Antes de começarmos a análise das contribuições de Augusto Comte e Harriet
Martineau para a criação da Sociologia. De acordo com o Curso “200 anos de Sociologia” - Módulo I | Harriet Martineau, com Fernanda Alcântara (UFJF), Martineau nunca traduziu a obra de Augusto Comte, conforme encontramos na obra organizada por Celso Castro. Passando para a fundação da sociologia como ciência, em 1831 e 1832 o jovem magistrado francês Alexis de Tocqueville, de 25 anos, realizou uma viagem de trabalho aos Estados Unidos para conhecer o sistema penitenciário daquele país. A viagem durou pouco mais de nove meses e, no ano seguinte, Tocqueville publicou seu relatório sobre o tema. A viagem, contudo, rendeu um fruto muito mais importante. A partir dessa experiência, Tocqueville publicou em 1835 a primeira parte e em 1840 a segunda parte do livro que seria considerado um dos clássicos das ciências sociais, da ciência política em particular: “Da democracia na América”. Em 1839 o professor francês de filosofia Auguste Comte utilizou, na 47ª lição de seu Curso de Filosofia positiva, a palavra “sociologia” para designar uma nova ciência, “parte complementar da filosofia natural que se relaciona com o estudo positivo de todas as leis fundamentais específicas aos fenômenos sociais”. Por esse motivo, Comte é muitas vezes considerado, na história da sociologia, como seu “fundador”. Contudo, em 1887, na aula inaugural do curso de ciências sociais na Faculdade de Letras de Bordeaux (França), Émile Durkheim diria que Comte pouco fez além de usar a palavra e sugerir o escopo geral da sociologia. Faltaria, ainda, criá-la de fato como disciplina científica, tarefa a que Durkheim dedicou toda a sua vida. Podemos tomar a publicação de As regras do método sociológico, em 1895, como um marco na institucionalização dessa ciência, momento em que Durkheim defendeu que o objeto específico da sociologia seriam os fatos sociais e que eles deveriam ser tratados como “coisas”. Não nego absolutamente que Tocqueville, Comte e Durkheim mereçam o lugar que ocupam no cânone das ciências sociais. O que acho surpreendente e lamentável é que Harriet Martineau não esteja junto deles. Ao passo do que apresentaremos a autora como fundadora da metodologia de realizar a observação das coisas, e como se observa as realidades sociais de acordo com a classe de fatos as particulares e gerais. Para os que aleguem que ela não poderia ser chamada clássica, pois o termo se refere a consensos da academia, lembro que esses consensos são construídos de acordo com interesses e contingências, não necessariamente considerando-se critérios relativos à densidade e importância da obra produzida, ou quanto ao alcance e repercussão que sua obra obteve à época, datando-a e historicizando-a. Esses consensos ignoram os pressupostos sociológicos e, por essa razão, precisam ser tomados como objeto de análise e serem decodificados. É uma impropriedade técnica tentar justificar o fato de Martineau não ser considerada socióloga por ela não ter citado a física social em seus primeiros escritos, posto que dar o nome não é um ato constitutivo da existência e de um fazer científico Complementarmente, parece não haver dúvidas de que Auguste Comte (1798-1857) nomeou e interpretou, além de ter justificado, a necessidade de uma ciência da sociedade, mas esse movimento já existia e estava sendo engendrado por intelectuais como Martineau. Por óbvio, foi Comte quem relatou o processo e o registrou no tempo, o que mais tarde foi historicizado e reproduzido de modo androcêntrico. Martineau explicitamente falava sobre a ciência da sociedade como um ramo da Filosofia, tanto quanto Comte falava da física social, por isso mesmo ela afirmava que aquela caberia aos filósofos. Por outro lado, seu legado é inquestionavelmente produto de uma análise das relações, instituições e do comportamento social, em outras palavras, inegavelmente produziu Sociologia como a conceitualizamos. Não bastasse todo esse cenário, as aulas de Sociologia Clássica, geralmente, apresentam Comte como “pai fundador” da Sociologia enquanto ciência e Émile Durkheim (1858-1917) como primeiro professor, pesquisador e responsável por institucionalizar a disciplina. O apagamento, em contrapartida, o fato de a história das Ciências Sociais ser contada assim não implica que esse pressuposto esteja correto. Afinal, atentando-se para o critério temporal, importância da obra e conteúdo, Martineau é “mãe fundadora”. Esquecida, apagada e menosprezada na contemporaneidade, essa pesquisadora foi, antes de Comte, uma socióloga (uma “viajante filosófica”, nos termos dela), e antes de Durkheim, uma metodóloga. Contemporânea de Comte, mas só tendo conhecido sua obra tardiamente, Martineau falou sobre o estudo “das morais e costumes” e a observação sistemática do comportamento social antes que ele desenvolvesse o que conceituou como física social e publicou muitas obras importantes antes que Durkheim nascesse. Por outro lado, Martineau não nomeou a atividade que empreendia de modo diverso do que era corrente no século XIX, a ciência da sociedade, pois seu foco ou a questão problema que identificava era que os relatos de viajante deveriam adotar uma perspectiva crítica e fundamentada, que reconhecia como sendo filosófica Tratou, entretanto, de separar os tipos de relato em duas categorias: os do “observador filosófico” e os do “observador não filosófico”. Nos dois casos referiu-se aos “observadores de homens” e fez referência aos “filósofos morais” em alguns momentos. Desde a forma de escrever até o conteúdo e a postura com relação ao que observava, Martineau foi bastante reflexiva e desnaturalizadora, fugindo aos dogmas de toda sorte.