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O mundo da língua – a língua do mundo:

música e linguagem em Schopenhauer 1

Luis Henrique de Souza2

Resumo: Este artigo tem por finalidade analisar o problema entre significante e
significado na filosofia de Arthur Schopenhauer. Tal proposição visa analisar o porquê
de o filósofo, de certa forma, encontrar na música uma linguagem universal e, ao mesmo
tempo, o universal de que ela é linguagem. Ou seja, a música é, ao mesmo tempo,
significante e significado, assunto e meio de expressão, o conteúdo e a escrita. Para tanto,
verifica-se por que Schopenhauer traça os limites da razão por meio da valorização da
experiência intuitiva e da desvalorização da análise conceitual e da mera discursividade
lógica. O conceito, na concepção do filósofo alemão, é mero significante, visto que
não revela a essência das coisas, apenas lhe confere outra forma. Como resultado desse
processo, podemos afiançar o surgimento de um mundo novo, que ganhou nova forma
com a linguagem, ou seja, um mundo da língua. Contudo, o intento deste trabalho é
demonstrar, amparado na filosofia schopenhaueriana, que a essência do mundo só
é perfeitamente transmitida pela música, da qual ela é a expressão mais adequada – a
língua do mundo.

Palavras-chave: Schopenhauer. Significante. Significado. Linguagem e Música.

1
Orientador: Rodrigo Ferreira Daverni. Mestre em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista
(Unesp). Especialista em Crítica Literária pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
Especialista em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa pelo Claretiano – Centro Universitário.
Coordenador dos cursos de Graduação em Letras, Pós-Graduação em Ensino de Português, Literatura
e Redação e Literatura Inglesa e Norte-Americana também do Claretiano – Centro Universitário, onde
também atua como Docente. E-mail: <letrasingles.ead@claretiano.edu.br>.
2
Especialista em Filosofia e Ensino de Filosofia pelo Claretiano – Centro Universitário. Licenciado em
Filosofia pela mesma instituição. E-mail: <luishenriquepe@hotmail.com>.

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1. INTRODUÇÃO

O presente artigo trata de duas questões fundamentais no pensa-


mento do filósofo Arthur Schopenhauer: a linguagem discursiva da razão
e a música.
De certo modo, o discurso racional foi visto pela tradição como o
instrumento capaz de indicar a verdade sobre o mundo, sendo, assim, seu
significante ideal. Os conceitos seriam, nessa perspectiva, os significados
com os quais o discurso deveria trabalhar. Para Schopenhauer, o conceito
busca, no fim das contas, sua verdade em outro lugar, não na abstração,
mas na intuição sensível, no mundo efetivo, ou seja, seu significado está
no mundo, mas nunca lhe corresponde integralmente, apenas vagamente,
e tão vagamente, que o mundo poderia ser outro e, ainda assim, poderia
ser seu significante.
De outro lado, temos a música que, para Schopenhauer, possui duas
características que fazem dela uma linguagem perfeita, pois não precisa
buscar fora dela mesma o seu significado, pois ela mesma é esse significado
e, ainda, ela não necessita de outra forma de linguagem para lhe conferir
ou lhe explicar, ela é completamente compreensível em todo o seu signifi-
cado, ela mesma é seu significante adequado. Resumindo: a música é uma
linguagem perfeita, pois é, ao mesmo tempo, significante e significado.
A metodologia utilizada para a realização deste trabalho é a analíti-
ca. Pensamos que uma linguagem totalmente adequada seria ao mesmo
tempo significante e significado. Utilizando esses conceitos, reinterpre-
tamos a filosofia de Schopenhauer e encontramos na música algo que
corresponde a essa exigência. Verificamos se a linguagem discursiva, que
trabalha com osconceitos, atenderia a essa nossa exigência e concluímos
que, no pensamento de Schopenhauer, isso não seria possível.
Durante toda a História da Filosofia,essa relação entre significante
e significado ocupou o centro das questões, pois, de maneira geral, des-
de Platão, a Filosofia busca tanto uma forma de expressar corretamente
a essência das coisas, quanto uma forma de conhecer essa essência. Pode-
mosencontrar esse problema no período medieval, na famosa querela dos

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universais, que, por sua importância conceitual, tratamos de modo geral.
Em Schopenhauer, a questão entre significante e significado é de suma
importância, pensamos que pode ser até fundamental para compreender
o pensamento do filósofo, ou, pelo menos, tornar-lhe mais acessível.

2. O PROBLEMA DOS UNIVERSAIS – BREVE HISTÓRICO

Historicamente, o problema dos universais atravessa a Filosofia des-


de a divergência fundamental entre as doutrinas de Platão e Aristóteles.
E, se levarmos em conta que a divergência enfrentada pelos pré-socráticos
entre unidade e pluralidade, estabilidade e mutabilidade, pode ser tratada
como o problema do universal, então temos de admitir que ele remon-
ta aos primórdios da História da Filosofia e a atravessa de ponta a ponta
como uma das principais questões, senão como a principal.
No entanto, na Idade Média, a questão foi colocada sob uma nova
perspectiva, mesmo se deixarmos de lado o problema teológico envolvido.
A disputa entre os filósofos medievais tem como ponto de partida a passa-
gem do Isagoge, de Porfírio (Introdução as Categorias de Aristóteles), na
qual a questão foi colocada.

Evitarei opinar, a respeito dos gêneros e das espécies, se são realida-


des subsistentes em si mesmas ou se existem apenas no espírito; e,
admitindo que são subsistentes, se são corpóreos ou incorpóreos e se
estão separados das coisas sensíveis ou incluídos nelas. Na verdade,
trata-se dum problema muito profundo e que exige uma investiga-
ção mais extensa. (PORFÍRIO apud COXITO, 1994, p. 294).

Para os medievais, a questão já está em torno do problema entre


significante e significado. Trata-se de saber quais são os objetos do nosso
pensamento. O conceito, nessa perspectiva, é o significante, pois se refere
ao objeto. O objeto ao qual o conceito se refere é o significado. É preciso,
portanto, saber o que é esse objeto ao qual o conceito se refere.

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O nome “Sócrates” é significante do indivíduo que viveu na Grécia
Antiga, filósofo que foi mestre de Platão. Mas o mesmo nome “Sócra-
tes” pode ser atribuído a outras pessoas, de modo que o significado do
significante, ou nome, é dado apenas pela experiência, ao apontar para o
indivíduo Sócrates.
No entanto, a questão dos nomes particulares não é o problema dos
universais propriamente dito. Este tem como foco, como afirma Porfírio
no trecho supracitado, os gêneros e as espécies. Quando estamos falando
de nomes particulares, facilmente podemos encontrar a coisa significada
por eles, visto que qualquer coisa individual pode ser por eles designada.
Sabe-seque se trata de entes corpóreos e individuais.
Quando nos referimos a gêneros e espécies, não encontramos tais
entes universais na experiência empírica, pois esta apenas apresenta entes
individuais, uma vez que nenhum ser empírico porta o selo da univer-
salidade. Nesse sentido, quando nos referimos à espécie “animal” ou ao
gênero “humano”, não há um único objeto na experiência para o qual eu
possa apontar queseja seu significado perfeito e acabado. Vários indiví-
duos teriam de ser apontados, sendo que nenhum deles será o significado
ideal da espécie ou gênero do qual o conceito é o significante.
É sob essa perspectiva que Platão desenvolveu sua filosofia, visto que
queria encontrar tais entes ideais, a Teoria das Ideias (ou das formas pu-
ras). Para Platão, os entes significados pelos conceitos são entes ideais que
não se encontram na experiência empírica, mas que tem existência real em
um mundo ideal e perfeito, o qual a alma humana já habitou e do qual tem
uma vaga memória. A lembrança dessa vida em comunhão com as ideias é
despertada pela dialética. É o que confirma Gilson (2007, p. 723).

[...] Platão esforçou-se por encontrar no mundo do devir e da mu-


dança os indícios de uma ordem inteligível dotada de ser, no senti-
do próprio do termo. Para chegar a tanto, começou por aplicar o
método dialético de Sócrates, mas, em vez de utilizá-lo para definir
simples conceitos, o fez para extrair do mundo do devir essências
inteligíveis, a que deu o nome de Idéias.

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Na Filosofia Medieval, os filósofos que afirmavam a existência desses
entes ideais, e que acreditavam que os conceitos eram os significantes dos
quais as ideias seriam os significados, eram chamados de realistas extre-
mos. Os conceitos seriam os reveladores dessas entidades ideais, os uni-
versais seriam anteriores às coisas empíricas; em latim se diz “ante rem”.
Aristóteles propõe uma solução diferente da de Platão. No entanto,
teve de manter alguns elementos platônicos em sua filosofia. Para ele, a
única realidade existente, portanto significada, é a realidade empírica de
seres singulares e concretos. A esses seres ele chamava “substâncias primei-
ras”. No entanto, afirma Gilson (2007, p. 727) “[...] nesses indivíduos, o
que mais merece o título de ser, ou de realidade (ousia), é a forma especí-
fica, determinadora da essência”.
A coisa concreta ou substância primeira é o significado e o predicado
ou substâncias egunda é o significante. Por exemplo, “Sócrates” é substân-
cia primeira, enquanto “homem” é substancia segunda. Na frase “Sócrates
é homem”, “homem” é o significante de “Sócrates”, que é significado, e é
sua essência, uma vez que revela aquilo que “Sócrates” é essencialmente.
O universal “homem” está totalmente presente em “Sócrates”, mas não
somente em Sócrates, cabe notar, em latim se diz “in re”, e não em uma re-
alidade supra-sensível. Cabe ao intelecto captar a essência de Sócrates por
abstração e tratá-la separadamente, uma vez que só existe ciência do uni-
versal. Os filósofos medievais que tendiam à solução de Aristóteles eram
chamados realistas moderados.
Neste sentido, Boécio (apud GILSON, 2007, p. 165) resume as pro-
postas de Platão e Aristóteles:

Platão pensa que gêneros, espécies e outros universais não são apenas
conhecidos a parte dos corpos, mas também que existem e subsistem
fora deles, ao passo que Aristóteles pensa que os incorpóreos e os
universais são, de fato, objetos do conhecimento, mas só subsistem
nas coisas sensíveis.

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A posição, que a nosso ver se constitui como uma novidade filo-
sófica na Idade Média é o nominalismo, pois tanto o realismo extremo,
quanto o moderado encontram-se intimamente ligados às hipóteses
já formuladas por Platão e Aristóteles, que terá fortes ecos na Filosofia
Moderna,especialmente em Berkeley. O grande nome dessa novidade fi-
losófica, o nominalismo, sem dúvida foi Guilherme de Ockham, filósofo
inglês pertencente à ordem franciscana. Segundo Gilson (2007, p. 796),
“Guilherme de Ockham é o ponto de chegada filosófico e teológico de
movimentos intimamente ligados à história da lógica medieval desde o
tempo de Abelardo e a crise averroista do século XIII”.
A posição nominalista, principalmente como se encontra na propos-
ta de Ockham, consiste em um radical corte dos problemas de natureza
metafísica que até então dominavam a especulação sobre a natureza dos
universais. Afirma Gilson (2007, p. 799):

Ockham está persuadido, e não talvez sem razão, de que, até ele, nin-
guém chegara a resolver o problema3. Alguns, os realistas, ensinaram
francamente a existência de realidades universais, o que equivaleria
a fazer do próprio universal, uma coisa singular, como acontece com
as Idéias de Platão; outros, ao contrário, sustentaram que o universal
só existe no pensamento, mas, depois de tê-lo afirmado, continua-
ram a procurar o que, na realidade, corresponde a esse universal, que
concebemos no pensamento. Bastou-lhes pouca coisa, mais ainda
era alguma coisa. A posição própria de Ockham consiste em susten-
tar que, por pouco que seja, ainda é demais.

3
O “problema” da natureza dos universais quando o universal aparece em uma
supposittio simplex. Segundo Gilson (2007, p. 801): “Ha três casos de supposittio. Num
primeiro caso, o termo significa a própria palavra que o constitui; exemplo: homem
é uma palavra. Aqui, “homem” faz as vezes da palavra “homem” em sua própria
materialidade; chama-se a essa suposição supposittio materialis. Num segundo caso,
o termo significa indivíduos reais; exemplo: o homem corre. Aqui, não é a palavra
“homem” que corre, mas um homem, uma pessoa; chama-se a essa suposição supposittio
personalis. Num terceiro caso, o homem significa algo comum; exemplo: o homem é
uma espécie. Aqui, “homem” não significa um indivíduo, mas “simplesmente” uma
comunidade; chama-se, pois, a essa suposição supposittio simplex”.

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Podemos tirar a conclusão de que, para o nominalismo, os concei-
tos, significantes das espécies e gêneros, apenas tem existência na mente
humana, isto é, só existem depois das coisas reais, são universais post rem.
Cada uma dessas correntes medievais procurou encontrar nos con-
ceitos as realidades por eles significadas. À medida que as investigações
avançaram, o edifício metafísico, que perdurou por tanto tempo na Fi-
losofia Medieval, que tem suas raízes em Platão e Aristóteles, foi sendo
demolido. Ockham é o ponto culminante dessa investigação sobre os uni-
versais. Segundo Gilson (2007, p. 797):

O estudo de Guilherme de Ockham permite constatar um fato his-


tórico de importância capital e que se costuma desconhecer: o de
que a crítica interna feita contra ela mesma pelo que se chama, com
um termo bastante vago, de filosofia escolástica, provocou sua ruína
bem antes da filosofia moderna ter logrado constituir-se.

A posição de Ockham irá figurar entre as mais fecundas na filosofia


moderna, seus ecos estarão presentes, além de no próprio Schopenhauer,
como pretenderemos demonstrar, em filósofos ingleses como Locke,
Hume e, talvez, principalmente em Berkeley, além de ecoar até mesmo
em Nietzsche.
Se, para Ockham, a universalidade do conceito consiste na represen-
tação das coisas particulares em estado de confusão, para Schopenhauer
(2005b), a universalidade do conceito, como veremos, consiste na “não
determinação do particular”.

3. O MUNDO DA LÍNGUA: CRÍTICA DE SCHOPE-


NHAUER À LINGUAGEM

Schopenhauer é um dos primeiros filósofos a questionar o poder do


pensamento discursivo, isto é, da razão, de possuir um significado em si e,
também, de poder apreender a experiência, ou ser seu significante ideal.

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Nesse sentido, sua crítica à racionalidade é, sobretudo, uma crítica à lin-
guagem.
É importante notar que, para Schopenhauer, a razão e a capacidade
de pensar discursivamente, isto é, o uso lógico da linguagem, são uma e
mesma coisa – o que nos diferedos animais.

Enquanto o animal comunica sua sensação e disposição por meio


de gestos e sons, o homem comunica aos outros o seu pensamen-
to mediante a linguagem, ou os oculta por ela. Linguagem que é o
primeiro produto e instrumento necessário da razão. Por isso, em
grego, e italiano, linguagem e razão são indicadas com a mesma pala-
vra: ό λογος, il discorso. Vernunft, razão, vem de Vernehmen, inteligir,
que não é sinônimo de Hören, ouvir, mas significa a conscientização
de pensamentos comunicados por palavras. (SCHOPENHAUER,
2005b, p. 83).

Cabe aqui notar uma importante contribuição de Schopenhauer


para a Filosofia: ele distingue claramente a razão do entendimento. En-
tendimento é a faculdade de intuir o mundo, isto é, tem como função “[...]
o conhecimento imediato da relação de causa e efeito, a intuição do mun-
do efetivo”. (SCHOPENHAUER, 2005b, p. 85). A razão é a faculdade
de abstrair o mundo em conceitos, ou seja, é a faculdade que compreende
o mundo por meio da linguagem.

Somente com a ajuda da linguagem a razão traz a bom termo suas


mais importantes realizações, como a ação concordante de muitos
indivíduos, a ação planejada de muitos milhares de pessoas, a civi-
lização, o Estado, sem contar a ciência, a manutenção de experiên-
cias anteriores, a visão sumária do que é comum num conceito, a
comunicação da verdade, a propagação do erro, o pensamento e a
ficção, os dogmas e as superstições. (SCHOPENHAUER, 2005b,
p. 83-84).

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A íntima relação que Schopenhauer estabelece entre a linguagem e a
capacidade de pensamento lógico, ou, discurso, precisa ficar clara. O que
Schopenhauer chama de linguagem é a concatenação de pensamentos de
forma lógica, por meio de símbolos linguísticos – as palavras. Assim “[...]
a linguagem, [...] pode ser explicitada por esta única e simples fonte: os
conceitos, // representações abstratas e universais, não individuais, não
intuitivas no tempo e no espaço” (SCHOPENHAUER, 2005b, p. 87).
Schopenhauer diferencia a representação em três níveis: as ideias
platônicas, as representações intuitivas e as representações abstratas. As
ideias platônicas só são apreendidas por uma visão direta em que tempo
e espaço são anulados e o puro sujeito do conhecimento, o gênio, con-
templa o mundo sub specie aeternitat. As representações intuitivas, assim
que o entendimento transforma os dados sensoriais em representações es-
paçotemporais. As representações abstratas, quando a razão emprega seu
poder em decantar as várias representaçõesintuitivas em representações
universais – os conceitos – por meio dos quais torna possível o pensamen-
to in abstracto.
Deixando de lado, por ora, as ideias platônicas, temos de notar
que há uma ligação entre representações intuitivas e abstratas. O mundo
dos conceitos tem seu fundamento no mundo intuitivo – as representa-
ções intuitivas são diluídas em conceitos. Nesse sentido, Schopenhauer.
(SCHOPENHAUER, 2005b, p. 87) afirma:

Embora, pois, os conceitos sejam desde o fundamento diferentes


das representações intuitivas, ainda assim se encontram numa re-
lação necessária com estas, sem as quais nada seriam. Relação que,
por conseguinte, constitui toda a sua essência e existência. A refle-
xão é necessariamente cópia, embora de tipo inteiramente especial,
é repetição do mundo intuitivo primariamente figurado num estofo
completamente heterogêneo. Por isso os conceitos podem ser de-
nominados de maneira bastante apropriada representações de repre-
sentações.

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Daí podemos afirmar que os conceitos são significantes, e que o
seu significado são buscados nas representações intuitivas. “Em verdade,
o mundo todo da reflexão estriba sobre o mundo // intuitivo como seu
fundamento de conhecer” (SCHOPENHAUER, 2005b, p. 88). Entre-
tanto, cabe notar, Schopenhauer está convencido de que o conceito jamais
encontra seu significante ideal em uma representação intuitiva qualquer,
pois a representação intuitiva (espaço temporal) é múltipla e particulari-
zada – os vários objetos particulares da experiência sensível –, enquanto o
conceito é universal e uno. Portanto:

[...] um conceito possui generalidade não porque é abstraído de


muitos objetos, mas ao contrário, justamente porque a generalidade,
ou seja, a não determinação do particular, é essencial ao conceito
como representação abstrata da razão, apenas por isso podem diver-
sas coisas ser pensadas mediante um mesmo conceito. (SCHOPE-
NHAUER, 2005b, p. 89, grifo nosso).

Várias coisas são pensadas em um conceito, o qual nunca se limitará


a significar apenas um objeto particular.
Na Crítica da filosofia kantiana, Schopenhauer deixa clara a sua po-
sição em relação ao poder dos conceitos de serem os significantes adequa-
dos das representações intuitivas, isto é, das coisas empíricas, ou mesmo
que as representações intuitivas sejam o significado adequado dos concei-
tos. Contrapondo-se a Kant, para quem a intuição sem o conceito seria
cega, Schopenhauer afirma que os conceitos não apreendem os fenôme-
nos intuitivos em toda a sua complexidade. Schopenhauer compara o pro-
cesso da passagem de uma representação intuitiva para uma representação
abstrata ao processo de digestão, ou às projeções das sombras dos objetos
reais.

[...] o conhecimento intuitivo ao ser acolhido na reflexão, sofre qua-


se tanta modificação quanto os alimentos ao serem assimilados no
organismo animal, cujas formas e misturas são por ele mesmo de-
terminadas e não se reconhece mais na nova composição a antiga

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constituição do alimento; [...] a reflexão de maneira alguma se rela-
ciona com o conhecimento intuitivo como o espelho d’água com os
objetos refletidos, mas, quando muito, como as sombras desses ob-
jetos com eles mesmos, sombras estas que tão somente reproduzem
contornos externos e une o mais diversona mesma figura, expondo o
mais variado mediante o mesmo contorno, de maneira que, partin-
do deste, // impossível construir segura e completamente as figuras
das coisas. (SCHOPENHAUER, 2005a, p. 568-569).

Como afirma Cacciola (1982), Schopenhauer diferencia-se de Kant


justamente no ponto em que não admite a preponderância do racional
frente ao intuitivo e, nesse sentido, afirma:

Schopenhauer marca a independência do mundo intuitivo com


referência ao racional: no mundo animal o conhecimento intuiti-
vo existe totalmente sem razão e, além disso, o conceito abstrato,
enquanto forma da razão, não se refere necessariamente ao mundo
intuitivo, podendo adaptar-se a ele, mesmo que fosse um outro.
(CACCIOLA, 1982, p. 92).

Podemos estabelecer neste ponto, ou seja, a independência do in-


tuitivo em relação ao racional e, de certa forma, alguma independência
do racional sobre o intuitivo, o primeiro aspecto relevante da análise de
Schopenhauer sobre a linguagem (o discurso racional). Com isso, seguin-
do a nossa análise sobre a relação entre significante e significado, fica claro
que, para Schopenhauer, o conceito não é o significante ideal das coisas
empíricas, ou da intuição. O ponto que corrobora para essa nossa con-
clusão é que, para Schopenhauer, os conceitos não apreendem os entes
particulares em toda a sua complexidade e singularidade, e esta é a carac-
terística principal dos conceitos: “a não determinação do particular”.
Se, de alguma forma, fôssemos incluir Schopenhauer na tradição
medieval da querela dos universais, poderíamos dizer que ele se encon-
tra muito próximo do nominalismo de Ockham. Assim como Ockham,
Schopenhauer admite uma distância entre o conceito e as coisas particula-

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res, com a diferença de que, para Ockham, o conceito pode, na medida em
que se conhece o particular, ser substituído por seu representante preciso,
o nome particular, o qual seria o significante adequado das coisas empíri-
cas significadas.
Ockham ainda pensa no conhecimento como adequação entre o dis-
curso e a intuição empírica, mas sua “navalha” faz que o conhecimento
rigoroso gire em torno apenas de nomes particulares, sendo os conceitos
apenas significantes de coisas confusas. O que Schopenhauer marca é uma
diferença substancial entre o mundo da reflexão e o da intuição. Nesse
sentido, Schopenhauer (2005a, p. 565) afirma:

A totalidade do conhecimento reflexivo, ou a razão, possui apenas


uma forma capital, e esta é o conceito abstrato, peculiar à razãomes-
ma, sem conexão direta com o mundo intuitivo que, por isso, existe
para os animais inteiramente sem o conhecimento reflexivo e, mes-
mo que este mundo fosse totalmente outro, a forma da reflexão não
deixaria de se adaptar bem a ele.

É preciso notar que Schopenhauer admite um conhecimento racio-


nal, ou seja, um uso legítimo para o discurso lógico, no âmbito da lin-
guagem e sem sair de seu domínio. Daí que, quando estamos no âmbito
da linguagem, isto é, das representações abstratas e, sem sair dele, não é
necessário forçar a passagem para o âmbito das representações intuitivas.

O sentido do discurso é imediatamente intelectualizado, concebido


e determinado de maneira precisa, sem que, via de regra, fantasmas
se imiscuam. É a razão que fala para a razão, sem sair de seu domínio,
e o que ela comunica e recebe são conceitos abstratos, representa-
ções não intuitivas [...]. Apenas em casos particulares passamos dos
conceitos à intuição, formando fantasmas como intuitivos REPRE-
SENTANTES DOS CONCEITOS, os quais, todavia, nunca são
adequados. (SCHOPENHAUER, 2005b, p. 87).

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Afirmando a independência do intuitivo em relação ao abstrato,
Schopenhauer afirma que “Durante o tempo em que nos mantemos intuin-
do de modo puro, tudo é firme, claro, certo. Inexistem perguntas, dúvidas,
erros. [...] A intuição se basta a si mesma.” (SCHOPENHAUER2005b,
p. 81, grifo nosso). A crítica de Schopenhauer ao conhecimento abstrato
é a de que, para ele, o discurso não é superior ao conhecimento intuitivo
e, também, não é capaz de revelar a essência das coisas como foi pensado
pela tradição. Por isso, afirma:

[...] junto com o conhecimento abstrato, com a razão, dúvida e erro


entram em cena no domínio teórico, cuidado e remorso no práti-
co. Se na representação intuitiva a ILUSÃO distorce por momen-
tos a realidade4, na representação abstrata o ERRO pode imperar
por séculos, impondo seu julgo férreo a povos inteiros, sufocando as
mais nobres disposições, e, mesmo quem não é por ele enganado, é
acorrentado por seus escravos ludibriados. (SCHOPENHAUER,
2005b, p. 81).

Schopenhauer critica Kant e, com ele, toda a tradição filosófica, por


não ter delimitado precisamente a essência da razão – os conceitos. “É
notável que até agora nenhum filósofo remeteu de maneira rigorosa todas
aquelas variadas exteriorizações da razão a uma única e exclusiva função”
(idem, p. 85). Função que nada mais é do que a comunicação de pensa-
mentos abstratos por meio da linguagem. Erro que teria trazido consequ-
ências maléficas ao pensamento filosófico posterior5.

4
Pense-se no argumento de Descartes da ilusão dos sentidos (Ver, Meditações concernentes à Primeira
Filosofia,Primeira Meditação).
5
“Quem quiser, nesse sentido, dar-se ao trabalho de percorrer a massa de escritos filosóficos que foram
publicadosdesde Kant, reconhecerá que, assim como as falhas do príncipe são expiadas pelo povo inteiro,
os erros dos grandesespíritos espalham sua influência nefasta por gerações inteiras, às vezes por séculos, sim,
aumentando eproliferando, por fim, degenerando em monstruosidades. Daí se conclui que, nos termos
de Berkeley: Few men think, yet all with have opinions” (Conf. Schopenhauer em O mundo como vontade
e como representação, Livro I). Aseguir, veremos como essa conclusão se aplica também a Platão. Platão e
Kant são os dois filósofos mais estimadospor Schopenhauer, mas não é por lhes dedicar tamanha admiração
que se abdica do direito de criticá-los. Kant, por não ter delimitado a natureza da razão, Platão, por ter
confundido a natureza do conceito com a da ideia.

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Isso fez com que amiúde a confusão entre as representações abstratas
da razão e as representações intuitivas (do entendimento) cada vez mais
permitissem o erro da valorização excessiva da razão em detrimento da in-
tuição. Nesse sentido, cabe notar o comentário de Barboza (2005, p. 132),

Quanto mais se avança no pensamento abstrato, mais se perde. Os


conceitos mais universais da filosofia, nesse sentido, são os que me-
nos dizem, como os conceitos de SER, ESSÊNCIA, COISA, DE-
VIR, INFINITO, FINITO, SUBSTÂNCIA. Segue-se que as filo-
sofias a se servirem insistentemente de tais termos são as mais vazias.
Sobretudo no hegelianismo Schopenhauer identifica semelhante
defeito. Cabe endereçar a elas, pois, a crítica estilística mais cortante.

Como primeiro ponto de nossa análise sobre a linguagem em Scho-


penhauer, concluímos que ele, ao proceder uma diferenciação substancial
entre as representações intuitivas e as representações abstratas, proíbe que
se pense uma relação de revelação dos conceitos sobre as coisas particula-
res. A razão “[...] não amplia propriamente dizendo o nosso conhecer, mas
meramente lhe concerne outra forma” (SCHOPENHAUER, 2005b, p.
102).
Concluímos, portanto, que se a razão, por meio da linguagem, confe-
re uma nova forma às representações intuitivas, os conceitos não explicam
o mundo intuitivo, não são significantes adequados para o intuitivo, e que
esse mundo intuitivo, apesar de ser o único fundamento de seu reflexo (o
mundo abstrato), também já não pode mais ser considerado o significado
perfeito do novo mundo de representações abstratas que apareceram na
consciência do homem, sendo ainda o seu limite.
No entanto, cabe perguntar: se as coisas particulares não são os sig-
nificados adequados dos conceitos, não poderiam ser as ideias platônicas
o significado adequado do qual os conceitos seriam os significantes ade-
quados, como pensou Platão?
Eis o grande erro de Platão. Segundo Schopenhauer, ele se equivo-
cou quando pensou que o conceito seria o significante da ideia, ou seja,

  92 Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013


que ele poderia nos levar a concebê-la ecompreendê-la, assim como errou
quando pensou que poderia haver ideias de artefatos e, principalmente,
por ter depreciado a arte.
No entanto, cabe notar que, para Schopenhauer (2003, p. 176), até
podemos afirmar que a ideia pode ser definida como o “representante ade-
quado do conceito”, ou seja, o significado adequado, e que sua intuição
pode auxiliar a reflexão filosófica, mas, ao contrário, os conceitos jamais
poderão nos encaminhar para a apreensão das essências propriamente di-
tas, pois não são seus significantes adequados. Disso resulta que os concei-
tos são infrutíferos para a intuição das ideias, assim como são infrutíferos
para a arte e a Ética.
Antes de pontuar a crítica de Schopenhauer sobre o poder da lin-
guagem de ser o significante adequado da ideia, façamos um breve pa-
rêntese em nossa exposição a fim de compreendermos melhor a forma
como Schopenhauer compreende as ideias. O primeiro ponto a ser con-
siderado é que Schopenhauer vai aparentar as doutrinas de Platão e Kant
(2005b). Para Platão (SCHOPENHAUER, 2003, p. 237), “[...] as coi-
sas desse mundo percebidas pelos nossos sentidos não têm nenhum ser
verdadeiro. ELAS SEMPRE VEM A SER, MAS NUNCA SÃO”. Para
Kant(SCHOPENHAUER, 2003, p. 237), como nosso conhecimento é
condicionado por tempo, espaço e causalidade, “[...] a experiência inteira
é apenas conhecimento do fenômeno, não da coisa-em-si”.
Vimos que, para Schopenhauer, a relação significante/significado
entre as representações abstratas (conceitos) e as representações intuitivas
(fenômenos) nunca é adequada. Perguntamos então se não seria adequada
a relação entre conceitos e ideias, assim como teria pensado Platão. Cabe
notar que Kant havia proibido o acesso à coisa-em-si. Como afirma Bar-
boza (2005, p. 134), “A linguagem, em Kant, cabe apenas ao fenômeno e
aí encontra o limite de sua significação”. Neste sentido, para que pudés-
semos ter acesso às ideias, ou seja, para termos acesso ao significado últi-
mo das coisas, para termos acesso às coisas como elas são em si mesmas,
seria preciso uma nova forma de conhecer. Como afirma o próprio Kant
(1987, p. 46), na Crítica da razão pura,

Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013   93


Se abstrairmos do nosso modo de intuirmos inteiramente a nós
mesmos e de mediante tal intuição abarcarmos todas essas nossas in-
tuições externas na capacidade de representação, tomando assim os
objetos como possam ser em si mesmos, então o tempo não é nada.
Schopenhauer parte justamente do ponto em que Kant supunha que
seria possível conhecer as coisas em si mesmas, ou seja, a diluição do tem-
po para que pudéssemos contemplar as coisas sub specie aternitat.

O tempo é meramente a visão esparsa e fragmentada que um ser in-


dividual tem das Idéias, as quais estão fora do tempo, portanto são
ETERNAS. Por isso Platão diz que o tempo é a imagem móvel da
eternidade: (αιωνος εικων κινητη ό χρνος). (SCHOPENHAUER,
2005b, p. 243).

As doutrinas de Platão e Kant são aparentadas, mas não totalmente


identificadas. Segundo Schopenhauer, Kant teria se equivocado ao não
eliminar também da coisa-em-si a qualidade de ser-objeto. Já a “Idéia
platônica, ao contrário, é necessariamente objeto, algo conhecido, uma
representação e justamente por isso, e apenas por isso, difere da coisa-em-
-si” (SCHOPENHAUER, 2005b, p. 242). Para Schopenhauer, a única
forma de apreender as ideias platônicas é a contemplação desinteressada,
ou a contemplação estética: a arte. “E uma maneira germânica de falar ple-
na de sentido a de que nos perdemos por completo num objeto, ou seja,
perdemos justamente o próprio indivíduo, a própria vontade” (SCHO-
PENHAUER, 2003, p. 46). Trata-se da faculdade de gênio que consiste,
justamente, na capacidade de contemplar as coisas independentemente de
qualquer finalidade subjetiva, independentemente de qualquer interesse
– conceber as coisas do ponto de vista da eternidade, isto é, fora do tempo.
Unindo Platão e Kant, Schopenhauer (2003, p. 46) propõe que a
contemplação desinteressada da arte, de que Kant trata em sua Crítica da
Faculdade de Julgar, tem como objeto a Ideia de Platão.

Se, portanto, em tal concepção, o objeto aparece isento de toda re-


lação com algo exterior a ele, e o sujeito isento de toda relação com

  94 Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013


a vontade individual, então o que é concebido não é mais a coisa
isolada, mas a Idéia, a forma eterna, a objetidade imediata da Vonta-
de nesse grau; e justamente por aí, ao mesmo tempo, quem concebe
nessa intuição não é mais o indivíduo (pois este se perdeu na intui-
ção), mas o atemporal e puro sujeito do conhecimento destituído de
Vontade e de sofrimento – essa é precisamente a concepção estética.

Daí que a apreensão das ideias não se pode dar por meio do discurso,
da linguagem, como pensou Platão. O contrário acontece com o conceito
que é perfeitamente comunicável, “[...] alcançável e apreensível por qual-
quer um que possua razão, comunicável por palavras sem ulterior inter-
mediação, esgotável por inteiro em sua definição” (SCHOPENHAUER,
2003, p. 75-76). A ideia, por sua vez, é “[...] apenas condicionalmente co-
municável; pois a Idéia apreendida pelo artista e repetida em sua obra só
pode dizer algo a alguém de acordo com o seu próprio valor intelectual”
(SCHOPENHAUER, 2003, p. 76).
Essa análise da linguagem permite encontrar os limites que a ela são
impostos pelo filósofo de Danzig tanto em relação aos fenômenos como
em relação às Ideias. Schopenhauer parte de Kant e de certa forma radica-
liza a proposta kantiana que exige que os conceitos se refiram ao mundo
intuitivo. Essa radicalização permite ao filósofo uma valorização das re-
presentações intuitivas e uma desvalorização das representações abstratas.
A linguagem permite apenas pensar, não intuir. A intuição é a única fonte
de apreensão de um significado. A intuição fenomênica se dá pelo enten-
dimento e a intuição da Ideia, pelo modo de consideração desinteressada
– o gênio. Os conceitos abstratos da razão não nos permitem apreender
a experiência, nem mesmo as Ideias. Portanto, o conceito é significante,
tanto do mundo fenomênico, quanto das Ideias, mas nunca substitui fe-
nômeno e Ideia a ponto de lhes tomar o significado. São universais post
rem.

Dessa nossa análise, resta uma questão. Mostramos como o discurso


tem um limite, pois não pode substituir o mundo como significado, ape-

Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013   95


nas como significante. Mas será que poderia existir uma forma de discurso
que poderia substituir o mundo não só como significante, mas, também,
como significado? A nosso ver a resposta de Schopenhauer é sim – a mú-
sica.

4. A LÍNGUA DO MUNDO: A SUBSTITUIÇÃO DO MUN-


DO PELA MÚSICA

Vimos, em toda a nossa análise sobre a linguagem, que o discurso é


um significante cujo significado é o mundo, mas que a atividade discursi-
va nunca pode substituir a intuição efetiva do mundo, ou seja, nunca lhe
pode substituir como significado. Esse ponto nevrálgico do pensamento
de Schopenhauer permite reavaliar o papel do discurso na decifração do
enigma do mundo. Não é no discurso que se deve buscar a chave para
decifrar o mundo, mas o próprio mundo deve ser a escrita desse enigma.
A música, na filosofia de Schopenhauer, goza de um statusque lhe
permite substituir o mundo, pois, de certa forma, possui até mais realida-
de que o mundo, pois ela expressa em seus tons a mesma essência cuja ma-
nifestação é o mundo, só que de maneira imediata (sem a intermediação
das ideias platônicas). Mas como isso é possível?
Dissemos que para Schopenhauer a apreensão das ideias se dá pelo
modo de consideração desinteressada das artes, pela faculdade do gênio.
Faltou-nos abordar as ideias na perspectiva de cada uma das artes. As
ideias são, na filosofia de Schopenhauer, os diferentes graus deobjetivação
da Vontade (coisa-em-si), antes de ser individualizada no tempo e no es-
paço como fenômenos. Segundo Rosa Maria Dias (2010, p. 115):

A arquitetura corresponde ao grau mais baixo da objetidade da von-


tade, porque trata “das qualidades mais gerais da pedra: a gravidade,
coesão, resistência e dureza”. A hidráulica artística oferece a intuição
da essência da água. Depois vem o arranjo dos jardins e as pinturas
de paisagem. Em seguida, a pintura dos animais visto que ela expõe

  96 Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013


um grau de objetivação da vontade mais elevado que a pintura de
paisagens e, por fim, as artes que expõem, sobretudo, a idéia de hu-
manidade. No topo dessa hierarquia está a poesia – ela revela mais
claramente a verdade do mundo, pois seu objeto é a idéia mais per-
feita da vontade, a idéia de homem. Ela comunica a verdade univer-
sal da vida humana. [...] Shakespeare não tirou seus personagens da
observação dos dramas e dos mais variados caracteres humanos, mas
de sua intuição genial da idéia de homem.

Desse ponto de vista, a música ficou de fora da exposição das belas


artes. Ela não visa a nenhum dos graus de objetivação do querer, nenhuma
das ideias. Cada uma das artes expõe um desses graus. Cabe notar que as
ideias ainda são representações, isto é, são objetos, mas totalmente indi-
visas com o sujeito que as representa, não se sabe onde termina o sujeito e
onde começa a ideia, ambos são pressupostos em sua concepção.
Afirma Dias (2010, p. 118), que “[...] enquanto as outras artes imi-
tam as ‘ideias platônicas’, os níveis de objetivação da vontade, a música
reporta-se diretamente à vontade, dispensando suas objetivações”. Daí
que, por se encontrar por inteiro separada das outras artes, pois todas as
artesobjetivam a Vontade de forma mediata, ou seja, por meio das ideias,
a música objetiva a Vontade mesma, o em-si do mundo, o seu significado,
analogamente como o fazem as próprias ideias platônicas.

Ora, como o nosso mundo nada é senão o fenômeno das Idéias na


pluralidade, por meio de sua entrada no principium individuationis
(a forma de conhecimentopossível ao individuo enquanto tal), se-
gue-se que a música, visto que ultrapassa as Idéias e também é com-
pletamente independente do mundo fenomênico, ignorando-o por
inteiro, poderia em certa medida existir ainda que não houvesse
mundo– algo que não pode ser dito acerca das demais artes. [...] A
música, portanto, de modo algum é semelhante às outras artes, ou
seja, cópia de Idéias, mas COPIA DAVONTADE MESMA, cuja
objetidade também são as Idéias. [...] Ora, já que é a mesma Von-
tade que se objetiva tanto nas Idéias quanto na música, embora

Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013   97


demaneira bem diferente, deve haver entre música e Idéias não uma
semelhança imediata, mas um paralelismo, uma analogia, cujo fe-
nômeno na pluralidade e imperfeição é o mundo visível. (SCHO-
PENHUAER, 2005b, p. 339, grifo nosso).

A Vontade objetiva-se imediatamente em graus de objetivação nos


quais Schopenhauer reconhece as ideias platônicas; no entanto, analoga-
mente reconhece essa mesma objetivação da Vontade na música, o que
merece uma abordagem mais precisa.
Os graus de objetivação da Vontade são: a matéria inorgânica, cuja
exposição da ideia cabeà arquitetura e à hidráulica artística; o mundo or-
gânico, ou vegetal, cuja exposição da ideia cabe à pintura de paisagens e à
jardinagem; o mundo animal, cuja exposição cabe à pintura e à escultura
de animais e, por fim, a vida humana, a ideia de humanidade, cuja ex-
posição cabe à pintura e escultura históricas e, principalmente, à poesia,
cuja tragédia exprime mais belamente, pois, “[...] para Schopenhauer [...]
a tragédia nos proporciona o conhecimento de que o mundo é vontade
irracional, de que a vida é dolorosa e absurda e [...] nos encaminha para
uma decisão ética: renunciar em última instancia a toda vontade de viver”
(DIAS, 2010, p. 116). Mas como esses graus de objetivação da Vontade
estão presentes na música?
Vimos que o grau mais baixo de objetivação da Vontade, exposto
pela arquitetura, é a natureza inorgânica, o mundo mineral. Na música,
esse grau de objetivação da Vontade é expresso pelos tons mais graves. “Os
tons mais graves da harmonia, o baixo contínuo, são na música aquilo que
no mundo fenomênico são os graus mais baixos de objetidade da Vonta-
de – a natureza inorgânica, a massa do planeta” (SCHOPENHAUER,
2003, p. 230). A jardinagem e a pintura de paisagem têm como objetivo
expor a idéia ou grau de objetidade da Vontade, que representam o mundo
orgânico, o reino vegetal. Seguidas da pintura e escultura de animais que-
visam expor o reino animal.

  98 Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013


[...] as vozes intermediárias que produzem toda a harmonia e se si-
tuam entre o baixo contínuo e a voz condutora que canta a melodia
são, na música, o que é no mundo intuitivo a sequência dos graus
de Idéias nas quais a Vontade se objetiva. As vozes mais próximas
do baixo correspondem aos graus mais baixos, ou seja, os corpos
ainda inorgânicos, porém já se exteriorizando de diversas maneiras.
As vozes mais elevadas, por sua vez, representam os reinos vegetal e
animal. (SCHOPENHAUER, 2003, p. 231).

A voz condutora da melodia expõe a ideia de humanidade, assim


como o fazem a pintura e a escultura históricas e a poesia, que expõem a
ideia de humanidade da maneira mais perfeita. Como afirma Rosa Maria
Dias, “[...] das quatro vozes, o baixo, o tenor e o contralto correspondem
aos reinos mineral, vegetal e animal, e o soprano, ao homem” (2010, p.
119).
A analogia de Schopenhauer entre a música e as ideias platônicas fica
mais clara conforme ele expõe a relação das vozes entre si, e entre os graus
de objetidade da Vontade entre si. A melodia representa todas as relações
entre os graus de objetidade da Vontade, desde a falta de sentido em que
se encontra o mundo irracional, “do cristal até o animal mais perfeito”, até
o ponto em que o mundo se torna um todo concatenado, no homem que
“[...] vê sempre adiante e retrospectivamente no caminho de sua realida-
de possibilidades incontáveis e, assim, traz a bom termo, com clareza de
consciência, um de curso de vida” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 232).
Neste sentido, Schopenhauer vê na melodia o desenvolvimento da
vida, desde sua forma maissimples, o inorgânico, até que atinge o seu pon-
to mais elevado, o homem que conferesentido à sua existência.

Correspondendo a isso, somente a melodia tem conexão plena de


sentido e deintenção, do começo ao fim. Ela narra, por conseqüên-
cia, a história da Vontade iluminada pela clareza de consciência, cuja
impressão na realidade é a série dos seus atos; mas a melodia diz
mais: narra a história mais secreta da Vontade, pinta cada agitação,
cada esforço, cada movimento seu, tudo o que a razão resume sob o

Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013   99


vasto e negativo conceito de sentimento, que não pode ser acolhido
em suas abstrações. Por isso sempre se disse que a música é a lingua-
gem do sentimento e da paixão, assim como as palavras são a lingua-
gem da razão. (SCHOPENHAUER, 2003, p. 232).

Para Schopenhauer, o núcleo metafísico do mundo é a Vontade. Nós


a conhecemos imediatamente pela experiência interna de nosso próprio
corpo em sua manifestação como dor e prazer. E é com esse núcleo me-
tafísico que a música se equipara, é dele que a música é manifestação. O
mundo e a música são manifestações desse mesmo núcleo metafísico que
é a Vontade. Ambos falam da mesma coisa, mas a exprimem de forma di-
ferente. Nesse sentido, cabe notar o que Schopenhauer afirma:

O mundo fenomênico, ou natureza, e a música devem ser vistos


como duas expressões distintas da mesma coisa. Tal mesma coisa,
a Vontade, é, por conseguinte, a única analogia que intermedeia os
dois, o tertium comparationis, cujo conhecimento é exigido para se
reconhecer a analogia (SCHOPENHAUER, 2003, p. 234).

Como primeiro aspecto importante de nossa reflexão sobre a músi-


ca em Schopenhauer, podemos, então, concluir que, como para Schope-
nhauer a música objetiva a Vontade de maneira análoga às Ideias e ainda
mais profundamente que as ideias, pois ela é manifestação do próprio
núcleo, da Vontade, ela pode, diferentemente da linguagem, substituir o
mundo como significado. Poderíamos aqui continuar a fazer as mais sofis-
ticadas analogias para justificar essa nossa afirmação de que a música subs-
titui o mundo, a natureza, o fenômeno, mas a bela passagem da Metafísica
do belo nos parece suficientemente clara para o nosso objetivo.

Todos os esforços possíveis, estímulos, exteriorizações da Vontade,


todas as ocorrências no interior do homem, são exprimíveis me-
diante o número infinito daspossíveis melodias, porém sempre na
universalidade da mera forma sem matéria, sempre apenas segundo
o Em-si, não o fenômeno, por assim dizer a alma mais interior dessas

  100 Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013


ocorrências, sem o corpo. A música, como já disse, diferencia-se de-
todas as outras artes por não ser uma cópia do fenômeno, ou, mais
exatamente, da objetidade adequada da Vontade, mas por ser uma
cópia imediata da Vontade. Em consequência, poder-se-ia denomi-
nar o mundo tanto música corporificada quanto Vontade corporifi-
cada. Daí se compreende o fato de a música realçar em cada pintura,
sim, em cada cena da vida efetiva e do mundo, o aparecimento de
uma significação mais elevada, e tanto mais quanto mais análoga é
sua melodia ao espírito íntimo do fenômeno dado. A música com-
bina com tudo, em todas as exposições. Nada lhe pode ser estranho,
pois exprime a essência das coisas. Caso soe uma música que com-
bine com alguma cena da vida humana ou natureza destituída de
conhecimento, ou com alguma ação, acontecimento, ambiente, ou
alguma imagem – então ela revela o sentido secreto dessa cena e seu
comentário mais correto e claro. (SCHOPENHAUER, 2003, p.
235).

Essa passagem evidencia a concepção da metafísica da música de


Schopenhauer. Quando ouvimos uma melodia, ela como que nos revela
um sentido imediato do significado do mundo. Daí que, em nossa expo-
sição do problema entre significante e significado, a música revela o signi-
ficado e o mundo, que, do ponto de vista da linguagem, como tentamos
demonstrar anteriormente, era entendido como significado, desse novo
ponto de vista deve ser compreendido como seu significante. Daí que a
música “[...] tem de estar para o mundo como a exposição para o exposto,
a cópia para o modelo” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 228). Nesse sen-
tido, afirma Schopenhauer (2003, p. 235), “Para nos expressarmos popu-
larmente, poderíamos dizer: a música em seu todo é a melodia da qual o
mundo é o texto”.
Essa inversão de significante e significado, permite a Schopenhauer
reavaliar a famosa expressão de Leibniz sobre a música. Leibniz afirmou
que a música era um exercitium arithimethicae occultum nescientis se nu-
merae animi. (SCHOPENHAUER, 2003).

Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013   101


Schopenhauer atenta para que, no sentido em que Leibniz interpre-
tou a música, teria apenas observado seu sinal, o “[...] exterior da música,
em verdade, sua casca” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 228). Do ponto
de vista schopenhaueriano, “[...] a música expressa algo inteiramente dife-
rente de meras relações numéricas; ela tem outra significação ainda muito
mais séria e profunda” (SCHOPENHAUER, 2003, p. 228).
Sobre a analogia e a inversão schopenhaueriana que passa o mundo
para significante e a música para significado, contrariando toda a tradição
filosófica, inversão essa que distingue a música de todas as outras artes,
que permite que ela não necessite de nenhuma relação mediada pelo mun-
do ou pelas ideias para existir, inversão que permite, por meio da música,
acessarmos o mais íntimo da existência em sua plenitude e liberdade me-
tafísica sem fazer a experiência da dor, cabe, ainda, notar o que nos diz
Pernin (1995, p. 127):

Schopenhauer não hesita em arriscar a afirmação seguinte: a músi-


ca poderia existir, mesmo que o mundo não existisse. Para compre-
endê-lo, é necessário distinguir a Vontade do mundo, que é a sua
manifestação, manifestação na qual a Vontade perde a sua liberdade
metafísica para se afundar na necessidade. A música volta além do
drama metafísico do dilaceramento pelo qual o Uno primordial ar-
rancou o Ser ao nada, pelo preço da pluralidade. A música nos salva,
reconduzindo-nos à origem, para a presença perdida, oculta atrás da
escrita do mundo, que supõe uma ausência.

Daí que, por meio da inversão entre significante e significado, a mú-


sica não deve mais ser entendida como mero significante, mas, também,
e principalmente, como significado, pois é manifestação mais imediata
da Vontade do que o próprio mundo. Portanto, podemos afirmar que a
música é, como significado, anterior ao mundo, isto é, ante rem.
Como já foi dito antes, a música guarda com as ideias platônicas uma
relação analógica: ambas expressam a Vontade de maneira imediata. Do
que foi dito, Lefranc estabelece o paralelo preciso entre a universalidade
das ideias platônicas e a música, quando separa duas afirmações de Scho-

  102 Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013


penhauer em que o filósofo se serve da linguagem escolástica. Na primei-
ra, sobre as ideias platônicas, Schopenhauer (apud LEFRANC, 2007, p.
213) afirma: “É neste sentido (mas em nenhum outro) que se poderia usar
a linguagem escolástica e chamar as Idéias de universalia ante rem, e os
conceitos de universalia post rem: entre os dois se situam as coisas singu-
lares, dasquais o animal também tem conhecimento”. Na segunda, sobre
a música, Schopenhauer (apud LEFRANC,2007, p. 213) afirma: “Seria
muito bem possível caracterizar esta relação utilizando a linguagem dos
escolásticos. Dir-se-ia, então, que os conceitos abstratos são os universa-
liapost rem, que a música revela os universalia ante rem, e que a realidade
fornece os universalia in re”.
Para compreendermos essa inversão e valorização da música empre-
endida por Schopenhauer, falta ainda esclarecer outro aspecto. Dissemos
anteriormente que a música, para Schopenhauer, não deveria ser enten-
dida apenas como significante, mas, também, como significado. No en-
tanto, apenas demonstramos “como” e “porque” ela poderia substituir o
mundo como significado, nada dissemos sobre ela também ser significan-
te, ou seja, nada sobre a música como linguagem.
Se a música puder substituir o mundo como significado e também a
linguagem como significante, seremos forçados a creditar à música mui-
to mais do que ser uma simples arte mimética, muito mais do que uma
simples exteriorização de meros sons, seremos forçados a admitir que o
mundo, assim como música expressam a mesma coisa, mas a música tem
vantagem sobre o mundo por ser a expressão direta daquilo que expressa.
Vimos que, para Schopenhauer,o mundo seria em relação à música
seu significante, e é nesse sentido que podemos compreendê-lo quando
diz que a música nos dá os universalia anterem, ou seja, os universais antes
da coisa, antes do mundo. O mundo poderia chamar-se encarnação da
música assim como da Vontade. Mas a música ainda tem algo mais, ela não
precisa do mundo, não necessita de uma explicação, ela mesma se explica
com a clareza com que fala ao mais íntimo do nosso ser. Nesse sentido,

Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013   103


Schopenhauer (2005b, p. 336) afirma que a música “[...] é uma arte tão
elevada e majestosa, faz efeito tão poderosamente sobre o mais íntimo do
homem, é aí tão inteira e profundamente compreendida por ele, como se
fora uma linguagem universal”.
Eis que, para Schopenhauer, a música guarda com o mundo a igual-
dade de ser ela também manifestação da Vontade, só que, por essa mani-
festação da Vontade na música ser imediata, ela possui mais realidade do
que o mundo, e com a linguagem ela guarda o poder de transmitir o ses-
tados do mais íntimo núcleo do mundo, ela nos comunica da forma mais
clara possível o próprio núcleo metafísico deste mundo, ela fala a língua
do ser. Somos felicitados por poder participar dessa arte benfazeja, ela nos
proporciona “[...] a alegria interior com a qual o mais fundode nosso ser é
trazido a linguagem” (SCHOPENHAUER, 2005b, p. 337).
Já havíamos utilizado uma passagem da Metafísica do belo, na qual
Schopenhauer diz quea música, quando combinada a um acontecimento,
revela seu sentido interior, pois ela exprime a Vontade da qual o mundo é
a expressão inadequada, para demonstrar que a música coincide como sig-
nificado; nessa mesma passagem, Schopenhauer evidencia a característica
de significante que a música possui, ao afirmar que a música é o “[...] co-
mentário mais correto e distinto”6 (SCHOPENHAUER, 2003, p.345).
A música fala do núcleo metafísico do mundo de forma imediata,
ela esclarece o enigmado mundo. Falar essa linguagem, ou seja, transmitir
a mensagem do núcleo do mundo é a própria tarefa do gênio. Conforme
nos diz Schopenhauer (2003, p. 342),

A invenção da melodia, a revelação nela de todos os mistérios mais


profundos do querer e sentir humanos, é a obra do gênio, cuja atu-
ação aqui, mais do que em qualquer outra atividade, se dá longe de

6
O texto da obra Metafísica do belo praticamente repete as passagens do Terceiro Livro de O Mundo como
vontade como representação. Algumas passagens apenas foram simplificadas pelo filósofo a fim de tornar
o texto pedagogicamente mais adequado para as preleções que deu aos poucos alunos que se atreveram a
frequentar suas aulas na Universidade de Berlim. A referência à obra Metafísica do belo é, também, referência
ao Terceiro Livro deO mundo como vontade e como representação e vice-versa.

  104 Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 79-108, junho, 2013


qualquer reflexão e intencionalidade consciente, e poderia chamar-
-se uma inspiração. [...] O compositor manifesta a essência mais ínti-
ma do mundo, expressa a sabedoria mais profunda, numa linguagem
não compreensível por sua razão: como um sonâmbulo magnético7
fornece informações sobre coisas das quais desperto não tem con-
ceito algum. Por conseguinte, no compositor, mais do que em qual-
quer outro criador, o homem é completamente separado e distinto
do artista.

De forma inconsciente e por inspiração, o gênio ouve a mensagem


que brota do núcleo mais profundo do homem e do mundo, assim como,
também, inconscientemente ele a transmite por meio de sua obra. A Filo-
sofia tem como tarefa traduzir em conceitos abstratos da razão aquilo que
a música é, assim como tem a missão de trazer para tais conceitos abstratos
aquilo que o próprio mundo é, pois a música e o mundo são manifestações
distintas da mesma coisa – a Vontade. Mas a música exprime esse signifi-
cado, da qual ela mesma é manifestação, ela se diz por si mesma.

Se em toda essa exposição da música esforcei-me por tornar claro


que ela, numa linguagem altamente universal, num estofo único, a
saber, simples tons, expressa com grande precisão e verdade a essên-
cia íntima, o Em-si do mundo, o qual, segundo sua exteriorização
mais distinta, pensamos sob o conceito de Vontade; se ademais,
conforme minha visão e intento, a filosofia nada é senão a correta
e plena repetição e expressão da essência do mundo em conceitos
os mais universais, pois somente nestes é possível um panorama
amplo e aplicável de toda aquela essência; então, ia dizer, quem me
seguiu e penetrou no meu modo de pensar, não achará paradoxal
se disser, supondo-se que tenhamos sucesso em dar uma explicação
perfeitamente correta, exata e detalhada da música, portanto uma
repetição em conceitos daquilo que ela exprime, que isso seria de
imediato uma suficiente repetição e explanação do mundo em con-
ceitos, ou algo inteiramente equivalente, portanto seria a verdadeira
7
Conf. Barboza N.T. 45 (MVR), “Magnetismo animal” era na época de Schopenhauer, o nome da hipnose,
e“sonâmbulo magnético” o da pessoa hipnotizada.

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filosofia. Conseguintemente, no sentido de nossa visão mais elevada
da música, podemos parodiar a // expressão de Leibniz [...] (que de
um ponto de vista inferior é totalmente correta), e dizer: Musica est
exercitium metaphysices nescientis se philosophari animi8. (SCHO-
PENHAUER, 2003, p. 346-347).

A música é uma forma de linguagem, assim como o mundo. Isso


equivale a dizer que o mundo ora é considerado significado (no caso da
relação com o discurso ou linguagem) ora é significante (como na relação
com a música ou com a Vontade). O mesmo pode ser dito em relação à
música, mas de forma muito mais profunda: ela é manifestação imedia-
ta da Vontade, ou seja, é sua manifestação mais perfeita; deve, portanto,
ser entendida como significado, mas é também expressão imediata dessa
mesma Vontade, que nos comunica seus estados imediatos e, portanto, é
seu significante mais perfeito. A música é a língua da Vontade, portanto,
a língua do Mundo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A filosofia de Arthur Schopenhauer tem cada vez mais despertado


o interesse dos estudiosos da Filosofia. Vários aspectos de sua obra são
fecundos em vários campos da especulação filosófica. Neste artigo, procu-
ramos trabalhar os temas da música e da linguagema fim de buscar na obra
do filósofo de Danzig uma forma de linguagem capaz de falar a língua
do próprio ser, isto é, a língua da Vontade. Pensamos, hipoteticamente,
que uma linguagem perfeita portaria conjuntamente em si mesmaseu sig-
nificante e seu significado. Aplicando essa hipótese, podemos constatar
que a linguagem é apenas significante, que ela procura seu significado em
outra realidade – o mundo intuitivo. No entanto, quando exigimos da
música, como ela foi entendida por Schopenhauer, atender a essas duas

8
Conforme Barboza, N.T. 47 (SCHOPENHAUER, 2005b), “Música é um exercício oculto de metafísica
no qual a mente não sabe que está filosofando”.

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exigências, ou seja, ser significante e significado ao mesmo tempo, ela o
fez plenamente. Portanto, é mister admitir que a música, na concepção
schopenhaueriana,é, não só um tipo de linguagem, mas é também o con-
teúdo dessa linguagem, pois ela é manifestação da Vontade. Ela comunica
aquilo que ela mesma é, ou seja, a Vontade, a essência do mundo. Fala des-
sa essência de maneira plena de sentido, é ao mesmo tempo significante e
significado – o mundo da língua e a língua do mundo.

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Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

Title: The world of language – the language of the world: music and language in
Schopenhauer.
Authour: Luis Henrique de Souza.

ABSTRACT: This article aims to analyze the problem between signifier and signified
in the philosophy of Arthur Schopenhauer. This proposal aims to analyze because of
the philosopher, somehow, find music in a universal language and at the same time,
the universal that it is the language. That is, the music is at the same time signifier
and signified, subject and medium of expression, content and writing. Therefore, it
appears that Schopenhauer outlines the limits of reason through the valuing of intuitive
experience and the devaluation of the mere conceptual analysis and logical discourse.
The concept, in the conception of the German philosopher, is mere signifier, seeing that
not reveal the essence of things, to giving it otherwise.As a result of this process, we can
bailing the emergence of a new world, which gained new way with language, a world
language.However, the intent of this work is to demonstrate, supported Schopenhauer’s
philosophy, the essence of the world is only perfectly transmitted by the music, of which
it is the most adequate expression – the language of the world.
Keywords: Schopenhauer. Signifier. Language and Music.

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