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Gabriel Paulista Brigante

A Questão Transexual para Quem Estuda e Quem É:


as múltiplas concepções sobre o tema na ótica da Psicologia Política

Universidade de São Paulo


São Paulo
2013
Gabriel Paulista Brigante

A Questão Transexual para Quem Estuda e Quem É:


as múltiplas concepções sobre o tema na ótica da Psicologia Política

Trabalho de Conclusão de curso apresentado à


banca examinadora como exigência parcial
para a obtenção do grau de Bacharel em
Gestão de Políticas Públicas pela Escola de
Artes, Ciências e Humanidades da
Universidade de São Paulo orientado pelo Prof.
Dr. Alessandro Soares da Silva.

São Paulo
2013
Nome: BRIGANTE, Gabriel
Título: A questão transexual para quem estuda e quem é: as
múltiplas concepções sobre o tema na ótica da Psicologia
Política.

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Escola de Artes,
Ciências e Humanidades da
Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Bacharel em
Gestão de Políticas Públicas

Aprovado em: 28 de novembro de 2013

Banca examinadora:

Prof. Dr. Alessandro Soares da Silva (EACH/USP) – Orientador

Assinatura: Nota:

Prof. Drndo. Ernesto Pacheco Richter (PUCSP)

Assinatura: Nota:

Prof. Msdo. Fabio Ortolano (USP)

Assinatura: Nota:
AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer, primeiramente, à Ana Elisa Martins e Luísa Adib por não me deixarem
desanimar ou desistir de escrever esse trabalho. Ao amigo Bruno Martinelli e à Danielli Cavalieri, pelas
dicas, cursos, palestras e toda informação que encontravam sobre o tema e se lembravam de mim. Ao meu
orientador Alessandro Soares da Silva por me abrir os olhos para escrever sobre algo que eu achava que
não poderia e pelo suporte. À professora Cristiane Kerches pelo apoio no começo desse trabalho e pelo
interesse. A André Cerqueira pela conversa madrugada a dentro que me fez entender a razão desse
trabalho.
Agradeço também a todxs as participantes dessa pesquisa, que tiveram muito carinho e
cuidado em responder minha pesquisa com dedicação. Agradeço, inclusive, a aquelxs que decidiram
não responder, mas participaram de alguma forma da construção desse trabalho.
À minha mãe, Silvia Paulista de Souza, por me apoiar nas minhas decisões e pela paciência.
Ao meu pai, Célio Brigante, por me ajudar como pôde durante meu caminho universitário. À minha
irmã, Fernanda Brigante, minha melhor amiga, pelas discussões sobre o tema e por todo o apoio.
DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a todos os doentes, monstros, bixos, desviados, viados, sapatões,
caminhões, bixas, travecos e desajustados desse mundo.
RESUMO

BRIGANTE, G. A questão transexual para quem estuda e quem é: as múltiplas concepções sobre o tema
na ótica da Psicologia Política. 2013. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso) – Escola de Artes,
Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

O objetivo deste Trabalho de Conclusão de Curso é reunir as diferentes visões sobre


transexualidade/ismo, de forma a descontruir a ideia de que há um conceito correto e único de transexual
e para entender qual a visão dominante na legislação que trata desse tema no país. Para atingir esse
objetivo, foi realizada pesquisa exploratória, onde foram encontradas diversas visões sobre essa
temática, mas que podem ser classificadas em dois tipos: uma visão patologizante da transexualidade e
outra despatologizante do transexualismo. Não obstante, foi preciso reunir, através de narrativas
individuais, as ideias do que é transexualidade de acordo com homens e mulheres transexuais e que,
muitas vezes, diferem dos conceitos acadêmicos. O que foi percebido com essa pesquisa é que, apesar
da grande discussão que envolve o tema, a visão da patologização é dominante ao pautar sua lógica na
legislação adotada pelo Poder Público e, mesmo com alguns avanços, parece caminhar a passos lentos
e com atraso em relação a outros países, que já amadureceram nessa questão.

Palavras-chave: Transexualidade, Transexualismo, Identidade de Gênero, Transgênero, Políticas


Públicas, Despatologização Trans.
ABSTRACT

BRIGANTE, G. Transexual for those that study and those that are: multiple visions of the topic through
the Political Psychology’s optics. 2013. Monograph (End of Course Work) – School of Arts, Sciences
and Humanities, São Paulo University, São Paulo, 2013.

This research’s objective is to gather the different visions of what transexuality/ism is, in a
way to deconstruct the idea that there’s an unique and correct concept about transexual e to understand
which is the rulling vision in Brazil’s law that deals with this subject. In order to reach this objective, it
has been done a exploratory research, in which was possible to find two diverse ways of seeing it: one
that seems transexualism as a pathology and other that seems as an identity. Further, was necessary to
gather, through individual narratives, the ideas of what is transexuality according to transexual men and
women, which often differs of the academic concepts. What was noticed with this research is that, even
though there’s a long discussion about the topic, the pathologization vision is dominant in Brazil’s laws
and, although some things have advanced, this legislation is walking with baby steps and staying behind
other countries, that has matured the topic.

Palavras-chave: Transexuality, Transexualism, Gender Identity, Transgender, Public Policies, Trans


Depathologization
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 8
1 A ÓTICA DE QUEM ESTUDA ......................................................................................... 13
1.1 A MEDICALIZAÇÃO DO GÊNERO E O TRANSEXUALISMO COMO
TRANSTORNO .................................................................................................... 16
1.2 TEORIA QUEER E TRANSEXUALIDADE: MÚLTIPLAS IDENTIDADES .... 24
2 A ÓTICA DE QUEM É ...................................................................................................... 30
2.1 PERFIL DAS/OS/XS RESPONDENTES .......................................................... 31
2.2 TRANSEXUALIDADE/ISMO POR TRANSEXUAIS ...................................... 37
2.3 TRANSEXUALIDADE/ISMO E TRANSFOBIA .............................................. 41
2.4 TRANSEXUALIDADE/ISMO E POLÍTICAS PÚBLICAS ............................... 43
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 55
APÊNDICE ............................................................................................................................. 58
APÊNDICE 1. QUESTIONÁRIO APLICADO ÀS/AOS TRANSEXUAIS ..................... 58
8

INTRODUÇÃO

A sopa de letrinhas (FACCHINI, 2005) que usamos para designar um grupo social que
transgrida a lógica heterossexual e é utilizada para identificar as orientações sexuais
“minoritárias” já passou por muitas mudanças. O que antes era um mote comercial, GLS (Gays,
Lésbicas e Simpatizantes), passou a ocupar um lugar na cena política ao originar um outro jogo
de letrinhas conforme mais e mais identificações e orientações foram emergindo dos
subterrâneos da Memória (POLLAK, 1989; SILVA, 2008, 2009). Nesse caminho vimos a
emergência de termos como movimentos homossexuais, GLS, GLBTs (Gays, Lésbicas,
Bissexuais, Transgêneros e simpatizantes), GLBTTTs (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis,
Transexuais, Transgêneros e simpatizantes) e, finalmente, LGBTTIS (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Trasngêneros, Transexuais, Intersexuais e simpatizantes). A última sigla chama-nos
a atenção porque ela supera um aspecto econômico e comercial contido no termo GLS e abre
espaço, dá lugar, cria sentidos muito mais abrangentes e reveladores das idiossincrasias da
sexualidade humana. Essa sequência LGBTTIS reflete e destaca um conjunto de possibilidades
fluidas de se ser/estar no mundo. Mais. Mostra que esses grupos têm adquirido, ao longo do
tempo, um papel social, cultural e político relevante, pois:

[...] os movimentos de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros têm assumido ao


longo da história o duro papel de criar esses espaços de emergência que decorrem da
luta política entre aqueles que controlam a memória oficial e eles próprios (SILVA,
2012, p. 80)

E dessa forma, esses movimentos fazem-se vistos, ouvidos e presentes em um


cotidiano marcadamente orientado à heterossexualidade e à cissexualidade – termo utilizado
para designar pessoas cujo gênero exercido é o mesmo que aquele designado no nascimento.
No entanto, mesmo com a inclusão da sua letrinha nessa sigla e com a emergência dos grupos
LGBTs, existe um público que ainda vive à margem e luta diariamente pela sua afirmação,
inclusive dentro do próprio grupo social em que foi incluído: os/as transexuais.
Ainda hoje não há um levantamento apurado do número de transexuais no país, mas
alguns estudos (LANDÉN; WALINDER; LUNDSTRÖM, 1996, apud SAADEH, 2004, p. 219)
estimam que a prevalência mundial de mulheres transexuais (transmulheres ou transexual MtF
– Male to Female) seja de 1 para 30 mil, enquanto o de homens transexuais (transhomens ou
transexual FtM – Female to Male) seja de 1 para 100 mil. Já a incidência da/o
9

transexualidade/ismo se mantém constante através dos anos: 0,15 – 0,17 a cada 100 mil pessoas
acima de 15 anos de idade (SAADEH, 2004).
Entretanto, mesmo sem uma estimativa apurada, estamos evidenciando a porta do
armário se abrindo e as pessoas transexuais cada vez mais presentes no nosso dia-a-dia, trazendo
à tona esse tema. Porém, muitas vezes a maneira com que o tema é tratado ajuda a criar uma
imagem rasa dessas pessoas, pouco condizente com a realidade e que, embutida no imaginário
popular, é aceita como única e possível.
Essa imagem é a mesma que temos ao desbravar seu significado num dicionário básico,
por exemplo. De acordo com o dicionário Michaelis, transexual (trans+sexo+al) é aquele que
está acometido de transexualismo. É aquele que atravessa, que cruza, que vai para o outro lado
do sexo. Ou seja, aquele que muda de sexo e subentende-se aqui, aquele que realiza um
procedimento cirúrgico para tal. Mas me pergunto: será mesmo esse um conceito tão simples?
Não seria a questão um pouco mais complexa do que isso?
Há um século, Gustave Le Bon escreveria que “os phenomenos sociaes apresentam-
se hoje extremamente complicados, estreitamente hierarchisados e em que não se observa a
simplicidade” referindo-se a evolução dos povos e dos indivíduos (LE BON, 1921, p. 1) e, se
em 1910 – época da primeira publicação - o autor afirmaria que a compreensão dos fenômenos
sociais encontrava-se complexo, o que diria hoje? Acredito que pensaria da mesma maneira.
Assim como evoluíram as tecnologias desde aquela época, a complexidade das coisas também
evoluiu e as explicações simples, como as que nos dá um dicionário quando explica fenômenos
como a/o transexualidade/ismo, mostram-se não tão simples assim na realidade.
Logo, com o intuito de estudar esse fenômeno social e especificamente a política de
redesignação sexual, que por Portaria do Ministério da Saúde de 2008 realiza via o Sistema
Único de Saúde (SUS) o processo transexualizador (BRASIL, 2008), esbarrei numa questão
fundamental para o desenvolvimento desse trabalho: a de definir conceitualmente a/o
transexualidade/ismo. Diferentes visões eram introduzidas pela literatura, por autores que
partiam de conceitos divergentes, linhas diversas e opiniões opostas, expressas, em geral, entre
visões dicotômicas: a da patologização da transexualidade e a da despatologização do
transexualismo.
Assim, este trabalho desenvolveu-se com vistas a reunir – com certa neutralidade – as
diferentes linhas teóricas que concernem a temática, relacionando-as com as perspectivas
percebidas sob duas óticas diferentes: quem estuda e quem vive a/o transexualidade/ismo.
10

Além disso, se considerarmos que toda vida humana é social, que o espaço público é
também político, que o sujeito privado e o sujeito público se confundem e que mudanças em
um afetam o outro e vice-versa (MONTERO, 2009) então devemos entender também de que
forma fenômenos subjetivos, como a/o transexualidade/ismo refletem nas políticas públicas.
Embora, a primeira vista, conceitos subjetivos como identidade de gênero, transvestismo,
transexualidade/ismo e outros podem parecer distantes e até mesmo irrelevantes para o Estado
e para os governantes, devemos olhar para tais aspectos sob a ótica de um campo de
conhecimento que se dá no interstício disciplinar. Por ser um campo marcadamente aberto ao
diálogo científico que visa a superação de questões que transcendem as barreiras disciplinares
(SILVA, 2013). Um campo de produção de conhecimento que se preocupe com as questões dos
cidadãos, da relação Estado e sociedade, dos movimentos sociais e, claro, da subjetividade
inerente aos indivíduos: a psicologia política1.
Para Gustave Le Bon (1921, p. 6), psicologia política é a “sciencia do governo”, ou seja,
é a arte de governar por meio da qual os estadistas devem prestar atenção aos aspectos
psicológicos dos indivíduos, das multidões e das raças, de forma a tomar decisões – implementar
políticas públicas – pautadas nesses aspectos e não apenas pautadas na lógica racional. Em
outras palavras, é a ciência que relaciona fenômenos psicológicos e fenômenos políticos.
Evidentemente que, quando escrito, seu tratado sobre psicologia política não fazia
qualquer referência ao fenômeno tratado nesse trabalho, na época do seu texto psychologie
politique et defense sociale de 1910, o autor estudava o fenômeno das revoluções que se
espalhavam pela França no século XVIII – XIX. Entretanto, a abordagem utilizada continua tão
atual e moderna quanto há dois séculos e, portanto, justifica-se estudar conceitos subjetivos –
como os já citados – já que esses afetam os indivíduos, os atores com eles relacionados, a
sociedade em geral e, em última instância, as políticas públicas.
A fim desse objetivo, no primeiro capítulo abordarei a questão sob a ótica de quem
estuda o tema. Para isso, foi realizado, através de pesquisa bibliográfica, um aprofundamento
no corpo teórico do tema de forma a realizar um panorama desde os primeiros estudos até os
mais contemporâneos, dividindo-os em duas perspectivas: (i) a da patologização, comum
principalmente nas ciências biomédicas; (ii) e a da despatologização, comum nas ciências
sociais e estudos de gênero.

1
Trecho extraído da fala do Prof. Dr. Alessandro Silva durante a abertura do I Seminário Internacional de
Psicologia Política (América Latina) realizado dia 14/03/2013 na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da
Universidade de São Paulo.
11

No segundo capítulo, a questão será aprofundada e tomarei como perspectiva de “quem


é” o resultado das percepções das próprias pessoas transexuais que decidiram participar desse
trabalho espontaneamente, para isso:

1. Foram abordados/as homens e mulheres transexuais em 3 grupos da rede social


Facebook: Mundo T-Girl, Disforia de gênero e Transfeminismo, convidando-os/as/xs para a
aplicação de um questionário online e de autopreenchimento. O questionário postado nos grupos
esteve como “publicado recentemente” tendo mais visibilidade por cerca de 2 a 3 semanas,
variando conforme publicações e atividades dos grupos.
2. O questionário2 continha 10 questões divididas em duas partes: a primeira abordando
aspectos de perfil dos/as/xs respondentes (idade, escolaridade, ocupação, etc) e a segunda parte
questões específicas sobre o tema.
3. Foram respondidos 23 questionários, dos quais 11 ficaram incompletos, ou seja,
foram preenchidos somente na parte referente ao perfil e 12 foram preenchidos em sua
totalidade.

As respostas foram divididas em quatro partes, ou seja, quatro subtítulos de acordo


com a temática abordada, a saber: (i) Perfil das/os/xs respondentes; (ii) Transexualidade/ismo
por transexuais; (iii) Transexualidade/ismo e transfobia; e (iv) Transexualidade/ismo e políticas
públicas.
Considerando algumas limitações dessa técnica de investigação, achou-se relevante
que esse levantamento fosse realizado dessa forma por três motivos: primeiro para garantir
maior privacidade aos respondentes. Segundo devido a escassez de recursos como tempo e
deslocamento. E por fim, pois o formato aplicado – online e de autopreenchimento – também
serviu para garantir que xs participantes respondessem ao questionário de forma autônoma, no
seu próprio tempo e com suas próprias palavras.
Nesse processo, três observações merecem destaque: (i) a aplicação de tal questionário
não intentou realizar um estudo quantitativo que levantasse um perfil das pessoas transexuais,
mas sim um estudo qualitativo do conteúdo dos discursos aqui apresentados; (ii) por não ter um
mínimo ou um máximo de participantes necessários, enquanto pesquisa qualitativa, a
participação nesse processo foi espontânea e, dessa forma, a baixa participação pode levantar
algumas hipóteses quanto a conscientização e a mobilização política desse público, o que

2
Questionário disponível em http://pt.surveymonkey.com/s/H9ZRR9D
12

merece ser melhor investigado futuramente; e (iii) sendo um questionário anônimo, nenhum
nome foi solicitado, logo, tomei a liberdade de prover nomes fictícios aos respondentes,
respeitando suas identidades de gênero, bem como adotei a utilização do “x” em substituição
aos artigos feminino e masculino quando a pessoa se identificar como sendo “sem gênero
definido”.
Por fim, faço minhas considerações finais a respeito do que foi exposto anteriormente
acerca do tema, enquanto um tema complexo que insere-se no meio de um debate acadêmico
entre a visão das ciências biomédicas, das ciências sociais e soma-se à visão das transexuais
participantes desse trabalho, finalizando com alguns caminhos possíveis que já se mostram no
horizonte das políticas públicas.
Vale ressaltar que este trabalho não tem como objetivo finalizar num conceito fechado
e único para a/o transexualidade/ismo e nem criar uma imagem dos/as transexuais. E sim reunir
ideias, visões, perspectivas, opiniões e conceitos que são iguais em sua diversidade e que
possam ascender ao debate no momento de realizar políticas públicas específicas à população
estudada.
Esse trabalho tem, portanto, enquanto pesquisa exploratória o objetivo de aprofundar
o tema da/o transexualidade/ismo, procurando jogar luz à essa temática e modificar algumas
ideias e conceitos que possamos, eventualmente, ter como algo já dado, tornando a questão mais
esclarecida para trabalhos posteriores. Lembro ainda que, intencionalmente, utilizarei as
palavras transexualidade e transexualismo, em ambas as terminologias - juntas ou em momentos
diferentes - de forma a evidenciar que a complexidade da questão reside, inclusive, em sua
terminologia.
13

1 A ÓTICA DE QUEM ESTUDA.

A literatura sobre a transexualidade mostra-se tão complexa quanto o próprio tema. O


sentimento de não identificação com seu sexo dado como biológico é tão antigo quantas outras
formas de expressões de sexualidade. Segundo Ceccarelli:

Da mitologia greco-romana ao Século XIX (...) encontramos relatos de personagens


que se vestiam regularmente, ou até definitivamente, como membros do outro sexo,
se dizendo sentir do outro sexo (CECCARELLI, 1998, p. 137)

De acordo com Àran e Murta (2009) foi somente a partir do século XVII que se passou
a recusar a ideia de misturar dois sexos num só corpo e da transição entre sexos. Anteriormente,
experiências transexuais puderam ser observadas em diferentes aspectos mitológicos, históricos
e em outras culturas.
Segundo Alexandre Saadeh (2004), na mitologia greco-romana, por exemplo, os
sacerdotes do deus Atis do reino da Frígia (atual região da Turquia) eram obrigados a se
emascular (extirpar sua genitália) em referência ao deus Atis, que teria realizado o mesmo por
conta de um amor proibido por sua mãe Cibele, a mãe Terra. Esse culto foi levado a Roma,
onde foi valorizado e continuou a ser realizado por sacerdotes do culto que se castravam,
vestiam-se como mulheres e tomavam conta do tempo de Cibele, onde é hoje a basílica de São
Pedro (FRIEDMAN, 2002 apud SAADEH, 2004, p. 13).
Na história, segundo Saadeh (2004), não existem referências a respeito de experiências
transexuais antes do Império Romano – I d.C - sendo o exemplo mais conhecido o dos eunucos,
homens que se transvestiam e chegavam até a se emascular para se tornarem guardiões do leito,
ou seja, aqueles que guardavam, sem riscos, as mulheres de seus senhores (FRIEDMAN, 2002
apud SAADEH, 2004, p. 15). Outro personagem transexual famoso e reconhecido na história é
de Chevalier D’Eon/Madame Beaumont, um alto/a funcionário/a e amante do Rei Luís XV, cuja
mobilidade entre gêneros era tanto aceita pelo rei quanto pela sociedade francesa da época
(BENTO, 2008). Chevalier D’Eon/Madame Beaumont passou seus últimos anos de vida na
Inglaterra, onde viveu permanentemente como mulher (GREEN, 1998 apud SAADEH, 2004,
p. 17)
Em outras culturas no mundo todo existem relatos etnográficos que revelam
fenômenos de mudança de gênero, inclusive em culturas ocidentais. Os mais famosos referem-
14

se a tribo norte-americana dos Yuman, que acreditam numa “mudança de espírito”, onde após
determinados sonhos em que os jovens da tribo se enxergam como pertencente ao gênero oposto
ao atribuído passam a adotar seus trejeitos e postura e são aceitos como tal: elxa no caso dos
homens que passam a viver como mulheres e kwe’rhame no caso de mulheres que passam a
viver como homens (GREEN, 1998 apud SAADEH, 2004, p. 19). Em algumas culturas orientais
o transexualismo e o terceiro sexo são encarados com naturalidade, aceitos pela sociedade e até
mesmo reforçado, como as fa’fafine nas Ilhas Samoa ou os Hijras na Índia (PIÑEROBA, 2008).
No entanto, o discurso científico do século XIX realizaria um esforço em naturalizar
uma norma heterossexual reprodutiva binária pênis-masculino e vagina-feminino (FOUCALT,
1988): o dimorfismo. Até aquela época, o modelo de interpretação dos corpos em vigor era o
isomorfismo:

No isomorfismo, a vagina era vista como um pênis invertido. O útero era o escroto
feminino; os ovários, os testículos; a vulva um prepúcio e a vagina, um pênis
invertido. A mulher era fisiologicamente um homem invertido que carregava dentro
de si tudo que o homem trazia exposto (BENTO, 2008, p. 21-22)

Já no dimorfismo ou dimorfismo radical, haveria dois corpos diferentes, opostos e


complementares (COACCI, 2012). Segundo Costa (1995), o modelo dimórfico não ganhou
força nessa época – de revoluções burguesas na Europa - por acaso. Para o autor, num contexto
de ideais igualitários, seria necessário um novo argumento que justificasse a dominação
masculina sobre as mulheres e as explicações biológicas tiveram muito êxito nesse sentido, pois:

(...) não é de se espantar que homens e mulheres possuam direitos e papeis sociais
diferentes, afinal são seres completamente diferentes, produzidos pela natureza para
funções diferentes. Sendo assim, a vocação para a maternidade e para os serviços
domésticos integra a constituição própria da mulher que é fisicamente mais frágil,
enquanto, ao homem viril, cabia a função de provedor e protetor. (COACCI, 2012, p.
82)

Assim, para normatizar a sociedade e caracterizar um padrão heteronormativo, os


médicos – principalmente por meio das ciências psi (psiquiatria, psicologia e psicanálise) –
estabeleceram classificações e análises refletindo sobre a prostituição, sodomia, homens e
mulheres, classificando e criando as identidades consideradas desviantes (Beluche, 2008, p.
106).
15

Esse conjunto de classificações é para Foucault (2001 apud FERNÁNDEZ-


FERNÁNDEZ, 2012, p. 197) um dispositivo que carrega consigo discursos, instituições,
ordenamentos, decisões regulamentares, leis, medidas, proposições filosóficas, morais etc e,
portanto, estabelece a ordem e a lógica das coisas no mundo. Dessa forma, o “fazer psi”
caracteriza-se como um dispositivo, tal qual denomina Foucault, com um objetivo específico de
agir com o uso do poder sempre que for preciso em seus campos de ação, como a criminologia
e a psicopatologia.
O “fazer psi”, segundo Fernández-Fernández (2012) trata de criar uma intrincada rede
que medicaliza o desejo, as orientações sexuais, as identidades de gênero e lhes garante uma
etiqueta de transtorno mental em seu principal inventário: o Manual Diagnóstico e Estatístico
das Doenças Mentas, DSM. Essa medicalização de subjetividades humanas, como a orientação
sexual e a identidade de gênero, estabelece-se para a dominação social e para a garantia da
continuidade da heteronormatividade. Entretanto, essa patologização apesar de forte, não é
estática. Vale lembrar que a homossexualidade mesmo esteve presente no DSM como uma
perversão desde o século passado até os anos 60 (POLLAK, 1987 apud FERNÁNDEZ-
FERNÁNDEZ, 2012, p. 199) quando então foi retirada pela Associação Psiquiátrica
Americana, após muita luta e pressão de ativistas e movimentos sociais (FERNÁNDEZ-
FERNÁNDEZ, 2012).
Assim, como essa categorização de aspectos subjetivos do ser humano afeta
diretamente a vida das pessoas e estabelece relações de poder sobre seus corpos, vínculos,
desejos e afetos, tornando esses aspectos eminentemente políticos, abre-se um espaço de
atuação para a Psicologia Política do qual é impossível de escapar. Portanto, nesse primeiro
momento, é importante entender como a transexualidade, que sempre esteve presente na história
em outros tempos e em outras culturas, tornou-se um Transtorno de Identidade de Gênero, cujo
termo está presente no DSM até hoje.

1.1 A MEDICALIZAÇÃO DO GÊNERO E O TRANSEXUALISMO


COMO TRANSTORNO.
16

Essa heteronormatividade, que é definida por Berenice Bento como a capacidade da


heterossexualidade de se apresentar como uma norma vigente, ou seja, como um modelo
hegemônico no qual se naturaliza corpos/gêneros/desejos e impossibilita a vida fora dessas leis,
ditas naturais (BENTO, 2008), teria um papel fundamental no sentido de manter o status quo,
garantindo a dominação social (SIDANIUS, 1993; SIDANIUS et al, 1991 apud MONTERO,
2009, p. 209) onde os grupos dominantes:

[...] podem utilizar o poder para aumentar sua hierarquia social, usando as instituições
para seu próprio proveito visando gerar e manter formas de discriminação e de
exclusão destinadas a enfraquecer e submeter outros grupos (MONTERO, 2009, p.
209)

Assim, pessoas com comportamentos “fora da norma” estariam fadadas a serem


tratadas como desviadas e seriam induzidas a concepções auto-desvalorizantes, onde se instalam
mitos legitimadores dos interesses hegemônicos como a “moral e os bons costumes”
(MONTERO, 2009).
Essa psiquiatrização dos comportamentos foi marcada inicialmente por Richard Von
Kraft-Ebbing. Publicado em 1886. Seu livro-texto psychopathia sexualis dá início ao estudo
médico a respeito da sexualidade humana e ao começo da Sexologia (SAADEH, 2004).
Em sua obra, Kraft-Ebbing conceitua o termo sexualidade antipática como:

A total falta de sentimento sexual pelo sexo oposto [...]. Em detrimento da


diferenciação sexual total e do desenvolvimento e atividade normal das glândulas
sexuais, o homem é dirigido sexualmente a outro homem, por que conscientemente
ou qualquer que seja o motivo ele tem instintos de fêmea. (KRAFT-EBBING, 2000,
p. 58)

O autor define ainda que essa manifestação aconteceria em diferentes graus, passando
por alterações de personalidade psíquica, o que viria a ser conceituado como a
homossexualidade, até a busca pela “inversão sexual” através da transformação corporal,
fazendo clara referência ao transexualismo (SAADEH, 2004).
Porém, somente no século XX o termo transexualismo seria utilizado pela primeira vez
no artigo psychopathia transsexualis – inspirado no já citado artigo de Kraft-Ebbing - de autoria
do Dr. David Oliver Cauldwell, em 1949. Cauldwell cunhou o termo para designar indivíduos
17

em que o “sexo biológico” era distinto do “sexo psicológico” e que esse último seria
determinado por condicionantes sociais. O autor, entretanto, posicionava-se contrário às
cirurgias de mudança de sexo, pois para ele o transexual deveria ser tratado como doente mental
e seu tratamento deveria alinhar os “sexos” através de acompanhamento psicológico
(CAULDWELL, 1949 apud CECCARELLI, 1998, p. 137)
Antes dele, Magnus Hirschfeld teria cunhado termo semelhante – transexual psíquico
– ao designar um de seus pacientes que tinha desejo em se vestir com roupas do sexo oposto na
obra Die Transvetiten, publicada em 1910. Em sua obra, Hirschfeld (1991 apud SAADEH,
2004, p. 26), relaciona vários casos de homens e mulheres que se transvestem e discute suas
variações e motivações, categorizando-as em 10 tipos, a saber: (i) travesti completo; (ii) travesti
parcial; (iii) travesti constante; (iv) travesti periódico; (v) travesti no nome; (vi) travesti
narcísico; (vii) travesti homossexual; (viii) travesti bissexual; (ix) travesti metatrópico; e (x)
travesti autônomo-sexual (SAADEH, 2004). O tipo (i) travesti completo se assemelharia a
definição superficial e típica de transexual – aquele que se traveste permanentemente e ojeriza
seu genital - porém, os estudos da transexualidade só se aprofundariam a partir da primeira
intervenção cirúrgica que veio ao conhecimento público em jornais norte-americanos3: do ex-
soldado George Jorgensen realizado por Christian Hamburguer, em 1952, na Dinamarca
(ÁRAN e MURTA, 2009). Seria a partir daí, que o tema sairia da mídia e ganharia destaque no
terreno da medicina.
Do ponto de vista médico, referem-se ao fenômeno transexual de diversas formas:

Alguns põem a transexualidade entre as psicoses (Socarides, 1970), outros a


consideram um precursor do travestismo ou da homossexualidade (Limentani, 1979),
um transtorno narcísico (Chiland, 2000, 2003; Oppenheimer, 1991) ou um
transtorno borderline (Green, 1987); outros, seguindo Lacan, distinguem a
transexualidade psicótica das formas neuróticas ou perversas de transexualismo.
(ARGENTIERI, 2009, p. 168)

O psiquiatra e psicanalista norte-americano Robert Stoller, um dos maiores estudiosos


da transexualidade, julga a experiência transexual como uma forma de distúrbio sexual. Para o
autor, o transexualismo baseia-se em três aspectos: (i) um sentimento de identidade permanente,
sem ambiguidades, à outra essência; (ii) uma relação de horror com seu órgão genital; (iii) uma

3
E -GI e o es lo de eaut (New York Daily News, 1º de dezembro de 95 e Dea u a d dad, so
ote, I’ e o e o e ou daughte The Dail Mi o , de deze o de 95 .
18

especificidade de desenvolvimento inadequado na infância (STOLLER, 1975 apud ÁRAN &


MURTA, 2009, p. 1144). Para Stoller, assim como para Cauldwell, sexo e gênero tratam-se de
conceitos diferentes e, segundo o autor, essa separação torna-se mais factível se olharmos para
o sexo sob quatro formas físico-psicológicas diferentes, porém relacionadas (PERSON, 1999
apud SAADEH, 2004, p. 40-41):

1) O sexo biológico: definido por características anatômicas e fisiológicas:


cromossomos, gônadas, genitália interna, genitália externa, hormônios e caracteres
sexuais secundários;
2) O gênero: composto pela identidade de gênero (noção de ser macho ou fêmea),
pelo papel de gênero (noção de ser masculino ou feminino) e pelo comportamento
ligado ao papel de gênero;
3) O comportamento sexual;
4) E a reprodução da espécie.

A partir desses quatro aspectos e baseando-se em estudos de Money e Ehrhardt (1972


apud PIÑEROBA, 2008, p. 241), Stoller cunhou o termo identidade de gênero e o distinguiu de
identidade sexual (PIÑEROBA, 2008, p. 245. Tradução livre do autor). Para o autor, identidade
sexual estaria relacionada com orientação sexual e sexualidade, diferentemente da identidade
de gênero, que refere-se ao sentido subjetivo de pertencer a um determinado gênero. Da mesma
forma que Stoller, Harry Benjamin e Charles Socarides compartilham da ideia que o
transexualismo é um distúrbio. Para Socarides (1970 apud SAADEH, 2004, p. 65), autor de um
estudo psicanalítico sobre homens que consideravam-se pertencentes ao sexo oposto -
transmulheres -, o transexualismo é uma forma de psicose, onde o sujeito quer fugir da
homossexualidade, identifica-se fortemente com a imagem materna e mantém desejo sexual
pela figura paterna. O autor identificou quatro características que seriam comuns nos
transexuais (SOCARIDES, 1970 apud SAADEH, 2004, p. 66):

1) Intenso, insistente e persistente desejo de ter seu corpo transformado no sexo


oposto;
2) Convicção de ter sido aprisionado no corpo do sexo errado;
3) Imitação concomitante do comportamento de uma pessoa do sexo oposto;
4) Uma procura insistente de transformação sexual por meio de cirurgia e de uso
de hormônios.
19

Já para Benjamin (1953 apud ÁRAN & MURTA, 2009, p. 1143), o transexualismo
estaria ligado a causas biológicas, sejam genéticas ou endócrinas, e não haveria uma divisão
entre “masculino” e “feminino”. Para o autor, o sexo (biológico) é composto de diversos
componentes e, portanto, o desejo de mudar de sexo ultrapassaria aspectos psicológicos e
identitários. Benjamin estabeleceu em 1966 uma escala de orientação sexual que é utilizada
como guia diagnóstico até hoje, chamada “Harry Benjamin Sex Orientation Scale (S.O.S), Sex
and Gender Disorientation and Indecision (Males)”, na qual descreve tipos de desvios sexuais
e de gênero. A seguir a tabela 1 (SAADEH, 2004, p. 34-36) apresenta essa classificação:

Quadro 1. Desorientação e indecisão de sexo e gênero (homens) – Harry Benjamin,


1966

Fonte: SAADEH, 2008, p. 34


20

Quadro 1. Desorientação e indecisão de sexo e gênero (homens) – Harry Benjamin,


1966

Fonte: SAADEH, 2008, p. 35


21

Quadro 1. Desorientação e indecisão de sexo e gênero (homens) – Harry Benjamin,


1966

Fonte: SAADEH, 2008, p. 36

Foi nessa época que os termos Transtorno de Identidade de Gênero (TIG) e Disforia
de Gênero surgiram, quando em 1977, pesquisadores do tema formaram a Harry Benjamin
International Gender Dysphoria Association, estabelecendo então um código para a doença e
um tratamento padrão para cuidar dos casos de transexualismo (IRVINE, 1990 apud SAADEH,
2004, p. 41).
22

Desde então, outros pesquisadores continuaram a estudar o tema sob uma ótica
patológica, como Collete Chiland, Simona Argentieri, Emerson Garcia e Alexandre Saadeh.
Através de seus trabalhos de psicanálise com pacientes transexuais e crianças diagnosticadas
com transtorno de identidade de gênero, Chiland (2000) atesta que o transexual está tão focado
na imagem do corpo desejado que acaba por deixar de lado quaisquer aspectos psicológicos.
Para a autora, portanto, o transexualismo trata-se de um transtorno narcisista em que a
constituição do eu psíquico foi profundamente prejudicada em contrapartida da construção da
imagem de corpo que o paciente deseja (CHILAND, 2000). De forma semelhante, Argentieri
(2009) afirma que o transexualismo trata-se de um delírio, ou melhor, define a organização
psicopatológica do transexual como:

Uma convicção delirante – um delírio circunscrito típico – de pertencer ao sexo


oposto, e a convicção compulsiva de recuperá-lo, mascara a fantasia inconsciente de
agressão a parte “má” do corpo [...]. Essa parte, vivenciada como ameaçadora e
persecutória, corresponde em nível consciente à identidade de gênero a eles conferida
no nascimento. (ARGENTIERI, 2009, p. 175).

Assim, para a autora, o transexual é uma pessoa que vive um delírio constante de estar
no corpo errado e o persegue de forma a buscar o corpo certo que diz pertencer. Há nessa pessoa,
segundo Argentieri, danos narcísicos, uma autoimagem inadequada e menosprezada e uma
fantasia de reparação, que é o transvestismo ou a mudança de sexo (ARGENTIERI, 2009). Tais
fantasias garantiriam o bem-estar e a segurança ao delirante.
Por fim, diferentemente das autoras anteriores, que creditam a patologia do transexual a
aspectos psicológicos, para Garcia (2010) o transexualismo é originário de falhas
cromossômicas e/ou desequilíbrios hormonais, impondo uma quebra entre a identidade psíquica
e a realidade física. De acordo com o autor, a patologia pode se manifestar tanto na infância
quando na vida adulta e, inclusive, podem se principiar no curso da própria gestação.
Para o autor, transexualismo é uma doença que acomete a pessoa portadora do distúrbio
e que, somente, através da intervenção cirúrgica é possível seu enfrentamento, garantindo a
estabilidade psíquica do individuo. O transexual possui uma aversão ao próprio sexo e tem como
objetivo normalizar-se submetendo-se a intervenções cirúrgicas de reparação, diferentemente
do homossexual e do travesti, que não apresentariam essa aversão ao sexo e não teriam nenhuma
resistência a sua própria identidade sexual, já que:
23

[...] o primeiro prefere manter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo; o seu
órgão genital, longe de ser um empecilho à felicidade, é a verdadeira fonte do seu
prazer; o segundo, por sua vez, que pode ser homossexual ou heterossexual, obtém
prazer ou segurança ao adquirir a aparência de pessoa do sexo oposto, o que se dá
com roupas e adereços (GARCIA, 2010, p. 185)

O autor reitera uma ideia bastante presente no imaginário popular: a de que a linha que
separa o travesti do transexual é a realização da cirurgia de adequação do sexo, atribuindo ao
transexual a necessidade de realização da cirurgia como etapa final da evolução de sua
sexualidade, iniciada como homossexual passando por travesti e concluindo como transexual,
numa clara referência à Escala de Harry Benjamin, exposta anteriormente (GARCIA, 2010)
Assim como Garcia, Saadeh defende que o transexualismo tem determinantes
biológicos. Para o autor, fatores socioculturais e ambientais podem influenciar no
desenvolvimento do transexual, mas a gênese dos transtornos de identidade de gênero está nos
fatores biológicos.
O autor ressalta que tudo ainda se baseia em hipóteses, mas duas linhas de pesquisa
vêm trabalhando a questão: uma envolvendo fatores hormonais, que evoluiu desde a busca por
alterações quantitativas de hormônios até a influência dos hormônios masculinos na
diferenciação cerebral (SAADEH, 2004, p. 51) e outra que envolve alterações genéticas e/ou
cromossômicas.
Saadeh se detém na correlação entre hormônio masculino e diferenciação e
desenvolvimento cerebral e comportamento masculino-feminino. Saadeh afirma que hoje em
dia é sabido que existem o cérebro masculino e feminino e que a determinação acontece ainda
no útero da mãe por hormônios masculinos circulantes, definindo quando um cérebro é
masculino ou feminino. Em sua tese de doutorado, o autor cita um estudo de Zhou de 1995 e de
Kruijiver de 2000 (apud SAADEH, 2004, p. 52-53), que afirmam que existem evidências de
que os cérebros de transexuais masculinos (transmulheres) é semelhante em número de
neurônios ao cérebro de mulheres e vice-versa, indicando uma base neurobiológica para a
questão, mas conclui reconhecendo que as perspectivas biológicas prosseguem, mas sem
achados definitivos e conclusivos (SAADEH, 2004, p. 55).
24

1.2 TEORIA QUEER E TRANSEXUALIDADE: UMA IDENTIDADE.

A noção de transexuais como pessoas doentes, com aversão à sua genitália e com
problemas psicológicos que seguem um diagnóstico padrão, como definem as ciências psi e a
medicina, passou a ser bastante relativizada nos últimos anos por pessoas transexuais que se
identificam com o outro gênero, mas não necessariamente reclamam a cirurgia ou que a
realizam não para adequar-se a lógica heteronormativa como é suposto. Passaram, portanto, a
serem estudadas outras formas de caracterização da transexualidade, que não a colocassem
como patológica e não se justificasse pela adequação à heteronormatividade (BENTO, 2008)
Essa outra vertente que estuda a questão transexual refere-se ao fenômeno não como
uma patologia, mas sim uma forma de compreensão da identidade pessoal. O psicólogo norte-
americano John Money (& Hampson e Hampson, 1957 apud PIÑEROBA, 2008, p. 238) ao
empreender um estudo sobre intersexuais definiu que o comportamento masculino e feminino
seria algo construído socialmente, sendo a educação o principal modelador do gênero. Dessa
forma o social e o biológico seriam independentes e respeitariam uma separação conceitual
entre o sexo (biológico) e o gênero (social). Esse rompimento – entre gênero e sexo - aconteceria
nos primeiros anos de vida, seria irreversível e só completaria sua expressão na maturidade
(MONEY, 1969 apud ÁRAN & MURTA, 2009, p. 1144). Para Money, a força do gênero se
impõe sobre o sexo e constrói o papel de identidade de gênero do sujeito e, posteriormente, sua
conduta sexual. Dessa forma, o sexuality building é pré-configurado pelo body building
(PIÑEROBA, 2008, p. 242). Money, apesar da vanguarda de suas definições, o fazia para fins
escusos: acreditava ser capaz de moldar o gênero e a sexualidade - sendo a heterossexualidade
obrigatória - de intersexuais depois de terem passado pela cirurgia que lhes definiria como de
um sexo ou outro:

Sem dúvida, quando a intersexualidade não supõe nenhum tipo de risco para a vida
do intersexual, recorrer à cirurgia plástica genital é questionável. Nesse sentido, o
posicionamento de Money, que inicialmente foi bem recebido, passou a ser criticado,
não só em termos teóricos como também em termos éticos (PIÑEROBA, 2008, p.
243. Tradução livre do autor)

Foi nessa mesma época - década de 60 - que a sociologia passou a explorar o campo
da sexualidade, antes restrito à sexologia como ramo psiquiátrico e pelos estudos conservadores
25

de Kraft-Ebbing, dando origem à Teoria Queer em meados da década de 1970-80. O termo


queer, sem semelhante na língua portuguesa, de acordo com Louro (2004), poderia ser traduzido
por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro e é utilizado de maneira pejorativa aos
homossexuais nos Estados Unidos. Por isso, a ideia de utilizar o termo para os estudos é uma
forma de positivar sua utilização e entender queer como uma prática de vida contrária as normas
socialmente impostas.
Resumidamente, para os autores dessa corrente teórica, a orientação sexual e a
identidade de gênero são resultados de uma construção social, ou seja, estão baseadas nas
relações sociais estabelecidas e, portanto, não seguem uma lógica essencial, biológica ou
natural. Dessa forma, seus autores buscam ir além da dicotomia homens vs mulheres, mas
distingue-se dos estudos gays e lésbicos, buscando aprofundar-se, principalmente, em torno das
identidades sociais consideradas como “desviantes”, como a travestilidade, transexualidade e
intersexualidade. A grande influência para os estudos queer deve-se a Foucault e sua obra em
três partes História da Sexualidade de 1976 e 1984 na qual o autor analisa criticamente a relação
entre os impulsos sexuais, o desejo, a liberdade sexual e a opressão social que condena e
normatiza a sexualidade, comum nas civilizações avançadas ocidentais. Precursor na forma de
tratar a sexualidade, relacionando-a com as relações sociais estabelecidas e seus efeitos
psicológicos, Foucault deixou o caminho aberto para autores que passaram a estudar essas
questões como a norteamericana Judith Butler, a brasileira Berenice Bento e o espanhol José
Piñeroba.
Bento (2008) estuda a transexualidade como uma experiência identitária, onde o sujeito
não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído e, portanto, nada tem a ver com o sexo, ou
melhor, com a genitália. Para os teóricos queer, a relação simplista definida pela associação da
genitália com o gênero – e então com uma série de comportamentos – que caracteriza a
heteronormatividade proposta e aceita há dois séculos é rompida sistematicamente por
transexuais, travestis, cross-dressers, drag queens, drag kings, etc.
É essa heteronormatividade que pressupõe as regras institucionais e, portanto,
determina as construções sociais aceitáveis e confronta-se com as desviadas:

[...] o sistema binário (masculino versus feminino) produz e reproduz a idéia de que
o gênero reflete, espelha o sexo e que todas as outras esferas constitutivas dos sujeitos
estão amarradas a essa determinação inicial: a natureza constrói a sexualidade e
posiciona os corpos com as supostas disposições naturais (BENTO, 2008, p. 30)
26

E é nessa lógica que os padrões se reproduzem e vigoram durante séculos, através da


norma estabelecida pela sociedade e sustentada pelas ciências e pela medicina. São essas normas
e padrões que conduzirão o processo transexualizador do “desviado”, de forma a atestar que o
sujeito é um “transexual de verdade”. Esse processo ocorre sob a visão de que a cirurgia de sexo
é um desejo do sujeito transexual em ajustar seu corpo, sob o pretexto que se tenha uma unidade
entre sexo e gênero, ou seja, para que a mulher transexual que demandaria uma vagina possa
ser penetrada pelo pênis e vice-versa e, então, esses sujeitos possam se adequar às normas
heteronossexuais e sejam incluídos na sociedade (BENTO, 2008)
No entanto, é preciso atentar-se ao perigo dessas convenções. Atestar a condição de
“transexual verdadeiro” ou “típico”, cuja diversidade pode ser camuflada, é o mesmo que atestar
um “heterossexual típico” ou “homossexual verdadeiro” e limita a exploração sexual dos
indivíduos, normatizando-os. (CECCARELLI, 1998)
Nesse sentido, para a mulher transexual, por exemplo, espera-se um comportamento
socialmente feminino, ou seja, um sujeito passivo, frágil, emotivo e para o homem transexual,
espera-se um sujeito ativo, racional, competitivo (Bento, 2008). No entanto, Bento afirma que
essas construções de comportamento, da normatividade, são experiências sociais e em nada se
relacionam com sexualidade, ou seja, uma mulher transexual que demandaria uma vagina não
necessariamente o faz para receber o pênis e tornar-se heterossexual, pois:

A experiência transexual quebra a causalidade sexo/gênero/desejo e desnuda os


limites de um sistema binário assentado no corpo-sexuado (o corpo-homem e o
corpo-mulher) (BENTO, 2008, p. 36)

Segundo a autora, a simplicidade binária vagina-mulher-feminino versus pênis-


homem-masculino não pode nem deve ser vista como única verdade existente e o trânsito entre
gêneros não deve ser encarado como uma doença. Insistir nessa simplicidade binaria é, para
Silva e Barboza, 2009,

[...] camuflar práticas reguladoras que fazem apenas gerar e corroborar um outro
binarismo materializado em um sistema perverso de identidades hegemônicas e
marginais (p. 268)

Ou seja, para os autores, afirmar que a identidade pessoal está vinculada ao


alinhamento sexo/gênero/desejo é contribuir para a heteronormatividade e colaborar para a
27

discriminação de outras identidades diferentes da imposta. Identidades essas que são múltiplas,
performáticas e metamórficas, sem que sejam patológicas (SILVA & BARBOZA, 2009).
Assim como Bento, José Nieto Piñeroba (2008) é crítico ao processo que ele chama de
medicalização da transexualidade. Para o autor, o apoderamento medicalizador dos âmbitos
sociais, encontrou na transexualidade o que Conrad e Schneider (1980 apud PIÑEROBA, 2008,
p. 65) consideram como os três níveis essenciais para patologizar qualquer situação de vida: os
níveis conceitual, institucional e interativo. A nível conceitual, na transexualidade é possível
reproduzir o vocabulário, as ideias, os argumentos, as características e os protocolos do modelo
biomédico, já que os indivíduos transexuais são diagnosticados como enfermos e, a partir daí,
nada podem fazer para escapar dessa doença que lhes foi atribuída.
O nível conceitual ainda abre espaço para que o segundo e o terceiro nível entrem em
ação. O modelo biomédico da transexualidade se apodera, inclusive, dos âmbitos institucionais,
pois este se magnifica e permite que as instituições de justiça reconheçam e apliquem critérios
jurídicos aos direitos transexuais baseados na medicina. Para o autor, pode-se dizer que a
Justiça, ao adotar o modelo biomédico da transexualidade para as decisões que toma (como por
exemplo, a realização ou não da cirurgia de redesignação sexual como critério para a obtenção
de documentos oficiais corrigidos com o gênero autoreferido), acaba por aceitar e potencializar
a patologização da transexualidade. Por fim, Piñeroba afirma que a pior face da medicalização
da transexualidade acontece no terceiro nível: o de interação. Com o modelo biomédico da
transexualidade - desde o momento que é considerada como doença até a forma como deve ser
tratada - os sujeitos transexuais se veem vinculados a uma rede medicalizadora impossível de
se “desenrolar” e, portanto, acabam por seguir suas regras a fim de garantir direitos ao seus
próprios corpos. Dessa forma, esses sujeitos são obrigados a submeter-se aos princípios
diagnósticos do modelo biomédico - e aos critérios judiciais por ele pautados - tornando-se
participantes sem voz dessas interações que, apesar de sociais, baseiam-se num modelo que
ignora justamente essas relações (PIÑEROBA, 2008).
O autor, entretanto, acredita que não são esses três níveis os únicos que marcam o
processo de patologização da transexualidade. É preciso considerar também o nível tecnológico
e o nível correlativo-causal para entender a transexualidade em sua maior dimensão.
No nível tecnológico, o autor menciona as cirurgias plásticas (de redesignação sexual),
já que a possibilidade de “mudar” o sexo através de cirurgia cria no sujeito uma ansiedade que,
antes dessa novidade tecnológica, nunca existiu. Justifica essa afirmação enumerando exemplos
de comunidades orientais e ameríndias que reconhecem o terceiro gênero sem necessariamente
28

recorrerem a cirurgias plásticas (PIÑEROBA, 2008) como o terceiro sexo dos inuit (SALADIN
D’ANGLURE, 1985 apud PIÑEROBA, 2008, p. 68). Já no nível correlacional-causal, o autor
critica a necessidade da comunidade científica ocidental de estabelecer uma origem para a
transexualidade, pautada principalmente em critérios biológicos. Menciona o estudo de Harry
Benjamin - The Transexual Phenomenon de 1977 - e conclui:

A ausência clínica de conclusões evidentes e provas definitivas que o autor assinala


é um indicativo de que até esse ponto a transexualidade é um mistério, um enigma a
resolver (PIÑEROBA, 2008, P. 72. Tradução livre do autor)

Da mesma forma que Piñeroba e Bento, Judith Butler, uma das maiores referências nos
estudos queer, também aborda a questão da transexualidade como uma forma de identidade que
desafia a normatização dos gêneros. Para a autora, transexuais são pessoas que se identificam
ou vivem como o outro gênero, podendo ou não ter passado por tratamentos hormonais e/ou
cirurgias de redesignação sexual e seus desejos em ser homem ou mulher não devem ser
encarados como uma forma de se encaixar nas categorias identitárias estabelecidas.

Como Kate Bornstein aponta, esses desejos podem ser de transformação pura, uma
busca de identidade através de um exercício transformativo ou um exemplo de desejo
pela transformação (BUTLER, 2004, p. 8. Tradução livre do autor)

Para Butler, o gênero é uma maneira de ser e agir - a kind of doing - para si e para o
outro e, dessa forma, não poderia ser percebido como mecânico ou automático (BUTLER,
2004). Pelo contrário, trata-se de um prática constante de improvisação e performance. Esse
termo, inclusive, é característico dos estudos da autora e ao que ela chamou de teoria da
performatividade.

O gênero é performativo porque é resultante de um regime que regula as diferenças


de gênero. Neste regime os gêneros se dividem e se hierarquizam de forma coercitiva
(BUTLER, 2002, p. 64)

Dessa forma, a performatividade cria sujeitos como produtos das repetições que
exercem, encarnando ideais de feminilidade e masculinidade vinculados à heterossexualidade.
O ato performativo torna real aquilo que atua (gestos e comportamentos) e esse ato na repetição,
torna-se uma citação de algo, um código, uma convenção e, por isso mesmo, mostra-se efetivo.
29

Sendo assim, o gênero é um efeito de atos repetidos, sem um original ou uma essência (Porchat
& Silva, 2010) e, portanto, é uma identidade da qual o corpo faz parte, mas não é o principal.

Se os atributos e atos de gênero, as várias maneiras como o corpo mostra ou produz


sua significação cultural, são performativos, então não há identidade preexistente pela
qual um ato ou atributo possa ser medido; não haveria atos de gênero verdadeiros ou
falsos, reais ou distorcidos, e a postulação de uma identidade de gênero verdadeira se
revelaria uma ficção reguladora (BUTLER, 2003, p. 200)

Assim, quem se permite confrontar e colocar em xeque essa ficção reguladora acaba
sofrendo as consequências da exclusão, de forma ainda mais grave no caso de transexuais que
vivem em comunidades pobres: a humilhação sofrida por aqueles que são “vistos” como trans
ou são descobertos como tal é algo que não podemos estimar (BUTLER, 2004, p. 6). No
entanto, a autora não questiona a exclusão social dessas pessoas e não acredita na estratégia da
inclusão delas na lógica heteronormativa. Para a autora, a estratégia a ser adotada deve ser o de
destruir o conceito de divisão de gênero e de normalidade que é estabelecido.
Somente assim, a experiência de um transexual - bem como outras identificações - seria
encarada como apenas mais uma prática social, mais um ato performativo e, então, subvertendo
a norma corporal, poderia tornar-se de fato um sujeito de direitos.

2 A ÓTICA DE QUEM É.

No mês de outubro de 2013, casos de transfobia nas provas do Exame Nacional do


Ensino Médio - ENEM4acenderam mais uma vez a questão transexual e as personagens dessas

4
Candidatas transexuais do ENEM dizem ter sofrido constrangimentos. Disponível em:
http://g1.globo.com/educacao/enem/2013/noticia/2013/10/candidatas-transexuais-do-enem-dizem-ter-
sofrido-constrangimento.html
30

histórias. O fenômeno do “menino Teresa”5 nas redes sociais também chamou a atenção da
mídia e contribuiu para que esse debate se mostrasse cada vez mais atual e urgente de alguma
visibilidade, mas ainda pouco se fala na mídia sobre o assunto, na sociedade a questão é tabu e
na academia as opiniões sobre o tema se dividem, trazendo conceitos e visões que não
conversam entre si e, muitas vezes, não conversam com a realidade dos/as próprias pessoas que
são transexuais.
Piñeroba (2008) cita o exemplo de lord Cornbury, primeiro governador/a colonial de
Nova York. Segundo o autor, essa personagem mítica da história americana já teria sido
classificado como transvestido, ou em linguagem coloquial como travesti, mas também numa
linguagem menos habitual teria sido denominado/a um/a transvestófilo. Autores com critérios
trans mais flexíveis diriam que Cornbury pode ter sido um transexual, ao passo que autores mais
rígidos, que ligam a transexualidade à cirurgia de redesignação sexual, não a/o classificariam
assim sob nenhum ponto de vista. Já sob uma perspectiva de projeção internacional, seria um
cross-dresser e, então, conclui:

“Sem dúvida, sempre ficaríamos sem saber a última palavra que haveria de ser
empregada, a autoidentitária, a de lord Cornbury” (PIÑEROBA, 2008, p. 234. Grifo
do autor)

Assim, concordando com o autor, acredito que, talvez, algumas teorias e classificações
tenham sido pensadas sem considerar perguntar às pessoas mais importantes dessa questão. Ou
se perguntadas, foram intencionalmente ignoradas. Logo, não com fim de tecer minha própria
ideia da questão, tampouco criar classificações ou sequer fazer julgamentos, pensei ser
interessante ouvir o que essas pessoas têm a dizer sobre elas mesmas.

2.2 O PERFIL DA/OS/XS RESPONDENTES

Para isso, conforme previamente explicado na introdução desse trabalho, foram


realizados 23 questionários com transexuais, dos quais 12 estavam completos e 11 restaram pela
metade, ou seja, foram respondidos apenas na parte referente ao perfil da/o/x respondente

5
Quem é Teresa Brant: menina que se veste como menino bomba nas redes sociais. Disponível em:
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/bruno-astuto/noticia/2013/08/quem-e-bmenina-que-se-veste-como-
meninob-e-bomba-nas-redes-sociais.html
31

(questões de 1 à 4). A primeira questão visava definir qual a identidade de gênero da/o/x
respondente:

Gráfico 1. Identidade de gênero das/os/xs pesquisadas/os/xs

Identidade de Gênero

0 4
1

18

Transmulher (MtF) Transhomem (FtM) Intersexual Sem gênero definido

Fonte: Elaborado pelo autor a partir das respostas à questão 1 do questionário (apêndice 1) aplicado nessa
pesquisa.

Podemos observar que a grande participação de respondentes é de transmulheres com


18 pessoas. No entanto, o que mais me chama atenção é o número de respondentes que se
consideram sem gênero definido, 4 participantes. Esse número reflete um fenômeno
relativamente novo. O de pessoas que se dizem neutras ao conceito de gênero binário, ou seja,
não se consideram pertencentes ao modelo de gênero que temos: homem e mulher. Transgridem
essa ideia e, portanto, transitam entre os gêneros - gender fluid - ou não pertencem à nenhum
dos dois - genderless ou nongender (WINTER, 2010).
A segunda questão - qual sua orientação sexual? - visava entender quais as identidades
sexuais presentes dentre os/as/xs respondentes.

Gráfico 2. Orientação sexual das/os/xs pesquisadas/os/xs


32

Orientação Sexual

4
1 9

6
3

Heterossexual Homossexual Bissexual


Assexuado Prefiro não responder

Fonte: Elaborado pelo autor a partir das respostas à questão 2 do questionário (apêndice 1) aplicado nessa
pesquisa.

Vale ressaltar que a necessidade de tal questionamento justifica-se, principalmente, pela


urgência de entender que a ideia de que não há - ou não deveria haver - uma heterossexualidade
compulsória para sujeitos transexuais. É dizer, não é porque uma pessoa descobre-se
pertencente ao gênero oposto ao que lhe foi designado que, necessariamente, essa pessoa deseja
se adequar à lógica heteronormativa. Essa ideia, infelizmente, acaba por excluir pessoas que
fogem do padrão típico da transexualidade promovido pela biomedicina.
Mesmo com um número relativamente baixo de participantes, podemos perceber alguma
variação relevante nos número apresentados, igualando em 9 pessoas - o número de
heterossexuais e também em 9 se somarmos homossexuais (3 pessoas) e bissexuais (6 pessoas).
A questão seguinte, número 3, reflete o perfil etário das/os/xs respondentes.

Gráfico 3. Faixa etária das/os/xs pesquisadas/os/xs


33

Faixa Etária

0 2
7 Até 18 anos
De 18 a 30 anos
De 31 a 59 anos
Mais de 60 anos
14

Fonte: Elaborado pelo autor a partir da questão 3 do questionário (apêndice 1) aplicado nessa pesquisa.

A partir do gráfico 3 podemos ter uma ideia do perfil etário das pessoas participantes,
que em sua maioria – cerca de 60% - são jovens entre 18 e 30 anos. No entanto, me chama
atenção o número relativamente baixo de transexuais com idades entre 31 e 59 anos e a
inexistência de maiores de 60 anos. Esse segundo grupo, podemos acreditar que não aparecem
aqui por conta da pesquisa ter sido realizada no ambiente online, assim como dificilmente
nossos avós apareceriam, porém o número de 7 participantes entre 31 e 59 anos me faz refletir
sobre uma questão delicada: envelhecimento da população T.
Uma vez considerado o valor social atribuído à juventude, o envelhecimento, que já é
uma fase difícil para as pessoas cissexuais heterossexuais, pode representar maior sofrimento
para os grupos LGBT. Se entre os homossexuais, é comum que gays idosos sofram preconceito
entre os mais novos, entre a população T tal situação pode se agravar, haja vista que muitas
vezes o seu papel social está associado a juventude e ao corpo.
Embora sejam poucas as publicações que abordem o tema com profundidade, o que se
pode observar é que a expectativa de vida per si dessas pessoas já é baixa e quando chegam na
velhice devem considerar-se sobreviventes (ANTUNES & MERCADANTE, 2011). Por serem
transexuais e estarem ficando velhos/as sofrem uma dupla discriminação de todos os lados: do
Estado, da sociedade cissexista-heterossexual, dos grupos LGB e do público T mais jovem. De
acordo com ANTUNES & MERCADANTE (2011), como a velhice não é valorizada, essa
população tende a perder seu espaço, se é que algum dia teve um.
Segundo dados da ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais – cerca
de 90% das travestis e transexuais vivem na prostituição. Logo, com a chegada da velhice e,
consequentemente, com a perda da “beleza” dos atributos físicos, essa população perde também
34

sua ocupação. Tendem a ocupar espaço no mercado informal como costureiras, cabeleireiras,
domésticas, cozinheiras, etc.
O mais espantoso é que há, inclusive, relatos de transexuais que depois de certa idade,
deixem de assumir sua identidade de gênero e adequem-se à lógica de gêneros imposta para
serem aceitos/as em casas de repousos ou ONGs especializadas6. Logo, é importante refletir
sobre esse dado e sobre essas questões, que abre espaço para uma discussão que não me
aprofundarei por ora.
Para finalizar a primeira parte, referente ao perfil dxs respondentes, a questão 4
caracteriza as/os/xs participantes quanto a escolaridade e ocupação.

Quadro 2. Sujeitos pesquisados e suas respectivas ocupações

Pesquisada/o/x: Ocupação:

1 Programadora

2 -

3 -

4 Cabeleireira

5 Estilista

6 Administradora de Sistemas

7 Maquiadora e Cabeleireira

8 Cabeleireira

9 Cabeleireira e Profissional
do Sexo

10 Jornalista

11 -

12 Auxiliar de Escritório

13 Balanceiro de produção

6
Caso de um transexual de Porto Alegre, que retrata bem a situação. Aos 75 anos, ele procurou um asilo e foi
enxotado de lá. Sem recursos financeiros e já dependente de cuidados, ele voltou para casa, parou de tomar
hormônios femininos, cortou os cabelos, deixou a barba crescer e retornou ao asilo, onde foi aceito
t a uila e te . Disponível em: http://www.50emais.com.br/artigos/eles-tambem-envelhecem/.
35

14 Professora

15 -

16 -

17 -

18 -

19 -

20 -

21 Engenheirx de Computação

22 -

23 Serviço Social e Saúde


Pública
Fonte: Elaborado pelo autor a partir das respostas a questão 4 do questionário (apêndice 1) aplicado nessa pesquisa.

A partir do Quadro 2, é possível percebermos que os/as/xs possuem ocupações variadas.


Como ocupação não era uma questão obrigatória, muitos/as/xs deixaram em branco e, portanto,
pode ser difícil fazer uma análise, porém é interessante perceber a variedade de profissões entre
as/os/xs que responderam. E que não se restringe a prostituição7, pontuada por apenas uma
participante. De qualquer forma, é necessário lembrar que a inclusão no mercado de trabalho
formal é uma das maiores dificuldades dessa população e foi, inclusive, reiterada por 5 das/os/xs
12 que responderam a segunda parte do questionário.

Gráfico 4. Escolaridade das/os/xs pesquisadas/os/xs

7
Segundo a Associação das Travestis e Transexuais do Triângulo Mineiro (Triângulo Trans), apenas 5% das
travestis e transexuais de Uberlândia estão no mercado de trabalho dito formal. As demais, 95%, estão na
prostituição. Número semelhante é apresentado pela ANTRA - Associação Nacional de Travestis e Transexuais,
segundo a qual 90% das travestis e transexuais estão se prostituindo no Brasil. Fonte:
http://www.cartacapital.com.br/blogs/feminismo-pra-que/o-preconceito-contra-transexuais-no-mercado-de-
trabalho-2970.html
36

Fundamental Incompleto
Faixa Etária
Fundamental Completo

Médio Incompleto
1 1 0 1 2
Médio Completo
6
Superior Incompleto

Superior Completo
8
Ensino Técnico e
5
Profissionalizante
Pós-Graduação

Fonte: Elaborado pelo autor a partir das respostas a questão 4 do questionário (anexo 1) aplicado nessa pesquisa.

Quanto a escolaridade dxs participantes acredito que os resultados obtidos com essa
amostra podem ter sido influenciados pelo ambiente em que foram colhidos: o virtual. Assim,
não encaro com surpresa o alto número de participantes com Ensino Superior Completo e
Incompleto, que somados correspondem a quase metade do número de participantes. Na
realidade, por começarem geralmente muito cedo o processo de hormonização e transformação,
conhecido como passing (PIÑEROBA, 2008), muitos/as transexuais se vêm obrigados à largar
os estudos por sofrerem transfobia no ambiente escolar. Dados da ABGLBTT (Associação
Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais) estimam que a evasão escolar
de transexuais chegue a 73%8. Logo, se esse questionário fosse aplicado de outra maneira – na
rua, por exemplo – possivelmente o resultado fosse outro.

8
Evasão escolar de transexuais. Disponível em:
ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftpsessp/bibliote/informe_eletronico/2011/iels.ago.11/Iels150/E_PL-728_2011.pdf
37

2.2 TRANSEXUALIDADE/ISMO POR TRANSEXUAIS.

A partir da segunda parte da pesquisa, foram dadas questões abertas não obrigatórias e,
portanto, nem todas/os/xs as/os/xs participantes responderam. Assim, foram consideradas
somente as respostas de 12 participantes. Com fins de manter sua privacidade, não foi solicitado
nomear o questionário, portanto, atribuirei nomes ficctícios aos participantes. Vale lembrar que
algumas respostas dadas aqui correspondem as visões de pessoas que também estão sujeitas às
ideias e visões expostas no capítulo anterior. Logo, suas respostas são também produtos dessas
discursividades que são ora patologizantes, que reforçam o saber biomédico e ora
despatologizantes, que revoltam-se com a medicalização de suas identidades.
Para começar, quando perguntadas/os/xs O que é transexualidade para você? Com suas
palavras, como você definiria um conceito para transexualidade? as respostas foram as mais
variadas, desde extensas e bem elaboradas até bem simples e pessoais. Se agrupadas em
respostas semelhantes, teríamos o seguinte:

Quadro 3. Respostas à questão 5 agrupadas por “tipos” X respectiva quantidade de respondentes


Tipos de respostas Nº de respondentes
Alma no corpo errado; Nascer no
corpo errado. 3
Liberdade (Ser livre); Independente de
sexo; Acima do sexo. 5
Ser do Terceiro Sexo 1
(Ser do) gênero oposto ao designado
no nascimento. 3

Fonte: Elaborado a partir das respostas a questão 5 do questionário (apêndice 1);

Vale ressaltar que esse último tipo de resposta foram mais extensas, de linguagem extremamente
bem conceituada, acadêmica, utilizando-se de termos e conceitos anteriormente expostos nesse
trabalho.

Para mim, o termo "transexual" está inserido no de "transgênero", sendo deste uma
espécie. A pessoa transgênero seria aquela que não se encaixa nas normas
cissexistas, que definem o gênero apenas pela genital das pessoas. As pessoas
transexuais seriam aquelas que se sentem pertencentes ao gênero oposto ao
designado no nascimento. Claro que isso não seria uma narrativa padrão, e a
autodeterminação deve ser levada em conta. (Depoimento dx participante Cris)
38

Transexual é uma identidade transgênera. As pessoas transgêneras são aquelas que


foram designadas com um gênero ao nascimento mas que possuem identidade não
condizente com esse desígnio. O que define a transexualidade ou travestilidade de
uma pessoas é a auto identificação. A auto identificação é soberana. Nesse sentido,
não existe jeito "correto" de ser travesti, transexual ou outra identidade, ao contrário
do que as ciências psi e médicas acreditam. As "diferenças" entre elas são
construções sociais complexas: resumidamente, travestilidade é uma identidade
marginalizada em relação a transexualidade e essa marginalidade não tem nada de
"natural". (Depoimento da participante Joana)

Os depoimentos acima, como podemos observar, encaixam-se no tipo de resposta que


caracteriza a transexualidade como “ser do gênero oposto àquele designado no nascimento”.
Para essas respostas, buscam referências no que a academia têm a dizer sobre o tema, moldando-
as as suas vidas, pois, sentem na pele o que os autores que estudam a transexualidade têm a
dizer. Entretanto, tais respostas fogem de uma conceituação livre de quem vive a
transexualidade, tornando a visão um tanto mecânica.
As/Os/Xs demais fizeram suas definições de acordo com seu entendimento, sua própria
vida, guiadas/os/xs pelo sentimento de não pertencer ao corpo que lhes identificou com
determinado gênero e pela vontade de ser livre e conduzir sua vida da maneira que quiser.

Pra mim seria uma pessoa que nasce com a alma dentro de outro corpo. (Depoimento
do participante Carlos)

Ser eu mesma sem prescisar usar ou vestir o que os outros querem , viver como eu
quero independente de sexo (Depoimento da participante Maria)

Na verdade me sinto uma mulher mesmo sem ter feito a cirurgia e nao gosto de ser
definida como transexual, mas infelizmente somos rotoladas e te digo entao que sou
uma transexual que ainda nao fez a cirurgia e nao tenho inteçao de faze-la,por penso
que para ser mulher nao serve ter um orgao ou outro o que importa e que estou bem
assim e me cnsidero uma mulher de todas as formas. (Depoimento da participante
Silvia)

Essas pessoas acima, fazem uso de suas experiências mais íntimas para refletir o que é
a transexualidade, pois vivem-na no dia a dia. Falam da independência do sexo, ou seja, da
liberdade de ser quem se quer ser, quem se é de verdade. A participante Silvia fala, também, da
infelicidade da rotulação como transexuais, enquanto na verdade se sente normal, se sente
mulher, mesmo que lhe digam que não o é, e questiona a ideia rasa de que uma transmulher só
é completa após a cirurgia de adequação sexual, a qual não tem interesse em realizar. O
participante Carlos com sua resposta aproxima-se de uma visão que pode ser produto do que
ouve a vida toda: de que existe uma alma certa para aquele corpo e ser transexual é nascer no
corpo errado, ou seja, uma visão binarista de gênero, patologizante.
39

Em seguida, quando questionei9 sobre as duas perspectivas que “brigam” pela definição
da transexualidade – a das ciências sociais, que define como identidade de gênero e a das
ciências biomédicas, que define como uma doença mental - e pedi suas opiniões, todas as
respostas apontaram para a primeira opção: ser transexual é uma identidade, ainda que os
discursos do senso comum reforcem o saber biomédico.

Não vejo como uma doença e sim como uma identidade de genero pois nascemos
assim. Entao milhares de trans nascem doentes? (Depoimento da participante Maria)

E uma identidade, nao somos doentes...o problema è que não tendo escola,afeto dos
familiares e trabalho isso abala o nosso psicologico e parecemos ser doentes para a
sociedade. (Depoimento da participante Silvia)

A ideia de que a transexualidade, enquanto transtorno, lhes traz uma certa rebeldia em
suas falas. A participante Maria questiona inconformada como é possível ser doente se nascem
assim. Já Silvia afirma, com suas palavras, o que o próximo depoimento traz de maneira mais
elucidativa: ser transexual é uma identidade, mas a sociedade força a doença, abala o
psicológico. Com outras palavras, as duas respostas a seguir dizem isso. Segundo essas
pesquisadas, ser transexual é de fato uma identidade de gênero, uma maneira de ser e agir, mas
devido ao modelo heteronormativo que nos é estabelecido e pela forma com que são encarados
os comportamentos tidos como desviantes por nossa sociedade, acaba por se originar uma
disforia, um transtorno.

Na verdade, as duas visões estão erradas. Uma pessoa transsexual irá


inevitavelmente desenvolver algum nível de transtorno causado não pelo fato de ser
transsexual, mas pelo desvio de sua natureza forçado pela sociedade (disforia).
Assim, uma mulher transsexual que é forçada a viver como homem sofre de um
transtorno de identidade (disforia), ela acha que é homem, pois a sociedade a vê
como homem, mas não é o que ela sente como o seu natural, está doente por culpa
da sociedade que não identificou e tratou essa mulher adequadamente. É fácil
analisar o ser adulto já transtornado e dizer que a doença é esse ser se identificar ao
contrário de sua genital. Quando na verdade a doença é justamente o contrário, é
forçar uma pessoa ser de um gênero que ela não pertence. Tanto é que na literatura
médica se recomenda apenas uma solução para o transtorno de gênero que é
ADEQUAÇÃO ao gênero pretendido. Assim, o problema é justamente entender de
forma errada do que se trata o TIG, mais uma vez, a TIG não é o fato da pessoa ter
uma identidade de gênero que difere do que se esperava numa pessoa com o genital
X, isso é normal e não causa transtorno algum. O TIG é uma pessoa de um genero X
vivendo forçadamente o gênero Y porque é o que a sociedade demanda dessa pessoa

9 Questão 9 do questionário: Durante minha pesquisa, pude encontrar uma literatura extensa sobre o assunto,
mas basicamente duas formas de pensar diferente a mesma questão: uma que coloca transexualidade como
uma doença, um transtorno e outra que coloca como uma identidade, ou seja, é autodeterminada. Qual a
importância ou problema de termos diversas visões sobre a transexualidade?
40

só porque tem o genital Y, esse desvio de comportamento causa toda sorte de


transtornos, depressões, suicídio etc.

O gênero também não é formado pelo ambiente, cultura, etc, mesmo porque, como
uma pessoa como eu que vivi 30 anos como homem não desenvolvi uma identidade
de gênero masculina? Em todo o planeta, não importa se é legal ou ilegal, se são
pessoas com cultura ou sem cultura, se é um país pobre ou rico, nada importa, as
taxas de transsexualidade são muito parecidas. A confusão é gerada por causa dos
papéis sociais, maneirismos, roupas etc, esses sim, construídos socialmente como
"para meninos" ou "para meninas". Não é porque transsexuais costumam buscar um
papel feminino na sociedade que sua identidade de gênero foi criada/influenciada
por ela. Eu mesma sou programadora, uma profissão dominada por homens e nem
por isso sinto minha identificação mais com o masculino ou feminino do que se eu
fosse estilista. Não há causas culturais da transsexualidade e nem está é resultado
de uma doença mental.

Outra confusão é misturar fatores sociais com a transsexualidade. Alguns homens


cisgêneros, seja gay/bi/hetero, por necessidades extremas, optam por se travestirem
para se prostituir ou fazer shows, muitos desses incorporam uma transsexualidade
ao aveso, eram normais, estavam adequados ao seu gênero e decidem viver
forçadamente o gênero oposto para ganhar benefícios financeiros ou sociais. Tanto
é que um dos requisitos para o diagnóstico de transsexualidade, é justamente não
fazer o que faz visando benefícios do gênero alvo. É comum mulheres no oriente
médio, onde existe muita opressão contra mulheres, muitas desejarem serem homens
para ter a liberdade desses.

Assim não se trata de QUERER ser do gênero oposto e sim SE SENTIR do gênero
preferido. (Depoimento da participante Rita)

Acredito que a patologização é o problema e a autodeterminação é a solução. São


duas visões antagônicas, a da medicina dizendo que é uma doença e a das teorias
sociais repugnando a visão médica, sendo a primeira uma das maiores causadoras
de transtornos na vida de pessoas trans* e a segunda, a solução. (Depoimento dx
participante Cris)

Dessa forma, mostra-se um consenso entre transexuais, mesmo que em pequeno número
como nessa pesquisa, que a transexualidade é uma identidade de gênero, é uma forma de
colocar-se para o mundo, é ser quem se quer ser ou quem se sente ser. Logo, não devem estar
erradas as pessoas que vivem na pele essa experiência e que, marcadas pelo estigma que lhes é
imposto pela medicalização de suas identidades, sofrem discriminação, preconceito e violência
por serem simplesmente quem são. Portanto, é importante entender agora, como essa população
vivencia a questão transexual a partir da convivência em sociedade.
41

2.3 TRANSEXUALIDADE/ISMO E TRANSFOBIA.

Quando questionados/as/xs10 sobre quais as dificuldades enfrentadas por serem


transexuais, as respostas apontam, principalmente, para o preconceito sofrido e, por conta disso,
para a dificuldade de encontrar trabalho no mercado formal.

Eu vivo na Italia,e por mais que voce tenha tirado nota dez nisto ou naquilo,no
momento em que voce vai atras de um emprego a sociedade,a mesma que recrimina
que voce esta na rua è a mesma que fecha a porta para voce.Trabalhei em um salao
por uma semana,assim que pediram os documentos para me regolarizar eles
disseram que nao servia mais. Assim varias outras empresa. (Depoimento da
participante Silvia)

De encontrar trabalho formal (Depoimento da participante Andrea)

As maiores dificuldades são na obtenção de emprego e na inscrição em uma


academia. Tentei inscrever-me em uma academia que já frequentei, mas não
aceitaram o meu pedido para usar o vestiário feminino, pois ainda não modifiquei o
meu nome. Quanto ao serviço público, até o momento, não enfrentei problema algum.
(Depoimento da participante Ana)

O preconceito vivido por todos os grupos minoritários – LGB, negros, mulheres, etc –
mostra-se ainda mais latente entre a população T. As dificuldades apontadas pelos/as/xs
participantes nas respostas acima para encontrar trabalho formal, refletem uma dura realidade
dessa população que, muitas vezes por não ter outra escolha, acabam indo para o mundo da
prostituição e/ou das drogas. Essa série de não-escolhas fazem com que a imagem dessa
população acabe transmitindo para a sociedade justamente o que ela quer enxergar: que
transexuais são monstros da noite, bixos de rua, escória da sociedade. Esse preconceito, que no
caso de transexuais é denominado transfobia é resultado de uma série de direitos que são
negados e/ou dificultados à essas pessoas como, por exemplo, o direito ao nome social e à
retificação do sexo nos registros oficiais.

Empregos, preconceitos e nome social! sim varios uma vez numa central te
telemarketing por eu aparentar ser muito feminina e porque a empresa pertenciam a
evangélicos. (Depoimento do participante Carlos)

Tive muitos constrangimentos em vários organismos públicos e privados, como


exército (alistamento), escolas, comércio, mercado de trabalho etc por pura
ignorância sobre nós (o que leva ao preconceito). Uma breve explicação nas escolas
sobre sexualidades e identidade de gênero resolveria grande parte dos casos (coisa
que foi negada pelo governo Dilma). Nunca tive um serviço negado diretamente por
ser transexual. Porem me sinto negada ao direito de usar meu nome pela burocracia
preconceituosa que o sistema jurídico requere das transsexuais para troca de nome.

10Questão 6 do questionário: Quais as maiores dificuldades que você enfrentou/enfrenta por ser transexual?
Você já teve algum tipo de serviço público negado por ser transexual? (Se sim, descreva o caso: onde foi,
porque, qual tipo de serviço..)
42

Por falta de lei específica, ficamos a merce de "cair" com um juiz de boa índole para
conseguirmos esse direito. (Depoimento da participante Rita)

A transfobia, entretanto, não está presente somente nas instituições e em suas


burocracias. O preconceito contra transexuais é derivado de ignorância e intolerância e mostra-
se perigosa para a saúde física e mental de transexuais. Segundo o blog Quem a homotransfobia
matou hoje?, que colhe em notícias de todo o Brasil estatísticas de mortes por orientação sexual,
o número de transexuais assassinado/as até novembro desse ano era de 9211, sendo que em 2012
esse número chegou à 12812, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB).
Por isso, julguei interessante questionar13 o que as pessoas respondentes da pesquisa
acham que é a perspectiva que a sociedade tem dos/as transexuais e as respostas não poderiam
ser diferentes.

Acho que é muito padronizado a maioria da sociedade não tem informações e


generaliza que toda trans, travesti até mesmo transformistas são "gays" ou até
mesmo como alguns dizem são "viados". Só acho que deveriam ter mais informações
sobre as identidades de gêneros. (Depoimento da participante Flávia)

Para a população carente, na melhor das hipóteses, as pessoas entendem a pessoa


transsexual como uma pessoa "gay exagerada", tanto que ficam surpresas quando
digo que sou mulher transsexual lésbica. As pessoas confundem muito a identidade
de gênero com sexualidades e até com transgressão dos papéis de gênero.
(transgêneros). Por causa do preconceito muitas trans são desprovidas da
oportunidade de estudar, se qualificar profissionalmente e acabam empurradas para
a prostituição e para crimes, o que gera na mente popular mais desprovida de
conhecimento, uma visão de que transsexuais são gays burros viciados em sexo e
safados que ganham a "vida fácil" e quando muito, são bandidos que usam da
imagem feminina para atrair vítimas de assaltos. (Depoimento da participante Rita)

Para eles/as/xs, a sociedade é ignorante quanto ao assunto. Segundo Flávia e Rita, a essa
ignorância leva a conclusões superficiais sobre o que é ser transexual, como por exemplo, a
ideia generalizada de que travesti, transexual, transformista é tudo igual e são todos gays
extremamente exagerados. Essa ignorância leva, inclusive, ao desconhecimento da existência
de transhomens, sendo no máximo uma lésbica muito macho.
Devido a essa ignorância sobre o assunto, as pessoas tendem a renegar e excluir o que
não entendem, transparecendo suas fobias.

11
Quem a homotransfobia matou hoje? Disponível em: http://homofobiamata.wordpress.com/category/1-
orientacao/b-trans/
12
GGB. Relatório 2012: Assassinato de homossexuais (LGBT). Disponível em:
http://homofobiamata.files.wordpress.com/2013/02/relatorio-20126.pdf
13
Questão 7 do questionário: Na sua opinião, qual a perspectiva que a sociedade tem sobre a transexualidade?
43

A sociedade, em geral, ainda vê a transexualidade como algo sujo, irreal, impossível.


A pessoal transgênero, no geral, é considerada um monstro, uma aberração, algo
não-humano. E por ser algo não-humano, "justifica-se" a discriminação.
(Depoimento dx participante Cris)

A sociedade percebe os transexuais como sendo a escória. São poucas as pessoas


que dão valor e admiram a coragem das transexuais em enfrentar este desafio de
cabeça erguida. Por isto, muitas transexuais acabam cometendo suicídio, pois não
sabem lidar com a rejeição popular. (Depoimento da participante Ana)

Que somos um lixo! (Depoimento da participante Silvia)

Os depoimentos acima refletem bem essa ideia. Todas/os/xs as/os/xs respondentes


mostram em suas falas uma certa revolta ao falar sobre a questão. Reflexo de como são
tratadas/os/xs pela sociedade transfóbica, que as/os/xs trata como lixo, como bixos, como
sujeira e que não as/os/xs reconhece como sujeitos de direitos.
Talvez assim não fossem tratada/os/xs se usufruíssem de direitos fundamentais hoje
negados pelo Poder Público e se esse fizesse jus à Carta Magna, garantindo esses direitos sem
discriminação à todos. No entanto, essa não é a realidade. Assim, julguei ser interessante
questionar suas percepções acerca da relação do Estado com a transexualidade/ismo.

2.4 TRANSEXUALIDADE/ISMO E POLÍTICAS PÚBLICAS

Segundo Saadeh (2008), atualmente três materiais referências são utilizados por
psicólogos e psiquiatras para o diagnóstico de transexuais: The Harry Benjamin International
Gender Dysphoria Association’s, Standards of Care foir Gender Identity Disorders, 6th version
(HBIGDA, 2001), o Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais (DSM – IV) da
Associação Americana de Psicologia (APA), que classifica transexualismo como um
Transtorno de Identidade de Gênero (TIG)14 e a Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) da Organização Mundial da Saúde

14
F64.x - Transtorno de Identidade de Gênero (DSM – IV). Disponível em:
http://virtualpsy.locaweb.com.br/dsm_janela.php?cod=118
44

(OMS), que o denomina como um Transtorno de Identidade Sexual15, onde se encaixam o


travestismo e o transexualismo. O termo Transtorno de Identidade de Gênero (TIG) tem sido
usado desde 1980, com a publicação do DSM-III (“Diagnostic and Statistical Manual” 3º
edição) e só foi revisto na última edição da publicação, o DSM-V.
Apesar da mudança - de Transtorno de Identidade de Gênero para Disforia de Gênero
- na quinta edição do DSM16, publicado em maio desse ano, a patologização de transexuais
permanece, gerando campanhas17 pela exclusão do termo do Manual e a revisão para a nova
edição do CID a ser publicada em 2014. Logo, achei interessante questionar o que xs
participantes da pesquisa tinham a dizer sobre o assunto18 e o resultado foi bastante interessante.

Quadro 4. Respostas à questão 9 agrupadas em “tipos” X respectiva quantidade de respondentes.


Tipos de respostas Nº de respondentes
Contra a despatologização 1

Favorável a despatologização 3
Desconhece o assunto; Mudou de
assunto
8
Fonte: Elaborado a partir das respostas a questão 9 do questionário (apêndice 1)

Conforme podemos observar no quadro 4, a maior parte das/os/xs respondentes não


conhecem campanhas como a “Stop Trans Pathologization”, não sabem sobre a mudança de
termos no DSM-V e admitiram o desconhecimento ou mudaram de assunto, não respondendo
a pergunta diretamente.

Sou leiga no assunto, portanto não posso expor nenhuma opinião. (Depoimento da
participante Flávia)

Que lutam lutam mais no fim nao fazem nada so garantem, nao vejo lgbt trazendo
nda de bom as trans (Depoimento da participante Maria)

15
F64 – Transtorno de Identidade Sexual (CID-10). Disponível em:
http://virtualpsy.locaweb.com.br/cid_janela.php?cod=135
16
Gender Dysphoria (DSM – V). Disponível em:
http://www.dsm5.org/Documents/Gender%20Dysphoria%20Fact%20Sheet.pdf
17
Campanha Internacional Stop Trans Pathologization. Disponível em: http://www.stp2012.info/old/pt
18
Questão 9 do questionário: No próximo DSM (Manual de Diagnósticos usado por psiquiatras e psicólogos do
u do todo) e ta b o CID o tra stor o de ide tidade de g ero – TIG passa para disforia de g ero .
Você acredita que na prática isso mudará algo para a realidade d@s transexuais? Diversas organizações LGBT
do mundo todo e outras organizações como o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo são dos apoiadores
da Campanha "Stop Trans Pathologization" que retiraria de vez esses termos do DSM e do CID. Você conhece o
movimento? Qual a sua opinião?
45

Já entre as que conheciam o assunto, três mostraram-se favoráveis à Campanha de


Despatologização, mas acreditam que nada mudará apenas com a mudança dos termos no último
DSM, pois mesmo com a alteração da nomenclatura de um termo a outro, a medicalização de
suas identidades continuará presente.

Mudar apenas a nomenclatura do CID não me parece que vai mudar a realidade das
pessoas trans*. Conheço e sou a favor da despatologização das identidades trans* e
que seja mantido o atendimento de saúde público e gratuito. (Depoimento da
participante Joana)

Mudar-se-ão os termos, porém, os procedimentos continuarão os mesmos. Não


haverá qualquer mudança significativa. Quanto ao movimento pela
despatologização da transexualidade, apesar de não conhecê-lo, sou plenamente
favorável. Aliás, na França, a transexualidade não é mais considerada doença.
(Depoimento da participante Ana)

Uma respondente, no entanto, mostrou-se contrária a revisão dos termos nos citados
manuais.

Conheço e não concordo com a retirada total da disforia (minha opinião é contrária
a maioria das trans). Como eu disse antes, a disforia é causada pelo fato de uma
pessoa do gênero X viver o gênero Y por pressão da sociedade só porque tem o
genital Y. Assim, é importante para os psiquiatras e psicólogos conhecerem esses
sintomas e métodos de diagnóstico para ajudar pessoa que não transsexuais e NÃO
SABEM disso!

Existem pessoas que sofrem e só vão descobrir que são transsexuais no consultório.
Esse movimento, muito baseado no fato de que a transexual sabe que é transexual e
não precisa de um médico diga que é. Principalmente para fins jurídico como troca
de nome, cujo um dos requisitos é ter laudo atestando transsexualidade. Na minha
visão, seria muito melhor atacar diretamente as políticas públicas para as trans do
que tentar tirar algo de um livro que 99,9% da população nem sabe que existe.

Além disso, existem casos de esquizofrenia, distúrbios sexuais (taras-crossdressers)


que podem se dizer trans, e sem ajuda psicológica buscar uma adequação sem
necessidade quando o problema é outro. Cito o exemplo de um amigo crossdresser
que se dizia trans, ele foi até o Paraguay e fez a cirurgia, porem com o fim da
testosterona, acabou também o tesão pela tara que possuía, caindo em si, entrou em
depressão e se matou. Pode até ser que ajude em algo remover esses termos da CID,
mas não vejo como prioridade, e muito menos motivo pra forçar por pressão social
uma decisão dessas. (Depoimento da participante Rita)

Segundo a participante Rita, a nomenclatura pode até mudar e qualquer que seja o
termo, deve ser mantido nesses manuais. Para ela, a necessidade de um diagnóstico preciso entre
um transexual e não-transexual justifica a manutenção dos termos nos manuais e questiona a
prioridade do movimento que pede por sua exclusão.
46

Para Tully (1992 apud SAADEH, 2008 p. 82) a necessidade da manutenção dos termos
no CID e no DSM justifica-se, pois:

A precisão diagnóstica é fundamental para a definição exata de um transtorno


de identidade sexual ou de gênero, e mais especificamente para o
transexualismo. Isto porque os candidatos a uma cirurgia de redesignação
sexual nem sempre são transexuais e nem sempre apresentam melhora na
qualidade de vida com a cirurgia, além de ser irreversível em muitos casos e
em outros, de díficil reversão (TULLY, 1992 apud SAADEH, 2008, p. 82)

Entretanto, se por um lado o diagnóstico faz-se necessário para evitar confusões entre
um sujeito transexual de outro não-transexual, por outro lado são essas publicações que
conduzem a forma como deverão ser atendidas as pessoas transexuais que procuram
atendimento psicológico ou que solicitem uma cirurgia de redesignação sexual pelo Sistema
Único de Saúde, e que acabam estigmatizando, marginalizando e excluindo as pessoas
transexuais, identificando-as como seres doentes, transtornados. Sendo o cenário pior ainda, se
esses não se identificam com o padrão da transexualidade ou com o modelo binário de gênero.

Aconteceu comigo um caso curioso. Fui até o núcleo LGBT da Secretaria de Direitos
Humanos do meu estado coletar dados para o meu TCC (sim, o tema do meu TCC
também é identidade de gênero! rs) e me apresentei com meu nome masculino. A
questão é que eu tenho aparência considerada feminina, e x atendente -
aparentemente uma moça trans* - se espantou, como se aquilo não fosse possível ou
sei lá. Fora o fato delx me tratar no feminino todo o tempo. Por telefone, a mesma
coisa... Liguei para o tal núcleo e depois dx atendente coletar meus dados (nome,
endereço, orientação sexual), elx mesmx marcou no formulário "sexo: feminino". Eu
tive que corrigi-lx. Elx perguntou se eu era transexual, e eu disse que preferia me
identificar como transgênero (me considero genderfluid). Vi que a confusão
permanecia, mesmo por telefone isso era nítido. E isso porque há pouco tempo que
eu assumi uma identidade trans*... O mundo ainda tem muita coisa reservada... rs
(depoimento dx participante Joana)

Segundo Silva e Barboza (2009), essa marginalização, ou melhor exclusão social, é


muito semelhante à vivida por outros grupos minoritários e submetidos à lógica heteronormativa
presente na sociedade atual, como os pobres, negros, índios, mulheres e LGB (Lésbicas, Gays,
Bissexuais). A exclusão desses grupos deve ser vista não como um fenômeno de ordem
individual, mas social (WANDERLEY, 1999 apud SILVA & BARBOZA, 2009, p. 264).
Segundo os autores, a exclusão desses grupos pode estar associada a três paradigmas: (i) o
paradigma da solidariedade, onde a exclusão é resultado do rompimento entre indivíduo e
sociedade, sendo então necessária uma atuação do Estado; (ii) o paradigma da especialização,
47

cuja exclusão baseia-se na especialização das atividades humanas e quando da discriminação


necessita de intervenção Estatal; e (iii) o paradigma do monopólio, quando a exclusão está
relacionada a distribuição de poder nas mãos de poucos grupos, cabendo ao Estado coibir tais
monopólios.
Nos três paradigmas é perfeitamente possível encaixar a discriminação que atenta
contra as pessoas transexuais - bem como a outros grupos – e ainda, nos três paradigmas, fica
evidente o papel interveniente do Estado de forma a impedir ou ao menos minimizar os danos
causados por essa marginalização que é, segundo os autores, multidimensional e multifacetada
(SILVA & BARBOZA, 2009). No entanto, vale destacar que a população transexual pode e,
muitas das vezes é, muito mais discriminada do que outros grupos excluídos. Essa população
sofre de uma naturalização da discriminação, onde tomá-la com a imagem de bixos, monstros
– usando as palavras de uma participante da pesquisa - é comum.
Dessa forma, é papel mister do Estado o de humanizar sua legislação e seus serviços
para o atendimento da população transexual, de maneira a minimizar a discriminação à que essa
população sucumbe e, portanto, é extremamente relevante entendermos qual o reflexo das
diferentes visões que estudam a transexualidade e a das/os próprias/os transexuais no conjunto
de instrumentos legislativos do Brasil e nas políticas públicas que atendem essa população.
Segundo Rios (2008), é possível falar em três diferentes níveis de proteção aos direitos
sexuais da população LGBT, que seguem os seguintes marcos jurídicos:

1) Marcos jurídicos com um nível mínimo de proteção são aqueles que


revogaram a proibição tradicional de práticas sexuais que se afastam do padrão
hegemônico;
2) Marcos jurídicios com um nível intermediário de proteção são aqueles que,
além de não criminalizarem essas práticas sexuais, também instituíram medidas para
penalizar atos discriminatórios, especialmente pela proibição da discriminação por
motivo de orientação sexual;
3) Marcos jurídicos com grau máximo de proteção são aqueles que, além de não
criminalizarem as práticas anteriormente mencionadas e penalizarem atos
discriminatórios, também estabeleceram medidas positivas para a proteção e
reconhecimento das práticas e identidades sexuais dos gays, lésbicas e pessoas trans.
(RIOS, 2008, p. 103)

Para o autor, o Brasil estaria entre o nível intermediário e o nível máximo, pois oferece
um alto grau de proteção institucional, pelo menos no aspecto formal (RIOS, 2008, p. 104),
48

principalmente através do Ministério da Saúde e suas campanhas. Destarte, acredito que por ser
esse Ministério a principal instituição de atenção à população LGBT – e principalmente a
população trans - já podemos começar a entender a ótica adotada pelo Estado para tratar essa
população. Há, para o autor, uma ausência de regulamentação legal do Estado que se baseie
numa perspectiva de direitos humanos ao tratar com travestis e transexuais, prevalecendo
sempre uma abordagem biomédica provavelmente graças a emergência do movimento LGBT
na época do impacto da epidemia do HIV/AIDS no Brasil, que tanto serviram para criar uma
maior articulação para o combate da epidemia como serviram para aumentar o estigma a esses
grupos (RIOS, 2008).
Para Rios (2008), é necessário que os marcos legais aos direitos sexuais LGBT não
sejam justificados pela biomedicina, pois:

Embora seja verdade que as preocupações com a saúde sexual sejam


importantes para a consecução de direitos sexuais, é igualmente verdade que o
reconhecimento desses direitos deriva de uma perspectiva mais ampla que
meramente preservar e cultivar a saúde (RIOS, 2008, p. 107)

Para Rios (2001 apud FORMICA, 2008, p. 9) a norma de direito fundamental requer
que o ser humano seja considerado um fim em si mesmo, ao invés de meio para a realização de
fins e de valores que lhe são externos e impostos por terceiros. É dizer, todas as pessoas têm o
direito de desempenhar o papel social que bem entenderem, sendo a identificação sexual e/ou
de gênero uma decisão individual, ou seja, é inconstitucional que as visões de mundo
heteronormativas sejam impostas aos transexuais. Logo, é dever do Poder Público assegurar,
nos termos da lei, seus direitos fundamentais que garantam a dignidade da pessoa humana, sem
discriminação às suas escolhas individuais.
Entretanto, sabemos que essa não é a realidade do país. Embora haja alguns avanços
no tocante aos direitos transexuais, como Portarias, Leis e Decretos que permitam a utilização
de nome social em instituições escolares, de saúde e da administração pública dos três níveis da
federação19, ainda não há legislação específica que regulamente a matéria (FORMICA, 2008),
sendo essa uma política pública citada pelas/os/s transexuais que responderam a última

19
Lista completa de Portarias, Leis e Decretos que regulamentam alguns direitos transexuais. Disponível em:
http://www.abglt.org.br/port/nomesocial.php
49

questão20 que lhes foi feita, referente ao que falta em termos de políticas públicas para essa
população.

Infelizmente, não há políticas públicas decentes e continuadas em prol de


transexuais. Mas penso que deveria ser facilitada a alteração do nome civil -
dispensando o ingresso na Justiça -, e incentivar a iniciativa privada a contratar
transexuais. Além disto, o reconhecimento da prostituição como profissão seria
importante, uma vez que muitas transexuais e travestis são profissionais do sexo.
Estas medidas seriam muito bem-vindas, pois tornariam nossa vida um pouco menos
difícil. Ah, sim, e é preciso que o Governo Federal esclareça a população sobre a
diversidade existente no segmento LGBTTI, pois isto contribuiria significativamente
para a redução do preconceito, uma vez que o preconceito é fruto da ignorância das
pessoas. (Depoimento da participante 10. Grifo do autor)

Muito péssima, precária, sem informação, subdesenvolvida,etc... muita coisa desde


as escolas a profissão e até mesmo aos direitos, direitos de sermos reconhecidas(os),
respeitadas(os), tem muito que mudar pois ainda nos dias de hoje podemos dizer que
não temos nada a nosso favor. (Depoimento da participante Flávia. Grifo do autor)

Vale ressaltar que projetos de lei com esse teor na matéria não faltam. Desde 1995, o
PL 70-B do Deputado José Coimbra (PTB/SP) está em trâmite na Câmara dos Deputados, ao
qual foram apensados mais outros 3 projetos posteriores semelhantes: O PL 6655-B/2006 do
Deputado Luciano Zica (PT/SP), o PL 2976/2008 da Deputada Cida Diogo (PT/RJ) e mais
recentemente o PL 4241 de 2012. Após esse último projeto ser apensado, a situação do PL
consta como pronta para pauta no Plenário21.
Apesar de diferente, esses projetos guardam algumas semelhanças e visam, em geral,
acrescentar no texto do artigo 58 da Lei nº 6015 de 73 (Lei de Registros Públicos) um paragráfo
que permita a alteração do prenome dos documentos oficiais de pessoas comprovadamente
transexuais, mediante apresentação de laudo médico. A exceção é o PL 4241/201222 que dispõe
sobre o reconhecimento da identidade de gênero das pessoas, garantindo aos interessados
maiores de dezoito anos, o direito de retificar seu prenome nos registros oficiais e o de acessar
tratamento hormonal e intervenções cirúrgicas para adequação sexual gratuitamente, já que essa
é outra necessidade básica às pessoas transexuais.

As transexuais precisam basicamente de 3 coisas, duas obrigatórias e uma opicional.


Essas pessoas precisam de apoio psicológico/social durante toda a transição, em

20
Questão 10 do questionário: De maneira geral qual a sua visão quanto às políticas públicas brasileiras para
transexuais? O que falta - em termos de políticas públicas - para ser feito, na sua opinião?
21
No momento de conclusão desse trabalho, o Projeto de Lei passava na Comissão de Constituição e Justiça do
Senado Federal como aprovado e agora é encaminhado ao Plenário da Casa. Disponível em:
http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/ccj-do-senado-libera-mudanca-do-nome-de-transexual/
22
Inteiro teor do PL 4241/2012. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1015822&filename=PL+4241/2012
50

grandes centros isso já existem mas no interior é inexistente, eu procurei em minha


cidade, Marília-SP, me mandaram para o posto mais próximo São Paulo capital
(450km).... a segunda coisa que precisam é o tratamento hormonal, muitas não
podem pagar, no desespero por adequação procuram trabalho, a sociedade não dá
oportunidade, acabam se prostituindo para "se fazerem" (como dizem). A terceira
seria a cirurgia de adequação, mas não são todas que sentem necessidade de fazer,
mas apenas grandes centros possuem essa oportunidade e a fila é gigante.
(Depoimento da participante Rita)

Por meio da Portaria 1.707 de 2008 do Ministério da Saúde, esse processo já é


garantido com a cobertura do SUS, providenciando: (i) Tratamento hormonal; (ii)
Acompanhamento terapêutico; (iii) Cirurgia de redesignação sexual primária (genital); e (iv)
Cirurgias de redesignação sexual secundárias (nariz, ouvido e garganta). Devemos reconhecer
o avanço legal dessa Portaria, entretanto, o serviço ainda é limitado: (a) à Hospitais
Universitários de grandes cidades - Porto Alegre/RS, Rio de Janeiro/RJ, São Paulo/SP e
Goiânia/GO – e, portanto, às pessoas ali residentes, já que um pré-acompanhamento com
duração de dois anos é necessário; (b) à transexuais MtF, já que as cirurgias FtM não estão
previstas na Portaria23 e; (c) à perfis de transexuais “típicos” ou “verdadeiros”.

[...] Sim, já passei pela experiência de ser negada, de certa forma, por um serviço de
saúde. Esse serviço de saúde foi justamente o programa de atendimento para pessoas
trans* do HC da USP, que exclui pessoas trans* que escapem da narrativa
legitimada da transexualidade. (depoimento da participante Cris)

O diagnóstico para atestar a transexualidade verdadeira ou não atenta contra o


princípio da integralidade do SUS, que baseia-se numa concepção positiva de saúde, em que
estar saudável não é sinônimo de não ter uma doença e, sim, estar bem em sua totalidade bio-
psíquica-social, logo a patologização das identidades de gênero é desnecessária. Devemos nos
atentar para a desconstrução da ideia de um “transexual típico” ou “verdadeiro”.
Por fim, de forma a evitar a exclusão, a marginalização e o preconceito resultante da
ignorância, é preciso que o Poder Público enfoque também em políticas de educação sexual,
educação para a diversidade e que conheça melhor essa população.

23
No momento de conclusão desse trabalho, uma nova Portaria do Ministério da Saúde, de Nº 2.803 publicada
no dia 21/11/2013, estendeu o processo transexualizador à transexuais FtM, incluindo no processo terapia
hormonal, retirada de mamas, útero e ovários e construção do neofalo. Além disso, incluiu-se também o direito
de implante de próteses de silicones nas mamas em transexuais MtF. Disponível em:
http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2013/11/nova-regra-para-mudanca-de-sexo-no-sus-contempla-
transexual-
masculino.html?fb_action_ids=459897507464441&fb_action_types=og.recommends&fb_source=other_multili
ne&action_object_map=%7B%22459897507464441%22%3A1374237619491611%7D&action_type_map=%7B%
22459897507464441%22%3A%22og.recommends%22%7D&action_ref_map
51

Programas que dêem visibilidade às questões de sexodiversidade. Na minha opinião,


o movimento LGBT ainda está muito pautado nas questões da homossexualidade,
principalmente a dos homens cisgênero. As pessoas lésbicas, bissexuais, pansexuais
e demais, no campo da orientação sexual, e as pessoas transgênero, no campo da
identidade de gênero, não têm suas demandas, tão próprias, analisadas e discutidas
com afinco. Faltam também programas de capacitação e educação de agentes
públicxs, para que estxs possam entender melhor a questão da sexodiversidade e
saber como prestar um atendimento de qualidade à população sexodiversa.
(Depoimento dx participante Cris)

Saber q nós existimos e q é grande essa população, q presisamos ser empregadas


socialmente como qualquer pessoa q n somos duentes e pagamos empostos como
qualquer um. a resposta p mim é empregar nós transexuais em qualquer profição.
(Depoimento da participante Bia)

Logo, como podemos observar nas respostas é fundamental que o Estado conheça a
população com que está tratando, capacite os agentes públicos para a diversidade existente,
entenda quem são essas pessoas e como querem ser tratadas. A respondente Bia diz que é preciso
que, quando o mercado feche as portas às pessoas transexuais, o Poder Público intervenha nessa
relação de alguma forma, seja por meio de cotas, qualificação profissional ou informando
adequadamente o empregador. Já x participante Cris diz ser necessário entender quais as
demandas desse grupo, que são desvinculadas das demandas de grupos homossexuais, além da
necessidade do Estado promover campanhas que deem visibilidade à questão transexual de
forma adequada.
Por fim, com as visões aqui levantadas de acordo com as ideias das/os/xs participantes
dessa pesquisa e com as visões apresentadas por autores que tratam do tema, farei minha
reflexão nas considerações finais desse trabalho.
52

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho buscou apresentar que a transexualidade ou transexualismo, apesar de


ter suas origens presentes ainda no século retrasado, continua sendo um tema complexo e
intrigante para pesquisadores. As mais diversas visões que foram mostradas aqui referendam
isso.
Os autores que abordam o tema sob uma perspectiva biológica denominam
transexualismo como um sintoma de transtorno de identidade de gênero, ou melhor, uma
disforia de gênero. Entretanto, dividem-se as opiniões mesmo nas ciências biomédicas, onde o
consenso não é possível: falam de um mesmo fenômeno sobre N visões. Falam em causas
determinadas pela formação cerebral durante a gestação, sobre causas determinadas na tenra
infância derivada de uma relação mãe-filho, sobre problemas de ego e narcisismo, sobre
hormônios, sobre delírios, sobre ilusões.
Os autores que abordam a temática sob uma ótica diferente, denominada teoria queer,
em geral, têm uma visão consensual do que se trata a transexualidade: múltiplas identidades.
Seja identidade uma maneira de se mostrar ao mundo e colocar-se para o outro, uma maneira
de performática. Seja identidade uma escolha para si, para amaciar o ego. Seja identidade algo
que é intrínseco, que não se pode mudar, que “nasce com você”.
Mas e os autores de suas próprias histórias? Esses abordam o tema vivendo-o na pele.
Devem ficar confusos com a enxurrada de ideias e opiniões que os outros têm deles: são doentes,
monstros, desviados! Não, são assim e pronto! Identificam-se assim e não são obrigados a se
sujeitar a um modelo binário-hetero-machista-branco-burguês-cissexista. Para esses autores, ser
transexual não é ser essa classificação que lhes foi dada e que não agrada, pois carrega consigo
preconceito e estigma e leva à exclusão. Ser transexual é querer ser você. É ser normal. É ser
ser humano.
No entanto, a primeira visão teve sucesso em capturar, ao longo da história, as
instituições de poder, pautar sua lógica de mundo binário a elas e garantir a dominação social
sobre essas pessoas. Pudemos evidenciar que, apesar de alguns avanços, o mundo ainda
funciona sob essa lógica e está caminhando a passos lentos para mudar. No Brasil não é
diferente. Como pudemos observar, aqui a política pública mais abrangente para as pessoas
transexuais – o processo transexualizador do SUS – tratam essas pessoas como doentes mentais.
É uma lógica perversa que oferece o tratamento junto com a doença e não trata aqueles que não
53

se consideram doentes, ou seja, aqueles que fogem da lógica que está imposta e opera na
sociedade.
Para começar, me questiono se é preciso chegar a um consenso entre essas visões?
Acredito que não. A política funciona a partir da discussão, do diálogo e, portanto, do dissenso.
Todavia, é preciso entender qual visão é limitadora de direitos e qual é legitimadora dos
mesmos. É preciso entender que essas pessoas podem, eventualmente, requerer ajuda
psicológica – e não por isso serão doentes mentais. Podem, eventualmente, ter vontade de
adequar seu genital ao seu gênero – e tampouco estarão doentes agora. Podem, eventualmente,
querer usar o nome pelo qual se identificam – e mesmo assim não estarão confusos ou loucos.
Para atender a esses desejos, cabe ao Estado ouvir essas pessoas. Alguns avanços em
termos de políticas públicas para transexuais têm sido alcançados e merecem destaque: como a
já citada Portaria 1.707 de 2008 do Ministério da Saúde, que garante às pessoas transexuais que
tenham interesse em tal o direito de realizar a adequação de sexo ao gênero exercido; a Portaria
233 de 2010 que assegura aos servidores públicos do âmbito federal a utilização do nome social
por travestis e transexuais; o Parecer Técnico nº 141 de 2009 do Ministério da Educação que se
manifesta favoravelmente às medidas adotadas por alguns Estados e Municípios de adotar o
nome social nos registros escolares de transexuais; e finalmente, a recentemente aprovada
Portaria 2.803 de 2013 que estende o processo transexualizador aos transexuais FtM.
Entretanto, como dito anteriormente, ainda carecemos de legislação específica e
abrangente para o tema e, enquanto isso, essa população fica aquém de seus direitos e reféns do
Judiciário..
Não obstante, modelos de políticas públicas que sirvam de inspiração não faltam, vide
exemplo da Lei de Identidade de Gênero da Argentina24 ou de Portugal25, as mais avançadas do
mundo segundo organizações internacionais de defesa dos direitos humanos. Estendem direitos
fundamentais à qualquer pessoa às pessoas transexuais: direito à saúde, dando-lhes o tratamento
terapêutico indiscriminadamente a requerentes maiores de idade; direito à dignidade humana,
garantindo-lhes o direito de usar o seu nome social nos registros oficiais. Garantem seus direitos
sem discriminação.

24
ONU parabeniza Argentina por Lei de Identidade de Gênero. Disponível em: http://www.onu.org.br/onu-
parabeniza-argentina-por-lei-de-identidade-de-genero/
25
Lei portuguesa de Identidade de Gênero é reconhecida como exemplo a seguir. Disponível em:
http://www.esquerda.net/artigo/lei-portuguesa-de-identidade-de-g%C3%A9nero-%C3%A9-reconhecida-como-
exemplo-seguir/30164
54

Esses modelos de lei, inclusive, basearam um Projeto de Lei por aqui. O PL de número
5002/201326 apelidado de PL João Nery, de autoria dos deputados Jean Wyllys e Erika Kokay,
foi inspirado nos modelos internacionais supracitados e garante às pessoas transexuais direitos
hoje que lhes são negados ou ficam a mercê da boa vontade do sistema judiciário – fenômeno
comum ultimamente no país, onde há uma crescente judicialização da política ante à
insuficiência do legislativo. A meu ver, a aprovação desse Projeto de Lei é o primeiro grande
passo para a garantia de direitos humanos no Brasil.
Posteriormente, é preciso pensar em políticas públicas que sejam inclusivas também
para os que ainda são invisíveis, como a população non-gender ou gender-less, citadas nesse
trabalho. Países como Alemanha, Austrália e Suécia, por exemplo, já começaram a avançar
nesse sentido, eliminando a obrigatoriedade do gênero de documentos oficiais27 ou criando
termos que sejam gender-neutral28. Essas experiências demonstram que o modelo biomédico
de gênero e a lógica heteronormativa não são mais adequados, não pertencem ao futuro e,
portanto, devem ser superados em breve.

26
Inteiro teor do PL 5002/2013. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=61E8A333AAB19193C3F3864BCB
0A9ADF.node1?codteor=1059446&filename=PL+5002/2013
27
Os casos da Alemanha e Austrália. Disponível em:
http://www.theguardian.com/commentisfree/2013/nov/10/germany-third-gender-birth-certificate ,
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/03/100315_sem_sexo_dg.shtml e
http://noticias.terra.com.br/mundo/oceania/passaporte-australiano-tera-terceira-opcao-de-
genero,09484670c0ada310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html.
28
O caso do gender neutral pronoun na Suécia. Disponível em:
http://www.huffingtonpost.com/2013/04/11/swedish-gender-neutral-pronoun-hen-national-
encyclopedia_n_3063293.html
55

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58

ANEXOS.

ANEXO 1. QUESTIONÁRIO APLICADO ÀS/AOS TRANSEXUAIS

Olá, meu nome é Gabriel, sou estudante de graduação em políticas


públicas pela USP e essa pesquisa está sendo realizada para meu trabalho
de conclusão de curso.

Comecei a fazer esse trabalho para estudar a política de transexualização


do SUS, que faz cirurgias de redesignação sexual desde 2008, mas
quando comecei a trabalhar com essa política eu caí num problema que
era o seguinte: definir o que é a transexualidade. Alguns autores e médicos
diziam uma coisa, outros autores das ciências humanas diziam outra coisa
e nada conversava. Basicamente, eles tratavam da mesma questão a partir
de visões diferentes. Enfim, percebi que o "problema" era mais embaixo e
decidi mudar meu trabalhar para entender o que é a transexualidade, quem
são os transexuais, o que querem e como o Estado responde, se responde
ou não, à el@s e suas demandas.

Portanto, para começar gostaria que você respondesse as seguintes


questões abaixo, de forma a formar um perfil d@s respondentes da
pesquisa. Todas as questões são obrigatórias.

1. Você é:
Mulher transexual (MtF - Male to Female)
Homem transexual (FtM - Female to Male)
Intersexual
Sem gênero definido

2. Qual sua orientação sexual?


Heterossexual
Homossexual
Bissexual
Assexuado
Prefiro não responder
59

3. Qual sua faixa etária?


Até 18 anos
De 18 a 30 anos
De 31 a 59 anos
Acima de 60 anos

4. Qual sua escolaridade / Qual sua profissão?

________________________________________
60

Agora, serão apresentadas questões mais específicas sobre


transexualidade, identidade de gênero e políticas públicas.

Nenhuma questão está marcada como obrigatória, mas se possível


responda todas, pois são todas de extrema importância.

Caso não se sinta a vontade para responder para alguma, escreva “prefiro
não responder”.

5. O que é ser transexual para você? Em poucas palavras, como você


definiria um “conceito” para a transexualidade?

6. Quais as maiores dificuldades que você enfrentou/enfrenta por ser


transexual? Você já teve algum tipo de serviço público negado por ser
transexual? (Se sim, descreva o caso: onde foi, porque, qual tipo de
serviço..)
7. Na sua opinião, qual a perspectiva que a sociedade tem sobre a
transexualidade?

8. Durante minha pesquisa, pude encontrar uma literatura extensa


sobre o assunto, mas basicamente duas formas de pensar diferente a
mesma questão: uma que coloca transexualidade como uma doença,
um transtorno e outra que coloca como uma identidade, ou seja, é
autodeterminada. Qual a importância ou problema de termos diversas
visões sobre a transexualidade?

9. No próximo DSM (Manual de Diagnósticos usado por psiquiatras e


psicólogos do mundo todo) e também no CID o “transtorno de
identidade de gênero – TIG” passa para “disforia de gênero”. Você
acredita que na prática isso mudará algo para a realidade d@s
transexuais?

Diversas organizações LGBT do mundo todo e outras organizações


como o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo são dos
apoiadores da Campanha "Stop Trans Pathologization" que retiraria de
vez esses termos do DSM e do CID. Você conhece o movimento? Qual
a sua opinião?

10. De maneira geral qual a sua visão quanto às políticas públicas


brasileiras para transexuais? O que falta - em termos de políticas
públicas - para ser feito, na sua opinião?
61

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