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São Paulo
2013
Nome: BRIGANTE, Gabriel
Título: A questão transexual para quem estuda e quem é: as
múltiplas concepções sobre o tema na ótica da Psicologia
Política.
Banca examinadora:
Assinatura: Nota:
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer, primeiramente, à Ana Elisa Martins e Luísa Adib por não me deixarem
desanimar ou desistir de escrever esse trabalho. Ao amigo Bruno Martinelli e à Danielli Cavalieri, pelas
dicas, cursos, palestras e toda informação que encontravam sobre o tema e se lembravam de mim. Ao meu
orientador Alessandro Soares da Silva por me abrir os olhos para escrever sobre algo que eu achava que
não poderia e pelo suporte. À professora Cristiane Kerches pelo apoio no começo desse trabalho e pelo
interesse. A André Cerqueira pela conversa madrugada a dentro que me fez entender a razão desse
trabalho.
Agradeço também a todxs as participantes dessa pesquisa, que tiveram muito carinho e
cuidado em responder minha pesquisa com dedicação. Agradeço, inclusive, a aquelxs que decidiram
não responder, mas participaram de alguma forma da construção desse trabalho.
À minha mãe, Silvia Paulista de Souza, por me apoiar nas minhas decisões e pela paciência.
Ao meu pai, Célio Brigante, por me ajudar como pôde durante meu caminho universitário. À minha
irmã, Fernanda Brigante, minha melhor amiga, pelas discussões sobre o tema e por todo o apoio.
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todos os doentes, monstros, bixos, desviados, viados, sapatões,
caminhões, bixas, travecos e desajustados desse mundo.
RESUMO
BRIGANTE, G. A questão transexual para quem estuda e quem é: as múltiplas concepções sobre o tema
na ótica da Psicologia Política. 2013. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso) – Escola de Artes,
Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
BRIGANTE, G. Transexual for those that study and those that are: multiple visions of the topic through
the Political Psychology’s optics. 2013. Monograph (End of Course Work) – School of Arts, Sciences
and Humanities, São Paulo University, São Paulo, 2013.
This research’s objective is to gather the different visions of what transexuality/ism is, in a
way to deconstruct the idea that there’s an unique and correct concept about transexual e to understand
which is the rulling vision in Brazil’s law that deals with this subject. In order to reach this objective, it
has been done a exploratory research, in which was possible to find two diverse ways of seeing it: one
that seems transexualism as a pathology and other that seems as an identity. Further, was necessary to
gather, through individual narratives, the ideas of what is transexuality according to transexual men and
women, which often differs of the academic concepts. What was noticed with this research is that, even
though there’s a long discussion about the topic, the pathologization vision is dominant in Brazil’s laws
and, although some things have advanced, this legislation is walking with baby steps and staying behind
other countries, that has matured the topic.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 8
1 A ÓTICA DE QUEM ESTUDA ......................................................................................... 13
1.1 A MEDICALIZAÇÃO DO GÊNERO E O TRANSEXUALISMO COMO
TRANSTORNO .................................................................................................... 16
1.2 TEORIA QUEER E TRANSEXUALIDADE: MÚLTIPLAS IDENTIDADES .... 24
2 A ÓTICA DE QUEM É ...................................................................................................... 30
2.1 PERFIL DAS/OS/XS RESPONDENTES .......................................................... 31
2.2 TRANSEXUALIDADE/ISMO POR TRANSEXUAIS ...................................... 37
2.3 TRANSEXUALIDADE/ISMO E TRANSFOBIA .............................................. 41
2.4 TRANSEXUALIDADE/ISMO E POLÍTICAS PÚBLICAS ............................... 43
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 55
APÊNDICE ............................................................................................................................. 58
APÊNDICE 1. QUESTIONÁRIO APLICADO ÀS/AOS TRANSEXUAIS ..................... 58
8
INTRODUÇÃO
A sopa de letrinhas (FACCHINI, 2005) que usamos para designar um grupo social que
transgrida a lógica heterossexual e é utilizada para identificar as orientações sexuais
“minoritárias” já passou por muitas mudanças. O que antes era um mote comercial, GLS (Gays,
Lésbicas e Simpatizantes), passou a ocupar um lugar na cena política ao originar um outro jogo
de letrinhas conforme mais e mais identificações e orientações foram emergindo dos
subterrâneos da Memória (POLLAK, 1989; SILVA, 2008, 2009). Nesse caminho vimos a
emergência de termos como movimentos homossexuais, GLS, GLBTs (Gays, Lésbicas,
Bissexuais, Transgêneros e simpatizantes), GLBTTTs (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis,
Transexuais, Transgêneros e simpatizantes) e, finalmente, LGBTTIS (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Trasngêneros, Transexuais, Intersexuais e simpatizantes). A última sigla chama-nos
a atenção porque ela supera um aspecto econômico e comercial contido no termo GLS e abre
espaço, dá lugar, cria sentidos muito mais abrangentes e reveladores das idiossincrasias da
sexualidade humana. Essa sequência LGBTTIS reflete e destaca um conjunto de possibilidades
fluidas de se ser/estar no mundo. Mais. Mostra que esses grupos têm adquirido, ao longo do
tempo, um papel social, cultural e político relevante, pois:
transexualidade/ismo se mantém constante através dos anos: 0,15 – 0,17 a cada 100 mil pessoas
acima de 15 anos de idade (SAADEH, 2004).
Entretanto, mesmo sem uma estimativa apurada, estamos evidenciando a porta do
armário se abrindo e as pessoas transexuais cada vez mais presentes no nosso dia-a-dia, trazendo
à tona esse tema. Porém, muitas vezes a maneira com que o tema é tratado ajuda a criar uma
imagem rasa dessas pessoas, pouco condizente com a realidade e que, embutida no imaginário
popular, é aceita como única e possível.
Essa imagem é a mesma que temos ao desbravar seu significado num dicionário básico,
por exemplo. De acordo com o dicionário Michaelis, transexual (trans+sexo+al) é aquele que
está acometido de transexualismo. É aquele que atravessa, que cruza, que vai para o outro lado
do sexo. Ou seja, aquele que muda de sexo e subentende-se aqui, aquele que realiza um
procedimento cirúrgico para tal. Mas me pergunto: será mesmo esse um conceito tão simples?
Não seria a questão um pouco mais complexa do que isso?
Há um século, Gustave Le Bon escreveria que “os phenomenos sociaes apresentam-
se hoje extremamente complicados, estreitamente hierarchisados e em que não se observa a
simplicidade” referindo-se a evolução dos povos e dos indivíduos (LE BON, 1921, p. 1) e, se
em 1910 – época da primeira publicação - o autor afirmaria que a compreensão dos fenômenos
sociais encontrava-se complexo, o que diria hoje? Acredito que pensaria da mesma maneira.
Assim como evoluíram as tecnologias desde aquela época, a complexidade das coisas também
evoluiu e as explicações simples, como as que nos dá um dicionário quando explica fenômenos
como a/o transexualidade/ismo, mostram-se não tão simples assim na realidade.
Logo, com o intuito de estudar esse fenômeno social e especificamente a política de
redesignação sexual, que por Portaria do Ministério da Saúde de 2008 realiza via o Sistema
Único de Saúde (SUS) o processo transexualizador (BRASIL, 2008), esbarrei numa questão
fundamental para o desenvolvimento desse trabalho: a de definir conceitualmente a/o
transexualidade/ismo. Diferentes visões eram introduzidas pela literatura, por autores que
partiam de conceitos divergentes, linhas diversas e opiniões opostas, expressas, em geral, entre
visões dicotômicas: a da patologização da transexualidade e a da despatologização do
transexualismo.
Assim, este trabalho desenvolveu-se com vistas a reunir – com certa neutralidade – as
diferentes linhas teóricas que concernem a temática, relacionando-as com as perspectivas
percebidas sob duas óticas diferentes: quem estuda e quem vive a/o transexualidade/ismo.
10
Além disso, se considerarmos que toda vida humana é social, que o espaço público é
também político, que o sujeito privado e o sujeito público se confundem e que mudanças em
um afetam o outro e vice-versa (MONTERO, 2009) então devemos entender também de que
forma fenômenos subjetivos, como a/o transexualidade/ismo refletem nas políticas públicas.
Embora, a primeira vista, conceitos subjetivos como identidade de gênero, transvestismo,
transexualidade/ismo e outros podem parecer distantes e até mesmo irrelevantes para o Estado
e para os governantes, devemos olhar para tais aspectos sob a ótica de um campo de
conhecimento que se dá no interstício disciplinar. Por ser um campo marcadamente aberto ao
diálogo científico que visa a superação de questões que transcendem as barreiras disciplinares
(SILVA, 2013). Um campo de produção de conhecimento que se preocupe com as questões dos
cidadãos, da relação Estado e sociedade, dos movimentos sociais e, claro, da subjetividade
inerente aos indivíduos: a psicologia política1.
Para Gustave Le Bon (1921, p. 6), psicologia política é a “sciencia do governo”, ou seja,
é a arte de governar por meio da qual os estadistas devem prestar atenção aos aspectos
psicológicos dos indivíduos, das multidões e das raças, de forma a tomar decisões – implementar
políticas públicas – pautadas nesses aspectos e não apenas pautadas na lógica racional. Em
outras palavras, é a ciência que relaciona fenômenos psicológicos e fenômenos políticos.
Evidentemente que, quando escrito, seu tratado sobre psicologia política não fazia
qualquer referência ao fenômeno tratado nesse trabalho, na época do seu texto psychologie
politique et defense sociale de 1910, o autor estudava o fenômeno das revoluções que se
espalhavam pela França no século XVIII – XIX. Entretanto, a abordagem utilizada continua tão
atual e moderna quanto há dois séculos e, portanto, justifica-se estudar conceitos subjetivos –
como os já citados – já que esses afetam os indivíduos, os atores com eles relacionados, a
sociedade em geral e, em última instância, as políticas públicas.
A fim desse objetivo, no primeiro capítulo abordarei a questão sob a ótica de quem
estuda o tema. Para isso, foi realizado, através de pesquisa bibliográfica, um aprofundamento
no corpo teórico do tema de forma a realizar um panorama desde os primeiros estudos até os
mais contemporâneos, dividindo-os em duas perspectivas: (i) a da patologização, comum
principalmente nas ciências biomédicas; (ii) e a da despatologização, comum nas ciências
sociais e estudos de gênero.
1
Trecho extraído da fala do Prof. Dr. Alessandro Silva durante a abertura do I Seminário Internacional de
Psicologia Política (América Latina) realizado dia 14/03/2013 na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da
Universidade de São Paulo.
11
2
Questionário disponível em http://pt.surveymonkey.com/s/H9ZRR9D
12
merece ser melhor investigado futuramente; e (iii) sendo um questionário anônimo, nenhum
nome foi solicitado, logo, tomei a liberdade de prover nomes fictícios aos respondentes,
respeitando suas identidades de gênero, bem como adotei a utilização do “x” em substituição
aos artigos feminino e masculino quando a pessoa se identificar como sendo “sem gênero
definido”.
Por fim, faço minhas considerações finais a respeito do que foi exposto anteriormente
acerca do tema, enquanto um tema complexo que insere-se no meio de um debate acadêmico
entre a visão das ciências biomédicas, das ciências sociais e soma-se à visão das transexuais
participantes desse trabalho, finalizando com alguns caminhos possíveis que já se mostram no
horizonte das políticas públicas.
Vale ressaltar que este trabalho não tem como objetivo finalizar num conceito fechado
e único para a/o transexualidade/ismo e nem criar uma imagem dos/as transexuais. E sim reunir
ideias, visões, perspectivas, opiniões e conceitos que são iguais em sua diversidade e que
possam ascender ao debate no momento de realizar políticas públicas específicas à população
estudada.
Esse trabalho tem, portanto, enquanto pesquisa exploratória o objetivo de aprofundar
o tema da/o transexualidade/ismo, procurando jogar luz à essa temática e modificar algumas
ideias e conceitos que possamos, eventualmente, ter como algo já dado, tornando a questão mais
esclarecida para trabalhos posteriores. Lembro ainda que, intencionalmente, utilizarei as
palavras transexualidade e transexualismo, em ambas as terminologias - juntas ou em momentos
diferentes - de forma a evidenciar que a complexidade da questão reside, inclusive, em sua
terminologia.
13
De acordo com Àran e Murta (2009) foi somente a partir do século XVII que se passou
a recusar a ideia de misturar dois sexos num só corpo e da transição entre sexos. Anteriormente,
experiências transexuais puderam ser observadas em diferentes aspectos mitológicos, históricos
e em outras culturas.
Segundo Alexandre Saadeh (2004), na mitologia greco-romana, por exemplo, os
sacerdotes do deus Atis do reino da Frígia (atual região da Turquia) eram obrigados a se
emascular (extirpar sua genitália) em referência ao deus Atis, que teria realizado o mesmo por
conta de um amor proibido por sua mãe Cibele, a mãe Terra. Esse culto foi levado a Roma,
onde foi valorizado e continuou a ser realizado por sacerdotes do culto que se castravam,
vestiam-se como mulheres e tomavam conta do tempo de Cibele, onde é hoje a basílica de São
Pedro (FRIEDMAN, 2002 apud SAADEH, 2004, p. 13).
Na história, segundo Saadeh (2004), não existem referências a respeito de experiências
transexuais antes do Império Romano – I d.C - sendo o exemplo mais conhecido o dos eunucos,
homens que se transvestiam e chegavam até a se emascular para se tornarem guardiões do leito,
ou seja, aqueles que guardavam, sem riscos, as mulheres de seus senhores (FRIEDMAN, 2002
apud SAADEH, 2004, p. 15). Outro personagem transexual famoso e reconhecido na história é
de Chevalier D’Eon/Madame Beaumont, um alto/a funcionário/a e amante do Rei Luís XV, cuja
mobilidade entre gêneros era tanto aceita pelo rei quanto pela sociedade francesa da época
(BENTO, 2008). Chevalier D’Eon/Madame Beaumont passou seus últimos anos de vida na
Inglaterra, onde viveu permanentemente como mulher (GREEN, 1998 apud SAADEH, 2004,
p. 17)
Em outras culturas no mundo todo existem relatos etnográficos que revelam
fenômenos de mudança de gênero, inclusive em culturas ocidentais. Os mais famosos referem-
14
se a tribo norte-americana dos Yuman, que acreditam numa “mudança de espírito”, onde após
determinados sonhos em que os jovens da tribo se enxergam como pertencente ao gênero oposto
ao atribuído passam a adotar seus trejeitos e postura e são aceitos como tal: elxa no caso dos
homens que passam a viver como mulheres e kwe’rhame no caso de mulheres que passam a
viver como homens (GREEN, 1998 apud SAADEH, 2004, p. 19). Em algumas culturas orientais
o transexualismo e o terceiro sexo são encarados com naturalidade, aceitos pela sociedade e até
mesmo reforçado, como as fa’fafine nas Ilhas Samoa ou os Hijras na Índia (PIÑEROBA, 2008).
No entanto, o discurso científico do século XIX realizaria um esforço em naturalizar
uma norma heterossexual reprodutiva binária pênis-masculino e vagina-feminino (FOUCALT,
1988): o dimorfismo. Até aquela época, o modelo de interpretação dos corpos em vigor era o
isomorfismo:
No isomorfismo, a vagina era vista como um pênis invertido. O útero era o escroto
feminino; os ovários, os testículos; a vulva um prepúcio e a vagina, um pênis
invertido. A mulher era fisiologicamente um homem invertido que carregava dentro
de si tudo que o homem trazia exposto (BENTO, 2008, p. 21-22)
(...) não é de se espantar que homens e mulheres possuam direitos e papeis sociais
diferentes, afinal são seres completamente diferentes, produzidos pela natureza para
funções diferentes. Sendo assim, a vocação para a maternidade e para os serviços
domésticos integra a constituição própria da mulher que é fisicamente mais frágil,
enquanto, ao homem viril, cabia a função de provedor e protetor. (COACCI, 2012, p.
82)
[...] podem utilizar o poder para aumentar sua hierarquia social, usando as instituições
para seu próprio proveito visando gerar e manter formas de discriminação e de
exclusão destinadas a enfraquecer e submeter outros grupos (MONTERO, 2009, p.
209)
O autor define ainda que essa manifestação aconteceria em diferentes graus, passando
por alterações de personalidade psíquica, o que viria a ser conceituado como a
homossexualidade, até a busca pela “inversão sexual” através da transformação corporal,
fazendo clara referência ao transexualismo (SAADEH, 2004).
Porém, somente no século XX o termo transexualismo seria utilizado pela primeira vez
no artigo psychopathia transsexualis – inspirado no já citado artigo de Kraft-Ebbing - de autoria
do Dr. David Oliver Cauldwell, em 1949. Cauldwell cunhou o termo para designar indivíduos
17
em que o “sexo biológico” era distinto do “sexo psicológico” e que esse último seria
determinado por condicionantes sociais. O autor, entretanto, posicionava-se contrário às
cirurgias de mudança de sexo, pois para ele o transexual deveria ser tratado como doente mental
e seu tratamento deveria alinhar os “sexos” através de acompanhamento psicológico
(CAULDWELL, 1949 apud CECCARELLI, 1998, p. 137)
Antes dele, Magnus Hirschfeld teria cunhado termo semelhante – transexual psíquico
– ao designar um de seus pacientes que tinha desejo em se vestir com roupas do sexo oposto na
obra Die Transvetiten, publicada em 1910. Em sua obra, Hirschfeld (1991 apud SAADEH,
2004, p. 26), relaciona vários casos de homens e mulheres que se transvestem e discute suas
variações e motivações, categorizando-as em 10 tipos, a saber: (i) travesti completo; (ii) travesti
parcial; (iii) travesti constante; (iv) travesti periódico; (v) travesti no nome; (vi) travesti
narcísico; (vii) travesti homossexual; (viii) travesti bissexual; (ix) travesti metatrópico; e (x)
travesti autônomo-sexual (SAADEH, 2004). O tipo (i) travesti completo se assemelharia a
definição superficial e típica de transexual – aquele que se traveste permanentemente e ojeriza
seu genital - porém, os estudos da transexualidade só se aprofundariam a partir da primeira
intervenção cirúrgica que veio ao conhecimento público em jornais norte-americanos3: do ex-
soldado George Jorgensen realizado por Christian Hamburguer, em 1952, na Dinamarca
(ÁRAN e MURTA, 2009). Seria a partir daí, que o tema sairia da mídia e ganharia destaque no
terreno da medicina.
Do ponto de vista médico, referem-se ao fenômeno transexual de diversas formas:
3
E -GI e o es lo de eaut (New York Daily News, 1º de dezembro de 95 e Dea u a d dad, so
ote, I’ e o e o e ou daughte The Dail Mi o , de deze o de 95 .
18
Já para Benjamin (1953 apud ÁRAN & MURTA, 2009, p. 1143), o transexualismo
estaria ligado a causas biológicas, sejam genéticas ou endócrinas, e não haveria uma divisão
entre “masculino” e “feminino”. Para o autor, o sexo (biológico) é composto de diversos
componentes e, portanto, o desejo de mudar de sexo ultrapassaria aspectos psicológicos e
identitários. Benjamin estabeleceu em 1966 uma escala de orientação sexual que é utilizada
como guia diagnóstico até hoje, chamada “Harry Benjamin Sex Orientation Scale (S.O.S), Sex
and Gender Disorientation and Indecision (Males)”, na qual descreve tipos de desvios sexuais
e de gênero. A seguir a tabela 1 (SAADEH, 2004, p. 34-36) apresenta essa classificação:
Foi nessa época que os termos Transtorno de Identidade de Gênero (TIG) e Disforia
de Gênero surgiram, quando em 1977, pesquisadores do tema formaram a Harry Benjamin
International Gender Dysphoria Association, estabelecendo então um código para a doença e
um tratamento padrão para cuidar dos casos de transexualismo (IRVINE, 1990 apud SAADEH,
2004, p. 41).
22
Desde então, outros pesquisadores continuaram a estudar o tema sob uma ótica
patológica, como Collete Chiland, Simona Argentieri, Emerson Garcia e Alexandre Saadeh.
Através de seus trabalhos de psicanálise com pacientes transexuais e crianças diagnosticadas
com transtorno de identidade de gênero, Chiland (2000) atesta que o transexual está tão focado
na imagem do corpo desejado que acaba por deixar de lado quaisquer aspectos psicológicos.
Para a autora, portanto, o transexualismo trata-se de um transtorno narcisista em que a
constituição do eu psíquico foi profundamente prejudicada em contrapartida da construção da
imagem de corpo que o paciente deseja (CHILAND, 2000). De forma semelhante, Argentieri
(2009) afirma que o transexualismo trata-se de um delírio, ou melhor, define a organização
psicopatológica do transexual como:
Assim, para a autora, o transexual é uma pessoa que vive um delírio constante de estar
no corpo errado e o persegue de forma a buscar o corpo certo que diz pertencer. Há nessa pessoa,
segundo Argentieri, danos narcísicos, uma autoimagem inadequada e menosprezada e uma
fantasia de reparação, que é o transvestismo ou a mudança de sexo (ARGENTIERI, 2009). Tais
fantasias garantiriam o bem-estar e a segurança ao delirante.
Por fim, diferentemente das autoras anteriores, que creditam a patologia do transexual a
aspectos psicológicos, para Garcia (2010) o transexualismo é originário de falhas
cromossômicas e/ou desequilíbrios hormonais, impondo uma quebra entre a identidade psíquica
e a realidade física. De acordo com o autor, a patologia pode se manifestar tanto na infância
quando na vida adulta e, inclusive, podem se principiar no curso da própria gestação.
Para o autor, transexualismo é uma doença que acomete a pessoa portadora do distúrbio
e que, somente, através da intervenção cirúrgica é possível seu enfrentamento, garantindo a
estabilidade psíquica do individuo. O transexual possui uma aversão ao próprio sexo e tem como
objetivo normalizar-se submetendo-se a intervenções cirúrgicas de reparação, diferentemente
do homossexual e do travesti, que não apresentariam essa aversão ao sexo e não teriam nenhuma
resistência a sua própria identidade sexual, já que:
23
[...] o primeiro prefere manter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo; o seu
órgão genital, longe de ser um empecilho à felicidade, é a verdadeira fonte do seu
prazer; o segundo, por sua vez, que pode ser homossexual ou heterossexual, obtém
prazer ou segurança ao adquirir a aparência de pessoa do sexo oposto, o que se dá
com roupas e adereços (GARCIA, 2010, p. 185)
O autor reitera uma ideia bastante presente no imaginário popular: a de que a linha que
separa o travesti do transexual é a realização da cirurgia de adequação do sexo, atribuindo ao
transexual a necessidade de realização da cirurgia como etapa final da evolução de sua
sexualidade, iniciada como homossexual passando por travesti e concluindo como transexual,
numa clara referência à Escala de Harry Benjamin, exposta anteriormente (GARCIA, 2010)
Assim como Garcia, Saadeh defende que o transexualismo tem determinantes
biológicos. Para o autor, fatores socioculturais e ambientais podem influenciar no
desenvolvimento do transexual, mas a gênese dos transtornos de identidade de gênero está nos
fatores biológicos.
O autor ressalta que tudo ainda se baseia em hipóteses, mas duas linhas de pesquisa
vêm trabalhando a questão: uma envolvendo fatores hormonais, que evoluiu desde a busca por
alterações quantitativas de hormônios até a influência dos hormônios masculinos na
diferenciação cerebral (SAADEH, 2004, p. 51) e outra que envolve alterações genéticas e/ou
cromossômicas.
Saadeh se detém na correlação entre hormônio masculino e diferenciação e
desenvolvimento cerebral e comportamento masculino-feminino. Saadeh afirma que hoje em
dia é sabido que existem o cérebro masculino e feminino e que a determinação acontece ainda
no útero da mãe por hormônios masculinos circulantes, definindo quando um cérebro é
masculino ou feminino. Em sua tese de doutorado, o autor cita um estudo de Zhou de 1995 e de
Kruijiver de 2000 (apud SAADEH, 2004, p. 52-53), que afirmam que existem evidências de
que os cérebros de transexuais masculinos (transmulheres) é semelhante em número de
neurônios ao cérebro de mulheres e vice-versa, indicando uma base neurobiológica para a
questão, mas conclui reconhecendo que as perspectivas biológicas prosseguem, mas sem
achados definitivos e conclusivos (SAADEH, 2004, p. 55).
24
A noção de transexuais como pessoas doentes, com aversão à sua genitália e com
problemas psicológicos que seguem um diagnóstico padrão, como definem as ciências psi e a
medicina, passou a ser bastante relativizada nos últimos anos por pessoas transexuais que se
identificam com o outro gênero, mas não necessariamente reclamam a cirurgia ou que a
realizam não para adequar-se a lógica heteronormativa como é suposto. Passaram, portanto, a
serem estudadas outras formas de caracterização da transexualidade, que não a colocassem
como patológica e não se justificasse pela adequação à heteronormatividade (BENTO, 2008)
Essa outra vertente que estuda a questão transexual refere-se ao fenômeno não como
uma patologia, mas sim uma forma de compreensão da identidade pessoal. O psicólogo norte-
americano John Money (& Hampson e Hampson, 1957 apud PIÑEROBA, 2008, p. 238) ao
empreender um estudo sobre intersexuais definiu que o comportamento masculino e feminino
seria algo construído socialmente, sendo a educação o principal modelador do gênero. Dessa
forma o social e o biológico seriam independentes e respeitariam uma separação conceitual
entre o sexo (biológico) e o gênero (social). Esse rompimento – entre gênero e sexo - aconteceria
nos primeiros anos de vida, seria irreversível e só completaria sua expressão na maturidade
(MONEY, 1969 apud ÁRAN & MURTA, 2009, p. 1144). Para Money, a força do gênero se
impõe sobre o sexo e constrói o papel de identidade de gênero do sujeito e, posteriormente, sua
conduta sexual. Dessa forma, o sexuality building é pré-configurado pelo body building
(PIÑEROBA, 2008, p. 242). Money, apesar da vanguarda de suas definições, o fazia para fins
escusos: acreditava ser capaz de moldar o gênero e a sexualidade - sendo a heterossexualidade
obrigatória - de intersexuais depois de terem passado pela cirurgia que lhes definiria como de
um sexo ou outro:
Sem dúvida, quando a intersexualidade não supõe nenhum tipo de risco para a vida
do intersexual, recorrer à cirurgia plástica genital é questionável. Nesse sentido, o
posicionamento de Money, que inicialmente foi bem recebido, passou a ser criticado,
não só em termos teóricos como também em termos éticos (PIÑEROBA, 2008, p.
243. Tradução livre do autor)
Foi nessa mesma época - década de 60 - que a sociologia passou a explorar o campo
da sexualidade, antes restrito à sexologia como ramo psiquiátrico e pelos estudos conservadores
25
[...] o sistema binário (masculino versus feminino) produz e reproduz a idéia de que
o gênero reflete, espelha o sexo e que todas as outras esferas constitutivas dos sujeitos
estão amarradas a essa determinação inicial: a natureza constrói a sexualidade e
posiciona os corpos com as supostas disposições naturais (BENTO, 2008, p. 30)
26
[...] camuflar práticas reguladoras que fazem apenas gerar e corroborar um outro
binarismo materializado em um sistema perverso de identidades hegemônicas e
marginais (p. 268)
discriminação de outras identidades diferentes da imposta. Identidades essas que são múltiplas,
performáticas e metamórficas, sem que sejam patológicas (SILVA & BARBOZA, 2009).
Assim como Bento, José Nieto Piñeroba (2008) é crítico ao processo que ele chama de
medicalização da transexualidade. Para o autor, o apoderamento medicalizador dos âmbitos
sociais, encontrou na transexualidade o que Conrad e Schneider (1980 apud PIÑEROBA, 2008,
p. 65) consideram como os três níveis essenciais para patologizar qualquer situação de vida: os
níveis conceitual, institucional e interativo. A nível conceitual, na transexualidade é possível
reproduzir o vocabulário, as ideias, os argumentos, as características e os protocolos do modelo
biomédico, já que os indivíduos transexuais são diagnosticados como enfermos e, a partir daí,
nada podem fazer para escapar dessa doença que lhes foi atribuída.
O nível conceitual ainda abre espaço para que o segundo e o terceiro nível entrem em
ação. O modelo biomédico da transexualidade se apodera, inclusive, dos âmbitos institucionais,
pois este se magnifica e permite que as instituições de justiça reconheçam e apliquem critérios
jurídicos aos direitos transexuais baseados na medicina. Para o autor, pode-se dizer que a
Justiça, ao adotar o modelo biomédico da transexualidade para as decisões que toma (como por
exemplo, a realização ou não da cirurgia de redesignação sexual como critério para a obtenção
de documentos oficiais corrigidos com o gênero autoreferido), acaba por aceitar e potencializar
a patologização da transexualidade. Por fim, Piñeroba afirma que a pior face da medicalização
da transexualidade acontece no terceiro nível: o de interação. Com o modelo biomédico da
transexualidade - desde o momento que é considerada como doença até a forma como deve ser
tratada - os sujeitos transexuais se veem vinculados a uma rede medicalizadora impossível de
se “desenrolar” e, portanto, acabam por seguir suas regras a fim de garantir direitos ao seus
próprios corpos. Dessa forma, esses sujeitos são obrigados a submeter-se aos princípios
diagnósticos do modelo biomédico - e aos critérios judiciais por ele pautados - tornando-se
participantes sem voz dessas interações que, apesar de sociais, baseiam-se num modelo que
ignora justamente essas relações (PIÑEROBA, 2008).
O autor, entretanto, acredita que não são esses três níveis os únicos que marcam o
processo de patologização da transexualidade. É preciso considerar também o nível tecnológico
e o nível correlativo-causal para entender a transexualidade em sua maior dimensão.
No nível tecnológico, o autor menciona as cirurgias plásticas (de redesignação sexual),
já que a possibilidade de “mudar” o sexo através de cirurgia cria no sujeito uma ansiedade que,
antes dessa novidade tecnológica, nunca existiu. Justifica essa afirmação enumerando exemplos
de comunidades orientais e ameríndias que reconhecem o terceiro gênero sem necessariamente
28
recorrerem a cirurgias plásticas (PIÑEROBA, 2008) como o terceiro sexo dos inuit (SALADIN
D’ANGLURE, 1985 apud PIÑEROBA, 2008, p. 68). Já no nível correlacional-causal, o autor
critica a necessidade da comunidade científica ocidental de estabelecer uma origem para a
transexualidade, pautada principalmente em critérios biológicos. Menciona o estudo de Harry
Benjamin - The Transexual Phenomenon de 1977 - e conclui:
Da mesma forma que Piñeroba e Bento, Judith Butler, uma das maiores referências nos
estudos queer, também aborda a questão da transexualidade como uma forma de identidade que
desafia a normatização dos gêneros. Para a autora, transexuais são pessoas que se identificam
ou vivem como o outro gênero, podendo ou não ter passado por tratamentos hormonais e/ou
cirurgias de redesignação sexual e seus desejos em ser homem ou mulher não devem ser
encarados como uma forma de se encaixar nas categorias identitárias estabelecidas.
Como Kate Bornstein aponta, esses desejos podem ser de transformação pura, uma
busca de identidade através de um exercício transformativo ou um exemplo de desejo
pela transformação (BUTLER, 2004, p. 8. Tradução livre do autor)
Para Butler, o gênero é uma maneira de ser e agir - a kind of doing - para si e para o
outro e, dessa forma, não poderia ser percebido como mecânico ou automático (BUTLER,
2004). Pelo contrário, trata-se de um prática constante de improvisação e performance. Esse
termo, inclusive, é característico dos estudos da autora e ao que ela chamou de teoria da
performatividade.
Dessa forma, a performatividade cria sujeitos como produtos das repetições que
exercem, encarnando ideais de feminilidade e masculinidade vinculados à heterossexualidade.
O ato performativo torna real aquilo que atua (gestos e comportamentos) e esse ato na repetição,
torna-se uma citação de algo, um código, uma convenção e, por isso mesmo, mostra-se efetivo.
29
Sendo assim, o gênero é um efeito de atos repetidos, sem um original ou uma essência (Porchat
& Silva, 2010) e, portanto, é uma identidade da qual o corpo faz parte, mas não é o principal.
Assim, quem se permite confrontar e colocar em xeque essa ficção reguladora acaba
sofrendo as consequências da exclusão, de forma ainda mais grave no caso de transexuais que
vivem em comunidades pobres: a humilhação sofrida por aqueles que são “vistos” como trans
ou são descobertos como tal é algo que não podemos estimar (BUTLER, 2004, p. 6). No
entanto, a autora não questiona a exclusão social dessas pessoas e não acredita na estratégia da
inclusão delas na lógica heteronormativa. Para a autora, a estratégia a ser adotada deve ser o de
destruir o conceito de divisão de gênero e de normalidade que é estabelecido.
Somente assim, a experiência de um transexual - bem como outras identificações - seria
encarada como apenas mais uma prática social, mais um ato performativo e, então, subvertendo
a norma corporal, poderia tornar-se de fato um sujeito de direitos.
2 A ÓTICA DE QUEM É.
4
Candidatas transexuais do ENEM dizem ter sofrido constrangimentos. Disponível em:
http://g1.globo.com/educacao/enem/2013/noticia/2013/10/candidatas-transexuais-do-enem-dizem-ter-
sofrido-constrangimento.html
30
histórias. O fenômeno do “menino Teresa”5 nas redes sociais também chamou a atenção da
mídia e contribuiu para que esse debate se mostrasse cada vez mais atual e urgente de alguma
visibilidade, mas ainda pouco se fala na mídia sobre o assunto, na sociedade a questão é tabu e
na academia as opiniões sobre o tema se dividem, trazendo conceitos e visões que não
conversam entre si e, muitas vezes, não conversam com a realidade dos/as próprias pessoas que
são transexuais.
Piñeroba (2008) cita o exemplo de lord Cornbury, primeiro governador/a colonial de
Nova York. Segundo o autor, essa personagem mítica da história americana já teria sido
classificado como transvestido, ou em linguagem coloquial como travesti, mas também numa
linguagem menos habitual teria sido denominado/a um/a transvestófilo. Autores com critérios
trans mais flexíveis diriam que Cornbury pode ter sido um transexual, ao passo que autores mais
rígidos, que ligam a transexualidade à cirurgia de redesignação sexual, não a/o classificariam
assim sob nenhum ponto de vista. Já sob uma perspectiva de projeção internacional, seria um
cross-dresser e, então, conclui:
“Sem dúvida, sempre ficaríamos sem saber a última palavra que haveria de ser
empregada, a autoidentitária, a de lord Cornbury” (PIÑEROBA, 2008, p. 234. Grifo
do autor)
Assim, concordando com o autor, acredito que, talvez, algumas teorias e classificações
tenham sido pensadas sem considerar perguntar às pessoas mais importantes dessa questão. Ou
se perguntadas, foram intencionalmente ignoradas. Logo, não com fim de tecer minha própria
ideia da questão, tampouco criar classificações ou sequer fazer julgamentos, pensei ser
interessante ouvir o que essas pessoas têm a dizer sobre elas mesmas.
5
Quem é Teresa Brant: menina que se veste como menino bomba nas redes sociais. Disponível em:
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/bruno-astuto/noticia/2013/08/quem-e-bmenina-que-se-veste-como-
meninob-e-bomba-nas-redes-sociais.html
31
(questões de 1 à 4). A primeira questão visava definir qual a identidade de gênero da/o/x
respondente:
Identidade de Gênero
0 4
1
18
Fonte: Elaborado pelo autor a partir das respostas à questão 1 do questionário (apêndice 1) aplicado nessa
pesquisa.
Orientação Sexual
4
1 9
6
3
Fonte: Elaborado pelo autor a partir das respostas à questão 2 do questionário (apêndice 1) aplicado nessa
pesquisa.
Faixa Etária
0 2
7 Até 18 anos
De 18 a 30 anos
De 31 a 59 anos
Mais de 60 anos
14
Fonte: Elaborado pelo autor a partir da questão 3 do questionário (apêndice 1) aplicado nessa pesquisa.
A partir do gráfico 3 podemos ter uma ideia do perfil etário das pessoas participantes,
que em sua maioria – cerca de 60% - são jovens entre 18 e 30 anos. No entanto, me chama
atenção o número relativamente baixo de transexuais com idades entre 31 e 59 anos e a
inexistência de maiores de 60 anos. Esse segundo grupo, podemos acreditar que não aparecem
aqui por conta da pesquisa ter sido realizada no ambiente online, assim como dificilmente
nossos avós apareceriam, porém o número de 7 participantes entre 31 e 59 anos me faz refletir
sobre uma questão delicada: envelhecimento da população T.
Uma vez considerado o valor social atribuído à juventude, o envelhecimento, que já é
uma fase difícil para as pessoas cissexuais heterossexuais, pode representar maior sofrimento
para os grupos LGBT. Se entre os homossexuais, é comum que gays idosos sofram preconceito
entre os mais novos, entre a população T tal situação pode se agravar, haja vista que muitas
vezes o seu papel social está associado a juventude e ao corpo.
Embora sejam poucas as publicações que abordem o tema com profundidade, o que se
pode observar é que a expectativa de vida per si dessas pessoas já é baixa e quando chegam na
velhice devem considerar-se sobreviventes (ANTUNES & MERCADANTE, 2011). Por serem
transexuais e estarem ficando velhos/as sofrem uma dupla discriminação de todos os lados: do
Estado, da sociedade cissexista-heterossexual, dos grupos LGB e do público T mais jovem. De
acordo com ANTUNES & MERCADANTE (2011), como a velhice não é valorizada, essa
população tende a perder seu espaço, se é que algum dia teve um.
Segundo dados da ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais – cerca
de 90% das travestis e transexuais vivem na prostituição. Logo, com a chegada da velhice e,
consequentemente, com a perda da “beleza” dos atributos físicos, essa população perde também
34
sua ocupação. Tendem a ocupar espaço no mercado informal como costureiras, cabeleireiras,
domésticas, cozinheiras, etc.
O mais espantoso é que há, inclusive, relatos de transexuais que depois de certa idade,
deixem de assumir sua identidade de gênero e adequem-se à lógica de gêneros imposta para
serem aceitos/as em casas de repousos ou ONGs especializadas6. Logo, é importante refletir
sobre esse dado e sobre essas questões, que abre espaço para uma discussão que não me
aprofundarei por ora.
Para finalizar a primeira parte, referente ao perfil dxs respondentes, a questão 4
caracteriza as/os/xs participantes quanto a escolaridade e ocupação.
Pesquisada/o/x: Ocupação:
1 Programadora
2 -
3 -
4 Cabeleireira
5 Estilista
6 Administradora de Sistemas
7 Maquiadora e Cabeleireira
8 Cabeleireira
9 Cabeleireira e Profissional
do Sexo
10 Jornalista
11 -
12 Auxiliar de Escritório
13 Balanceiro de produção
6
Caso de um transexual de Porto Alegre, que retrata bem a situação. Aos 75 anos, ele procurou um asilo e foi
enxotado de lá. Sem recursos financeiros e já dependente de cuidados, ele voltou para casa, parou de tomar
hormônios femininos, cortou os cabelos, deixou a barba crescer e retornou ao asilo, onde foi aceito
t a uila e te . Disponível em: http://www.50emais.com.br/artigos/eles-tambem-envelhecem/.
35
14 Professora
15 -
16 -
17 -
18 -
19 -
20 -
21 Engenheirx de Computação
22 -
7
Segundo a Associação das Travestis e Transexuais do Triângulo Mineiro (Triângulo Trans), apenas 5% das
travestis e transexuais de Uberlândia estão no mercado de trabalho dito formal. As demais, 95%, estão na
prostituição. Número semelhante é apresentado pela ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transexuais,
segundo a qual 90% das travestis e transexuais estão se prostituindo no Brasil. Fonte:
http://www.cartacapital.com.br/blogs/feminismo-pra-que/o-preconceito-contra-transexuais-no-mercado-de-
trabalho-2970.html
36
Fundamental Incompleto
Faixa Etária
Fundamental Completo
Médio Incompleto
1 1 0 1 2
Médio Completo
6
Superior Incompleto
Superior Completo
8
Ensino Técnico e
5
Profissionalizante
Pós-Graduação
Fonte: Elaborado pelo autor a partir das respostas a questão 4 do questionário (anexo 1) aplicado nessa pesquisa.
Quanto a escolaridade dxs participantes acredito que os resultados obtidos com essa
amostra podem ter sido influenciados pelo ambiente em que foram colhidos: o virtual. Assim,
não encaro com surpresa o alto número de participantes com Ensino Superior Completo e
Incompleto, que somados correspondem a quase metade do número de participantes. Na
realidade, por começarem geralmente muito cedo o processo de hormonização e transformação,
conhecido como passing (PIÑEROBA, 2008), muitos/as transexuais se vêm obrigados à largar
os estudos por sofrerem transfobia no ambiente escolar. Dados da ABGLBTT (Associação
Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais) estimam que a evasão escolar
de transexuais chegue a 73%8. Logo, se esse questionário fosse aplicado de outra maneira – na
rua, por exemplo – possivelmente o resultado fosse outro.
8
Evasão escolar de transexuais. Disponível em:
ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftpsessp/bibliote/informe_eletronico/2011/iels.ago.11/Iels150/E_PL-728_2011.pdf
37
A partir da segunda parte da pesquisa, foram dadas questões abertas não obrigatórias e,
portanto, nem todas/os/xs as/os/xs participantes responderam. Assim, foram consideradas
somente as respostas de 12 participantes. Com fins de manter sua privacidade, não foi solicitado
nomear o questionário, portanto, atribuirei nomes ficctícios aos participantes. Vale lembrar que
algumas respostas dadas aqui correspondem as visões de pessoas que também estão sujeitas às
ideias e visões expostas no capítulo anterior. Logo, suas respostas são também produtos dessas
discursividades que são ora patologizantes, que reforçam o saber biomédico e ora
despatologizantes, que revoltam-se com a medicalização de suas identidades.
Para começar, quando perguntadas/os/xs O que é transexualidade para você? Com suas
palavras, como você definiria um conceito para transexualidade? as respostas foram as mais
variadas, desde extensas e bem elaboradas até bem simples e pessoais. Se agrupadas em
respostas semelhantes, teríamos o seguinte:
Vale ressaltar que esse último tipo de resposta foram mais extensas, de linguagem extremamente
bem conceituada, acadêmica, utilizando-se de termos e conceitos anteriormente expostos nesse
trabalho.
Para mim, o termo "transexual" está inserido no de "transgênero", sendo deste uma
espécie. A pessoa transgênero seria aquela que não se encaixa nas normas
cissexistas, que definem o gênero apenas pela genital das pessoas. As pessoas
transexuais seriam aquelas que se sentem pertencentes ao gênero oposto ao
designado no nascimento. Claro que isso não seria uma narrativa padrão, e a
autodeterminação deve ser levada em conta. (Depoimento dx participante Cris)
38
Pra mim seria uma pessoa que nasce com a alma dentro de outro corpo. (Depoimento
do participante Carlos)
Ser eu mesma sem prescisar usar ou vestir o que os outros querem , viver como eu
quero independente de sexo (Depoimento da participante Maria)
Na verdade me sinto uma mulher mesmo sem ter feito a cirurgia e nao gosto de ser
definida como transexual, mas infelizmente somos rotoladas e te digo entao que sou
uma transexual que ainda nao fez a cirurgia e nao tenho inteçao de faze-la,por penso
que para ser mulher nao serve ter um orgao ou outro o que importa e que estou bem
assim e me cnsidero uma mulher de todas as formas. (Depoimento da participante
Silvia)
Essas pessoas acima, fazem uso de suas experiências mais íntimas para refletir o que é
a transexualidade, pois vivem-na no dia a dia. Falam da independência do sexo, ou seja, da
liberdade de ser quem se quer ser, quem se é de verdade. A participante Silvia fala, também, da
infelicidade da rotulação como transexuais, enquanto na verdade se sente normal, se sente
mulher, mesmo que lhe digam que não o é, e questiona a ideia rasa de que uma transmulher só
é completa após a cirurgia de adequação sexual, a qual não tem interesse em realizar. O
participante Carlos com sua resposta aproxima-se de uma visão que pode ser produto do que
ouve a vida toda: de que existe uma alma certa para aquele corpo e ser transexual é nascer no
corpo errado, ou seja, uma visão binarista de gênero, patologizante.
39
Em seguida, quando questionei9 sobre as duas perspectivas que “brigam” pela definição
da transexualidade – a das ciências sociais, que define como identidade de gênero e a das
ciências biomédicas, que define como uma doença mental - e pedi suas opiniões, todas as
respostas apontaram para a primeira opção: ser transexual é uma identidade, ainda que os
discursos do senso comum reforcem o saber biomédico.
Não vejo como uma doença e sim como uma identidade de genero pois nascemos
assim. Entao milhares de trans nascem doentes? (Depoimento da participante Maria)
E uma identidade, nao somos doentes...o problema è que não tendo escola,afeto dos
familiares e trabalho isso abala o nosso psicologico e parecemos ser doentes para a
sociedade. (Depoimento da participante Silvia)
A ideia de que a transexualidade, enquanto transtorno, lhes traz uma certa rebeldia em
suas falas. A participante Maria questiona inconformada como é possível ser doente se nascem
assim. Já Silvia afirma, com suas palavras, o que o próximo depoimento traz de maneira mais
elucidativa: ser transexual é uma identidade, mas a sociedade força a doença, abala o
psicológico. Com outras palavras, as duas respostas a seguir dizem isso. Segundo essas
pesquisadas, ser transexual é de fato uma identidade de gênero, uma maneira de ser e agir, mas
devido ao modelo heteronormativo que nos é estabelecido e pela forma com que são encarados
os comportamentos tidos como desviantes por nossa sociedade, acaba por se originar uma
disforia, um transtorno.
9 Questão 9 do questionário: Durante minha pesquisa, pude encontrar uma literatura extensa sobre o assunto,
mas basicamente duas formas de pensar diferente a mesma questão: uma que coloca transexualidade como
uma doença, um transtorno e outra que coloca como uma identidade, ou seja, é autodeterminada. Qual a
importância ou problema de termos diversas visões sobre a transexualidade?
40
O gênero também não é formado pelo ambiente, cultura, etc, mesmo porque, como
uma pessoa como eu que vivi 30 anos como homem não desenvolvi uma identidade
de gênero masculina? Em todo o planeta, não importa se é legal ou ilegal, se são
pessoas com cultura ou sem cultura, se é um país pobre ou rico, nada importa, as
taxas de transsexualidade são muito parecidas. A confusão é gerada por causa dos
papéis sociais, maneirismos, roupas etc, esses sim, construídos socialmente como
"para meninos" ou "para meninas". Não é porque transsexuais costumam buscar um
papel feminino na sociedade que sua identidade de gênero foi criada/influenciada
por ela. Eu mesma sou programadora, uma profissão dominada por homens e nem
por isso sinto minha identificação mais com o masculino ou feminino do que se eu
fosse estilista. Não há causas culturais da transsexualidade e nem está é resultado
de uma doença mental.
Assim não se trata de QUERER ser do gênero oposto e sim SE SENTIR do gênero
preferido. (Depoimento da participante Rita)
Dessa forma, mostra-se um consenso entre transexuais, mesmo que em pequeno número
como nessa pesquisa, que a transexualidade é uma identidade de gênero, é uma forma de
colocar-se para o mundo, é ser quem se quer ser ou quem se sente ser. Logo, não devem estar
erradas as pessoas que vivem na pele essa experiência e que, marcadas pelo estigma que lhes é
imposto pela medicalização de suas identidades, sofrem discriminação, preconceito e violência
por serem simplesmente quem são. Portanto, é importante entender agora, como essa população
vivencia a questão transexual a partir da convivência em sociedade.
41
Eu vivo na Italia,e por mais que voce tenha tirado nota dez nisto ou naquilo,no
momento em que voce vai atras de um emprego a sociedade,a mesma que recrimina
que voce esta na rua è a mesma que fecha a porta para voce.Trabalhei em um salao
por uma semana,assim que pediram os documentos para me regolarizar eles
disseram que nao servia mais. Assim varias outras empresa. (Depoimento da
participante Silvia)
O preconceito vivido por todos os grupos minoritários – LGB, negros, mulheres, etc –
mostra-se ainda mais latente entre a população T. As dificuldades apontadas pelos/as/xs
participantes nas respostas acima para encontrar trabalho formal, refletem uma dura realidade
dessa população que, muitas vezes por não ter outra escolha, acabam indo para o mundo da
prostituição e/ou das drogas. Essa série de não-escolhas fazem com que a imagem dessa
população acabe transmitindo para a sociedade justamente o que ela quer enxergar: que
transexuais são monstros da noite, bixos de rua, escória da sociedade. Esse preconceito, que no
caso de transexuais é denominado transfobia é resultado de uma série de direitos que são
negados e/ou dificultados à essas pessoas como, por exemplo, o direito ao nome social e à
retificação do sexo nos registros oficiais.
Empregos, preconceitos e nome social! sim varios uma vez numa central te
telemarketing por eu aparentar ser muito feminina e porque a empresa pertenciam a
evangélicos. (Depoimento do participante Carlos)
10Questão 6 do questionário: Quais as maiores dificuldades que você enfrentou/enfrenta por ser transexual?
Você já teve algum tipo de serviço público negado por ser transexual? (Se sim, descreva o caso: onde foi,
porque, qual tipo de serviço..)
42
Por falta de lei específica, ficamos a merce de "cair" com um juiz de boa índole para
conseguirmos esse direito. (Depoimento da participante Rita)
Para eles/as/xs, a sociedade é ignorante quanto ao assunto. Segundo Flávia e Rita, a essa
ignorância leva a conclusões superficiais sobre o que é ser transexual, como por exemplo, a
ideia generalizada de que travesti, transexual, transformista é tudo igual e são todos gays
extremamente exagerados. Essa ignorância leva, inclusive, ao desconhecimento da existência
de transhomens, sendo no máximo uma lésbica muito macho.
Devido a essa ignorância sobre o assunto, as pessoas tendem a renegar e excluir o que
não entendem, transparecendo suas fobias.
11
Quem a homotransfobia matou hoje? Disponível em: http://homofobiamata.wordpress.com/category/1-
orientacao/b-trans/
12
GGB. Relatório 2012: Assassinato de homossexuais (LGBT). Disponível em:
http://homofobiamata.files.wordpress.com/2013/02/relatorio-20126.pdf
13
Questão 7 do questionário: Na sua opinião, qual a perspectiva que a sociedade tem sobre a transexualidade?
43
Segundo Saadeh (2008), atualmente três materiais referências são utilizados por
psicólogos e psiquiatras para o diagnóstico de transexuais: The Harry Benjamin International
Gender Dysphoria Association’s, Standards of Care foir Gender Identity Disorders, 6th version
(HBIGDA, 2001), o Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais (DSM – IV) da
Associação Americana de Psicologia (APA), que classifica transexualismo como um
Transtorno de Identidade de Gênero (TIG)14 e a Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) da Organização Mundial da Saúde
14
F64.x - Transtorno de Identidade de Gênero (DSM – IV). Disponível em:
http://virtualpsy.locaweb.com.br/dsm_janela.php?cod=118
44
Favorável a despatologização 3
Desconhece o assunto; Mudou de
assunto
8
Fonte: Elaborado a partir das respostas a questão 9 do questionário (apêndice 1)
Sou leiga no assunto, portanto não posso expor nenhuma opinião. (Depoimento da
participante Flávia)
Que lutam lutam mais no fim nao fazem nada so garantem, nao vejo lgbt trazendo
nda de bom as trans (Depoimento da participante Maria)
15
F64 – Transtorno de Identidade Sexual (CID-10). Disponível em:
http://virtualpsy.locaweb.com.br/cid_janela.php?cod=135
16
Gender Dysphoria (DSM – V). Disponível em:
http://www.dsm5.org/Documents/Gender%20Dysphoria%20Fact%20Sheet.pdf
17
Campanha Internacional Stop Trans Pathologization. Disponível em: http://www.stp2012.info/old/pt
18
Questão 9 do questionário: No próximo DSM (Manual de Diagnósticos usado por psiquiatras e psicólogos do
u do todo) e ta b o CID o tra stor o de ide tidade de g ero – TIG passa para disforia de g ero .
Você acredita que na prática isso mudará algo para a realidade d@s transexuais? Diversas organizações LGBT
do mundo todo e outras organizações como o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo são dos apoiadores
da Campanha "Stop Trans Pathologization" que retiraria de vez esses termos do DSM e do CID. Você conhece o
movimento? Qual a sua opinião?
45
Mudar apenas a nomenclatura do CID não me parece que vai mudar a realidade das
pessoas trans*. Conheço e sou a favor da despatologização das identidades trans* e
que seja mantido o atendimento de saúde público e gratuito. (Depoimento da
participante Joana)
Uma respondente, no entanto, mostrou-se contrária a revisão dos termos nos citados
manuais.
Conheço e não concordo com a retirada total da disforia (minha opinião é contrária
a maioria das trans). Como eu disse antes, a disforia é causada pelo fato de uma
pessoa do gênero X viver o gênero Y por pressão da sociedade só porque tem o
genital Y. Assim, é importante para os psiquiatras e psicólogos conhecerem esses
sintomas e métodos de diagnóstico para ajudar pessoa que não transsexuais e NÃO
SABEM disso!
Existem pessoas que sofrem e só vão descobrir que são transsexuais no consultório.
Esse movimento, muito baseado no fato de que a transexual sabe que é transexual e
não precisa de um médico diga que é. Principalmente para fins jurídico como troca
de nome, cujo um dos requisitos é ter laudo atestando transsexualidade. Na minha
visão, seria muito melhor atacar diretamente as políticas públicas para as trans do
que tentar tirar algo de um livro que 99,9% da população nem sabe que existe.
Segundo a participante Rita, a nomenclatura pode até mudar e qualquer que seja o
termo, deve ser mantido nesses manuais. Para ela, a necessidade de um diagnóstico preciso entre
um transexual e não-transexual justifica a manutenção dos termos nos manuais e questiona a
prioridade do movimento que pede por sua exclusão.
46
Para Tully (1992 apud SAADEH, 2008 p. 82) a necessidade da manutenção dos termos
no CID e no DSM justifica-se, pois:
Entretanto, se por um lado o diagnóstico faz-se necessário para evitar confusões entre
um sujeito transexual de outro não-transexual, por outro lado são essas publicações que
conduzem a forma como deverão ser atendidas as pessoas transexuais que procuram
atendimento psicológico ou que solicitem uma cirurgia de redesignação sexual pelo Sistema
Único de Saúde, e que acabam estigmatizando, marginalizando e excluindo as pessoas
transexuais, identificando-as como seres doentes, transtornados. Sendo o cenário pior ainda, se
esses não se identificam com o padrão da transexualidade ou com o modelo binário de gênero.
Aconteceu comigo um caso curioso. Fui até o núcleo LGBT da Secretaria de Direitos
Humanos do meu estado coletar dados para o meu TCC (sim, o tema do meu TCC
também é identidade de gênero! rs) e me apresentei com meu nome masculino. A
questão é que eu tenho aparência considerada feminina, e x atendente -
aparentemente uma moça trans* - se espantou, como se aquilo não fosse possível ou
sei lá. Fora o fato delx me tratar no feminino todo o tempo. Por telefone, a mesma
coisa... Liguei para o tal núcleo e depois dx atendente coletar meus dados (nome,
endereço, orientação sexual), elx mesmx marcou no formulário "sexo: feminino". Eu
tive que corrigi-lx. Elx perguntou se eu era transexual, e eu disse que preferia me
identificar como transgênero (me considero genderfluid). Vi que a confusão
permanecia, mesmo por telefone isso era nítido. E isso porque há pouco tempo que
eu assumi uma identidade trans*... O mundo ainda tem muita coisa reservada... rs
(depoimento dx participante Joana)
Para o autor, o Brasil estaria entre o nível intermediário e o nível máximo, pois oferece
um alto grau de proteção institucional, pelo menos no aspecto formal (RIOS, 2008, p. 104),
48
principalmente através do Ministério da Saúde e suas campanhas. Destarte, acredito que por ser
esse Ministério a principal instituição de atenção à população LGBT – e principalmente a
população trans - já podemos começar a entender a ótica adotada pelo Estado para tratar essa
população. Há, para o autor, uma ausência de regulamentação legal do Estado que se baseie
numa perspectiva de direitos humanos ao tratar com travestis e transexuais, prevalecendo
sempre uma abordagem biomédica provavelmente graças a emergência do movimento LGBT
na época do impacto da epidemia do HIV/AIDS no Brasil, que tanto serviram para criar uma
maior articulação para o combate da epidemia como serviram para aumentar o estigma a esses
grupos (RIOS, 2008).
Para Rios (2008), é necessário que os marcos legais aos direitos sexuais LGBT não
sejam justificados pela biomedicina, pois:
Para Rios (2001 apud FORMICA, 2008, p. 9) a norma de direito fundamental requer
que o ser humano seja considerado um fim em si mesmo, ao invés de meio para a realização de
fins e de valores que lhe são externos e impostos por terceiros. É dizer, todas as pessoas têm o
direito de desempenhar o papel social que bem entenderem, sendo a identificação sexual e/ou
de gênero uma decisão individual, ou seja, é inconstitucional que as visões de mundo
heteronormativas sejam impostas aos transexuais. Logo, é dever do Poder Público assegurar,
nos termos da lei, seus direitos fundamentais que garantam a dignidade da pessoa humana, sem
discriminação às suas escolhas individuais.
Entretanto, sabemos que essa não é a realidade do país. Embora haja alguns avanços
no tocante aos direitos transexuais, como Portarias, Leis e Decretos que permitam a utilização
de nome social em instituições escolares, de saúde e da administração pública dos três níveis da
federação19, ainda não há legislação específica que regulamente a matéria (FORMICA, 2008),
sendo essa uma política pública citada pelas/os/s transexuais que responderam a última
19
Lista completa de Portarias, Leis e Decretos que regulamentam alguns direitos transexuais. Disponível em:
http://www.abglt.org.br/port/nomesocial.php
49
questão20 que lhes foi feita, referente ao que falta em termos de políticas públicas para essa
população.
Vale ressaltar que projetos de lei com esse teor na matéria não faltam. Desde 1995, o
PL 70-B do Deputado José Coimbra (PTB/SP) está em trâmite na Câmara dos Deputados, ao
qual foram apensados mais outros 3 projetos posteriores semelhantes: O PL 6655-B/2006 do
Deputado Luciano Zica (PT/SP), o PL 2976/2008 da Deputada Cida Diogo (PT/RJ) e mais
recentemente o PL 4241 de 2012. Após esse último projeto ser apensado, a situação do PL
consta como pronta para pauta no Plenário21.
Apesar de diferente, esses projetos guardam algumas semelhanças e visam, em geral,
acrescentar no texto do artigo 58 da Lei nº 6015 de 73 (Lei de Registros Públicos) um paragráfo
que permita a alteração do prenome dos documentos oficiais de pessoas comprovadamente
transexuais, mediante apresentação de laudo médico. A exceção é o PL 4241/201222 que dispõe
sobre o reconhecimento da identidade de gênero das pessoas, garantindo aos interessados
maiores de dezoito anos, o direito de retificar seu prenome nos registros oficiais e o de acessar
tratamento hormonal e intervenções cirúrgicas para adequação sexual gratuitamente, já que essa
é outra necessidade básica às pessoas transexuais.
20
Questão 10 do questionário: De maneira geral qual a sua visão quanto às políticas públicas brasileiras para
transexuais? O que falta - em termos de políticas públicas - para ser feito, na sua opinião?
21
No momento de conclusão desse trabalho, o Projeto de Lei passava na Comissão de Constituição e Justiça do
Senado Federal como aprovado e agora é encaminhado ao Plenário da Casa. Disponível em:
http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/ccj-do-senado-libera-mudanca-do-nome-de-transexual/
22
Inteiro teor do PL 4241/2012. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1015822&filename=PL+4241/2012
50
[...] Sim, já passei pela experiência de ser negada, de certa forma, por um serviço de
saúde. Esse serviço de saúde foi justamente o programa de atendimento para pessoas
trans* do HC da USP, que exclui pessoas trans* que escapem da narrativa
legitimada da transexualidade. (depoimento da participante Cris)
23
No momento de conclusão desse trabalho, uma nova Portaria do Ministério da Saúde, de Nº 2.803 publicada
no dia 21/11/2013, estendeu o processo transexualizador à transexuais FtM, incluindo no processo terapia
hormonal, retirada de mamas, útero e ovários e construção do neofalo. Além disso, incluiu-se também o direito
de implante de próteses de silicones nas mamas em transexuais MtF. Disponível em:
http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2013/11/nova-regra-para-mudanca-de-sexo-no-sus-contempla-
transexual-
masculino.html?fb_action_ids=459897507464441&fb_action_types=og.recommends&fb_source=other_multili
ne&action_object_map=%7B%22459897507464441%22%3A1374237619491611%7D&action_type_map=%7B%
22459897507464441%22%3A%22og.recommends%22%7D&action_ref_map
51
Logo, como podemos observar nas respostas é fundamental que o Estado conheça a
população com que está tratando, capacite os agentes públicos para a diversidade existente,
entenda quem são essas pessoas e como querem ser tratadas. A respondente Bia diz que é preciso
que, quando o mercado feche as portas às pessoas transexuais, o Poder Público intervenha nessa
relação de alguma forma, seja por meio de cotas, qualificação profissional ou informando
adequadamente o empregador. Já x participante Cris diz ser necessário entender quais as
demandas desse grupo, que são desvinculadas das demandas de grupos homossexuais, além da
necessidade do Estado promover campanhas que deem visibilidade à questão transexual de
forma adequada.
Por fim, com as visões aqui levantadas de acordo com as ideias das/os/xs participantes
dessa pesquisa e com as visões apresentadas por autores que tratam do tema, farei minha
reflexão nas considerações finais desse trabalho.
52
CONSIDERAÇÕES FINAIS
se consideram doentes, ou seja, aqueles que fogem da lógica que está imposta e opera na
sociedade.
Para começar, me questiono se é preciso chegar a um consenso entre essas visões?
Acredito que não. A política funciona a partir da discussão, do diálogo e, portanto, do dissenso.
Todavia, é preciso entender qual visão é limitadora de direitos e qual é legitimadora dos
mesmos. É preciso entender que essas pessoas podem, eventualmente, requerer ajuda
psicológica – e não por isso serão doentes mentais. Podem, eventualmente, ter vontade de
adequar seu genital ao seu gênero – e tampouco estarão doentes agora. Podem, eventualmente,
querer usar o nome pelo qual se identificam – e mesmo assim não estarão confusos ou loucos.
Para atender a esses desejos, cabe ao Estado ouvir essas pessoas. Alguns avanços em
termos de políticas públicas para transexuais têm sido alcançados e merecem destaque: como a
já citada Portaria 1.707 de 2008 do Ministério da Saúde, que garante às pessoas transexuais que
tenham interesse em tal o direito de realizar a adequação de sexo ao gênero exercido; a Portaria
233 de 2010 que assegura aos servidores públicos do âmbito federal a utilização do nome social
por travestis e transexuais; o Parecer Técnico nº 141 de 2009 do Ministério da Educação que se
manifesta favoravelmente às medidas adotadas por alguns Estados e Municípios de adotar o
nome social nos registros escolares de transexuais; e finalmente, a recentemente aprovada
Portaria 2.803 de 2013 que estende o processo transexualizador aos transexuais FtM.
Entretanto, como dito anteriormente, ainda carecemos de legislação específica e
abrangente para o tema e, enquanto isso, essa população fica aquém de seus direitos e reféns do
Judiciário..
Não obstante, modelos de políticas públicas que sirvam de inspiração não faltam, vide
exemplo da Lei de Identidade de Gênero da Argentina24 ou de Portugal25, as mais avançadas do
mundo segundo organizações internacionais de defesa dos direitos humanos. Estendem direitos
fundamentais à qualquer pessoa às pessoas transexuais: direito à saúde, dando-lhes o tratamento
terapêutico indiscriminadamente a requerentes maiores de idade; direito à dignidade humana,
garantindo-lhes o direito de usar o seu nome social nos registros oficiais. Garantem seus direitos
sem discriminação.
24
ONU parabeniza Argentina por Lei de Identidade de Gênero. Disponível em: http://www.onu.org.br/onu-
parabeniza-argentina-por-lei-de-identidade-de-genero/
25
Lei portuguesa de Identidade de Gênero é reconhecida como exemplo a seguir. Disponível em:
http://www.esquerda.net/artigo/lei-portuguesa-de-identidade-de-g%C3%A9nero-%C3%A9-reconhecida-como-
exemplo-seguir/30164
54
Esses modelos de lei, inclusive, basearam um Projeto de Lei por aqui. O PL de número
5002/201326 apelidado de PL João Nery, de autoria dos deputados Jean Wyllys e Erika Kokay,
foi inspirado nos modelos internacionais supracitados e garante às pessoas transexuais direitos
hoje que lhes são negados ou ficam a mercê da boa vontade do sistema judiciário – fenômeno
comum ultimamente no país, onde há uma crescente judicialização da política ante à
insuficiência do legislativo. A meu ver, a aprovação desse Projeto de Lei é o primeiro grande
passo para a garantia de direitos humanos no Brasil.
Posteriormente, é preciso pensar em políticas públicas que sejam inclusivas também
para os que ainda são invisíveis, como a população non-gender ou gender-less, citadas nesse
trabalho. Países como Alemanha, Austrália e Suécia, por exemplo, já começaram a avançar
nesse sentido, eliminando a obrigatoriedade do gênero de documentos oficiais27 ou criando
termos que sejam gender-neutral28. Essas experiências demonstram que o modelo biomédico
de gênero e a lógica heteronormativa não são mais adequados, não pertencem ao futuro e,
portanto, devem ser superados em breve.
26
Inteiro teor do PL 5002/2013. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=61E8A333AAB19193C3F3864BCB
0A9ADF.node1?codteor=1059446&filename=PL+5002/2013
27
Os casos da Alemanha e Austrália. Disponível em:
http://www.theguardian.com/commentisfree/2013/nov/10/germany-third-gender-birth-certificate ,
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/03/100315_sem_sexo_dg.shtml e
http://noticias.terra.com.br/mundo/oceania/passaporte-australiano-tera-terceira-opcao-de-
genero,09484670c0ada310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html.
28
O caso do gender neutral pronoun na Suécia. Disponível em:
http://www.huffingtonpost.com/2013/04/11/swedish-gender-neutral-pronoun-hen-national-
encyclopedia_n_3063293.html
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHILLAND, Colette. The psychoanalyst and the transsexual patient. International Journal
of Psychoanalysis, 81, 21-35.
GARCIA, Emerson. A “Mudança de Sexo” e suas implicações jurídicas: breves notas. Rio
de Janeiro: Revista da EMERJ, v. 13, nº 52, 2010.
LOURO, Guacira Lopes. O corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004.
LE BON, Gustave. Psychologia Politica e Defesa Social. Rio de Janeiro: Garnier, 1921
MONTERO, Maritza. Para que Psicologia Política?. In: Revista Psicologia Política. Vol 9. Nº
18, 2009. p. 199 – 213.
PORCHAT, Patrícia & SILVA, Glaúcia Faria da. Intervenções no corpo como marcadores
de gênero no fênomeno transexual. In A Peste, v. 2, n. 2. pp 413 - 421. São Paulo, 2010.
SILVA, Alessandro S. & BARBOZA, Renato. Exclusão social e consciência política: Luta e
militância de Transgêneros no ENTLAIDS. In: Cadernos CERU, série 2, v. 20, n. 1, 2009.
ANEXOS.
1. Você é:
Mulher transexual (MtF - Male to Female)
Homem transexual (FtM - Female to Male)
Intersexual
Sem gênero definido
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60
Caso não se sinta a vontade para responder para alguma, escreva “prefiro
não responder”.