182 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


jóvenes que asisten a los planteles educativos, debido a que tanto
maestros como estudiantes ejercen prácticas discriminatorias
sobre los afrocolombianos. De ahí que la necesidad de formar a los
maestros afrodescendientes y mestizos para que adquieran
conciencia de lo que implica enfrentar esta realidad se ha
convertido en la prioridad fundamental para llevar a cabo el reto
de la etnoeducación.
La mayoría de docentes consideran que la formación en Cátedra
de Estudios Afrocolombianos y Etnoeducación Afrocolombiana
constituyen las demandas prioritarias para combatir el tema del
racismo en las escuelas, evidente en el ejercicio discriminatorio
que los planteles educativos ejercen sobre esta población,
expresado en la negativa de recibir niños y jóvenes
afrocolombianos o en la constante discriminación a los que se ven
sometidos en la cotidianidad escolar. En el departamento del
Cauca la situación no solo debe diferenciar los contextos urbanos
y rurales, sino que debe tener en cuenta la diferencia geográfica y
cultural de lo que implica tener una parte costera y una parte
andina. La presencia de poblaciones negra en la costa pacífica
caucana y la presencia de población afroandina en la zona norte y
sur del departamento muestra una realidad muy compleja de cara
a pensar las ofertas de formación.
De acuerdo a la información obtenida en los talleres
municipales, el caso de la costa caucana la situación plantea una
seria distinción entre las necesidades de formación para los
maestros rurales y los concentrados en los centros urbanos como
Guapi y Timbiquí. Para los primeros es prioridad considerar
situaciones como el conflicto manifiesto en la presencia de
grupos armados, el involucramiento de los jóvenes en las
dinámicas de cultivos ilícitos, lo cual requiere, según lo
expresaron los maestros, que la formación en etnoeducación se
oriente a brindar herramientas para la resolución de conflictos y
el abordaje de los temas comunitarios, toda vez que el maestro en
los ríos forma parte de la vida comunitaria, poro sujeto a las
situaciones de autoridad que imponen los grupos al margen de la
ley.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 183


En términos de temáticas, los conflictos interculturales son la
nueva perspectiva de la etnoeducación en los contextos urbanos
que cuentan con una fuerte presencia de población
afrocolombiana desde hace algunas décadas carece de
posibilidades para su implementación. Aunque la contundencia
de la realidad así lo demuestra, la fragilidad de la voluntad
política es más fuerte, toda vez que las condiciones de posibilidad
de la etnoeducación afrocolombiana como un proyecto tendiente
a interculturalizar la escuela y la sociedad, no tiene cabida, quizás
porque el paradigma de la ciudad como centro contenedor de la
modernidad, sigue presente en los sujetos que la habitan. De ahí,
que un proceso de formación de etnoeducadores en estos
contextos debe pensar en horizontes formativos que permitan
equilibrar la formación para la diversidad con la formación
curricular tradicional, reconociendo que en el sur occidente
urbano, la presencia de la afrocolombianidad es un hecho
indiscutible y que, sumado a las viejas conflictividades
económicas, las tensiones que las culturas le ponen a las ciudades
deben ser abordada con toda la seriedad que la situación amerita.
Estas situaciones han producido nuevas problemáticas en unos
casos y en otros han exacerbado fenómenos estructurales como el
racismo y la discriminación cultural, los cuales forman parte de
las prácticas históricas en el sur occidente colombiano. Los
fenómenos del racismo histórico sobre las poblaciones negras
siguen siendo uno de las problemáticas que tienen que enfrentar
los etnoeducadores en el escenario institucional en su conjunto,
incluido los centros educativos. En todos los departamentos, los
talleres evidenciaron que el racismo sigue siendo un fenómeno
estructural en la medida que la institucionalidad funciona bajo
una lógica de exclusión sobre las poblaciones negras. En el ámbito
escolar, los docentes tienen que lidiar cotidianamente contra este
tipo de situaciones que se manifiesta tanto en el racismo
epistémico, como el las prácticas de discriminación contra
estudiantes afrocolombianos. Este hecho sigue atravesando la
cultura escolar, al punto que muchos maestros ejercen racismo
sobre sus estudiantes de manera abierta o inconsciente o por

184 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


medio de la legitimación de prácticas discriminatorias sobre los
estudiantes afrocolombianos.
El doble sentido de la identidad negativa a la cual se ven
sometidos los afrodescendientes, ha transformado la realidad
cultural y política de departamentos que cargan auto
representaciones como territorios blanco-mestizos. Este
imaginario histórico constituye un factor de larga duración que
limita las relaciones de tolerancia y convivencia en estos
contextos, por lo cual, asumir las diferencias resulta difícil para
las personas. Esta nueva realidad y los conflictos que viene
generando, demuestran que ni las administraciones, ni los
ciudadanos están preparados para asumir el hecho de la
diversidad. Tanto es así que las mismas universidades públicas se
niegan a hacer efectivos los derechos de inclusión de estudiantes
negros en los centros de educación superior. En medio de un
panorama tan complejo como este, los procesos de formación
para etnoeducadores tienen un reto muy grande, pues se trata de
contextos auto imaginados como blancos y mestizos donde el
rechazo contra las diferencias étnicas está legitimado
socialmente. Al punto que en las mismas escuelas los niños y
jóvenes afrodescendientes sufren los estragos del racismo por
parte de sus compañeros y de los mismos docentes. De ahí, que la
prioridad deba ser la de formar etnoeducadores capaces de
abordar los problemas desde una perspectiva intercultural,
mediante la cual la ciudadanía se sensibilice por las
problemáticas de la discriminación racial. No obstante, las
posibilidades de tramitar este tipo de problemáticas requieren de
la voluntad política de las administraciones municipales y
nacionales para implementar programas etnoeducativos que
focalicen el tema de la diversidad, tanto en la vida institucional
como en la esfera cotidiana. La invisibilidad de la Cátedra de
Estudios Afrocolombianos en los programas de Etnoeducación
Universitaria es muy grave, pues este ámbito de estudios no ocupa
un lugar central en los procesos curriculares, tampoco en los de
las prácticas pedagógicas o investigativas.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 185


CONSIDERACIONES FINALES

En la mayoría de los programas ha prevalecido, por lo menos en


sus orígenes, una concepción muy cercana al modelo de
educación indígena, presente también en la propia historia de la
normatividad que se ha producido para el campo de la
etnoeducación. Es a partir del proceso de ampliación de la
dinámica social y la emergencia de nuevos actores, cuando se
empieza a plantear nuevos fenómenos y problemáticas asociadas
al campo. En ese sentido el modelo incluye en su perspectiva,
como en el caso de varias universidades, al interés por lo
afrocolombiano y la particularidad de la Etnoeducación. Esta es
una característica mucho más reciente que tiene que ver con la
presencia del movimiento afrocolombiano, pero también con la
expedición de normativas como el Decreto 1122 que reglamenta la
cátedra de estudios afrocolombianos para el conjunto de las
instituciones educativas del país. Este elemento se constituye
entonces en un reto para el campo en términos de favorecer
mayores niveles de pluralismo en su oferta y en su propia
concepción de la Etnoeducación.
En un país multicultural como el nuestro requerimos de una
política curricular intercultural, que asuma los conocimientos
que la diferencia cultural ofrece para trabajar las diferentes áreas
y contenidos del currículo, con capacidad para dar respuesta
pedagógica a una propuesta política en clave de los derechos
culturales, mucho más, si reconocemos que en buena medida los
fenómenos de racismo y discriminación cultural que vivimos en
Colombia, demandan una profunda revisión de las prácticas
formativas y pedagógicas que se vienen agenciando en las
universidades y escuelas. Este es otro argumento para señalar la
necesidad de transformación del currículo, y no solo la inclusión
de algunos temas o aspectos referidos las poblaciones
afrocolombianas, indígenas o raizales.
Finalmente es necesario anotar que la reflexión en torno a la
etnoeducación y las Otras educaciones ocupa un lugar importante
en la pregunta por las pedagogías en Colombia. En ese sentido,

186 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


este ámbito de investigación y formación en el que nos movemos,
pretender abrir un debate en torno a la génesis de saberes y
prácticas pedagógicas, emergente en los márgenes de la escuela
oficial.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 187


BIBLIOGRAFÍA

Álvarez, Alejandro. (1991) Leyes generales de educación en la


historia de Colombia, en: Revista Educación y Cultura No 25.
Fecode, Bogotá.

(2010) Formación de nación y educación. Siglo


del Hombre Editores, Colección Culturas y Pedagogías. Bogotá

Castillo, Elizabeth (2011). “La letra con raza entra. Racismo,


textos escolares y escritura pedagógica afrocolombiana”. En,
Revista Pedagogía y Saberes No 34, enero-junio de 2011. Bogotá,
Universidad Pedagógica Nacional.

Castillo, Elizabeth y Caicedo Jose Antonio. (2008). La educación


intercultural bilingüe. El caso Colombiano. Colección Libros
Foro Latinoamericano de Políticas Educativas – FLAPE 22,
Buenos Aires: Fundación Laboratorio de Políticas Públicas, 2008.

Castillo Elizabeth & Rojas Axel (2004) Educar los otros: políticas
educativas y diversidad cultural en Colombia. Popayán: Editorial
Universidad del Cauca.

Caicedo, A (2011). La Cátedra de Estudios Afrocolombianos como


proceso diaspórico en la escuela En, Revista Pedagogía y Saberes
No 34, enero-junio de 2011. Bogotá, Universidad Pedagógica
Nacional.

Castillo, E. y Rojas, A. (2005). Educar a los Otros, Estado, Políticas


Educativas y Diferencia Cultural en Colombia. Popayán:
Universidad del Cauca.

Mena, Patricia (2008) “Educación Intercultural. Una historia que


se repite”, En: Marras, Gianna Carla y Badini, Riccardo (Ed.)
Intrecci di culture. Marginalità ed egemonia in America Latina e
Mediterraneo. Roma, Meltemi Editore, pp. 35-53.

Ministerio de Educación Nacional (1996) YO’KWINSIRO 1O Años


de Etnoeducación. Ministerio de Educación Nacional, Bogotá.

188 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Moya, R (1998) “Reformas educativas e interculturalidad en
América Latina” En: Revista Iberoamericana de Educación OEI,
No.17 Educación, Lenguas y Culturas, Mayo-Agosto 1998, pp.
105-187.

Muñoz, H. (2002). Rumbo a la Interculturalidad en Educación.


México: Universidad Autónoma Metropolitana-Iztapalapa,
México D.F., Universidad Pedagógica Nacional Unidad 201 Oaxaca
y Universidad Autónoma “Benito Juárez” de Oaxaca.

Zapata Olivella, M. (1998). El congreso de la cultura negra. Nueva


era para la identidad de América. Discurso de apertura. En:
Primer congreso de la cultura negra de las Américas, pp. 19-21.
Cali: Fundación Colombiana de Investigaciones Folclóricas
UNESCO.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 189


O PENSAMENTO DECOLONIAL E
SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE
RACIAL NO CAMPO DA EDUCAÇÃO.

Denise Gonçalves da Cruz

RESUMO

Nos últimos anos o pensamento decolonial tem sido utilizado


como uma ferramenta para observar e explicar as relações sociais
e as instituições e no Brasil, o pensamento decolonial vem se
desenvolvendo de maneira tímida em relação a outros países da
América Latina. Portanto, essa pesquisa tem por objetivo
investigar os usos do pensamento decolonial no campo da
educação e como esse pensamento pode contribuir nas pesquisas
em educação. Para tal investigação buscou-se nos bancos de
dados da Scielo e da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertações-BDTD, artigos, teses e dissertações que atendessem
a uma combinação de palavras-chaves. Foram encontrados um
total de 140 trabalhos e após a aplicação do filtro temático foram
selecionados um total de 86 trabalhos sendo 10 artigos, 45
dissertações e 31 teses. Concluímos que algumas áreas do campo
da educação já vêm utilizando o pensamento decolonial como
embasamento teórico-metodológico, o que configura o
pensamento decolonial como uma ferramenta epistemológica
importante para discutir a descolonização do campo.

Palavras-chaves: Pensamento decolonial e educação;


pedagogia decolonial; decolonialidade.

190 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


INTRODUÇÃO

Seria o pensamento decolonial um modismo teórico? O que


sabemos é que o pensamento decolonial vem sendo bastante
utilizado no campo das ciências sociais e da educação. E acredito
que qualquer pensamento teórico que se comprometa a dar
visibilidade às epistemologias esquecidas e negadas merece a
nossa atenção.
Portanto a revisão bibliográfica apresentada nesse artigo tem
como objetivo investigar os usos do pensamento decolonial no
campo da educação e identificar quais as possibilidades de
pesquisa que o pensamento decolonial pode proporcionar para o
campo.

1. UMA BREVE GENEALOGIA DO PENSAMENTO


DECOLONIAL

Para entendermos o conceito de decolonialidade é necessário


antes compreendermos a diferença entre colonialismo e
colonialidade, e como esses conceitos operam na conjuntura
sociopolítica. Embora o colonialismo e a colonialidade sejam
conceitos relacionados ao mesmo processo histórico, autores
como Aníbal Quijano (1998) e Mignolo (2007), tem diferenciado o
colonialismo como um período histórico específico em que
países europeus como Espanha, Portugal, Inglaterra e Holanda
dominaram e expropriaram terras, transformando-as em suas
colônias imperiais. Enquanto que a colonialidade é um conceito
cunhado por Quijano (1998) e refere-se a uma lógica estrutural de
dominação que coloca o signo “raça” para operar como
organizador dessa lógica e que impõe um conjunto de valores sob
o discurso do descobrimento, da salvação, do progresso e da
modernidade.
Embora sejam conceitos diferentes há certa correlação entre
eles, pois quando a historiografia tradicional assume a narrativa
do descobrimento, automaticamente coloca a América Latina

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 191


como um subproduto do projeto colonial e constrói uma falsa
ideia de harmonia social, enquanto escondem as relações de
poder e as lutas anticoloniais que (re) existiram ao longo dos
séculos. Portanto, a colonialidade é um processo que além de
histórico, faz parte da construção da subjetividade moderna, pois
tudo que se escreveu sobre o povo europeu tratava de colocá-los
como superiores, e tudo que se escrevia sobre os demais povos e
seus territórios colocava-os como primitivos, bárbaros e
inferiores (DUSSEL, 1994).
Entretanto em meados da década de 1970 alguns intelectuais e
pesquisadores iniciaram um movimento para colocar em debate
essas concepções e narrativas tradicionais hegemônicas,
surgindo assim a proposta epistêmica pós-colonial. Para
Ballestrin (2013), o que vai reforçar o pós-colonialismo como um
movimento epistêmico, político e intelectual é o surgimento do
Grupo de estudos Subalternos – os Subalterns Studies em 1970 na
Índia, que se torna conhecido em 1980, período também em que o
debate pós-colonial passa a ser difundido nos estudos literários e
culturais da Inglaterra e Estados Unidos se convergindo com os
estudos multiculturais.
Atualmente autores como Memmi, Said, Spivak, Bhabha e Hall,
são reconhecidos como pós-coloniais e além de serem críticos
com as narrativas hegemônicas quebram com o binarismo entre
colonizador e colonizado, permitindo análises mais complexas
sobre as identidades e culturas produzidas nesses contextos de
pós-independência, o que torna o argumento pós-colonial
fortemente comprometido com a superação das relações de
colonização (BALLESTRIN, 2013).
Stuart Hall (2003) afirma que o pós-colonial é um conceito que
ajuda a compreender a transição das relações globais, da era do
império para o momento do pós-independência, sendo, portanto
este um conceito que busca fazer uma releitura da colonização
como parte de um processo global que produziu narrativas
diaspórica para além daquelas histórias centradas na Europas.

192 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


2. MAS QUAL A RELAÇÃO ENTRE O PÓS-COLONIAL
E OS ESTUDOS DECOLONIAIS?

Com o reconhecimento internacional dos estudos


pós-coloniais, no final dos anos 1990 intelectuais
latino-americanos se inspiraram nos subaltern studies e
passaram a repensar as questões do continente a nível
epistêmico, teórico e político criando o Grupo Latino Americano
dos Estudos Subalternos e inserindo a América Latina no debate
pós-colonial. Mas, a divergência sobre a necessidade de romper
com autores europeus foi apontado como uma das principais
causas para a dissolução do grupo em 1998. Posteriormente,
alguns dos ex-integrantes do grupo de estudos subalternos da
América Latina, entre outros intelectuais latino-americanos aos
poucos foram consolidando o grupo de investigação Modernidade
e Colonialidade- M/C, que por sua vez, elaborou a proposta
decolonial (BALLESTRIN, 1993).
Portanto a proposta decolonial surgiu com a pretensão de
repensar a produção de conhecimento da América Latina de
forma descolonizada, isto é, fora dos cânones ocidentais. E apesar
de não conseguirem radicalizar completamente a sua crítica ao
uso de autores europeus, o grupo foi se consolidando em
encontros e seminários, sempre buscando tirar o foco das
epistemologias eurocêntricas e considerar as produções
latino-americanas que ao longo dos anos foram excluídas e
deixadas à margem, como por exemplo, as produções indígenas,
afrodiaspóricas e as epistemes geradas nos movimentos sociais.
Segundo Catherine Walsh (2005), autora responsável pelo
termo decolonial¹, essa proposta pode ser compreendida como
“[...] uma força para enfrentar as tendências eurocêntricas do
saber” (WALSH, 2005, P.15), se configurando em um projeto
intelectual crítico que observe as problemáticas locais e globais
sobre a cultura, economia e política.
Não obstante, Costa e Grosfoguel (2016) reforçam que o projeto

1 Poder ser grafado com ou sem hífen (WALSH, 2005).

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 193


decolonial não é um projeto acadêmico com chaves conceituais
obrigatórias para análises e nem se propõe ao universalismo.
Segundo os autores, a ideia é reconhecer as contribuições de
vários intelectuais que possuem posicionamentos e intervenções
políticas e intelectuais decoloniais, isto é, que contribuam para a
renovação e modificação do sistema colonial.
A primeira vista podemos considerar que o pensamento
decolonial tem suas aproximações com a perspectiva
pós-colonial, visto que, tanto Hall (2003) como Costa e
Grosfoguel (2016) concorda que o pós-colonial ao considerar os
pensamentos de fronteiras, isto é, o pensamento daqueles que
têm suas experiências atravessadas pela colonialidade, mas que
não são passivos a ela, evidencia a diferença entre colonizador e
colonizado gerando uma crítica nas grandes narrativas da
colonização, assim como o pensamento decolonial. Entretanto há
limites entre as perspectivas decoloniais e pós-coloniais, como
explicam Costa e Grosfoguel (2016, p.19):
Aqui reside uma importante diferença entre o
projeto decolonial e as teorias pós-coloniais. Essas
tematizam a fronteira ou o entrelugar como
espaço que rompe com os binarismos, isto é, onde
se percebe os limites das ideias que pressupõem
essências pré-estabelecidas e fixas. Na
perspectiva do projeto decolonial, as fronteiras
não são somente este espaço onde as diferenças
são reinventadas, são também loci enunciativos de
onde são formulados conhecimentos a partir das
perspectivas, cosmovisões ou experiências dos
sujeitos subalternos. O que está implícito nessa
afirmação é uma conexão entre o lugar e o
pensamento.

Nesse trecho os autores apontam o loci enunciativos como um


espaço que vai além da localização geopolítica e que são marcas
das hierarquias raciais, de classe e gênero. O que, portanto, marca
o corpo e que pode imprimir um compromisso ético-político de se
produzir conhecimentos contra hegemônicos. Por isso, essas
reflexões nos permitem pensar que a perspectiva decolonial se

194 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


pretende, para além de evidenciar a diferença, reconhecer que a
colonialidade gerou múltiplas reações nos sujeitos
subalternizados, o que consequentemente engendrou novas
produções de conhecimentos que consideram o corpo como
geopolítico e que concebem projeto de resistência.
Assim, a questão central da proposta decolonial é promover um
novo pensamento e uma nova práxis que sejam mais que frutos de
teorias, que sejam frutos de lutas, práticas e existências de vidas
dentro desses espaços, como explica Walsh (2005, p. 31)
[...] la cuestion central és como incitar um
(re)pensamiento crítico que en términos de
caracter, perspectiva, logica y practica sea “otro”.
Un pensamiento crítico que tenga su fundamento y
razón de ser en un proyecto de transformacion
social, política, epistémica y humana, y en un
imaginário o vison de un mundo de otro modo. Un
pensamiento crítico que no parte de perspectivas
eurocêntricas ancladas en la modernidad (como
Deleuze, Lacan y Foucault entre otros) sino un
repensamiento critico que se construya desde y
con relacion a la colonialidad y la gente,
incluyendo los movimientos sociales
latino-americanos y sus intelectuales, y con la idea
de crear nuevas comunidades interpretativas; una
nueva teoria de real compromisso que, [...] nos
ayude a ver de mejor (y de otra) manera.

Portanto, podemos inferir que a proposta decolonial está


enraizada nas lutas de resistência contra coloniais e ao mesmo
tempo é atravessado pelo colonialismo, portanto decolonial são
todas as produções epistêmicas geradas nesses entremeios,
nessas trincheiras afrodiaspóricas, africanas, indígenas e
terceiro mundistas.
Denise Cruz (2019) em sua dissertação de mestrado, aponta
autores como Edgardo Lander, Arthuro Escobar, Walter Mignolo,
Enrique Dussel, Anibal Quijano e Catherine Walsh como
referências que discutem o projeto decolonial na América Latina e
apresenta autores brasileiros que têm produzido novos conceitos
contribuindo para essa perspectiva. Entretanto em concordância

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 195


com Costa e Grosfoguel (2016) e Costa, Torres e Grosfoguel (2019)
a autora também aponta a importância de intelectuais negros
brasileiros que antes mesmo da origem da denominação
decolonial já apresentavam um posicionamento e uma produção
intelectual fronteiriça e de resistência, sendo, portanto papel do
projeto decolonial resgatar e sistematizar essas discussões.
Diante disso, podemos pensar que as novas gerações de
pesquisadores latino-americanos que pensam e falam de um
local subalternizado e vêm se destacando nos departamentos de
estudos feministas, africanos, afro-latinos e indígenas,
representam a possibilidade de construir essa proposta
decolonial.

3. OS USOS DA DECOLONIALIDADE NO CAMPO DA


EDUCAÇÃO

Agora que já compreendemos como surge e ao que se propõe a


perspectiva decolonial, precisamos entender como essa
perspectiva pode contribuir para a renovação e a descolonização
do campo da educação. E para tal, consideramos dois pontos
importantes, o primeiro é compreender os efeitos da
colonialidade no campo da educação com a invenção da
modernidade. E o segundo é compreender quais os usos do
pensamento decolonial no campo.
Sobre a colonialidade, Mignolo (2007) afirma que esse conceito
está intrínseco ao projeto de modernidade europeu, e remete não
só a Revolução Industrial e a expansão comercial que foi
propulsora do capitalismo, mas também ao projeto global de
dominação que foi o “descobrimento” das Américas. Portanto, a
modernidade e a colonialidade, nada mais é do que o processo que
a Europa percorreu para se impor como hegemônica e superior,
inferiorizando e destituindo a humanidade de africanos e nativos
que passaram a ser denominados negros e indígenas.
Essa reconfiguração de identidade produzida historicamente
sobre a ideia de raça, foi associada a ideia de lugar social e
trabalho, legitimando a dominação colonial e estabelecendo um

196 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


novo padrão mundial. Isso significa que todas as experiências
culturais, históricas e sociais foram expropriadas e incorporadas
em um único modo de subjetividade, cultura e conhecimento,
obrigando indígenas e africanos a negarem suas heranças
intelectuais, culturais e religiosas para se adequarem a esse novo
modelo hegemônico (QUIJANO, 2005).
Esse processo de dominação gera o que Walsh (2005) resume
como a colonialidade do ser, saber e poder. Colonialidade do ser
por negar atributos de humanidade ao ser dominado,
colonialidade do saber por destituir os saberes intelectuais, e
impor um único modo de produção de conhecimento
(eurocentrismo), e impor um modelo estrutural que gera
desigualdade econômica (colonialidade do poder).
Portanto como posto por Torres (2007), a colonialidade é uma
relação de poder que em conjunto com o capitalismo atravessou o
conhecimento, o trabalho e as relações intersubjetivas,
determinando quem é e quem não é o que é bonito e o que é feio, o
conhecimento que é válido e o que não é. Como exemplo, o autor
aponta o branqueamento que negros e negras foram submetidos
para serem humanizados na sociedade, processo este que por sua
vez gerou nessas pessoas a negação da sua própria existência, que
o autor Frantz Fanon² chamou de auto-ódio.
E nesse sentido os meios de comunicação, produções culturais
e a educação sempre foram utilizadas como ferramentas para a
manutenção do colonialismo e da colonialidade. Cruz (2019)
aponta que em países da América Latina, como Colômbia e Brasil,
por exemplo, a educação foi a principal ferramenta utilizada para
fomentar programas de formação de professores, criação de
currículos e educação básica que aplicavam suposições raciais,
nacionalistas e eugênicas pensadas por cientistas, políticos e
educadores da época a fim de formar uma nação culturalmente
branca e com uma moral cristã.
Portanto, livros didáticos que negam a diversidade humana e
cultural através dos estereótipos, embranquecimentos ou
apagamentos históricos não são meros acasos, mas sim o

2 Ver em: FANON, Frantz. Peles negras e Máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 197


colonialismo, em que a ideia de raça e racismo constituem o
princípio organizador das relações de poder do sistema mundo,
operando através desses materiais.
Nilma Lino Gomes (2019) afirma que o colonialismo e a
colonialidade ainda se fazem presentes na educação brasileira
através do currículo, da formação de professores e nos
professores e gestores da educação, como por exemplo, na
postura e pensamento arrogante de professores e educadores que
são contra a diversidade étnica, racial, sexual e política
existentes nas escolas. No currículo, principalmente quando
disponibilizamos aos estudantes leituras coloniais que reforçam
as relações de poder sem fazer a devida crítica sobre as limitações
e contradições dessas leituras. E por último na Reforma do Ensino
Médio da educação brasileira aprovada em 2017, que a autora
coloca como uma das mais recentes facetas da colonialidade na
educação.
A reforma do ensino médio se mostrou uma ação problemática
quando foi implementada a partir de uma medida provisória, sem
diálogo com a sociedade e trazendo propostas formativas
diferenciadas, quando não oferecem o mínimo de recursos para
as aulas básicas, além de pretender homogeneizar a língua
inglesa em detrimento da língua espanhola em um país da
América Latina, o que intensificam as barreiras de comunicação e
diálogo com nossos países vizinhos (GOMES, 2019).
Portanto, quando pensamos na perspectiva decolonial para a
educação estamos falando em uma formulação que se opõe às
consequências do que compreendemos como colonialidade do ser
e principalmente do saber, e que considera as lutas dos povos que
foram subalternizados nessa relação de poder imposta, como
explica Walsh (2005, p.24):
[..] Por lo tanto hablar de decolonialidade es
visibilizar las luchas en contra de la colonialidade
pensando no solo desde su paradigma, sino desde
la gente y sus practicas sociales, epistêmicas y
politicas, tomando en cuenta la presencia de la que
Maldonado Torres llama “una actitude
decolonial”.

198 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Nessa perspectiva, a atitude decolonial que se faz necessária
para pensarmos a decolonialidade no campo da educação não se
refere a uma prática de simplesmente retomar as produções
epistêmicas indígenas e africanas, mas sim em considerar suas
experiências, práticas sociais, culturais, epistêmicas e políticas
na e contra a colonialidade como ações políticas, que produziram
e produzem conhecimentos não baseados no legado eurocêntrico,
mas sim numa perspectiva subalterna, produzidas dentro e fora
da academia. Isso nos ajuda a pensar possibilidades para
transformar a realidade.
Considerando que o campo da educação tem uma
responsabilidade ética e política com a produção do
conhecimento, ter uma atitude decolonial enquanto educador(a) é
também questionar posturas que favoreçam a manutenção da
hierarquia de conhecimentos, dado que para Costa, Torres e
Grosfoguel (2019) a negação da epistemologia também é um
instrumento refinado para a continuidade do processo de
colonização do ser e do saber e para a contínua negação desses
corpos como produtores de conhecimentos.
Não obstante, nas produções negras o corpo geopolítico
sempre foi presente, Costa, Torres e Grosfoguel (2019) citam como
exemplo as produções de Bell Hooks, que trazem a vivência e o
corpo geopolítico de uma mulher negra enfrentando o sistema
racista nos Estados Unidos. Essas produções possibilitam o
diálogo entre diversos grupo, sem que precisem esconder suas
particularidades atrás de ideias abstratas, elas marcam esse
corpo geopolítico, cheio de experiências vividas, possibilitando a
pluralidade de ideias e consequentemente representando uma
estratégia para desarmar as produções hegemônicas .
Sendo assim, quando os professores proporcionam aulas em
que o movimento negro, indígena, sem-terra, grupos de hip hop e
tantos outros movimentos sociais se fazem presentes não apenas
nos textos, filmes, músicas e debates, mas também com seus
corpos geopolíticos em sala de aula, possibilitam o diálogo entre
diversos conhecimentos que são produzidos dentro e fora da
academia e que são produções ativas, elaboradas a partir da

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 199


esperança e da resistência. E aulas como essas podem significar
para os alunos pensamentos emancipatórios e meios de
assumirem o comando de suas próprias histórias.
Por isso Gomes (2019) ressalta a importância de um projeto
decolonial para descolonizar o pensamento pedagógico e o
currículo, pois estes são mecanismos de poder que formam
subjetividades, e se não lutamos para que sejam descolonizados
servirão somente à manutenção das opressões.
Para Carlos Granado Beltran (2016) é necessário também
repensar a formação de professores, e o autor propõe a
interculturalidade crítica como ferramenta para uma pedagogia
decolonial. Segundo o autor, a interculturalidade crítica
proporciona o reconhecimento da diferença através de um
diálogo que se sobreponha às relações de poder, o que
consequentemente possibilita aos professores uma construção
crítica do conhecimento e de pensamento pedagógico
anticolonial.
Para Costa e Grosfoguel (2016) as ações afirmativas nas
universidades públicas do Brasil, desde o início do milênio, tem
incorporado as experiências negras e indígenas nessa construção
de novos conhecimentos, possibilitando a construção de uma
proposta decolonial no ensino superior em âmbito nacional.
De fato acreditamos que a entrada de estudantes negros e
indígenas tem impactado não só as produções acadêmicas e
teóricas, mas também o próprio contexto acadêmico, forçando
inclusive professores a repensar todo conhecimento eurocêntrico
que estão acostumados a transmitir como absoluto, verdadeiro e
único. A entrada desses estudantes tem colocado em ação um
projeto decolonial na educação e tem mostrado que há outras
experiências e epistemologias.
Portanto, considerando todo o histórico colonial no processo
de construção do campo da educação, a investigação aqui se
justifica pelo fato de que o projeto decolonial tem muito a
contribuir para a produção de pesquisas que ajudem a renovar as
teorias da educação e descolonizar o campo.

200 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


4. O QUE TEM SIDO OU HÁ PARA SER PESQUISADO?

Nessa etapa, apresento um mapeamento da produção


bibliográfica no campo da educação a fim de compreender os usos
do pensamento decolonial nas produções e investigar quais as
contribuições do pensamento decolonial para a descolonização
no campo da educação. Para tal, foi realizado um levantamento
dos trabalhos publicados nas bases de dados da Scielo e da
Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações-BDTD,
utilizando as palavras-chaves: pensamento decolonial,
pedagogia decolonial, decolonialidade todas em combinação com
a palavra-chave educação (AND “educação”). Não se aplicou filtro
temporal a fim de verificar em que ano apareceria o primeiro
trabalho abordando o pensamento decolonial.
Após a localização do total de trabalhos por palavras-chaves,
apliquei um filtro temático selecionando apenas os trabalhos que
discutiam temas relacionados ao campo da educação, como por
exemplo, os trabalhos que envolviam as temáticas de currículo,
práticas de ensino e aprendizagem na educação básica, ensino
superior entre outros. O procedimento para essa etapa foi a leitura
do título e resumo de cada trabalho. Os trabalhos descartados, ou
estavam duplicados ou não apresentavam relação com o campo
da educação, esses em geral, apresentavam o pensamento
decolonial associados às temáticas da política territorial,
literatura, identidade, psicologia, hermenêutica entre outros que
não se adequaram a pesquisa.
Como resultado final obteve-se um total de 86 trabalhos sendo
10 artigos, 45 dissertações e 31 teses, como demonstrados na
tabela a seguir:

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 201


1. TABELA DE PALAVRAS-CHAVES E TRABALHOS ENCONTRADOS:
PALAVRAS-CHAVES BDTD SCIELO

Sem- Sem- Com filtro


Com filtro temático
filtro filtro temático
“Decolonialidade”
102 67 (41 Dissertação e 26 teses) 9 5
AND “Educação”

“Pedagogia decolonial”
7 4 (3 dissertações e 1 tese) 3 3
AND “Educação”

“Pensamento
decolonial” AND 15 5 (1 dissertação e 4 teses) 4 2
“Educação”

TOTAL 124 76 (45 Dissertações + 31 teses) 16 10

FONTE: ELABORADO PELA AUTORA A PARTIR DOS DADOS DA SCIELO E DA BDTD, 2020.

Considerando que o grupo de estudos Modernidade e


Colonialidade teve seu marco temporal inicial em 2001 buscando
construir o pensamento decolonial a quase 20 anos na América
Latina, ter como resultado 45 dissertações, 31 teses e 10 artigos
publicados nos últimos 10 anos sobre o pensamento decolonial e
educação pode nos indicar o quanto o campo tem absorvido essa
discussão com cautela, o que de certo modo também contrariam
as hipóteses de que esse pensamento tenha se tornado um
modismo teórico no campo. Inclusive, a fim de verificar a
distribuição temporal das produções, observou-se que o primeiro
trabalho citando o pensamento decolonial foi publicado apenas
em 2010:

202 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


1. GRÁFICO DE DISTRIBUIÇÃO TEMPORAL DOS TRABALHOS

FONTE: ELABORADO PELA AUTORA,2020.

No gráfico observa-se que há um aumento de produção em 2015


se tornando crescente em 2017 e tendo seu pico em 2019, o que
possibilita pensar em uma recente exploração ou
aprofundamento do uso do pensamento decolonial no campo da
educação. É possível que a ínfima quantidade de trabalhos
encontrados em 2020, se justifique pelo fato deste levantamento
ter sido realizada no primeiro semestre deste ano.
No que se refere às discussões presente nos trabalhos,
observou-se que alguns conceitos do pensamento decolonial vêm
sendo mais explorados em determinadas temáticas no campo da
educação, como é o caso do conceito de interculturalidade crítica
em conjunto com as temáticas sobre educação indígena e
quilombola, que representaram a maioria das teses e dissertações
encontradas. A utilização do conceito de interculturalidade
nesses trabalhos configura uma importante ferramenta para
embasamento teórico e análise de pesquisa, visto que segundo
Walsh (2001) este conceito parte de um problema que é estrutural,
portanto racial e colonial, e se pretende abrir caminhos para o
diálogo entre múltiplos saberes, conhecimentos e práticas de
maneira ativa e em conjunto com aqueles cujas vozes foram

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 203


marginalizadas e silenciadas pela estrutura colonial.
Nessa mesma perspectiva estão os trabalhos que discutem
relações raciais trazendo a lei 10.639 e a lei 11.645, esses trabalhos
vem utilizam o pensamento decolonial como um referencial
epistêmico que possibilita direcionar e substanciar práticas
curriculares de valorização e reconhecimento da História e
cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena como presentes nas
teses Delma Josefa da Silva (2017), Luciana Leite da Silva (2019) e a
dissertação de Marina da Rocha (2013), por exemplo. Inclusive o
primeiro trabalho encontrado neste levantamento, escrito por
Luiz Fernandes de Oliveira e Vera Maria Ferrão Candau (2010) tem
por título: Pedagogia decolonial e educação antirracista e
intercultural no Brasil, e apresenta as contribuições do grupo
Modernidade e Colonialidade como potencial para as discussões
étnico-raciais na América Latina.
As discussões sobre descolonização de currículos e das práticas
pedagógicas tanto no ensino básico quanto no ensino superior
foram temas bastante frequentes, bem como trabalhos sobre
formação de professores e ensino superior. O uso do pensamento
decolonial nessas discussões faz a críticas aos currículos e as
práticas eurocêntricas e em geral, sugerem criticar a
colonialidade presente na temática, isto é, uma virada decolonial
no campo. Mas também indicam os saberes e conhecimentos
quilombolas, indígenas, do campo, de intelectuais negros e
negras e dos movimentos sociais como experiências decoloniais.
Pois como posto por Costa, Torres e Grosfoguel (2019) as
experiências produzem pensamentos e dialogar sobre elas
produzem conhecimentos e o pensamento crítico, que não se
restringe a universidade.
Adentrando a temática da universidade, que também esteve
bem representada nos trabalhos encontrados, a discussão
decolonial se insere para embasar as discussões sobre a o
processo de produção de conhecimento e a colonialidade do saber,
bastante discutida por autores como Edgardo Lander e
Boaventura S. Santos. Inclusive Santos (2009) afirma que a
colonialidade do saber é operacionalizada pela epistemologia da

204 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


cegueira, que por sua vez, tem a função de distorcer e criar uma
realidade em que apenas um tipo de conhecimento é relevante
criando-se um privilégio epistêmico e o epistemicídio dos outros,
isto é, o apagamento e o negligenciamento de outras
epistemologias.

CONCLUSÃO

Podemos concluir que esse levantamento possibilitou uma


amostra dos usos do pensamento decolonial no campo da
educação, indicando que algumas áreas como currículo, práticas
pedagógicas, ensino superior e educação para as relações
étnico-raciais já vem utilizando o pensamento decolonial com
maior frequência.
Todavia a ausência de trabalhos com algumas temáticas do
campo da educação, como por exemplo, a educação infantil,
alfabetização e metodologias de ensino, nos permite pensar que
ainda há áreas para pesquisar e explorar o uso do pensamento
decolonial como uma ferramenta epistemológica e de análise.
Assim o pensamento decolonial se revela como uma
ferramenta importante para pensar a descolonização do campo
da educação, corroborando também nas discussões antirracistas
no campo.

Informações da autora
Nome: Denise Gonçalves da Cruz
Afiliação institucional: Neab - UFSCar
E-mail: denise.mafalda@gmail.com
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/8409495775520342

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 205


REFERÊNCIAS

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev.


Bras. Ciênc. Polít. [online]. 2013, n.11, pp.89-117. Disponível em: <
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010333522013000200004&
script=sci_abstract&tlng=pt>Acesso em: 20 de janeiro de 2018.

BERNADINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson;


GROSFOGUEL, Ramon. Decolonialidade e pensamento
afrodiaspórico. In: BERNADINO-COSTA, Joaze;
MALDONADO-TORRES,Nelson; GROSFOGUEL, Ramon. (Orgs).
Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte:
Autentica. 2019. 1-26.

COSTA, Joaze, B., GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e


perspectiva negra. Revista Sociedade e Estado – Volume 31
Número 1 Janeiro/Abril 2016. Disponivel em: <
http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01-00015.p
df>. Acesso em: 09 de novembro de 2017.

DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del otro : hacia el


origen del mito de la modernidade. UMSA. Facultad de
Humanidades y Ciencias de la Educación. Plural Editores: La Paz,
1994.

FANON, Frantz. Peles negras e Máscaras brancas. Salvador:


EDUFBA, 2008.

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro e a interculturalidade


negra descolonizando os currículos. In: BERNADINO-COSTA,
Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramon.
(Orgs). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo
Horizonte: Autentica. 2019. 223-246.

GRANADOS-BELTRAN, Carlo. Interculturalidad crítica. Un


camino para profesores de inglés en formación. Íkala, Medellín
, v. 21, n. 2, p. 171-187, Aug. 2016 . Available from
<http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0

206 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


123-34322016000200004&lng=en&nrm=iso>. access on 06 Nov.
2017.

HALL, Stuart. Quando foi o pós-colonial? Pensando no limite. In:


HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 101-131

MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidade del ser:


contribuiciones al desarrollo de un concepto. In:
CASTRO-GOMEZ, Santiago. GROSFOGUEL, Ramón (Orgs). El giro
decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá
del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007.

MIGNOLO, Valter.,D. La idea de América Latina: La herida


colonial y la opcion decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007.

OLIVEIRA, Luiz Fernandes de e CANDAU, Vera Maria Ferrão.


Pedagogia decolonial e educação antirracista e intercultural no
Brasil. Educ. rev. [online]. 2010, vol.26, n.1, pp.15-40. Disponível
em <
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S010
2-46982010000100002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt >. Acesso em:
22 de julho de 2020.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e


América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e
ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. CLACSO,
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. Buenos Aires.
2005. Disponível em: <
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/2010062410
3322/12_Quijano.pdf>. Acesso em: 09 de novembro de 2017.

QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder, cultura. Y


conocimiento en América Latina. Anuario Mariateguiano, Vol.
IX, N* 9, Lima, Perú,1998, pp. 113-122. Disponivel em: <
https://antropologiadeoutraforma.files.wordpress.com/2013/04/
quijano-anibal-colonialidaddel-poder-cultura-y-conocimiento
-en-amc3a9rica-latina-2000.pdf>. Acesso em: 09 de novembro
de 2017.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 207


ROCHA, Marina da. Escolas Indígenas Diferenciadas No Brasil,
Interculturalidade E (des)colonialidade: Um Estudo a Partir De
Teses E Dissertações. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. 2013.
Disponível em:
<http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/7093>.
Acesso em: 24 de julho de 2020.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Hacia una epistemologia de la


cegueira: Porque Razon las nuevas formas de “adequacion
cerimonial” no regulan ni emancipan? In: SANTOS, Boaventura
de Sousa. Una epistemologia del sur: La reinvencion y la
emancipacion social. CLACSO: México, 2009. P. 60 – 157.

SILVA, Delma Josefa da. Referenciais Epistêmicos Que Orientam


E Substanciam Práticas Curriculares Em Uma Escola Localizada
Na Comunidade Quilombola De Conceição Das Crioulas. Tese.
UFPE. 2017. Disponível em:
<https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/31811>. Acesso
em: 24 de julho de 2020.

SILVA, Luciana Leite da. Aprendizagem Histórica Intercultural a


Partir Dos Contextos Educacionais Indígenas E Não Indígenas.
Tese. UFG. 2019. Disponível
em:<ht t p://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/10344>.
Acesso em: 24 de julho de 2020.

WALSH, C., E. Introduccion: (Re)pensamiento Critico y


decolonialidad. In: WALSH, C. Pensamiento critico y matriz
(de)colonial: Reflexiones latino-americanas. Quito: Abya Yala,
2005.

WALSH, Catherine. La educación Intercultural en la Educación.


Peru: Ministerio de Educación. (documento de trabalho), 2001.

208 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


4 - Espacialidade e
diversidade no processo
de aprendizado

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 209


210 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades
UMA BRINQUEDOTECA
AFRO-BRASILEIRA EM ARRAIAS
Maria Aparecida de Matos

INTRODUÇÃO

Esse texto tem o propósito de rememorar a criação da primeira


brinquedoteca afro-brasileira construída na Universidade
Federal do Tocantins, no Campus Professor Sérgio Jacintho
Leonor, em Arraias, cidade localizada no sudeste do Tocantins.
Utilizamos a autoetnografica para descrever as práticas
discursivas e o conhecimento teórico-metodológico utilizado
nessa construção afrocentrada. A autoetnografia (Versianni
2002) é uma narrativa construída subjetivamente, de modo
transpessoal, com ênfase sobre a constante relação que se
estabelece entre a memória pessoal e a memória coletiva, um
tipo de escrita que acaba por construir uma subjetividade
historicizada e contextualiza. A escolha por esse método ocorre
porque ele nos permite fazer uma conexão entre o pessoal, o
social, o cultural, entre espaços físicos e profissionais, trazendo
à tona o visível e invisível; ele nos permite falar das nossas
experiências e emoções, bem como nos empodera para a reflexão
política. O método autoetnográfico é pouco explorado no Brasil,
há uma certa resistência a essa metodologia, talvez pelo fato de
ela valorizar a subjetividade. Colyar (2013) pondera que, na
autoetnografia, a escrita não é um ato dissociável, é um processo
que sustenta a conexão do eu e do sociocultural.

Discorrer sobre fazeres e saberes de africanidades a partir da


“Brinquedoteca Afro-brasileira”, promotora de atividades e
oficinas pedagógica ligadas à disciplina arte-educação e
educação literária do Curso de Pedagogia do Campus de Arrais da
UFT envolvendo discentes de pedagogia, matemática, biologia e
professores de escolas do campo, comunidades quilombolas e

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 211


comunidades de assentamentos, bem como a participação de
estudantes de escolas da educação básica de Arraias.
A construção de uma brinquedoteca na Universidade Federal do
Tocantins/campus de Arraias contou com financiamento da
Capes através do Programa Prodocência, implementado a partir
de 2013 possibilitando a realização de diversas oficinas
pedagógicas em escolas nas cidades vizinhas e em comunidades
quilombolas. Entretanto, os projetos de extensão realizados para
as oficinas de artes manuais para a produção de livros artesanais,
brinquedos, bonecas negras, jogos de letramentos e de fantoches,
já vinham sendo implementadas desde que ingressei na UFT, no
início do ano de 2008. Há que se ponderar que, naquela época, não
havia biblioteca na cidade de Arraias e nem livraria. A população
contava apenas com uma sala com alguns livros na Secretaria
Municipal de Educação. O campus da UFT/Arraias não tinha, nos
seus acervos bibliográficos, obras literárias afro-brasileiras e
africanas e nem infanto-juvenis. Mesmo estando em
funcionamento o curso de Pedagogia desde 2002, não havia,
também, brinquedoteca, quaisquer tipos de brinquedos, jogos
pedagógicos, e/ou outros materiais paradidáticos e lúdicos, tão
necessários nos ambientes escolares de educação infantil e
ensino fundamental, pois nenhum curso de pedagogia pode
formar seus discentes só com teorias.
A primeira coisa a fazer era construir ou comprar obras
literárias, bem como brinquedos, jogos pedagógicos para
letramento e educação literária no processo de formação docente
dos cursos de Licenciatura da UFT, materiais mínimos
indispensáveis para os e as discentes utilizarem nos estágios
e\ou em quaisquer projetos direcionados à escola básica.
Fundamentamos esse trabalho nos estudos de Alonso (2000) que
trata do lúdico da primeira infância à terceira idade, uma vez que
o lúdico se destaca como uma das maneiras mais eficazes de
envolver o discente nas atividades escolares. Também nos
apoiamos em Kishimoto (1993) e seus estudos sobre os jogos
tradicionais infantis e a educação. A partir desses referenciais,
tivemos a oportunidade de refletir sobre brinquedos, jogos e

212 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


brincadeiras apreendidas na infância, contadas por discentes que
participavam das aulas e dos projetos pedagógicos e as diversas
formas de letramentos e funcionamento da linguagem como
força fundamental que emana do ser humano.
Há que se ponderar, também, sobre a linguagem, no contexto
das três disciplinas ministradas no Curso de Pedagogia
(Letramento e Alfabetização, Fundamentos e Métodos da
Linguagem e Literatura Infanto-juvenil), percebida como
fenômeno sócio-ideológico quando se trata de veiculações de
materiais didáticos, obras literárias e mesmo a escolha de
brinquedos e jogos para letrar, uma vez que é preciso levar em
conta as condições sociais, culturais e políticas dos sujeitos nos
espaços escolares, onde crianças e adolescentes
afrodescendentes estão formando seu caráter e auto-estima.
Em 10 municípios do Tocantins (Dianópolis, Taguatinga,
Paranã, Natividade, Aurora, Lavandeira, Combinado, Novo
Alegre, Conceição, Príncipe) e em dois de Goiás (Monte Alegre e
Campos Belos) que visitamos durante os três primeiros anos
(2008 a 2012) de desenvolvimento do projeto, deparamo-nos com
a ausência de espaço público de leitura como bibliotecas e nem
livraria. Nas escolas visitadas também não encontramos
brinquedos, fantoches e nem bibliotecas escolares, voltados,
principalmente, para educação da infância. Algumas escolas
tinham um pequeno espaço na sala com uma pequena quantidade
livros, no qual era evidente a ausência de obra literária com
personagens negras e de conteúdos que contemplassem a cultura
negra, ou afro-brasileira. Entre os poucos livros infantis
disponíveis nas escolas de Arraias, sobretudo, destacavam-se os
de Monteiro Lobato, cujas obras, no que tange a personagens
negros, reforçam os estereótipos negativos sobre o ser negro e
negra. Diante desse silenciamento, negação ou distorção das
vidas negras na realidade escolar e seu entorno nas cidades
visitadas, indagamo-nos: como essa geração de crianças e
adolescentes negros poderia reafirmar suas identidades e
expandir suas autoestimas e curiosidades?
Considerando essa realidade de ausência de espaço público e

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 213


escolar de leituras e brinquedoteca, frente a uma população de
crianças e adolescente majoritariamente negra, mobilizei e
envolvi os discentes dos cursos de licenciatura da UFT, campus
Arraias, na construção dos projetos sobre fazeres e saberes de
africanidades que resultaram em ampliação de acervos de obras
literárias negras e construção de Livros Artesanais, brinquedos e
jogos pedagógicos para o letrar de negritude, evidenciando a
enunciação de negritude presente nas obras literárias adquiridas
e produzidas no projeto, com vista a um processo de constructo
identitário através da apreensão da realidade cotidiana das
crianças e adolescentes negros e negras dessas cidades e
comunidades quilombolas em constantes diálogos com a cultura
negra no norte do Brasil.

2. É NECESSÁRIO CONSTRUIR LIVROS ARTESANAIS E


BRINQUEDOS NO ENSINO FUNDAMENTAL? PARA
QUÊ?

Desde a Antiguidade africana, a utilização de brinquedos está


associada, segundo BouBou Hama (2010) e Ki-Zerbo (2010), à ideia
de educação das crianças, tendo como ponto fundamental
“aprender as genealogias das quais descende, o que dá um sentido
de profundidade, pertencimento histórico, enraizamento e
obrigação sagrada de prosseguir a linhagem genealógica”
(MBITI, 1970, p. 136-137). No contexto de comunidades
tradicionais quilombolas, as crianças são filhas de toda uma
comunidade – e não apenas de um casal (SOMÉ, 2007, p. 23-24):
elas aprendem, brincam e constroem seus brinquedos com a
comunidade. Os jogos tradicionais fazem parte da cultura
africana e afro-brasileira, expressam a produção espiritual de um
povo em determinada época histórica e são transmitidos na
oralidade, incorporando criações anônimas de uma geração a
outra. O nigerino Boubou Hama e o burquinense Joseph Ki-Zerbo
(2010, p. 24) chamam a atenção para o fato de que o tempo
tradicional africano “engloba e integra a eternidade em todos os

214 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


sentidos, a educação e cultura possuem papel fundamental na
disseminação do conhecimento”.
O pensamento africano, a meu ver, está ligado a um fazer
pedagógico que conecta o aprender e o prazer. Nessa época, os
jogos didáticos determinavam a importância da educação
sensorial. Segundo Wajskop (2001, p.19), a brincadeira na
perspectiva sócio-histórica e antropológica é uma atividade cuja
base genética é comum à arte, uma atividade política e humana
que supõe contextos culturais e sociais, a partir dos quais as
crianças recriam a realidade através da utilização de sistemas
simbólicos próprios. Almeida (2000, p.37) também afirmou que o
brinquedo faz parte da vida da criança, adolescente e até mesmo
dos jovens, e simboliza a relação entre pensamento e ação, que
constitui provavelmente boa parte da atividade linguística, ao
tornar possível o uso da fala, do pensamento e da imaginação.
Nessa perspectiva, aproximamos de Vygotsky que reforça o
brincar como essencial a saúde física, emocional e intelectual do
ser humano. Brincando podemos nos equilibrar, reciclar nossas
emoções e nossa necessidade de conhecer e reconhecer, bem
como desenvolver nossa atenção, concentração entre outras
habilidades psicomotoras. As brincadeiras espontâneas
proporcionam oportunidades únicas de transferência
significativas que resgatam situações conflituosas.
Diante dessas considerações, a função da brinquedoteca na
educação infantil e no ensino fundamental é dar às crianças um
espaço privilegiado que, para além das obrigações e deveres,
oportunizará a construção da sua aprendizagem de forma
prazerosa e cooperativa. A brinquedoteca, enquanto um espaço
coletivo da leitura, do contar/ouvir histórias e da construção de
brinquedos, tangrans, dobraduras, provoca a partilha,
cooperação, competição, atitudes que surgem e são negociadas
naturalmente durantes as atividades lúdicas e, por isso, o ato de
brincar envolve múltiplas aprendizagens.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 215


3- CONSTRUINDO MATERIAIS PEDAGÓGICOS COMO
FAZER LÚDICO NA APRENDIZAGEM DA LINGUAGEM

Considerada a importância da construção de materiais


pedagógicos como fazer lúdico, procede ponderar que a
linguagem circunscrita à construção de brinquedos e à
brinquedoteca apresenta-se marcada de certa complexidade no
contexto de formação docente, sobretudo, por se tratar de
formação para atuação em comunidades escolares de maioria
negra, e em comunidades quilombolas. A reflexão sobre a
linguagem, aqui realizada, aproxima-se ao que diz Sousa (2014)
sobre o letramento de reexistência dialogando com Bakhtin
(1995), Vygotsky (1999), Hampaté Ba (1982), Santaella (1992) e
Macedo (2006).
No âmbito desse texto, tratamos a categoria africanidades
entendida como discurso epistêmico onde as ações humanas
afrocentradas se dão e produzem sentido. A partir dessa baliza
conceitual, analisamos a produção dos materiais, resultado das
oficinas ofertadas nos cursos de formação de professores da UFT,
no Campus de Arraias, mais especificamente, nas áreas da
Pedagogia, Matemática e Biologia. As oficinas foram produzidas
a partir das disciplinas de linguagens – Alfabetização e
Letramentro, Métodos e Fundamentos da Linguagem, Literatura
infanto-juvenil e Cultura Africana e Cultura Afro-brasileira. As
mesmas atividades também foram ofertadas aos professores de
escolas públicas, mães e jovens da comunidade quilombola e
adolescentes de escolas secundárias, como cursos de extensão.
Desde o período da construção da brinquedoteca como um dos
desdobramentos das disciplinas de linguagens e africanidades, já
tínhamos a compreensão de que os usos sociais, identitários e
culturais ativados no cotidiano do Campus e da região deveriam
levar em conta, a presença significativa da população negra e
quilombola, no sudeste do Tocantins. Essa população vem
traçando caminhos políticos e culturais nas brechas possíveis
que a experiência cotidiana do modo de fazer e viver oportuniza.
Todo material que pertence à brinquedoteca foi construído no

216 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


desenvolvimento dos Projetos: “Maleta da Leitura” e “Atelier
afroliterário infanto-juvenil” e nas “Oficinas de Brinquedos e
Fantoches”, “Teatro vai a escola”, “Artes com as mãos-
dobraduras e tangrans”, na perspectiva teórico-metodológica da
etnopesquisa e da Semiótica da Cultura; para continuar a
produção escrita de histórias na brinquedoteca, criei o
Aprimoramento da Linguagem e da Criação no viés da
arte-educação. Ao construir livros artesanais (de pano, cartolina
e papelão, jogos de letramento, brinquedos, fantoches, bichos da
fauna africana e da Amazônia brasileira, bonecas negras, entre
outros artefatos com sucatas) enquanto atividades lúdicas de
linguagem, estávamos trabalhando com a metodologia
lúdico-vivencial, oportunizando aos discentes, através de uma
prática pedagógica afro-brasileira, formar uma coletânea de
jogos, brinquedos e dinâmicas de acordo com a necessidade das
escolas quilombolas e dos municípios nos quais os\as discentes
estavam inseridos. Quantos talentos descobrimos nessas oficinas
entre essas e esses discentes que desenhavam, pintavam,
esculpiam os artefatos e brinquedos! Até então diziam que não
havia artistas plásticos, escultores, artesões nessa região; a
partir dessas oficinas no campus da UFT e em escolas públicas de
outros municípios, fomos descobrindo as habilidades de
discentes e professores das escolas em que trabalhamos com
formação.

4. A HISTÓRIA DA BRINQUEDOTECA NA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO TOCANTINS

A primeira brinquedoteca como espaço lúdico de que se tem


notícia surgiu em 1934, em Los Angeles. No Brasil teria chegado
no início dos anos 1980. Foi concebida como espaço de articulação
local e criação de estratégias onde a comunidade escolar e não
escolar pudesse trazer suas experiências orais em torno de
histórias fantásticas, causos e lendas, bem como de brinquedos
de diversos materiais utilizados no cotidiano da comunidade.
Sobre a constituição desse espaço, Santos (1997, p.13) afirma que a

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 217


brinquedoteca é uma nova instituição que nasceu neste século
para garantir à criança um espaço destinado a facilitar o ato de
brincar. É um espaço que se caracteriza por possuir um conjunto
de brinquedos, jogos e brincadeiras, sendo um ambiente
agradável, alegre e colorido, onde mais importante do que os
brinquedos é a ludicidade que estes proporcionam.
A brinquedoteca Afro-brasileira da Universidade Federal do
Tocantins no município de Arraias foi criada em 2011, é um
espaço de brinquedos, jogos e artefatos afrocentrados
preparados para estimular e desenvolver o lúdico das crianças e
adolescentes. A brinquedoteca é um espaço para estimular
crianças e adolescente a brincar oferecendo uma variedade de
brinquedos africanos e afro-brasileiros; todas as atividades são
elaboradas para o desenvolvimento psicológico, social, físico e
mental, bem como oferecer produtos infantis que ressignifiquem
sua autoestima e evidencie sua identidade. Oferecemos materiais
didáticos aos universitários em fase de estágios e também à
professoras das escolas públicas e privadas do norte do Goiás e
sudeste do Tocantins
Na Disciplina de Alfabetização e Letramento, vivenciamos a
construção dos brinquedos, concebendo-os como um ato
sócio-histórico, no que tange aos modos de usar a escrita, a
leitura, a fala, os jogos, as brincadeiras, os gestos em diferentes
contextos de sociabilidade de que os discentes participam. Esses
espaços de sociabilidades possibilitam sempre o engajamento e o
debate do que os futuros professores aprendem como teoria e
prática na universidade.

218 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Foto 1: Produto das Oficinas de Brinquedos e Fantoches

FONTE: ACERVO DA AUTORA

Tudo foi construído com base nas abordagens construtivistas e


sócio-interacionistas da aprendizagem. Na disciplina de
Alfabetização e Letramento, sempre visamos à confecção de
jogos pedagógicos para letrar brincando (bingos de palavras,
dominó, quebra-cabeças, alfabeto ilustrado, cubo de palavras e
livros artesanais), porque nosso objetivo é preparar os\as
discentes para trabalhar com crianças de 6 a 10 anos na aquisição
da leitura, escrita e oralidade. Todo o material produzido traz
grafado o que preconiza a Lei 10.639\03¹, identificando a
importância da cultura africana e afro-brasileira. Esta questão se
reveste de imensa importância, considerando que a região tem
uma população majoritariamente composta de afrodescendente e
quilombolas, além de valorizar, no espaço da escola e no espaço
da brinquedoteca, a memória oral e de vida dos moradores e dos

1 Lei que determina a inclusão da história e cultura africana e afro-brasileira nos


currículos escolares.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 219


antepassados que vivem e viveram em Arraias, Monte Alegre,
Combinado, Aurora, Príncipe, Paraná e Palmeirópolis.
Nas oficinas de construção dos livros artesanais, os
participantes tanto poderiam adaptar uma obra literária que
tivessem lido quanto reproduzir uma história a partir das
narrativas orais ou causos contados pelos seus ancestrais. Na
disciplina de Fundamentos e Métodos da Linguagem, voltada
para trabalho com a educação infantil, focalizamos a produção de
brinquedos com sucatas, livros de tecidos e pequenos fantoches
para a exploração da linguagem oral. Esses fantoches podem ser
manuseados por crianças e professores em creches e espaços
abertos.
Na disciplina de Literatura Infanto-juvenil utilizamos várias
obras literárias infanto-juvenis, visando aperfeiçoar o hábito da
leitura e da expressão cênica no desenvolvimento da oralidade e
desinibição dos alunos e alunas do ensino fundamental dos anos
inicias e finais. Além do acesso às diferentes obras literárias,
poesias, poemas, prosas, priorizamos a confecção de fantoches,
peças teatrais, apresentadas no projeto teatro na escola. As
temáticas das peças advêm das demandas das escolas, sempre em
torno das questões referentes a discriminação racial, diferenças
sociais e\ou estigmas.
Em três anos de existência do projeto, fabricamos brinquedos
variados, como bichos de biscuit, livros de tecidos, bonecas e
bonecos, fantoches utilizando matérias primas recicláveis,
garrafas pets, buriti, frutos de jatobá, garrafas, sementes,
cabaças, tudo convergindo para desenvolvimento da linguagem.
Partindo da concepção da linguagem como um fenômeno
sócio-ideológico, apreendido dialogicamente no fluxo da história
e no espaço de mediação, na interação do homem\ambiente, pelo
uso dos instrumentos e dos signos (linguagem verbal oral e
escrita, linguagem não-verbal, números, etc). Nesse contexto, a
brinquedoteca é entendida como espaço de recuperação do sujeito
histórico e social, afrodescendente e quilombola, valorizando
suas vivências cotidianas e os seus bens simbólicos e lúdicos, ou
seja, valorizando seu legado.

220 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


No que tange ao legado da cultura afro-brasileira, dialogamos
com Eduardo Oliveira (2014), a partir de sua proposição de
africanidades como uma categoria de tempo e espaço conjugados.
É nesse contexto que a brinquedoteca surge como espaço onde os
sujeitos vivenciam práticas de leitura e escrita atreladas às
histórias de vida e oralidade. Essas atividades, que tomam conta
do cotidiano das discentes, estão relacionadas às comunidades
quilombolas e escolas onde elas estagiam. Construir brinquedos e
ter obras literárias afro-brasileiras infanto-juvenis constituem
uma necessidade primordial para formação de profissionais da
Educação Básica, que trabalharão com linguagem em todo ensino
fundamental nos anos iniciais e finais.

Foto 2: Estudantes da escola pública de Combinado/TO


visitando a brinquedoteca

FONTE: ACERVO DA AUTORA

Há que se considerar que o funcionamento da brinquedoteca e a


construção dos produtos para o trabalho com as linguagens
levaram em conta a perspectiva de Souza (2014, p. 40) que propõe
“usar a linguagem das rodas de capoeiras, cultura Hip Hop,

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 221


comunidades quilombolas, e periferias onde a vida pulsa”. Nesse
espaço a vida pulsa, na medida em que rememoram as
brincadeiras, construções de brinquedos a partir da leitura de
obras literárias e das narrativas orais.

5 - A METODOLOGIA USADA PARA CONSTRUÇÃO


DOS BRINQUEDOS E MONTAGEM E ORGANIZAÇÃO
DA BRINQUEDOTECA

Todas as atividades de construção de livros artesanais (de


papelão, cartolina e tecidos), jogos pedagógicos de letrar, ábacos
e brinquedos, bem como a montagem da brinquedoteca foram
idealizadas a partir de oficinas que, ao longo dessas experiências,
tem se configurado como espaços de letramento oral e afirmação
de consciência identitária, uma vez que são instâncias de
interação sociocomunicativa, desenhadas com função de entreter
e ao mesmo tempo possibilitar uma reflexão crítica sobre os
sentidos que envolvem a alteridade cultural. Esta proposta se
coaduna com a concepção interacional de linguagem, no qual o
texto e sua leitura constituem, conforme Ribeiro (1996).
Uma rede de realizações por onde trafegam as
possíveis significações, produzidas, cada vez, por
uma relação de enunciação específica. A cada
leitura uma nova relação de enunciação se
estabelece. Cada leitor se constitui como um
conjunto de experiências que buscará estabelecer
relações com estruturas linguísticas do texto, de
forma a produzir os sentidos possíveis num
preciso momento social e histórico. Dependendo
do acervo simbólico acumulado por ele, sua leitura
será mais, ou menos, produtiva que outras. Ou seja,
poderá estabelecer um número maior de relação
com o texto enunciado. (RIBEIRO, 1996, PP.36 e 37).

Tendo por princípio uma concepção dialógica de leitura e leitor,


procuramos esboçar uma proposta pedagógica que privilegiasse
a interação com o texto, de modo a possibilitar a emergência de
estímulos dos leitores. Entendo o estímulo como a força vital que

222 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


provoca sentimentos de autoconfiança e potencializa a
capacidade de envolvimento nas práticas humanas,
impulsionando os recursos imaginativos, fundamentais para a
leitura, interpretação e a arte-educação. Para estimular as/os
discentes, utilizamos jogos verbais através de palavras e frases,
gravuras, propagandas, histórias em quadrinhos, música,
reportagens de jornais, revista com a temática afro-brasileira. A
gravura foi explorada, primeiramente por seduzir e captar a
atenção dos alunos, e, depois, porque desejávamos que os alunos
aprendessem a ler “as entrelinhas” das ilustrações.
Em que consistiu o momento da leitura? No momento da leitura
propriamente, procuramos aguçar o olhar dos alunos para as
inúmeras interpretações do texto, compartilhando com Culler
(1999, p. 32) o olhar construtivista de literatura como um conjunto
de suposições e operações interpretativas que os leitores podem
colocar em ação ao ler um texto. Nosso objetivo central, nas
oficinas, foi de verificar como reagiam aos elementos da cultura
afro-brasileira veiculados na literatura infanto-juvenil.
Guiamo-nos pelas seguintes indagações: Como se dá o processo
de recepção de obras com tal perfil? Como interagem com tais
textos? Tendo como contraponto os temas emergentes nas
leituras de textos verbais e imagéticos ou multissemióticos,
buscamos incentivar os/as discentes a falarem de suas
identificações étnicas, religiosas e culturais.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 223


Foto 3: Estudantes da educação fundamental
em atividades na brinquedoteca

FONTE: ACERVO DA AUTORA

As oficinas foram presididas por um olhar orientado pela


metodologia lúdico-vivencial, a modo de planejar atividades
escolares que motivassem os alunos na construção do
conhecimento. Esse método surge no Brasil na segunda metade
do século XX com um conjunto de teorias denominado teorias
contemporâneas, tendo como princípios as ideias defendidas por
Vygotsky (2000), Wallon (1970) e Gardner (1994) O projeto da
Brinquedoteca afro-brasileira também dialogou com autores que
tratam de africanidades e relações raciais na educação básica
como: Munanga (2005), Gonçalves e Silva (2005), Cavaleiro (2001)
como base para a reflexão sobre o racismo na interseção com a
educação infantil
Quanto às teorias sociointeracionistas, no âmbito dessa a
experiência de projetos e oficinas, a base foi Vygotsky, cujo foco
está na interação e na aprendizagem acontecendo em contextos
históricos, sociais e culturais. A aprendizagem é construída na
interação entre a criança, o adulto e o meio, é considerada
dialética pois os indivíduos não só internalizam as formas

224 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


culturais como também intervêm e as transformam.
No que se trata da aprendizagem, a partir das atividades da
brinquedoteca e das oficinas, o processo de construção do
conhecimento se dá a partir da interação nos jogos e brincadeiras,
bem como na construção dos brinquedos junto aos adultos em
todas as fases da educação básica. Essa metodologia procura
colocar em prática uma nova postura de educadores frente às
atividades escolares, tendo como sustentação fundamentos
psicopedagógicos, antropológicos e lúdicos.
A brinquedoteca tem como foco as atividades lúdicas por
entender que a educação não é apenas uma questão racional. A
emoção constitui-se numa ferramenta básica fundamental para o
bem-estar do indivíduo consigo mesmo, com seu entorno e
sociedade em geral. A metodologia lúdico–vivencial foi utilizada
nos cursos: “Oficina de brinquedos”, “Fazendo com as mãos:
dobraduras e tangrans”, “Fazendo bichos com Biscuit”, “A mala
da Leitura” e “Teatro na Escola”. A partir desse trabalho na e com
a construção da brinquedoteca, fui convidada para preparar
professores de escolas públicas estaduais a criarem
brinquedotecas em Arraias, Araguaína, Miracema, Combinado,
Almas, Dianópolis e Paranã. Trabalhei com formação de
professores em escolas da Comunidade Quilombola Kalunga do
Mimoso, Lagoa da Pedra, Canabrava, Natividade, Palmeirópolis e
Laguinhos.
As oficinas de construção de brinquedos com sucatas foram
realizadas com estudantes da educação básica que participaram
de atividades na brinquedoteca. Essa metodologia
lúdico-vivencial possibilitou, na prática, usar atividades de
montar, desmontar e transformar ideias e coisas. Nossa
abordagem pautou-se pela arte-educação, tendo como recurso a
linguagem e a cultura, essa última entendida, semioticamente,
como produção simbólica que dá conta dos processos de
significação e de comunicação de um grupo social. Nos termos de
Lotman (1996, p. 13), “A cultura é uma acumulação histórica de
sistema semióticos”, portanto, linguagem e cultura são
inseparáveis.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 225


Lotman (1996) pondera que o comportamento social é alterado
no desenvolvimento da cultura e pode ser observado na
comparação entre a cultura e novos e velhos comportamentos.
Por isso, professores que utilizam a semiótica da cultura estudam
os fenômenos culturais, ritos, símbolos da cultura local.
Segundo Kishimoto (2000, p. 66), no ato de brincar, a criança, o
jovem e o adulto resgatam e podem propor nova construção como
coautores, assumir um papel de poder, em que, por exemplo,
podem dominar os vilões e as situações que provocariam medo ou
que faria com que se sentissem se vulneráveis e inseguros. Desta
forma, as brincadeiras auxiliam na construção da
auto-confiança, levando a obter autonomia diante das diversas
situações vividas.
Enfatizamos que todas as abordagens metodológicas
desenvolvidas ao longo desses anos foram pensadas de modo
culturalmente sensível a uma vivência cultural quilombola,
marcante no município de Arraias.

5. AS OFICINAS DE CONSTRUÇÃO DE BRINQUEDOS


DE SUCATAS REALIZADAS PELOS\AS DISCENTES

Nas oficinas de construção de brinquedos percebemos que o


trabalho com sucatas mexe com a imaginação e desperta a
criatividade de todos, independentemente da idade, melhora a
qualidade motora, intelectual, cognitiva entre outras
modalidades que podem ser trabalhadas conjuntamente com a
interação e conservação do meio ambiente através do
reaproveitamento de materiais recicláveis.
As oficinas foram realizadas uma vez por semana com duração
de 4 horas e sempre abertas ao público (acadêmicos\as,
profissionais da educação pública, estudantes de ensino médio,
do ensino fundamental, dos anos iniciais e finais, e de pessoas da
comunidade). Dividíamos as oficinas em três momentos.
No primeiro momento, fazíamos a sociabilização teórica sobre
a construção do brinquedo com o propósito de provocar debates
entre os participantes. Esse momento se desdobrava no segundo

226 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


em que fazíamos leituras de obras literárias com temas voltados
para a Lei 10.639\03 e a contação da história lida por cada
participante ou narrada por alguém idoso da família do
participante. Também realizávamos pesquisa na internet e
revistas que eram disponibilizadas sobre artes e construção de
brinquedos.
O terceiro momento era destinado à construção dos
brinquedos, geralmente precisávamos de um mês a dois para
construí-los, quando a temática eram os bichos do continente
africano e os animais do conhecimento da população quilombola
do Tocantins (girafa, elefante, porco, cavalo, cachorro, galinha,
pato, pássaros), ou fantoches com representações humanas. Os
materiais utilizados eram: para os pufts (garrafas pets , espuma
e tecidos); para os fantoches (caixas de leites e sucos, TNT e cola);
para os jogos de letramentos (caixas de papelões, tintas, figuras
com recortes e colagens); para as bonecas de cabaças (E.V.A ou
garrafas de vidro, cabaças, tecidos, lã); para os caleidoscópios
(pedaços de canos de papelões e espelhos; para os bichos de
biscuits (biscuit comprado ou feito com trigo, cola e álcool),
pinturas em tecidos (tintas, pincéis, solvente, algodoim e
desenhos). Todos esses materiais lúdicos foram construídos em
três anos. Com eles fizemos seis exposições, sendo três no
Campus da UFT, e duas nas comunidades quilombolas e uma no
prédio da reitoria em Palmas.
No quarto momento construímos a partir de papelão: fogões,
geladeiras, armários, pias, mesas e cadeiras, guarda-roupa,
camas, sofás (considerados brinquedos afetivos por estarem
ligados a família, casa, espaço de afetividade familiar. Fizemos
baús, bichos ( a partir de caixas) para guardar brinquedos, livros,
fantoches, bonecas por ordem de tamanho, também catalogamos
todos objetos existentes no espaço “Brinquedoteca”. Só
ganhamos armários e jogos de mesa e o espaço oficial da
brinquedoteca em 2016. A Brinquedoteca afro-brasileira de
Arraias foi inaugurada como espaço pedagógico em 2018
Fizemos um projeto da “Brinquedoteca Itinerante: Ler, Brincar
e construir em comunidades quilombolas e na cidade” (2014 a

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 227


2016) para atender as inúmeras solicitações de diretores para
atendimento de escolas. Com esse projeto, fomos a escolas de
duas comunidades, sendo um quilombola e outra comunidade
negra isolada: a primeira foi a Escola Municipal Eliziário Jose de
Barros, localizada na Comunidade Negra Soledade, e a segunda a
Escola Municipal de Educação Básica Kalunga, localizada na
comunidade de Mimoso. Também apresentamos o projeto
“Teatro vai à escola” na Escola Municipal de Educação Infantil
Livia Lorena onde realizamos três oficinas com teatro de
fantoches; na Escola Estadual Jacy Alves com Ensino
Fundamental I e II; na Escola Municipal de Ensino Fundamental
IaIá Ciriaca de Canabrava e na Comunidade Quilombola Lagoa da
Pedra.

Foto 4: Momento de atividade com alunos


de 3 ano do ensino fundamental I

FONTE: ACERVO DA AUTORA.

228 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção dessa brinquedoteca afro-brasileira trouxe


inúmeros benefícios: primeiro mostrou que a maioria dos
discentes que, entre os anos 2010 e 2015, participaram dos
projetos oferecidos, expressou a importância de conhecer e
trabalhar com sucatas de papelão, caixas de ovos, de maçãs,
garrafas pets, entre outros materiais provindos da natureza,
pois, além de estimular a criatividade e ludicidade, colabora com
a educação ambiental e ainda desperta possibilidades
profissionais não aventadas antes pelos participantes: hoje há
alguns jovens que trabalham com esses brinquedos em animação
de festas e outros trabalham em escolas como professores de
arte-educação.
Vale lembrar que a escolha do nome “Brinquedoteca
Afro-brasileira” foi das/os discente das oficinas, porque afinal
tínhamos brinquedos e bonecas que eu trouxemos de países
africanos, e a maioria das obras literárias lidas e brinquedos
construídos tiveram como pano de fundo a cultura negra de
Arraias e diferentes estados do Brasil. A orientação para a
temática da cultura negra e das africanidades brasileiras ficava,
pois, evidenciada no nome da brinquedoteca.
Também percebemos que a partir dessas construções foram
dadas oportunidades para que crianças, adolescentes e jovens
desenvolvessem a criatividade e, sobretudo, o pensamento
crítico em relação ao seu pertencimento como sujeitos locais e
étnicos, uma vez que as ações eram sempre usadas como uma via
para abordar, pelo víeis das linguagens, a formação da identidade
e historicidade da população negra da região tocantinense.
Em relação ao trabalho com a construção de brinquedos, todos
as\os sujeitos\as da pesquisa consideram-na importante,
principalmente por valorizar a utilização de materiais simples,
disponibilizar materiais didáticos para intervenção na sala de
aula nos momentos de estágios, promover espaço para a
interdisciplinaridade e impulsionar a consciência ambiental, a
criatividade e sociabilização.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 229


Todas atividades do projeto “Brinquedoteca Afro-brasileira”
desenvolvidos nas escolas anteriormente citadas provocou o
interesse em outros estabelecimentos de ensino da região,
levando à proposição de um calendário de atendimento às escolas
no campo e na cidade para os anos seguinte cuja implementação
se estendeu até 2019. Além disso, os temas da poluição dos
recursos naturais, reciclagem e conservação do meio ambiente se
tornaram presentes no cotidiano dos municípios nos quais temos
discentes em processo de formação no campus da UFT-Arraiais.
Ademais, provocamos em muitos professores que trabalham com
ensino fundamental o desejo de construir uma brinquedoteca nas
escolas onde atuam.
Vivemos uma época de muitas transformações, momentos de
muitas incertezas. Assistimos a uma valorização da
produtividade, da competitividade nos diversos segmentos da
vida humana e social, inclusive na educação. Nessa conjuntura,
desponta a figura do educador munido dos saberes que servem de
base para a sua prática educativa e que não podem ser
desvinculados das outras dimensões do ensino, de sua
profissionalidade, de sua formação e de sua epistemologia da
prática. Pensar em educação pressupõe pensar a formação
docente e a sua prática.

Informações da autora
Nome: Maria Aparecida de Matos
Universidade Federal do Tocantins
E-mail: mariamatos@uft.edu.br
http://lattes.cnpq.br/1784145961087058

230 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


BIBLIOGRAFIA

ABRAMOVICH, F. Literatura infantil: gostosuras e bobices. 5.ed.


São Paulo: Scipione, 1995.

AGUIAR, V.T. & BORDINI, M.G. Literatura: a formação do leitor:


alternativas metodológicas. 2.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1993.

ALMEIDA, Paulo Nunes de. Educação Lúdica: técnicas e jogos


pedagógicos. São Paulo: Loyola, 2000.

ALONSO, Cleusa Maria maximino Carvalho. Abertura do IV


Encontro Sul-Brasileiro sobre Brinquedoteca. In.
Brinquedoteca: A criança, O adulto e o Lúdico.

SANTOS, Santa Marli Pires dos (org). Brinquedoteca: O lúdico em


diferentes contextos. Petrópolis: Vozes. 2000. P.09 a 12

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução


Michel Lahud e Iara Fateschi Vieira. 7 ed. São Paulo: UCITEC, 1995.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação


Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua
Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1997

BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. 11.ed. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 11-43.

BROUGÉRE, GILLES. Brinquedo e Cultura. São Paulo: Cortez, 2001.

CADEMARTORI, L. O que é literatura infantil? 6.ed. São Paulo:


Brasiliense, 1994.

CAVALLERO, Eliane. Racismo e Anti-racismo na Educação. São


Paulo. Sumos, 2001

CARVALHO, A. M.A; Pontes, F. A. R. Brincadeira e Cultura:


viajando pelo Brasil que brinca. São Paulo: Casa do psicólogo,
2003. V. 01.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 231


COLYAR, J. E. Reflections on writing and autoethnography. In:
JONES, S.; ADAMS, T. E.; ELLIS, C. (Orgs.). Handbook of
autoethnography. Wallnut Creek, CA: Left Coast Press, 2013.

CULLER , Jonathan . Teoria literária : uma introdução. Tradução


de Sandra Vasconcelos . São Paulo : Beca , 1995 ..

CUNHA, Nylse Helena Silva. Brinquedoteca: um mergulho no


Brincar. São Paulo: Vetor, 2001.res.

GADNER Howard. Educacion Artistica y Desarolho Humanos.


Buenos Aires; Ediciones Paidós, 1994.

GONÇALVES e SILVA, Petronilha. Aprendizagens e Ensino de


Africanidades Brasileiras. Edição revisada. Brasilia. Ministério
de Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade 2005

HAMPATE-BÁ, A. Tradição Viva. In: KI-ZERBO (C0ORD.). História


Geral da África: metodologia e pré-história da África. Tradução
Beatriz Turqueti et alli. São Paulo: Ática/UNESCO, 1982, p. 181-218.

JOLIBERT, J. Formando crianças leitoras. Porto Alegre: Artes


Médicas, 1994. v.1

_____ Formando crianças produtoras de textos. Porto


Alegre: Artes Médicas, 1994. v.2

KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogos tradicionais Infantis: O


jogo, a criança e a educação. Petrópolis: Vozes, 1993.

__________ Jogos, brinquedos, brincadeiras e a educação.


Petrópolis: Vozes, 2000.

LOTMAN, I. La semiosfera. I- Semiótica de la cultura e del texto.


(Trad. Desiderio Navarro). Madrid: Cátedra, 1996.

Macedo JJM. A criação de uma brinquedoteca hospitalar com


enfoque psicodramático. In: Viegas et al Brinquedoteca
hospitalar: isto é humanização. Associação Brasileira de
Brinquedotecas. 2 ed. Rio de Janeiro: Wak Ed; 2006. p. 63-70.

232 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


MACHADO, Irene. Pensamento Semiótico sobre a Cultura. Vitória
/ES, V.2, n. 2. Agosto 2013

MBITI, Jonh. Christanity and Tradicional Relegions in Africa. In


Internacional Revier of Mission Gneva, October 1970 pp 430-440.

MUNANGA, K. Superando o Racismo na Escola. Edição revisada.


Brasilia. Ministério de Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade; 2005

OLIVEIRA, Eduardo. Africanidades . Org) Cidinha da Silva


Africanodades e Relações Raciais: Insumos para Políticas
Públicas na Área do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas no
Brasil. Brasília; Fundação Cultural Palmares, 2014

RIBEIRO, Ronilda Akemi. Alma Africana no Brasil - Os Iorubás.


São Paulo. Oduduwa. 1996.

RICHE, Rosa e HADDAD, Luciane. Oficina da Palavra. São Paulo:


FTD, 1988.

RICHTER, M.G. Pedagogia de projeto no ensino do português.


Santa Maria: UFSM, 1997. "Não paginado. Digitado".

SANTAELLA, Lúcia. Semiótica Aplicada. São Paulo. Pioneira;


Thomson Learning, 2005

SANTOS, Santa Marli Pires dos. Brinquedoteca: O lúdico em


diferentes contextos. Petrópolis: Vozes, 1997.

SILVA Joselina & EUCLIDES. De estudantes universitárias:


docentes negras construindo práticas de enfretamento ao
racismo. Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. ABPN.
Consórsio Nacioanl de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros.
Coneabs. Universidade Federal de Uberlândia – UFU. 2018.

SOMÉ, Sobonfu. O Espirito da Intimidade: Ensinamnetos


ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar - 2ªED.
(2007)

SOUZA, Ana Lúcia . Letramento. (Org) Cidinha da Silva

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 233


Africanodades e Relações Raciais: Insumos para Políticas
Públicas na Área do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas no
Brasil. Brasília; Fundação Cultural Palmares, 2014

WALLON, Henri. As origens do pensamento da criança. São


Paulo; Manole, 1986.

VERSIANI, Daniela B. Autoetnografia: uma alternativa


conceitual. Porto Alegre; Letras Hoje.v.37,n.04 pp 57-72;
dezembro de 2002.

VYGOTSKY, L. Pensamento e Linguagem. Tradução de Luiz


Camargo. São Paulo: Martins Fonte, 1999.

__________ A formação Social da Mente. São Paulo:


Martins Fontes, 2000.

WAJSKOP, Gisela. Brincar na Pré-escola. São Paulo: Cortez, 2001.

234 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


“DOS FILHOS DESTE SOLO, ÉS MÃE
GENTIL?”: Educação e afroindígenas
na “reforma” do estado brasileiro (1985-2018)
Maria Aparecida de Matos

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua


pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para
odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem
aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.
(Nelson Mandela, 1995).

INTRODUÇÃO

A trajetória das populações afrodescendentes e indígenas


brasileiras possui muitos pontos convergentes. Ambos os povos
foram escravizados no Brasil no contexto da expansão marítima
europeia e de colonização das Américas. Nesse interim foram
explorados, violentados e expropriados de seus direitos, e na
gênese do regime republicano foram “considerados um enorme
entrave à modernidade do país”, como demonstram Luiz Alberto
Oliveira Gonçalves e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
(GONÇALVES, SILVA, 2000, p. 134).
No que tange a questão educacional, negros e indígenas
vivenciaram tanto no período colonial e imperial quanto na
conjuntura republicana, o abandono e a exclusão por parte do
Estado. Num primeiro momento, foram submetidos a um
processo de escolarização catequizadora, depredadora, agressiva
e que não possuía o objetivo de emancipá-los, mas apenas de
oferecer-lhes a erudição básica para o trabalho e para o
cumprimento dos preceitos religiosos. O contexto aqui descrito é
muito familiar no que diz respeito à história dos povos indígenas.
No entanto, esse processo também foi imposto a uma parcela da
população negra que se encontrava sob o domínio dos jesuítas,
aos demais o acesso à educação foi negado totalmente. A esse

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 235


respeito Gonçalves e Silva asseveram que,

Sobretudo, os africanos escravizados estavam


impedidos de aprender a ler e escrever, de cursar
escolas quando estas existiam, embora a alguns
fosse concedido, a alto preço, o privilégio, se
fossem escravos em fazendas de padres jesuítas.
Estes, visando a “elevação moral” de seus
escravos, providenciavam escolas, para que os
filhos dos escravizados recebessem lições de
catecismo e aprendessem as primeiras letras,
sendo-lhes impedido, entretanto, almejar estudos
de instrução média e superior. Nessas escolas dos
jesuítas, as crianças negras eram submetidas a
“um processo de aculturação, gerada pela visão
cristã de mundo, organizada por um método
pedagógico” de caráter repressivo que visava a
“modelagem da moral cotidiana, do
comportamento social” (Ferreira & Bittar, 2000)
(GONÇALVES, SILVA, 2000, p. 135).

A população negra brasileira foi desprovida do direito ao acesso


à educação em grande parte da sua história, seja por
determinação legal ou pelos contingentes sociais que lhe foram
impostos¹. Em relação aos povos indígenas, lhes impuseram até
bem recentemente um modelo educacional colonizador que
buscava lhes despojar dos seus traços culturais².
Concomitantemente, foi sendo forjada uma imagem negativa a
respeito desses povos, por meio da cristalização de estereótipos,
da inferiorização dos seus traços étnico-raciais e da
desvalorização das suas histórias e culturas. Essa imagem
difundida na sociedade brasileira é suscitada pelo racismo ao
mesmo tempo em que contribui para sua disseminação, levando a
um profundo enraizamento do mesmo nas estruturas sociais
brasileiras. Logo, reconhecer que o racismo brasileiro é

1 A esse respeito ver Movimento Negro e Educação (GONÇALVES, SILVA, 2000).


2 Um preâmbulo dessa discussão pode ser encontrado na entrevista realizada pelo
então estudante da licenciatura intercultural indígena, Juari Pataxó, com o professor
Edson Kayapó, do Instituto Federal da Bahia, intitulada Interculturalidade nas Escolas
Indígenas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=w5pJGbqL4Zk (acesso
em 25 de fevereiro de 2018).

236 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


estrutural é também perceber que ele adentra e faz parte do
cotidiano escolar, o que requer medidas igualmente estruturais
para o seu combate.
Nessa perspectiva, os movimentos sociais negro, indígena e
indigenista coadunaram suas forças para a reivindicação de
direitos básicos dos povos que representam, bem como para a
inserção adequada, proporcional e positiva das suas histórias e
culturas no currículo oficial de ensino brasileiro. O ápice desse
processo se deu na elaboração da Constituição Federal de 1988 em
que diversos grupos ligados às organizações desses movimentos
sociais atuaram incisivamente de modo a garantir suas
demandas nesse texto constitucional, inclusive muitas
relacionadas à educação.
O contexto da elaboração da Constituição de 1988 é visto por
alguns pesquisadores, tais como Ilse Gomes Silva (2003), como
um período de reformas, tendo em vista que o Brasil saía de um
regime ditatorial que perdurou vinte e um anos, e que ela
representava o marco do retorno da democracia ao país, ainda que
essa democracia não tenha sido consolidada plenamente, devido
à adoção do neoliberalismo que contribuiu, por exemplo, para a
criminalização dos movimentos sociais.
Nesse sentido, foram necessários muitos embates para se
imprimir nessa Constituição algumas das reivindicações
favoráveis a esses grupos e posteriormente para que elas se
concretizassem. No entanto, por meio desse texto constitucional
e de alguns dos seus primeiros desdobramentos relacionados à
educação, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação -
LDB/1996 e os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN’s (1995 –
1997), foram inseridas diretrizes voltadas para a abordagem da
diversidade em sala de aula. Essas políticas educacionais são
chamadas de universais, haja vista que elas ainda não
contemplam diretamente a temática afroindígena e não
desenvolvem meios de inserir esse público no cenário
educacional.
A partir de então, a luta passou a ser pela a implantação de
políticas específicas e de ações afirmativas que intuíssem corrigir

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 237


as injustiças históricas das quais negros e índios brasileiros
foram vítimas. É importante destacar aqui que a permanência da
atuação dos movimentos sociais foi imprescindível para a
institucionalização dessas políticas de cunho específico. A
pressão interna e externa advinda principalmente da atuação
desses movimentos sociais levou no ano de 2003 ao
sancionamento da lei 10.639/2003 e em 2008 da 11.645/2008 que
incluíram a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura
Africana, Afro-brasileira e Indígena no currículo oficial de ensino
brasileiro. Seguiram-se a essas leis um conjunto de decretos,
resoluções e diretrizes que as normatizaram, e por meio de outros
ordenamentos jurídicos foram paulatinamente sendo garantidos
mais direitos a esses povos, como por exemplo, com o
sancionamento da lei 12.711/2012 se institucionalizou a
obrigatoriedade da adoção do sistema de cotas étnico-raciais
para negros, indígenas e deficientes nas instituições brasileiras
de ensino superior e de nível médio técnico. Essas determinações
legais, sejam elas de cunho universal ou especifico, geraram a
obrigatoriedade de reformulações nos currículos e práticas
escolares no ensino brasileiro, incluindo, na disciplina de
História, possibilitando avanços no que tange a implantação de
um projeto educacional voltado para a educação das relações
étnico-raciais.
Em suma, a reflexão sobre “Os filhos desse solo és mãe gentil?”
– Educação e afroindígenas na ‘reforma’ do estado brasileiro, diz
respeito a análise das politicas educacionais voltadas para a
população brasileira negra e indígena ao longo do processo de
redemocratização do Brasil, mais precisamente, entre os anos de
1985 e 2018. Os caminhos percorridos nesta pesquisa me levou a
constar que apesar dos consideráveis avanços para a inclusão das
populações afroindígenas e de suas respectivas histórias e
culturas no cenário educacional brasileiro, realizada,
principalmente, por meio das normatizações jurídicas do país,
esse é um processo inacabado, dependendo ainda de iniciativas
individuais para ser realizado e tendo muitas vezes o próprio
Estado como um dos seus atravancadores. É necessário lembrar

238 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


que negros e indígenas são, por natureza, legítimos filhos do
estado brasileiro e que este último, por sua vez, tem
historicamente lhes negado direitos essenciais para as suas
existências, dentre esses, o direito a educação, a história e a
preservação de suas memórias.

APORTE TEÓRICO

A premente necessidade de implantar um projeto de educação


antirracista só existe em face de uma sociedade em que o racismo
se encontra solidificado, tendo se tornado um agente de
segregação, inferiorização e exclusão de parte dos seus grupos
sociais. Logo, para discussão aqui proposta sobre o projeto de
educação antirracista é essencial à compreensão do racismo, no
nosso caso, especificamente do racismo brasileiro.
As raízes históricas do racismo brasileiro podem ser
encontradas dentro do projeto de expansão colonial europeia na
América por volta do século XVI. É nesse contexto que a categoria
de raça começou a ser delineada com intuito de justificar a
dominação dos europeus sob os nativos que aqui encontraram e
os africanos que a posteriori foram trazidos, compulsoriamente,
para o continente americano. A esse respeito Anibal Quijano
escreveu:
Na América, a idéia de raça foi uma maneira de
outorgar legitimidade às relações de dominação
impostas pela conquista. A posterior constituição
da Europa como nova identidade depois da
América e a expansão do colonialismo europeu ao
resto do mundo conduziram à elaboração da
perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com
ela à elaboração teórica da idéia de raça como
naturalização dessas relações coloniais de
dominação entre europeus e não-europeus.
Historicamente, isso significou uma nova maneira
de legitimar as já antigas idéias e práticas de
relações de superioridade/inferioridade entre
dominantes e dominados. Desde então
demonstrou ser o mais eficaz e durável

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 239


instrumento de dominação social universal, pois
dele passou a depender outro igualmente
universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou
de gênero: os povos conquistados e dominados
foram postos numa situação natural de
inferioridade, e conseqüentemente também seus
traços fenotípicos, bem como suas descobertas
mentais e culturais. Desse modo, raça
converteu-se no primeiro critério fundamental
para a distribuição da população mundial nos
níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da
nova sociedade. Em outras palavras, no modo
básico de classificação social universal da
população mundial. (QUIJANO, 2005, p.118)

Nesse processo de “encontro” com os europeus, negros e


indígenas vivenciaram conjunturas similares tanto no que tange
as questões objetivas como a homogeneização das suas culturas,
a exploração das suas forças de trabalho por meio principalmente
da imposição do trabalho escravo e o morticínio das suas
populações que em parte se deriva dessa escravização; quanto no
plano ideológico por meio da categorização e hierarquização dos
grupos humanos em raças, nos quais indígenas e negros foram
taxados como povos inferiores, primitivos, infantis, desumanos,
fossilizados e até zoomórficos. Vale salientar que essa construção
ideológica é um meio eficaz de justificar a realidade material, ou
seja, ela foi uma ferramenta essencial para legitimar a dominação
dos europeus sobre esses povos e, consequentemente, a
escravização que lhes impuseram. Gislene Santos observa que,
O racismo e as raças biológicas são construções
teóricas, filosóficas e ideológicas que surgiram a
partir do século XIX.

A escravidão negra, muito embora tenha se


iniciado muito antes que o conceito de raça tenha
sido forjado e o racismo, inventado, foi baseado na
idéia de que os negros eram diferentes, não tinham
alma, eram selvagens e brutais e, por isso,
deveriam ser escravizados para a salvação de suas
próprias almas. O mesmo argumento fora
utilizado para a escravização dos indígenas da

240 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


América. (SANTOS, 2007, p. 22, 23)

Ao compreendermos o processo de racialização como uma


elaboração ideológica, logo conclui-se que o racismo, por ser uma
derivação desse processo, também faz parte do campo das ideias.
Sua construção ocorreu no decorrer de quatro séculos, mais
precisamente, do século XVI com início da colonização das
Américas até o século XIX, quando se propagou as teorias raciais
científicas no Brasil. Essas teorias raciais estavam embasadas em
um discurso científico que afirmava haver diferenças biológicas
entre os diversos grupos humanos e que, por meio de tais
diferenças, era possível classificar e hierarquizar as populações
mundiais. Mediante a classificação estabelecida, os europeus
ficaram no topo da pirâmide da evolução em detrimento dos
povos indígenas e negros que foram postos nos últimos lugares
na escala social³.
Desse modo, as teorias formuladas no Brasil a essa época
buscavam demonstrar que devido, no caso especificamente da
população negra, a fragilidade genética, as taxas de natalidade
supostamente mais baixas, a chegada dos imigrantes ao Brasil, e
ao de processo mestiçagem, esses povos iriam progressivamente
ser substituídos, nas palavras de Antonio Sérgio Alfredo
Guimarães (1995, p. 37), “o núcleo desse racialismo era a idéia de
que o sangue branco purificava, diluía e exterminava o negro,
abrindo assim a possibilidade para que os mestiços se elevassem
ao estágio civilizado”.
A ideologia do branqueamento há muito tempo está presente na
estrutura social brasileira, seja para defender o processo de
miscigenação, seja para condená-lo. Ao mesmo passo que alguns
cientistas e intelectuais do século XIX e XX viam a miscigenação
como um meio de “purificação” e “evolução” racial, outros a
percebiam como algo danoso que contribuiria para manter o
atraso brasileiro. Entretanto, as camadas sociais dominantes do
Brasil em geral defenderam e incentivaram por meio de

3 Sobre essa temática ver o trabalho Racismo e anti-racismo no Brasil (GUIMARÃES,


1995, p. 26-44).

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 241


dispositivos legais e em diferentes períodos da história
brasileira, a progressiva substituição e a consequente eliminação
dos africanos e seus descendentes do Brasil. A exemplo disso,
podem ser citadas campanhas de incentivo a imigração no
período republicano que evidenciavam a restrição da entrada de
africanos no Brasil.
No que tange aos povos indígenas houve o estabelecimento de
um processo análogo ao descrito acima. Já no início do século XIX
surgiram no Brasil teorias ancoradas na doutrina evolucionista
que afirmava serem os índios povos em extinção. Essas teorias se
solidificaram ao longo desse século por meio, principalmente, do
discurso científico construído ao seu entorno, ganhando
legitimidade e permitindo a sua aceitação até meados do século
XX. As pesquisas realizadas a época buscavam comprovar a
inferioridade desses e para tal utilizavam-se de crânios
indígenas de diferentes nações para estabelecer uma
hierarquização entre os diferentes povos indígenas que se
encontravam no Brasil. Se origina daí a visão cristalizada e até
hoje difundida a respeito dos indígenas brasileiros que está
presente não só no imaginário popular como também que é
propagado nos meios formais de difusão do conhecimento, por
exemplo, na educação, como demonstra o pesquisador Edson
Silva. Ele afirma que,
Durante muito tempo, nos estudos sobre a História
do Brasil, além das referências ao índio apenas nos
primeiros anos da colonização, predominou a
visão sobre os povos nativos como vitimados pelos
inúmeros massacres, extermínios, genocídios e
etnocídios provocados pelas invasões e
colonização dos portugueses e outros povos
vindos da Europa a partir de 1500. E que os poucos
índios sobreviventes, estavam condenados ao
desaparecimento engolidos pela marcha
colonizadora, pelo progresso e por meio da
“aculturação”, foram integrando-se à nossa
sociedade. Em geral, essas ideias que permanecem
sendo ensinadas nas escolas e mesmo nas
universidades, ainda aparecem em manuais

242 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


didáticos, principalmente nos livros de História do
Brasil, são também veiculadas pela mídia e
expressadas pelo senso comum. (SILVA, 2017, p. 69)

O processo descrito acima e comumente ainda percebido no


âmbito educacional brasileiro, especialmente no Ensino de
História, manifesta o quão solidificado se tornaram as teorias
difundidas a partir do século XIX a respeito de uma inevitável
extinção dos povos indígenas. A chamada crônica da extinção
destes povos se perpetua até hoje e pode ser visto como vitoriosa
ao passo que parte considerável dos estudantes brasileiros só tem
acesso a essa versão limitada da história indígena e tornam-se
cidadãos que reproduzem esse mesmo discurso. É válido ressaltar
ainda que essa construção ideológica está permeada de interesses
que foram sendo ressignificados com o passar dos séculos.
Entretanto, como se sabe, as previsões pessimistas da extinção
dos indígenas propagadas no século XIX e XX, apesar de
unanimes na época, não se concretizaram. Da mesma forma que
ocorreu com os africanos, havia nesse período grupos que
buscavam considerar os aspectos positivos da mestiçagem
ressaltando que os indígenas dariam, como afirma Monteiro
(2001, p. 174), um “caráter especifico” à nação brasileira. Porém,
outros acreditavam que este processo só teria aspectos negativos,
não tendo os nativos nada a corroborar com a formação do povo
brasileiro e que, por isso, deveriam ser exterminados. Apesar
desses diferentes discursos relativos à penetração da população
indígena na constituição dos brasileiros, todos concordavam que
eles desapareceriam seja pelos “defeitos da raça” ou pela lei da
seleção natural resultante do processo de fusão destes com
brancos e negros.
É possível perceber assim que as teorias raciais formuladas,
principalmente, no século XIX afetaram não só a população negra
como também a indígena, ao mesmo passo que a ideologia do
branqueamento dizia respeito a ambos. Vale lembrar ainda que
essas teorias nada mais são que o preâmbulo do processo
conhecido como racismo científico, cujo alicerce se encontra
justamente nas ideias importadas da Europa nesse período. As

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 243


pesquisadoras Nilma Lino Gomes e Shirley Aparecida de Miranda
apresentam uma síntese interessante a respeito desse processo,
de acordo com elas,
A ideologia do branqueamento da população brasileira como
condição de desenvolvimento do país remonta ao século XIX.
Como nos lembra Thomas Skidmore (1986, p. 219), a tese do
branqueamento teve sua formulação mais sistemática na década
de 1920, pelas mãos de Oliveira Vianna. Alicerçado no pensamento
racista europeu, este advogado e historiador cotejava dados
censitários para demonstrar o declínio do “aumento natural” da
população indígena e negra, embora o censo de 1920 não incluísse
desdobramentos por raça. A contradição e a incompatibilidade de
sua conclusão com o racismo científico no qual se baseava – “o
Brasil estava em vias de atingir a pureza étnica pela
miscigenação” (SKIDMORE, 1986, p. 221) – não abalaram o
prestígio que sua teoria alcançou entre a elite brasileira da época,
ávida por se tranquilizar em relação ao futuro branco da
população brasileira. (GOMES, MIRANDA, 2014, p.85)
Por meio desses discursos e, inerente a eles, foi forjada também
durante o século XIX, a imagem dos negros como uma classe
perigosa e dos indígenas como “bons selvagens”. Essa afirmativa
pode ser comprovada por meio das concepções da época que, por
exemplo, associavam a ideia de raça à criminalidade,
argumentando que algumas “raças” estariam mais suscetíveis a
praticar delitos e violar a ordem, no caso, notadamente os negros
entraram nessa classificação. Nesse sentido, mesmo antes da
Abolição da Escravatura no Brasil (1888) já havia uma intensa
discussão sobre a necessidade de oferecer ou não educação para a
população negra, sendo alegado por um dos polos do debate que a
educação agregada ao trabalho “eram os antídotos mais eficazes
contra o crime e o vício” (GONÇALVES, SILVA, 2000, p 135). Pode se
perceber por meio dessa colocação que mesmo os defensores da
implantação de um projeto de instrução voltado para os africanos
e seus descendentes não estavam preocupados com a sua
emancipação e com meios de proporcionar igualdade social no
país e, sim, com a instauração de estratégias de controle social e

244 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


preparação de mão de obra. Lembro a esse respeito das palavras
de Nilma Lino Gomes,

[...] estava presente nos discursos das elites


intelectuais e políticas que preconizavam a
necessidade da população negra ser escolarizada.
Uma educação para o trabalho e para serem bons
cidadãos já que estavam inseridos na grande
massa da população pobre e ainda traziam o
estigma da escravidão que lhes impunha a marca
de inferioridade. Apesar disso, a presença dos
negros na escola era motivo de incômodo para o
restante da população e era dificultada pelos
mecanismos mais diversos – desde as matrículas
até as relações estabelecidas no cotidiano escolar.
(GOMES, 2009, p. 42, 43)

Por intermédio dessa citação pode ser apreendido que ainda


que tenha se esboçado intenções de se estabelecer um plano
educacional que integrasse a população negra, esse não obteve
sucesso, tendo em vista que uma parcela significativa da elite
brasileira, maior articuladora social à época, considerava e temia
os riscos de oferecer instrução para as camadas populares e, em
especial, para os escravizados e seus descendentes.
A construção da imagem do indígena como o “bom selvagem”
também se deu no século XIX com a iminente necessidade de se
construir uma identidade para o povo brasileiro que estava em
“formação”. No contexto posterior ao processo da Independência
brasileira, os indígenas foram eleitos os melhores representantes
da identidade nacional e foi elaborado sobre eles um retrato
caricaturado que os elevavam ao posto de heróis nacionais. O
pesquisador Edson Silva apresenta uma súmula desse processo,
de acordo com ele,
Na busca da afirmação da identidade da nova nação
independente, de uma representação simbólica
que expressasse a participação das raças na sua
formação histórica, o branco por ser de origem
portuguesa foi rejeitado, pois significava a
manifestação da antiga dominação da qual o Brasil
há pouco se libertara. O negro, nunca fora

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 245


prestigiado, pois a condição de escravizados
trazidos da África e de coisificação imposta não
permitia pensá-lo como representação da
nacionalidade. Restava o indígena, que embora
combatido no passado e no presente, era o filho
originário da terra e assim como ninguém um
elegível e legítimo representante simbólico da
nacionalidade. (SILVA, 2017, 42)

Vale salientar que a figura do indígena que ganhou destaque


nesse período foi a que se encontrava distante, presa ao passado,
a do chamado índio histórico, permanecendo os indígenas
contemporâneos a eles na marginalidade. Para estabelecer a
divisão e diferenciação entre o índio histórico e os índios da
atualidade foi utilizada a categorização dos indígenas em tupis e
tapuias, sendo os primeiros, de acordo com a visão difundida na
época, as raízes do povo brasileiro já estando extintos, enquanto
os tapuias que seriam os “inimigos” da nação seriam os nativos
sobreviventes que ainda estavam a vagar pelos sertões do Brasil.
Esse corpo ideológico construído ao longo de toda a história do
Brasil foi determinante e determinada pelo mito da democracia
racial que é um dos principais responsáveis pelo racismo ter
ainda tamanha força na atualidade. Por meio desse mito, se
afirma que houve um “encontro” harmônico entre europeus,
indígenas e africanos, gerando um processo de integração
consensual desses povos que teria desaguado em uma sociedade
igualitária, sem conflitos, sem racismo e que ofereceu as mesmas
oportunidades para todos os seus cidadãos. Nilma Lino Gomes o
descreveu nos seguintes termos,
O mito da democracia racial pode ser
compreendido, então, como uma corrente
ideológica que pretende negar a desigualdade
racial entre brancos e negros no Brasil como fruto
do racismo, afirmando que existe entre estes dois
grupos raciais uma situação de igualdade, de
oportunidade e de tratamento. Esse mito pretende,
de um lado, negar a discriminação racial contra os
negros no Brasil, e, de outro lado, perpetuar
estereótipos, preconceitos e discriminações

246 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


construídos sobre esse grupo racial. Se seguirmos
a lógica desse mito, ou seja, de que todas as raças
e/ou etnias existentes no Brasil estão em pé de
igualdade sócio-racial e que tiveram as mesmas
oportunidades desde o início da formação do
Brasil, poderemos ser levados a pensar que as
desiguais posições hierárquicas existentes entre
elas devem-se a uma incapacidade inerente aos
grupos raciais que estão em desvantagem, como os
negros e os indígenas. Dessa forma, o mito da
democracia racial atua como um campo fértil para
a perpetuação de estereótipos sobre os negros [e
indígenas], negando o racismo no Brasil, mas,
simultaneamente, reforçando as discriminações e
desigualdades raciais. (GOMES, 2005, p.57)

A democracia racial brasileira é, como bem afirmado acima,


falaciosa e retórica, tendo ganhado, por isso, o status de mito. No
entanto, ela está arraigada no ideário popular brasileiro e
permeia as relações sociais que aqui se estabeleceram. Desse
modo, a negação do racismo no Brasil se propagou amplamente
utilizando-se da assertiva de que os problemas de desigualdade
percebidos na sociedade brasileira são de ordem social e não
racial, omitindo assim as práticas racistas, sejam elas individuais
ou institucionais, que ocorrem cotidianamente na nossa
realidade, bem como a discrepância econômica e social entre
brancos e não brancos (negros e indígenas) percebidos nos
índices e indicadores de desigualdade do país.
É interessante ressaltar que o mito da democracia racial busca
justamente a negação das desigualdades étnico-raciais no Brasil
como um meio de negar também a adoção de políticas públicas
específicas que estejam voltadas para a população afroindígena,
tendo em vista que se não existe racismo e que se todos têm, como
esse discurso apregoa, as mesmas oportunidades, não há a
necessidade da implantação de tais políticas. Nesse sentido, é
possível perceber que este mito vem sendo reformulado de
tempos em tempos, ganhando novos contornos e se adequando as
diferentes conjunturas históricas sempre contribuindo para o
prejuízo das demandas desses grupos.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 247


Nesse sentido, vale salientar que o racismo não se constitui
apenas no processo de ultrajar o outro por conta da sua aparência
física e de seus traços fenotípicos. Apesar de isso já ser por
demasiado atroz, o racismo vai além, estando relacionado
também com a negação histórica de direitos essenciais para a
sobrevivência dos afroindígenas, a naturalização das
desigualdades, da violência e da mortandade das quais foram e
ainda são vítimas, bem como a própria negação da existência
desse problema.
Logo, é plausível concluir que, se o racismo brasileiro é
estrutural, as mudanças necessárias para combatê-lo e ceifá-lo
devem buscar atingir as estruturas da sociedade brasileira, sendo
fundamental nesse processo a adoção de políticas públicas
específicas, principalmente, as destinadas à educação, campo
essencial para a desconstrução desse cenário.

PROBLEMA DE PESQUISA E RESULTADOS

No trabalho de pesquisa aqui esquematizado propus-me a


investigar o contexto educacional brasileiro gestado entre o
início da redemocratização do Brasil com o advento de políticas
educacionais universais à instauração das políticas educacionais
específicas para a inclusão e a abordagem da História e Cultura
Afro-brasileira e Indígena. Em outras palavras, busquei analisar
um conjunto de leis relativas à educação para e sobre os povos
afroindígenas, refletindo sobre em que medida o Estado
brasileiro nunca a subsidiou e em como os movimentos sociais
foram importantes para uma reviravolta nesse cenário.
Por meio da pesquisa pude constatar que, no que tange ao
cenário educacional, a relação entre o Estado brasileiro e esses
grupos sociais melhorou consideravelmente nas primeiras
décadas do século XXI, quando se assistiu a instauração das leis
10.639/2003, 11.645/2008, de seus desdobramentos e do
desenvolvimento de uma série de ações e programas para
concretizá-las. Entretanto, é necessário ressalvar que esse
processo começou a ser construído nas últimas décadas do século

248 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


XX, que ele fruto da ação dos movimentos sociais não se
constituindo benesses do Estado, e que muito ainda há de ser feito
para que de fato o ensino brasileiro consiga se tornar antirracista.
Concomitante a isso, investiguei por meio desses documentos
legais e com auxílio do referencial bibliográfico consultado, as
formulações e reformulações estipuladas para o ensino de
História nesse período, haja vista que o mesmo é constantemente
destacado nessas leis como um dos principais caminhos seja para
a inclusão da perspectiva da diversidade e pluriculturalidade ou
para a incorporação da concepção das relações étnico-raciais e da
pedagogia antirracista no ambiente escolar.
A esse respeito, é necessário frisar que com a introdução das
políticas educacionais universais, que marcam principalmente a
década de 1990, o ensino de História passou a ter como um dos
seus principais objetivos, a formação cidadã dos seus educandos
que seria alcançada por meio do estudo do multiculturalismo
brasileiro. Num primeiro momento, essa proposta foi vista como
uma grande conquista pelos movimentos sociais e pelos grupos
envolvidos no cenário educacional. Entretanto, logo ela se
mostrou falaciosa ao se diluir no discurso do falso universalismo,
apagando as diferenças étnico-raciais brasileiras e negando os
conflitos e desigualdades históricas aqui reinantes. Nesse
sentido, o ensino de História permaneceu eurocêntrico,
excludente e muitas vezes reprodutor de ideologias racistas.
Com o advento do século XXI que trouxe consigo a instauração
de políticas educacionais específicas para a abordagem da
História e Cultura Afro-brasileira e Indígena, as preconizações
para o Ensino de História buscaram torná-lo mais equitativo, por
meio da determinação do abandono da perspectiva etnocêntrica
pela qual ele é profundamente marcado e da inclusão de outras
histórias, culturas e concepções de mundo. Importa ainda
ressaltar que a disciplina de História é citada nas leis 10.639/2003
e 11.645/2008 como uma das principais áreas em que essa
abordagem deve ser desenvolvida e os seus desdobramentos
jurídicos apresentam como esse processo deve ocorrer.
Nessa perspectiva, busquei averiguar como o ensino de

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 249


História tem sido pensado pelo Estado brasileiro nesse contexto
de reforma e pós-reforma democrática, no que diz respeito à
incorporação e representação dos povos negros e indígenas.
Enfatizei a íntima relação entre a adoção das demandas desses
grupos pelo estado brasileiro às políticas de governo mais
progressistas implantadas no Brasil no início do século XXI,
destacando também a atuação dos movimentos sociais nesse
processo. Examinei também o cenário atual do ensino de História
descrito nesses documentos, em especial, nas políticas de cunho
específico, que reconhecem o caráter etnocêntrico, limitado e
racista do mesmo. Para comprovar ou não tal afirmação,
examinei o guia do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD
2018 do componente curricular História para o ensino médio
acerca da temática tratada, buscando perceber como estão
descritos nele os livros de História para esse nível de ensino
aprovados nessa seleção e que foram utilizados durante os
últimos três anos nas escolas públicas brasileiras.
Ante isso, pude constatar que apesar das significativas e
importantes mudanças executadas no ensino de História, ainda
pode se encontrar nele a veiculação de ideologias estereotipadas,
limitadas e até preconceituosas a respeito dos povos
afroindígenas. Em consequência disso, considerei necessário
discorrer, fundamentada na discussão teórica acerca desse tema,
sobre o racismo, o arraigamento dele na sociedade brasileira,
inclusive no cotidiano escolar que gera uma urgente necessidade
da adoção de uma pedagogia de combate ao racismo. Por fim,
procurei oferecer sugestões de recursos, metodologias e
discussões possíveis para a abordagem dessa temática no ensino
de História, pensando-o numa perspectiva antirracista.

METODOLOGIA

Percebendo a educação como um importante campo na luta


antirracista e para a promoção da justiça social, os movimentos
afroindígenas organizados passaram a reivindicar a criação de
leis, em especial ligadas à educação, que rompessem com o

250 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


quadro de desigualdade étnico-racial presente no Brasil. A
pressão interna feita por esses movimentos somada às exigências
internacionais que marcaram a última década do século XX e as
primeiras do século XXI, foram determinantes para o
sancionamento de leis e de todo um corpo normativo voltados
para a garantia dos direitos básicos da população negra e
indígena, entre eles o direito à educação, ao respeito as suas
diferenças étnicas-raciais e ao reconhecimento das suas
histórias e culturas.
Pode-se destacar dessa legislação, dada a sua relevância e ao
processo histórico de lutas que as originaram, as leis 10.639/2003
e 11.645/2008, bem como os pareceres e atos normativos que
foram paulatinamente sendo aprovados para a consolidação das
mesmas e que contribuíram também para demonstrar a situação
em que se encontrava a educação étnico-racial no Brasil, o que era
necessário mudar nesse campo e como isso poderia ser feito.
Por meio dessas leis é possível perceber a educação como um
caminho primordial para a superação dos preconceitos,
discriminações, do racismo e da desigualdade étnico-racial que
ainda vigora fortemente no Brasil, bem como para a valorização
da história e cultura negra e indígena. A frase apresentada na
epígrafe deste trabalho, atribuída a Nelson Mandela, é muito
representativa da interpretação dada nessas leis à educação,
vendo-a como uma construção social que pode e deve ser
utilizada como um instrumento para provocar e suscitar
alteridade, empatia, equidade e respeito entre os estudantes.
O trabalho aqui condensado se pautou na análise dessas
políticas educacionais voltadas para a população afro-brasileira e
indígena surgidas ao longo do processo de redemocratização do
Estado brasileiro, ou seja, a partir de 1985. Dessa forma, o marco
temporal inicial da pesquisa foi o ano de 1985 quando se teve
inicio a redemocratização do Brasil, pós regime militar
(1964-1985), e o ano de 2018 foi escolhido como marco final por
estar intimamente relacionado a legislação analisada. No ano de
2018 se comemorou quinze anos da aprovação da lei 10.639/2003 e
dez anos da sua sucessora, a 11.645/2008. Por outro lado, também

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 251


no ano de 2018 chegaram às escolas públicas brasileiras de Ensino
Médio as novas coleções de livros didáticos que foram utilizados
pelos seus estudantes durante os últimos três anos, meio pelo
qual buscamos investigar a incorporação dessas determinações
jurídicas no ensino de História. Assim, foi analisado também o
guia de livros didáticos para o Ensino Médio, do PNLD 2018, mais
especificamente, o componente curricular História. O trabalho
cuja a súmula é aqui apresentada foi dividido em três seções que
serão esboçadas a seguir.
A primeira parte denominada A redemocratização pela
perspectiva da educação: perdas e ganhos de direitos das
populações afroindígenas aborda o contexto de reforma do estado
brasileiro pós-Ditadura Militar (1964-1985), tentando
demonstrar como a adoção da política econômica neoliberal que
foi instaurada nesse momento afetou o cenário educacional, em
especial, no que diz respeito aos grupos sociais mais
desassistidos pelo Estado, negros e indígenas. É apresentado
também os governos implantados no Brasil durante as décadas de
1990, 2000 e 2010, refletindo como as políticas governamentais
adotadas por eles alteraram os ordenamentos jurídicos
implantados até então. Para tal, foi consultado essas alterações
legais, bem como os programas criados nesses governos para
averiguar em que medida isso favoreceu a população
afroindígena brasileira. Foi analisado ainda a Constituição
Federal de 1988, a LDB/1996, as emendas constitucionais e as
alterações que ambas sofreram, enfatizando o processo de ganho,
perdas e lutas desses povos. Essas lutas foram encabeçadas,
principalmente, pelos movimentos sociais que os representam.
Na segunda seção, intitulada Educação, Racismo e
Desigualdades étnico-raciais no Brasil: a necessidade de uma
educação antirracista, se buscou refletir sobre a centralidade da
Educação e do Ensino de História no processo de construção de
uma sociedade antirracista. Com esse fim, foi estabelecida uma
discussão a respeito do enraizamento histórico do racismo na
sociedade brasileira, o processo de sua construção que se deu
cientificamente em meados do século XIX e a necessidade da sua

252 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


desconstrução. Logo após, foi feita a analise das políticas de
cunho universais que iniciam o processo de ruptura com o quadro
educacional permeado pelo racismo. Entretanto, elas não
alcançam a sua totalidade, devido justamente ao fato de serem
amplas, genéricas e generalizadas. Destacou-se dessas políticas
universais, os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN’s,
lançados entre os anos de 1995 e 1997, para demonstrar que apesar
da aparente incorporação de uma perspectiva mais voltada para a
diversidade, em especial, nas áreas das Ciências Humanas, como
a História, ela desaguou na reafirmação do mito da democracia
racial, isto é, de que povo brasileiro se originou da confluência
harmoniosa das três raças, quais sejam, europeia, negra e
indígena, como já difundia Gilberto Freyre na década de 1930. Em
seguida, se examinou as leis 10.639/2003, 11.645/2008 e os seus
desdobramentos jurídicos que implementaram as demandas
educacionais de cunho específico, apresentaram a urgente
necessidade de uma educação antirracista e demonstraram como
esse processo poderia ser executado. Por intermédio dessas leis,
se procurou refletir ainda sobre as problemáticas encontradas na
abordagem dos povos afroindígenas no ensino de História e
apresentar o que está preconizado em lei para que ele se torne
mais equitativo, justo e plural. Por fim, investigou-se o guia do
PNLD 2018 para o Ensino Médio – componente curricular
História, numa tentativa de dimensionar como se encontra a
abordagem dessa temática nos livros de História atualmente,
passados quinze e dez anos, respectivamente, do sancionamento
dessas leis.
No terceiro compartimento, nomeado Subsídios para uma
Educação das relações étnico-raciais: Apontamentos para
abordagem da temática afroindígena nas aulas de História do
Ensino Médio, foi apresentado possiblidades disponíveis para a
abordagem da temática afroindígena nas aulas de História deste
nível de ensino. A partir dos problemas identificados na seção
anterior, relacionados ao trato dessa temática nas aulas de
História, foi catalogado sugestões de recursos textuais e
audiovisuais que podem ser utilizados tanto para o embasamento

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 253


teórico do professor quanto nas suas aulas com os discentes. Os
recursos elencados foram organizados em tópicos concernentes
com as possibilidades e necessidades encontradas no ensino de
História. Assim num primeiro momento, se ofereceu sugestões
que podem ser úteis no processo de formação continuada do
professor, como leis e referenciais bibliográficos;
posteriormente, os itens foram divididos em subtópicos
relacionados à abordagem desses recursos nas aulas de História,
pautados em questões como a heterogeneidade da África e dos
povos indígenas, a abordagem mais completa e positiva desses
povos no período colonial e em outros contextos da história
brasileira, e na problematização do racismo, da estética e da
identidade negra e indígena. Um dos principais critérios para a
seleção desses recursos foi o da sua disponibilização gratuita na
internet para que todos que possam acessá-los, consultá-los e, se
considerarem viáveis, utilizá-los em suas aulas, sendo este
compartilhamento de informações e de sugestões de práticas
pedagógicas, um dos caminhos que, a meu ver, podem levar à
construção de um ensino de História e, consequentemente, de um
sistema educacional e de uma sociedade verdadeiramente
antirracistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio do caminho percorrido na pesquisa, pude constatar


que no que se refere à inserção da temática afroindígena no
ensino de História, muito se conquistou, haja vista que,
atualmente, os seus livros didáticos não podem mais veicular
conteúdos preconceituosos ou racistas e que muitos professores
têm desenvolvido ações individuais e/ou coletivas com vistas em
cumprir as determinações das leis 10.639/2003 e 11.645/2008. No
entanto, há ainda um longo caminho a se percorrer para que de
fato essas leis se concretizem, universalmente, no ensino dessa
disciplina no Brasil. Pois, apesar desse processo ter começado
ainda na década de 1990, com a implantação das políticas
educacionais de cunho universal, que parcialmente já abriram

254 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


espaço para a discussão da diversidade em sala de aula; da
atuação dos movimentos sociais negros, indígenas e indigenistas
pela adoção de políticas educacionais de cunho específico; e de ter
obtido significativos ganhos na década seguinte; ainda hoje se
reproduz por meio do ensino de História visões incompletas,
estereotipadas e preconceituosas a respeito desses povos, o que
contribui para permanência do racismo para com eles, para o seu
não reconhecimento e aceitação, e para o crescimento dos índices
de evasão e abandono escolar.
Como é preconizada na legislação atual, a educação em geral e,
no caso que nos interessa aqui, o ensino de História, tem grande
responsabilidade no processo de desconstrução do racismo e
mais que isso, na construção de uma sociedade antirracista, isto
é, que além de não reproduzir e praticar ideologias racistas ainda
atue ferozmente no seu combate. Nessa perspectiva, creio que a
teorização sobre a íntima relação entre educação e racismo, seja
fundamental para a construção de uma nova postura no cenário
educacional e o compartilhamento de práticas pedagógicas
antirracistas seja fulcral para o estabelecimento de um ensino
neste formato.
Cabe aqui lembrar que a educação para as relações
étnico-raciais não diz respeito apenas à população negra e
indígena, mas sim, a todos que compõem a sociedade brasileira,
tendo em vista que esse modelo educacional busca o diálogo entre
os diferentes grupos étnico-raciais que constituem o povo
brasileiro, com vistas à implementação de um ensino plural,
proporcional e justo. Como está estabelecido no Parecer 003/2004
essas normatizações se dirigem a todos aqueles que podem e
almejam construir uma sociedade mais igualitária. Nesse Parecer
lê-se,
Destina-se, o parecer, aos administradores dos
sistemas de ensino, de mantenedoras de
estabelecimentos de ensino, aos estabelecimentos
de ensino, seus professores e a todos implicados na
elaboração, execução, avaliação de programas de
interesse educacional, de planos institucionais,
pedagógicos e de ensino. Destina-se, também, às

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 255


famílias dos estudantes, a eles próprios e a todos
os cidadãos comprometidos com a educação dos
brasileiros, para nele buscarem orientações,
quando pretenderem dialogar com os sistemas de
ensino, escolas e educadores, no que diz respeito
às relações étnico-raciais, ao reconhecimento e
valorização da história e cultura dos
afro-brasileiros, à diversidade da nação brasileira,
ao igual direito à educação de qualidade, isto é, não
apenas direito ao estudo, mas também à formação
para a cidadania responsável pela construção de
uma sociedade justa e democrática. (BRASIL, 2004,
p. 2).

Nós, enquanto docentes, devemos assumir a nossa


responsabilidade nesse processo de construção de um ensino e,
consequentemente, de uma sociedade antirracista, trazendo a
temática afroindígena para o cotidiano escolar, problematizando
as suas histórias e culturas, e apresentando aos discentes os
conflitos e desigualdades históricas que marcaram a relação
social entre brancos e não brancos. Não se trata aqui de eximir o
Estado brasileiro da sua obrigação de garantir a inclusão das
populações afro-brasileiras e indígenas, bem como de suas
respectivas histórias e culturas, no cenário educacional, mas sim
de contribuir para que esse processo seja verdadeiramente
efetivado. Afinal, como assinala Paulo Freire, “seria uma atitude
ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma
forma de educação que proporcionasse às classes dominadas
perceber as injustiças sociais de maneira crítica” (FREIRE, 1984,
p. 89), isto é, mesmo que tenhamos avançado consideravelmente
na implantação de políticas educacionais que contemplem as
demandas da educação para as relações étnico-raciais, na prática
esse processo ainda se encontra longe de ser consolidado, pois há
um enorme fosso entre o preconizado em lei e a realidade da
sociedade brasileira, sendo o próprio Estado muitas vezes o
empecilho para a sua consolidação, tendo em vista que não há o
pleno interesse em oferecer uma educação de qualidade a esses
povos e nem de inserir suas histórias e culturas no currículo de
ensino oficial brasileiro devido, principalmente, a interesses

256 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


socioeconômicos.
Nesse sentido, cabe também a cada um de nós, nos juntarmos à
luta por uma educação antirracista, seja ela por meio do
estabelecimento de cobranças ao Estado ou do desenvolvimento
de ações que busquem inserir essa temática no cotidiano escolar,
só assim conseguiremos construir uma sociedade mais
equitativa, justa e plural.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 257


REFERÊNCIAS

BRASIL. PARECER/CNE/CP 003/2004 (10 de março de 2004).


Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/003.pdf (acesso em
20/08//2017).

FREIRE, Paulo. Ação Cultural para liberdade e outros escritos.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

GOMES, Nilma Lino; MIRANDA, Shirley Aparecida. Gênero, raça e


educação: indagações advindas de um olhar sobre uma
academia de modelos. Unisul, Tubarão, v.8, n.13, p. 81-103,
Jan/Jun, 2014.

GOMES, Nilma Lino. Limites e possibilidades da implementação


da lei 10.639/03 no contexto das políticas públicas em educação.
In: PAULA, Marilene de; HERINGER, Rosana. Caminhos
Convergentes: Estado e Sociedade na superação das
desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação
Heinrich Bool, ActionAid, 2009. Pág. 39-74.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no


debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In:
Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº
10.639/03 (Coleção Educação para todos). Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade. – Brasília: Ministério
da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005. Pág. 39-62.

GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira; SILVA, Petronilha Beatriz


Gonçalves. Movimento Negro e Educação. Revista Brasileira de
Educação, n. 15, p. 134-158, set./out./nov./dez. 2000.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo


no Brasil. Novos Estudos - CEBRAP, n. 43, p. 26-44, nov., 1995.

MONTEIRO, Jonh Manuel. Tupi, Tapuias e Historiadores:


Estudos de História Indígena e Indigenista. Campinas:

258 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Departamento de Antropologia IFCH – Unicamp, 2001.

PATAXÓ, Juari; KAYAPÓ, Edson. Interculturalidade nas Escolas


Indígenas (entrevista). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=w5pJGbqL4Zk (acesso em 25
de fevereiro de 2018).

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e


América Latina. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de
Ciencias Sociales - CLACSO, 2005.

SANTOS, Gislene Aparecida. Percepções da Diferença. São Paulo:


MEC, 2007. (Coleção Percepções da Diferença: Negros e brancos
na escola).

SILVA, Edson. A invenção dos índios nas narrativas sobre o


Brasil. In: ANDRADE, Juliana Alves de; SILVA, Tarcísio Augusto da
(Orgs.). O Ensino da Temática Indígena: Subsídios didáticos para o
estudo das sociodiversidades indígenas. Recife: Edições
Rascunhos, 2017. Pág. 39-80.

SILVA, Ilse Gomes. Democracia e participação na “reforma” do


estado. São Paulo: Cortez, 2003.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 259


EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA:
CAMINHOS ENTRE A ESCOLA E A RUA

Luiza Rodrigues de Oliveira


Abrahão de Oliveira Santos

RESUMO

O texto traz reflexões para uma educação antirracista, fazendo


uma análise da escola em que a criança e os jovens negras/os
sofrem restrições em seu desenvolvimento cognitivo, emocional
e espiritual. Diante disso, procura mostrar a importância da
educação antirracista, cujo conteúdo programático e
modalidades pedagógicas devem ser enegrecidos e aterrados,
quer dizer, trazer as condições da resistência histórica dos povos
negros e panorâmicos. A referência epistemológica básica de
reflexão para uma educação antirracista, no texto, é a perspectiva
do movimento que coloca o negro como sujeito histórico
(movimento negro), na sociedade brasileira; a perspectiva da
descolonização trazida por Fanon; uma vertente aterrada que
articula educação e subjetivação (SANTOS; OLIVEIRA, 2019;
SANTOS, 2017); e a conexão com os saberes de terreiro.
Os anos são os do início da década de 1970, o cenário é uma
escola pública de um bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, a
personagem é a única criança negra em sala de aula e o tema é a
“Escravidão no Brasil”. Ao ouvir a história contada pela
professora sobre a “vinda” dos “escravos” para o Brasil, sobre os
trabalhos forçados e sobre a “condescendência” e a
“permissividade” dos homens negros e das mulheres negras, um
sentimento de vergonha toma conta da nossa personagem. O

260 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


sentimento aumenta quando a criança percebe todos os olhares,
organizados a partir do ponto de vista da casa-grande,
direcionados a ela pela turma e pela professora. O que ocorreria
com uma criança como Maria Luiza (O CUIDAR..., 2013), de família
umbandista ou candomblecista, que conversa com dona Maria
Mulambo, o Caboclo Sete Flechas, o Preto Velho, ou que recebe as
bênçãos de Kavungo, ancestral angola-congo, senhor da terra,
mestre das doenças, e das pandemias, mas também da cura? Ela é
chamada de macumbeira pelos coleguinhas e a professora não
sabe como cuidar da situação (PEREIRA, 2020).
Esses olhares constituem subjetivamente crianças e jovens na
escola básica, no grupo de amigos, na vida, e se prolongam no
âmbito da formação das profissões universitárias. Também no
espaço acadêmico universitário, os/as jovens se veem alijados/as
de uma formação inclusiva da história da África e sua diáspora,
bem como da história dos povos indígenas e suas lutas. Ainda
hoje, no que pese as alterações nas diretrizes curriculares
(BRASIL, 2003; 2008), os programas dos cursos de formação
profissionais, de educação, de saúde e de assistência,
particularmente, não incluíram os conteúdos referidos nestas
leis. Nesse contexto hostil à sua memória familiar, social e racial,
a criança se retrai cognitivamente, inibe-se emocionalmente e
tem seu desenvolvimento intelectual cerceado, pois a educação é
importante vetor pelo qual a pessoa negra se subjetiva. A visão
negativa de si se instala e se confunde com seu ser. Este texto é
escrito como aposta política em uma educação antirracista, para
além da díade a escola e o olhar do branco.
O sentimento de vergonha e não pertencimento relatado a
partir de reminiscências de quase 50 anos atrás ou do
documentário O cuidar no terreiro (O CUIDAR..., 2013), produzido
pela Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras - RENAFRO e os
cuidados de José Marmo, é o que ainda hoje se passa com crianças
e jovens negras/os ao adentrarem a escola, instituição que, em sua
origem, já surge assimilada por uma cultura que em nada se
reporta à história do povo preto, antes, ao contrário, visa
repeli-la, como se não fizesse parte da nacionalidade. Ainda hoje,

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 261


crianças e jovens negras/os recebem esses olhares nas escolas,
trauma muito bem expressado por Fanon em Pele negra,
máscaras brancas:
“Olhe um preto!” Era um stimulus externo, me
futucando quando eu passava. Eu esboçava um
sorriso. “Olhe um preto!” É verdade, eu me
divertia. “Olhe um preto!” O círculo fechava-se
pouco a pouco. Eu me divertia abertamente.

“Mamãe, olhe o preto, estou com medo!” Medo!


Medo! E começavam a me temer. Quis gargalhar
até sufocar, mas isso tornou-se impossível. [...]
Então o esquema corporal, atacado em vários
pontos, desmoronou, cedendo lugar a um esquema
epidérmico racial. No movimento, não se tratava
mais de um conhecimento de meu corpo na
terceira pessoa, mas em tripla pessoa [...] ocupava
um determinado lugar. Ia ao encontro do outro… e
o outro, evanescente, hostil, mas não opaco,
transparente, ausente, desaparecia. [...] Lancei
sobre mim um olhar objetivo, descobri minha
negridão [...] (FANON, 2008, p. 105-106).

A escola é uma instituição na qual a criança e a/o jovem negra/o


vivem esse olhar da brancura e se descobrem negras/os a partir
das falas sobre o seu cabelo, suas características físicas e da
subjetividade que lhe foi arrumada desde antes do advento da
abolição, em 1888 — violenta/o, afeita/o à subjugação,
preguiçosa/o, suja/o, e feia/o. Subjetivação forjada a fim de tirar
de cena as insurreições, as lutas, as organizações do povo preto e
sua condição de sujeito histórico, portanto.
Luiza Bairros (2016, n. p.) chama esse movimento de “racismo
institucional (...) que tem a ver com a capacidade que as
instituições têm de produzir desvantagens para determinados
grupos (...) a escola precisa perceber-se como produtora dessas
situações”.
É preciso que as mudanças significativas, trazidas pelas Leis nº
10.639/2003 (BRASIL, 2003) e nº 11.645/2008 (BRASIL, 2008) e
pelas diretrizes curriculares acerca do ensino dos estudos da

262 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


história e da cultura afro-brasileira e indígena, traduzam-se em
uma formação que seja capaz de afirmar o reconhecimento da
gente negra e pindorâmica na luta histórica por direitos e contra o
racismo institucional nas escolas. Essas leis, frutos dos esforços
do movimento negro no país (NASCIMENTO, 2019),
constituem-se como possibilidade de intervenção na escola
assimilada aos valores coloniais, que nega a pluralidade de modos
de vida, e que, portanto, impede o pleno desenvolvimento das
pessoas negras (SANTOS; OLIVEIRA, 2019; SANTOS, 2017), e
portanto, dos brasileiros como um todo.
O direito dos povos negros e pindorâmicos de se reconhecerem
na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias e
manifestarem-se com autonomia, e por essa via, de reparação de
"dano psicológico", está expresso em documento oficial de
Estado (BRASIL, 2004, p. 3), escrito sob a relatoria de Petronilha
Beatriz Gonçalves e Silva. Os povos pindorâmico e preto urbanos
e rurais, os quilombolas, o povo de terreiro, os favelados e
periféricos reivindicam uma educação aberta à elaboração da
memória de nossas lutas. Educação não apenas referida ao
passado, mas à memória de por que moramos em determinadas
partes da cidade, por que falamos de determinado modo, por que
temos determinado futuro, por que empreendemos determinadas
lutas, por que cultuamos as forças da natureza, os antepassados,
os caboclos, por que somos tão apegados ao sentido da
comunidade e da terra.
É isto que queremos chamar de memória histórica, aquilo que
nos faz sujeitos coletivos (PEREIRA, 2013), como expõe Amauri
Pereira, agente social plenamente ciente do sentido atual de sua
existência. Memória, portanto, indispensável às bases
perceptivas, cognitivas e emocionais de formação da juventude
negra, mas também espiritual, pois almejamos que essa educação
nos dê, ao lado da conexão no socius, a conexão com os nossos
antepassados, com a terra e a natureza. Não podemos nos
esquecer jamais do legado que compõe nossa memória, que é
histórica, pois se forja na dinâmica de tempo e espaço do ser, em
movimentos de curvas e alongamentos, conformando-se em

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 263


amálgamas do passado e do futuro, a tornar-se atual no presente;
do aqui, do além, do longe e do perto. Sendo assim, não se trata do
tempo linear e consecutivo, mas o tempo da "circularidade
espiralada", como enuncia Leda Martins (2020, p. 12).
Conforme Arlindo Vieira Santos, no ano de 1931, o Manifesto à
Gente Negra Brasileira propunha uma "educação nova, brasileira
radical, integral em todas as escolas" (apud FERNANDES, 2008, p.
38). Para honrar a história, nossa escola deve oferecer às crianças
e jovens negras/os, para nos aproximar de um campo de cognição
e conduta, aquele sentimento de pertença exercitado no terreiro:
uma pessoa entra pela porta do barracão e não tem nada, dizia
mãe Muagi, da casa Tumba Junsara, em Salvador-Ba, faz os
rituais de iniciação, quando sai ela tem avós, tios e mãe de santo,
inúmeros irmãos e irmãs, e tem toda uma memória recuperada
(SANTOS, 2019).
Nessa retomada da memória, a educação deve levar a pessoa a
ser
[...] capaz de reconhecer os problemas históricos da
sua comunidade e dispor-se, em solidariedade e
coletivamente, ao trabalho de superá-los. Estamos
aí no âmago do debate acerca da formação
educacional que mantém o educando
organicamente conectado aos problemas de sua
comunidade. Queremos uma educação “orgânica”,
vale dizer, aquela que mantém a conexão dos
indivíduos educandos com a situação atual e o
devir da sua comunidade (SANTOS, 2017, p. 161).

Dona Zilda Chaves, do Coletivo Ocupa Alemão, na Cidade do Rio


de Janeiro, e educadora na Escola Pan-africanista Dandara dos
Palmares, diz: “para que as crianças tenham a vivência de ser
pretas e ser da favela. De saber que têm que lutar 24 horas por dia”.
E complementa: há um “ensino branco que não condiz com a
gente” (SANTOS, 2017, p. 160). Para D. Zilda, que vivencia a labuta
nas favelas e a luta que lhe é legada de longa data, pelo direito à
existência, as crianças precisam saber quem são e como são. A
Escola Dandara dos Palmares, sonhada, e agora realizada, pelo
coletivo do Complexo do Alemão, dá início a um novo ciclo

264 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


enquanto comunidade preta, da favela. Assim, conclui Dona Zilda:
“quando chegarem na universidade, que cheguem com
conhecimento enquanto povo preto” (SANTOS, 2017, p. 160).
Na opinião de Tiganá Santana Neves Santos, na formação do
cidadão, no contexto da Paideia grega, as pessoas deveriam
incorporar a polis, a cidade-estado, e tê-la impressa na alma,
assim como outros valores, inclusive os deuses. Os deuses gregos
antigos morreram e a polis já não é mais. Entretanto, no que diz às
cosmologias negras, as forças da natureza e a ideia de
comunidade estão absolutamente impressas.
No que diz respeito aos nossos ancestrais
negro-africanos e aos descendentes em diáspora,
a ideia de comunidade, kânda, de ancestralidade, e
a presença dessas forças todas que a gente
encontra a partir da experiência existencial com
isso que se pode chamar de natureza, tudo está
aqui (CAMINHO..., 2020, n. p.).

A escola desconhece uma importante parte do Brasil, queremos


dizer, desconhece os diferentes modos de pensar o próprio
caminho, como os presentes na “mundivisão bantu-kongo”
(CAMINHO..., 2020), como se refere Tigana Santana, e não sabe,
por conseguinte, como lidar com diversas situações de sala de
aula. Situações, entretanto, corriqueiras, por fazerem parte da
casa, da rua e da própria escola, vale dizer, do universo cotidiano
das crianças e dos jovens estudantes. Este constituído de
referências metafísicas, ou seja, esquemas de cognição e
pensamento, indispensáveis à organização do corpo, da
subjetividade e do mundo. Acresce-se aí as mundivisões
iorubanas e as dos mais variados povos originários, presentes,
senão no modo de vida hegemônico, atuantes e ativos entre o que
muitas vezes chamamos classes populares, que, no Brasil, quase
coincidem com os grupos sociais de descendência africana e
indígenas.
Lembramos acima de Maria Mulambo, Maria Padilha, o
Caboclo Sete Flechas, Preto Velho, Vovó Cabinda, Seu Tiriri. Há os
orixás e os voduns. Tata Kavungo, pai ancestral e força da terra

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 265


que nutre tudo que é vivo. Os encontros com essas divindades, os
nzilas, os bakulos ou antepassados, protetores e benfeitores,
põem em ação formações de pensamento que fogem às categorias
cognitivas e da subjetivação ocidentais, presentes não apenas nos
fiéis dos cultos de matriz africanas e indígenas. A extensão dos
descendentes pindorâmicos e o povo da diáspora, perifericizados
está mergulhada, corpo e alma, nessa kânda diferenciado. É bem
verdade que, nesta, encontra-se implicada, mais ou menos, toda a
população brasileira, de uma maneira geral. Pois, a escola e os
professores que adotam processos, didáticas, pedagogias e
conteúdos curriculares contracolonizadores, desenvolvem a
cognição, o pensamento, e também a subjetivação de pessoas
congruentes consigo mesmas, com sua família e sua história.
Uma escola e educação aterradas são também antirracistas e
libertadoras.
Ao observar essa posição, consideramos que o trabalho da
educação e a formação de crianças e jovens negras/os devem
envolver o valor do comunitarismo, assim não dará continuidade
ao epistemicídio em curso contra os saberes negros. Esse ponto de
vista para o campo da educação, de aterramento da cognição e da
epistemologia, foi nomeado de denegrir por Renato Noguera
(2012) e enegrecimento, por Abrahão Santos (2019), com sentidos
aproximados, ainda que distintos, mas cremos que ambos estão
acompanhando o chamado da militância negra para enegrecer.
Tal como nos convoca Abdias Nascimento em O quilombismo
(2019), quando propõe o programa de ação quilombista e diz que é
preciso incluir
um ativo e compulsório currículo sobre a história e
as culturas dos povos africanos, tanto aqueles do
continente, como os da diáspora; tal currículo deve
abranger todos os níveis do sistema educativo:
elementar, médio e superior (NASCIMENTO, 2019,
p. 302).

Enegrecer traz a memória. Memória de lutas, propósitos,


passado, futuro, pertencimento, acolhimento histórico. A escola,
ungida na ancestralidade, para usar o termo de Amauri Mendes

266 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Pereira, e nas nossas tradições, deve ser um espaço de memória,
não a do passado, mas a memória que se atualiza nas vidas
presentes e estão na conexão do atual, como expressamos acima.
No percurso em direção a essa educação, há um caminho que
precisa ser literalmente percorrido por crianças e jovens
negras/os, situado entre a casa e a escola, a rua, que reforça a
cidade partida, em que “[...] a cidade do colono é uma cidade
sólida, toda de pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada
[...] A cidade do colonizado [...] a aldeia negra, a Medina [...] é
esfomeada de pão, carne, sapatos, de carvão, de luz” (FANON,
2015, p. 55-56). A educação antirracista, quando propõe práticas
para além dos muros da escola, precisa enegrecer a escola e o seu
entorno, a cidade, as ruas, as vielas, o caminho para a escola. Por
isso, perguntamos onde a escola vira rua e onde a rua vira escola.
Insistimos: não se trata de contextualizar conteúdo a partir do
entorno da escola, mas, sim, de enegrecer o espaço local em que
corpos e subjetividades se apropriam da vida. Vivenciar a rua
como espaço de caminhos e encontros, de bifurcações também
temporais. Cruzos onde corpos negros estiveram, passaram,
estão e estarão, na performance da aula-rua. A rua-classe que
evoca uma frequência mais presente na modulação das
comunidades negras. O ponto de encontro, cruzo, mpambu wa
nzila, como se diz em kikongo, onde as existências se
reposicionam, no caso da aula, no embate dos conhecimentos,
como concebe Tigana Santos (CAMINHO..., 2020). Aí repousam as
potências das transformações e do desenvolvimento de tudo que
existe.
Esta reflexão quer, com isso, anunciar uma relação entre a
escola e a rua, isto é, no conceber a formação de crianças e jovens
negras/os. Quando tratamos do tema somos tomados pelos ideais
da modernidade de que a instituição escolar é aquela que vai
normatizar para a boa ordem nos espaços públicos, sendo a rua o
lugar sem condições de vida regular, mas também de uma suposta
liberdade típica da invencionice dos tempos modernos.
É certo que a escola e a rua são contextos diferentes e, portanto,
propiciam condições e possibilidades diversas, enfim, produzem

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 267


e se deixam produzir por operadores éticos, estéticos, cognitivos
e espirituais que compartilham modos de vida diferentes — rua,
lugar aberto, de circulação dos corpos; escola é espaço disciplinar
exemplar da modernidade. Mas, conhecemos bem a vigilância e o
controle que insistem também nas ruas, enquanto muitas vezes
somos tomados pela insurgência da liberdade no espaço escolar
com suas brincadeiras e métodos lúdicos. Podemos, assim, nos
perguntar: onde a escola vira rua e onde a rua vira escola?
Não se trata aqui, pode-se perceber, da proposta de
aulas-passeio de Freinet, que, em uma aposta anticonservadora,
afirmava a importância do ambiente natural, político e social ao
redor da escola, para que a aprendizagem se desse a partir dos
interesses das crianças e dos jovens. Trata-se, em nossa
proposição, de aterrar, descolonizar e contracolonizar as
experiências escolares e de formação da pessoa.
No livro Como as crianças vêem as ruas (1995), Arno Vogel diz
que o Estado e as instituições, como a escola, falam sobre a
infância. Em uma pesquisa em meados dos anos de 1980 e de 1990,
ele ouviu o que as crianças têm a dizer sobre a rua. No trabalho,
inédito à época, crianças de diversos bairros da cidade do Rio de
Janeiro escreveram e desenharam sobre a cidade. Foi uma
pesquisa importante, pois tirou a infância do lugar de objeto
diante dos saberes e das instituições. No entanto, ainda
precisamos aterrar ou enramar, trazer à cena a racialização do
processo histórico no Brasil, a fim de encontrar as crianças e
jovens negras/os. Não podemos abordar a infância, a juventude e
a escola sem considerar a emergências da frequência insurgente
dos povos negros e panorâmicos e disparadora da vontade de
construção e reconstrução de uma sociedade baseada em valores
espirituais comunitários (SANTOS, 2019).
Esta reflexão é anúncio do inconformismo com práticas e
propostas pedagógicas que, de maneira generalizada,
universalizam corpos, subjetividades, culturas e histórias, ou
europeizaram a razão e o sujeito, como diz Deivison Nkosi, nos
seus estudos de Fanon:
É essa a raiz da figuração do colonizado como um

268 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


ser enclausurado em seu corpo, tido quase sempre
como bruto, rústico e emocionalmente instável,
em contraposição ao europeu, apresentado sempre
como expressão universal das qualidades úteis ao
controle do mundo. Tanto a pretensa europeização
da razão ou do sujeito, quanto a objetificação
reificada do negro – ou
não-branco/ocidental/europeu –, são expressões
desse mesmo processo de racialização"
(FAUSTINO, 2015, p. 59).

Assim, perguntamos a quais corpos e subjetividades não se


permite a circulação, a brincadeira, a ludicidade, a vida, nem nas
ruas nem nas escolas? A quais corpos e subjetividades são
direcionados às práticas de violência na rua ou nas escolas? É
preciso, assim, localizar a pergunta (OLIVEIRA, 2019), aterrar a
prática e encontrar os corpos enramados e subjetivações daqueles
a quem não é permitido circular, apropriar-se dos espaços da
escola e da rua.
A racialização é uma operação, ora em linguagem científica ora
de modo vulgar, com propósito preciso de desqualificar,
brutalizar e animalizar o conjunto de povos que devem ser
dominados, escravizados e exterminados, ou mantidos
permanentemente subjugados. Além de envolver a força policial e
as armas, age produzindo conhecimento, modos de sentir e de ser.
Assim, o que acontece no interior das escolas, a negação da
condição de sujeito coletivo histórico dos povos da diáspora e dos
indígenas, se presentifica na ausência de conteúdo didático. É a
afirmação da política de morte, do genocídio e do epistemicídio
aos quais tais grupos estão destinados. É a imposição, ainda, de
um modo de vida que podemos nomear como tornar-se branco, a
produção da brancura, que o sociólogo Clóvis Moura denominou
de “gradiente étnico” (MOURA, 2019, p. 90):
Em cima dessa dicotomia étnica estabeleceu-se,
como já dissemos, uma escala de valores, sendo o
indivíduo ou grupo mais reconhecido e aceito
socialmente na medida que se aproxima do tipo
branco, e desvalorizado e socialmente repelido à
medida que se aproxima do negro. Esse gradiente

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 269


étnico (itálico nosso), que caracteriza a população
brasileira, não cria um relacionamento
democrático e igualitário, já que é subordinado a
uma escala de valores que vê no branco o modelo
superior, no negro o inferior e as demais nuances
de miscigenação mais consideradas, integradas,
ou socialmente condenadas, repelidas, à medida
que se aproximam ou se distanciam de um desses
polos considerados o positivo e o negativo, o
superior e o inferior, na escala cromática”
(MOURA, 2019, p. 90).

Clóvis Moura nos lega, portanto, uma importantíssima


ferramenta conceitual, esse vetor ou gradiente de poder, que
mostra o modo como o poder se distribui na sociedade brasileira,
distintamente de qualquer outra. Nem as tecnologias
disciplinares (Foucault, 1989), nem a as sociedades de controle
(DELEUZE, 1992) têm a mesma importância para a compreensão
do que se passa na sociedade brasileira, sobretudo para a
compreensão da violência contra a população e o genocídio que
submete a maior parte dela. O expressivo uso destas duas
referências teóricas nas pesquisas não revela senão o grau de
analfabetismo racial e de colonização mental dos intelectuais,
das ciências humana e das ciências sociais brasileiros. Afiançam
nossos argumentos e falam por si as inúmeras campanhas em
defesa das vidas do povo preto, como o Movimento Reaja ou Será
Morta, Reaja ou Será Morto (BA); Fórum Social de Manguinhos
(RJ), Movimento Moleque (RJ), Fórum de Juventudes do Rio de
Janeiro, Organização da Marcha contra o Genocídio do Povo
Negro (RJ), Movimento Mães de Maio (SP), Associação de Mães e
Familiares de Vítimas de Violência (ES), Direito à memória e
Justiça Racial (RJ), Organização da Marcha contra o Genocídio do
Povo Negro (RJ), Rede de Comunidades contra a Violência do
Estado brasileiro (RJ).
Em termos de um pensamento da psicologia, o gradiente étnico
mostra-nos a condição política e estética dos mecanismos de
formação do nacional, no Brasil, mas também, mecanismos de
operação cognitiva, intelectual, emocional e espiritual.

270 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Infelizmente, o sociólogo é ainda pouco conhecido das
instituições e dos intelectuais de pesquisa da psicologia, os quais
buscam, constritos e informados pelo referido poder, afastar-se
de tudo que possa confundi-los com os grupos negros.
A sociedade brasileira produziu a desumanização dos negros
com apelos à exclusão e política de extermínio. É o modo de vida
que faz natural o que é racismo. O suspeito e indisciplinado pode
ser a criança e a/o jovem negra/o que ande pelas ruas sozinha/o ou
em bando, de boné, bermuda, chinelos. Esses corpos estão
permanentemente sob vigilância e ameaça, de modo a
imprimir-lhes o medo de estar nas ruas da cidade, a qualquer hora
e dia, e de conter seus movimentos e bloquear sua experiência de
bem-viver. Nisso tudo, aparece a inimizade da branquitude pelos
povos negros e indígenas, e que reverbera no que Mbembe chama
de sociedade da inimizade (Mbembe, 2017).
Propor ações que pensem a infância e a juventude não é
defender uma generalização por “fases de desenvolvimento
humano”, mas é, a partir da diferença e das condições de
possibilidade diversas, discutir o processo de exclusão e de
apagamento subjetivo, que se dá mesmo quando adentramos as
instituições educacionais (SANTOS; OLIVEIRA, 2019). No trato
com a infância e a adolescência, uma das principais instituições é
a escola. Não é à toa que o movimento negro, desde sua
organização urbana autointitulada movimento negro, nos anos
1930, elege a educação e a escola como uma das mais importantes
pautas de luta.
Descolonizar, segundo Fanon (2015), é construir formas de
reconexão com as comunidades, os povos e grupos sociais
sujeitados, para que se possa romper com o lugar de objeto em que
os mais vulneráveis são colocados, para romper com um sistema
colonial de opressão e assimilação cultural. “A descolonização é
verdadeiramente a criação de homens novos [...] a ‘coisa’
colonizada se torna homem no processo mesmo pelo qual ele se
liberta” (FANON, 2015, p. 53).
Pensando o adoecimento causado por esse processo
colonizador, racista, de embranquecimento, de normalização, da

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 271


população no Brasil, Wade Nobles (2009) afirma o que chama de
terrorismo psicológico: “desordem do ego alienado, em que o
indivíduo comporta-se de modo contrário à sua própria natureza
e sobrevivência; desordem de ser contra si mesmo, em que o
indivíduo expressa hostilidade aberta ou disfarçada em relação
ao próprio grupo, e, portanto, a si mesmo” (NOBLES, 2009, p. 289.
A desordem da subjetivação envolve o desequilíbrio espiritual, ou
seja, a perda do sentido do viver na direção do estar com os seus e
desenvolver os seus, o bem-viver panorâmico que a mulheres
negras escolheram como lema de sua marcha, em 2015; e o viver
bem com a comunidade constituída de humanos e antepassados,
do povo de santo. Esse adoecimento também subtrai a potência
cognitiva das crianças e jovens. Assim, podemos entender como a
escola pode ser adoecedora para crianças e jovens negras/os, haja
vista o ensino-aprendizagem dissociado da cultura do povo
preto.
Porém, descolonizar e contracolonizar exigem que formemos
subjetivamente os educadores que, também colonizados, vivem o
adoecimento da impossibilidade de ser e acabam por reforçar a
cultura assimilada. Assim, é preciso formar os educadores, a fim
de que as Leis nº 10.639/2003 (BRASIL, 2003) e nº 11.645/2008
(BRASIL, 2008), já citadas, não se tornem letra morta.
Aterrar, segundo Santos e Silva (2018), é a ação de garantir o
pensamento e a ação sustentados no encontro com o povo preto,
povos de terreiro, povos indígenas, quilombolas, moradores de
favela, da periferia e comunidades. Logo, é preciso que a escola
encontre a cultura de crianças e jovens afrodescendentes.
Aterrar, descolonizar é isso: é desassimilar a cultura do opressor
para aprender e desenvolver a nossa. Como diz Petronilha Silva, a
[...] educação das relações étnico-raciais é
fundamental para a consolidação da sociedade
brasileira enquanto uma democracia da
construção da sociedade brasileira, que visa
garantir, a todos os grupos sociais, iguais direitos,
poder e autoridade (SILVA, 2012, p. 4).

272 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os anos são os do início da década de 2020, o cenário são as ruas


do centro histórico do município do Rio de Janeiro, as
personagens são crianças, uma professora e dois estagiários de
psicologia negras/os de uma escola pública, que realizam um
passeio para conhecer a Pequena África. O que narramos aqui são
as memórias dessas personagens, que mesmo aos olhares que
denunciam e acusam “o negro”, não introjetam a cidade branca,
de “pedra e ferro”. Essas personagens já descobriram a negridão,
não como algo daquele cujo corpo é falado na terceira pessoa, mas
daquele que é responsável pela sua raça, pelos seus ancestrais.
Elas passeiam pelas ruas da cidade iluminadas, asfaltadas e
empanturradas, sorriem, brincam, comem, dançam, pulam. A
vergonha não tem mais lugar e essas personagens sabem que não
se trata de conciliação. Ao “colocarem o corpo para jogo”,
lançam-se a “plenos músculos”, passam dos sonhos à ação, pois,
como nos lembra o autor martinicano, os nossos sonhos são
musculares, não paramos de nos libertar “entre as nove horas da
noite e as seis da manhã” (FANON, 2015, p. 69).
A diferença entre a cena do início deste texto, dos anos de 1970,
e a que o encerra, dos dias atuais?! É a atuação, é a passagem do
sonho à ação. E o que a escola tem a ver com isso? Sabemos que as
nossas personagens atuais, diferente da Maria Luiza, vivenciam o
Espaço de Leitura Griot (MONTEIRO, 2018), criada na escola
cenário do encontro desses personagens — escola pública do
município de Niterói. Estudantes, professoras/es, estagiárias/os
que se formam subjetivamente no espaço escolar pelo
conhecimento da História da África e dos negros no Brasil com os
intermediários, que são griots, os “contadores e guardiãs da
história, da tradição”, que os olhares brancos europeizados
insistem em apagar.
Se o racismo bloqueia o desenvolvimento cognitivo, intelectual
e emocional dos nossos jovens, se estamos de acordo com o
movimento da Coalizão Negra por Direitos (2020), “enquanto
houver racismo não haverá democracia”, precisamos de uma

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 273


educação antirracista. Um país, uma sociedade democrática é,
sem dúvida, um país e uma sociedade sem racismo. Aliás, é
necessário compreender que não pode haver educação sem
considerar a questão racial. Freire, em um dos seus últimos
textos, reconhece a questão racial como condição para uma
educação democrática, inclusive apresenta a interseção entre
raça, classe e gênero.

Informações da autora
Nome: Abrahao de Oliveira Santos; SANTOS, A. O.
Afiliação institucional: Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense;
E-mail: abrahaosamtos@hotmail.com;
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7741-3020
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/2523009327795934

Nome: Luíza Rodrigues de Oliveira; OLIVEIRA, L. R.


Afiliação institucional: Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense;
E-mail: luiza.oliveira@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2264-1258;
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3295799847648304

274 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


REFERÊNCIAS

BAIRROS, Luiza. Assim falou Luiza Bairros. [Entrevista


concedida a] Fernanda Pompeo. Portal Geledés, out. 2016.
Disponível em:
https://www.geledes.org.br/assim-falou-luiza-bairros/. Acesso
em: 31 de out. 2020.

BRASIL. Lei 10.639/2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro


de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira",
e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República
2003.

BRASIL. Lei 11.645/2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro


de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir
no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.

BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CP n.º 3/2004.


Brasília, DF: Ministério da Educação, 2004. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf. Acesso
em: 16 jul. 2020.

CAMINHO sobre caminho: epistemologia das encruzilhadas. [S. l.,


s. n.]. 2020. 1 vídeo (211 min.). Publicado pelo canal Yorubantu:
epistemologias Yorùbá e Bantu. Disponível em:
https://w w w.youtube.com/w atch?v=1Wk i3SL-2hw&t=2112s.
Acesso em: 13 jun. 2020.

COALIZÃO NEGRA POR DIREITOS. Enquanto houver racismo não


haverá democracia. 2020. Disponível em
https://comracismonaohademocracia.org.br. Acesso em: 10 jul.
2020.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 275


DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2017.

DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In:


DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: 34, 1992, p. 219-226.

FANON, F. Os condenados da Terra. Juiz de Fora, MG: UFJF, 2015.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA,


2008.

FAUSTINO, D. M. (2015). “Por que Fanon? Por que agora?”: Frantz


Fanon e os fanonismos no Brasil. 260 f. Tese (Doutorado em
Sociologia), Programa de Pós-Graduação em Sociologia,
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, 2015.

FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes: o


limiar de uma nova era: volume 2. São Paulo: Globo, 2008.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: História da violência nas prisões.


Petrópolis, Vozes, 1989.

FREIRE, P. Criando métodos de pesquisa alternativa:


aprendendo a fazê-la melhor através da ação. In: BRANDÃO,
Carlos (org.). Pesquisa participante. 6. ed. São Paulo: Brasiliense,
1986. p. 34-41.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à


prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

GOLDAR, M. R. Educação popular na América Latina e no Caribe:


buscas e desafios para uma alternativa de educação para a
transformação social, política, educacional e a educação dos
trabalhadores. In: PALUDO, C. (org.). Campo e cidade em busca de
caminhos comuns. Pelotas, RS: UFPel, 2014. p. 117-135.

HAN, B.-C. Topologia da violência. Lisboa: Relógio D’Água, 2019.

MARTINS, L. Prefácio. In: TAVARES, J. C. (org.). Gramáticas das


corporeidades afrodiaspóricas: perspectivas etnográficas.
Curitiba: Appris, 2020. p. 7-16.

276 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1, 2018.

MBEMBE, A. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.

MONTEIRO, L.R. Sala griot como espaço de educação decolonial:


aplicação da lei 10639/03 no rompimento da dominação
epistemológica. 57 f. Trabalho de conclusão de curso
(Licenciatura em Ciências Sociais), Instituto de Ciências
Humanas e Filosóficas, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, RJ, 2018.

MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo:


Perspectiva, 2019.

NASCIMENTO, A. O Quilombimo: documentos de uma militância


pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro:
Ipeafro, 2019.

NOBLES, W. Sakhu Sheti: Retomando e reapropriando um foco


psicológico afrocentrado. In: LARKIN, Elisa. (Org.)
Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São
Paulo: Selo Negro Edições, 2009. p. 277-297.

NOGUERA, R. Denegrindo a educação: um ensaio filosófico para


uma pedagogia da pluriversalidade. Revista Sul-Americana de
Filosofia e Educação, n. 18, p. 62-73, maio/out. 2012. Disponível
e m :
https://periodicos.unb.br/index.php/resafe/article/view/4523.
Acesso em: 31 de out. 2020.

O CUIDAR no terreiro. Realização: Rede Nacional de Religiões


Afro-brasileiras - RENAFRO. [S. l., s. n.]2013. 1 vídeo (28 min).
Publicado pelo canal Departamento de Doenças Crônicas e IST.
Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=oMDGTHQe9Ao. Acesso em
24 jul. 2020.

OLIVEIRA, L. R. de. A afrocentricidade, a oralidade e a


ancestralidade na pesquisa em psicologia: o encontro com

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 277


mulheres negras que “não escrevem”. In: QUADROS, L. C. T.;
MORAES, M. O.; BONAMIGO, I. S. (org.). Pensar, fazer e escrever: o
PesquisarCOM como política de pesquisa em psicologia. Chapecó,
SC: Argos Editora, 2019. p. 19-34.

PEREIRA, R. P. Estudo: professor vê aluno negro como agressivo


e trata branco com simpatia. UOL, São Paulo, 23 jul. 2020,
Cotidiano. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/07/
23/estudo-professor-ve-aluno-negro-como-agressivo-e-trata-
branco-com-simpatia.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 24 jul.
2020.

PEREIRA, A. M. Para além do racismo e do antirracismo: A


produção de uma Cultura de Consciência Negra na sociedade
brasileira. Itajaí: Casa Aberta Editora, 2013.

RUFINO, L. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula


Editorial, 2019.

SANTOS, A. O. SILVA, V. P. A Pesquisa no Kitembo - pistas para a


construção de uma psicologia aterrada. Arcos Design. Rio de
Janeiro, V. 11 N. 1, 2018, pp. 7-20. Disponível em:
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/arcosdesign/articl
e/view/44056. Acesso em: 21 de out. 2020.

SANTOS, A. O. A educação e a saúde mental da população negra.


Ensino, Saúde e Ambiente, Niterói, RJ, v.10, n. 3, p. 159-170, dez.
2017. Disponível em:
https://periodicos.uff.br/ensinosaudeambiente/article/view/2127
5/12747. Acesso em: 31 de out. 2020.

SANTOS, A. O. O enegrecimento da psicologia: indicações para a


formação profissional. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília,
DF, v. 39, n. spe., p. 159-171, ago. 2019. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
98932019000500305. Acesso em: 31 de out. 2020.

SANTOS, A. O. Saúde mental da população negra: uma

278 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


abordagem não institucional. Revista da ABPN, Goiânia, v. 10, n.
24, p. 241-259, nov. 2017 – fev. 2018. Disponível em:
https://www.abpnrevista.org.br/index.php/site/article/view/583/
469. Acesso em: 31 de out. 2020.

SANTOS, A. O.; OLIVEIRA, L. R. Abordagem CTS diante das


interpelações da afrocentricidade: a saúde da população negra.
Psicol. Conoc. Soc., Montevidéu, v. 9, n.2, p. 47-61, dez. 2019.
Disponível em:
http://www.scielo.edu.uy/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S16
88-70262019000200047&lng=es&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em:
31 de out. 2020.

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à


consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2001.

SILVA, P. B. G. 10 anos da Lei nº 10.639/2003: um olhar


crítico-reflexivo. In: SEMINÁRIO VIRTUAL NACIONAL: HISTÓRIA
E CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NA ESCOLA, 1., 2012,
Florianópolis. Anais [...]. Itajaí, SC: Casa Aberta, 2014. Disponível
e m
https://pt.scribd.com/document/322399732/Silva-Petronilha-G
oncalves-e-10-Anos-Da-Lei-No-10-639-03-Um-Olhar-Critico-r
eflexivo. Acesso em: 31 de out. 2020.

SOUZA, N. S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do


negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Ed. Graal,
1983.

TAYLOR, S. Beasts of burden: animal and disability liberation.


New York: New Press, 2017.

VOGEL, A. Como as crianças veem as cidades. Rio de Janeiro:


Pallas, 1995.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 279


GESTÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL:
LUGAR DE ATUAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO
DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Andreza Mara da Fonseca

INTRODUÇÃO

Pensar a atuação da gestão para a educação das relações


étnico-raciais é de grande importância desde a infância.
Entendendo que a gestão precisa ter como premissas traçar e
construir laços entre pessoas e o conhecimento, associar
competências, propiciar e estender o diálogo, buscando a
construção de ambiente favorável ao conhecimento com ações
comprometidas com as pessoas e o aprender, pautados no
respeito, na diversidade e na inclusão.
Para entender essa atuação é imprescindível, também, pensar
o olhar do gestor, um olhar que necessita estar atento às pessoas,
as práticas, as ações e as omissões. Mas não pode somente
assistir ao que acontece ao seu redor sem agir, para além de
pensar o olhar é necessário pensar o lugar que a gestão ocupa e
quais processo pode ou não induzir, sensibilizar , estimular e
orientar.
O significado de Lugar, segundo o Dicio-Dicionário Online de
Portugês¹, “substantivo masculino Espaço que ocupa ou pode
ocupar uma pessoa, uma coisa: um lugar para cada coisa e cada
coisa em seu lugar. Cargo que se ocupa em; emprego[...]”
Já o termo lugar na geografia, em uma das suas abordagens,
pode envolver a noção de afetividade e das relações que nele são
estabelecidas, conceito conhecido como topofilia. Segundo Tuan
(1983, p.83) “quando o espaço nos é inteiramente familiar,
torna-se lugar”. Espaço e lugar se relacionam, “espaço se torna

Ver mais em
https://www.dicio.com.br/lugar/#:~:text=Significado%20de%20Lugar,%3B%20empre
go%3A%20perder%20seu%20lugar.

280 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


lugar na medida em que é experienciado e valorizado, que tem
significação para pessoa, lugar é mais concreto que espaço”.
(TUAN, 1983, p.19).
Quanto ao lugar e as relações nele estabelecidas Milton Santos,
grande geógrafo brasileiro, afirma que “ao mesmo tempo em que
a singularidade garante configurações únicas, os lugares estão
em interação, graças a atuação das forças motrizes do modo de
acumulação hegemonicamente universal (o capitalismo)”(1988,
p. 34). Daí a necessidade da gestão estar atenta e atuante quanto às
aderências políticas de sua prática e do corpo docente, refletindo
e promovendo a reflexão sobre diferentes temáticas para a
construção e vivência curricular.
Esse lugar de atuação possui diferentes funções, é
multifacetado bem como a expressão lugar , que está assentada
na polissemia. Pensar o lugar e também pensar as múltiplas
acepções da palavra desta palavra que dentre outras, serão
utilizadas neste texto as seguintes:

“Espaço, independentemente do que possa conter”

A gestão deve manter um ambiente seguro, acolhedor e


inclusivo. Principalmente pelo fato de que seu campo de atuação
lida com pessoas, seus modos de ser, fazer e viver.

“Espaço ocupado por um corpo”

A escola, que segundo Nilma Lino Gomes em uma palestra na


Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte (SMED/PBH),
é um "espaço onde as diferentes presenças se encontram", dessa
forma ocupado por diferentes corpos se fazem presentes,
atuantes e reivindicam representatividade e protagonismo.

“Local conveniente ou próprio de ser ocupado por ser animado


por alguém ou coisa”

Escola, local de aprendizado, de partilha, de interação e de ação.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 281


Que precisa ter seus espaços e tempos pensados com
intencionalidade, materialidade e recursos humanos suficientes
para a vivência educativa e humana. E o gestor tem papel
fundamental para a organização, aquisição, orientação e
manutenção destes espaços da escola.

“Espaço onde habitualmente se realizam determinadas


atividades”

Quanto às atividades desenvolvidas, os livros, brinquedos e


materiais utilizados, e as práticas que materializam o currículo
vivenciado no cotidiano escolar devem fazer parte da agenda de
formação, reflexão e de investimento por parte da gestão e de toda
a equipe da escola. Com intervenções envolvendo as crianças,
suas famílias , professores, funcionários, enfim, toda a
comunidade escolar. A escola e suas práticas devem fazer parte da
construção de uma rede de saberes de pertencimento.

“Sentido ou direção a seguir; orientação, rumo”

A gestão precisa seguir normativas e documentos norteadores,


mas sempre acolhendo as experiências dos outros para agregar
novas experiências e olhares com afetividade, intencionalidade,
pois esse lugar tem força para não ser dominado pela cultura
hegemônica, hierarquizada e segregacionista.
As acepções da palavra lugar apontam por caminhos diversos
que a gestão escolar também percorre ou pelo menos deveria
percorrer sob uma perspectiva do cuidado curricular, das
relações e das ações.

A GESTÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL E A EDUCAÇÃO


DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem


um importante papel na Educação das relações étnico-raciais e
na luta antirracista. Desde a infância as crianças devem ser

282 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


ensinadas e estimuladas a respeitar e valorizar suas raízes e
origens por meio de diferentes práticas pedagógicas.

A educação infantil e seus processos educativos


precisam estar alicerçados nas ações
indissociáveis de cuidar e educar, compreendendo
o direito à educação como parte do princípio da
formação da pessoa em sua essência humana, no
respeito, na diversidade, na participação social, de
forma crítica, ciente e consciente de seus direitos e
deveres civis, sociais, políticos, econômicos e
éticos. (FONSECA, 2019, p.51)

Quanto às relações pedagógicas é papel da gestão da educação


infantil fortalecer as ações de cuidado e ser indutora de

práticas pedagógicas que proporcionam a


articulação entre os saberes infantis e os
socialmente construídos pela humanidade,
perpassadas pela garantia da voz e da escuta das
crianças na formulação de seus conhecimentos,
podem ser possibilitadas pela vivência coletiva em
diferentes espaços educativos, para conhecer as
crianças e afirmá-las como sujeitos, agentes
sociais, culturais e históricos. (FONSECA, 2019,
p.37)

Esse é um lugar que tem força de reconhecer as pessoas nas


suas diferenças e potencializá-las para a vivência da cidadania,
com atenção ao referenciado por Patrícia Santana
a gestão escolar vem sendo desafiada frente aos
saberes de respeito à diversidade. Principalmente
os relacionados às relações gênero, à diversidade
sexual, à educação para as relações étnico-raciais.
Dirigir e coordenar uma instituição educacional
embasada em princípios éticos é ser capaz de
promover muitas transformações no espaço
escolar para que seja de fato uma escola
democrática que abra espaço para o diálogo e
compromisso com uma educação para todos.
(SANTANA, 2018, p.4)

Para que isso aconteça na prática é necessário estudo,

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 283


investimento e principalmente atenção à política reparatória de
estado vigente em nosso país a partir dos Artigos 3ª , 4º, 26-A e
27-B da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº
9.394/1996 (LDBEN), que foi alterada pelas leis 10.639/03,
11.645/08 e 12.796/13.
Estas leis referem -se a educação infantil, o trato e valorização
da diversidade étnico-racial das culturas africanas,
afro-brasileiras e indígenas, dentre outras questões, para que
práticas pedagógicas alicerçadas nestes pressupostos possam
intervir positivamente “no processo de socialização da cultura
da vida, no qual se constroem, se mantêm e se transformam
saberes, conhecimentos e valores” (BRASIL, 2013, p. 13). E
“apontam para o deslocamento do olhar contra a discriminação,
o descompromisso e a invisibilidade, e a favor da afirmação de
uma postura crítica aos padrões colonizadores para a superação
das desigualdades raciais desde a infância.”(FONSECA, 2019, p.56)
Dessa forma a escola, por intermédio da gestão, assumir este
lugar de combate ao racismo, com práticas antirracistas e
emancipatórias no seu cotidiano.
A educação das relações étnico-raciais tem como foco a
superação das desigualdades raciais, como apontado no
documento Parecer CNE/CP 003/2004, nas suas questões
introdutórias, justificando a sua formulação:
[...] procura oferecer uma resposta, entre outras,
na área da educação, à demanda da população
afrodescendente, no sentido de políticas de ações
afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de
reconhecimento e valorização de sua história,
cultura, identidade. Trata, ele, de política
curricular, fundada em dimensões históricas,
sociais e antropológicas oriundas da realidade
brasileira, e busca combater o racismo e as
discriminações que atingem particularmente os
negros. Nesta perspectiva, propõe à divulgação e
produção de conhecimentos, a formação de
atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos
orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial –
descendentes de africanos, povos indígenas,

284 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


descendentes de europeus, de asiáticos – para
interagirem na construção de uma nação
democrática, em que todos, igualmente, tenham
seus direitos garantidos e sua identidade
valorizada. (CNE/CP 003/2004, p. 2).

Entende-se que superar as desigualdades raciais e “ erradicar o


racismo”² é necessário educar para relações étnico-raciais, que
segundo a autora, em outros escritos, descreve da seguinte
maneira:

Educar para as relações raciais é, portanto,


interferir na constituição de referenciais, dos
saberes que influenciam decisivamente na
formação de personalidades, visões de mundo e
dos códigos comportamentais que orientam a
forma como o indivíduo se percebe e se posiciona
nele – como ele vê a sociedade e como aprende a
transitar nela. É intervir na forma como o
indivíduo se vê e vê o outro.(FONSECA, 2019, p.70)

Para que essa intervenção aconteça a gestão deve ter uma


atuação respeitosa com toda a comunidade escolar, pautada no
diálogo e na resolução de conflitos com ações e intervenções para
a positividade do trato das relações étnico-raciais.
É urgente a necessidade de se conhecer e valorizar as
diferenças, as diversas culturas numa perspectiva ampla de
educação sem hierarquizá-las, silenciá-las, ou inferiorizá-las,
como reafirmado por Nilma Lino Gomes (2004, p. 32) “a escola é
espaço de sociabilidade e constitui-se em um local privilegiado
para a superação dos conflitos e preconceitos raciais”.
Diante disso, ações da gestão devem acolher, divulgar e
estimular diferentes narrativas, repensar estereótipos e ter um
olhar atento para as questões étnico-raciais e suas formas de
abordagem com sensibilidade e postura propositiva.
Deve estabelecer relações de partilha de respeito à diversidade

Termo utilizado pela professora Rosa Margarida Carvalho Rocha numa live Saberes e
fazeres no chão da escola: Educação antirracista e formação de professores, em 13 de
out. de 2020. disponível em https://www.youtube.com/watch?v=5zQ1Rix1cUg

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 285


pertencimento valorização de saberes diferenças e
protagonismos com equidade, quanto a isso o autor Jacques
Ranciere nos apresenta o conceito de partilha do sensível:
Denomino partilha do sensível o sistema de
evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo,
a existência de um comum e dos recortes que nele
definem lugares e partes respectivas. Uma partilha
do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um
comum partilhado e partes exclusivas. Essa
repartição das partes e dos lugares se funda numa
partilha de espaços, tempos e tipos de atividade
que determina propriamente a maneira como um
comum se presta à participação e como uns e
outros tomam parte nessa partilha. ( RANCIÈR,
2005, p.15)

Nessa partilha a gestão precisa ter responsabilidade com a


diversidade e co-responsabilizar professores, funcionários,
crianças, famílias e comunidade em geral para a educação das
relações étnico-raciais. É preciso considerar que o tempo e o
espaço da gestão são políticos, no sentido de participação e
necessitam ser democráticos e emancipatórios tanto no que diz
respeito aos conhecimentos, participação, quanto na forma de
atuação e valorização dos saberes diversos existentes em nossa
sociedade, sobre os saberes que são elencados para serem vistos,
contemplados, discutidos e valorizados.
O lugar da gestão na educação infantil pode propiciar a
ampliação de saberes e visões de mundo diversas comprometidos
com a luta antirracista em que outros sujeitos, outros saberes são
vistos, valorizados e reposicionados.

AÇÕES DA GESTÃO DE UMA EMEI DE BELO


HORIZONTE PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS

Para Santos (2006, p. 212) “os lugares são vistos como


intermédio entre o mundo e o indivíduo”, nesse processo de de
intermediação é que atua gestão, para ampliação de repertórios,

286 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


conhecimentos e a valorização de diferentes saberes.
A EMEI (hoje) , nasceu vinculada a uma escola municipal de
Belo Horizonte, iniciou suas atividades no dia 21/03/2017 e
atendia a 96 crianças de 0 a 2/3 anos, matriculadas e atendidas em
8 turmas integrais. A UMEI e escola núcleo, estão situadas na
região noroeste de Belo Horizonte, num bairro com grande
histórico de violência e vulnerabilidade social .
Esta instituição foi e ainda é a primeira unidade da rede própria
que atende exclusivamente o 1º Ciclo da infância (0 a 2/3 anos).
Sendo necessário propor práticas e alternativas de vivências que
aproximem a família da escola, viabilizando a aprendizagem dos
bebês e crianças pequenas pelo diálogo constante com as
famílias.
A gestão da EMEI está empenhada em construir uma gestão de
proximidade, pois famílias e comunidade constituem o elo
cultural necessário para o aprendizado. Por isso, um ponto
importante a ser trabalhado é a articulação entre a comunidade e
a escola, o território, suas histórias e manifestações.
É interessante que a EMEI seja também um espaço de
organização e participação comunitária, já que sua reabertura foi
fruto da luta, articulação e mobilização da comunidade. Já que o
prédio em que a EMEI funciona era antes uma outra escola ; que
por um acidente geológico (em que um fragmento de rocha se
desprendeu da Pedreira localizada ao lado do prédio) ocasionou a
interdição do mesmo. Daí a urgência em se aprofundar na
temática de estudar e aprender com esse território.
A partir desses pressupostos, o projeto institucional da EMEI
em 2017 foi intitulado “CONHECENDO A HISTÓRIA DA
COMUNIDADE”, e tinha por objetivo proporcionar às crianças
meios de aquisição de conhecimento de si mesmo e do mundo que
a rodeia, a fim de possibilitar a construção de sua identidade,
valorização das histórias, saberes e culturas locais.
A EMEI deve cumprir um importante papel de agir em sinergia
com os atores desse território, para isso precisamos estar
enraizados pelos vínculos locais. Dessa forma, a proposta de
Projeto Institucional da EMEI se alicerça no sentido de conhecer e

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 287


acolher a comunidade, gerando confiança, escuta, sentimento de
pertencimento e participação comunitária. Respeitando e
reafirmando as vozes e saberes da comunidade.
Lembrando que entendemos comunidade como estudantes e
suas famílias, professores, gestão e demais funcionários, além de
equipamentos públicos do entorno. A formação de uma rede com
diferentes agentes sociais permite a integração da comunidade e
das inúmeras formas de convívio existentes ali dentro. A
articulação é justamente para trazer os diferentes olhares para o
espaço e consequentemente para os sujeitos. A participação
comunitária ensina ‘aprender a ser’, sempre com esse sentido
coletivo muito forte.
Encontrar caminhos que construam a identidade e o
sentimento de pertencimento da EMEI , além de perceber como
isso pode ressoar na transformação do olhar para a história desse
lugar, tem um papel fundamental no fortalecimento do processo
perpetuador de conservação e cuidado com este espaço.
A construção da identidade se dá por meio das interações da
criança com o seu meio social. De acordo com as Proposições
Curriculares para Educação Infantil: “compreende que as
crianças, mesmo pequenas chegam às instituições educativas
“com identidades de classe, raça, etnia, gênero, território, campo,
cidade, periferias...” (Proposições Curriculares para Educação
Infantil, Vol 1, p 50)
Cabe, a cada uma das instituições de Educação Infantil buscar
implementar esta proposta articulando as comunidades locais, as
vizinhanças, os comerciantes, os moradores, os pais e familiares
das crianças, criando e fortalecendo elos de modo que todos se
comprometam com a educação da infância. (Vol 1, p. 72.) . Pois é
partindo de observações e estabelecendo relações com a
realidade e com o meio que a criança aprende e assim segue na
construção de sua identidade. A Educação Infantil é um universo
social diferente do da família, favorecendo novas interações,
ampliando desta maneira seus conhecimentos a respeito de si e
dos outros.
Isso alicerça o trabalho com projetos institucionais anuais,

288 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


desde 2017, pois todas as ações propostas visam a construção da
identidade da instituição, levando em conta o território, sua
realidade social e cultural, e faz parte de um esforço democrático
para que a participação coletiva insira a EMEI como pertencente
aos demais equipamentos públicos de cuidado, proteção,
formação e transformação social desse território.
Desde o início do processo de abertura da EMEI , a gestão
oportuniza a construção da identidade deste grupo de trabalho,
através várias ações que são realizadas para fomentar boas
práticas e um clima escolar favorável a um atendimento de
qualidade dedicado à criança pequena, dentre eles,as seguintes
ações:

* Formação continuada de professores e funcionários

• Encontro de formação inicial com as professoras;


• Encontros quinzenais de professores com a coordenação
(estudo, planejamento);
• Encontro semanal de pares para planejamento das ações com
as crianças);
• Parceria com o Núcleo de Relações Étnico-Raciais da
PBH/SMED para formações anuais;
• Reuniões mensais com os funcionários Caixa Escolar para
alinhar posturas e ações (AAE- Auxiliares de apoio à Educação,
Limpeza, Cozinha, Porteiros, Vigias);
• Encontros formativo para a construção do Projeto Político
Pedagógico (PPP);
• Reunião pedagógica nos turnos de trabalho (estudos,
formações e trocas de experiências);
• Ações coletivas ( comemorações);
• Divulgação dos trabalhos realizados por meio de murais e
atividades coletivas ( rodão);
• Colegiado escolar;
• Encontro com as famílias (reunião de pais, oficinas, teatros,
contação de histórias e outros).

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 289


* Famílias e Comunidade:

• Proposta de formação para a comunidade – Escola de Pais;


• Formação/ Construção do PPP;
• Contação de histórias;
• Oficinas na EMEI;
• Teatro;
• Ações coletivas (comemorações);
• Colegiado escolar
• Reunião de pais;.

* Administrativas - financeiras

• Organização dos espaços, tempos e demais ações na EMEI;


• Organização e fomento do Colegiado Escola, de reuniões de
alinhamento, estudos, planejamento, discussão e resolução de
desafios;
• Aquisição de materialidade (higiene, pedagógico, papelaria,
limpeza e alimentação);
• Aquisição de livros, fantoches, brinquedos e materiais de
apoio pedagógico);
• Planejamento e mobilização para eventos, encontros,
reuniões, etc.;
• Encontro com as famílias, professores , funcionários e
comunidade (por demanda).

Por meio destas ações, estamos construindo as propostas


educativas para as crianças alicerçadas em práticas inclusivas,
pautadas na diversidade principalmente nos documentos Lei de
Diretrizes e Bases da educação Nacional (LDBEN) e suas
alterações (Leis 10.639/03, 11.645/08 e 12.796/13); Proposições
Curriculares e nos Cadernos Complementares ( Avaliação e
Alimentação), Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-raciais e Educação Infantil, Base Nacional

290 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Comum Curricular (BNCC) contando com a participação ativa das
famílias, contribuindo e principalmente efetivando a parceria e a
ação compartilhada da educação das crianças atendidas por esta
instituição.
A colaboração, a parceria, as relações dialógicas e a interação
aqui são tomadas como possibilidades de compartilhar
experiências e conhecimentos entre pares, em ambientes e
recursos especialmente organizados para esse fim, valendo-se de
materialidades e recursos que apoiam processos de ensino e
aprendizagem, e a educação das relações étnico-raciais.

UM CAMINHO LONGO A SER PERCORRIDO

Após revelar as ações, práticas e subsídios em que o trabalho


está sendo pautado e desenvolvido na EMEI Pela gestão, com
professores e funcionários, as crianças e suas famílias e a
comunidade em geral, busca-se a construção e materialização de
práticas não hierarquizadas, que valorizam a diversidade e a
presença positiva do negro na sociedade, os diferentes modos, de
ser, viver e saber, de forma planejada e intencional pode
empoderar, dar visibilidade e o reconhecimento necessários a
luta contra o racismo e a discriminação. Dessa forma, novas
maneiras de aprender, construir e compartilhar conhecimentos
devem ser propostas e experimentadas pelos atores envolvidos
na educação desde a infância , fomentadas, apoiadas ou induzidas
pela gestão.
As ações movimentam a força de um trabalho
intencionalmente planejado sob perspectiva antirracista, não
hegemônico e baseado no respeito, que iniciou a construção de
um alicerce para outro olhar sobre a presença do negro,
promovendo diferentes experiências e linguagens para a
valorização racial .
As partilhas realizadas neste lugar da gestão, nesta EMEI são
ricas, mas não findaram. Os desafios da gestão são inúmeros, mas
ocupar este lugar e fazer emergir práticas pedagógicas baseadas
no respeito e na diversidade, em que a comunidade escolar é

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 291


protagonista, atuante e ativa fazem parte desta proposta.
Ainda há muito a se estudar, conhecer, fazer, discutir,
aprimorar para que de fato possa se dizer que é uma instituição
com práticas antirracistas. Mas está caminhando para isso!

Informações da autora
Nome: Andreza Mara da Fonseca
Prefeitura de Belo Horizonte
E-mail: a.m.r.oliveira@edu.pbh.gov.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5756-4331
Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/https:/638368685512659

292 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


REFERÊNCIAS

BELO HORIZONTE. Secretaria Municipal de Educação.


Proposições Curriculares para a Educação Infantil. Belo
Horizonte: SMED, 2013.vol.1

BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação das Relações Ético-Raciais e para o
Ensino de Historia e cultura Afro-Brasileira. Brasília:MEC, 2006.

BRASIL. Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394,


de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de
janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena”. Diário Oficial da União, Brasília, 11 de março de 2008.

BRASIL. Lei n. 12.796, de 4 de abril de 2013. Altera a Lei nº 9.394, de


20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para dispor sobre a formação dos
profissionais da educação e dar outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, 5 de abril de 2013a.

BRASIL. Lei n. 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Inclui a


obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”
no currículo oficial da rede de ensino. Diário Oficial da União,
Brasília, 9 de janeiro de 2003.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de educação


Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Plano
Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o
ensino de história e cultura afro-brasileira. Brasília: MEC
/SECADI 2013.

BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica.


Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.
Brasília: MEC/SEB, 2010.

Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 293


BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Básica.
Política Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças
de zero a seis anos à educação. Brasília: MEC/SEB, 2006.

FONSECA, Andreza Mara da. “Aqui não tem máscaras


africanas?” A educação étnico-racial em uma EMEI e a
experiência com o percurso território negro em museus de Belo
Horizonte.132p. Mestrado em Educação. Dissertação (Mestrado)
– Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.Programa de
Pós-Graduação em EducaçãoBelo Horizonte, 2019.

GOMES, Nilma Lino. Desigualdades e diversidade na educação.


Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 120, p. 687-693, 2012.
Disponível em:
<http://www.cedes.unicamp.br/publicacoes/edicao/50>. Acesso
em: 12 novembro de 2020

GOMES, Nilma Lino. Prefácio (2017). Africanidades,


afrobrasilidades e processo(des) colonizador: contribuições à
implantação da Lei 10.639/03. Maria de Fátima Garcia, José
Antonio Novaes da Silva (Org.). João Pessoa: Editora UFPB, 2018.

GOMES, Nilma Lino. Educação cidadã, etnia e raça: o trato


pedagógico da diversidade. In: CAVALLEIRO, Eliane (org.)
Racismo e antirracismo na educação: repensando nossa escola.
São Paulo: Summus, 2001. p. 83-96.

Rancière, J. (2005a). A partilha do sensível: estética e política.


São Paulo:EXO/34.

SANTANA, Patrícia M. S. Contexto da questão de gênero e raça na


educação – um olhar de dentro. Texto apresentado no Seminário
Nacional Gênero nas Políticas Educacionais realizado em São
Paulo pela Ação Educativa em 02 e 03 de maio de 2016.

SANTOS, MIlton. Metamorfose do Espaço Habitado. São Paulo:


Hucitec,1988.124p.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar. São Paulo: Difel,1983.250p

294 Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades


Caminhos da escrita em tempos de interseccionalidades 295

Você também pode gostar