Você está na página 1de 10

A Epístola aos Romanos – Rev. Heber R.

Bertuci 1

A EPÍSTOLA AOS ROMANOS


Rev. Heber Ramos Bertuci

Assumindo a forma de um tratado teológico, a epístola aos Romanos é a mais longa


e mais significativa, a nível teológico, das cartas do apóstolo Paulo. 1 A importância desta
epístola na História da Igreja é conhecida: ela desempenhou função decisiva na renovação
da fé e da vida Cristã. 2 O reformador João Calvino (1509 – 1564), em sua costumeira hu-
mildade, afirma que receia que um comentário à epistola aos Romanos ou minimize a
grandeza dela, ou a obscureça, ao invés de esclarecê-la: a epístola, segundo ele, se introduz
melhor do que qualquer comentário poderia descrever – aquele que conseguir alcançar
uma genuína compreensão dela, terá aberto uma porta muito ampla de acesso aos mais
profundos tesouros da Escritura Sagrada. 3 A primeira pergunta que surge ao lermos a
epístola é: quem foi o seu autor? A carta afirma ter sido redigida por Paulo, em Romanos
1,1: “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho
de Deus”. Esta afirmação não foi seriamente contestada. 4 A evidência que favorece a con-
clusão de que o apóstolo Paulo foi o autor da epístola aos Romanos pode, inclusive, ser
qualificada como “esmagadora”. 5 Algumas questões foram levantadas contra autoria Pau-
lina: Tércio, identificado em 16,22 (“Eu, Tércio, que escrevi esta epístola, vos saúdo no
Senhor”), por exemplo, apresenta-se como quem escreveu a epístola; porém, na verdade,
este homem foi provavelmente o amanuense (ou escriba) do apóstolo Paulo. Há, também,
a indagação se alguns trechos de Romanos foram escritos por outro indivíduo e incorpo-
rados na carta por Paulo; contudo, não há nenhum tipo de convencimento nessa teoria. 6
Há o argumento de que Lucas, no livro de Atos, não menciona que exista uma Igreja em
Roma, sendo que deste modo Paulo não poderia escrever uma epístola aos Romanos. En-
tretanto, trata-se de um argumento tão absurdo que nem merece comentário adicional. 7
Estas ilações nos permitem afirmar que há poucos estudiosos, hoje, que duvidam que
Paulo é o autor da totalidade de Romanos, com exceção de 16,24-27 (“[A graça de nosso
Senhor Jesus Cristo seja com todos vós. Amém!] Ora, àquele que é poderoso para vos con-
firmar segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do
mistério guardado em silêncio nos tempos eternos, e que, agora, se tornou manifesto e foi
dado a conhecer por meio das Escrituras proféticas, segundo o mandamento do Deus
eterno, para a obediência por fé, entre todas as nações, ao Deus único e sábio seja dada
glória, por meio de Jesus Cristo, pelos séculos dos séculos. Amém!”) e, evidentemente,

1 CARSON; MOO; MORRIS, 1997, p. 267.


2 CRANFIELD, CRo, p. 11.
3 CALVINO, CRo, introdução, p. 23.
4 CARSON; MOO; MORRIS, 1997, p. 269.
5 HENDRIKSEN, CRo., introdução, p. 11.
6 CARSON; MOO; MORRIS, 1997, p. 269; CRANFIELD, CRo, p. 11.
7 HENDRIKSEN, CRo., introdução, p. 11.
A Epístola aos Romanos – Rev. Heber R. Bertuci 2

16,22 (“Eu, Tércio, que escrevi esta epístola, vos saúdo no Senhor”) e outras passagens
curtas que são chamadas de glosas. 8
Observemos alguns testemunhos primitivos que atestam a autoria paulina. 9 O
apóstolo Pedro, em 2 Pedro 3,15-16 escreveu: “e tende por salvação a longanimidade de
nosso Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sa-
bedoria que lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em
todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes
e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria des-
truição deles.” Percebemos que há uma semelhança estreita entre as cartas de Pedro e as
de Paulo. Por exemplo: em Romanos 12,1 (“Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de
Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o
vosso culto racional”) e 1 Pedro 2,5 (“também vós mesmos, como pedras que vivem, sois
edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios
espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo”), temos o tema comum do
“sacrifício aceitável a Deus”; em Romanos 12,2 (“E não vos conformeis com este século,
mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a
boa, agradável e perfeita vontade de Deus”) e 1 Pedro 1,4 (“Como filhos da obediência,
não vos amoldeis às paixões que tínheis anteriormente na vossa ignorância”) temos o
tema comum “não vos conformeis”; em Romanos 12,3 (“Porque, pela graça que me foi
dada, digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém; antes,
pense com moderação, segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um”) e 1 Pedro
4,10 (“Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu, como bons despensei-
ros da multiforme graça de Deus”) temos o tema comum “como Deus concedeu a cada
um”; em Romanos 12,9 (“O amor seja sem hipocrisia. Detestai o mal, apegando-vos ao
bem”) e 1 Pedro 1,22 (“Tendo purificado a vossa alma, pela vossa obediência à verdade,
tendo em vista o amor fraternal não fingido, amai-vos, de coração, uns aos outros arden-
temente”), temos o tema comum “amor sem hipocrisia”; e, em Romanos 12,10 (“Amai-vos
cordialmente uns aos outros com amor fraternal, preferindo-vos em honra uns aos ou-
tros”) e 1 Pedro 2,17 (“Tratai todos com honra, amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei”
temos o tema comum “amor dos irmãos”. 10
Na História da Igreja não faltaram testemunhos da autoria paulina da epístola aos
Romanos. Por exemplo, um grande admirador do apóstolo Paulo foi Clemente (35 – 100),
Bispo de Roma, durante as últimas décadas do primeiro século da Era Cristã: em sua carta
aos Coríntios, ele escreveu: “Retomai a carta do bem-aventurado apóstolo Paulo. O que
vos escreveu ele por primeiro, no início da evangelização? Na verdade, divinamente ins-
pirado, ele enviou a carta para vós a respeito dele mesmo, de Céfas e de Apolo, porque já
se formavam divisões entre vós.” 11 Que Clemente estava familiarizado com outros textos
escritos por Paulo, a saber, Romanos, fica bastante claro à luz das seguintes palavras: “No
entanto, caríssimos, como acontecerá isso? Acontecerá se a nossa mente estiver fielmente

8 CRANFIELD, CRo, p. 11.


9 HENDRIKSEN, CRo., introdução, p. 11 – 14.
10 HENDRIKSEN, CRo., introdução, p. 14.
11 1ECo, 47,1-3.
A Epístola aos Romanos – Rev. Heber R. Bertuci 3

voltada para Deus, se procurarmos aquilo que é aceito por ele e que lhe agrada, se cum-
prirmos aquilo que convém à sua vontade irrepreensível e se seguirmos o caminho da
verdade, afastando de nós toda injustiça e maldade, avareza, rixas, perversidades e enga-
nos, murmurações e maledicências, recusa de Deus, orgulho e jactância, vanglória e inos-
pitalidade. Aqueles que praticam tais coisas são odiados por Deus, “não só os que as pra-
ticam, mas também os que as aprovam.” 12 É interessante conferirmos estas palavras com
Romanos 1,29-32: “cheios de toda injustiça, malícia, avareza e maldade; possuídos de in-
veja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo difamadores, caluniadores, aborre-
cidos de Deus, insolentes, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos
pais, insensatos, pérfidos, sem afeição natural e sem misericórdia. Ora, conhecendo eles a
sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente
as fazem, mas também aprovam os que assim procedem.” Neste caso, Clemente não ape-
nas utiliza muitos termos de Paulo, mas ainda organiza alguns deles na mesma ordem, por
exemplo: “injustiça, impiedade, avareza (ou ‘cobiça’)”. Na conclusão deste pequeno pará-
grafo, é interessante observar que Clemente afirma: “Aqueles que praticam tais coisas são
odiados por Deus, “não só os que as praticam, mas também os que as aprovam.” Compa-
remos com as palavras de Paulo: “não somente as fazem, mas também aprovam os que
assim procedem.”
Inácio (35 – 107), Bispo de Antioquia, enquanto estava a caminho de seu martírio
para a cidade de Roma (início do século II d. C.), escreveu algumas cartas: nelas, o Bispo
de Antioquia demonstrou estar familiarizado com as epístolas de Paulo, tendo-as em
apreço, até mesmo aos Romanos. 13 Observemos algumas semelhanças, todas com a epís-
tola de Inácio aos Efésios. Em Romanos 1,3 (“com respeito a seu Filho, o qual, segundo a
carne, veio da descendência de Davi”) e as seguintes palavras de Inácio: “De fato, o nosso
Deus Jesus Cristo, segundo a economia de Deus, foi levado no seio de Maria, da descen-
dência de Davi e do Espírito Santo. Ele nasceu e foi batizado, para purificar a água na sua
paixão”, 14 temos o seguinte tema unificador: “da semente de Davi”; em Romanos 4,20
(“não duvidou, por incredulidade, da promessa de Deus; mas, pela fé, se fortaleceu, dando
glória a Deus”) e as palavras de Inácio: “Quando eles tiverem seus acessos de ira, sede
mansos; diante de suas manias de grandeza, sede humildes; frente às suas blasfêmias,
oponde vossas orações; diante de seus erros, sede firmes na fé; diante de sua ferocidade,
sede pacíficos, sem procurar imitá-los”, 15 temos o tema unificador: “foi fortalecido na fé”;
em Romanos 8,5.8 (“Porque os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne;
mas os que se inclinam para o Espírito, das coisas do Espírito. Portanto, os que estão na
carne não podem agradar a Deus”) e as afirmações de Inácio: “Os carnais não podem rea-
lizar coisas espirituais, nem os espirituais coisas carnais, da mesma forma que a fé não
pode realizar as coisas da infidelidade, nem a infidelidade as coisas da fé. Até mesmo as
coisas que realizais na carne são espirituais. Fazei tudo em Jesus Cristo”, 16 temos o

12 1ECo, 35,5-6.
13 HENDRIKSEN, CRo., introdução, p. 13.
14 EEf., 18,2.
15 EEf., 10,2.
16 EEf., 18,2.
A Epístola aos Romanos – Rev. Heber R. Bertuci 4

seguinte tema unificador: “pessoas carnais versus pessoas espirituais”; e, em Romanos


6,4: (“Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi
ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novi-
dade de vida”) e a as palavras de Inácio: “Houve admiração. Donde vinha a novidade tão
estranha a eles? Então, toda magia foi destruída, e todo laço de maldade abolido, toda ig-
norância dissipada e todo reino foi arruinado, quando Deus apareceu em forma de ho-
mem, para uma novidade de vida eterna. Aquilo que havia sido decidido por Deus come-
çava a se realizar. Tudo ficou perturbado no momento em que se preparava a destruição
da morte”, 17 temos o seguinte tema unificador “novidade de vida”.
Uma das características dos Pais Apostólicos mais antigos era não citar o nome dos
homens santos de Deus a que se referiam: porém, aqueles que eles citavam (na maior
parte das vezes, livremente), permanece muito claro a identidade. Observemos o exemplo
de Policarpo (69 – 155), Bispo de Esmirna, um valente herói cristão que sofreu o martírio
no ano 155. 18 Em sua Carta aos Filipenses, Inácio demonstra estar bem familiarizado com
as epístolas de Paulo, inclusive aos Romanos. Por exemplo, em uma sentença que recorda
tanto Romanos 10,14.12 (“Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se con-
fessa a respeito da salvação. Pois não há distinção entre judeu e grego, uma vez que o
mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam”) quanto 2 Coríntios
5,10 (“Porque importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo, para
que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo”), ele es-
creve: “Se pedimos ao Senhor que nos perdoe, também nós devemos perdoar, pois esta-
mos sob o olhar do Senhor e Deus, todos devemos comparecer diante do tribunal de
Cristo, e cada um prestará contas de si mesmo.” 19 Em outra passagem desta mesma epís-
tola, Inácio revela que sua mente e coração estavam imersos nos escritos de Paulo: “Ir-
mãos, não é por mim mesmo que vos escrevo essas coisas sobre a justiça, mas porque vós
mesmos o pedistes a mim. De fato, nem eu, nem qualquer outro como eu pode se aproxi-
mar da sabedoria do bem-aventurado e glorioso Paulo. Ele, estando entre vós, falando
pessoalmente aos homens de então, ensinou com exatidão e força a palavra da verdade e
depois de partir, vos escreveu cartas. Se as lerdes atentamente, podereis edificar-vos na
fé que vos foi dada.” 20
É importante considerarmos, também, Marcião (85 – 160), ao abordarmos sobre a
autoria da epístola aos Romanos. Marcião foi influenciado por conceitos dualistas gnósti-
cos. 21 Os primeiros representantes da escola gnóstica não emanciparam-se em seitas iso-
ladas ou desertaram-se da Igreja: iniciaram confrarias dentro de seu próprio campo de
ação. Quem teve a iniciativa, em primeiro lugar, de organizar um corpo distinto foi Mar-
cião: ele não pode ser considerado um gnóstico literalmente – foi alguém reconhecido
porque incorporou alguns conceitos simples da doutrina gnóstica. 22 Marcião acabou não
ganhando a simpatia de muitos Pais da Igreja Antiga, sendo atacado, por exemplo, por

17 EEf., 19,3.
18 HENDRIKSEN, CRo., introdução, p. 12.
19 EFl., 6,2.
20 EFl., 3,1-2.
21 MATOS, 2008, p. 39.
22 WAND, 2004, p. 67.
A Epístola aos Romanos – Rev. Heber R. Bertuci 5

Justino (100 – 165), Irineu de Lion (130 - 202), Hipólito (170 – 236) e Epifânio (320 –
403). 23 Irineu narrou o encontro de Marcião com Policarpo de Esmirna (69 – 155), aquele
que não apenas foi discípulo dos apóstolos, vivendo familiarmente com muitos dos que
tinham visto o Senhor; mas que, pelos próprios apóstolos, fora estabelecido Bispo na
Igreja de Esmirna. Policarpo sempre ensinou o que tinha aprendido dos apóstolos (a men-
sagem que a Igreja transmitiu por entender que é a única verdade): as Igrejas da Ásia,
segundo Irineu, reconhecem que Policarpo foi testemunha da verdade bem mais segura e
digna de confiança. 24 Assim, quando Marcião se encontrou com Policarpo, afirmando
“prazer em conhecê-lo”, este respondeu: “eu te conheço como o primogênito de Satã”. Para
justificar a fala de Policarpo, Irineu explicou: ela indicava a prudência dos apóstolos e dos
seus discípulos em recusar se comunicar, mesmo que apenas com a palavra, com alguém
que deturpasse a verdade, de acordo com o que o apóstolo Paulo afirmou em Tito 3,10-
11: “Evita o homem faccioso, depois de admoestá-lo primeira e segunda vez, pois sabes
que tal pessoa está pervertida, e vive pecando, e por si mesma está condenada.” 25
Marcião nasceu em Sinope, nas costas do Mar Negro, sendo filho do bispo daquela
cidade: ao decidir aventurar-se pelo mar, fez fortuna como comandante de navio mer-
cante. 26 Marcião foi a Roma, em 144, conseguindo vários seguidores – até mesmo alguns
que queriam fazê-lo bispo – 27 ele conquistou o respeito, em Roma, por causa de sua ge-
nerosidade: tinha sido um aplicado aluno de teologia que, ao abandonar a metafísica e a
cosmologia, se voltou para questões práticas de ética e de exegese. Macião foi um erudito
de apenas uma ideia predominante: defendia que a chave de todos os mistérios era en-
contrada na antítese paulina entre a liberdade da graça e a servidão da lei (ele chegou a
escrever um livro denominado Antítese, com o propósito de explicar a incompatibilidade
existente entre o Antigo Testamento e o Evangelho). 28 Marcião estabeleceu um contraste
radical entre os dois Testamentos da Bíblia: 29 ele defendia que este mundo era mau e que
seu Criador devia ser um deus mal ou ignorante. Ao invés de inventar uma gama de seres
espirituais, conforme os gnósticos, Marcião propôs uma teoria muito mais simples: o Deus
do Novo Testamento e Pai de Jesus Cristo não é o mesmo que o Jeová do Antigo Testa-
mento, já que há um Deus supremo (o Pai de Jesus Cristo) e um ser considerado ínfimo
(Jeová), o qual fez este mundo. Não era propósito do Pai que existisse um mundo como
este, com as suas imperfeições: era para existir um mundo puramente espiritual. Contudo,
Jeová, seja por ignorância ou por maldade, criou este mundo, colocando nele a humani-
dade. As implicações dessa tese de Marcião são perigosas: o Antigo Testamento é Palavra
de Deus, porém, não do Deus supremo, mas sim do ser inferior chamado Jeová, um Deus
ciumento e arbitrário, que escolheu um povo acima dos demais e constantemente conferia
a conta de quem o desobedece com o propósito de fazer vingança, já que é um Deus de
Justiça. Muito acima de Jeová está o Deus dos cristãos – ele não requer alguma coisa de

23 WAND, 2004, p. 68.


24 CHe, III, 3,4.
25 CHe, III, 3,4.
26 WAND, 2004, p. 67.
27 GONZÁLEZ, 2003, p. 99, vol. 1.
28 WAND, 2004, p. 67.
29 MATOS, 2008, p. 39.
A Epístola aos Romanos – Rev. Heber R. Bertuci 6

seu povo, mas lhe concede tudo, inclusive a salvação (de graça). Este Deus convida ao
amor dele, não estabelecendo leis: ele se compadeceu de seu povo, criaturas de Jeová, en-
viando seu Filho para salvá-las. Desta forma, Jesus não nasceu de Maria, pois isso teria
feito com que ele fosse súdito de Jeová – Jesus apareceu repentinamente, como homem
maduro, nos tempos do imperador romano Tibério (42 a.C. – 37 d.C.). 30 No sistema de
Marcião, o Antigo Testamento representa o reino deste mundo e a lei, isto é, a retribuição;
o Novo Testamento representa o reino celestial e o Evangelho, ou seja, a graça: os cristãos
nada tem a ver com com a divindade do Antigo Testamento, nem mesmo com a mensagem
desta parte da Escritura – o Deus verdadeiro é caracterizado pelo perdão a todos, sal-
vando toda a humanidade, a partir do princípio de que a salvação é do espírito e não do
corpo. 31 Os ensinos de Marcião contribuíram, com seu estrito literalismo, para substituir
a alegorização do verdadeiro gnosticismo, tendo como resultado uma estreita e imprevi-
dente distinção entre amor e justiça: Marcião diminuiu a pessoa e a obra de Jesus ao afir-
mar que ele é o agente do Deus da bondade – ele não é o Messias, mas veio para destruir
a obra do Demiurgo do Antigo Testamento. Está claro que a concepção que Marcião tinha
acerca de Jesus era docética: Cristo apenas foi uma manifestação do verdadeiro Deus, não
sujeito ao nascimento e à morte – a sua espiritualidade consistia em libertar o corpo dos
desejos da carne por meio de um rígido ascetismo, incluindo o repúdio ao matrimônio. 32
Com relação ao cânon bíblico, é importante destacar que Macião foi o primeiro a elaborar
uma lista de livros para o “Novo Testamento”: 33 foram poucos e selecionados os escritos
dele, visto que a totalidade do Antigo Testamento foi rejeitada juntamente com uma boa
parte do Evangelho de Lucas – este, sem as histórias iniciais, foi considerado o “Evange-
lho”; e as epístolas de Paulo, sem as cartas pastorais, completavam o seu cânon. 34 Não é
difícil entendermos o motivo da escolha de Marcião: sendo o Antigo Testamento, segundo
ele, a palavra de um ser inferior, é claro que não podia ser lido na Igreja, nem ser a base
do ensino cristão. A escolha de Paulo se deu porque Marcião entendia que ele era o único
dentre os apóstolos que havia compreendido a autêntica mensagem de Jesus – os demais
eram “judeus demais” para entendê-la. Aqui surge uma pergunta importante: o que ocorre
com as citações do Antigo Testamento que aparecem nas epístolas paulinas e no Evange-
lho de Lucas? Marcião defendia que tais citações, evidentemente, não eram genuínas : as-
sim, ele chegou à conclusão de que estas citações foram incluídas no texto sagrado por
judaizantes que adulteraram a mensagem de Paulo e de Lucas. 35 É evidente que Marcião
não conheceu o cânon das Escrituras reconhecido pela Igreja. Há de se reconhecer que
foram seus esforços que, provavelmente, orientaram o pensamento da Igreja na formação
de um cânon para si mesma. 36 Com relação à epístola de Paulo aos Romanos, Marcião a
reconhece como uma das fulcrais obras do apóstolo. 37

30 GONZÁLEZ, 2003, p. 99, vol. 1.


31 MATOS, 2008, p. 39 – 40
32 WAND, 2004, p. 67.
33 MATOS, 2008, p. 40
34 WAND, 2004, p. 68.
35 GONZÁLEZ, 2003, p. 100, vol. 1.
36 WAND, 2004, p. 68.
37 HENDRIKSEN, CRo., introdução, p. 12.
A Epístola aos Romanos – Rev. Heber R. Bertuci 7

O já citado Irineu de Lion faz citações diretas da epístola de Paulo aos Romanos. 38
Por exemplo, em Romanos 1,1-4, o apóstolo escreveu:”Paulo, servo de Jesus Cristo, cha-
mado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus, o qual foi por Deus, outrora,
prometido por intermédio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, com respeito a seu
Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi e foi designado Filho de Deus
com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus
Cristo, nosso Senhor”. Irineu, o citando, afirmou: “A mesma coisa afirmou Paulo ao escre-
ver aos romanos: ‘Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado apóstolo, escolhido para o Evan-
gelho de Deus, o qual tinha prometido antes pelos seus profetas nas santas Escrituras,
acerca do seu Filho, que nasceu da posteridade de Davi, segundo a carne, declarado Filho
de Deus, com poder, segundo o seu Espírito de santificação, pela sua ressurreição dentre
os mortos, Jesus Cristo Senhor nosso’.” 39 Em Romanos 9,5, Paulo escreveu: “deles são os
patriarcas, e também deles descende o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus
bendito para todo o sempre. Amém!” Irineu, sobre este texto afirmou: “Na mesma carta
aos Romanos ele diz ainda, a respeito de Israel: …’Dos quais são os patriarcas e dos quais
des-cende o Cristo, segundo a carne, o qual está sobre todas as coisas, Deus bendito por
todos os séculos.” 40 Irineu está defendendo a tese de que não havia duas pessoas em Je-
sus, mas uma só: o mesmo Jesus era o Cristo e vice-versa. Para continuar provando a sua
tese, Irineu cita, novamente a epístola aos Romanos. Paulo escreveu: “Se, pela ofensa de
um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da
graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo” (Ro-
manos 5,17); Irineu citou: “Paulo é do mesmo parecer quando escreve aos romanos:
…’com maior razão os que recebem a abundância da graça e da justiça pela vida, reinarão
por obra do único Jesus Cristo.” 41 Após esta citação, o Bispo de Lion explicou que Paulo
não conheceu um Cristo que tenha “levantado vôo” de Jesus, do mesmo modo que não
conheceu um Salvador do alto, incapaz de sofrer, pois se um sofreu e o outro ficou impas-
sível, se um nasceu e o outro desceu nele e depois o deixou, evidentemente já não se trata
de único indivíduo, porém de dois. 42 Ireneu continua afirmando que, por razão de o Após-
tolo reconhecer um único Jesus Cristo, que nasceu e sofreu, afirma novamente na mesma
carta: “Não sabeis que todos os que fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na
sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos, também nós vivamos vida
nova?” 43 Esta citação encontra-se em Romanos 6,3-4: “ Fomos, pois, sepultados com ele
na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela gló-
ria do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida. Porque, se fomos unidos com
ele na semelhança da sua morte, certamente, o seremos também na semelhança da sua
ressurreição.” Em mais uma citação para provar que o mesmo Cristo que sofreu é o Filho
de Deus que morreu e nos resgatou pelo seu sangue, no tempo preestabelecido, 44 Irineu

38 HENDRIKSEN, CRo., introdução, p. 12.


39 CHe, III, 16,3.
40 CHe, III, 16,3.
41 CHe, III, 16,9.
42 CHe, III, 16,9.
43 CHe, III, 16,9.
44 CHe, III, 16,9.
A Epístola aos Romanos – Rev. Heber R. Bertuci 8

citou o que se encontra em Romanos 5,6.8-10 (“Mas Deus prova o seu próprio amor para
conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo, muito
mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque, se
nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho,
muito mais, estando já reconci-liados, seremos salvos pela sua vida”), com as seguintes
palavras: “Por que motivo, pois, quando nós ainda estávamos enfermos, morreu Cristo
pelos ímpios, no tempo determinado? Deus manifesta a sua caridade para conosco, por-
que, quando ainda éramos pecadores, no tempo oportuno, morreu Cristo por nós. Pois
muito mais agora, que somos justificados pelo seu sangue, seremos salvos da ira por ele
mesmo. Porque se, sendo nós inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu
Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos por sua vida.” 45 Depois, Irineu
cita os seguintes versos de Romanos: “Cristo morreu, mas também ressuscitou, ele que
está sentado à direita de Deus” 46 (no texto bíblico está: “Quem os condenará? É Cristo
Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também
intercede por nós” [Romanos 8,34]); “Sabendo que Cristo, ressuscitado dos mortos, já não
morrerá” 47 (no texto bíblico está: “sabedores de que, havendo Cristo ressuscitado dentre
os mortos, já não morre; a morte já não tem domínio sobre ele” [Romanos 6,9]); e “Se o
Espírito do que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, ele, que ressuscitou Jesus
Cristo dos mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais” 48 (no texto bíblico está:
“Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse
mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo
mortal, por meio do seu Espírito, que em vós habita” [Romanos 8,11]). Em conclusão a
estas citações, Irineu escreve que parece ouvir Paulo gritar aos que querem ouvir: “não
vos enganeis, um e idêntico é Jesus Cristo, o Filho de Deus que pela sua paixão nos recon-
ciliou com Deus, ressuscitou dos mortos, está sentado à direita do Pai e é perfeito em
tudo...”. 49
As citações acima demonstram que Irineu utilizou a epístola aos Romanos para com-
bater uma antiga manifestação de tendências gnósticas em alguns setores do cristianismo
primitivo, denominada “docetismo”, termo oriundo do verbo grego δοκέω, com o sentido
de “parecer”. Os docetistas desprezavam a matéria e negavam que Cristo tivesse um corpo
real, declarando que ele possuia apenas um corpo aparente: esse ensino, ao questionar a
encarnação e a morte de Cristo na cruz, é combatido, de forma evidente, na literatura jo-
anina do Novo Testamento e nas cartas de Inácio de Antioquia. 50 Um dos conhecidos
gnósticos chamava-se Cerinto († 100) – ele viveu em fim do século primeiro, sendo além
de um rígido judaísta, um propagador de teses gnósticas: de acordo com ele, o criador do
mundo não era Deus, mas uma espécie de anjo demiurgo. Jesus era somente um puro ho-
mem, sobre o qual teria descido, no batismo, o Cristo divino, em forma de pomba, a fim de

45 CHe, III, 16,9.


46 CHe, III, 16,9.
47 CHe, III, 16,9.
48 CHe, III, 16,9.
49 CHe, III, 16,9.
50 MATOS, 2008, p. 39.
A Epístola aos Romanos – Rev. Heber R. Bertuci 9

proclamar aos homens o Pai desconhecido e manifestar os milagres; porém, o teria aban-
donado antes da paixão. 51

Gabinete Pastoral, Barra Mansa, 20 de setembro de 2021

ABREVIATURAS E SIGLAS

CRo. – Comentário aos Romanos


1Eco. – 1 Epístola aos Coríntios
EEf. – Epístola aos Efésios
EEf. – Epístola aos Filipenses
CHe. – Contra as Heresias
Vol. – Volume

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIHLMEYER, Karl; TUECHLE, Hermann. História da Igreja. Tradução: Ebion de Lima. São
Paulo: Paulinas, 1963. (v. 1: Antiguidade Cristã).

CALVINO, João. Romanos. Tradução: Valter Graciano Martins. 2. ed. São Paulo: Parakletos,
2001.

CARSON, Donald A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento.
Tradução: Márcio L. Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1997.

CLEMENTE DE ROMA. Primeira Epístola aos Coríntios. In: QUINTA, Manoel (Ed.). Padres
apostólicos. Tradução: Ivo Storniolo / Euclides M. Balancin. São Paulo: Paulus, 2013. p.
23 - 70. (Coleção Patrística, n. 1).

CRANFIELD, Charles E. Burland. Comentário de Romanos. Tradução: Anacleto Alvarez.


2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2009.

GONZÁLEZ, Justo L. E até aos confins da terra: uma história ilustrada do Cristianismo.
Tradução: Key Yuasa. São Paulo: Vida Nova, 2003. (v. 1: A era dos mártires).

HENDRIKSEN, William. Romanos. Tradução: Valter Graciano Martins. São Paulo: Cultura
Cristã, 2001. (Coleção Comentário do Novo Testamento).

51 BIHLMEYER; TUECHLE, 1963, § 28, 2, p. 145, vol. 1.


A Epístola aos Romanos – Rev. Heber R. Bertuci 10

INÁCIO DE ANTIOQUIA. Aos Efésios. In: QUINTA, Manoel (Ed.). Padres apostólicos. Tra-
dução: Ivo Storniolo / Euclides M. Balancin. São Paulo: Paulus, 2013. p. 81 - 89. (Coleção
Patrística, n. 1).

IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias. Tradução: Lourenço Costa. 3. ed. São Paulo: Paulus,
2009. (Coleção Patrística, n. 4).

MATOS, Alderi S. de. Fundamentos da teologia histórica. São Paulo: Mundo Cristão,
2008. (Coleção Teologia Brasileira).

POLICARPO DE ESMIRNA. Segunda Carta aos Filipenses. In: QUINTA, Manoel (Ed.). Pa-
dres apostólicos. Tradução: Ivo Storniolo / Euclides M. Balancin. São Paulo: Paulus, 2013.
p. 139 – 146. (Coleção Patrística, n. 1).

WAND, John W. C. História da Igreja Primitiva (até o ano 500). Tradução: Roberto T.
de Carvalho; Daniel Costa. São Paulo: Custon, 2004.

Você também pode gostar