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CASTRO, Celso (org). Além do Cânone.

Para Ampliar e Diversificar as Ciências


Sociais. Rio de Janeiro, FGV Editora, 2022.

Antes de começarmos a análise das contribuições de Augusto Comte e Harriet


Martineau para a criação da Sociologia. De acordo com o Curso “200 anos de
Sociologia” - Módulo I | Harriet Martineau, com Fernanda Alcântara (UFJF), Martineau
nunca traduziu a obra de Augusto Comte, conforme encontramos na obra organizada
por Celso Castro.
Passando para a fundação da sociologia como ciência, em 1831 e 1832 o jovem
magistrado francês Alexis de Tocqueville, de 25 anos, realizou uma viagem de trabalho
aos Estados Unidos para conhecer o sistema penitenciário daquele país. A viagem durou
pouco mais de nove meses e, no ano seguinte, Tocqueville publicou seu relatório sobre
o tema. A viagem, contudo, rendeu um fruto muito mais importante. A partir dessa
experiência, Tocqueville publicou em 1835 a primeira parte e em 1840 a segunda parte
do livro que seria considerado um dos clássicos das ciências sociais, da ciência política
em particular: “Da democracia na América”.
Em 1839 o professor francês de filosofia Auguste Comte utilizou, na 47ª lição de
seu Curso de Filosofia positiva, a palavra “sociologia” para designar uma nova ciência,
“parte complementar da filosofia natural que se relaciona com o estudo positivo de
todas as leis fundamentais específicas aos fenômenos sociais”. Por esse motivo, Comte
é muitas vezes considerado, na história da sociologia, como seu “fundador”.
Contudo, em 1887, na aula inaugural do curso de ciências sociais na Faculdade
de Letras de Bordeaux (França), Émile Durkheim diria que Comte pouco fez além de
usar a palavra e sugerir o escopo geral da sociologia. Faltaria, ainda, criá-la de fato
como disciplina científica, tarefa a que Durkheim dedicou toda a sua vida. Podemos
tomar a publicação de As regras do método sociológico, em 1895, como um marco na
institucionalização dessa ciência, momento em que Durkheim defendeu que o objeto
específico da sociologia seriam os fatos sociais e que eles deveriam ser tratados como
“coisas”.
Não nego absolutamente que Tocqueville, Comte e Durkheim mereçam o lugar
que ocupam no cânone das ciências sociais. O que acho surpreendente e lamentável é
que Harriet Martineau não esteja junto deles. Ao passo do que apresentaremos a autora
como fundadora da metodologia de realizar a observação das coisas, e como se observa
as realidades sociais de acordo com a classe de fatos as particulares e gerais.
Para os que aleguem que ela não poderia ser chamada clássica, pois o termo se
refere a consensos da academia, lembro que esses consensos são construídos de acordo
com interesses e contingências, não necessariamente considerando-se critérios relativos
à densidade e importância da obra produzida, ou quanto ao alcance e repercussão que
sua obra obteve à época, datando-a e historicizando-a.
Esses consensos ignoram os pressupostos sociológicos e, por essa razão,
precisam ser tomados como objeto de análise e serem decodificados. É uma
impropriedade técnica tentar justificar o fato de Martineau não ser considerada
socióloga por ela não ter citado a física social em seus primeiros escritos, posto que dar
o nome não é um ato constitutivo da existência e de um fazer científico
Complementarmente, parece não haver dúvidas de que Auguste Comte (1798-1857)
nomeou e interpretou, além de ter justificado, a necessidade de uma ciência da
sociedade, mas esse movimento já existia e estava sendo engendrado por intelectuais
como Martineau. Por óbvio, foi Comte quem relatou o processo e o registrou no tempo,
o que mais tarde foi historicizado e reproduzido de modo androcêntrico.
Martineau explicitamente falava sobre a ciência da sociedade como um ramo da
Filosofia, tanto quanto Comte falava da física social, por isso mesmo ela afirmava que
aquela caberia aos filósofos.
Por outro lado, seu legado é inquestionavelmente produto de uma análise das
relações, instituições e do comportamento social, em outras palavras, inegavelmente
produziu Sociologia como a conceitualizamos. Não bastasse todo esse cenário, as aulas
de Sociologia Clássica, geralmente, apresentam Comte como “pai fundador” da
Sociologia enquanto ciência e Émile Durkheim (1858-1917) como primeiro professor,
pesquisador e responsável por institucionalizar a disciplina.
O apagamento, em contrapartida, o fato de a história das Ciências Sociais ser
contada assim não implica que esse pressuposto esteja correto. Afinal, atentando-se para
o critério temporal, importância da obra e conteúdo, Martineau é “mãe fundadora”.
Esquecida, apagada e menosprezada na contemporaneidade, essa pesquisadora
foi, antes de Comte, uma socióloga (uma “viajante filosófica”, nos termos dela), e antes
de Durkheim, uma metodóloga. Contemporânea de Comte, mas só tendo conhecido sua
obra tardiamente, Martineau falou sobre o estudo “das morais e costumes” e a
observação sistemática do comportamento social antes que ele desenvolvesse o que
conceituou como física social e publicou muitas obras importantes antes que Durkheim
nascesse. Por outro lado, Martineau não nomeou a atividade que empreendia de modo
diverso do que era corrente no século XIX, a ciência da sociedade, pois seu foco ou a
questão problema que identificava era que os relatos de viajante deveriam adotar uma
perspectiva crítica e fundamentada, que reconhecia como sendo filosófica Tratou,
entretanto, de separar os tipos de relato em duas categorias: os do “observador
filosófico” e os do “observador não filosófico”. Nos dois casos referiu-se aos
“observadores de homens” e fez referência aos “filósofos morais” em alguns momentos.
Desde a forma de escrever até o conteúdo e a postura com relação ao que observava,
Martineau foi bastante reflexiva e desnaturalizadora, fugindo aos dogmas de toda sorte.

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