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Izabel Magalhães

André Ricardo Martins


Viviane de Melo Resende

ANALISE
DE DISCURSO
I

CRITICA
Um método de
pesquisa qualitativa

EDITORA EDITORA

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UnB ~~~rlmliiUil l i ~
9 788523 0 119 5 6
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UnB
Conheça outros títulos
da Editora Universidade
de Brasília
DISCURSO E MUDANÇA SOCIAL
Norman Fairclough

LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO


NA UNIVERSIDADE
I
Viviane de Melo Resende e
Viviane Vieira

LINGUÍSTICA E ENSINO DE
ANALISE
LÍNGUAS
Lucia Lobato DE DISCURSO I

NAS INSTÂNCIAS DO DISCURSO:


UMA PERMEABILIDADE
DE FRONTEIRAS
CRITICA
Denize Elena Garcia da Silva (Org.)

PRÁTICAS DE LEITURA
PRODUTIVA: TEXTOS E <)Jev~ ~cv~~~J '
CONTEXTOS (SOCIEDADE,
ENSINO E ARTE NA
CONTEMPORANEIDADE) (_ 'GYv- ).Ã.h- '~ <t>' ,
Robson Coei h o Tinoco
c~·~
A TRADUÇÃO NA SALA DE AULA :
ENSAIOS DE TEORIA E PRÁTICA
DE TRADUÇÃO ~~ tvQ.;,2~ Jb f11
Alice Maria de Araújo Ferreira.
Germana Henriques Pereira de Sousa
e Sabine Gorovitz (Org.)

O FALAR CANDANGO:
ANÁLISE SOCIOLINGUÍSTICA
DOS PROCESSOS DE DIFUSÃO E
FOCALIZAÇÃO DIALETAIS
Stella Maris F. R. Bortoni
Víviane de Melo Resende

Reitora
Vice~Reitor
I:S:Ej Universidade de Brasília
Márcia Abrahão Moura
Enrique Huelva
Á ISE
DE DISCURSO
,
I I
EDITORA

B
UnB
Diretora Germana Henriques Pereira

Conselho editorial Germana Henriques Pereira


Um método de
Fernando César Lima Leite pesquisa qualitativa
Estevão Chaves de Rezende Martins
Beatriz Vargas Ramos Gonçalves de Rezende
Jorge Madeira Nogueira
Lourdes Maria Bandeira
Carlos José Souza de Alvarenga
Sérgio Antônio Andrade de Freitas
Verônica Moreira Amado
Rita de Cássia de Almeida Castro
Rafael Sanzio Araújo dos Anjos

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Equipe editorial

Gerente de produção editorial Percio Sávio Romualdo da Silva


Preparação e revisão Denise Pimenta de Oliveira e Talita Guimarães Sales Ribeiro
Diagramação Mar in a Dourado Lustosa Cunha
Capa Wladimir de Andrade Oliveira

Copyright © 2017 by Editora Universidade de Brasil ia

Direitos exclusivos para esta edição:


Introdução 9
Editora Universidade de Brasília
SCS, quadra 2, bloco C, n° 78, edifício OK, PARTE1
zo andar, CEP 70302-907, Brasília, DF
Um método de pesquisa qualitativa para a crítica social 13
Telefone: (61) 3035-4200
Fax: (61) 3035-4230
CAPÍTULO 1
Sile: www.editora.unb.br
E-mail: contatoeditora@unb.br
Pesquisa qualitativa, crítica social e Análise de
Discurso Crítica 15
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta Introdução 15
publicação poderá ser armazenada ou reproduzida por 1 Análise de discurso e crítica social 21
qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.
A Linguística Sistémico-Funcional (LSF) 25
A Linguística Crítica (LC) 25
A Análise de Discurso Crítica 27
2 Pesquisa qualitativa e crítica social 29
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília
Considerações finais 34

Ml88 Magalhães, Izabel


CAPÍTULO 2
Análise de discurso crítica: um método de pesquisa qualitativa I ADC - teoria e método na luta social 37
lzabel Magalhães, André Ricardo J'vlartins, Viviane de Melo Resende.
- Bmsília: Editora Universidade de Brasília, 2017. Introdução 37
260 p.; 21 em. 1 O arcabouço teórico da ADC 39
Discurso 39
Inclui bibliografia. 1t
TSBN 97R-85-230-Il95-6 Interdiscursividade e intertextualidade 41 $
Textos, práticas discursivas e práticas sociais 42 I
"'~
1. Discurso. 2. Análise do discurso. 3. Pesquisa qualitativa - Poder e ideologia 43
Método. 4. Pesquisa social I. Título. li. Martins, André Ricardo. lii.
2 O lugar do discurso na modernidade posterior 47 I
~'
Resende, Viviane de Melo.
3 O papel do discurso na mudança social 52
CDU 001.891 4 Alguns aspectos práticos 56 ~
~
Considerações finais 59 I!
Impresso no Brasil d
~
UI

Iil
d:
CAPÍTULO 3 CAPÍTULO 6
Textos e seus efeitos sociais como foco para a crítica social 61 Etnografia c Análise de Discurso Crítica 151
Introdução 61 Introdução 151
1 Linguagem e sociedade 62 1 Em busca da coerência entre ontologia e
2 Jornalismo e sociedade: as reportagens do jornal epistemologia 152
Correio Brazi!iense 65 2 Mais um pouco de reflexão interdisciplinar 156
3 O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de 3 Como construir um planejamento de pesquisa
Rua e o Projeto GirAção 77 articulando ADC e etnografia 158
O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua 78 Considerações finais 163
O projeto GirAção 80
4 Do efeito social dos textos: projeto GirAção e PARTE3 ;'j·li.

políticas públicas 83 Um método de análise textual 165 _:!


'
Considerações finais 90
CAPÍTULO 7 11
ADC e minorias - representação e peso político na
PARTE2
esfera pública 167
Análise de Discurso Ct·itica e etnografia 93 Introdução 167
CAPÍTULO 4 1 A democracia como alicerce básico 169
Análise de Discurso Crítica e etnografia- uma relação 2 Minorias e esfera pública 173
complementar 95 3 ADC e minorias, diálogo e possibilidades 176
Introdução 95 4 Um estudo de caso 182
1 Alguns exemplos 99 Considerações finais 19 5
2 Contexto social 106
CAPÍTULO 8
3 A metodologia etnográfico-discursiva 116 Análise de Discurso Crítica: conceitos-chave para uma
Considerações finais 123 crítica explanatória com base no discurso 197
CAPÍTULO 5 Introdução 197
Mudança social- prática e discurso 125 1 Um mapa ontológico da organização social do
Introdução 125 potencial semiótico 198
1 Modernidade tardia e mudança social 127 2 Nem tudo é discurso- por uma reflexão conceitual
2 Da prática social 132 emADC 203
3 Da prática discursiva 137 3 Gênero, discurso e texto: um exemplo 205
4 Prática social e discurso 142 Considerações finais 211
5 A busca por mudança social 146
Considerações finais 149
CAPÍTULO 9
Identidades e discursos de gênero 213
Introdução 213
1 Discurso e intertextualidade 216
2 Práticas socioculturais, letramentos e identidades 226
Considerações finais 231

Conclusão 233

Referências 237 Este livro é uma contribuição para o debate da Análise de


Discurso Crítica (doravante ADC) e volta-se para as questões
Sobre os autm·es 257 metodológicas. De certa forma, é uma continuação de reflexões
anteriores já publicadas. Não é, portanto, uma introdução à ADC.
Para leitores ou leitoras que não estejam familiarizados com a abor-
dagem, recomendamos a leitura da obra de Resende e Ramalho
(2006) 1 Também não vamos apresentar aqui conceitos já discuti-
dos nas obras citadas; trataremos, principalmente, da ADC como
método de pesquisa qualitativa e de sua relação transdisciplinar
com a etnografia. O livro dirige-se a pesquisadores, profissionais
e estudantes que tenham interesse em percorrer os meandros dos
estudos do discurso como forma de prática social, engajando-se
com os métodos, que não se devem reduzir à analise textual.
A ADC relaciona conhecimento teórico e metodológico e
vem formando pesquisadores e profissionais (por exemplo, do
ensino) em vários centros de estudo no país. Mas, embora muitas
teses de doutorado e dissertações de mestrado tenham adotado a
ADC como teoria e método, ainda há demanda por publicações.
Há que se considerar, contudo, três números especiais de perió-
dicos dedicados ao assunto: Cadernos de Linguagem e Sociedade,
v.12, n. 2,organizado por Resende e Ramalho (2011); DE. L. T.A.,

1 Para reflexôcs sobre a ADC, também recomendamos os livros de Rama! h o c Resende


(2011), Martins (2011), Resende c Pereira (2010) e Rios (2009).
lZA8H MAGALHAES, ANDR~: n. MARTINS E 1/l\flA_Nl-:: DF: h1. J~ESENDE ANÁLISE DE DISCURSO CHiTJCA

v. 21, de Magalhães e Rajagopalan (2005); e Linguagem em (Di,) quer nacional; mas, no contexto brasileiro, precisamos mencionar
cur.I"O, v. 4, com organização de Caldas-Coulthard e Figueiredo os trabalhos de Dias (2011) e Resende (2008) 2 Esses estudos
(2004). Destacamos, também, que o periódico Cadernos de Lin- adotam a ADC e seu método de análise textual em relação com-
guagem e Sociedade é, desde sua fundação por Izabel Magalhães plementar com a pesquisa de caráter etnográfico. O que os une,
(1995a), uma publicação direcionada à divulgação de estudos de além da abordagem, é a motivação para investigar problemas
ADC. A obra de Caldas-Coulthard (1997), escrita em inglês, relacionados às desigualdades sociais, como sugerem van Dijk
é a primeira publicada no Brasil, seguida dos livros de Izabel (2008), Wodak (2009), e Fairclough (2010).
Magalhães (2000) e Célia Magalhães (2001). Certamente, no contexto internacional da ADC, é preciso
A ADC é, na atualidade, um campo de estudo reconhecido reconhecer esses trabalhos que se consolidaram ao longo dos
internacionalmente, porém, isso não significa que não tenha pro- anos. Porém, dentre eles, a abordagem de Wodak é a única
blemas. Uma das críticas refere-se ao reducionismo de algumas que contempla a relação transdisciplinar entre discurso e pes-
análises, com generalizações baseadas em poucos exemplos, um quisa etnográfica, principalmente na obra assinada por ela e
ponto debatido por Blommaert (2005). Este livro volta-se para a Krzyzanowski (2008), Qualitaticue discourse analysis in the social
pesquisa sistemática do discurso, pois, para evitar generalizações, sciences, especialmente o capítulo 9.
!-:
precisamos analisar, além dos textos, as práticas de que eles são Este livro apresenta três partes, cada uma com três capí- !
parte. A análise das práticas, que são de natureza social, demanda tulos: Parte 1 -Um método de pesquisa qualitativa para a crí- i
pesquisa de campo, conforme defendem Viviane Resende (2009) tica social; Parte 2 - Análise de discurso crítica e etnografia; I'
e Izabel Magalhães (2000, 2006). e Parte 3- Um método de análise. Esperamos que este esforço
De modo geral, as publicações na área de Análise de Discurso possa fomentar reflexões epistemológicas e metodológicas que
são teóricas ou estudos de contextos específicos, mas raramente julgamos necessárias ao campo.
estendem -se a reflexões metodológicas. Assim, este livro é uma
tentativa de preenchimento de uma lacuna. Uma iniciativa seme-
lhante foi a de lniguez (2004), dirigida às Ciências Sociais. A ADC
pode incluir ou não a adoção de métodos etnográficos. Um exemplo
de pesquisa qualitativa do discurso que não adota métodos etna-
gráficos é o de Fairclough (2000a), sobre o discurso político de
Tony Blair. Entretanto, pensamos que o estudo do discurso como
forma de prática social e cultural exige o contato regular por um
determinado tempo com o local e o contexto pesquisado. É nesse
sentido que defendemos a pesquisa etnográfica do discurso.
Portanto, este livro explora uma perspectiva de estudo do
discurso ainda pouco desenvolvida, quer em âmbito internacional, 2 As teses estão disponíveis no site <www.unb.br>. Acesso em: 30 dez. 2014.

10 11
CAPÍTULO 1
PESQUISA QUALITATIVA, CRÍTICA SOCIAL
E ANALISE DE DISCU RSO CRÍTICA

Introdução

Em artigo a respeito do projeto de lei Aldo Rebelo, apre-


sentado ao Congresso Nacional em 1999, que propõe defender
a língua portuguesa de estrangeirismos, Rajagopalan refere- se
ao "relativo isolamento politico" de estudiosos da linguagem no
Brasil (RAJAGOPALAN, 2004, p. 26). Para o autor:

O único modo pelo qual nós, linguistas, podemos


contribuir para os temas práticos que envolvam
a linguagem é adotar um olhar crítico diante de
nossa própria prática. Nunca é tarde demais para
começar a fazer um exame de consciência e pergun-
tar a nós mesmos se, por atos ou omissão, não nos
desviamos da responsabilidade de ver a linguagem
como um fenômeno social, com todas as impli-
cações políticas e ideológicas que daí decorrem.
(RAJAGOPALAN, 2004, p. 35).

É fato que, na polêmica que se registrou sobre o referido


projeto de lei, como nota o autor, foi tímida e, até certo ponto,
inadequada a participação de linguistas no debate. Não se pode
deixar de reconhecer que a própria formação obtida no curso de
Letras contribui para isso. Não é demais lembrar que Saussure
lZABEL M/\GALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS E VIVIANF DE M. RFSFNDE ANÁLJSE DE DISCURSO CRiTICA

(1916) definiu a língua como um sistema de natureza social: o conhecimento local é desconsiderado devido à barreira existente
"ela é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, entre práticas teóricas e práticas sociais.
por si só, não pode nem criá -la, nem modificá -la; ela não existe Entretanto, as práticas sociais são interligadas em redes às
senão em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre práticas teóricas, de tal forma que "discursos teóricos funcionam
os membros da comunidade" (SAUSSURE, 1972 [1916], p. 22). ideologicamente numa prática", ou o processo de apropriação de
Porém, a tradição de estudos inaugurada por Saussure, e ainda discursos de outras práticas não teóricas é mediado teoricamente 1
forte nos diversos cursos de Letras do país, é direcionada ao (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999,p.27). Esse funcio-
sistema gramatical e suas estruturas. Na defesa da Linguística, namento ideológico das práticas teóricas é subjacente à divisão
argumenta-se que as pesquisas são realizadas por entre teoria e prática. "Ideologias são construções de uma prática
relacionadas à dominação que são determinadas por relações dis-
pessoas que analisam a língua de acordo com teorias cursivas específicas entre a prática e outras" (CHOULIARAKI;
científicas consistentes, com base em coleta de dados FAIRCLOUGH, 1999, p. 27). Um exemplo dado pelos autores
da língua realmente utilizada pelos brasileiros [sic], é a construção discursiva das práticas educacionais contemporâ-
coleta feita segundo metodologias rigorosas, diversas neas em termos de outras práticas, principalmente econômicas.
vezes testadas e aprovadas. (BAGNO, 2000, p. 55). Considerando esse ponto, justifica -se a preocupação de
Rajagopalan (2004), pois há certamente motivos para a questão:
A despeito dessas observações, é possível notar um grande será que, em nossa atuação acadêmica, não haveria atos ou omis-
esforço de questionamento das práticas teóricas. Como diz Moita sões em relação aos problemas sociais do nosso tempo? A reflexão
Lopes, "É preciso que aqueles que vivem as práticas sociais sejam poderá ter como resultado a adoção de uma conduta crítica pelo
chamados a opinar sobre os resultados de nossas pesquisas, como menos na definição de questões de investigação.
também a identificar nossas questões de pesquisa como sendo Uma abordagem teórico-metodológica para o estudo des-
válidas de seus pontos de vista" (MOITA LOPES, 2006, p. 23). sas questões é a Análise de Discurso Crítica. A ADC "desen-
Diga-se, de passagem, que a perspectiva crítica não é exatamente volveu o estudo da linguagem como prática social, com vistas
nova na área de estudos da linguagem (CAMERON et a!., 1992; à investigação de transformações na vida social contemporâ-
MAGALHÃES, 1991, 1995b; RAMPTON, 1994),porém,agora nea" (MAGALHÃES,2005a, p. 3).A questão central é como o
é que ganha visibilidade nacional. estudo do discurso e da semiose 2 pode contribuir para a crítica
Cabe acrescentar às palavras de Moita Lopes que o aspecto
essencial do problema é a divisão entre teoria e prática, entre 1
As traduções neste capítulo são de habel Magalhães, a não ser quando especificado.
pesquisadores e leigos. Um exemplo é a entrevista linguís- 2
De acordo com Fairdough, "a análise de discurso tem como foco as várias 'moda-
lidades semióticas', dentre as quais a linguagem (outras modalidades são imagens

~
tica estruturada, em que todas as questões são planejadas em
visuais e 'linguagem corporal'). A scmiose é vista aqui como elemento do processo
sequência, e em que os papéis de perguntar e responder são social que é relacionado dialeticamente a outros elementos- daí o termo \tbordagem
fixos (MAGALHÃES, 2006, p. 86). Nesse tipo de entrevista, dialético-rclacional'.'• (FAlRCLOUGH, 2010, p. 230).

I
16 17
I
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17.ABE:L MAGAUL\LS, ANDP!': R.. l\'\1\RTJNS E: 1/l\flANF DE Iví. RESENDE ANA USE DE DISClmSO CRiTICA

a problemas sociais como a discriminação sexista, étnico-racial projeto, e o processo de globalização do qual participa o país.
ou de outra natureza (por exemplo, relacionada ao segmento de A penetração do inglês não deve ser dissociada desse processo.
pessoas com deficiência, ou preconceitos de classe). O prestígio do inglês nas relações comerciais (por exemplo,
É certo que vivemos num mundo em que os problemas sociais na escolha de nomes de lojas e empresas), no contexto tecnoló-
parecem ter-se agravado. O avanço do capitalismo é frequentemente gico e mesmo no uso linguístico cotidiano é fruto de discursos
justificado pelo discurso globalizante, que simplifica as relações eco- globalizantes, o que não deve ser negligenciado nesse debate.
nômicas e políticas. "O discurso é constitutivo, mas não num sentido A contribuição do discurso no processo de globalização será
determinante" (FAIRCLOUGH, 2006, p. 23). O discurso é uma resumida a seguir, com base em Fairclough (2006, p. 26):
dimensão da globalização que não deve ser negligenciada. Fairclough 1) O discurso representa a globalização de uma perspectiva
aponta influências fundamentais do discurso sobre o processo de particular (por exemplo, no caso da pressão do inglês
globalização. O conceito de discmso é entendido aqui como forma de sobre o português, as pessoas podem considerar a glo-
representação, de ação e de identificação (FAIRCLOUGH,2003). balização de forma benéfica e o uso do inglês como
Os significados do discmso podem ser compreendidos nos processos consequência inevitável).
socioculturais, econômicos e políticos, como é o caso da globalização. 2) O discurso pode representar a globalização de forma con-
Contudo, nem sempre as influências socioculturais externas fi.rsa ou até enganadora (por exemplo, quando não discute
devem ser consideradas prejudiciais ao processo social brasileiro. os problemas, destacando apenas supostas vantagens).
Vejamos dois exemplos ligados ao discurso dos direitos humanos. 3) O uso retórico do discurso, justificando atos e estraté-
O primeiro refere-se à crítica oficial do Fundo das Nações Unidas gias de determinados agentes e agências poderosas (por
para a Infância e Juventude (Unicef) ao Supremo Tribunal de exemplo, reformas realizadas por governos nacionais,
Justiça (STJ) do Brasil por ter mantido a sentença que absolveu como a Reforma da Previdência, que, como se sabe, é
dois réus confessos de exploração sexual de crianças sob alegação uma exigência de agências financeiras como o Fundo
de que seriam prostitutas (MAGALHÃES, 2010a). O segundo Monetário Internacional).
diz respeito à adoção da política de inclusão de estudantes com 4) O discurso pode disseminar ideologias que contribuem
deficiência na rede de ensino regular (BRASIL, 2007). De fato, para manter uma forma de globalização com o signifi-
o governo brasileiro foi praticamente obrigado a adotar essa polí- cado de uma relação de poder que é injusta. É oportuno
tica por ter assumido compromisso com duas conferências interna- lembrar aqui a defesa feita pelo ex-presidente Fernando
cionais que deliberaram sobre o assunto: a Conferência Educação Henrique Cardoso da privatização de empresas brasilei-
para Todos, realizada na Tailândia em 1990, e a Conferência de ras na década de 1990. A retórica do então presidente
Salamanca, que ocorreu na Espanha em 1994 (LIMA, 2006). orientava-se para a inevitabilidade da globalização como
Retornando ao projeto Aldo Rebelo, uma lacuna no debate justificativa para as privatizações. É clara, nesse caso,
sobre cstrangeirismos é, sem dúvida alguma, a relação entre o a disseminação de uma ideologia para manter uma rela-
sentimento de ameaça à língua portuguesa, representado pelo ção de poder na sociedade brasileira.

18 19
!~AREL Mi\CAl.HÃFS, ANDRF R_ MARTINS lé V!VIANF m: M. RESENIJL ANALISE DE DlSCUI\SO I=Ri'l'lCA

5) O discurso pode construir cenários e representações ima- Entendendo-se ordens de indexicalidade em termos de
ginárias a respeito do futuro, em determinadas estratégias ordens do discurso, que são faces discursivas de ordens estrutu-
de mudança cuja operacionalização significa transforma- radas socialmente, formadas de discursos, gêneros discursivos e
ção dos imaginários em realidades; a difusão do inglês estilos, é possível vislumbrar a desigualdade no acesso aos recur-
no mundo contemporâneo faz parte dessas estratégias sos discursivos c semióticos de uma sociedade como a brasileira,
de poderes globalizantes. na inter-relação entre a escala local e a global. Portanto, o uso
Entretanto, como sugere Williams (1977, p. 37): "Não temos de estrangeirismos não é simplesmente uma questão linguística,
uma 'língua' ou uma 'sociedade' reificada, mas uma língua social devendo ser analisado numa perspectiva que considere outros
ativa." O pensamento de Williams está ligado ao conceito de "voz" fatores socioculturais, tecnológicos, econômicos e políticos liga-
da teoria bakhtiniana (BAKHTIN, 1981). Blommaert (2005) dos à globalização.
define "vozn da seguinte fonna: O uso de estrangeirismos e o projeto Aldo Rebelo são exem-
plos de problemas adequados ao método de pesquisa qualitativa,
quando as pessoas se movem no espaço físico c social desenvolvido pela ADC. De acordo com Wodak e Meyer (2009,
(ambos são gcndmentc interligados), elas movem-se p.10), "a ADC tem o propósito de investigar criticamente a desi-
em ordens de indexicalidade que afetam sua habi- gualdade social, porque ela manifesta-se, constitui-se e legitima-se
lidade de usar recursos comunicativos, e o que fun- no uso linguístico (ou no discurso)" (cf. capítulo 4 deste volume).
ciona bem em uma unidade [uma comunidade, um Além da introdução, este capítulo contará com duas seções:
grupo social] de repente pode parar de funcionar a primeira é sobre a ADC e apresenta um breve histórico sobre
ou perder partes de suas funções em outra unidade. sua constituição como tradição de estudo e epistemologia.
Conscquentcmente, a voz na era da globalização é a A segunda proporá uma síntese metodológica, situando a ADC
capacidade de realizmjunções dos recursos !inguúticos na pesquisa qualitativa.
em relações trrmslocais, em diferentes espaços físicos
c sociais. Em outras palavras, a voz é a capacidade 1 Análise de discurso e crítica social
de mobilidade semiótica- uma capacidade frequen-
temente associada com os recursos linguísticos mais Desde seu início, na década de 1980, com a publicação de
prestigiados ("línguas mundiais'', como o inglês, artigo de Fairclough (1985) no periódico internacional ]ournal
o lctramento e mais recentemente a comunicação ofPragmatics (MAGALHÃES, 2005a), a ADC define-se como
multimodal da internet) e frequentemente negada uma disciplina crítica voltada ao estudo de problemas sociais. Para
aos recursos desprestigiados nas escalas de valores Chouliarak:i e Fairclough (1999, p. 1), a ADC está situada na
que caracterizam as ordens de indexicalidade (lín- Ciência Social crítica e na pesquisa crítica sobre a mudança social
guas minoritárias, linguas ágrafas, dialetos, e assim na sociedade contemporânea, que é caracterizada por teóricos
por diante). (BLOMMAEln; 2005, p. 69). como Giddens (1991) em termos de uma modernidade posterior.

20 2.1
lZABEL MACAJ,HJí.._ES, il..NDR"F R_ Mf\PT!NS F VIV!ANE DE M. RESENDE i\NÁ!.JSC DE D!SCUPSO CRÍT!C::f'c

Isso significa que os princípios modernos do século XV1II ainda Textualmente Orientada (ADTO), a ADC é atualmente uma
se mantêm em parte, mas vivemos em um período de transiçao. área consolidada internacionalmente (MAGALHÃES, 201Gb).
Giddens usa o termo "modernidade posterior" (ou tardia) em A ADC pode ser definida como um programa de estudos que
relação às transformações econômicas e socioculturais das três toma o texto como unidade de análise centrada nos conceitos de
últimas décadas do século XX, em que os signos foram separados discurso, poder c ideologia (MAGALHÃES; RAJAGOPALAN,
de sua localização específica por um processo de desencaixe de 2005; WODAK, 2004). Ela desenvolveu instrumentos analíticos
elementos sociais de contextos particulares, o que os torna dis- "combinados com uma perspectiva crítica'', adequados à problema-
poníveis em outros contextos e em diferentes escalas regionais, i tização de questões sociais, uma das quais se relaciona às identida-
1
nacionais e globais. Dessa forma, os signos passam a ser con- des (AINSWORTH; HARDY, 2004, p. 236). O termo "estudos
siderados "tecnologias sociais" (FAIRCLOUGH, 2003, p. 67). críticos do discurso" é adotado atualmente por van Dijk (2008).
Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 3) sugerem que "a ADC Entretanto, o autor volta -se para o estudo do discurso no sentido de
deveria ser considerada uma contribuição ao campo ela pesquisa cognição social, divergindo, nesse ponto, tanto de Fairclough (2003;
crítica sobre a modernidade posterior". Comentando as trans- 2010) como de Wodak (WODAK; MEYER, 2009; cf adiante).
formações econômicas c socioculturais, os autores apontam que Os termos discurso e texto são conceituados de forma diferente
elas resultam, em parte, das estratégias de grupos particulares nas diversas abordagens da ADC. O conceito de discurso refere-
em um "sistema particular" (MAGALHÃES, 2005a). Por isso, -se à linguagem como forma de prática social (FAIRCLOUGH,
Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 4) defendem que 1989, 2001a; FAIRCLOUGH; WODAK, 1997), como parte
integrante de toda prática social (FAIRCLOUGH, 2003, 2010).
há uma necessidade urgente de teorização e de aná~ De modo geral, o termo discurso é "uma visão particular da lin-
lise críticas da modernidade posterior que possam guagem em uso"; "um elemento da vida social que é interligado
não apenas clarear o novo mundo que está emer~ de maneira próxima a outros elementos" (FAIRCLOUGH, 2003,
gindo, mas também indicar as direções alternativas p. 3). Nesse sentido, o termo é abstrato, mas também é possível falar
não realizadas existentes. de discursos particulares, como o discurso da eclucaçao inclusiva,
por exemplo: uma perspectiva específica de uso linguístico.
Uma definição da ADC aponta essa tradição de estudos da Com relação ao texto, Reisigl e Wodak (2009) o definem
linguagem como "uma abordagem teórico-metodológica[ ... ] como enunciados orais ou documentos escritos. Neste capítulo,
nas sociedades contemporâneas que tem atraído cada vez mais textos são materialidades discursivas dos eventos, decorrentes das
pesquisadores( as), não só da Linguística Crítica mas também das práticas sociais, o que inclui a fala, a escrita, a imagem. Cabe des-
Ciências Sociais" (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 7). Ante- tacar a relevância do conceito de texto para o estudo dos pro-
riormente, a coletânea organizada por Leda Berardi, da Pontifícia cessos sociais contemporâneos, pois os textos têm efeitos sociais
Universidade Católica do Chile, reuniu estudos latino-americanos que precisam ser compreendidos e qualificados. De acordo com
de ADC (BERARDI,2003). Como parte da Análise de Discurso Fairclough (2003, p. 8):

22 23
lZf\BEL i"'AGALl-IAES, i\NDRi~ P. iv"íART!NS E V!VL!\NE DC lv\ RF:ST'.NDF: ANALISEm: DISCURSO CRÍTICA

Os textos como elementos dos eventos sociais[ ... ] A Linguí.1tica Sistênzico-Funcional (LSF)
causam efeitos - isto é, eles causam mudanças.
Mais imediatamente, os textos causam mudanças A preocupação com a análise textual está ligada à influência
em nosso conhecimento (podemos aprender coisas de Halliday e da Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY,
com eles), em nossas crenças, em nossas atitudes, 1976, 1994; HALLIDAY; HASAN, 1989), cuja definição de lin-
em nossos valores, e assim por diante. Eles causam guagem baseia-se na Linguística instrumental: o estudo da lingua-
também efeitos de longa duração - poderíamos gem para compreender outros fenômenos. Ao estudar a Linguística
argumentar, por exemplo, que a experiência prolon- instrumental, compreende-se a natureza da linguagem como fenô-
gada com a publicidade e outros textos comerciais meno integral. A Linguística Sistêmico-Funcional defende a ideia
contribui para moldar as identidades das pessoas de que os sistemas linguísticos são abertos à vida social, daí por que
cmno "consumidores" ou "consumidoras)), ou suas a perspectiva de Halliday (1978) define-se como semiótica social.
identidades de gênero. Os textos podem também Para Halliday (1994, p.xiii-xiv), o estudo da linguagem é funcional
iniciar guerras ou contribuir para transformações em três sentidos: i) destina-se a explicar como as línguas são usadas;
na educação, ou para transformações nas relações ii) os componentes fundamentais do significado linguístico são
industriais, e assim por diante. funcionais: idcacionais (reflexivos: a expressão de processos, eventos,
ações, estados ou outros aspectos do mundo real, representados
Porém, como o próprio Fairclough diz, não se trata de simbolicamente), interpessoais (ativos: a expressão de formas de
"simples causalidade mecânica" (FAIRCLOUGH, 2003, p. 8). ação, de atitudes e de relações com interlocutores e interlocutoras)
Por exemplo, não se pode dizer que determinados aspectos dos e textuais (elos coesivos que tornam os textos adequados à ocasião
textos transformam a vida das pessoas, ou causam efeitos políticos. social); e iii) cada elemento de uma língua tem uma função no
Além disso, Fairclough nota que causalidade não é o mesmo que sistema linguístico, e é explicado por essa função. Isso é percebido
regularidade. Não existe uma relação de causa e efeito que seja na inter-relação entre os componentes do significado linguístico.
regularmente associada com um tipo de texto ou com aspectos
dos textos. Todavia, os textos produzem efeitos sobre as pessoas, e A Linguística Crítica (LC)
tais efeitos são determinados pela relação dialética entre discurso
e prática social, pois os textos são produtos de processos sociais Adotando a perspectiva de Halliday (1978), linguistas que
(MAGALHÃES, 2004, p.114). se alinham criticamente examinam a relação entre texto, poder
Um aspecto fundamental da ADC é o método de análise e ideologia. Na obra Language and control (FOWLER et al.,
textual, que se desenvolveu em três etapas (MAGALHÃES, 1979), Fowler e Kress apresentam o manifesto do grupo, com a
2004, p. 117 et seq.), descritas a seguir. seguinte asserção:

2.4 25
!ZAREJ. MACAJ.HÀES 1 ANDRf R. MARTINS F VlVlANE DE M. HESFNDF ANALISE DF DISCURSO CF\ÍT!C/\

Se o significado linguístico é inseparável da ideo- reconhecemos o significado contido nos próprios itens que a
logia, c ambos dependem da estrutura social, então forma línguístíca pode ser demonstrada como realização do signi-
a análise linguística deveria ser uma poderosa fer- ficado social (e de outros). A seleção de uma forma e não de outra
ramenta para o estudo dos processos ideológicos aponta a articulação pelo( a) falante de um tipo de significado e
que medeiam relações de poder e controle. Mas a não de outro (FOWLER; KRESS, 1979, p. 188-189).
Linguística é uma disciplina acadêmica, e, como Entretanto, cabe considerar que, em decorrência da atuação
todas as disciplinas acadêmicas, está apoiada em da ideologia nos processos semióticos, nem sempre a seleção de
uma série de pressupostos que constituem uma uma forma é consciente. Fowler e Kress (1979, p. 190) afirmam
ideologia do sujeito. Não é um instrumento neutro que a linguagem contribui, inquestionavelmente, para "confirmar
para o estudo da ideologia; é um instrumento que e consolidar" as instituições que a "modelam", sendo usada para
foi neutralizado. Existe então a necessidade de uma "manipular" os interlocutores e para "manter o poder" das agências
linguística que seja crítica, que esteja consciente de Estado e das organizações.
dos pressupostos em que se baseia e que esteja
preparada para refletir criticamente sobre as cau- /1. Análise de Discurso Crítica
sas subjacentes dos fenômenos que estuda e sobre
a natureza da sociedade à qual pertence a língua Um avanço fundamental foi a publicação do artigo de
(estudada). (FOWLER; KRESS, 1979, p. 186). Fairclough, "Criticai and descriptive goals in discourse analy-
sis", no ]ournal o/ Pragmatics (1985), e da obra Language and
Fowler e Kress apresentam três pressupostos da Linguística power, do mesmo autor (1989), que desencadearam uma série de
Crítica: primeiro, a linguagem tem funções específicas, e as formas importantes debates no Centro de Linguagem na Vida Social,
e os processos linguísticos expressam essas funções; segundo, as na Universidade de Lancaster (Reino Unido). O Centro, que
seleções feitas por falantes no inventário total de formas e processos foi fundado no início da década de 1980, reuniu um grupo de
linguísticos são sistemáticas, seguindo determinados princípios; linguistas inquietos, que rejeitavam abordagens ligadas ao estru-
terceiro, contrariamente à visão de arbitrariedade na relação entre turalismo e ao gerativismo (FAIRCLOUGH, 1989).
forma c conteúdo, "a forma significa o conteúdo" (1979, p. 188). A ADC pode ser considerada uma continuação da LSF e da
Os dois primeiros derivam da obra de Halliday (1976), enquanto LC, mas é preciso reconhecer os acréscimos que ela traz ao debate
o último é da Linguística Crítica: uma reformulação do conceito (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999). A ADC dedica-se à
de arbitrariedade do signo linguístico de Saussure (1916). análise de textos, eventos e práticas sociais no contexto sócio-histórico,
No sistema de Saussure, o significado de um termo depende principalmente no âmbito das transformações sociais, propondo uma
de uma relação de oposição com outros termos. Na Linguís- teoria e um método para o estudo do discurso. Ela oferece uma contri-
tica Crítica, os termos apresentam significado em oposição a buição significativa da Linguística para debater questões da vida social
outros termos, mas também em si mesmos. É apenas quando contemporânea, como o racismo, o sexismo (a diferença baseada no

26 27
!lA DEL. fvL\C/\Ll-lÃES, i\l'WJ-?t H. MARTlNS [ VIVlANE DE M. l\ESENDt: JI.NAUS[ DE DlS\,URSO CRiTICA

sexo), o controle c a manipulação institucional, a violência, as trans- Portanto, enveredar no programa de estudos críticos demanda
formações identitárias c a exclusão social (MAGALHÃES, 2003). reflexão para a escolha adequada do caminho específico a ser
Um ponto a considerar em relação à ADC é a diversidade seguido. Cabe lembrar, também, que é sempre possível estabelecer
de abordagens. Wodak e Meyer (2009, p. 20) apresentam uma um diálogo entre abordagens (por exemplo, entre AS e DR).
síntese, que comentaremos a seguir. Além disso, a crítica precisa considerar a heterogeneidade
de abordagens. (RODRIGUES-JÚNIOR, 2009). Da mesma
Quadro 1.1: Estudos de Análise de Discurso Crítica forma que não cabe criticar a Análise de Discurso em geral,
- .

Autores
não cabe criticar a ADC sem nomear a abordagem e os pes-
Abordagens
quisadores específicos. Do contrário, tem-se uma questão de
Histórico-Discursiva (HD) Reisigl e Wodak (2009) validade. Dada a heterogeneidade de abordagens, Wodak (2011)
~--- ------
recomenda o uso da noção de "escola'' para a ADC. Porém, de
2) Linguística de Corpus (Li C) Mautner (2009)
--f- acordo com Van Dijk (1993, p.131), há um aspecto decisivo que
3) Atores Sociais (AS) i Van Leeuwen (2009) une as pessoas que se filiam à ADC: "uma perspectiva partilhada
I
de fazer análise linguística, semi ótica ou discursiva" voltada para
4) Análise de Dispositivo (AD)
questões de justiça social.
5) Sociocognitiva (SC) Van Dijk (2009) Na próxima seção, vamos situar a ADC na pesquisa quali-
------
tativa com orientação para a crítica social.
6) Dialético-Relaciona! (DR) Fairclough (2009)
- - - - -
j
Fonte: Wodak e Meyer (2009, p. 20). 2 Pesquisa qualitativa e cr.itiea social

Distinguem-se as abordagens de acordo com um contínuo A ADC é uma perspectiva de estudo que se situa na tradição
de indução-dedução. Isso significa que podem ser orientadas por qualitativa interpretativista. Primeiro, vamos definir o que é a
um arcabouço teórico fechado, com a apresentação de exemplos pesquisa qualitativa e, em seguida, buscar caracterizar brevemente
(as abordagens DR eSC), ou podem ser orientadas para o estudo o movimento interpretativista. Por último, discutiremos o que
detalhado de casos e para a análise de uma grande quantidade de significa a crítica social nessa perspectiva metodológica.
dados (as abordagens HD,AS, Li C e AD).Além disso, é preciso Mason (2002, p. 1) destaca a relevância da pesquisa quali-
destacar que elas divergem na seleção de tópicos de estudo, que se tativa, que nos envolve "em coisas que importam, do modo que
alternam entre temas "macro" C'globalização" ou "conhecimento") importam''. Conforme Schwandt (2006), esse tipo de pesquisa
e "meso" C'(des)emprego" ou "populismo à direita"). surgiu na década de 1970, em oposição à pesquisa experimental
A relevância desse debate é esclarecer que a ADC não (mediante a realização de experimentos), quase-experimental
se reduz a uma única proposta teórica, o que não é novidade, (parcialmente baseada em experimentos), correlacionai (relacio-
considerando a atual fragmentação das disciplinas acadêmicas. nando variáveis, como na Sociolinguística quantitativa) ou de

28 29
TZABEL MACALHÃES, ANDRÉ R_ MARTINS F VJVJANF DF M_ RESENDE ANALISE DE DISCURSO CRiTICA

levantamento (por meio de questionários ou entrevistas estrutu- elaboramos" (SCHWANDT, 2006, p. 201). O interesse está em
radas, isto é, com perguntas em ordem fixa). Ao contrário dessas entender como "funcionan1 os enunciados'-', o que significa com-
modalidades, que em geral estudam dados estatísticos, na pes- preender as práticas sociais e as estratégias retóricas nos diversos
quisa qualitativa é possível examinar uma grande variedade de tipos de discurso (SCHWANDT, 2006).
aspectos do processo social, como o tecido social da vida diária, Com relação ao interpretativismo, o ponto principal é o
o significado das experiências e o imaginário dos participantes significado das ações sociais. Uma ação social é significativa
da pesquisa; a forma como se articulam os processos sociais, as quando apresenta um "conteúdo intencional" (SCHWANDT,
instituições, os discursos e as relações sociais, e os significados 2006) ou quando se entende que seu significado pertence a um
que produzem. Bauer, Gaskell, e Allum (2002, p. 21) também determinado sistema, como no exemplo comentado por Geertz
comentam sobre o interesse "na maneira como as pessoas se (1978), em que um piscar de olhos pode ter vários significados,
expressam espontaneamente, e falam sobre o que é importante podendo ser um tique nervoso, um ensaio de mímica em frente
para elas e como pensam sobre suas ações e as dos outros". a um espelho ou um atentado conspiratório.
Schwandt (2006) discorre sobre três posturas epistemológi- Um ponto em comum nas três abordagens qualitativas é a
cas na pesquisa qualitativa: a hermenêutica filosófica, o constru- preocupação em compreender os outros, o que fazem ou dizem.
cionismo social e o interpretatívismo. A hermenêutica filosófica Entretanto, a hermenêutica filosófica, o construcionismo social e
defende a ideia de que a compreensão, em lugar de ser controlada o interpretativismo apresentam diferentes maneiras de lidar com
por regras, é uma condição do ser humano. Segundo, para a filo- a questão. Como nos interessa estabelecer uma relação transdis-
sofia hermenêutica, não há como fugir de prejulgamentos para ciplínar entre a ADC e a tradição ctnográfica influenciada pelo
chegar a uma compreensão clara. Como diz Schwandt: pensamento de Geertz (1978, 1997), vamos agora direcionar o
debate para a análise textual (cf seção 1).
[... ] chegar a uma compreensão não é uma ques- U majustificativa para nosso foco na análise textual é certa-
tão de deixar de lado, de escapar, de controlar ou mente a mediação textual da vida social contemporânea, a ubi-
de rastrear o ponto de vista, os prejulgamentos, as quidade dos textos nas nossas atividades diárias, que incluem
visões tendenciosas ou os preconceitos próprios do fala, escrita e imagem, mas também o contexto de comunicação
indivíduo. Pelo contrário, a compreensão requer o virtual viabilizado pelas novas tecnologias, como o computador
engajamento das tendenciosidades do indivíduo. c a internet (SMITH, 1990). Porém, nossa proposta de análise
(SCHWANDT, 2006, p. 199, grifo do autor). textual precisa ser contextualizada, não devendo ser reduzida à
mera descrição textual. Ao contrário, os elementos textuais são
Não é essa a abordagem do construcionismo social, cuja entendidos aqui como argumentos para uma interpretação da
meta é a superação de epistemologias representacionalistas. Para o prática social. Nesse sentido, os textos são artefatos para o estudo
construcionisn1o social, "os seres humanos não conseguem encon- do processo social, podendo ter sua análise expandida na relação
trar ou descobrir conhecimento tanto quanto o construímos ou com categorias sociais, como é o caso das identidades (v. adiante).

30 31
JZJ\B[L MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS E VlVIANE DE M. RESENDE ANÁLISE DE DISCURSO CHJTJCA

Passamos a considerar uma ampliação do conceito de texto, de joga luz sobre o registro etnográfico, "a inscrição da ação", e sobre
tal forma a incluir a leitura social, conforme aponta Geertz (1997): os participantes e suas identidades sociais, ou dramatis personae
(GEERTZ, 1997). Para entender os textos, escritos em papel,
A grande virtude de ampliar a noção de texto para pedra, madeira ou na tela do computador, falados, gravados
abranger outras coisas além das que são escritas em ou televisionados, é necessário relacioná-los ao contexto social
papel, ou gravadas em pedra, é que esse processo específico em que as ações dos participantes e suas relações
orienta nossa atenção justamente para o fenômeno sociais têm significados que eles conhecem muito mais do que
que discutimos acima: o processo de elaboração da nós que os estudamos. Para nos aproximarmos desses significa-
inscrição da ação, seus instrumentos e como estes dos, recomenda Geertz (1997, p. 105) que saltemos continua-
funcionam, e as implicações que a fixação do sentido mente "de uma visão da totalidade através das várias partes que
que emana de um fluir de eventos- eventos que, para a compõem, para uma visão das partes através da totalidade que
a história, são o que aconteceu, para o pensamento, é a causa de sua existência, e vice-versa"; com isso, "buscamos
o que foi pensado, para a cultura, o comportamento fazer com que uma seja explicação para a outra." A orientação de
-tem para a interpretação sociológica. Imaginar que Geertz para a pesquisa etnográfica vai associar, de certa forma,
instituições, costumes c mudanças sociais possam ser o interpretativismo à hermenêutica, pois sugere, a quem pesquisa,
de alguma forma "lidos" é alterar totalmente nosso atividades mentais semelhantes às de tradutores ou exegetas, ou
entendimento do processo que dá origem a essa seja, que envolvam uma compreensão detalhada do processo
interpretação, direcionando-o para tipos de ativida- social. A relação entre ADC e pesquisa etnográfica será retomada
des mentais mais parecidas com aquelas utilizadas na parte 2, adiante.
pelo tradutor, pelo exegeta, ou pelo iconografista do O método desenvolvido pela ADC situa-se na tradição da
que aquelas que são típicas de aplicadores de tes- pesquisa qualitativa, em virtude do foco na análise detalhada
tes, analistas de fatores ou pesquisadores da opinião de textos e discursos. Como salientamos nas seções anteriores,
pública. (GEERTZ, 1997, p. 50-51). trata-se de um método que conjuga o estudo textual-discursivo à
crítica social. Dessa forma, a ADC volta-se para o debate de um
O antropólogo estadunidense aborda aqui a problemática determinado problema social, contribuindo para a reflexão sobre
envolvida no processo complexo de ligação da ação a seu signi- ele. Portanto, analistas críticos "querem produzir e apresentar
ficado. A ação é observada num "fluir de eventos" e inscrita na conhecimento crítico que capacite os seres humanos a eman-
análise; portanto, há uma necessidade de seleção do que incluir, ciparem-se de formas de dominação mediante a autorreflexão"
como também de reflexão sobre o significado que tem para os (WODAK, 2009, p. 7). Não há como negar que o debate crítico
próprios participantes. a respeito do racismo e do sexismo, por exemplo, tem contribuído
O pensamento de Geertz é esclarecedor para quem estuda para uma consciência ética, não só na comunidade acadêmica
a prática social, como analistas de discurso, na medida em que (MAGALHÃES, 2009; VAN DIJK, 2007).

32 33
lZAB[L Mi\C;AI.I-!ÃES, ANU!Ü: F. Mi\ETJNS.!:: V!Vll\NE DE M. RCSU\IDE /\NÁLISE DF. DlSC:URSO Cl-I.ITICA

É fimdamental entender, porém, que nossas análises são Fairclough (2001a, 2003) foi teoricamente inovador; porém,
"relatos do campo" (VAN MAANEN, 1988). Com base em o método proposto pelo autor britânico é de natureza textual.
Lincoln e Denzin (2006, p. 400), que comentam a obra de Van Ao contrário, a abordagem etnográfico-discursiva defende, em
Maanen, agora sabemos que os relatos ''realistas" e "confessio- seu programa de estudo, a realização de pesquisa etnográfica para
nais" apresentam limitações (MAGALHÃES, 2000). É preciso, o estudo do discurso como prática social (MAGALHÃES, 2006;
pois, investir na ampliação das interpretações. Citando Lincoln RESENDE, 2009). Portanto, o estudo textual do discurso na pers-
e Denzin (2006, p. 400): "Importamo-nos menos com nossa pectiva da Linguística Sistêmico-Funcional pode e deve ser com-
'objetividade' enquanto cientistas do que em oferecer a nossos plementado com a pesquisa etnográfica para a análise do processo
leitores alguma experiência poderosa [ .. .]",que signifique uma social (cf. nossa discussão anterior na seção 2 deste capítulo). Porém,
preocupação com o outro. Portanto, a crítica social deve buscar defendemos que os textos são objetos que constroem significados
urna "reconciliação com nossas próprias 'subjetividades críticasm para as pessoas, relacionando-se com outros objetos do contexto
(DENZIN, 2006, p. 399). local e mesmo translocal.
O capítulo seguinte vai abordar os conceitos de poder e
Considerações finais de ideologia, situando o discurso na modernidade e destacando
seu papel na mudança social. Aspectos práticos voltados para a
Neste capítulo, situamos a ADC no estudo de questões análise textual serão também considerados.
contemporâneas, como a globalização, o que não significa uma
restrição ao presente, mesmo porque o estudo das práticas sociais
demanda, até certo ponto, urna análise histórica (REISIGL;
WODAK,2009).Também apresentamos a tradição de estudos
de ADC; e, por último, comentamos sobre a pesquisa qualitativa,
destacando aí o lugar da Análise de Discurso Crítica. Nessa
modalidade de pesquisa, considerando a relevância da análise
textual para o estudo dos problemas sociais contemporâneos,
relacionamos a ADC ao interpretativismo de Geertz (1997),
que recomenda o estudo do processo social nas ações dos par-
ticipantes e em suas identidades, ou dramatis personae, inscritas
nos artefatos e nos registros etnográficos, inclusive nos textos.
Dessa forma, nossa proposta de pesquisa etnogrãfico-discursiva,
que defendemos há mais de uma década (MAGALHÃES, 2000),
distingue-se de outras práticas de ADC, que se centralizam na
análise texlual do discurso. Reconhecemos que o trabalho de

34 35
CA'PÍT'JI ,..... .,

ADC - TEORIA E MÉTODO NA LUTA SOCIAL

Introdução

De um modo muito peculiar, a Análise de Discurso Crítica


lança um olhar profundo e contemporâneo sobre a linguagem e
suas implicações com a realidade social como até então nenhum
campo de pesquisa da Linguística havia feito. Desde o fortale-
cimento científico no campo de investigação da linguagem e,
sobretudo, ao longo dos últimos cem anos, distintas perspecti-
vas têm mobilizado atenções e investimentos na investigação de
aspectos isolados da linguagem e das línguas específicas, desta-
cando estruturas e características, cujo estudo, sem dúvida, tem
sido crucial para conhecer como as diversas línguas evoluíram
ao longo do tempo, como as gramáticas se constituem e esta-
belecem suas regularidades, como em diversos contextos sociais
e de interação os participantes apropriam-se das estruturas de
determinada língua, reelaborando o léxico e a sintaxe, repro-
duzindo (mas também opondo resistência a) aspectos políticos
como discriminação, alijamento e dominação.
Mas foi, sem dúvida, a inflexão para o discurso e a desco-
berta e o investimento em categorias teóricas primárias, como
poder e ideologia, e outras secundárias, como intertextualidade,
formação discursiva, ordem do discurso, entre outras, que expu-
seram da forma mais explícita possível a relevância do papel da
linguagem na formação da realidade social e a relação dialética
JZABEL MACALHAI::S, ANDRÉ R. M/\HTINS E VJVIANE DL M. RESENDE

entre esses dois âmbitos. Assim, da compreensão dessa imbri-


rI
I
j
ANALISE DE DlSCURSO CRiTICA

1 O arcabouço teót'ico da ADC


cação e de sua implicação em determinada conjuntura é que 1'
será possível conhecer fenômenos sociais, notadamente aqueles
relacionados à desigualdade social e política em que a linguagem
i
K
I
A ADC nasce 1 nos limites fronteiriços da Linguística,
lançando um olhar sobre outros campos do conhecimento em
desempenha papel crucial. E, ainda, com base nesse conheci- I

busca de diálogo e parceria, abarcando e reelaborando categorias
mento, será possível contribuir para a mudança desse cenário ! e conceitos teóricos. Com isso, propõe-se, desde seu nascedouro,
~:
de desigualdade e opressão. <!i cultivar essa vocação transdisciplinar.
O propósito deste capítulo é refletir sobre como a ADC I
f Aqui, portanto, não vamos examinar tão somente os aspec-
constitui-se em teoria e em método de especial singularidade II tos teóricos mais específicos da Linguística, senão que vamos
na luta social. Recuperando a contribuição de Harvey (1996)- I considerar também o que, tendo origem em outros campos do
evocada na discussão que Chouliaraki e Fairclough (1999) fazem
i conhecimento, ganhou especial relevo na ADC, sendo central
da relação entre discurso e sociedade-, observamos que a prá-
tica social se constitui de relações sociais, poder, práticas sociais, ig
J
para o seu desenvolvimento teórico.
Comecemos pelo exame do pilar de toda essa área de estudo,
crenças/valores/desejos, instituições/rituais e discurso. Ora, mas i ou seja, a categoria discurso. Deve-se ao linguista estruturalista
o discurso em si está presente na constituição, manutenção e II Zellig Harris, ainda nos idos de 1950, o pioneirismo em destacar
transformação desses domínios da realidade, embora cada qual i e conferir especial relevo ao discurso, buscando nesse recorte um
tenha sua própria singularidade e dinâmica. Ou seja, não se pode I
I enfoque mais amplo de investigação do que o propiciado pela noção
resumir toda a realidade social a uma questão de discurso.
I de frase, até então a unidade básica de estudo na área da linguagem.
Assim, quando falamos em luta social, temos em vista três II
questões. A primeira é que ela envolve uma complexa teia de Discurso
I
variáveis, como participantes, aspectos sociais e políticos, poder, l
ideologia e recursos materiais e simbólicos. A segunda é que,
mesmo considerando que essas variáveis não ocorram à parte do
I! Com uma forte ênfase no discurso, o filósofo Michel Foucault
(1987) abre uma nova abordagem nas investigações sobre conhe-
discurso, como vimos, também não podem ser resumidas a este. i cimento, poder e sociedade, contribuindo, por sua vez, para a
A terceira questão é que o discurso, por sua dinâmica própria, que, í
~
perspectiva transdisciplinar no desenvolvimento da Análise de
de um modo ou de outro, atinge as diversas variáveis presentes I Discurso. Fairclough (2001a) destacou a relevância da contribuição
·?
na luta social, pode trazer assim uma contribuição determinante ·n de F oucault para a Análise de Discurso. Aqui pretendemos ape-
à manifestação e ao sucesso dessa luta. .i. nas elencar alguns aspectos-chave - oriundos de vários trabalhos
Dito isso, passemos ao exame da ADC como perspectiva teórica. I acadêmicos - que embasam a compreensão do discurso, de sorte

'
I
I
II
I
1
Para informações detalhadas c aspectos históricos sobre a constituição da ADC
como perspectiva teórico-metodológica e a relação com a linguística crítica, veja
Wodak e Meyer (2009); veja, também, o capitulo anterior, neste volume.

38
I
Ii 39
IZABEL MAGALHAES, ANDRF R MARTINS E VJVU\NE DE M. HESENDF ANAL!S[ DE DISCURSO CRÍTJCl\

que este se configure em uma categoria teórica e como ferramenta e processo discursivo. Por "ordem do discurso", enten-
útil nas múltiplas abordagens da linguagem. Vamos a eles: de-se o conjunto abrangente de práticas discursivas no
a) O discurso relaciona-se com o conhecimento na medida âmbito de uma instituição ou de uma sociedade e o
em que o constitui. Segundo Foucault (1987), os objetos relacionamento entre elas. "Formação discursiva" vem a
de conhecimento não são produtos dados, algo existente ser, nas perspectivas de Foucault e de Pêcheux, os limites
per si, mas estão sujeitos a um processo de constituição do que pode e deve ser dito suscitados em uma dada for-
e transformação em discurso. Esse processo implica mação ideológica. Já o conceito de "processo discursivo"
regularidades discursivas, regras que impõem limites, permite-nos ver como o discurso emerge em um processo
restrições na definição desse objeto. No exame deste, histórico em que os diversos textos sucedem-se, con-
reporta-se, portanto, à determinada formação discursiva tribuindo a seu modo para esse movimento de fixação,
que o constituiu. deslocamento e dominância de sentidos.
b) Distinto da linguagem, o discurso deve ser visto, segundo f) Embora o foco da investigação concentre-se no discurso
a proposta de Fairclough, como a intervenção daquela como um todo, isso não significa que, na prática, não se
na prática social. Discurso é, assim, o uso social da lin- possa examinar estruturas menores como a frase ou o
guagem. Essa perspectiva guarda distância daquela que período gramatical e mesmo termos e expressões imbuí-
destaca a linguagem como resultado de uma apropriação dos de significado. Daí a relevância do texto, visto como
individual, ou como reflexo de variáveis situacionais. algo mais do que a frase ou unidade que se examina.
c) Do fato de o discurso ser linguagem na prática social, há Trata-se, como propôs Foucault, de "uma função que
implicações, a saber: i) o discurso é um modo de ação e, cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis
assim, trata-se de uma forma pela qual as pessoas agem e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos,
sobre a realidade social e também a representam; ii) dá-se no tempo e no espaço" (1987, p. 99).
uma relação dialética entre o discurso e os demais elementos
da prática social, ou seja, constituem-se mutuamente; lnterdiscursividade e intertextualidade
e iii) a estrutura social é tanto uma condição quanto um
efeito da prática social e, portanto, também do discurso; O processo discursivo traz à lume a heterogeneidade dos
por sua vez, o discurso sofre as restrições da estrutura social. textos. A rigor, não há pureza ou singularidade neles. Eles são
d) Q.\wndo acentuamos os efeitos constitutivos do discurso, constituídos em uma continuidade discursiva, de sorte que vão
deve-se observar que ele contribui para a construção das se sucedendo, uns fazendo referência a outros, incorporando
identidades sociais, das relações sociais entre as pessoas sentidos, projetando outros para novos textos que os sucederão,
e dos sistemas de conhecimento e crença. articulando silêncios e interditos, evidenciando regularidades,
e) C2.\rando falamos em discurso, três conceitos subjacentes
são trazidos à luz: ordem do discurso, formação discursiva
I limites, e permitindo o reconhecimento das formações discursivas
a que os textos em questão pertencem.

40 ',
ll
1
41
!ZAB[L MACALHÃF:S, ANDRf R. MARTINS E VlV!AN[ [)[ M. H.ESENDE ANÁLJSE DE DISCURSO CRÍTICA

Fairclough (2001a, 2003) nota aí a ocorrência de dois pro- própria de um evento complexo que se relaciona ao tempo,
cessos distintos, porém correlatos. Um refere-se à propriedade à estrutura social e à ideologia.
pela qual os textos são feitos, integrando fragmentos de outros O exame dos textos vai mostrar aspectos gramaticais -
textos e com estes relacionando-se por meio da assimilação, con- vocabulário, construções sintáticas, coesão e coerência- e discursivos,
tradição, repercussão irônica, entre outras possibilidades. Essa é como a argumentação, a retórica, o emprego da modalidade e da
a intertextualidade. Já o outro, a interdiscursividade, refere-se negação, que aparecem como marcas ou pistas para compreensão e
ao âmbito das ordens de discurso, ou seja, como o conjunto das interpretação de textos e de sua vinculação a uma determinada for-
práticas discursivas de uma instituição ou sociedade possibilita mação discursiva. O enfoque privilegiado nos textos é uma contribui-
uma multiplicidade de textos e como estes se relacionam entre si, ção bem específica da Linguística à Análise de Discurso. Fairclough
fixando regularidades e características semelhantes (veja, adiante, (2001a) chegou a propor uma Análise de Discurso Textualmente
o capítulo 4, neste volume). Orientada (ADTO) como fundamento dessa perspectiva. Se, histó-
Compreender a heterogeneidade dos textos é fundamental rica e politicamente, os textos constituem documentos, na Análise de
para que se possa examinar a fundo o processo discursivo, iden- Discurso, eles podem constituir um corpus- um conjunto de textos,
tificar os níveis de correspondência entre os textos, o dialogismo selecionados segundo critérios lógicos, claros, definidos conforme
que se estabelece entre eles. a opção de recorte do pesquisador ou pesquisadora. Com base nos
textos do corpus, e não em quaisquer textos aleatórios, é que se pro-
Textos, práticas discursivas e práticas sociais cede à análise, buscando extrair regularidades discursivas.
O segundo pilar da Análise de Discurso são as práticas
O processo discursivo ancora -se em três pilares e por meio discursivas. Os textos não surgem per se, senão como resultado
deles se reproduz: os textos, as práticas discursivas e as práticas de práticas discursivas. De igual modo, sua interpretação envolve
sociais. Essa concepção tridimensional foi formulada por Fairclough aspectos institucionalizados na sociedade. As instituições sociais
(2001a), para quem a Análise de Discurso deve recorrer a três tradi- mantêm-se e reproduzem-se recorrendo a práticas discursivas.
ções de investigação teórica. A tradição de análise textual e linguís- Do bilhete corriqueiro à aula ministrada, do boletim meteoroló-
tica, surgida no campo da Lingrústica, a tradição macrossociológica gico ao anúncio publicitário, da coletiva de imprensa ao sermão
de análise da prática social c a tradição interpretativa ou microsso- dominical, cada sociedade e, dentro desta, as comunidades e, ainda
ciológica, que leva em conta como as pessoas produzem ativamente no interior destas, as pessoas valem-se de inúmeros expedientes
e entendem a realidade social ao partilhar o senso comum. que incluem textos.
Por textos, entendemos todos aqueles produzidos nas mais
diversas situações sociais, formais ou informais, tanto os escritos Poder e ideologia
como os falados ou visuais (veja, também, o capítulo 1, neste
volume). São eles tanto produtos de um processo quanto um Já ao falarmos de formação discursiva e de processo discur-
processo em si, já que seu surgimento pressupõe uma dinâmica sivo, no começo desta seção, deixamos entrever a intervenção no

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lZABEL MAGALHÃES, ANDRÉ .R. MARTINS E VIVJA'NE DE M. RESENDE ANÁLISE DF DISCURSO CR!T!CA

discurso de questões relacionadas ao poder e à ideologia. Poder é Na luta pelo poder- seja para mantê-lo ou conquistá-lo
visto aqui em sua dimensão política, relacionada à sua manifestação -, a ideologia tem papel fundamental. Tão complexa quanto
na estrutura social. Deixando de lado a complexidade do poder, e o próprio poder, a ideologia é outro daqueles conceitos muito
as muitas abordagens dadas a ele nas Ciências Humanas e Sociais, debatidos nas Ciências Sociais. As abordagens diversas denotam
enfoquemos especificamente a relação entre poder e linguagem. as múltiplas especificidades do conceito, mas todas em geral são
Wodak e Meyer (2009, p. 10) argumentam que, do ponto tributárias da herança marxista, que vê a história como luta de
de vista da ADC, a linguagem não é poderosa por si mesma. classes e mesmo luta pelo poder. Efetivamente, devemos a essa
"Ela ganha poder pelo uso que pessoas poderosas fazem dela". tradição a grande ênfase dada à ideologia e sua problematização
Ainda segundo Wodak: "o poder não deriva da linguagem, mas conceitual; no entanto, cabe observar que a adotamos aqui com
a linguagem pode ser usada para desafiar o poder, subvertê-lo, um enfoque um tanto distinto. Van Dijk (2003, 1998) observa
modificar sua distribuição no curto e no longo prazo", ou também que, tanto em Marx e Engels como em outros pesquisadores
para a manutenção de relações de poder. marxistas, ideologia é tomada como "falsa consciência" a beneficiar
Fairclough (1989) aponta dois aspectos principais no rela- grupos que estão no poder ao legitimar crenças, perspectivas e
cionamento entre o poder e a linguagem, a saber, o "poder no ideias defendidas por estes ou utilizadas em seu favor.
discurso" e "o poder por trás do discurso". O primeiro refere-se à Van Dijk propõe-se a trabalhar com um conceito geral de
atuação de participantes poderosos no exercício do controle, na ideologia que abarque também "sistemas que sustentam elegi-
imposição de restrições às contribuições dos demais participantes, timam a oposição e a resistência contra o domínio e a injustiça
sobretudo aqueles em desvantagem no que se refere ao poder. social" (1998, p. 16). Ele demonstra ainda como, por meio de
Tal intervenção relaciona-se ao conteúdo, às relações sociais e operações de legitimação com base na linguagem, a ideologia
às posições de sujeito que as pessoas podem ocupar no discurso. desempenha fimção primordial na produção discursiva dos meca-
O segundo aspecto pressupõe o que seria um efeito oculto do nismos de sustentação do poder, seja pela via da manutenção e do
poder, que leva à construção e à manutenção coesa e funcional controle, seja pela via da contestação e da mudança. Para van Dijk
de toda a ordem do discurso. Ademais, ambos os aspectos do (1998, p.16), a ideologia forma "a base das representações sociais
poder não se constituem em atributos permanentes de qualquer partilhadas por membros de um grupo".
pessoa ou grupo social; não são algo livre de disputa. Examinando a operação específica da ideologia e sua relação
Ao contrário, o poder está a todo o momento sendo dispu- com o poder, Thompson (1998a) propõe que se enxergue aquela
tado, reafirmado e perseguido, seja por aqueles que o detêm, seja como "sentido a serviço do poder". Por conseguinte, o exame da
por aqueles explorados em razão de sua condição social 2 intervenção da ideologia deve priorizar o estudo das "maneiras
como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de
Outros autores no campo mesmo do discurso têm abordado outras questões relacio- dominação" (p. 76). A construção das identidades sociais, das
nadas ao poder. Por uma questão de espaço, limitamo-nos a essa breve abordagem.
Para um exame mais abrangente, ver também Chouliaraki e Fairclough (1999),
versões da realidade, das visões de mundo e a produção do con-
Foucault (1977) e van Dijk (1996). senso social e político são operadas pela intervenção da ideologia,

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IZADEL MAGALHÃES, ANDR[ H. MARTINS 1:: VllflANE DE M. RESENDE ANi\LlSJ:: DE D!SCl/HSO CRÍTJCf\

que se valeria de cinco modos de operação c que, por sua vez, transitórias, como se fossem algo permanente, natural e
permitiria uma série de estratégias de construção simbólica. atemporaL Para tanto, utiliza-se de estratégias como a natu-
São os seguintes os modos de operação da ideologia, ralização, a eternalização e a nominalização ou passivização.
segundo 1hompson: 3 Para encerrarmos essa breve discussão sobre a intervenção
a) Legitimação: a ideologia opera no sentido de apresentar da ideologia na manutenção e na reprodução do poder, trazemos
relações de dominação como sendo justas, legítimas, dig- à discussão a contribuição de Eagleton (1997). Em um livro que
nas de apoio. Para tanto, usa estratégias como a raciona- dedicou ao exame da ideologia, o autor reconhece a relevância
lização, a universalização e a narrativização. desta nas sociedades contemporâneas, argumentando que ela se
b) Dissimulação: pela intervenção da ideologia, o estabe- manifesta na origem dos movimentos políticos e possibilita a
lecimento e a sustentação das relações de dominação integração de uma sociedade. Ele articula ideologia e discurso,
ocorrem em meio à ocultação, negação ou minimização, reconhecendo que ideologia "é antes uma questão de 'discurso' que
ou então são representadas de forma a desviar a atenção de 'linguagem'- mais uma questão de certos efeitos discursivos
de relações e processos a elas vinculados. Para isso, as concretos que de significação como tal" (p. 194).
estratégias usadas podem ser as de deslocamento, eufe-
mização e tropo (sinédoquc, metonímia, metáfora). 2 O lugar do discurso na modernidade posterim·
c) Unificação: por esse modo, as relações de dominação são
estabelecidas e sustentadas ao se apelar à construção, no Na última década do século XX, a queda do regime comunista
nível simbólico, de uma espécie de identidade coletiva, no leste europeu, o desmantelamento da União Soviética e o refluxo
propiciando um tipo de unidade entre os indivíduos que do comunismo como ideologia c força política de peso na Europa e
prevalece a despeito de possíveis diferenças c divisões. em grande parte do mundo, ao lado da emergência do neoliberalismo,
Entre as estratégias usadas aqui, pode-se notar a estan- da força do mercado e de seu crescimento mundial, c do surgimento
dardização c a simbolização da unidade. da internet e de outras tecnologias, suscitaram a emergência de
d) Fragmentação: a ideologia também opera no sentido de novos parâmetros culturais e de percepção do mundo. Algumas
segmentar uma coletividade e transformar um ou mais expressões passaram a ser usadas para definir a conjuntura cultural
grupos em alvo perigoso ou pernicioso ao grupo domi- que caracterizava principalmente o mundo ocidental como um todo.
nante. Para isso, apela-se a estratégias como diferenciação Globalização, pós-modernidade (e também pós-modernismo)
e expurgo do outro. e modernidade posterior, ou tardia, são as expressões mais usadas.
e) Reificação: a ideologia age no sentido de apresentar as Não vamos nos deter muito na análise dessa conjuntura. Nosso obje-
relações de dominação, que são efetivamente históricas e tivo aqui é fornecer uma visão mais abrangente desse quadro para
3
conduzir o leitor ou a leitora à compreensão do papel do discnrso nesse
O autor faz algumas ressalvas à relação que apresenta: ela não é exaustiva; os modos
de operação nao atuam de forma independente; as estratégias citadas não se rela- novo momento. Para isso, vamos trazer ao debate as contribuições
cionam exclusivamente com um determinado modo e nem são as únicas relevantes. de alguns autores que se dedicaram ao exame desses novos tempos.
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lZABl::L MACAJ.l--lÃI::S, 1\NDRE R. MAIHINS E VIVIANE DE M. HESENDF ANALISE DE DISCURSO CRlTICJ\

Um deles é o sociólogo britânico Anthony Giddens. Em um empresas multinacionais, sen1 respeito aos parâmetros
livro ( 1997) em que examina questões relacionadas à identidade mínimos de direitos do trabalho;
pessoal à luz das mudanças na cultura ocidental, ele caracteriza a c) o cosmopolitismo, que o autor redefine como "a solidarie-
modernidade como "um mundo repleto de riscos e perigos", em dade transnacional entre grupos explorados, oprimidos
que se percebem o crescimento da ansiedade, os desdobramentos ou excluídos pela globalização hegemônica" (p. 437) e
do mundo da industrialização com a emergência da "monitoriza- que se manifesta em interações, diálogos e articulações
ção reflexiva concentrada'' e aspectos como a dinâmica acelerada no de instituições e grupos sociais, lutas de trabalhadores
ritmo de mudança social. Segundo Giddens, tal como a imprensa e defesa do meio ambiente e dos direitos humanos,
foi decisiva no surgimento dos tempos modernos, os meios ele- a exemplo do Fórum Social Mundial;
trônicos foram determinantes no aparecimento dessa nova con- d) a emergência de temas de interesse global, em que algumas
juntura, de sorte que "esses media são tanto uma expressão das questões passam a gozar de uma relevância tão genera-
tendências descontextualizadas e globalizadoras da modernidade, lizada que podem ser vistas como "patrimônio comum
quanto instrumentos dessas mesmas tendências" (1997, p. 23). da humanidade"; como exemplos, tem-se a questão
Outro autor é o também sociólogo e professor de Economia c ambiental com suas diversas subdivisões: a preservação
Direito, o português Boaventura de Sousa Santos. Num artigo em das florestas tropicais, a biodiversidade, o cuidado com
que examina a questão dos direitos humanos e sua relação com o mul- a Antártida e a camada de ozônio.
ticulturalismo, o pesquisador define a globalização como "o processo Por fim, um breve olhar sobre as considerações que o pro-
pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua fessor de Política e Sociologia dinamarquês Jacob Torfing (1999)
influência a todo o globo e, ao Üzê-lo, desenvolve a capacidade de tece sobre as contribuições de dois teóricos políticos, o argentino
considerar como sendo local outra condição social ou entidade rival" Ernesto Laclau e a belga Chantal Mouffe (1985), quando anali-
(2003, p. 433). Ele distingue quatro formas de globalização: sam os fundamentos que embasam as mudanças operadas nessa
a) o localismo globalizado, em que um fenômeno local é bem nova conjuntura. Eles ressaltam, na atual fase da modernidade,
sucedido ao tomar-se global; como exemplo, a transformação a marca de se constituir mais em um desafio frente ao status que
do inglês em língua franca, ofostfood estadunidensc e leis sobre deu origem às metanarrativas modernas do que em subestimar a
propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA; validade de seus valores políticos e éticos. Ao mesmo tempo em
b) o globalismo localizado, caracterizado pelo impacto que que a pós-modernidade não descarta o projeto emancipatório lan-
práticas e imperativos transnacionais provocam em çado pela modernidade, assume-o sem, no entanto, apoiar-se nos
condições locais, que, por sua vez, são desestrutura- fundamentos essencialistas que o embasaram na modernidade.
das e reestruturadas para responder a esse choque; por
exemplo, zona franca de comércio, desmatamento ou A modernidade foi animada por mna crença na
destruição de recurso naturais como meio de pagamento possibilidade de um código ético nao aporético
da dívida externa e exploração de mão de obra local por firmado numa razão e validade universal para todos

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JZADEL MACALHAES, ANDHÉ R. MARTINS E V!V!ANE 0[ M. HESENDE /\NAUS E DE DISCURSO CHlTlCi:l,

os seres humanos. A descrença em tal possibilidade surgimento da imprensa como instituição vital no desen-
é o que marca a emergência da pós-modernidade volvimento ela sociedade e da democracia, a participação
[ ... ]A pós-modernidade não é desprovida de ética, dos cidadãos e cidadãs vem num crescendo que atinge seu
mas admite a ausência de fundamentos éticos. ápice com as novas tecnologias de comunicação. Com os
A pós-modernidade é a modernidade sem ilusões. meios em rápida c frenética popularização, qualquer pes-
(TORFING, 1999, p. 275). soa com garantias de acesso pode pôr na rede mundial de
computadores suas ideias, compartilhar sua perspectiva,
Após esse rápido exame dos desdobramentos relacionados manifestar sua crítica sem que seja necessária a mediação
à modernidade posterior, vejamos como o discurso relaciona-se de uma instituição como o jornal, o rádio ou a TV, ou
como esse novo momento. Como observa Giddens (1997), os mesmo o parlamento. Trata-se de um salto muito rele-
meios eletrônicos são, por excelência, canais de expressão e instru- vante em termos de democratização elas informações
mentos que viabilizam as tendências da modernidade posterior. (veja o conceito de "voz" na introdução do capítulo 1),
Em meados elo século XIV, no alvorecer da modernidade, a ainda que o alcance dessas múltiplas vozes seja clepen-
invenção da imprensa por Gutenbcrg viria a propiciar a popula- clente ele muitos outros fatores.
rização do livro e, mais tarde, o surgimento ela imprensa como 2) Diversificação dos agentes de poder: a facilitação no acesso à
meio regular ele transmissão ele notícias e espaço ele debate informação e na divulgação de informações e opiniões veio
público. Em meados do século XX, o surgimento da televisão e ampliar os espaços da esfera pública e, com isso, fortalecer
sua evolução (com as transmissões ao vivo e o desenvolvimento a sociedade civil e a opinião pública. Cada vez mais, orga-
do telejornalismo e da indústria do entretenimento), bem como nizações não governamentais têm voz e vez em processos
sua onipresença e centralidaclc no dia a dia das sociedades e das de tomada de decisão, embora haja muitos entraves para
nações ocidentais, aliadas ao aparecimento, já no final do século, a participação, por exemplo, de movimentos sociais na
de novos meios como internet, correio eletrônico, e sua popula- construção efetivamente participativa de políticas públicas.
rização e interação com outros meios como telefones celulares 3) Relevância da imagem e da representação na mídia: com a
(e suas múltiplas funções) e uma infinidade de novas mídias (por ampliação da esfera pública propiciada pela emergência
exemplo, compact disk, musical playe1; iPod) têm proporcionado elas novas mídias, o processo social c político valoriza a
uma série de mudanças significativas na esfera pública: no modo ocupação de espaços nos meios eletrônicos pela articulação
de fazer política, nas identidades, na forma de encarar os direitos ele imagens, textos e iniciativas, entendendo imagem como
humanos e a diversidade. a representação simbólica que inclui textos verbais e visuais.
É em meio a essa conjuntura que gostaríamos de examinar 4) Controle do poder em disputa permanente: as possibilidades
o lugar elo discurso, considerando, para isso, aspectos específicos. trazidas pelas novas tecnologias na área da comunica-
1) Multiplicidade de vozes: os novos meios escancararam ção e da transmissão de informações são dados novos e
a participação elas pessoas na esfera pública; desde o relevantes ela realidade social, mas isso não quer dizer

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IZABEL MAGALHAES, ANDRÉ R. MARTINS E V!VlANE DE M. RESENDE f
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ANÁLISE DE DISCURSO Cl1iT!CA

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que sejam aspectos determinantes no exercício do poder. Na tradição marxista ortodoxa, o motor da história é deter-
Este ainda continua concentrado, distribuído e mani- minado pela estrutura econômica. Com base nela, toda uma
pulado de forma desigual pelos diversos atores; o que superestrutura é formada e a ela corresponde. As contradições
vemos de diferente em relação às gerações precedentes do sistema econômico capitalista, o esgotamento de suas possi-
é que, cada vez mais, o simbólico desempenha papel bilidades e as lutas entre as facções da elite dominante propicia-
fundamental no exercício do poder. rão o momento oportuno para o surgimento, amadurecimento
e fortalecimento da classe trabalhadora, que, consciente de seu
3 O papel do discurso na mudança social papel, liderada por uma vanguarda e enfrentando riscos e ame-
aças, toma o poder num processo revolucionário e acaba com o
A ADC priorizao exame de situações sociais específicas, nas sistema de exploração e com a dominação de classes, passando
quais o discurso desempenha papel preponderante na produção, pelo socialismo como estágio provisório até chegar ao comunismo
reprodução ou superação de desigualdades ou de relações de -situação final-, em que o Estado deixaria de existir, e se viveria
dominação. Nesse caso, pode-se falar tanto em mudança social numa sociedade igualitária, sem dominantes ou dominados, com
como em mudança discursiva. A primeira, mais abrangente, a propriedade comum dos meios de produção e sem a existência
implica a transformação da realidade provocada pela intervenção de distinções relevantes relacionadas a raças, povos e religiões.
dos diversos aspectos presentes numa determinada conjuntura. Deve ficar claro que, quando falamos em mudança social
Numa lista não fechada, poderíamos incluir aspectos como a aqui, não pressupomos todo esse referencial marxista. Temos
situação social e econômica, as iniciativas políticas propriamente em vista alterações da conjuntura social, desde as menos às mais
ditas (ações dos partidos, dos governos, do Legislativo e do Judi- abrangentes, das mais duradouras até as mais provisórias. O ponto
ciário, manifestações e ações da sociedade civil, dos movimentos aqui não é investir na dispersão de enfoques e situações, mas
populares e outros), o uso de instrumentos de força física ou de sim concentrar-nos em conjunturas específicas vividas por um
coação (ações das polícias, de entidades paramilitares e grupos ou mais grupos sociais, ou mesmo por uma sociedade em um
armados) e as intervenções sociais de diferentes enfoques (âmbito momento específico de sua existência. Assim, como vimos na
religioso, cultural, do voluntariado). seção anterior, a mudança de era que se manifestou nos últimos
Já a mudança discursiva implica a transformação social advinda anos e que tem sido chamada, por alguns, de "pós-modernidade",
da intervenção de natureza discursiva: os discursos diversos, dos trouxe uma série de transformações, e de tal sorte abrangentes,
partidos, dos meios de massa e das elites, as identidades sociais, que seria muito difícil e pouco exequível examinar todas as suas
o apelo ao simbólico na construção do consenso e da hegemo- implicações e a multiplicidade de seus aspectos. Por outro lado,
nia. A relação entre essas duas dimensões da mudança é dialética. todos esses desdobramentos na vida das pessoas, no dia a dia das
Por vezes, elas se retroalimentam (cf. capítulo 1, quadro 1.1: "Abor- culturas e instituições, na economia e na política, trouxeram novos
dagem dialético-relaciona! (DR)"; e capítulo 4, seção 2: "Alguns aspectos e sentidos e reaproveitaram outros, de modo que as desi-
exemplos", neste volume). gualdades sociais e os vários tipos de opressão entre sociedades,

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IZABEL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS E VIVTANE DF M. RESENDE r ANÁUSE D.E DISCUf1SO CRiTICA

e no interior de cada uma, ganharam novas configurações, cujo com seu trabalho teórico-acadêmico, e outros com uma dupla
exame é algo muito pertinente à ADC rnilitânciaJ como cientistas e cotno ativistas políticoso
Nos últimos anos- com a emergência das novas tecno- O engajamento político de quem faz ciência pode não ser
logias de comunicação, um maior acesso aos bens culturais e um ponto pacífico na comunidade acadêmica, mas tem trazido,
ao conhecimento, o fortalecimento do discurso em favor dos sem dúvida, uma enorme contribuição para o desenvolvimento
direitos humanos, das minorias e do respeito à diversidade -, das lutas sociais. Naturalmente, não podemos apostar numa visão
as situações sociais concretas de opressão, de desigualdades e de romanceada da realidade, acreditando que a participação de inte-
vulnerabilidade social têm incomodado cada vez mais os atores lectuais determina o sucesso de uma causa política. Seria muito
sociais. A opinião pública no âmbito internacional e no interior simplista tal conclusão. O surgimento, o desenvolvimento e o
das diversas sociedades vem refletindo isso. Os atores sociais bom êxito de uma luta social implicam fatores complexos, cuja
que tiram proveito dessas situações de opressão 4 têm encontrado dinâmica, no mais das vezes, só se torna conhecida a posteriori.
amiúde dificuldade para se justificar e, não raro, esforçam-se para O que não se deve menosprezar é a contribuição relevante que
negar participação nessas situações. cientistas, pesquisadores e outros intelectuais podem trazer a esses
1
Nesse contexto, tem-se fortalecido uma perspectiva entre embates quando se propõem a investigar os diversos processos
'
pesquisadores e pesquisadoras sociais que busca usar a ciência e
suas descobertas em favor da luta no combate às desigualdades
II de opressão c de desigualdade social, a desnudar os mecanismos
de funcionamento e a apontar caminhos para sua superação.
sociais e às diversas formas de opressão. O ativismo político
desses cientistas é justificado como uma atitude consciente e
I' Mas é preciso ressalvar que o reconhecido e mesmo louvável
engajamento político de cientistas, em geral, e de analistas de
I
engajada em favor da justiça, da igualdade, da paz e da liberdade. discurso, em particular, impõe algumas questões de que vale a
Tal corrente alimenta-se de abordagens como a da Escola de II pena tratarmos aqui.
Frankfurt, de viés marxista. No campo do discurso, os teóricos Há que se reconhecer que a investigação científica e o enga-
da ADC têm-se notabilizado no engajamento em causas como a
luta contra o racismo, o sexismo e a opressão política, a defesa de
minorias, a promoção da diversidade e dos direitos de populações
'I
i jamento político de cientistas são situações distintas. Qye se
comuniquem entre si, que a incursão na investigação científica
leve ao envolvimento político, pode-se compreender. Mas tra-
I
desassistidas. É escusado elencar os nomes de analistas de discurso I ta-se, evidentemente, de situações distintas que não podem ser
no Brasil e no mundo que têm abraçado essa perspectiva, muitos
I
I
confundidas, a bem da própria ciência e dos envolvidos nessas
situações. O fazer ciência tem seu tempo, métodos, lógicas, cri-
4
1 térios e estratégias de procedimento, de verificação e de crítica.
Um exemplo típico no Brasil são as situações irregulares de trabalho inbntil c de
trabalho análogo à escravidão. Volta c meia, grandes empresários e mesmo per- I De igual modo, a ação política obedece a uma lógica própria,
sonalidades do mundo político são acusados de se valerem desses expedientes. 1- de ordem coletiva, com a interface previsível dos diversos atores
Algumas ONGs mobilizam-se para associar marcas ou produtos a esses crimes l-
e assim desestimular esse tipo de prática, mas há uma forte inAuência de setores
I sociais e o tempo apropriado para ações e movimentos. Isso não
beneficiados por esses crimes no Congresso Nacional. II significa, entretanto, que essas diferentes experiências, com suas
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!ZABEL MAGALHÃES, AND.RE R. MARTINS E VlVIANE DE M. RESENDE ANÁLJSE DE DISCURSO CRiTlCA

diferentes dinâmicas, não possam aprender uma com a outra, ao meio de construir uma identidade social específica? v} A investigação
contrário. Não entendemos que os caminhos da ciência estejam do problema pode esclarecer a situação em si c contribuir para o
fechados em dispositivos anteriormente dados e que não possam fortalecimento dos grupos ou pessoas em desvantagem?
ser mudados por novas aprendizagens e novos atores. O segundo passo é proceder à coleta e seleção de textos que vão
Outra questão importante a considerar é a observação quanto compor o corpus de investigação. Como já foi discutido no capítulo 1,
aos limites de cientistas e de seu trabalho. Não dá para fazer tudo lembramos aqui a necessidade de relacionar a análise textual à inves-
ao mesmo tempo. Um ativismo cego não é desejável, tampouco tigação etnográfica da prática social. Não seria o caso de detalharmos
uma pesquisa feita às pressas, sob encomenda, para atender a uma ou mesmo de nos alongarmos na discussão de quais procedimentos
demanda urgente do movimento social. Aqui, não tratamos da devem ser seguidos nessa etapa, uma vez que a definição do corpus é
militância politica, embora a reconheçamos como uma consequ- um processo que leva em conta critérios específicos que configuram
ência possível, compatível e exequível para analistas de discurso, o recorte feito pelo pesquisador ou pesquisadora. Para U'Car deter-
como discorremos até aqui. minado recorte, deve-se ter em vista os objetivos e alvos da pesquisa
e as questões propostas. Não se trata de decisão arbitrária, mas de
4 Alguns aspectos práticos opção metodológica, animada por uma dinâmica própria da pesquisa.

Nosso foco é o trabalho de investigação dentro de parâmetros


da ADC. Nesse sentido, a pesquisa deve seguir alguns passos que
comentamos a seguir (confira o quadro 2.1, ao final desta seção).
II Pode-se trabalhar com um corpus mais extenso ou mais res-
trito. É possível também trabalhar com dois ou mais níveis ou
tipos de corpus, segundo os critérios estipulados, por exemplo,
desenvolvendo níveis distintos de análise: uma mais profunda e
O primeiro é identificar e, posteriormente, escolher, dentre con-
junturas específicas- em que o discurso é usado em situações de I pontual e outra mais abrangente.
Como terceiro passo, é necessário identificar que aspectos
desigualdade ou opressão social-, uma delas como foco de análise.
Para o bom êxito desse empreendimento, vale observar alguns
aspectos que podem amáliar na identificação da situação social opor-
tuna para as possibilidades de pesquisa que se tem. Como auxílio
II gramaticais e discursivos são mais relevantes no conjunto de
textos que se tem. Nesse caso, a relevância tem a ver basicamente
com recorrência ou regularidade e com a função que determi-
nado aspecto desempenha na construção c na fixação de certos
nesse processo, sugerimos algumas questões: i} Trata-se de uma
situação concreta de injustiça, desigualdade social, manipulação do
poder ou do controle? ii) A linguagem é utilizada de modo espe-
II sentidos nos textos. O exame desse funcionamento discursivo
deve ser bastante cauteloso e criterioso. O que à primeira vista
pode ser significativo, pode perder relevância quando equiparado
cífico, institucionalizado e rotineiro, como meio de representar de
I! a outros achados ao longo da pesquisa. A opção de enveredar pela
modo desfavorável o(s) grupo(s) em desvantagem? iii) A linguagem I investigação de todos os aspectos gramaticais e discursivos, apesar
I
é utilizada de modo específico, institucionalizado c rotineiro, como
meio de direcionar a compreensão do problema? iv} A linguagem
é utilizada de modo específico, institucionalizado e rotineiro, como
II do apelo da abrangência, pode não ser nem um pouco excquível.
O quarto passo é proceder ao exame dos textos, tanto indivi-
dualmente quanto em conjunto- nesse caso, cotejando os achados
I
56 I 57
JL:ADEL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS E V!VIANE DE M. RESENDE ANÁLiSE DE DJSCUHSO Cl11T!CA

de um com os de outros. Deve-se dar muita atenção ao que se Considerações finais


encontra como resultado dessa investigação. Ressalve-se o fato de
que, não obstante tratar-se de uma pesquisa qualitativa, nada nos Analistas de discurso têm feito da transdisciplinaridade uma
impede de levarmos em consideração aspectos quantitativos que vereda segura à qual comumente recorrem no desenvolvimento de
porventura se manifestarem no processo discursivo. Por exemplo, suas pesquisas. Longe de se fecharem em seus próprios caminhos
a ocorrência abundante de um determinado termo ou expressão e opções de método, reconhecem as especificidades e limitações
pode indicar o esforço em caracterizar um agente ou uma situação da própria área e partem para o diálogo com trabalhos de outros
de certa maneira, sendo, portanto, uma marca do investimento investigadores e investigadoras, numa abertura para agregar con-
ideológico naquele texto ou conjunto de textos. tribuições teóricas distintas. A abertura tem tudo a ver com o
O quinto e último passo é cotejar as descobertas dos textos com movimento teórico que possibilitou o surgimento da ADC, como
o contexto mais amplo das práticas discursivas e sociais. Com base já discutido neste capítulo c em outras partes deste livro.
nos achados dessa análise dos textos, pode-se encontrar uma série Assim, a Ciência Política, a Sociologia, a História, a Psicologia
recorrente de sentidos e efeitos de sentido. A chave para sua explicação Social e os enfoques teóricos e especiaJizados em cultura, meios
está na vinculação destes ao quadro geral das práticas discursivas e de massa, gênero, classe social e raça são alguns dos campos do
sociais presentes na situação em análise. (@e práticas estão em jogo conhecimento que têm participado da construção teórico-prática
nessa conjuntura? (@em são os agentes e como eles participam na no âmbito da Análise de Discurso Crítica. Muitos pesquisadores
situação social? Como o controle do poder é exercido? (@e tipos de na área têm tido bom êxito ao incorporarem instrumentos meto-
textos são usados e como o são? Assim, com base nessas descobertas, dológicos e categorias teóricas daquelas áreas em seus próprios
como os sentidos e seus efeitos podem ser interpretados e qual sua trabalhos e, desse modo, enriquecerem suas pesquisas.
relevância na compreensão geral dos textos e do processo discursivo? Como vimos, o discurso tem recebido um lugar de destaque
nessa conjuntura histórica, a que temos denominado modemi-
Qyadro 2.1: Procedimentos metodológicos básicos na seleção de foco de
dade posterior. Com a emergência e a popularização das novas
investigação em ADC e no processo de análise
tecnologias, em especial a internet, e a criação das conexões -
1'" passo selecionar a situação/o problema social com que se pretende trabalhar como desdobramentos criativos e inesperados a cada temporada-,
2° passo
a produção de textos também tem se generalizado. Aqui falamos
definir e recolher os textos para o c01pus de investigação
tanto de textos restritos ao campo privado quanto de notícias e
3° passo identificar e selecionar aspectos bTfamaticais e discursivos dos textos
imagens que são geradas (e propagadas com velocidade incrível)
do c01pw entre os mais relevantes para os propósitos da pesquisa
a partir de acontecimentos presenciados por esses produtores
4" passo proceder ao exame dos textos anônimos do dia a dia.
5" passo relacionar textos e contextos discursivo e social por meio da As novas mídias como que escancaram a esfera pública,
pesquisa etnográfica mas não eliminam por si só os problemas relacionados ao exer-
cício do poder e às desigualdades daí advindas. Por outro lado,

58 59
l7.ABEL MAGALHÃES, ANDRF R. MARTINS 1:: VJVJANJ:: DE M. RESENDE

possibilitam novos enfoques e instrumentos na luta que pessoas e


grupos em desvantagem travam em busca da garantia de direitos EFEITOS ;;;,v'-'.u"l"' CO.MO
e de acesso ao poder. FOCO PARA A
É essa precisamente a conjuntura em que pesquisadores e
pesquisadoras sociais são desafiados a encarar e a propor caminhos
de investigação. Aqui não nos dirigimos somente a linguistas,
mas a todos aqueles que, no campo específico de seu trabalho,
reconhecem o papel do discurso, das representações, das imagens
que são exploradas na esfera pública, da linguagem que é articulada Introdução
e posta a trabalhar em favor de interesses. Abre-se aí, portanto,
uma perspectiva de parceria, de modo que a ADC tanto pode Nosso objetivo, neste capítulo, é discutir a relação entre linguagem
contribuir para campos teóricos já bem estruturados, como pode e sociedade, em termos dos efeitos sociais de textos. Para tanto, tomare-
receber contribuição desses campos, a fim de se consolidar. Em mos como exemplo uma série de reportagens sobre exploração sexual
ambos os casos, ganha a ciência e ganha a sociedade, beneficiária de crianças e adolescentes em Brasília, publicadas no jornal Correio
de um conhecimento posto a serviço de todos, em especial dos Braziliense (CB), e uma entrevista com uma das educadoras do projeto
menos privilegiados. GirAção, do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua do
Distrito Federal (MNMMR!DF). Serão discutidos os efeitos sociais
dos textos, especificamente sua implicação para o projeto GirAção e
para a formulação de políticas públicas para a infância em situação de
rua. Veremos, portanto, como os efeitos sociais de textos podem ser uti-
lizados em pesquisas voltadas para a crítica social (RESENDE,2013a).
O capítulo está dividido em quatro seções. Na primeira, dis-
cutimos brevemente a relação interna entre linguagem e sociedade,
com base na Análise de Discurso Crítica em seu diálogo com o
Realismo Crítico. Em seguida, abordamos as reportagens do Correio
Braziliense, refletindo sobre a relação entre jornalismo e sociedade c os
alcances de textos jornalísticos. Na terceira seção, o foco é o projeto
GirAção, implementado em 2007 pelo Movimento Nacional de
Meninos e Meninas de Rua e pelo Centro de Referência, Estudos e
Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), diretamente afetado
pelas matérias publicadas no Correio Braziliense. Por fim, discutimos
os efeitos sociais dos textos.

60
r-:::ABEL /V\_AGALllÃLS, ANDRf R. MAHTJNS E VlV!ANE DE Jv\. RESENDE f\NÁL!SE DE DTSCURSO CH!T!CA

1 Linguagem e sociedade além dos simples pontos de vista- os textos são partes de práticas
sociais situadas e podem influenciar, para além dos modos de
Como já vimos nos dois capítulos precedentes, um dos aspec- compreensão da realidade, formas de ação social. A esse respeito,
tos centrais da Análise de Discurso Crítica é a abordagem da Fairclough,Jessop e Sayer (2002, p. 3) sugerem que
relação entre linguagem e sociedade, definida como uma relação
interna e de mão dupla. A natureza interna dessa relação significa cientistas sociais e analistas de discurso rotinci-
que textos são resultantes da estruturação social da linguagem, mas ramentc defendem a análise semiótica com o
são também potencialmente transformadores dessa estruturação, assim argumento de que a semiose tem efeitos reais em
como os eventos sociais são tanto resultado quanto substrato das práticas sociais, e1n instituições sociais c, mais
estruturas sociais (BHASKAR, 1989; FA1RCLOUGH,2000b). amplamente, na ordem social.
Essa formulação pode ser percebida em uma série de defi-
nições de ADC em que a natureza da relação entre linguagem Assim, uma análise discursiva crítica pode ser considerada
e sociedade é tomada como ponto de partida para os estudos eficaz quando possibilita ao/à analista explorar a materialização
críticos do discurso (veja, por exemplo, BLOMMAERT, 2005; discursiva de problemas sociais, em termos dos efeitos dos aspec-
FAJRCLOUGH, 1989; RESENDE,2009; WODAK; MEYER, tos discursivos em práticas sociais contextualizadas e vice-versa,
2003). Nesse sentido, Richardson (2007, p. 37, grifos nossos) e, assim, realizar a crítica social com base no discurso. Ao discutir
oferece-nos a seguinte definição: a relação entre linguagem e sociedade, Fairclough (2003, p. 8)
recontextualiza a noção de poderes causais do Realismo Crítico
A ADC aborda o discurso como um processo (RC) para propor que textos também têm efeitos caumis e que a
circular em que, por um lado, as práticas sociais análise desses efeitos é parte da análise discursiva de textos. Não é
influenciam textos, moldando o contexto e o modo demais retomarmos aqui a citação que já discutimos no capítulo 1:
como são produzidos, e, por outro lado, os textos
influenciam a sociedade, moldando os pontos de vista Os textos como elementos dos eventos sociais têm
daqueles/as que os consomem. 1 efeitos causais- isto é, eles causam mudanças. Mais
imediatamente, os textos causam mudanças em
Essa perspectiva do foco da ADC no que se refere à relação nosso conhecimento (poden1os aprender coisas
entre linguagem e sociedade limita os efeitos sociais dos textos à com eles), em nossas crenças, em nossas atitudes,
nossa compreensão da realidade, isto é, ao aspecto representacional em nossos valores, e assim por diante. Eles causam
do discurso. Entretanto, os efeitos sociais dos textos vão muito também efeitos de longa duração - poderíamos
argumentar, por exemplo, que a experiência prolon-
1 Todas as traduções neste capitulo são de Viviane de Melo Resende, a não ser gada com a publicidade e outros textos comerciais
quando especificado. contribui para moldar as identidades das pessoas

62 63
IZ?.RFL Mi\CI\LI-lí\E:S, i\l\JDPÉ R. ti\1\RT!NS F VllflANC DE /VI_ RFSENDE ANALISE DE DISCURSO Cl~ÍTIC/\

como ((consumidores)) ou "consumidoras». Os textos satisfatória a relação entre linguagem e sociedade, é necessário articu-
podem tarnbém iniciar guerras ou contribuir para lar a análise de textos à análise de caráter social. Em outras palavras, é
transformações na educação, ou para transforma- preciso estar sensível às cadeias de textos e a seus efeitos sociais mais
ções nas relações industriais, e assim por diante. amplos (veja também os capítulos 1 e 2, neste volume).
Seus efeitos podem incluir, então, mudanças no Para exemplificar as possibilidades desse trabalho analítico,
mundo material. Em suma, textos têm efeitos cau- na próxima seção abordaremos uma série de reportagens publi-
sais sobre as pessoas (crenças, atitudes), as ações, as cadas no jornal Correio Braziliense acerca da exploração sexual
relações sociais e o mundo material. Esses efeitos de crianças e adolescentes na região central de Brasília para, em
são mediados pela construção de significado. seguida, discutir os efeitos sociais desses textos para o projeto
GirAção, do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de
É necessário, contudo, tornar clara essa causalidade. Não se Rua, e para a formulação de políticas públicas.
trata de uma simples causalidade mecânica - não podemos, por
exemplo, sugerir que aspectos particulares de textos acarretem 2 Jornalismo e sociedade: as reportagens do jornal Correio
mudanças particulares no conhecimento ou no comportamento Braziliense
das pessoas, ou efeitos sociais e políticos particulares. A causalidade
não implica regularidade: pode não haver um padrão regular de Um dos focos da crítica social de textos é a análise de sua
causa-efeito associado a um tipo particular de texto ou a aspectos vinculação a uma lógica de aparências ou a uma lógica explanatória.
particulares dos textos, mas isso não significa que não haja efeitos Fairclough (2003) diferencia os dois tipos de lógica na formulação
causais (FAIRCLOUGH, 2003, p. 8; 2 veja também o capítulo 1, dos textos: a primeira apenas lista determinadas aparências rela-
seção 1, neste volume.) cionadas a atividades específicas, sem referência às práticas e às
Assim, com base em formulações oriundas da "primeira onda'' do estruturas determinantes dessas atividades, e a segunda inclui uma
RC (BHASKAR, 1989), a ADC objetiva investigar a relação entre elaboração das relações causais entre eventos, práticas e estruturas.
linguagem e sociedade, em termos dos efeitos causais da estruturação Em sua definição da prática e da função do jornalismo,
social na formulação de textos e de textos na sociedade 3 Obviamente, Richardson (2007, p. 7) o vincula à lógica explanatória, contra-
investigações dessa natureza não podem ser obtidas simplesmente riando opiniões segundo as quais o jornalismo seria uma prática
por meio da análise isolada de textos: para que se perceba de maneira a serviço da manutenção do poder:

'T'radução de Izabel Magalhães c de Vivianc de Melo Resende.


O jornalismo existe para possibilitar a cidadãos c
3 Vandenberghe (2009, p. 1) sugere que o RC desenvolveu-se em três ondas: a pri-
meira "investigou as fundações da filosofia das ciências[ ... ], desenvolveu o sistema cidadãs uma melhor compreensão de suas vidas e
do naturalismo crítico para as ciências sociais e delineou a crítica explanatória"; de suas posições no mundo. O sucesso ou fracasso
a segunda "desenvolveu o Realismo Crítico Dialético"; e a terceira refere-se à "virada
do jornalismo~ em outras palavras o grau em que
espiritual" do RC. Dessas três ondas, apenas a primeira alimenta, de modo funda- 1

mental, a ontologia da ADC, na versão de Fairclough. cumpre essa tarefa ou não-, pode ser medido pela

64 65
!ZABEL MAGALHJ\ES, ANDRE R. MARTINS E V!V!ANC DE M. RCSCNDC 1\NÁUSF. DE DISCURSO CRÍTICA

Quadro 3.1: Scquência cronológica das matérias publicadas no


forma como consegue cumprir esse papel de con- jornal Correio Braziliense acerca da exploração sexual de crianças
fiança: o jornalismo ajuda você a cmnpreender o e adolescentes em Brasí\ia-DF
mundo e sua posição no Inundo? (cor1clusão)

Data de publicação
Matéria assinada por Título da matél"ia
Embora muitos estudos indiquem que textos jornalísticos noCB
têm, sim, sido utilizados de forma ideológica (MARTINS, 2011; Erika Klingl e
Governo Iom! anuncia a owpariio

THOMPSON, 1995), isto é, como modo de reificação de signi- 25/9/2008 da rodoviária por grupos de
Ary Filgueira
agentes sociais
ficados a serviço da manutenção das relações de poder (veja, por
26/9/2008 Editorial do CB Uma chaga nacional
exemplo, PARDO ABRIL, 2008), Richardson reconhece uma
Governo local cria
função explanatória para a prática jornalística. A série de reporta-
26/9/2008 Lúcio Costi subadministrarão para tomar
gens sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes na região
conta da área central da cidade
central de Brasília, publicada pelo Correio Braziliense em 2008,
Erika Klingl c Cúpula da Justiça defende atitude
exemplifica essa função explanatória e sua potencialidade em termos 26/9/2008
Raphael Veleda imediata
dos efeitos sociais dos textos jornalísticos. O objetivo aqui não é Difinido o pacote de
26/9/2008 Lúcio Costi
proceder a uma análise linguística dos textos, mas, se fosse esse o arões emngenciais
escopo do capítulo, seria possível indicar, por meio das categorias 26/9/2008 Erika Klingl Drogm, o combustfve! do abuso
linguístico-discursivas associadas à ADC, como as relações causais Abrigos para crianras vítimm
entre eventos, práticas e estruturas são exploradas nos textos. 28/9/2008 Erika Klingl de exploraçiío sexual continuam
Vejamos, no quadro 3.1, a seguir, a sequência das matérias inadequados no DF

publicadas, em ordem cronológica: Adriana Bernardes


CN} agirá junto com o governo e
30/9/2008 .fiscalizará combate
e Lais Lis
Quadro 3.1: Sequência cronológica das matérias publicadas no à exploração injànti!*
-"-
jornal Correio Braziliense acerca da exploração sexual de crianças ' CNJ- Conselho Nacwnal de Justrça
e adolescentes em Brasília-DF
(continua) Como indica o quadro 3.1, entre os dias 24 e 30 de setembro
de 2008, foram publicadas no Correio Braziliense dez matérias a
Data de publicação
Matéria assinada por Título da matéria respeito da exploração sexual de crianças e adolescentes na região
noCB
central de Brasília, especificamente na rodoviária do Plano Piloto,

I
Sexo com crianças é vendido
24/9/2008 Erika Klingl Dessas dez matérias, seis foram assinadas pela jornalista Erika
a R$ 3 no coração de Brasília
Exploração sexual de Klingl, autora, inclusive, da matéria do dia 24 de setembro, que
25/9/2008 Erika Klingl crianças na rodoviária não é denunciou a "venda de sexd' com crianças ''no coração de Brasília1',
exclusividade das mulheres
í dando origem ao debate. Neste capítulo, abordaremos de modo

66
I 67
IZAD!::L MAGALHÃES, ANDRÉ R. MAHT!NS E V!V!ANE DE M. RESENDE ANÁUSE DE DISCURSO CRÍTICA

mais incisivo apenas a primeira matéria, intitnlada "Sexo com Se pensarmos, por exemplo, em discurso (bla, escrita
crianças é vendido a R$ 3 no coração de Brasília". ou pensamento) relatado, é possível não apenas citar
Para Richardson (2007, p.ll), "os significados de um enunciado, o que é dito ou escrito alhures, é possível resumi-lo.
um argumento, um texto de jornal estão intimamente relaciona- Essa é a diferença entre o que é convencionaLncnte
dos à identidade do produtor ou da produtora responsável por seu chamado de "discurso dU·cto" (que pode citar a escrita e
conteúdo e a seu contexto de circulação". Especialista em matérias os pensamentos organizados, cmno também a fala (por
sobre direitos humanos, a jornalista Erika Klingl foi vencedora, em exemplo, "Ela disse: 'Vóu chegar atrasada'')) e fOrmas de
2006, do 3" Concurso Tim Lopes de Investigação Jornalística, pelo "discurso indiretd' (por exemplo, "Ela disse que ia che-
Caderno Especial "Infância Perdida'', publicado no CB. A repor- gar atrasada''). Diz-se que o primeiro exemplo repro-
tagem revelou "a relação direta entre a exploração sexual de crian- duz as palavras reais usadas, mas o segundo não; um
ças e adolescentes e o baixo desempenho escolar" (ANDI, 2006). resumo pode parafrasear o que foi realmente dito ou
Em 2007, a jornalista recebeu também o Prêmio de Excelência escrito. O discurso (fala, escrita ou pensamento) direto
Jornalística- Melhor reportagem publicada nas Américas, na cate- atribui o que é citado ou resLUniclo às pessoas que o
goria Direitos Humanos, e o título de Jornalista Amiga da Criança, disseram, escreveram ou pensaram. Porém 1 os elemen-
um reconhecimento do Unicef, da Andi e da Fundação Petrobrás. tos de outros textos podem também ser incorporados
Pela natureza de seu trabalho como jornalista, especialmente sem atribuição. Assim, a interte.,'Ctualidade cobre uma
pelo tipo de matérias que se interessa em escrever, a jornalista tem gama de possibilidades 4
acesso a movimentos sociais e fontes privilegiadas para a produção
de reportagens como as de setembro de 2008. Um aspecto marcante Resende e Ramalho (2006, p. 65) ainda explicam:
da primeira matéria dessa sequência é a presença das vozes de
crianças e adolescentes em sitnação de exploração sexual, entre- A intcrtextualidade é uma categoria de análise
vistadas pela jornalista, o que difere das reportagens analisadas por muito complexa e potencialmente fertiL Bakhtin
Magalhães (2010a), em que as crianças são tratadas como objetos. (2002) enfatizou a dialogicidade da linguagem,
Em relação às vozes das crianças e adolescentes, vamos fazer postulando que textos são dialógicos em dois
referência às seguintes categorias analíticas da ADC: intertextuali- sentidos: primeiro, mesmo textos aparentemente

II
dade e polifonia (FAIRCLOUGH, 2003; MAGALHÃES, 2012; monológicos, como os textos escritos, participam
capítulo 9, adiante). De acordo com Fairclough (2003, p. 39): de uma cadeia dialógica, no sentido de que respon-
dem a outros textos e antecipam respostas; segundo,
Em seu sentido mais óbvio, a intertextuaüdade é a o discurso é internamente dialógico porque é poli-
presença de elementos reais de outros textos em um fônico, todo texto articula diversas vozes.
texto- por exemplo, citações. Porém, há várias maneiras

I
menos óbvias de incorporar elementos de outros textos. 4
Tradução de IzabcllVlagalhfies.

68 69
JZABEL IvlAG/\LHÀES, ANDRÉ R. Ivli\H.'I'lNS E VlVlANE DF M. RESENDE ANÁUSF. DE DISCURSO CRÍTICA

Quadro 3.2: Polifonia na matéria "Sexo com crianças é


Assim, em uma análise discursiva crítica propriamente dita
....
vendido a R$ 3 no coração ele Brasília"
-o que não é o propósito deste capítulo- seria relevante a cate- (continuaçâo)
goria de polifonia, tanto no que se refere à presença das vozes
de meninos e meninas nas matérias, sinalizando uma abertura
para a diferença, nos termos de Fairclough (2003), quanto no
! -':~;ea_~ -r_"_a_:_t~_;_:_~z_aç_"a_~:_"
__a_s__ __ _ Citações diretas e indiretas : l
que diz respeito à articulação de outras vozes: "É comum lcv,uem ,1 gente pata os matos perto
do Lago Pmanoa e deLx,ucm ,t gente pra ttas se1n
Quadro 3.2: Polifonia na matéria "Sexo com crianças é Manuela dmherro", reclama Manucla, de 19 anos. Ela é
vendido a R$ 3 no coração de Brasília" (pseudônimo Discurso explorada sexualmente desde os 16. "E a gente
(continua) utilizado direto não pode reclamar porque apanha feio".[ ... ]
na matéria) ''A. gente fica dentro dos carros ou do lado de
Vozes Natureza da I1 Citações diretas e indiretas
fóra em cima do capô e é muito difícil aparecer
~~~cu]~~~r-- --~t·ticulação ~-- ._ alguém pra dizer que não pode", relata lVlanuela.
--+-----+-c
Rita (pseudô- "Por R$ 3, os moços mexem na gente", diz Especialistas A solução do problema, segundo especialistas
Discurso Discurso
nimo utilizado Rita. Mexer é tocar no corpo das meninas e ouvidos pelo ouvidos pelo Correio, deve envolver todos os
direto indireto
na matéria) fazê-las praticar sexo oral. Ela tem 9 anos. Correio segmentos da sociedade.
------1---- f---- --+----- ---------
"Teve um dia em que o moço quis me dar "Só com o apoio de todos vamos transformar
Paula (pseudô- R$ 5 para fazer sexo comigo, mas eu chamei o esses cidadãos em protagonistas de seus :fi.ttu~
Discurso Maria de
nimo utilizado policial e disse que ia ser estuprada. O homem ros. A criança tem que saber que é vítima para
direto Fátima Pereira Discurso
na matéria) fugiu", conta Paula, que não faz a denúncia criar perspectiva de mudança", afirma Maria
Alberto direto
quando é "só" tocada por alguém. de Fátima Pereira Alberto, coordenadora do
~---------4----~--- (UFPB)
Moradora de rua, para escapar da violência grupo de estudos sobre trabalho precoce da
doméstica, chega a sair com seis homens dife- Universidade Federal da Paraíba.
Marcela rentes por noite. E, quando oferecem mais, faz
(pseudônimo Discurso sexo sem preservativo. ''A gente sempre tem Para Mário Volpi, do Fundo das Nações Unidas

utilizado direto camisinha porque ganha dos assistentes sociais, para a Infância (Unicef), são necessários qua-

na matéria) mas os caras nem gostam de usar", admite.[ ... ] Mário Volpi Discurso tro pihu·es para combater a violação de direitos.
"Eles gostam assim suja mesmo, tia. Eles não (Unicef) indireto O primeiro pa.ssa. pelo fortalecimento da família,j
ligam pra nada", analisa lVIarcela. com destaque para a geração de renda. Assim as

L
-----~---~---
crianças c adolescentes deixam de ir para as ruas.

70 71
JZABEL MAGALHÃES, ANDRF. R. MJ\RTlNS E VTVJANE DE M. RESENDE ANÁLISI:: Df:: DISCURSO CRiTTCi\

Quadt·o 3.2: Polifonia na matéria "Sexo com crianças é Qyadro 3.2: Polifonia na matéria "Sexo com crianças é
vendido a R$ 3 no coraçao de Brasília'' •.. vendido a R~~ 3 no coraçào de Brasília"
(continuação) (conclusão)
· - ----

r Naturezada---,~~

r····
Vozes 1 Vozes Natureza da j
Citações diretas e indiretas Citações dit·etas e indiretas
articuladas I articulação articulaçã~ 1
1--- ------ '---+-- --r------
0 segundo é o combate à impunidade, com ''A gente tira as crianças e adolescentes das ruas,
responsabilização do agressor c identificação mas a estrutura para manter as meninas longe i
do aliciador. Em seguida, é hora de atuar com Discurso das drogas e das situações de risco nem sempre
Discurso as vítimas, resgatando a autoestima e supe- I direto 1 funciona como deveria. Elas acabam voltando",
indireto rando traumas. Por fim, é fUndamental tra- admite Alexander Traback, titular da Delegacia
balhar para fortalecer o sistema jurídico, com de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA).
melhoria da estrutura dos conselhos tutelares,
1-----t-----
1\!Iário Volpi Ele explica que sem um resgate dos familiares,
(Uniccf) dos juizados e das varas da infância.
~------+-- ------ ! com geração de renda e injeção de ::mtoes-
"Não é admissível que exista exploração se)(Ual Alexander tima, é difícil combater o vício, a violência
de crianças em nenhum caso. Na capital do Traback Discurso c a cxploraçáo. De acordo com Traback,
Discurso país é ainda pior. E, se isso simbolizar o fra- (DPCA) indireto periodicamente é feito um levantamento das i
direto casso das instituições que deveriam proteger áreas críticas de violação do direito a partir de
as meninas c os meninos, é um choque", i denunctas anômmas, tep01 tagens e pesqmsas

i
comenta Volpi . fettas pela soctcdade ctvtl
- . -----+------+-'--- ____:_________ ---------1
l
1 A professora Maria Lúcia Leal, da Univer- Dtscurso "Com esse m,ltcrt,J, tndtvtdualtzamos o aten-
sidade de Brasília, responsável pelo maior ducto dnnento", afit ma
1 ,--- ------------------
estudo já feito no país sobre o tema, vai mais
Discurso O delegado explica que todos os envolvidos no
longe: "O Distrito Federal tem um turismo Discurso
processo de vitimização das crianças e dos adoles-
direto I de negócios que torna o enfrentamento mais indireto
Maria Lúcia difícil. Existem meninas exploradas à luz do ______ .L centes podem ser enquadrados nas leis brasileiras. 1

Leal (UnE) dia por políticos e lobistas".


----------

De acordo com ela, a sociedade do DF tem


No que se refere à intertextualidade, além das vozes de
Discurso fracassado em dar uma resposta adequada a I crianças e adolescentes, o texto articula também textos jurídicos:
indireto um dos maiores problcrnas envolvendo.. c..rian-~ a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente,
L _ _ __
ças e adolescentes em situação de rua. a Lei dos Crimes Hediondos, a Lei da Tortura e o Código Penal
são citados na matéria. Acerca da relação entre o texto, seu gênero
e o produtor ou a produtora do texto, Richardson (2007, p. 40) diz:

72 73
IZABEI. MAGALHÃES, ANDRE R. MARTJNS E V!VIANE DE M. RESENDE J\NÁLJSE DE DISCURSO CRiTICA

o produtor ou a produtora do texto e seu modo de Obviamente, essas respostas ao texto relacionam-se ao que
produção codificam significados no texto (a esco- vimos, na seção anterior, acerca dos efeitos causais dos textos 1 em ter-
lha de uma história e não de outra, a escolha de mos de sua perforrnatividade (AUSTIN, 1962; FAIRCLOUGH;
uma abordagem e não de outra, etc.), mas o texto JESSOP; SAYER,2002).A esse respeito, e tratando especificamente
também age sobre o produtor ou a produtora, da prática jornalística, Richardson (2007, p. 12) diz o seguinte:
moldando o modo como a informação é coletada
e apresentada em decorrência das convenções do o uso da linguagem é sempre ativo, é sempre dire~
gênero do texto em construção. cio nado afazer alguma coisa; e o modo como a lin-
guagem realiza essa atividade é sempre relacionado
Assim, a natureza do texto, em termos de sua estrutura formal, ao contexto em que é usada. Por exe1nplo, um/a
obedece à lógica do gênero reportagem, mas a seleção de vozes pre- jornalista pode usar a linguagem para nos informar
sentes, a escolha das histórias e abordagens apresentadas é bastante sobre um evento, para expor irregularidades, ou para
particular, podendo ser contrastada com outras matérias acerca da argumentar em favor de, ou contra alguma coisa.
vulnerabilidade social, publicadas no mesmo jornal (SILVA, 2009). (Grifos no original).
Ainda em relação às cadeias intertextuais, vale ressaltar que
um efeito social do texto em foco é a ação responsiva por meio O texto em questão faz tudo isso: informa acerca de uma situ-
de outros textos. Por exemplo, a deputada Erika Kokay publicou, ação moralmente inaceitável, expõe irregularidades e argumenta em
em sua página na internet, o texto "Enfrentar a violência sexual", favor do respeito aos direitos assegurados em lei, inclusive expondo,
no dia 24 de setembro, mesmo dia da publicação da denúncia ao final da matéria, uma seleção de textos jurídicos. Apesar da
assinada pela jornalista Erika Klingl. Na página do Supremo Tri- natureza informativa dos textos jornalísticos, parece ingênuo supor
bunal Federal (STF), em 25 de setembro, foi publicado o te,'i:tO que as matérias do CB tenham publicado, de fato, urna denún-
"Denúncia de prostituição infantil em Brasília será acompanhada cia de fatos desconhecidos do poder público. Organizações nã.o
pelo Judiciário", com declarações do então presidente do STF, governamentais e movimentos sociais, a exemplo do Movimento
Gilrnar Mendes. Nos dias 27 e 30 do mesmo mês, respectiva- Nacional de Meninos e Meninas de Rua (veja a seguir), dedicam-se
mente, o senador Cristovam Buarque publicou em seu site os à denúncia desse e de outros problemas envolvendo a infância.
textos "Vergonha e esperança'' e "Nossa Brasília". Nos três últimos Então, por que foi só com a denúncia veiculada no jornal que a
casos, que são apenas exemplos da repercussão das matérias do CB, questão tornou vulto, a ponto de o Governo do Distrito Federal,
foram feitas referências explícitas à reportagem de Erika Klingl:' por meio da Secretaria de Ação Social e Transferência de Renda,
organizar um seminário para debater a questão, em 25 de setembro,
5 Aqui, percebe~se claramente a relevância da pesquisa etnográfico~discursiva na
análise da prática social, mediante a observação participante na empresa jorna ~
listica (CB), com entrevistas ctnográficas de jornalistas (capítulo 4, a seguir), mas Plano Piloto ou, como optamos, em trabalho de campo _junto a movimento social
também, c quiçá principalmente, em trabalho de campo na própria rodoviária do atuante na temática (veja seção 3, a seguir).

74 75
JZABF.L MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTJNS E VlVJJ\NE DE M. RESENDF /\NÁLJSE DE O!SCUHSO Cf(ÍTICA

dia seguinte à publicação da primeira matéria? Mais uma vez, Fairclough (1995, p. 205) acerca dos textos da mídia: "forma de
recorreremos a Richardson (2007, p. 13): ação social que pode ter como respostas muitas formas de ação
social. Essas respostas podem ser outros textos [ ... ] ou formas
O uso da linguagem tem poder. Entretanto, o modo não textuais de ação". É o caso da organização pelo Governo do
de operação do poder da linguagem não é de moerá- Distrito Federal de um seminário para debater o problema, logo
tico.A palavra de algumas pessoas é claramente mais no dia seguinte à primeira denúncia. Convém acrescentar que,
poderosa que a de outras; a opinião de certas pessoas apesar de o seminário ter gerado outros textos orais e escritos, há
tem mais credibilidade e autoridade que a opinião muito mais do que textos na organização de um evento como esse.
de outras.[ ... ] Do mesmo modo, certas formas de No dia 26 de setembro, após a publicação das duas primeiras
comunicar têm mais poder que outras; certos gêne~ reportagens da série, o mesmo governo enviou forças policiais
ros da comunicação têm mais efeitos potenciais na à rodoviária do Plano Piloto, local que concentra crianças e
vida social que outros- tanto em termos de efeitos adolescentes em situação de rua e vítimas de exploração sexual.
positivos quanto negativos.[ ... ] O jornalismo tem Isso não surpreende, uma vez que a exploração sexual é crime e,
efeitos sociais: tem poder para moldar a agenda c o como tal, deve ser reprimida. O que surpreende é que a polícia
discurso público; pode moldar as opiniões das pes- tenha se voltado contra as vítimas da exploração, e não contra
soas sobre o mundo e seu jJapel no mundo; ou, se não seus exploradores.
moldar suas opiniões sobre uma questão particular, É a esse fato, como um dos efeitos sociais das matérias
pode ao menos influenciar as questões sobre as quais publicadas, e às suas consequências para o projeto GirAção e
se tem opinião. Em resumo, o jornalismo pode mol- para a formulação de políticas públicas, que queremos chegar.
dar a realidade social quando molda nossas visões da Antes, entretanto, precisamos situar o projeto GirAção e sua
realidade social. (Grifos no original). relação com a questão da infância na região central de Brasília.

Tratando dos efeitos sociais do jornalismo, Richardson enfa- 3 O Movimento Nacional de Meninos c Meninas de Rua e o
tiza que o significado discursivo de um texto não é resultado direto projeto GirAção
da codificação/decodificação de mensagens, uma vez que nossa
avaliação do conteúdo de textos é afetada por nosso julgamento Nesta seção, faremos um breve relato da história do Movi-
sobre quem os produz e sobre as instituições a que se filiam. Ade- mento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e
mais, certos gêneros e suportes resultam mais eficazes que outros. da criação do projeto GirAção. O objetivo aqui é, simplesmente,
Além do aspecto representacional dos efeitos sociais dos construir o cenário sobre o qual poderemos, na próxima seção,
textos jornalísticos, relacionado à sua capacidade de construir explorar alguns efeitos sociais das matérias do CB para o pro-
visões particulares da realidade social, o caso em foco sugere jeto e para a implantação de políticas públicas para a infância
também efeitos acionais no mundo, de acordo com a definição de e a juventude.

76 77
!ZABEL /v\J\C/\L.Hi\FS 1 ANDRF: R. MARTINS E 1/IVJANE DF M. RESENDE ANALlSE DE DISCUH.SO CH!TICA

O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua de organização para lutar contra a violência e pelos
seus direitos de cidadania. (SANTOS, 1994, p. 14).
O ano de 1979 foi proclamado pela Organização das Nações
Unidas (ONU) o Ano internacional da criança. No Brasil, Entre 1986 e 1988, foram formadas comissões locais na
durante esse ano, realizaram-se campanhas, seminários e debates maior parte dos estados brasileiros e foram estruturadas comis-
que difundiram a problemática da situação de crianças no país. sões regionais nas cinco regiões geográficas do país, além da
Essa interlocução difundiu também o papel da educação social secretaria nacional, com sede em Brasília. Por meio da articu-
de rua como alternativa ao modelo reprcssor e assistencialista, !ação em rede, o MNMMR foi capaz de ultrapassar seu papel
no que se refere a crianças e adolescentes em situação de rua. reivindicatório para assumir também um papel pro positivo, de
Como resultado, configuraram-se diversas iniciativas com propos- acordo com a configuração dos novos movimentos sociais dis-
tas alternativas para o tratamento do problema da vulnerabilidade cutida por Gohn (2003).
de crianças e adolescentes no país. Embora nunca tenha abandonado seu papel de denúncia, o
Esses diversos movimentos populares isolados tiveram MNMMR articula também o papel de pressão reivindicatória
a oportunidade de se organizar em rede por meio do projeto direta e indireta. Por seu trabalho junto a crianças e adolescentes
Alternativas comunitárias de atendimento a meninos de rua, em situação de rua, o Movimento recebeu, em 1991, o Prêmio
implantado em 1982, com o apoio do Fundo das Nações Unidas Internacional da Associação de Direitos Humanos do Equador
para a Infância (U nicef). A articulação em rede é, para Castells e o Prêmio Internacional da Associação Pró-Direitos Humanos
(1999), um fator fundamental para a capacidade de os movimen- da Espanha, e, em 1992, o Prêmio Criança da Fundação Abrinq.
tos sociais configurarem-se como atores políticos com influência Os principais projetos do movimento desde sua criação,
nas tomadas de decisão. A interlocução entre as iniciativas então registrados em seu estatuto, são a conquista e a defesa de direi-
existentes no país, engajadas na construção de alternativas, resul- tos, a formação de educadores e educadoras e a organização
tou na formação, em 1985, do Movimento Nacional de Meninos de meninos e meninas. A conquista de direitos foi um aspecto
e Meninas de Rua. fundamental da atuação do movimento no período imediato a
Em maio de 1986, esse movimento, recém-fundado, foi sua criação, com as pressões realizadas junto a parlamentares à
capaz de organizar o I Encontro Nacional de Meninos c Meninas época da formulação da Constituição de 1988, e com as atividades
de Rua, com a participação de cerca de 500 crianças e adolescentes vinculadas à elaboração e à aprovação do Estatuto da Criança e
de todas as regiões do Brasil: do Adolescente (ECA) e à formação dos conselhos de direitos.
A defesa de direitos continua sendo um foco central, uma vez
Este encontro 1 inédito em todo o mundo, desperta a que "as dezenas de comissões do MNMMR funcionam como
atenção da sociedade e transforma-se em um marco virtuais centros de defesa da criança, sendo um canal para expres-
significativo para que meninos e meninas de rua são da voz de meninos c meninas cujos direitos são violados"
comecem a adquirir voz e vez e iniciem um processo (SANTOS, 1994, p. 40).

78 79
IZABEL Mi\C;AI,HÃJ::S, 1\NDRt:. R. MARTINS E VJV1ANE DE lVL RESENDE ANi\LlSL DL DISCURSO CRITICA

O prqjeto GirAção Marcelo: É normal. O Movimento não está nem integrado


cmn a questão da discussão do tdfico porque a rnaioria dos
Idealizado em 2006 e implementado em 2007, o projeto meninos que estão no movilnento, não-sei-o-quê, a gente tem
GirAção, uma parceria entre o Cecria e o MNMMR/DF, finan- zilhões de problemas. O problema é esse, a gente tinha que
ciado pela Petrobrás, volta-se para a organização de adolescentes e estar integrado junto com o movimento, indo para o lado das
jovens trabalhadores e trabalhadoras informais das imediações da favelas, tinha que estar integrado ... não está.
rodoviária do Plano Piloto, na região central de Brasília. O projeto Vera: Da moradia.
foi aprovado para realização em um ano, em abril de 2007, e foi Marcelo: De moradia.
renovado por mais um ano em 2008. A partir de 2008, e após a Júlia: Marcelo, aqui quem veio dar uma chamada em mim lite-
repercussão das matérias publicadas no CB, ele tornou-se uma ralmente foi um menino. O menino que passou aqui, veio aqui e
parceria entre Organizações Não Governamentais (ONGs) e o disse: "Ô }ú1 eu estou a jhn de fazer um trabalho aí, nzas é com os
Governo do Distrito Federal. meninos de rua porque eufui menino de rua e eu sei a importância
A ideia inicial do projeto foi de um jovem, anteriormente em quefoi o movimento. E o movimento não está traba!bando com esses
situação de rua, que havia sido atendido pelo movimento, e de uma meninos mais". O Rogério pode checar. Eu olbei para o Rogério)
jovem que então trabalhava como vendedora de flores na rodovi- nesse dia eu não tinha o que dizer para ele. Sabe o quê que eu tive
ária do Plano Piloto. A seguir, destacamos um recorte da transcri- a capacidade de dizerpara o Rogério? Eu, militante, pré-bistórica)
ção de uma reunião gravada em 28 de março de 2006 na sede do não-sei-o-quê? "Ah Rogério, senta com a Karina, porque a f(arina
MNMMRIDF, em que se discute a origem do projeto GirAção 6 está na rodoviária". Pode um negócio desses? Não, nós estamos
completamente sem um ei-xo!
Marcelo: Por exemplo, olhe o nome do Movimento- Movimento
de Meninos e Meninas de Rua. Você não discute mais a questão No excerto destacado,Júlia faz referência à visita que rece-
dos meninos de rua, parece que ... beu de um jovem anteriormente em situação de rua, interessado
Maria: Virou comum os meninos de rua! É normal. em "fazer um trabalho aí, mas com os meninos de rua". Júlia,
segundo contou, não soube o que responder a ele, pois de fato
6
a Comissão Local do Movimento no DF não tinha nenhuma
A reunião foi gravada para a pesquisaAnrí/iJe de Dimmo Cdtiw e Etnografia: o Movi-
mento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, sua crise e o protagonismo juvenil. atuação junto a crianças e adolescentes em situação de rua, o que
Participaram da reunião a então coordenadora do MNlVIMRJDF, Paula; as duas ela definiu como "falta de eixo". Resultou que ela sugeriu a esse
educadoras do Movimento à época,Júlia e Vera; a então jovem protngonista Maria
c um voluntário, l\!Iarcelo, além da pesquisadora Viviane de l\!Ielo Resende (a refe-
jovem, Rogério, que procurasse a Karina, que na ocasião estava
rência aos participantes da pesquisa é feita por meio de pseudônimos). Na pauta na rodoviária, trabalhando como vendedora de flores. Ele assim
dessa reunião, constavam: a crise financeira do movimento; a Assembleia Nacional, o fez. Escreveram, Rogério e Karina, um projeto para a orga-
que ocorreria dias depois; e o encerramento das atividades dos núcleos de base.
Foi uma reunião tensa, pois a pauta girava em torno da situação de desestruturação nização de adolescentes/jovens trabalhadores e trabalhadoras
da organização, em nível local c nacional. nas imediações da rodoviária do Plano Piloto, onde há grande

80 81
lZABEL MAGALHi\ES, ANDHÉ R. MARTINS [ VlVlANE DE M. RESENDE ANÁLISE DE DISCURSO CRITICA

movimento de crianças, adolescentes e jovens em situação de rua. Essa não foi uma questão simples: o protagonismo e a assis-
Enviaram o projeto para o Instituto HSBC Solidariedade, que tência são vistos no movimento como diametralmente opos-
o recusou. Depois, o projeto foi reescrito e ampliado, recebeu o tos, daí a configuração do projeto GirAção ter sido palco de
nome de projeto GirAção e foi submetido a edital da Petrobrás, um "conflito interno" (RESENDE, 2008). Apesar da oposição
que o aprovou. entre protagonismo e assistência, a superação desse corte muito
Embora o projeto GirAção - para organização de ado- radical, no âmbito do movimento e do projeto GirAção, parece
lescentes e jovens trabalhadores e trabalhadoras informais nas ter funcionado estrategicamente para a continuidade da própria
imediações da rodoviária do Plano Piloto de Brasília- tenha sua organização e para o protagonismo. Ademais, o projeto adquiriu
origem na proposta de um jovem e uma jovem do movimento visibilidade suficiente para atrair a parceria do Estado, e o objetivo
um ex-menino e uma ex-menina , nos termos da c1assi'fi caçao
(
(( • )) l( • )) -
final desde o início era que saísse das mãos do movimento para se
utilizada no âmbito do MNMMR/DF), a Comissão Local do tornar uma política pública- a assistência, nesse caso, funcionou
MNMMR no DF não pôde submeter o projeto pela própria como uma estratégia, já que não se trata de substituir o Estado,
instituição, pois havia um problema de irregularidade do CGC' mas de promover uma parceria que resulte em políticas públicas
da organização (RESENDE, 2008). Assim, o movimento entrou para populações geralmente pouco beneficiadas por elas.
como parceiro e a proposta foi encaminhada pelo Cecria, institui- Inicialmente, o GirAção foi instalado no segundo subsolo
ção vizinha ao movimento no chamado Corredor da Cidadania. 8 do Centro Comercial Conic, nas imediações da rodoviária, em
Esse projeto previa um ano de duração e representou para sala comercial alugada para esse fim. Após a repercussão das
o MNMMR/DF um novo fôlego e uma retomada de seu obje- matérias publicadas no CB, e em decorrência da ação policial a
tivo- ou de seu "eixo", para usar a expressão de Júlia. Além da que já nos referimos, o projeto foi ampliado e recebeu nova sede,
organização c da conscientização de direitos- objetivos primá- no Setor de Garagens Norte, em espaço pertencente ao Governo
rios da nucleação no movimento (SANTOS, 1994) -,o projeto do Distrito Federal (GDF).
previa como produto a formação de uma associação de engra- Na próxima seção, discutiremos os efeitos sociais da série
xates e a oferta de oficinas diversas a meninos e meninas que de reportagens publicadas no CB, sobretudo no que se refere a
frequentavam a Escola do Parque pela manhã e passavam a mudanças no âmbito do projeto GirAção e a políticas públicas
tarde na sede da comissão local do movimento, onde recebiam para meninos e meninas em situação de rua.
também alimentação 9
4 Do efeito social dos textos: projeto GllAção e políticas públicas
7
CGC- Cadastro Geral de Contribuintes.
R Corredor da Cidadania era o nome designado ao subsolo do prédio da Polícia Nesta seção, nosso foco são os efeitos sociais da série de
Rodoviária, onde se instalaram várias Organizações Não Governamentais voltadas
para os direitos humanos, inclusive a Comissão Local do MNMl\1RIDF e o Cecria. reportagens publicadas no CB, os quais repercutem em três
9
A Escola do Parque é uma instituição pública de educação que atende crianças e âmbitos fundamentais: i) os meninos e meninas em situação
adolescentes em situação de rua, em Brasília- DF. de rua e vítimas de exploração sexual, na região da rodoviária

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JZADEL MAGALHÃ[S, ANDHÉ R. MJ\HTJNS E VJVJANE DE M. RESENDE f\NÁLJSE DE DiSCURSO CRJTJCA

do Plano Piloto; ii) o funcionamento do projeto GirAção; denúncias. Ela fez um processo de investigação
e iii) a formulação de políticas públicas para a infância em situ- mesmo, foi para a rua, ficou vários dias na n.1a,
ação de rua no Distrito Federal. Como veremos, todos esses à noite. E aí o Governo do Distrito Federal acordou
efeitos estão conjunturalmente relacionados, isto é, em cadeia. com um soco na cara: "exploração sexual no coração
Um dos efeitos materiais da publicação das matérias no de Brasília", na rodoviária do zPlano Piloto. Em vez
CB foi a realização de uma blitz na rodoviária do Plano Piloto, de colocar a polícia na rua pm proteger as crianças e os
em 26 de setembro de 2008. A relação entre a ocupação policial adolescentes da exploração sexual, a polícia foi para a
da área e as matérias do jornal é explicitada no texto "Governo rua para eJpancar os meninos e bater nos meninos. E o
local cria subadministração para tomar conta da área central da _projeto GirAção já estava na rodoviária, já tinha um
cidade", publicado na página eletrônica do Governo do Distrito ano e meio que ele estava na rodoviária fazendo um
Federal na internet, no mesmo dia. trabalho com os meninos em situação de rua e com
Mais enfaticamente, a relação causal entre os textos e a ação os meninos que estavam sendo vítimas da explo-
policial foi explicitada pela educadora do projeto GirAção (aqui ração sexuaL E aí os meninos começaram a chegar
identificada pelo pseudônimo Maria) em entrevista concedida no GirAção espancados pela polícia. Disseram que
em novembro de 2008, a respeito das implicações do conjunto não iam mais sair do GirAção porque eles estavam
de reportagens para a atuação do projeto GirAção. 10 apanhando. [... ] A política do Estado, ela é falida,
não tem política pública de atendimento à criança e
Viviane: Maria, eu queria que você me falasse sobre ao adolescente em situação de rua e numa situação
aquelas reportagens que saíram no Correio Brazi- de violência: a criança que está no tráfico, que está
liense sobre os meninos da rodoviária. na exploração sexual, que está no trabalho infantil.
Maria: Que falavam sobre a exploração sexual? Não tem uma política eficaz para essa problemática.
Viviane: É. Então, o que é que aconteceu? Era emergencial e tinha
Maria: Então, a exploração sexual de crianças e quefozer algo emergencial para poder dar um retorno
adolescentes em Brasília é uma realidade antiga. para a sociedade. Então, qualfoi o emergencial deles?
Todo mundo passa _pela rodoviária, vê a situação, Tirar as crianças e adolescentes da rodoviária para
mas ninguém fazia nada. E aí essa repórter do mostrar que, pelo menos a rodoviária agora estava
Correio Braziliense fez essas investigações, fez as "limpa". Foi a dita "operação limpeza" na rodoviá-
ria. Eles colocam a polícia na rua, a policia faz um
10
Maria é uma jovem protagonista do lVIovimento Nacional de :Meninos e Meninas de processo de repressão, um trabalho de repressão, e
Rua e foi uma das participantes da pesquisa Análise de Discurso Cr(!ica e Etnogrqfia: os meninos vão desarticular dali. Para onde eles vão,
o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, sua crise e o protagonismojuvenil
(RESENDE,2008).À época desta entrevista, era educadora do projeto GirAção e eles não querem saber, mas na rodoviária do Plano
fazia parte da coordenação colegiada do MNMMR/DF. pelo menos não estão mais. Então, de certa forma,

84 85
JL::ADEL MAGALHÃES, ANDRÉ: R. MARTINS E VJVJÀNE DE M. RESENDE ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA

eles compreendem isso como a solução do problema. a polícia indo lá, fazendo revista, o secretário de
Eles nào dào importância para onde esses meninos Segurança, bombeiro falando que o projeto era ina-
vão, como é que vai ser o encaminhamento, como dequado, que tinha que ter extintor, que tinha que
é que vai funcionar a política. É mais o trabalho não-sei-o-quê, que blá, blá, blá. Menina, foi muita
de repressão mesmo: 'vambora' tirar, vamos bater coisa assim, muita, muita turbulência mesmo.
porque eles vão sair. E o problema não vai ser mais
de exploração sexual, como se a criança e o adoles- A respeito dessa repressão dos órgãos do Governo do Dis-
cente fossem os culpados pela problemática. E foi trito Federal contra o projeto GirAção em sua atitude defensiva
por isso que os meninos começaram a apanhar em relação aos meninos e às meninas da rodoviária, a deputada
muito na rodoviária. Erika Kokay publicou, em sua página na internet, o texto "Diga
não à exploração sexual", em que se lê:
Como se nota, em seu depoimento Maria observa a relação
causal entre as reportagens publicadas e a ação policial violenta A sede do projeto GirAção, antes organizada para
contra as vítimas da exploração sexual. Na scquência dessa cadeia atendimento diurno, face às agressões sofridas pelas
de efeitos, os(as) meninos( as), para se protegerem da violência crianças c adolescentes em atendimento, passou
da polícia, buscaram a proteção do projeto GirAção, cujo aten- a abrigá-los, de forma improvisada, para garantir
dimento, antes diurno, passou a ocorrer 24 horas por dia: a proteção dos mesmos. Toda saída, desde então,
passou a ser em grupo e monitorada pelos educa-
Maria: Com a polícia batendo nos meninos, eles entra- dores do projeto, para evitar a retirada brusca das
ram no GirAção e falaram que não iriam sair mais. crianças e adolescentes da rodoviária, numa atitude
"Não vamos 1nais sair, porque a gente está com policialcsca e violadora de direitos.
medo de morrer na rua, nós estamos apanhando Além das denúncias de violência policial em rela-
muito, então a gente não vai sair do GirAção". ção às crianças e adolescentes, ocorreu no dia 16
E meio que fez a gente de refém. E, se a gente deste mês de outubro, a partir de 21h, uma ope-
luta pela defesa e garantia dos direitos da criança e ração governamental na sede do projeto GirAção,
do adolescente, um direito é o direito à vida; então envolvendo a Sedes!- Gerência de Ações Espe-
a gente tinha que estar protegendo a vida daqueles ciais; Sesp ~policiais civis, militares e bombeiros;
meninos. Foi quando a gente abriu o projeto, abriu Subsecretaria de Vigilância Sanitária; Diretoria
para os meninos dormirem no GirAção até resolver de Fiscalização de Atividades Econômicas e Vara
o problema, como é que seria depois de toda aquela da Infância e da Juventude do Distrito Federal -
turbulência que estávamos passando. Foi quando Seção do Comissariado. Essa ação resultou não
começamos a dormir com os meninos 24 horas, na repressão aos criminosos, mas na intimação c

86 87
IZABEl. MAGALH!\ES, ANDRÉ R. MARTINS [ VlVlANE DE M, RESENDE ANÁLISE DE DISCURSO CRJTlCi\

auh1ação da organização que atende às crianças c Gi ração podia ... A gente estava funcionando numa
adolescentes vítimas de violência.[ ... ) Esse absurdo sala sub-humana ali no Conic, que era um lugar
e abuso de autoridade precisa ser apurado e repa~ muito precário. E aí, todo mundo viu que ali, de
rado c, nesse sentido, ingressei com Representação fato, o projeto não poderia continuar, que os meni-
na Vara da Infância e Juventude, na Promotoria da nos mereciam um lugar mais digno. E aí) a gente
Infância c Adolescência, na 3' Promotoria Mili- também começou a fazer a pressão: ((Olha a gente
tar e na Delegacia de Proteção da Criança e do está aqui, está todo mundo trabalhando, não é um
Adolescente do Distrito FederaL (KOKAY, 2008). papel nosso, é um papel do Estado. Então a gente
quer que o Estado assuma, que ele então também
Assim, na cadeia de efeitos sociais dos textos publicados no se sinta responsável por esse meninos. Não somos
Correio Braziliense, observamos que não apenas meninos e meni- nós que temos que fazer, nós estamos aqui apenas
nas vítimas da violência foram perseguidos pelas forças policiais, para mostrar para ele como é que se faz.
11

como também a organização que os assiste sofreu perseguição do


poder público, intimidado pelas denúncias veiculadas no jornal. Após essa sequência de eventos discursivos e não discur-
Isso porque o espaço destinado ao atendimento às crianças c sivos conjunturalmente relacionados, um resultado positivo é
adolescentes em situação de rua nas proximidades da rodoviária que o Governo do Distrito Federal assumiu uma parceria no
do Plano Piloto mostrava-se inadequado à nova necessidade projeto GirAçâo, que assim cumpriu seu objetivo de dar origem
que se apresentava: de assistência 24 horas. Disso resultou uma a uma política pública voltada para o atendimento de crianças
articulação política, envolvendo outras organizações da socie- e adolescentes em situação de rua. A coordenação do projeto
dade civil e o próprio governo, que foi pressionado no sentido ainda permaneceu por algum tempo sob a responsabilidade do
de providenciar instalações mais adequadas para o atendimento MNMMR!DF,em parceria com o Cecria e com financiamento
aos meninos e meninas e de assumir sua tarefa nessa parceria. da Petrobrás, mas acabou por tornar-se uma política de Estado,
Foi o que contou Maria: nomeada GirArte, iniciativa que saiu das mãos da sociedade
civil como compromisso assumido pelo governo - a qualidade
E, com tudo isso, veio toda a articulação com o do atendimento prestado, a continuidade do trabalho iniciado
GDF, projeto GirAção, Comissão Social de Direi- e a formulação efetiva e participativa de política pública é outra
tos Humanos da Câmara L·cgislativa, a sociedade história. Ainda assim, outro efeito positivo do debate, segundo
civil organizada no Distrito Federal. Teve vários Maria, foi a consolidação do primeiro Plano de enfrentamcnto à
momentos de discussão, de debate, como é que violência sexual contra crianças e adolescentes do Distrito Federal.
poderia ser solucionado o problema já que ele Esses efeitos em cadeia poderiam ser representados como na
era emergencial. Un1a vez que o GirAção estava figura 3.1, a seguir, que procura organizar a sequência de eventos
co1n os meninos da rodoviária, como é que o discursivos e não discursivos em suas relações causais.

88 89
IL:ADEL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MJ\HTJNS E VIVIANE DE M. RESENDE ANÁL!SE DE DISCUHSO CPITIC:i\

}-..igum 3.1: Scquência de eventos discursivos c náo


discursivos em relações causais ação ou dar início a uma cadeia de eventos como a que vimos.
A explanação de objetos/processos sociais com base na causação,
Poderexew~vo
Enttevi,tas real.,ada> pela jcmolisto com
menino< e meninas ví~mas d€ explaroçõo
Publ:caçiiodas
matérias noC8
{Gov~mo do Distrito federal) isto é, na ativação de poderes causais, não pressupõe uma lógica
sexual na Rodoviária do Plano Piloto
Poder legi,Jativo ,
{deputado,jas e senadores/a'! ,
de regularidades entre causas e efeitos. No Realismo Crítico,
P<~bli<oçiio
de
outros textos a explanação depende, em vez disso, da identificação de meca-
l __-- Poder judiciário

: Repercu,;ão pUblica
{Superior Tribuno I Federal)
nismos causais e das condições que os ativaram/bloquearam.
1 1
das nlõlérias
5otiedad~ civil urgonizodo
{Andi, [Monda, Cedeta, etc)
A vantagem de se focalizarem as práticas sociais é a pos-
Pressão sobre o
sibilidade de se perceber não apenas o efeito de eventos indivi-
Açãorepressivõ
da policia
PmJeto Girl\ção
Estabelecimento de :
Políttca piibiJCai'
duais, mas de séries de eventos conjunturalmente relacionados
{corllfa as vítimas) , parcena Girl\çiio/GDF i
Pre.,:;o 'obr~
poder público
o
na sustentação e na transformação de estruturas, uma vez que
a prática social é entendida como um ponto de conexão entre
O projeto tornou-se uma política pública, confirmando a estruturas e eventos.
expectativa inicial do MNMMR/DF em relação ao GirAção. O envolvimento de textos na construção de significado e
Segundo Maria: o efeito causal de textos são questões que a análise textual não
elucida sozinha. O discurso tem efeitos na vida social, os quais
o objetivo inicial do GirAção, que a gente vem con- não podem ser suficientemente investigados levando-se em con-
quistando aos poucos, era mostrar para a sociedade sideração apenas o aspecto discursivo de práticas sociais. Tendo
a problemátíca dos meninos em situação de rua, isso em vista, parece claro perceber que análises discursivas crí-
mostrar para o Estado que os meninos existem, que ticas não devem ser pautadas apenas no aspecto discursivo das
é possível a mudança e que ele assuma o projeto práticas, sob o risco de se perder de vista a relação dialética entre
GirAção como política pública de atendimento à os momentos destas e o potencial do discurso para a compre-
criança e ao adolescente em sih1ação de rua. ensão de outros aspectos das práticas. O propósito aqui não foi
realizar análises discursivas propriamente ditas, pois o objetivo
Considerações finais era apontar as relações causais entre eventos discursivos e não
discursivos em um caso particular, explorando os efeitos sociais de
Assim como discursos contextualmente localizados podem textos. Apesar disso, outras análises podem ser feitas, mostrando,
ser explicados em termos causais, podem também ser identifi- por exemplo, como se realiza discursivamente a representação
cados como tendo poderes causais em eventos. É a isso que a de atores sociais envolvidos nos eventos narrados, como autores
ADC refere-se como "relação dialética entre linguagem e socie- e autoras agem por meio de seus textos, como as autoridades
dade". Aspectos discursivos de práticas sociais, como representa- políticas posicionam-se em relação aos problemas apresentados,
ções discursivas de eventos e práticas, podem ter efeitos causais como os diversos textos dessa cadeia textual vinculam -se à lógica
na sociedade; podem, por exemplo, legitimar certos modos de de aparências ou à lógica explanatória.

90 91
l7ARF!. MM-;t'l,l.HÃFS, Al\TDRF. R_ Mf\HTlNS [ V!VTANF DF M. T(f=:Sf::Nl)[

Neste capítulo, limitamo-nos a acompanhar uma série de


eventos, discursivos e não discursivos, inter-relacionados em
termos causais. Esse tipo de investigação pode ser útil para que
possamos compreender, em dados concretos, o que na teoria
definimos como relação interna entre linguagem e sociedade.
Textos, sem dúvida, têm efeitos causais. E a história que contamos
aqui mostra como esses efeitos podem ser de diversas naturezas,
expondo um campo fértil para investigações que pretendam fazer
crítica social pela via do discurso.

92
CAPÍTULO 4

ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA E ETNOGRAFIA-


UMA RELAÇÃO COMPLEMENTAR

Introdução

A reflexão que vamos apresentar neste capítulo está centrada


na relação entre a Análise de Discurso Crítica e a pesquisa etna-
gráfica. A etnografia é uma abordagem metodológica adequada
para o estudo da prática social (veja capítulo 1, seção 2, neste
volume). O discurso, incluindo os aspectos semióticos ligados à
imagem, é uma dimensão da prática social (CHOULIARAKI;
FAIRCLOUGH, 1999; MAGALHÃES, 2004). Isso significa
que os textos- a materialidade linguística e semiótica das práticas
sociais- precisam ser contextualizados nas práticas, o que exige
um trabalho de campo (MAGALHÃES, 2006).
Schmitz (2005) defende a pesquisa qualitativa etnográfica
com veemência, citando Denzin e Lincoln (1994), que fazem a
seguinte observação:

A pesquisa qualitativa abrange duas tensões ao


mesmo tempo. Por um lado ela está voltada para uma
sensibilidade ampla, interpretativa, pós-moderna,
feminista e crítica. Por outro, está voltada para uma
concepção mais estreitamente definida da experiên-
cia humana e à sua análise positivista, pós-positivista,
humanista e naturalista. (DENZIN; LINCOLN,
1994, p. 4 apud SCHMITZ, 2005, p. 21).
lLf\_DEL MACAU--lÃFS, ANDR"F R_ MARTINS E V!VIANE DE /Vi. RESCNDE ANALISE DF. DISCURSO C!-dTJC/1

Essas tensões são debatidas por diversos autores, que em argumentação prévia p<tra defender, como acontece
vez de meramente seguirem tradições analíticas, enveredam pela com uma monografia ou um tratado. Passeios por mas
transgressão dos textos canônicos, Assim o foi na década de 1980, paralelas ainda mais estreitas, ou desvios mais amplos,
quando a Antropologia estabeleceu uma relação transdisciplinar também não causam muito dano, pois não esperamos
com a Literatura, debatendo a produção e a interpretação textual encontrar progTesso ao fim de uma estrada reta, onde
do relato etnográfico (ATKINSON, 1992; CLIFFORD, 1986; se anda incansavelmente para a frente, c sim através de
VAN MAANEN, 1988), caminhos sinuosos e improvisados, onde o resultado
Redigir um texto etnográfico nem sempre é o primeiro ato aparece onde tem que aparecer. E, quando não se tem
de escrita em que as notas de campo são lidas e usadas, Os relatos mais nada a dizer sobre o assunto, seja por enquanto
do campo, uma espécie de etnografia "cinza", ou subetnografia, ou para sempre, pode-se simplesmente deixá-lo de
podem basear-se nas notas de campo. Mas muitos relatos, como lado. (GEERTZ, 1997,p. 14).
cartas do campo, sem dúvida são principalmente formas de divul-
gaçao de notas divisórias. A primeira forma mais importante de O relato etnográfico é, certamente, um gênero discursivo que
escrita é um esquema, baseado nas notas de campo, produzido pode ser explorado na relação transdisciplinar entre os estudos da
para elas e às vezes inscrito diretamente aí. Isso é indexação e linguagem e dos letramentos multimodais, que incluem imagens,
envolve decisões importantes que irão estruturar posteriormente quadros, tabelas e gráficos, e a etnografia. Há diversas definições
o texto etnográfico (SANJEK, 1990) 1 de gêneros discursivos, Para nossos propósitos aqui, gêneros dis-
Há, pois, diversos tipos de notas de campo; Sanjek as clas- cursivos são potenciais para (inter)ações, que caracterizamos como
sifica em notas divisórias (por assunto) e notas gerais. Há tam- formas textuais e sentidos derivados dos propósitos das situações
bém textos intermediários entre as notas e o relatório da pes- sociais, constrangendo os textos falados, escritos e visuais (no caso
quisa. Qmis são? Sanjekrefere-se a esquemas, relatos do campo dos letramentos multimodais) (MAGALHÃES, 2005b, p. 237).
(subetnografia) e cartas do campo, todos baseados nas notas de Essa definição esclarece que os gêneros discursivos não se redu-
campo, Acrescente-se à lista os diários de pesquisa, como o de zem a textos, 1nas não há como examinar aqueles sem o acesso
Malinowski (1967): A diary in the strict sense ofthe term (Um a estes, pois é aí que os gêneros são materializados. No sentido
diário no sentido estrito do termo), Pode-se imaginar o texto contrário, a mesma definição aponta que não se produzem textos
etnográfico em termos de uma trajetória com diversos momentos sem recorrer a gêneros discursivos.
textuais, como nos sugere Geertz ( 1997): Assim, entendemos que discursos e gêneros discursivos derivam
de práticas sociais e culturais, que se organizam em "redes de práticas":
Correções a meio caminho são relativamente
fáceis, pois não temos uma centena de páginas de Cada prática está localizada dentro de uma rede de
práticas que determina do "exterior" suas propriedades
1
As traduções neste capítulo são Je Izabcl Magalhães, a não ser quando especificado. "internas". Os conceitos (articulação, interiorização)

96 97
lZABEL MAGALH1\ES, ANDRÉ R. MARTINS E VJVJ.ANE DE M. RESENDE /\NÁLJSE DF. DISCURSO CRÍTICA

em que nos baseamos para a análise "interna" das Na próxima seção, vamos comentar alguns exemplos, enquanto
práticas e seus momentos individuais podem ser na seção 2 abordaremos a relação entre discurso/semiose e contexto
estendidos para a análise das relações entre as prá- social c a 3 terá como propósito debater nossa proposta de meto-
ticas. As práticas são articuladas juntas dinamica- dologia etnográfico-discursiva, com atenção especial à "cadeia de
mente para constituírem redes das quais elas próprias gêneros" do relato etnográfico,já introduzido aqui.
tornam-se momentos de forma que as transformam.
(CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 23). 1 Alguns exemplos

Da mesma forma que as práticas socioculturais, os gêneros Comecemos com algumas propostas de estudo que seriam
discursivos são determinados do "exterior", devido à possibilidade de muito interesse na contemporaneidade porque estão no cerne
de sua organização em cadeias de gêneros (veja adiante, seção 3). da mudança de paradigma, como indica Sousa Santos (2007):
Uma contribuição para o debate da relação entre ADC e
pesquisa etnográfica que não ignora o potencial genérico é a O problema é que a emancipação social é um con-
de Heath e Street (2008), no livro Ethnography: approaches to ceito absolutamente central na modernidade ocidental,
!anguage and !iteracy research, que recomendam: sobretudo porque esta te1n sido organizada por meio
de uma tensão entre regulação c emancipação social,
Entender o que língua, cultura e aprenclizagem podem entre ordem e progresso, entre uma sociedade com
significar para etnógrafos e etnógrafas faz-nos mergu- muitos problemas e a possibilidade de resolvê-los em
lhar na cultura. Ao estudarmos como os seres humanos outra melhor, que são as expectativas. Então, é uma
seguem produzindo "estrutura simbólica entre si e os sociedade que pela primeira vez cria essa tensão entre
outros", vemos a imensa variabilidade como também a e."Xperiências correntes do povo, que às vezes são ruins,
estabilidade das formas em que eles criam, mantêm e infelizes, desiguais, opressoras, e a expectativa de uma
adaptam modos de linguagem, inclusive a língua oral vida melhor, de uma sociedade melhor. Isso é novo, já
e escrita. (HEATH, STREET, 2008, p. 3). que nas sociedades antigas as experiências coincidiam
com as expectativas: quem nascia pobre morria pobre;
Uma pesquisa de natureza etnográfica, como indicam Heath quem nascia iletrado, morria iletrado. Agora não: quem
e Street (2008), envolve observação das práticas socioculturais, não nasce pobre pode morrer rico, e quem nasce em uma
apenas a análise textual. Portanto, a complementaridade entre a família de iletrados pode morrer como médico ou
ADC e a etnografia que defendemos aqui é uma forma de vali- doutor. (SOUSA SANTOS, 2007, p. 17-18) 2
dação da pesquisa, que vai além da descrição e explicação textual,
buscando uma interpretação do problema específico da prática 2
Qycremos lembrar que ainda não há iguais oportunidades de acesso, e que a reprodução
social que está em discussão numa pesquisa particular. de desigualdades continua tendo no conhecimento uma de suas principais bases.

98 99
IZABEL MAGALHÃES, ANDRl:: R MAHTJNS I Vl\f!ANI DI M. RbSbNDE /\NALISE DE DISCUHSO CRÍTICA

Exemplos de problemas que podem ser inclLúdos na perspectiva Crimes contra mulheres e pessoas em situação de rua são
de uma possível resolução: a discriminação de pessoas com deficiência; praticados com certa frequência em diversas regiões do Brasil,
os problemas de gênero e de racismo; e as desigualdades existen- o que sugere problemas nas práticas sociais "associados a relações
tes entre grupos sociais, que levam algumas pessoas a cometerem de poder", que precisam ser debatidos, como aponta Silva (2009,
abuso de poder em relação a outras (MONTECINO, 2010; VAN p. 63). Para investigar problemas como esses, propomos um mer-
D IJK, 2007), Tais desigualdades podem ser notadas em dois casos de gulho na cultura, o que significa considerá-la um "verbo", pois ela
impacto na mídia brasileira: o assassinato de uma garota de 15 anos constrói padrões interconectados (HEATH, STREET, 2008).
por seu ex-namorado, em que há certamente um problema de gênero Conforme esses investigadores, o sentido de "cultura~como-verbo"
("o caso Eloâ'); e o assassinato de pessoas em situação de rua, em exige que seus adeptos considerem cinco pontos:
demonstrações de ódio violento a gmpos sociais em vulnerabilidade. l) "Graus" de mudanças nos hábitos e nas crenças (embora apa-
Vejamos o que dizem Maria Dolores de Brito Mota, pro- rentemente sem importância na supcrficie) correlacionam-se
fessora da Universidade Federal do Ceará, e Maria da Penha com mudanças nas estruturas e nos usos da linguagem e
Maia Fernandes (inspiradora da Lei n° 11340, de 7 de agosto dos letramentos multimodais.
de 2006 ), a respeito do assassinato de Elo á: 2) Os significados ou as tc'<plicações {micas ou "essenciais"veicu-
lados em termos baseados na autoridade ou instituição devem
O assassino, durante 100 horas manteve Elo á e uma ser abertos à análise em abordagens históricas e operacionais,
amiga em cárcere privado, bateu na vítima, acusou, 3) O mesmo vale para formas discursivas e ilustrações que
expôs, coagiu e por fim martirizou o seu corpo com se destacam ou são formalizadas, autorizadas, nomeadas
um tiro na virilha, local de representação da identi- e valorizadas (especialmente por instituições legitimadas
dade sexual, e na cabeça, local de representação da e apoiadas pelo Estado ou por interesses comerciais),
identidade individual. Um crime onde não apenas 4) Os membros sociais ou habitantes locais usam processos
a vida de um corpo foi assassinada, mas o signifi- tácitos de construção de significados que tomam como
cado que carrega- o feminino.[,,] O feminicídio dados, e suas explicações desses processos com frequ~
é um crime de ódio, realizado sempre com cruel- ência guardam pouca relação com os usos concretos.
dade, como o "extremo de um continuam de terror Eles podem estar expressando ideais de comportamento
antifeminino", incluindo várias fonnas de violência, em lugar de comportamento manifesto, ou reaL
como sofreu Elo á, xingamentos, desconfiança, acu~ 5) "A norma em (quase) todos os contextos é que nós coor-
sações, agressões físicas, até alcançar o nível da morte denamos as regularidades de padrões de vários sistemas
pública, (Texto enviado ao Grupo de Trabalho Práti- de estrutura simbólica ao mesmo tempo" (HEATH;
cas Identitárias na Linguística Aplicada, da Anpoll/ STREET, 2008, p. 8),
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação Os padrões socioculturais interconectados relacionam dis-
em Letras e Linguística, 5 de novembro de 2008), curso e prática social, o que reforça o argumento em favor da

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lZABEL MAGALHÃES, ANDRÉ P. MAI\T!NS E V!VJAN.E DE M. RESENDE ANALISE DE JJlSCURSO CRÍTICA

abordagem dialético-relaciona! do discurso (FAIRCLOUGH, em cada qual, entre elementos semióticos e outros.
2010). O processo social apresenta a inter-relação entre três (FAIRCLOUGH, 2010, p. 232).
níveis de realidade social: estruturas, práticas e eventos sociais
(MAGALHÃES, 2004). As estrutnras sociais, como raça, gênero, Cabe registrar que não há consenso a respeito da relação
classe, parentesco, língua, determinam um conjunto de possi- entre estruturas e eventos (RESENDE,2009a). Contrariamente
bilidades que podem concretizar-se de diversas e imprevisíveis a Fairclough (2010), podemos entendê-la aqui como sendo trans-
formas nos eventos sociais. Os eventos são sitnados nas práticas formacional; porém, concordamos com o teórico britânico quanto
sociais e localizados no tempo e no espaço, com princípio e fim, à dialética entre os elementos.
como a aula, a reunião de amigos, a reunião no trabalho, a con- Vejamos a relação entre o significado representacional de estru-
sulta médico-paciente, o culto religioso. Os eventos da internet turas e eventos sociais na seguinte reportagem da revista V(;ja (Nós,
também são sitnados nas práticas sociais, mas apresentam outras 2010, p. 94). O texto versa sobre a língua portnguesa, iniciando
características que demandam a mediação tecnológica, inclusive com uma foto do primeiro debate dos candidatos à presidência da
a "quase-interação", com os participantes interagindo a distância, República, mediado pelo jornalista Ricardo Bocchat, na TV Bandei-
em tempo assíncrono (THOMPSON, 1998; YATES,2000). rantes, em 2010:José Serra,Marina Silva e Dilma Rousseff. Na parte
As práticas são formas de atividades sociais com relativa esta- superior da foto, está a manchete: "Nós FALAMOS MAL, MAS vocÊ
bilidade, formadas de vários elementos, dentre os quais o discurso. PODE FAZER MELHOR". A foto é seguida de um resumo, à esquerda,
Outros elementos são: ações, sujeitos e relações sociais, instru- e do relato jornalístico, cujo primeiro parágrafo transcreveremos:
mentos, objetos, tempo e lugar, formas de consciência, valores
(FAIRCLOUGH,2001b; veja também o capítnlo 2, neste volume). Na quinta-feira última, a Band levou ao ar o pri-
As práticas são "entidades organizacionais intermediárias entre meiro debate da corrida presidencial deste ano, com
estrutnras e eventos" (FAIRCLOUGH, 2003, p. 23). O discurso a presença dos três principais candidatos - Dilma
constrói significados representacionais, acionais e identificacionais Rousse:ffJosé Serra e Marina Silva- e de um nanico
"como elementos do processo sociaf' nos três níveis: nas estnltu- enfezado, Plínio de Arruda Sampaio. Mas quase
ras, nas práticas e nos eventos (FAIRCLOUGH, 2010, p. 230). nada fOi oferecido ao eleitor que porvenhira tenha
Os textos fazem parte dos eventos sociais, contribuindo para definir assistido às duas horas de perguntas, respostas, répli-
os sentidos das práticas sociais (MAGALHÃES, 2004). cas e tréplicas: na maior parte, o debate foi sim-
De acordo com Fairclough (2010): plesmente ininteligível. Os candidatos, em especial
Dilma Rousseff, afundaram-se em anacolutos, sole-
A análise focaliza duas relações dialéticas: entre cismas, frases inconclusas e erros gramaticais 3 [ .. .].

estruturas (especialmente as práticas sociais como


um nível intermediário de estruturação) e eventos 1
Solccismos são erros gramaticais, e anacolutos, mudanças de construção no meio
(ou entre estrutura e ação, estrutura e estratégia) e, da frase (CUNHA; CINTRA, 1985).

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!ZI\lll::L .fvJAC!\LHi\ES, /\NDH!~ H ..MARTINS E VJVJANE DE Ivl. RESENDF ANAUSF f)f DJSCUH~;o CPÍTJf-::A

Dois homens e duas mulheres n~o ofício público texto a respeito da forma como falam os candidatos). A ligação
exige a formulação clara de propostas concretas e entre esses c.lementos também representa uma determinada visão
princípios abstratos falharam todos, em maior ou política de oposição à candidata, podendo ser entendida como
tnenor medida, no uso de uma ferramenta básica: um discurso político defendido pela revista em vários outros
a linguagem. Será a língua portuguesa tão com- momentos da campanha eleitoral.
plexa a ponto de enredar aqueles que se propõem Entretanto, é possível notar um descompasso entre o método
a dominá -la? de análise textual e a teoria, pois a análise textual, muito embora
seja parte da análise das práticas sociais, demanda outras análises,
O texto refere-se a uma hierarquia de grupos sociais (estru- como sugerem Heath e Strcet (2008), que possam dar conta do
turas representadas), em que a elite política está associada ao uso que os participantes da pesquisa expressam e da forma como
da variedade padrão da língua portuguesa, de quem se esperaria a agem. No exemplo comentado anteriormente, o discurso da
apresentação de propostas claras, sem truncamentos ou impreci- imprensa sustenta explicitamente a objetividade (por exemplo,
sões, passíveis de serem compreendidas pela população de norte nos manuais de redação), mas na prática defende posições e forma
a sul do país. 4 O texto faz uma avaliação do debate político entre opiniões (MARTINS, 2011).
os candidatos e candidatas à eleição presidencial, qualificando-o Em cada grupo, etnógrafos e etnógrafas, como também as
como "ininteligível".A avaliação, conforme White (2011, p. 16), pessoas que eles observam de perto, encontram contradições
volta-se para o estudo de significados relacionados a atitudes, que entre aquilo em que se acredita e que se expressa e o que se
podem ser definidos em termos de afeto, julgamento e apreciação. faz realmente, algo frequentemente inexpressível. A prática da
A avaliação é parte dos significados identificacionais; portanto, etnografia precisa reconhecer e documentar ambos (HEATH;
precisa ser examinada na análise textual defendida pela ADC. STREET, 2008, p.16).
Nesse caso, a avaliação é um julgamento de valor sobre os can- Além disso, cabe esclarecer sobre a natureza da realidade que
didatos de modo geral, mas principalmente uma desqualificação se observa, para evitar a chamada "falácia epistêmica", a redução
simbólica da candidata Dilma Rousseff. do que existe ao que conhecemos (BHASKAR, 1998). É para
Além disso, a reportagem estabelece uma relação entre ele- não cair na ingenuidade do Realismo Empírico que a ADC
mentos semióticos e outros. Aqui apontamos, sobretudo, a ligação de Fairclough estabelece um diálogo com o Realismo Crítico.
construída textualmente entre elementos imagéticos (a foto que De acordo com Resende (2009):
ocupa duas páginas da revista- p. 94 e 95; o quadro referido,
que aponta os "10 erros de português que acabam com qualquer Uma vantagem da crítica explanatória baseada na
entrevista de emprego"- p. 98 e 99) e linguísticos (o que diz o estratificação da realidade é a visão do mundo social
como um sistema aberto, dadas as contingências
~ Recomendamos, a respeito da variedade padráo no português do Brasil, o trabalho
contextuais que tornam imprevisíveis as mudanças
de l'amco (2007). sociais. Identificar contingências que bloqueiam

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IZABEL MAGALHÃES, ANDRF. R. !v\ARTJNS F. V!VTANE DE M. RESENDE ANÁLJSE DE lJ!SCUHSO CEiTICJ\

possíveis mudanças sociais, que sejam desejáveis "procedimentos interpretativos"(CICOUREL, 1999). Conforme
em um contexto de injustiça social, por exemplo, Cicourel, os procedimentos interpretativos, na vida diária e na
é um modo de potencialmente contribuir para sua prática científica,
superação. (RESENDE, 2009, p. 72).
não são "regras)) no sentido de políticas ou práticas
A articulação da ADC à crítica explanatória do Realismo gerais como definições operacionais ou normas
Crítico nos leva a entender a realidade em termos de uma ontolo- legais e extralegais,onde está em questão um sentido
gia estratificada em três estratos: o potencial, o realizado e o empí- de uma norma ou prática do "certo" c do ((errado",
rico5 O potencial é tudo o que existe, referindo-se às estruturas e prescritiva ou proscritiva. Em lugar disso, eles fazem
poderes do mundo social, enquanto o realizado diz respeito aos parte de toda investigação, mas exibem propriedades
efeitos dos poderes quando são ativados de fato. No exemplo do defensáveis empiricamente, que ''aconselham)) os
assassinato de Eloá, o potencial está nas estruturas que governam membros sobre uma coleção infinita de compor-
as relações de gênero na sociedade brasileira e o realizado signi- tamentos e lhes fornecem um sentido de estrutura
fica que o ex-namorado de Eloá ocupou uma posição de poder, social (ou, no caso da atividade científica, fornecem
mantendo a adolescente em cárcere privado, humilhando-a e, por orientação intuitiva para uma área de investigação).
fim, cometendo o crime de assassinato. Já o empírico diz respeito (CICOUREL, 1999, p. 89-90).
à observação dos efeitos das estruturas em práticas e eventos, nesse
exemplo, o que grande parte da população brasileira acompanhou Dessa forma, o estudo do discurso na abordagem crítica
pela televisão e pelos jornais. Uma possível mudança social aqui exige um mergulho de quem pesquisa nas práticas socioculturais,
significa impedir a violência contra mulheres, o que exige mudança e, portanto, no contexto social, mediante a análise descritiva,
nas relações de gênero (DIAS, 2011). Dessa forma, uma Análise de interpretativa e explanatória de dados obtidos por meio de obser-
Discurso Crítica da violência de gênero exige um conhecimento vações, entrevistas, artefatos, relatos e diários de participantes,
da prática social e, portanto, de estudo de casos específicos, o que para nomear alguns métodos com os quais temos familiaridade
significa um trabalho de campo, com observações detalhadas, (cf. adiante, seção 3). É essa forma de fazer pesquisa que signi-
considerando os três estratos da realidade social. fica investigar a cultura como verbo, conforme nossa discussão
anterior (veja seção 1: "Alguns exemplos").
2 Contexto social O contexto social precisa ser analisado para validar a análise tex-
tual, que por si só é insuficiente na análise crítica. Blommaert (2005)
O contexto social será compreendido aqui em termos de faz o seguinte comentário em defesa da análise do contexto social:
elementos que apreendemos na prática científica com base em
Tendências críticas na análise de discurso enfa~
' Tradução para os termos do inglês: "real', "actua!', "empiricaf'. tizam a conexão entre o discurso e a estrutura

106 107
!ZABEL MAGALI!ÀES, 1\NDRÉ R. MAHTINS E VJVJANE DE M. RESENDE ANÁUSF DE D!SCUHSO CRÍTJC/\

social. Localizam a dimensão crítica da análise na e foneticistas [ ... ]as pistas de contextualização simili-
inter-relação entre discurso e sociedade, c suge- z.am ao salientarem determinadas scquências lexicais
rem formas em que os aspectos da estrutura social no contexto de regras gramaticais. (GUMPERZ,
precisam ser tratados como contexto na análise 1996, p. 382-383).
de discurso. Por exemplo, na análise da interação
médico-paciente, o fato de que um(a) participante Como sugere Gumperz, a compreensão de um texto depende
é médico ou médica e o( a) outro( a), paciente, e que, de pressuposições que são linguísticas, cognitivas e, principal-
consequentemente, a interação desenvolve-se em mente, socioculturais. Para explicar a forma como as pessoas pro-
ambiente institucional, é um elemento crucial na duzem e interpretam significados sociais, é imperativo conhecer
compreensão do equilíbrio de poder na interação. bem o contexto e as práticas socioculturais. É por isso que defen-
(BLOMMAER'l~ 2005, p. 39). demos o estudo da linguagem e das multimodalidades (semiose)
como discurso, mediante a pesquisa etnográfico-discursiva (cf.
Ainda, conforme aponta Blommaert: seção 3). Como sugere Magalhães (2000, p. 48): "O estudo do
discurso devidamente contextualizado se realiza de forma mais
A análise crítica é, assim, sempre e necessariamente adequada com métodos etnográficos".
análise de linguagem situada, contextualizada, e o É fundamental, portanto, ter clareza em relação às demandas
contexto torna-se uma questão metodológica e teó- da pesquisa etnográfico-discursiva para a análise das práticas
rica crucial no desenvolvimento de um estudo crítico socioculturais e dos textos resultantes de eventos que materiali-
da linguagem. (BLOMMAERT, 2005, p. 39). zam essas práticas. De acordo com Crapanzano:

A noção de contexto social implica o reconhecimento de O etnógrafo, ou a etnógrafa, é um pouco como


"pistas de contcxtualização", de acordo com Gumperz (1996): Hermes: um mensageiro, ou mensageira, que com
metodologias para a descoberta do que está mas-
Se, por um lado, é claro que não se pode atribuir carado, latente, inconsciente, pode mesmo obter
às pistas de contextualização significados indepen- sua mensagem em segredo. O etnógrafo, ou a
dentes do contexto, estáveis, por outro, é também etnógrafa, apresenta línguas, culturas e socieda-
verdade que não podem ser ignoradas as pistas de des em toda opacidade, estranhamento e falta de
contextualização porque meramente produzem efei- sentido; em seguida, como mágico, henneneuta,
tos não referenciais transitórios, expressivos, emo- o próprio Hermes, clareia aquilo que é opaco,
tivos ou ligados a atitudes, como sugerem alguns torna o estranho familiar, e dá sentido ao que é
estudos de sinais prosódicos e paralinguísticos sem sentido. Decodifica a mensagem. Interpreta.
descontextuaiizados realizados por sociolinguistas (CRAPANZANO, 1986, p. 51).

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l7,ABEL Mi\GALHÁES, ANDRÉ H. MARTINS E VJVIANF DE M. HESENDF ANÁLJSI:: DE DJSCURSO CJÜT!CA

Entretanto, não basta enfatizar a interpretação dos dados debate de políticas e práticas traz em jogo o respeito que etnógra-
da pesquisa, ligada ao contexto situacional, pois a ADC é tam- fos e etnógrafas estabelecem frequentemente como um aspecto
bém descritiva e explanatória. A descrição volta-se para aspec- fimdamental de seu trabalho".
tos linguísticos e multimodais 6 (KRESS; VAN LEEUWEN, Além disso, o estudo etnográfico-discursivo do contexto precisa
2001; MAGALHÃES, 2005b, 2005d), e a dimensão explanatória dar atenção a processos sociais locais c translocais. De acordo com
orienta-se para aspectos das práticas socioculturais e das identi- Blommaert (2005, p. 49), um dos problemas da concepção de contexto
dades dos participantes (MAGALHÃES, 2000). na ADC é tomar como modelo sociedades europeias, modernas,
Um ponto a considerar são os protocolos éticos que levem pós-industriais, "densamente semiotizadas", um ponto discutido tam-
em conta os direitos humanos e o ponto de vista dos partici- bém em Magalhães (2010b). Recomenda-se, portanto, desenvolver
pantes. "O conhecimento produzido na pesquisa deve, assim, estudos que tenham como contexto sociedades do hemisfério sul.
contribuir para o aperfeiçoamento das relações sociais e para Cabe registrar as pesquisas que foram realizadas no Brasil no
o respeito às pessoas e a seus direitos" (MAGALHÃES, 2000, final da década de 1980 e começo da década de 1990: inicialmente,
p. 68). A pesquisa etnográfico-discursiva é, portanto, dialógica, destacamos o estudo de Magalhães (1985, 1986) sobre o discurso
pois seus resultados dependem da relação entre pesquisadores de benzedeiras e clientes, provavelmente a primeira pesquisa
e participantes (MAGALHÃES, 2006). Baseado em escolhas, que analisa dados do contexto social brasileiro segundo a ADC
o planejamento da pesquisa delineia uma perspectiva ontológica Segue-se um estudo de sugestões de mulheres à Assemblcia
que é fundamental para a construção do conhecimento, relacio- Nacional Constituinte (MAGALHÃES, 1991). Outro é o estudo
nando-se ontologia e epistemologia (RESENDE, 2009). de Caldas-Coulthard (1997), que analisa dados jornalísticos.
Como sugere Mason (2002, p. 21), os objetivos de uma pes- Nesse mesmo ano, Magalhães introduz a abordagem etnográfico-
quisa são "complexos e multifacetados", podendo incluir aspectos -discursiva, com a publicação do artigo "Linguagem c ideologia
não explicitados, por exemplo, no discurso pentecostal". Em seguida, Magalhães (2000) publica
um quarto estudo, agora sobre o discurso médico-paciente na área
a realização de mudança social e política ou uma de pediatria. Essas pesquisas constroem uma base que permitirá o
contribuição para um trabalho político mais amplo, desenvolvimento de uma pujante tradição de estudos no país (veja,
ou o aperfeiçoamento pessoal (pelo acesso à titulação por exemplo: CALDAS-COULTHARD; FIGUEIRED0,2004;
mais alta e obtenção de financiamento de pesquisa). MAGALHÃES, C.,2001; MAGALHÃES; RAJAGOPALAN,
2005; MARTINS, 2011; RAMALHO, RESENDE, 2011;
Em relação a esse ponto, Heath e Street (2008, p. 128) des- RESENDE; RAMALH0,2006; RESENDE, 2009; VIEIRA;
tacam os problemas ligados à investigação do conhecimento de BENTO; ORMUNDO, 2010).
"outros", acrescentando que a "parceria da pesquisa, publicação e Conceitos ligados ao contexto são os de intertextualidade/
interdiscursividade, entextualização e recontextualização. A inter-
6
Veja o capítulo 1 e a Introdução, neste volume. textualidade refere-se à capacidade que têm os textos de se

110 111
IZAR F.!. MAGALHAES, ANDE.É H. MARTINS E VJVJANE DE M. I1ESENDF. ANALISF DE DlSCURSO CRiTICA

relacionarem a outros textos, de tal forma que se trata de um Veja, de oposição à então candidata do Partido dos Trabalhadores,
princípio da produção e da recepção textuaL Um texto não existe Dilma Rousseff (seção 1).
sozinho, mas em relação a outros que povoam o mundo dos textos, Qyanto ao segundo conceito, de entextualizaçao, vejamos
que vai citar direta ou indiretamente, de forma a aceitá-los, con- a definição de Blommacrt:
testá-los ou simplesmente registrar ecos e vibrações (BAKHTIN,
1997; KRlSTEVA, 1986). Porém, como alerta Magalhães (2011a), [A entexntalização] refere-se ao processo mediante
abordagens da intertextualidade que desconsiderem o contexto o qual os discursos são sucessiva ou simultanea-
social são inadequadas, pois a relação intertextual é mediadora mente descontcxtualizados c metadiscursivamente
de relações sociais. Como indica Barton (2009): recontextualizados, de tnodo que se tornam um
novo discurso associado a um contexto novo e
Ao examinar o papel transformador dos textos acompanhado de um metadi.scurso particular que
descobrimos as tensões centrais da mudança con- fornece uma espécie de "leitura preferida" para o
temporânea: novas práticas de letramcnto oferecem discurso. (BLOMMAERT, 2005, p. 47).
instigantes possibilidades em termos do acesso ao
conhecimento, à criatividade e ao poder pessoal; Da forma como define o autor, a entextualização pode con-
ao mesmo tempo, o mundo social1nediado textual- fundir-se com a recontextualização, um conceito de Bernstein
mente fornece uma tecnologia de poder e controle, (1996) que foi desenvolvido em relação às práticas educacionais,
e de vigilância. Os Estudos do Letramento apre- referindo-se a conhecimentos que são encaixados no conteúdo
sentam umajanela tanto para as possibilidades de pedagógico. Entretanto, a entextualização restringe-se ao desen-
humanização como de desumanização da mudança caixe e ao reencaixe de um texto ou fragmento textual, que pode
contemporânea. (BARTON, 2009, p. 39). ser verbal ou visual, enquanto a recontextualização associa-se à
interdiscursividadc e à prática social.
Portanto, é preciso considerar os textos nas práticas sociocul-
turais, em seu aspecto mediador fundamental na mudança social, Adotarei a concepção de que todos os textos, todas
com efeitos motores nas práticas de humanização, mas sem esque- as representações do mundo e do que nele acontece,
cer os possíveis efeitos de violência, destruição e banalização da vida. mesmo que seja abstrato, deveriam ser interpretados
Enquanto a intertextualidade é material, explícita no texto, como representações de práticas sociais.[ ... ] Ana-
como no discurso direto e indireto, na pressuposição linguís- lisarei todos os textos pela forma como eles recor-
tica, na negação e na ironia, a interdiscursividade constrói uma rem a práticas sociais c as transformam. Pode ser
direção no significado do texto. No exemplo anterior do debate argumentado que em alguns casos isso é impossível.
político na televisão, o discurso normativo da gramática é um Por exemplo, comentários sobre o tempo. Certa-
apoio semântico-pragmático para o discurso político da revista mente, o tempo não é uma prática social? Não, mas

112. 113
ll.ABEL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS C VlVJANE DE M. RESENDE 1\NALlSE DE DlSCURSO CRlTICA

quando se faz referência a ele nos textos, é e só pode de apresentação, tempo, local, condições de elegibilidade do local,
.....
ser via práticas sociais ou elementos de práticas recursos- instrumentos e materiais, condições de elegibilidade dos
sociais. Por exemplo, cmnentários sobre o tempo recursos. As duas propostas são bem semelhantes; até não seria de
objetivam as práticas sociais de 1neteorologistas - todo errôneo pensar que a proposta de van Leeuwen cita indire-
práticas de observação, de registro e de realização de tamente a de Fairclough. A proposta de van Leeuwen é também
operações matemáticas e linguísticas nas observações mais detalhada do que a do teórico britânico. Baseados nas duas
e nos registros. (VAN LEEUWEN, 2008, p. 5). propostas, apresentaremos a seguir nossa própria concepção para
o estudo do discurso na prática social (Qyadro 4.1) .
...
Para van Leeuwen (2008), há uma diferença entre a reali-
zação da prática e sua representação, de forma que ele defende o . Quadro 4.1: Dimens6cs da prática social
,-----
conceito de "recontextualização da prática": "a pluralidade de dis- ·.
Particip<~~1tcs, Eclações sociais
cursos- as muitas e diferentes formas possíveis em que a mesma Atividades
prática social pode ser representada" (VAN LEEUWEN, 2008, Poder
p. 6). Van Leeuwen cita Malinowski (1935), que faz a seguinte
c--- ----
Recursos, materiais, instrumentos
1--- -·-· ...
observação: "Mesmo nos aspectos mais abstratos e teóricos do Discu~~o, gênc~·.?, estilo I
pensamento humano e do uso verbal, a compreensão real das
C1:~-~ças, ~~-lores, desejos
___ __ .1

palavras deriva em última análise da experiência ativa dos aspectos Tempo, local ,
da realidade aos quais pertencem as palavras" (MALINOWSKl,
1935, p. 58 apud VAN LEEUWEN, 2008, p. 5). Duas das dimensões da prática social incluídas no quadro 4.1
Que dimensões das práticas sociais são consideradas? -poder, e crenças, valores e desejos - são de Harvey (1996). Como
Em relação a esse ponto, vamos comparar Fairclough (2001b, sugerem Chouliaraki e Fairclough (1999) e Magalhães (2004), é
2012) e van Leeuwen (2008). Para Fairclough (2001b), as práticas dialética a relação entre a dimensão discursiva e as dimensões não
sociais são "formas de atividades sociais que apresentam relativa discursivas. Portanto, discursos, gêneros e estilos podem interagir
estabilidade, formadas de diversos elementos, dentre os quais o com formas de poder, de ação, de relações sociais, e também com
discurso e a semiose" (MAGALHÃES, 2004, p. 114-115; veja recursos e instrumentos, crenças e desejos, tempo e local.
também o capítulo 1 deste volume). Além do discurso, as práticas Na "dialética do discurso", conforme Fairclough (2001b,
sociais incluem: ações, sujeitos e relações sociais, instrumentos, 2012), gêneros discursivos e discursos relacionam-se com parti-
objetos, tempo e lugar, formas de consciência, valores. Para van cipantes, ações, poder, recursos e instrumentos, crenças, tempo
Leeuwen (2008, p. 6), as práticas sociais são formas de realização e local. Um exemplo é o gênero acadêmico-científico, em que
das "coisas" que são governadas socialmente, podendo ser exami- as ações e crenças de participantes acadêmicos derivam de um
nadas nas seguintes dimensões: participantes, atividades, modos de poder conferido por status. Além disso, estes usam recursos e
desempenho, condições de elegibilidade de participantes, estilos instrumentos associados à prática acadêmica, em determinado

114 115
lZABFL MAGALI--lÀLS, ANDR[ R. MARTINS E VlVlANf DE lvi. H.ESt:NDF ANÁl.ISF DF DISCURSO CRtTTCA

evento acadêmico (por exemplo, seminário), que se realiza em estudar". Por isso mesmo, os autores refere1n-se a um «cruzamento
momento e local específicos (MAGALHÃES, 2011b ). Na pró- de fronteíras"(OBERHUBER; KRZYZANOWSKI, 2008, p. 182),
xima seção, retomaremos a discussão sobre a ADC c a pesquisa referindo-se ao fato de que a pesquisa etnográfica atualmente é
etnográfica, estabelecendo a conexão entre etnografia c discurso. adotada em diversas disciplinas, dentre as quais a ADC.
Aqui, a grande vantagem da pesquisa etnográfica é relacionar
3 A metodologia etnognifico-discursiva o estudo de textos às práticas sociais. Por isso, defendemos a abor-
dagem etnográfico-discursiva, que associa métodos etnográficos
A pesquisa etnográfica, introduzida na antropologia por ao discurso como dimensão da prática social (MAGALHÃES,
Malinowski (1922), mudou consideravelmente nas últimas déca- 2000; veja também a seção 2 deste capítulo). Um princípio da
das, o que é reconhecido por Heath c Street (2008). abordagem etnográfico-discursiva é a "constante comparação"
(HEATH; STREET, 2008, p. 32) entre indivíduos e situações,
Em décadas anteriores, era comum para etnógrafos registrando como os atores sociais localizam-se em grupos em
e etnógrafas pensarem sobre o local de pesquisa que se constroem identidades, e em relação a instituições formais,
como um local fixo. Por muitas razões, os etnógrafos como a educação, o Judiciário, os partidos políticos.
de hoje, especialmente os que estudam processos de A metodologia etnográfico-discursiva é um processo refle-
aprendizagem, podem seguir indivíduos ou grupos xivo baseado em observações e registros escritos (diários de pes-
que estão em movimento.[ ... ] Não obstante, geral- quisadores ou pesquisadoras e de participantes, notas de campo),
mente os indivíduos que refletem combinações úni- em dados gerados em entrevistas e em artefatos (textos e outros
cas e criativas de táticas e estratégias em sua apren- objetos) coletados no local de pesquisa. Porém, não se limita aos
dizagem sào um foco-chave de atenção por parte dados. Como se trata de um processo, os dados da pesquisa etno-
de etnógrafOs. Como esses indivíduos interagem gráfico-discursiva relacionam-se com a curiosidade e a motivação
não apenas com artefatos e ambientes físicos, mas de pesquisadores e pesquisadoras e, também, com conceitos da
também com outros indivíduos e normas sociais, literatura pertinente (figura 4.1).
estão no cerne de questões que motivam etnógrafos
e etnógrafas. (HEATH; STREET, 2008, p. 46). Figura 4.1: O processo reflexivo da metodologia etnográfico-discursiva 7
DADOS i\HHJVA(ÕES CONCI•:ITO.S

CIXJ
Essas mudanças são enfatizadas por Oberhuber e Krzyzanowski
(2008, p. 182), que notam: "a etnografia deixou de ser associada com
os objetos de estudo (isto é, com 'quem' e 'o quê' é estudado) e passou
a designar certa perspectiva de pesquisa" (assim, relacionada à per-
gunta "Como um determinado assunto é estudado?"), "que implica
<~-==>
distanciar-se de qualquer campo (familiar ou exótico) que se queira 7
Adaptado de Heath e Street (2008, p.14).

116 117
!Zf\RH MAGALHÂES, ANDRF. R. MARTINS [ VIVIANL Dl-: M. RESENDE ANÁI.lSE flE DJSCURSO CRÍTICA

Como sugere a figura 4.1, etnógrafos e etnógrafas levam comunitária ou empresa, Heath e Street (2008, p. 65) sugerem
suas próprias motivações para a pesquisa, contrariamente à ideia os seguintes descritores:
de "inocentes etnógrafos" (HEATH; STREET, 2008, p. 34). 1) idade, gênero, experiências prévias e status atual de mem-
Precisamos reconhecer nossas próprias motivações para a pes- bros do grupo participante;
quisa, mas, ao mesmo tempo, ter abertura para aprender com a 2) em relação ao espaço físico, a população e distribuição
experiência de fazer pesquisa (lidar com dados). Como indicam em termos de idade, papel, gênero social e outros iden-
Heath e Street: tificadores, além de recursos locais;
3) termos de uso local que contribuem para a identidade
Nossas próprias características físicas (como idade, do grupo, por exemplo, Roadville e Trackton, nomes
gênero social, altura e fenótipo), como também nos- adotados pelas duas comunidades da obra Ways with
sas próprias identidades culturais e experiências de words, de Heath (1983);
vida, impedem-nos de participar completamente 4) meios de acesso e mobilidade física; por exemplo, se o
como ''o outro". Ao contrário da inocência, é a refle- estudo aborda um grupo de jovens, qual é o meio de
xividade que caracteriza a etnografia contemporânea. transporte local?
(HEATI-1; STREET, 2008, p. 34). Na pesquisa etnográfico-discursiva, vamos considerar diferen-
tes gêneros discursivos que formam uma cadeia de gêneros (veja
Na perspectiva da epistemologia etnográfico-discursiva, a Introdução deste capítulo). Segundo Fairclough (2003, p. 216):
o conhecimento sobre outras pesquisas relacionadas ao nosso
próprio tema é fundamental. Nos momentos da coleta e da cadeias de gêneros são gêneros diferentes que são
geração de dados, procuramos ter em mente esse conhecimento ligados regularmente, envolvendo transformações
teórico/conceitual. Portanto, a relação entre dados, motivações e sistemáticas de um gênero a outro (por exemplo:
conceitos teóricos é estreita. A coleta e a geração de dados, com a documentos oficiais, informações de assessorias de
comparação de aspectos referentes a tempo, espaço, artefatos, ato- imprensa, audiências de imprensa, reportagens da
res sociais e rotinas, exigem observações e registros sistemáticos. imprensa ou da televisão).
Contudo, os quadros teóricos para a análise dos dados derivam
do conhecimento adquirido em outras pesquisas e no processo Mudanças nas cadeias de gênero são tidas como fatores
de formação de pesquisadores e pesquisadoras. significativos na capacidade de "ação a distância", que é uma
A comparação com outros trabalhos é fundamental para característica da globalização (veja o capítulo 1, neste volume;
que se possa tomar decisões a respeito da adequação de teorias veja, também, FAIRCLOUGH, 2006).
ou explicações para os dados da pesquisa. Visando à comparação, Na Introdução, comentamos sobre a produtiva relação entre
é preciso detalhar informações contextuais e estatísticas (seção a Antropologia e a Literatura na década de 1980, que é par-
3). Para o estudo de uma escola, família, vizinhança, organização cialmente uma mudança relacionada à cadeia de gêneros e ao

118 119
!Z/\BEL M/\CJALHÃES, ANDRÉ R. MAHTJNS E VlVIAi'-JE DE !VI. RESFNDE ANÁLJS!:: DE DISCURSO CRJTJCA

processo de mescla entre eles. De acordo com Geertz (1997, Notas conceituais
p. 33), trata-se de uma verdadeira mudança cultural que tem
como resultado a "reconfiguração do pensamento social". 1) Comunicação médico-paciente
Existe uma série de fatos que, a meu ver, são verdadeiros.
Um deles é que, na vida intelectual destes últimos anos, houve O consultório é pequeno, os móveis gastos: uma
uma grande mixagem de gêneros discursivos, e que essa indis- cama, uma escrivaninha rota; uma cadeira de braço;
tinção de espécies continua a passo acelerado. Outra verdade é a cadeira do médico tipo poltrona; uma 1nesinha
que muitos dos cientistas sociais trocaram uma explicação ideal, baL"Xa, com o telefone, onde o médico põe sua valise.
que inclui leis e casos ilustrativos, por um tipo de explicação que Além dos móveis, uma pia co1n sabão líquido.
envolve casos e interpretações, buscando, hoje, algo capaz de Entram no consultório um funcionário c uma
demonstrar a conexão entre crisântemos e espadas, mais do que paciente de 12 anos, acompanhada de sua 1nãe.
um método que identifique a relação entre planetas e pêndulos A médica dirige-se à paciente com o termo "bai-
(GEERTZ, 1997, p. 33). xinha" e pergunta-lhe: "Tá doendo a barriguinha?"
Como sugerimos na Introdução deste capítulo, a diversidade e Pede que ela tire a blusa. Ela se senta na cama c
a mescla de gêneros discursivos nas notas de campo vão caracterizar ri, se1n jeito. Está comigo um estudante que, nesse
a pesquisa etnográfico-discursiva. O relato etnográfico compõe-se momento, retira-se da sala. Nesse exato instante,
de vários gêneros discursivos, formando uma cadeia de gêneros: entra um médico, acompanhado de uma funcionária
notas divisórias (por assunto), observações gerais, esquemas, diários do hospital e suas duas filhas, uma de 7 c outra ele
e cartas do campo. Heath e Street (2008, p. 79) acrescentam o que 12. A menina que está na cama se cobre, constran-
denominam "notas conceituais'': um gênero discursivo composto gida, à entrada do médico. Em seguida, não bastasse
por observações reflexivas relacionadas a eventos específicos obser- a pequena multidao que se instalou no consultório,
vados e registrados no diário de campo. São textos de cinco a seis entra outra médica com uma menina de 11 anos.
páginas, redigidos a cada semana do trabalho de campo e que se Imediatamente, a médica titular do consultório
dirigem ao próprio etnógrafo ou etnógrafa. solicita à colega que lave as maos para exmninar
Dessa forma, há diversos tipos de notas de campo, como uma das crianças e abraça a menina que acaba de
observações gerais, esquemas e diários, que citamos no pará- entrar. Esta tem problemas na pele, suspeita de
grafo anterior. As notas conceituais diferem desses outros gêneros lúpus. A funcionária se despede, mas entram dois
por serem de natureza reflexiva, formando com eles uma cadeia. meninos, um de 11 anos e outro de 9. Tatnbém
Vamos apresentar, a seguir, exemplos de notas conceituais; o pri- entra um representante de laboratório. Um des-
meiro, da pesquisa de Magalhães (2000) sobre a comunicação ses meninos, que sofre de artrite reumatóidc, está
médico-paciente, e o segundo, da pesquisa de Heath (HEATH; tomando a medicação de modo errado. A médica
STREET, 2008), que investigou a comunicação entre jovens. titular finalmente nota: "Eu estou achando que tá

120 121
lZABEL MAGJ\LHAES, ANDRF. R. MARTINS E VlVlANF. DE M. RESENDE ANÁLISE DC lJ!SCUHSO CRÍTiCi\

havendo uma confi1são." O telefone toca. A médica No segundo exemplo, merece destaque a linguagem dos
atende. Os meninos aguardam, sentados os dois na jovens e o comentário da observadora sobre o contexto de apren-
mesma cadeira. (MAGALHÃES, 2000, p. 29-30). dizagem. Portanto, na metodologia etnográfico-discursiva, as
notas conceituais complementam outros tipos de notas, orien-
2) Comunicação entre jovens tando a análise e a explicação dos dados linguísticos.

Em visita a um dos locais do programa, uma jovem Considerações finais


fez o papel de "guia turístico", dançando, cantando
e conversando. Num determinado momento, ela Este capítulo contribuiu para a reflexão metodológica da
se virou para o grupo: "E aí, vocês vêm, ou não? ADC discutindo a pesquisa etnográfico-discursiva (MAGA-
Estou fazendo o grande to-m: Pra isso, tive de con- LHÃES, 2000; 2008), o que é necessário para evitar generali-
seguir muitas informações". Todo mundo riu e a zações insustentáveis, as quais têm sido criticadas fortemente
acompanhou. Já em outro momento, pediu-se a (BLOMMAERT, 2005). Adotar uma posição crítica do discurso
um membro do grupo informações sobre o tempo. e da semiose na pesquisa da linguagem faz com que esta perca
Ele fez a personagem de comentarista local e, entre parte de sua validade quando a análise baseia-se apenas no estudo
risos e aclamações, levou o grupo a encarar um dia de textos. O grande desafio é estabelecer ligação entre textos,
quente e úmido ... Os jovens ficam entusiasmados gêneros discursivos e práticas sociais. Isso significa, muitas vezes,
quando me dão conselhos sobre meu trabalho e aporias e tentativas de sustentação de contradições. Cabe lembrar,
transmitem a mim, iniciante, o conhecimento que nesse ponto, o comentário de Morin:
adquiriram. O processo de transferência de infor-
mações, e de mudança nas relações e posições, é Nunca deixei de estar submetido à pressão simul-
útil na compreensão dos contextos de aprendiza- tânea de duas idcias contrárias e que me parecem
gem e do papel de avaliação e crítica que têm na ambas verdadeiras, o que me leva ora a ir de urna a
organização (HEATH; STREET, 2008, p. 81). outra, segundo as condições que acentuam ou dimi-
nuem a força de atração de cada uma, ora a aceitar
O relato detalhado do consultório médico apresenta elemen- como complementares essas duas verdades guc, no
tos para entender a consulta médico-paciente em hospitais públicos entanto, deveriam se excluir urna à outra. Tenho,
de Brasília, principalmente, no caso dessa consulta, o aspecto da ao mesmo tempo, o sentimento da irredutibilidade
superlotação e o constrangimento da menina que teve de despir-se da contradição e o sentimento da complelnentari-
na presença de vários estranhos. A linguagem da médica com a dade dos contrários. É mna singularidade que vivi,
criança explora o uso do diminutivo, mas ao mesmo tempo indica primeiramente admitida, depois assumida enfim
1

o controle comunicativo. A posição da observadora é implícita. integrada. (MORIN, 1997, p. 47).

122 12.3
!LAL~EL M/\C;!\J.I-l~.ES, ,t\NDRt R. MARTINS E V!VJANE DE M. RCSCND[

Da mesma forma que Morin, na pesquisa, vamos encontrar


fortes contradições entre aquilo que é expresso por participantes e E
o que, de fato, observamos. Sentimos atração pelas representações
nas falas e nos relatos de participantes, que talvez signifiquem
suas idealizações sobre a prática social. Porém, sentimo-nos igual-
mente atraídos pela força de suas ações, que, muito frequente-
mente, contrariam o que eles dizem. É esse embate de contrários
que pode conferir validade à ADC.
Portanto, mesmo sem questionar as tentativas de simplifi- Introdução
cação da ADC como forma de consolidar esse campo de estudo,
reafirmamos a necessidade de adoção de registros sistemáticos A separação entre prática social e prática discursiva não é
e de aprendizagem com a leitura de outros trabalhos, porque algo pacífico pela razão simples de que é impossível apartá-las
sem esses cuidados corremos o risco de jogar conversa ao vento. de tão imbricadas que estão. Por outro lado, apostar nessa pers-
Não se deve esquecer a metáfora de Geertz (1997) de união de pectiva pode gerar confusão e nos fazer cair na esparrela de que
crisântemos e espadas. Esse é o nosso projeto. tudo é discurso, que, além de imprecisa, em nada adiantará à
compreensão das duas categorias.
Podemos chamar de prática social toda atividade potencial,
individual ou coletiva, que tem fundamento nas instituições sociais,
envolve procedimentos rotineiros e de conhecimento dos parti-
cipantes e tem implicações para o público em geral ou para um
pequeno grupo social, especificamente. Assim, práticas relacio-
nadas ao trabalho, à religião, à escola, ao mundo da política, do
lazer e do entretenimento e da mídia são tipicamente práticas
sociais. Ora, já nessa definição abrangente que fizemos, vemos que
a prática social não está apartada da prática discursiva, uma vez
que no curso das atividades previstas naquela, a linguagem faz-se
notar de modo regular e institucional. Como reconhece Fairclough
(2006), ao analisar a relação entre linguagem e globalização:

esses processos de construção social inerente-


mente envolven1 discurso- eles têm um caráter
parcialmente discursivo, e os "objetos" e ('sujeitos"

12~
lZAB[L MJ\G/\Ll-!ÁES, ANDRÉ R. MAHTINS E VlVlAI'lE DE M. RESENDE ANALISE DE DISCURSO CRJTJC/\

que sào construidos sào o que podemos chan1ar esferas da economia, da política e da cultura. Ao mesmo tempo,
efeitos do discurso. (p. 27). a mudança é também um processo sujeito à intervenção humana.
Os atores sociais que tomam parte nos contextos históricos são
Mas, para fins conceituais, torna-se relevante distinguir "interpelados pela ideologia" (ALTHUSSER, 1992, p. 93), 2 mas
prática social de prática discursiva. Tendo definido a primeira, também eles mesmos têm participação ativa na realidade social,
passemos agora à discussão sobre prática discursiva. No desen- uma vez que podem agir sobre ela, contribuir para sua reprodução
volvimento das atividades rotineiras e institucionalizadas, os ou para sua transformação.
participantes lançam mão da linguagem e produzem textos. Tendo definido, grosso modo, prática social e prática discur-
O prontuário médico, a notícia no telejornal, os ritos religiosos, siva, vamos examinar um pouco a emergência da modernidade
o boletim de ocorrência policial, o atendimento nos serviços tardia e as mudanças advindas para tais práticas. Em seguida,
públicos, a chamada de um cal! center, a aula, a sessão terapêutica vamos examinar de modo mais pormenorizado umas e outras.
são exemplos de gêneros discursivos reconhecidos pelas pessoas
que deles participam e que têm uma noção mais ou menos precisa 1 Modernidade tardia e mudança social
de como são, de como se desenvolvem e de como geram textos.
A mudança social' é efetivamente um momento da reali- Por um lado, tomando em perspectiva a longa história da
dade social. Esta não é estanque, não está fechada em si mesma, humanidade, podemos constatar que a mudança social é uma
mas é aberta a diversas influências. Nem sempre a mudança é constante a cada esquina do processo histórico. Por outro lado,
algo positivo, que atende aos interesses da maioria e, sobretudo, podemos notar que essa constante ganhou uma distinção espe-
das pessoas que estão em desvantagem em relação ao poder. cífica nos anos mais recentes. A possibilidade de mudança social
Qyando se trata da esfera política, é possível que uma mesma adquiriu uma celeridade e abrangência ímpares. Isso tem sido
situação permaneça durante um longo tempo - o controle do resultado do avanço do conhecimento, de conquistas tecnoló-
poder restrito a um mesmo grupo político, por exemplo-, o que gicas e de desdobramentos no mundo da economia, da política
não significa que aqui e ali não ocorram pequenas alterações no e da cultura.
sistema político e na dinâmica do processo político. Também Essa nova conjuntura a que temos chamado de "moderni-
em outras esferas sociais, mudanças podem ocorrer apesar do dade tardia"' foi analisada por Chouliaraki e Fairclough (1999) à
conservadorismo do sistema. luz de autores como Harvey (1996), Giddens (1991) e Habermas
Todas essas alterações referem-se a um processo que implica (1979). A seguir, tentaremos resumir as contribuições desses três
operações ideológicas e o exercício do poder na sociedade. autores que Chouliaraki e Fairclough destacaram.
Sua ocorrência está relacionada aos processos de mudança nas
2
Discutiremos um pouco a perspectiva althusscriana quando comentarmos a con-
1
Aqui tratamos "mudança social" em sentido mais abrangente, como alteração signi- tribuição de Pêcheux e colaboradores na seção 3.
3
ficativa da realidade social referente a diversos aspectos da sociedade, de sua cultura, Examinamos um pouco essa questão no capítulo 2, seção 2, quando a vimos na
politica e economia. relação com o discurso.

126 127
JZA!JEL MI\GAT.H)\ES, 1\NDPÉ: R MARTINS F: VlV!A~!f:: DE M. RESENUí-: ANALISE DE DISCURSO CRiTICA

Harvey e sua generalização para além das fronteiras temporais e espa-


ciais" (GIDDENS, 1991, p. 80). 4 O autor também considera a
O foco de sua análise são as mudanças econômicas ocorri- mobilização de sentidos na globalização contra o tradicionalismo,
das no capitalismo (a transição do "fordismo" para um sistema e no modo como a autoidentidade e a reflexividade passam a se
de "acumulação flexível"). As mudanças na economia têm forte manifestar nos relacionamentos íntimos nesses novos tempos.
impacto no campo da cultura, sendo diversas sociedades atuais
dominadas por um caráter volátil, efêmero e descartável, o que Os relacionamentos entre amantes, amigos, crian-
pode ser aplicável tanto às mercadorias como a valores, esti- ças etc. são moldados cada vez menos por normas
los de vida, relacionamentos e outras coisas. Para Chouliaraki tradicionais, e crescentemente, assumem o caráter
1
e Fairclough, a perspectiva de Harvey (1996) é importante por de "relacionamentos puros ' que têm a ver com as
duas razões: uma, porque se trata de "uma formulação clara de recompensas que os envolvidos podem ganhar
uma explicação dialética e histórico-geográfica materialista que deles. (GIDDENS, 1991, p. 82).
ancora a cultura em mudança econômica" (1999, p. 78); a outra,
porque Harvey tem valorizado uma dialética do discurso que os
autores reconhecem como próxima de sua própria visão, ou seja, Habermas
de que a mudança ocorrida no âmbito da modernidade tardia
em grande parte é uma mudança na linguagem. O autor discute contradições entre a racionalidade comu-
nicativa e a racionalidade instrumental, e a suplantação da pri-
Giddens meira pela segunda na modernidade. Chouliaraki e Fairclough
(1999) identificam um paralelo entre Habermas e Marx. Ambos
Chouliaraki e Fairclough (1999) concebem a globalização falam de "um potencial emancipatório não realizado" na vida
em relação com a visão de Giddens (1991) sobre poder, que está social. Só que Habermas (1979), "diferentemente de Marx, loca-
ligada a uma nova modalidade deste, típica da modernidade liza esse potencial em formas de comunicação, em linguagem"
tardia. O sociólogo britânico faz um paralelo entre o desenvolvi- (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 84). Ele identifica
mento da mídia impressa, os primeiros tempos da modernidade uma relação entre o potencial emancipatório da ação comuni-
e a emergência da mídia eletrônica, e, sobretudo, a combinação cativa e o desenvolvimento da inovação cultural. Baseados em
desta com a mídia impressa e os desdobramentos recentes da F!abermas, Chouliaraki e Fairclough consideram que "as inova-
modernidade. Segundo ele, a tendência globalizante da moder- ções culturais (incluindo novas formas de comunicação) ocor-
nidade tardia, ou posterior, é no sentido da "ação a distância", rem em resposta a crises nos sistemas econômicos, e criam as
o que expande o alcance espaço-temporal do poder. Ocorre, pois,
uma intensificação da distanciação tempo-espaço e esta "envolve ~ Todas as traduções neste capítulo ~:ião ele André Ricardo l\!Iartins, a não ser
o 'desencaixe' das relações sociais de lugares e contextos específicos quando especificado.

128 129
IZABLL MAGALHÃ[S, ANDRÉ R. MARTlNS E VIVIANE D.E M. H..ESENDE ANALISE DE DISCURSO CHÍT!CA

condições para inovações tecnológicas e a emergência de novos b) G!oba!izaçãol!oca!ização


sistemas" (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 84).
Outro aspecto do trabalho de Habermas é sua discussão sobre Para os autores, a dialética envolvida nessa questão é efe-
a separação entre "sistemas" e "mundo da vida" e os processos de tivamente uma forma específica da dialética expressa no par
racionalização. ''A racionalização do mundo da vida permite e "colonização/apropriação", mas guarda sua singularidade, haja
traz o 'desaeoplamento'- a separação - de sistemas do mundo vista sua relevância no contexto da modernidade tardia, ou pos-
da vida que define as sociedades modernas" (CHOULIARAKI; terior. Esse movimento implica a transformação de determinada
FAIRCLOUGH, 1999, p. 85). Ainda estimulados pela contri- perspectiva global quando ela passa a operar no âmbito local.
buição desse autor, Chouliaraki e Fairclough observam a exis- Assim, por exemplo, as práticas discursivas "são atraídas para
tência de um novo campo de pesquisa para a Análise de Dis- novas articulações entre si e com as formas locais, que variam
curso Crítica. A ADC, argumentam, "pode ser compreendida de um lugar para outro e são moldadas pelas lógicas locais de
como parte da reflexividade crescentemente linguística (c mais práticas" (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 94).
geralmente social) da modernidade tardia" (CHOUIARAKI;
FAIRCLOUGH, 1999, p. 88). c) Reftexividadelideologia
Chouliaraki e Fairclough também propõem uma agenda de
pesquisa para a Análise de Discurso à luz dos desafios trazidos pela Uma das características atribuídas à modernidade tardia
modernidade tardia. A agenda leva em conta problemas- na forma tem sido a "refiexividade reforçada"- "em geral, as pessoas estão
de pares de termos contrários- como crítica explicativa na tentativa mais conscientes de suas práticas e estas são intrínseca e pro-
de explicitar os desdobramentos do discurso nesses novos tempos. fundamente abertas à transformação baseada no conhecimento"
(CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999,p. 95). Como exem-
a) Colonização/apropriação plo, os autores citam como tem crescido a consciência quanto a
práticas tidas como racistas ou sexistas, sem que isso deva implicar
O contexto é o de movimentos de discursos e gêneros de que todos partilhem de um alto grau de consciência ou que haja
uma prática social para outra numa rede de ocorrências, em que algum tipo de uniformização quanto a isso.
se pode notar que uma prática coloniza outra e assim a domina,
ou então uma prática apropria-se de outra e também assim a d) Identidade/diferença
domina. Tanto uma quanto a outra envolvem questões de poder
e de hibridismo: "o movimento de um discurso ou gênero de uma Chouliaraki e Fairclough observam como o conceito de
prática a outra implica a sua recontextualização na última, isto é, "sujeito)) tem sido frequentemente associado a ('sujeição" e "posi-
uma nova articulação de elementos em que se integra, um hibri- ção". Nessa perspectiva, a questão da representação (grupo social,
dismo novo" (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 94). etnia, gênero, etc.) será quase sempre evocada.

130 131
lZJ\!JEL MAGAJ.l-JÃES, ANDJÜ: H. MJ\ETJNS E VIVIA:NE DE M. RESENDE ANÁLJSE DE DISCURSO CHÍTJCA

O pano de fundo dessa perspectiva é o deslocamento cc) Os participantes e aposirão social: as práticas sociais são
de identidades no fluxo da modernidade tardia- principalmente eventos rotineiros na realidade social,
a luta para encontrar identidades é um dos temas relacionados ao funcionamento da sociedade ou de seus
mais universais e um dos mais afiados focos de refle- grupos internos, em que um ou mais participantes atuam
xividade na modernidade tccrdicc. (CHOULIARAKI; como agentes, desempenham papéis, são atores ou pacien-
FAIRCLOUGH, 1999, p. 96). tes das atividades nas quais estão envolvidos. Por que é
importante observar as posições dos participantes e seus
Qyestões referentes à identidade são muito relevantes nesses papéis na sociedade? Ora, os esquemas de poder, as hierar-
tempos e cruciais tanto para a segurança individual corno também quias sociais, os valores associados a aspectos corno gênero
em razão de interesses no mundo dos negócios. social, classe social, nível de instrução, raça!etnia, prestígio
social, entre outros aspectos, costumam intervir direta ou
2 Da prática social indiretamente, explícita ou implicitamente no curso das
práticas sociais 5 Observemos um exemplo típico: alunos
Devemos olhar com cautela para a expressão "prática social" ou alunas provenientes de famílias de grande prestígio
para evitarmos banalizar um conceito teórico bastante produtivo social que estudam em uma classe do ensino básico ou
para os estudos em ADC. De um lado, pode-se dizer que prática superior podem ser beneficiados em razão de seu status.
social abrange generalizadamente todas as atividades em curso na De igual modo, interferências da família podem alterar
realidade social, mas isso não ajuda muito, de tão abrangente que se a dinâmica da escola, da sala de aula, ou influir indevi-
faz a aplicação do termo. Busquemos, portanto, qualificar o conceito. damente no trabalho de profissionais de urna forma que
Fairclough (2006) considera como marcas da "prática social" seu cará- comumente não ocorreria.
ter de processo "habitual", "ritual" e "institucionalizado", e o fato de b) Grupos e instituições e os mecanismos de controle: vale obser-
a prática "estar ligada a instituições específicas (tais como direito ou var corno, numa determinada prática, ocorre busca pelo
educação) e, no nível mais concreto, a organizações específicas (corno controle de voz e de iniciativa e como uma determi-
urna escola ou um emprego)" (p. 30). Numa perspectiva de análise, nada instituição ou grupo social sofre influências de
podemos selecionar os contextos que vamos abordar, as institnições fora. É importante considerar que, ao examinarmos
ali envolvidas e, relacionado a elas, o conjunto de práticas envolvidas. urna instituição, como a polícia, por exemplo, ternos na
Falar de prática social é trazer à discussão o contexto social memória um script geral do que seja e de como funciona.
e suas implicações. O contexto tem a ver com os participantes e 5
Os integrantes de grupos de Alcoólicos Anônimos (AA) costumam dizer de si mes~
sua posição social, a instituição e seus mecanismos de controle mos que na dinâmica do gmpo, a posição social de um indivíduo não tem relevância
e de reprodução, o momento histórico e sua dinâmica, a relação alguma, estando todos nivelados pela condição de dependência química. De igual
modo, as religiões, no afã de autopromoção, reafirmam constantemente um discurso
com a sociedade abrangente e os mecanismos de reprodução.
de igualdade de todos os fiéis. Em ambos os casos, não temos evidências concretas
Examinemos cada um per se. de que, de uma maneira ou de outra, inexista assimetria em função de algum aspecto.

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JZADEL MAGi\LHÀES, ANDRÉ R. MARTTNS E VlVlANE DE hli, RESENDE ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA

No entanto, há outros aspectos intervenientes como dife- de freio aos excessos e abusos do poder. Não obstante,
renças institucionais de acordo com o lugar, distinções o poder hierarquiza grupos e instituições, cargos e funções,
referentes ao perfil de cada agente e aspectos bastante e preside a distribuição desproporcional de bens mate-
pontuais a marcar esta ou aquela instituição policial. riais e simbólicos e a administração da justiça, e não raro
c) O momento histórico e sua dinâmica: a prática social evolui propicia abusos e violências. Em casos extremos (mas não
com o tempo - mudanças tecnológicas, mudanças de raros), a luta pelo poder também leva à guerra, a vários
procedimentos, aspectos culturais de cada geração coo- tipos de opressão e ao genocídio.
peram para dar uma determinada conformação à prática 2) A luta pelo poder- acesso, usufruto e controle - é um
social. Como exemplo do que falamos aqui, basta pen- aspecto constante no desenvolvimento histórico das
sarmos como é o atendimento em repartições públicas sociedades. Essa luta é uma realidade de diversas instân-
e privadas hoje, com o uso de computadores, dispositivo cias- da política, da economia, da cultura e do prestígio
eletrônico de senha, uso da internet, etc., e como ele era social- e em âmbitos distintos das sociedades, no grupo
há 30 anos, sem essas tecnologias. social, nas grandes instituições e empresas, nas esferas
d) A relação com a sociedade abrangente e os mecanismos de municipal, estadual, nacional, macrorregional e mundial.
reprodução: vale a pena observar como a instituição ou 3) Na luta pelo poder- seja para mantê-lo ou conquistá-lo
instituições envolvidas comunicam-se com seu entorno e -,a ideologia desempenha papel fundamental. É ela que
de que modo elas se reproduzem. Ora, a prática social não embasa as ideias, mobilizando os sentidos, as represen-
é isolada, apartada de uma estrutura social, ao contrário, tações de mundo e as perspectivas de interpretação da
há uma instituição que lhe dá suporte. Como, pois, essa realidade social e propiciando meios de intervenção no
instituição dialoga com a sociedade abrangente? De que processo histórico. Como "sentido a serviço do poder",
modo influencia e é influenciada? Como ela se reproduz? a ideologia tanto pode servir aos interesses de quem
O desenvolvimento das práticas sociais tem a ver, portanto, pretende manter o poder e reproduzir seus mecanismos
com questões como poder e ideologia. Para não sermos redundan- como de quem pretende alcançá-lo ou redistribuí-lo.
tes, repetindo-nos a propósito do que já discorremos no capítulo Ela é fundamental no processo de instrumentalização
2, basta resumirmos aqui o que se segue: dos atores sociais e das forças que operam em dada con-
1) O poder é um aspecto onipresente na sociedade; no âmbito juntura (THOMPSON, 1998).
pessoal, o poder costuma ser dosado por aspectos como As práticas sociais, portanto, trazem consigo os vínculos
a amizade, o afeto e a solidariedade; no plano macro, os com a sociedade abrangente. Sua dinâmica, desenvolvimento
mecanismos democráticos' teoricamente buscam servir e transformação expressam os embates e impasses que a socie-
dade então vivencia: as hierarquias, os impedimentos, os tabus
6
Ressalve-se, no entanto, que nas sociedades democráticas também há assimetrias e preconceitos, as formas de tratamento, as oportunidades de
relacionadas à distribuição do poder. diálogo e negociação.

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tLABl::L MACJ\LHAES, 1\NDf(f~ F.. MJ\IU!NS E V!V!ANE DE M. RESENDE ANÁI.lSF DF DISCURSO CHÍTlC!\

Tendo as práticas sociais sua própria dinâmica, pode-se obser- de dizer o que se pensa e o que se quer, ou de divulgar um projeto
var que esta também se manifesta em paralelo aos interesses ideo- de sociedade, É, antes, uma questão de construção de imagem, de
lógicos vivenciados na sociedade, As configurações nelas espelhadas uma intervenção no mundo do simbólico que redunde em crédito
têm a ver com os interesses ideológicos dominantes e a contínua - mais prestígio, mais valorização, mais poder- a ser utilizado
mobilização em busca de hegemonia e de construção do consenso, no desempenho de funções, papéis e iniciativas na esfera pública,
Ademaís, as práticas, ao tempo em que se perpetuam e se repro- Um exemplo que remonta a meados dos anos de 1990 ilustra
duzem, também se transformam, E embora essas transformações bem como isso se dá, As ações do movimento social zapatista
estejam diretamente relacionadas ao processo histórico- à realídade de Chiapas, um estado do México, empobrecido, predominan-
econômica, ao desenvolvimento social e à luta pelo poder - vale temente rural e com forte ascendência indígena, lograram uma
observar que uma das trincheiras é justamente o discurso, o recurso repercussão sem precedentes ao conjugar ações assemelhadas às de
à linguagem como forma de representar as configurações no âmbito uma típica guerrilha rural- desenvolvida pelo Exército Zapatista
das práticas sociais, apontar contradições, propugnar por uma nova de Libertação Nacional (EZLN) sob o comando do lendário e
ordem c intervir na construção do consenso, carismático subcomandante Marcos- com uma bem-sucedida
Nessa aproximação que fazemos de uma sociedade impreg- articulação junto a personalidades e grupos sociais no exterior,
nada pelos traços da modernidade tardia, vê-se logo que uma das Somou-se a isso o apelo midiático, com utilização de símbolos
marcas é justamente o peso dos meios de massa na sua manifestação (as marchas, as palavras de ordem, a indumentária) e uso de tec-
e perpetuação, Daí por que a tomamos como uma sociedade midia- nologias, como telefone celular c internet, para que o movimento
cêntrica, no sentido de que a mídia está no centro das atenções, divulgasse em escala mundial seu pensamento e suas ações,
As decisões passam pela discussão pública nos meios de massa e Os zapatistas mexicanos fornecem um bom exemplo de
não se concebe o exercício de poder sem o apelo a esses meios, como os grupos minoritários, mesmo nos casos em que de algum
Dada a relevância da mídia na sociedade pós-moderna, o apelo modo recorrem a ações armadas e a conflitos violentos, também
midiático passa a ser uma tática constante e generalizada a que os não dispensam um forte amparo simbólico, representado pelas
grupos sociais e os atores na esfera pública estão sempre a recorrer, intervenções nos espaços da mídia, A estratégia de aliar luta
Por mídia, entendemos, vale ressaltar aqui, todo esse aparato tec- política propriamente dita (e até mesmo ações armadas) e ini-
nológico relacionado aos meios- jornais, revistas, cinema, rádios, ciativas de fundo simbólico não tem origem recente, mas, dado o
TVs e internet-, as relações entre eles e todo o arsenal simbólico crescente peso da mídia nos últimos anos, sobretudo no mundo
que implicam, sopesado com as gradações devidas, a depender do ocidental, ganhou uma relevância de maior envergadura,
prestígio social dos participantes, da cidade, da região ou do país
em questão c de outros aspectos correlacionados, 3 Da prática discursiva
Um dos aspectos marcantes na construção do consenso social
é a ocupação de espaços nos meios de massa, Não se trata de sim- A linguagem opera nas práticas sociais, Com isso, queremos
plesmente produzir um texto, de veicular um manifesto político, dizer que i) as práticas são atravessadas pela linguagem, com

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TZARFT, MAGAT.T-i)\FS, ANDRF R. MARTINS F VIVJANE D[ M. RFSENDE J\NÁLJSE DE DISCURSO CH[T!C/\

seus textos típicos, os interditos, as modalidades verbal e não das práticas sociais, ou seja, tanto a linguagem contribui para a
verbal, os silêncios; ii) a linguagem constitui as práticas sociais configuração ampla das práticas sociais quanto sofre os efeitos
e coopera na sua reprodução e transformação; iiz) a linguagem dos momentos não discursivos das práticas. Não se trata, pois,
interage dialeticamente com os demais elementos das práticas da constituição de um momento em mero reflexo dos demais, e
sociais; e iv) as práticas sociais não prescindem da linguagem, mas sim da existência de uma relação de dependência recíproca, em
sua existência e reprodução não se resumem a ela. Expliquemos que cada elemento sempre está a se alimentar dos outros (sobre
cada um desses pontos. os elementos das práticas sociais, veja o capítulo 2 deste livro).
O primeiro aspecto destacado informa que as práticas sociais Daí por que as investidas de "higienização" da linguagem sem a
realizam-se de modo muito intenso e recorrente por meio da devida consideração e o tratamento da realidade propriamente
linguagem. Ao fazê-lo, recorrem comumente aos usos múltiplos dita das práticas sociais estão fadadas ao fracasso. Um exemplo é
da linguagem. Consideramos esta em toda a sua complexidade, a proposta do português gramaticalmente correto sem referência
a saber, a produção e intervenção recorrente dos textos, a tensão ao efetivo uso linguístico (cf. capítulo 4, neste volume).
entre o dito, o não dito e os implícitos, a linguagem não verbal, Por fim, sendo a linguagem como discurso elemento ine-
o silêncio que também comunica. A configuração dos usos da rente às práticas sociais, também é fato que estas não se resumem
linguagem aplica-se tanto a práticas formais- as múltiplas situ- àquela, isto é, há nas práticas algo mais que linguagem. Há outros
ações institucionalizadas na esfera pública - quanto a práticas aspectos concretos, objetivos, que precisam ser identificados e
informais, ligadas à vida cotidiana. considerados. No mundo do trabalho, há uma realidade de troca,
Pelo segundo aspecto, entendemos que as práticas sociais de geração da mais-valia, de suprimento de necessidades, de pro-
são constituídas também pela linguagem, que contribui para dução de bens e mercadorias que, conquanto tudo seja atravessado
sua formação. As práticas são pensadas (sonhadas, imaginadas, pela linguagem, é algo mais que linguagem pura c simplesmente.
planejadas), organizadas (discutidas, preparadas, viabilizadas) e Mas como tratamos nesta seção de discurso, prossigamos.
realizadas (vivenciadas, aperfeiçoadas, modificadas) por meio As práticas discursivas envolvem uma diversidade de elementos: os
da linguagem. De algum modo, a linguagem se faz presente em textos e seus tipos, os gêneros discursivos, os níveis da linguagem,
todo o movimento das práticas sociais. Também por meio da as escolhas lexicais, as figuras de linguagem, etc. Para cada situação,
linguagem, as práticas são reproduzidas e transformadas. Há uma um determinado uso da linguagem será mais apropriado e dese-
contribuição específica c determinante da linguagem na forma jado que outros. Ao longo do tempo, cada instituição foi criando,
como as sociedades e os grupos no interior destas constituem suas recriando e consolidando seus próprios gêneros, gerando padrões,
instituições, suas organizações e práticas. A linguagem intervém tipos e modos de usar a linguagem. Para cada situação, costuma
na dinâmica das práticas, na forma como elas são organizadas, haver gêneros e textos paradigmáticos e toda uma configuração
representadas, defendidas ou combatidas. imaginada de contexto: expectativas e procedimentos relacionados.
O terceiro aspecto destaca a ocorrência de uma relação Vejamos, por exemplo, os anúncios nos classificados de um
dialética entre linguagem como discurso e os demais momentos jornal, os textos do telejornal ou as piadas contadas em rodas

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JZABEL MAGALHÃES, ANDRE R. MARTJNS L VJVJÀNE DL M. RF:SENDE ANALISE DE DISCURSO CRÍTICA

de amigos. Com pequenas distinções de um jornal para outro, sociais. Precedendo a discussão sobre a necessidade das cotas,
os anúncios costumam aparecer segundo uma disposição dos sua oportunidade e as possibilidades de alterar uma situação de
assuntos: imóveis (e entre esses, venda ou aluguel), veículos, ser- desigualdade no país, havia que se fazer uma discussão efetiva
viços, e assim por diante. Em poucas linhas, diz-se o que se julga sobre a realidade do racismo que recaiu e recai sobre gerações
essencial para que a transação venha a se realizar. Há assim uma de africanos escravizados e de afro-brasileiros no passado e no
expectativa em comum sobre o que buscar e oferecer em um presente. Nota Martins:
anúncio desse tipo.
Do mesmo modo acontece no caso dos telejornais. Os textos Assim, sem uma contextualização apropriada,
de notícias costumam apresentar-se segundo aspectos padroniza- a defesa da política de cotas já entra no debate
dos, como postura do apresentador ou da apresentadora, a saber, público desacompanhada de seu maior aliado, o
ritmo, volume e impostação da voz, clareza, uso do nível coloquial reconhecimento de que há racismo na sociedade
da linguagem combinado com a norma padrão da língua. Assim brasileira e de que este assume formas específi-
também são as piadas contadas entre amigos. Há toda uma expec- cas e historicamente definidas. Ao se excluir o
tativa de textos cõmicos, adequados à faixa etária, à situação da princípio fundante da política de cotas do debate
interação, ou ainda conforme o grau de informalidade ou mesmo na esfera pública, torna-se mais fácil combatê-la.
de intimidade entre os envolvidos, e com uma rotina específica, (MARTINS, 2004, p. 147).
ou seja, conta-se a piada e, por fim, vem o clímax, a gargalhada
e a apreciação ou avaliação crítica dos presentes. Dependendo As práticas discursivas, ao mesmo tempo em que eviden-
da reação e de sua intensidade, pode-se estimar se a piada foi ciam uma relação víscera! e dialética com o contexto social, vêm
adequada, se o texto apresentou-se de forma clara, se foi bem a se constituir também numa trincheira na luta por mudança
interpretado, ou mesmo se o apelo ao humor foi forte o suficiente. social. Nessa mesma pesquisa, Martins indica como os apoiado-
O processo discursivo sendo vinculado a questões de poder res das cotas lograram fazer avançar um debate, desenvolvendo
e ideologia está sujeito, portanto, às lutas em torno da fixação de uma contra-argumentação, oferecendo perspectivas alternativas
sentidos. O que prevalece numa determinada conjuntura? Como e construindo espaços de diálogo, além de questionar mitos c
isso se dá? O que é determinante nesse sentido? São perguntas sofismas quanto à realidade das relações raciais no Brasil.
que dependem de uma análise do contexto social. O embate em torno elo consenso social presente nas práticas
Tomemos como exemplo o discurso da imprensa sobre as discursivas não é uma questão meramente de partilha de con-
cotas no Brasil. Martins (2004, 2011) mostra como a luta na teúdos, de um debate público de posições, de esclarecimentos e
sociedade pelo consenso social em torno das cotas - travada conscientização, senão que um processo social complexo em que
entre os anos de 2002 e 2003 -mostrou-se um processo com- intervém uma disputa ideológica, cuja dimensão é determinada
plexo, sujeito às influências da conjuntura sociopolítica de então pelo grau de relevância que a questão em apreço tem para as elites e
e a uma forte disputa de sentidos envolvendo diversos atores para o esquema de poder e controle que opera naquela conjuntura.

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IZABJ:L MAGALHAES, ANDRÉ R. MARTINS E VIVIANJ: DE M. RESENDF. ANÁLISE DE DISCURSO CRITICA

4 Prática social e discurso As formações discursivas (FD) não detêm exclusividade


alguma sobre termos e expressões que, ao contrário, podem ser
Tendo analisado a prática social e a prática discursiva per usadas indistintamente por uma e outra, ainda que se trate de FDs
si, pensemos agora sobre como pode haver um movimento de opostas entre si. Veja-se o caso do termo "democracia" e o adjetivo
mudança social. Remontemos aqui7 a Althusser (1992), que já relacionado "democrático". Uma formação discur siva autoritá-
citamos de passagem na Introdução. Na verdade, vamos discutir ria pode recorrer à palavra para caracterizar um determinado
como o linguista francês Pêcheux trabalhou a abordagem teórica sistema político elitista, conservador e autocrático. Nesse caso,
marxista proposta por Althusser. "democracia" e "democrático" reforçam aspectos como liberdade
Na perspectiva althusseriana, a ideologia intervém de modo de iniciativa para empresários, direitos de propriedade acima de
significativo na base econômica - as relações fundam entais que outros direitos e prevenção contra movimentos libertários ques-
dão sustentáculo ao edifício social - e no seu funcionamento )
tionadores da ordem. Já uma formação discursiva no campo das
"interpela" as pessoas como sujeitos sociais atribuindo-lhes "posi- esquerdas pode valer-se dos mesmos termos para designar a luta
ções de sujeito", dando-lhes ao mesmo tempo a ilusão da liber- pelos direitos sociais, pela distribuição do poder e por acesso à
dade de agência. Outra contribuição relevante de Althusser foi terra e a outros bens materiais e simbólicos.
o conceito de "aparelhos ideológicos do Estado"- instituições e Um aspecto a se observar é como os atores sociais relacio-
organizações, a exemplo da escola, da família, do mundo jurídico nam-se na sucessão de textos nesse processo discursivo. A iden-
e da imprensa, que funcionariam como aparelhos de formação tificação pode ser completa ou parcial. Nesse caso, o próprio
ideológica a serviço do pensamento dominante. texto produzido traz evidências do nível de engajamento: como
Nesse sentido, e focando a perspectiva do discurso, Pêcheux o pensamento dominante é assumido, como ele é criticado e em
propõe que este, como uma forma de dimensão ideológica que medida o é.
da linguagem, vem a se constituir em uma espécie de mate- Dentro de uma perspectiva focada no discurso, vamos- em
rialidade ideológica fundamental na realidade social. Assim, razão dessa opção teórica -priorizar a iniciativa de investimento
enquanto o discurso é uma expressão da "luta ideológica no no uso social da linguagem aliada à intervenção nas práticas
funcionamento da linguagem" (FAIRCLOUGH, 1992, p. 52), sociais para, então, pensarmos na mudança social.
ele também emerge como a "materialidade linguística na ideo- O investimento nas práticas discursivas com o propósito de
logia" (FAIRCLOUGH, 1992, p. 52). Pêcheux (1982) recorre pôr a linguagem a serviço da busca da igualdade entre as pessoas
ao conceito de "formação discursiva"- proposto por Foucault e da democracia requer uma representação equânime dos grupos
(1972) -,definindo-a como "aquilo que em uma dada forma- ou das pessoas em desvantagem, incluindo a vigilância quanto
ção ideológica... determina o que deve e pode ser dito"' (apud ao uso correto de termos e expressões referentes.
FAIRCLOUGH, 2001b, p. 52, grifo no original). Na imprensa, particularmente, e na mídia, em geral, já há
toda uma discussão a respeito da distribuição justa de um texto
7
Baseamo-nos aqui na discussão feita por Fairclough (1992). entre os participantes envolvidos na situação ali apresentada.

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!?.ABEL Ivll\CALHÃES, ANDHÉ H. MARTINS 1:: V!VlANE DE M. HESENDE 1\NJ\LlSJ:: DE DiSCURSO CRÍTJCi\

Assim, vejamos o caso de uma reportagem que trata de uma greve formas de uso e de controle do poder - incluídas aí as práticas
de trabalhadores em empresas de transporte urbano. Pela expec- discursivas. Tais processos sofrem continuamente intervenções
tativa gerada pelas próprias regras do jornalismo, espera-se que dos próprios participantes, mas o controle propriamente dito
os lados antagônicos sejam ouvidos, que suas perspectivas sejam desses processos vai além até mesmo do alcance dos envolvidos
apresentadas em igual proporção e que opiniões de terceiros mais poderosos. No entanto, o que se pode observar em muitos
favoráveis a uma das partes sejam contrabalançadas com as de contextos é que iniciativas simples que partem de pessoas ou
outros contrários a ela. Os manuais de jornalismo já consoli- grupos em desvantagem podem render bons resultados.
daram procedimentos como esses e quanto mais consciente de O que falamos acerca da distribuição de poder e de espaço
seus direitos e politicamente forte a sociedade civil for, melhores nas práticas discursivas vale também e especificamente para a prá-
resultados haverá quanto à observância desses princípios. tica da linguagem politicamente correta, ou seja, o uso consciente,
Em outros contextos também há normas consensuais, for- deliberado e ostensivo de termos e expressões justas e adequadas
mais ou informais, quanto ao uso de voz, tempo e oportunidade como meios de se referir a pessoas e grupos em desvantagem,
de fala. Veja-se o caso dos parlamentos, da sala de aula (com e de representá-los. Esse aspecto- que tem sido mal apreciado,
as especificidades próprias dos ensinos básico e superior), das inclusive por muitos intelectuais que lhe pespegam a pecha da
cortes judiciais, das instituições religiosas, entre outras institui- censura - pode-se constituir tanto em um meio de burilar os
ções. O fato de haver regimentos, estatutos, portarias e outros usos públicos da linguagem, livrando-os de um vocabulário pre-
dispositivos a prescrever normas e regras quanto às práticas conceituoso e depreciativo, que só reforça a discriminação, como
discursivas não significa que a construção do consenso que as em uma tática para fazer avançar a luta pela democratização na
propiciou tenha seguido um equilíbrio entre os diversos atores esfera pública, uma vez que faz com que pessoas e grupos mar-
do processo. É possível, sim, que alguns segmentos ou interesses ginalizados ganhem visibilidade nos contextos sociais.
tenham prevalecido em detrimento de outros. Enquanto o uso da linguagem politicamente correta busca
Deve-se pressupor, a rigor, uma ferrenha disputa em torno justiça e igualdade na esfera pública (uma empreitada que não
desses espaços de poder. Ademais, o descumprimento flagrante está livre de percalços, de equívocos e mesmo de abusos), há tam-
de um ou outro procedimento por parte de quem detém o con- bém aqueles que, valendo-se do poder que detêm, recorrem à
trole em determinado contexto é algo bastante corriqueiro na manipulação de palavras e de imagens, de eufemismos e outros
grande maioria das instituições. De sorte que a luta pela igual- falseamentos para construir determinadas imagens e versões que
dade de condições no processo discursivo envolvendo contextos lhes são convenientes. Assim, quando ditadores referem-se a seus
sociais em que há disputa por controle passa pela questão da próprios governos ou ao sistema político que comandam como
distribuição equilibrada de espaço e por uma justa representação democráticos, temos aí o abuso de termos e expressões de modo
dos atores envolvidos. a ocultar a realidade, distorcer fatos e maquiar as características
Como isso é possível? Em cada sociedade, em cada institui- ditatoriais e repressoras do regime. Isso nada tem a ver com a
ção ou grupo, há um processo social e histórico que possibilita perspectiva do politicamente correto, que surge como perspectiva

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!ZABEL MAGALHÃES, ANDRf: K MARTINS E VTVIAN[ DE M. RESENDE ANÁLISE DL DISCURSO CRÍT!CJ\

ligada a grupos minoritários ou em desvantagem nos contextos bens materiais produzidos pela sociedade e do usufruto dos bens
sociais, em busca de termos c expressões que lhes façam justiça, simbólicos, bem como da perspectiva daqueles ou daquelas que
que sejam adequados, e não de uma representação superestimada-' se solidarizam com as pessoas ou grupos excluídos, a busca por
No dia a dia, em situações de muita disputa ideológica, pode mudança social é, de um lado, uma necessidade imperiosa e resul-
se notar que a um mesmo referente pode ser atribuído mais de um tante de uma tomada de consciência e, de outro, um imperativo
significado. Vejamos como exemplo o caso de um( a) integrante de ético ou uma responsabilidade imposta pela participação política.
um grupo armado que luta pela liberdade de um povo no interior Evidentemente, os limites da luta por mudança social, os
de um país. Para o governo desse país, o( a) militante do grupo meios e as estratégias a serem adotados, a fL'Cação dos alvos c os
armado será visto( a) e apontado( a) como "terrorista"; já para o rumos de cada situação e iniciativa são aspectos a serem definidos
povo e quem com ele se solidariza, o(a) mesmo( a) militante será em cada conjuntura e de acordo com o embasamento ideológico
visto( a) e definido( a) como ('patriota", "herói" ou ((heroína". e político de cada grupo em ação. Historicamente, as esquerdas
De igual modo, no contexto de uma organização complexa, têm tido entendimentos diversos sobre as formas de luta e sobre
como as forças armadas, a base e a cúpula poderão ver com pers- tudo o mais correlacionado. Não nos cabe aqui avaliar essa tra-
pectivas distintas um(a) soldado que se expõe publicamente por jetória ou considerar os desafios e as possibilidades abertas na
melhores condições de trabalho e de soldo para os militares; a base modernidade tardia.
pode apreciar essa pessoa com apreço e com ela solidarizar-se; Q.yeremos, antes, enfocar a realidade de grupos minoritários
já a cúpula, enxergá-la com restrição e censura. São exemplos que no contexto de desequilíbrio social e político frente a uma socie-
mostram como termos e expressões são mobilizados distintamente dade abrangente- minorias não são necessariamente numéricas;
por parte de pessoas ou grupos em posições sociais diferentes. temos nos referido a elas volta e meia neste livro como segmentos
excluídos ou em desvantagem. Q.yeremos também realçar como
5 A busca por mudança social o uso consciente da linguagem pode ser útil para o avanço da
luta por mudança social.
Priorizar a perspectiva de mudança social pressupõe uma crí- Aqui, vamos considerar alguns estágios necessários nessa
tica à realidade social apresentada. A mudança vai desde pequenas trajetória em busca de conferir poder a esses grupos, na luta
alterações nas estruturas da sociedade até os câmbios mais radicais por uma mudança que os favoreça e os contemple com mais
de ordem econõmica, política e social. Do ponto de vista de quem espaço e poder na esfera pública. Não se trata de definir escala
está à margem do poder, em situação de exclusão do acesso a de relevância ou prioridade temporal para esses estágios, que
8
Note-se a diferença de expressões usadas corno substihJtas de "velhice"- um termo tanto podem ocorrer simultaneamente como podem se suceder
tido como depreciativo dessa faL\:a etária. A expressão "terceira idade" é neutra, na medida em que o grupo cresce em consciência, recursos e
elimina o menosprezo, sem marcú-la qualitativamente. Já o uso de "melhor idade"
poder de representação.
mostra uma estratégia de marketing, em que se busca explorar uma imagem com fins
mercadológicos (a venda de produtos e serviços para esse segmento, por exemplo), Consciência de si, do grupo e do mundo: a trajetória dos movi-
além de superestimar essa faL\:a etária em detrimento de outras. mentos sociais mostra que mudanças significativas não ocorrem

146 14'7
IZABEL MAGJ\LHÀES, ANDRÉ R MARTINS F V!VIANE DE M. RESENDE ANALISE DE DiSCURSO CRiTICA

trazidas por pessoas ou grupos de fora sem que as pessoas do influência ou voz e vez no discurso da imprensa. É nesse estágio
próprio grupo em questão tomem, elas mesmas, a iniciativa da luta, que desempenha papel de especial destaque a linguagem, usada
da busca de compreensão de sua realidade e de sua transformação. para representar esses grupos.
Organização, planejamento estratégico e ações políticas: o bom A mudança social surge, assim, no cenário das possibilida-
êxito de uma luta política de grupos excluídos costuma ter relação des da realidade social como um imperativo ético e político em
direta com um mínimo de organização (recursos humanos, finan- favor de pessoas e grupos em desvantagem, um imperativo que
ceiros, infraestrutura), planejamento estratégico (definição de se impõe desde que se toma consciência da situação, da condição
alvos e prioridades) e a execução de atividades (abaixo-assinados, de opressão ou desfavorecimento. A luta que se desenvolve e os
passeatas, comícios, greves). resultados quanto à eficácia e ao sucesso não têm a ver apenas
Articulação política: os grupos minoritários- diante de limi- com a capacidade de iniciativa dos atores sociais, mas sim de
tações de poder político, econômico e midiático- precisam multi- outras condições dadas no processo social. A mediar tudo isso
plicar o potencial de que dispõem e, para tanto, devem valer-se da está o discurso como domínio imprescindível da realidade social.
articulação em busca de apoios e parcerias junto a outros grupos Seu manejo consciente e instrumentalizado é o front por exce-
também em desvantagem e a pessoas e segmentos estratégicos na lência da mudança numa sociedade marcada cada vez mais pela
sociedade, os quais, em virtude de opção politica (as elites também dominância e onipresença do simbólico.
podem se fracionar) ou por necessidade, ou mesmo por princípio
de solidariedade, podem hipotecar apoio e mesmo patrocínio, se Considerações finais
não em virtude da visão política do grupo como um todo, pelo
menos em função de uma determinada luta conjuntural. Neste capítulo, refletimos sobre os caminhos e as possibili-
Representação na esfera pública: setores estratégicos como o dades da mudança social, considerando as perspectivas da prática
parlamento, a economia, os sistemas policial e judicial e as insti- social e do discurso. Discutimos a emergência da modernidade
tuições da mídia em geral costumam ser controlados pelas elites tardia e as alterações que ela trouxe à perspectiva do discurso.
conservadoras. Não obstante, do ponto de vista de quem está à Baseados essencialmente na análise que Chouliaraki e Fairclough
margem, torna-se necessário assumir uma perspectiva dinâmica (1999) encetaram, e extraindo contribuições de Harvey (1996),
da sociedade e partir para a ocupação de espaços nessas insti- Giddens (1991) e Habermas (1979), vemos que a nova confi-
tuições que, volta e meia, podem surgir, nesse cenário, como guração de valores econômicos, políticos, sociais e culturais tem
resultados do trabalho rotineiro dos próprios grupos desfavore- não só realçado o papel do discurso na sociedade, como também
cidos e da dinâmica dessas instituições, ou ainda como reflexos tem lançado desafios, como estes quatro pares dialéticos sugerem:
dos enfrentamentos entre facções da elite e da divergência de colonização/ apropriação, globalização/localização, reflexividade/
interesses daqueles que controlam o poder. A busca de espaço ideologia, identidade/diferença.
na esfera pública pode abranger desde a eleição para manda- Observamos, também, a utilidade do conceito de prática social
tos eletivos e a ocupação de funções públicas até a procura por nos estudos baseados na ADC e as implicações possíveis: quem são

148 149
!ZABJ::L MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS E VJVlANf. DE M. RESENDE

os participantes previstos em uma prática particular e que posição


eles ou elas ocupam na sociedade; que instituição está envolvida DE
e de que mecanismos de controle e de reprodução ela se utiliza;
como o momento histórico se caracteriza e como sua dinâmica
se manifesta e intervém; e como é a relação desse contexto com a
sociedade abrangente e seus mecanismos de reprodução.
Também analisamos o conceito de práticas discursivas.
Vimos como a linguagem intervém de modo específico e atu-
ante nas práticas sociais, como o poder opera nos meandros das
práticas discursivas, que elementos constituem essas práticas c
como é o embate em torno do consenso social no âmbito delas. Introdução
Contemplamos, ainda, a relação entre sociedade e discurso.
Recorremos a Fairclough (1992/2001) e à forma como ele consi- Neste capítulo, adotamos a abordagem da vida social como
dera a contribuição teórica de Althusser (1971/1992) e Pêcheux um sistema aberto constituído de (redes de) práticas sociais
(1982/1988) sobre ideologia e discurso. Discutimos, também, (BHASKAR, 1989), para defender a complementaridade entre
como as práticas discursivas podem ser mobilizadas, seguindo a etnografia e a ADC na pesquisa do discurso, nas áreas da Lin-
o propósito de pôr a linguagem a serviço da busca da igualdade guística e das Ciências Sociais. O conceito de prática é trazido
entre as pessoas e da democracia, e o que isso implica. de Harvey (1996), para quem o discurso é um momento de
Por fim, refletimos sobre a busca por mudança social. Discu- práticas sociais dentre outros: relações sociais, atividades mate-
timos como essa luta é imprescindível para quem está à margem riais c sistemas de conhecimento e crença (CHOULIARAK1;
dos esquemas de poder e para todos os que se importam com a FAIRCLOUGH, 1999). A abordagem de discurso que recorre
superação das vulnerabilidades sociais, e apontamos os estágios a essa perspectiva da vida social é a ADC de F airclough, que
que se tornam necessários nessa trajetória em busca de conferir entende o uso da linguagem como modo de ação historicamente
poder a esses grupos na luta pela emancipação. situado, constituído socialmente e constitutivo de identidades
Sendo uma possibilidade concreta no cenário da sociedade, e relações sociais.
a mudança social não é, no entanto, uma situação dada, senão Se o objetivo de uma pesquisa é ter acesso a práticas
que uma conjuntura a ser buscada, atingida, conquistada, sujeita sociais e investigar como se dá a articulação entre os momentos
que está a um processo social de que tomam parte os diversos constituintes dessas práticas, incluindo o discurso, a etnogra-
atores e grupos sociais. Nesse processo, também o poder e a ide- fia provê meios adequados para a geração e a coleta de dados
ologia participam, impondo limites e restrições, mas, ao mesmo (BLOMMAERT, 2005; CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH,
tempo, sempre há caminhos para a transformação de realidades 1999; DENZIN, 1999). A ADC, por sua vez, provê um arca-
de opressão e desigualdade social. bouço capaz de mapear conexões entre escolhas linguísticas em

150
!ZABFL MAGALHÃES, ANDRÍ: R. MARTINS E VJVJANE DE M. RESENDF ANALJSE DL lJJSCURSO CRÍTICA

textos e a prática social de que o discurso é parte. Etnografia e e etnografia parece ultrapassar a mera complementação, sendo
ADC podem ser consideradas complementares para a geração/ desejável uma relação mais estreita.
coleta e análise de dados em pesquisas que não se limitem a des- Q.yando se pretende manter a coerência entre ontologia
crever o mundo social, mas pretendam interpretá-lo e fornecer e epistemologia, o planejamento dos passos metodológicos de
uma explanação de suas conexões (sobre isso, veja também o uma pesquisa não deve ser uma decorrência direta e simples do
capítulo 4, neste volume). campo social pesquisado ou dos objetivos da pesquisa. Ao con-
O capítulo encontra-se dividido em três partes. Na pri- trário, deve ser fruto de reflexão acerca das perspectivas onto-
meira, mostramos que, para a versão de ADC com a qual tra- lógica e epistemológica adotadas (RESENDE, 2009). Decisões
balhamos, o discurso é compreendido como um momento de de caráter ontológico são aquelas que dizem respeito ao modo
práticas sociais, articulado em relações relativamente estáveis como acreditamos ser constituído o mundo social. Devemos
com os outros elementos das práticas, que também devem ser considerar que a constituição do mundo social não é evidente,
privilegiados em análises empíricas, e partindo daí discutimos pois há perspectivas ontológicas alternativas, diferentes per-
a relação epistemológica entre ADC e etnografia. Em seguida, cepções acerca da composição da "realidade" social, da relação
na segunda seção, procuramos qualificar essa relação, refletindo entre estrutura e ação social, da conformação das práticas sociais,
acerca da heterogeneidade da etnografia como campo episte- do papel do discurso na sociedade. Uma vez que não há uma
mológico. Na terceira seção, abordamos o aspecto prático da verdade universal que possa ser tomada como dada, a adoção
construção de um planejamento de pesquisa que articule ADC de uma versão ontológica do mundo social é o primeiro passo
e etnografia. Por fim, nas considerações finais, argumentamos em a ser tomado na construção reflexiva de um projeto de pesquisa
favor da complementaridade entre etnografia e ADC, ressaltando (MASON, 2002).
que para tanto é necessária uma reflexão transdisciplinar, o que A ADC de Chouliaraki e Fairclough (1999) adota uma
implica a necessidade de recontextualização. versão da ontologia baseada no Realismo Crítico de Bhaskar
(1989) e no Materialismo Histórico-Geográfico de Harvey
1 Em busca da coerência entre ontologia e epistemologia (1996). Com base nesse preceito ontológico, a ADC considera
a organização da vida social em torno de práticas, ações habituais
Chouliaraki e Fairclough (1999) e Fairclough (2003) da sociedade institucionalizada, traduzidas em ações materiais,
recomendam a etnografia como complementar à Análise de em modos habituais de ação historicamente situados. O conceito
Discurso Crítica. Para Fairclough, o envolvimento de textos na de práticas sociais é trazido do material.ismo histórico-geográfico,
construção de significados e o efeito social de textos são questões segundo o qual o discurso é um momento de práticas sociais entre
que a análise textual não elucida sozinha. Embora Fairclough outros, articulados em relações relativamente estáveis.
não faça pesquisa etnográfica, ele sugere que a análise do modo Essa perspectiva é representada na figura 6.1, a seguir, que
como os textos figuram na vida social pode ser embasada na procura ilustrar o caráter de irredutibilidade na relação entre os
complementação da etnografia. Entretanto, a relação entre ADC elementos da prática, incluído o discurso.

152. 153
!ZABEL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MAHTJNS F. VlVlANE DE M. RESENDE ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA

Figura 6.1: Composição ontológica das práticas sociais


Muitos paradigmas epistemológicos estão disponíveis, por isso

Cceoçae, ~
~
é preciso escolher, reflexivamente, o mais adequado para cada
pesquisa, de acordo com os componentes da realidade social
valores, Aüvidacle
li

v
ideologias material que se pretende investigar. Isso porque nem todos os modelos
Prática
epistemológicos serão igualmente consistentes com as posições
Social ontológicas selecionadas (MASON, 2006).
Uma vez que, no modelo ontológico adotado nessa versão I
Discurso e Relações
eemioee ~ eociaie de ADC, entende-se que os elementos constituintes das práticas
sociais são irredutíveis a um- e, portanto, o discurso articula-se
com as relações sociais, por exemplo, mas estas não se reduzem
Fonte: RESENDE,2009, p. 31; baseada em CHOULIARAIU; FAIRCLOUGH, 199Y, p. 6. àquele-, então não é epistemologicamente adequado considerar a
materialização discursiva em textos (pesquisa clocument"l) como
Chouliaraki e Fairclough (1999) operacionalizam a proposta única ferramenta para construção de conhecimento em ADC
do Materialismo Histórico-Geográfico acerca da composição das (veja, também, o capítulo 4, neste volume).
práticas sociais para constnúrem a ontologia que orienta essa ver- Por isso, acreditamos que há inconsistência entre a perspec-
são de ADC. Os componentes ontológicos do mundo social, nessa tiva ontológica ela ADC e sua tradição ele análise documental
perspectiva, são estmturas, práticas e ações sociais, relações sociais, (RESENDE, 2009). Se assumirmos que os componentes ontoló-
atores sociais, identidades, ideologias, discursos, gêneros discursivos, gicos do mundo social são estruturas sociais, práticas sociais, ações I
estilos e textos. Isso implica que todos esses componentes são rele- sociais, relações sociais, atores sociais, ideologias, identidades, dis- !I'
vantes para a investigação das relações entre linguagem e sociedade. cursos, gêneros discursivos, estilos e textos, precisamos ele mode-
Se a ontologia refere-se aos componentes da realidade social, los epistemológicos que nos permitam construir conhecimentos
a epistemologia diz respeito ao que se considera conhecimento sobre esses componentes, por meio do método para análise textual
acerca da realidade social pesquisada. ~estões epistemológicas da ADC combinado a outros métodos. O paradigma etnográfico
são questões acerca da natureza do conhecimento, acerca da pos- parece ser um caminho adequado, o que demonstram muitas das
sibilidade de se gerar conhecimento a respeito de um componente pesquisas levadas a cabo no Núcleo de Estudos ele Linguagem
ontológico específico, de uma realidade social particular. Assim, e Sociedade da Universidade de Brasília.
questões epistemológicas dizem respeito aos modos por meio O uso da etnografia nos estudos discursivos críticos deve ser
dos quais acreditamos que a realidade social possa ser conhecida. mais que uma recomendação, como está posto em Chouliaral<i e
O modelo epistemológico adotado em uma pesquisa precisa Fairclough (1999). A articulação entre a ADC c a etnografia, nas
conduzir a produção de conhecimentos acerca dos componentes bases epistemológicas, parece ser necessária para estabelecer coerên-
ontológicos do mundo social, por isso é necessário haver cor- cia com a ontologia adotada, ou seja, para pôr em fi.mcionamento
respondência entre as perspectivas ontológica e epistemológica. efetivo a relação interdisciplinar entre a ADC e as Ciências Sociais

154 155
JZA!:JEL MAGA!.HAES, ANDRÉ R. MARTINS E VlV!ANF DE M. RCSENDE ANÁLISE D[ DJSCURSO CRJTJC/\

que a alimentam ontologicamente. Por meio da análise documental e com a "etnografia crítica" (respectivamente, DEMO, 2004;
isolada da etnografia, o máximo que se atinge da prática social é a MAGALHÃES, 2000; THOMAS, 1993).
representação discursiva dela, da atividade material e das relações São igualmente incompatíveis as perspectivas de etnografia
sociais- se são representações discursivas e se os elementos da prá- que procuram "documentar realidades" com base em depoimentos
tica não se podem reduzir um ao outro, então essas representações "sobre a realidade". Precisamos de uma distinção muito clara entre
estão no nível do discurso -,ou seja, não se tem acesso à prática, os conceitos de "evento social" e de "representação discursiva de
à atividade material e às relações sociais propriamente, mas à sua evento social''. Qyando entrevistamos pessoas sobre sua experi-
representação no discurso. Para se ter acesso aos componentes onto- ência, geramos dados úteis para a construção de conhecimento
lógicos do mundo social, é necessária a articulação da etnografia, sobre a representação discursiva da ação social; por outro lado,
especialmente dos métodos de observação em pesquisa de campo quando gravamos o fluxo da ação social independente das práticas
(BLOMMAERT, 2005; MAGALHÃES, 2006). de pesquisa- por exemplo, quando gravamos reuniões, audiências
públicas, interações em sala de aula-, temos dados úteis para a
2 Mais um pouco de reflexão interdisciplinar construção de conhecimento sobre a ação social propriamente
dita. Essa distinção é absolutamente fundamental.
A respeito da articulação epistemológica entre ADC e etno- Vejamos o que Hammersley (2005, p. 12) nos diz sobre a
grafia, uma ressalva deve ser feita: assim como "análise de discurso" representação discursiva de eventos como construção de versões
é um termo guarda-chuva que abarca tanto as variadas vertentes da realidade:
de ADC quanto a chamada escola francesa, "etnografia" também é
um termo que guarda heterogeneidade (HAMMERSLEY, 2005). fu perspectivas dos participantes não devem ser toma-
Nem toda prática etnográfica será adequada para geração e coleta das como verdadeiras ou f:'llsas, mas como constitutivas
de dados para pesquisas em ADC; é preciso, pois, a fim de se f:~zer - elas mesmas produzindo uma entre diversas ver-
uma articulação coerente, atentar para as perspectivas ontológicas sões possíveis de eventos. [ ... ] Nós deveríamos estudar
e epistemológicas das tradições de pesquisa etnográfica. como as pessoas constroem essas perspectivas, que
Nesse sentido, são incompatíveis com a ADC abordagens recursos discursivos são empregados e, talvez, por que
da etnografia que considerem a necessidade de afastamento do elas representam as coisas da maneira como o fazem. 1
pesquisador ou pesquisadora a fim de não "contaminar" os dados.
As abordagens etnográficas coerentes com a ADC, como uma prá- Assim, quando entrevistamos pessoas sobre as práticas
tica teórica crítica (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999), e os eventos nos quais se engajam, devemos ter o cuidado de
serão aquelas que preveem um engajamento com o contexto reconhecer que nossos dados são representações, e como tal
de pesquisa e com os participantes (CAMERON et al., 1992). podem nos ensinar sobre aspectos representacionais, como os
Dado seu interesse na mudança social, a ADC coaduna -se
com a "pesquisa participante", com a "pesquisa democrática" 1
As traduções neste capítulo são de Viviane de IVIelo Resende, a não quando especificado.

156 157
IZABCL MACALHACS, ANDRE R. MARTINS E VIVIANE DE M. !i.ESENDE ANÁLISE DE DISCUHSO CHÍTIC/\

discursos a que se filiam nessas representações, incluindo os sig- FAJRCLOUGH, 1999) eAnalysing discourse (FAIRCLOUGH,
nificados de caráter ideológico. 2003). Uma vez que a ontologia que orienta essa vertente da ADC
Uma articulação com métodos etnográficos para geração e é baseada na concepção da relação transformacional entre estru-
coleta de dados representa um avanço para a ADC, do mesmo modo tura e ação social de Bhaskar, recomendamos também a leitura de
como a etnografia também pode tirar vantagens de uma articulação textos do Realismo Crítico (por exemplo,ARCHER et al., 1998).
com métodos para análise de textos e interações desenvolvida por Um embasamento teórico claro evitará equívocos na reflexão
analistas de discurso. Dado o crescente interesse de cientistas sociais epistemológica, próximo passo na definição do planejamento de
e antropólogos pela linguagem e por seu fimcionamento na socie- pesquisa. Nessa etapa, é preciso considerar a seguinte questão:
dade, a articulação entre esses campos (inter)disciplinares torna-se como podemos construir uma pesquisa que possibilite a cons-
relevante. Não se trata, contudo, de simples combinação de métodos. trução de conhecimento acerca dos componentes ontológicos
A relação a se estabelecer deve ultrapassar a relação interdisciplinar da realidade social, tendo em vista nosso problema de pesquisa?
para se constituir como transdisciplinar, o que implica a opera- Isso significa que é preciso ter clareza acerca dos aspectos
cionalização. Métodos para análise de texto e categorias da ADC da realidade mais relevantes para a compreensão do problema
podem ser compatibilizados com algumas tradições etnográficas, social pesquisado. O projeto irá centrar-se na construção dis-
assim como estas podem ser recontextualizadas para servirem a cursiva de identidades? Na ação social por meio do discurso?
pesquisas discursivas críticas. Trata-se, pois, de um diálogo profícuo, Na representação discursiva de problemas sociais? Com base
mas que exige reflexão e rompimento de fronteiras. nessas decisões, como é possível gerar conhecimento a respeito
desses elementos da realidade social'
3 Como construir um planejamento de pesquisa articulando Dependendo do foco da pesquisa, alguns métodos podem ser
ADC e etnografia mais adequados que outros. Por isso a reflexão epistemológica deve
ser prévia a decisões de caráter metodológico. Por exemplo,se o foco
Já conhecemos a perspectiva ontológica da versão de ADC da pesquisa é a ação social por meio do discurso, trata-se de um pro-
de Fairclough (capítulos 1, 2 c 3). Esse é o primeiro passo fun- jeto centrado no significado aciona! do discurso (FAJRCLOUGH,
damental para todo planejamento de pesquisa: adotar uma pers- 2003). Será relevante observar o fluxo da ação social, e provavel-
pectiva ontológica clara que nos ajude a compreender, em termos mente gravar interações- pensemos, por exemplo, na gravação de
teóricos, o problema social que pretendemos investigar. audiências públicas e na investigação dessas interações como textos
Assim, quando se decide conduzir uma pesquisa em ADC, que materializam gêneros discursivos. Se, por outro lado, o foco é
deve-se, antes de mais nada, optar pelo modelo de ADC mais a representação discursiva do problema social estudado, então será
adequado ao projeto e estudar a fundo a perspectiva ontológica útil organizar interações específicas para fins de pesquisa e gerar
que orienta esse modelo. Para a compreensão da ontologia que dados, por exemplo, por meio de entrevistas, a fim de verificar que
informa a versão de ADC com a qual trabalhamos, recomen- discursos são mobilizados para a compreensão do problema, em uma
damos os livros Discourse in late modernity (CHOULIARAIG; abordagem centrada no significado representacional e no conceito de

158 159
lZABE!. MACALHÃJ:::S, ANDRÉ R. 1'\llAl-fl'JNS E VlVLõ,NE DL M. RI::Sl::NDJ-: 1\NÁLJSE DI:: DISCURSO CHÍT!C:A

discursos como modos particulares de representação. Se o objetivo é Na figura 6.2, procuramos destacar três aspectos do plane-
estudar hierarquias em grupos sociais específicos ou a negociação de jamento de pesquisa que nos parecem extremamente relevantes:
significados em conflito, as entrevistas grupais ou os grupos focais As decisões de caráter ontológico, epistemológico e meto-
serão métodos adequados. Nesse caso, trata-se de uma articulação dológico dão-se num eixo de sucessividade, isto é, as decisões
da pesquisa etnográfico-discursiva com o método de grupo focal ontológicas são prévias às epistemológicas (porque estas depen-
(FLICK, 2009). Mas se o foco for a construção discursiva de iden- dem daquelas), que são prévias às metodológicas (que dependem
tidades, pode ser mais indicado realizar entrevistas individuais em das epistemológicas). Isso significa que uma versão da ontologia
profundidade, as chamadas "entrevistas longas" (McCRACKEN, é coerente com determinado(s) paradigma(s) epistemológico(s),
1988), ou trabalhar com narrativas biográficas (BARÁT, 2000). mas não com outros. Por exemplo, se para uma pesquisa especí-
Como vimos, deve haver relação entre reflexões de caráter fica em ADC se consideram as relações sociais um componente
ontológico, aquelas de cunho epistemológico e as decisões meto- ontológico de interesse (na versão ontológica que adotamos),
dológicas. Essa tripla reflexão em associação estreita evita inconsis- e se o objetivo da pesquisa é investigar relações sociais ligadas a
tências e contradições no planejamento de pesquisas. Note-se que uma atividade social específica, não será suficiente analisar textos
não se trata de etapas estanques, ao contrário, trata-se de reflexões que circulam no ambiente institucional associado à atividade -
e decisões inter-relacionadas (MASON,2002).As decisões e refle- a análise discursiva precisará ser complementada, o que exige
xões ontológicas orientam e limitam as decisões epistemológicas, reflexão epistemológica (como é possível gerar conhecimento
que por sua vez impactam decisivamente no planejamento meto- acerca dessas relações sociais?).
dológico. Isso porque há muitas versões ontológicas, e nem todas Não há apenas um caminho: para uma versão ontológica
se associam aos mesmos pressupostos epistemológicos, que trazem (por exemplo, a que adotamos na versão de ADC formulada
limitações metodológicas. Assim, a escolha em um conjunto reduz por Fairclough), pode haver múltiplas possibilidades em termos
as escolhas possíveis no conjunto seguinte, como ilustra a figura 6.2. de paradigmas epistemológicos (em nossa figura, 02 associa-se
simultaneamente a El e a E4). Isso ressalta a necessidade do
Figura 6.2: Relação entre versões ontológicas, modelos exercício reflexivo em pesquisas, já que é preciso fazer escolhas,
epistemológicos c decisões metodológicas
e essas escolhas devem ser conscientes. Se um(a) pesquisador( a)
MOMENTO 1 MOMENTO 2 MOMENTO 3 reconhece E2 e E4 como paradigmas epistemológicos válidos
tendo em vista 02, então ele( a) poderá escolher conscientemente,
e não por acaso ou apenas por critérios de praticidade.
A definição de métodos para geração e coleta de dados em
um planejamento de pesquisa deve ser tomada com flexibilidade,
pois todo planejamento pode precisar ser alterado ou comple-
Conjunto O Conjunto E Conjunto M
mentado. Um método pode ser escolhido em princípio e, no
Versões ontológicas Modelos epistemológicos Decisões metodológicas
desenrolar da pesquisa, mostrar-se inadequado ou insuficiente,

160 161 'I


......___________________ i --~..!
IZABEL MAGALHAES, ANDRÉ R. MARTINS E VIVIANE DE M. RESENDE ANÁLISE DE DISCURSO C RITICA

levando a outros métodos (como M2leva a MS na figura 6.2). mais de uma perspectiva e utilizando simultaneamente dados
Assim, a flexibilidade é um princípio fundamental a todo planeja- provenientes de diferentes fontes (COHEN, 1983). Para além
menta de pesquisa, especialmente àqueles de caráter etnográfico. desse objetivo, uma pesquisa multimetodológica pode ter o mérito
A etnografia é um paradigma epistemológico coerente de relacionar diversos componentes ontológicos considerados
com a versão de ontologia adotada na ADC de Fairclough, uma relevantes para ela- por exemplo, em relação a um contexto
ontologia crítico-realista baseada no conceito de práticas sociais específico, investigar o estabelecimento de relações sociais (no
como constituídas de elementos irredutíveis a um (RESENDE, nível da ação), a associação de problemas sociais particulares a
2009). É definida como modelo para pesquisa social que agrupa discursos específicos (no nível da representação), a construção de
a análise de dados empíricos selecionados sistematicamente identidades (no nível da identificação). Isso exige uma boa dose de
para a pesquisa, provenientes de contextos situados e de uma reflexão para a construção de diferentes corpora e sua associação a
gama complexa de fontes, embora o foco deva ser relativamente componentes particulares da realidade social investigada, já que
estreito em escala, envolvendo poucos grupos de indivíduos dados de diferentes naturezas possibilitam acesso a diferentes
(HAMMERSLEY, 1994). componentes ontológicos.
A geração/coleta de dados etnográficos e sua fixação em A pesquisa crítica deve ser, antes de tudo, autocrítica. E isso
textos passíveis de análise seguem um arcabouço metodológico não pode deixar de incluir profunda reflexão acerca das práticas
que conta com variados métodos a serem selecionados de acordo de pesquisa (RESENDE, 2013b).
com os objetivos de cada pesquisa - além de ser possível criar
métodos novos. Entre os m étodos para geração/coleta de dados Considerações finais
etnográficos, destacam-se a observação, as notas de campo e
a entrevista focalizada, podendo-se acrescentar outros méto- A transdisciplinaridade (como uma meta para o futuro) não é
dos qualitativos, como o grupo focal, a narrativa biográfica e a apenas útil, mas também necessária a abordagens que pretendam
coleta de documentos, entre outros (AN G ROSIN O, 2009, sobre investigar o uso da linguagem em sociedade. Entender o uso da
observação participante; SANJEK, 1990, sobre notas de campo; linguagem como prática social implica compreendê-lo como
GASKELL, 2002, sobre entrevistas focalizadas; MORGAN, ação situada, que é constituída socialmente, mas que também é
1996; e BARBOUR, 2009, sobre grupo focal; ROSENTHAL; constitutiva de identidades, relações sociais, ideologias. Não há,
FISCHER-ROSENTHAL, 2005, sobre narrativas biográficas; portanto, uma relação externa entre linguagem e sociedade, mas
WOLFF, 2005, sobre análise etnográfica de documentos). uma relação interna e dialética.
A triangulação metodológica pode ser definida como o uso O rompimento das fronteiras disciplinares entre a Linguís-
de dois ou mais métodos para gerar/coletar diferentes tipos de tica e as Ciências Sociais traz avanços para ambas. Por um lado,
dados (GLASER; STRAUSS, 1967; FLICK,2009).As técnicas favorece, para a Linguística, a ancoragem das análises em pers-
triangulares visam explicar ou compreender com maior profun- pectivas teóricas acerca da estrutura e da ação sociais; por outro
didade a complexidade de processos sociais, estudando-os em lado, propicia, para as Ciências Sociais, um arcabouço para análise

162 163
17.AREL MAGALHAES, ANDRÉ R. MARTINS E VTVJANE DE M. R[SENDC

textual. Nesse sentido, a ADC realiza o objetivo de transcender a


divisão entre a pesquisa inspirada pela Ciência Social, que tende
a não analisar textos, e a pesquisa inspirada pela Linguística,
que tende a não se engajar com questões teóricas das Ciências
Sociais. Isso porque a análise textual é concebida não apenas
como a análise das relações internas, mas também das relações
externas de textos, isto é, de suas relações com outros elementos
de eventos, práticas e estruturas sociais.
Esse arcabouço para análise textual, somado a teorias sobre a
articulação de elementos em práticas sociais, pode constituir ferra-
menta poderosa para pesquisas em linguagem que não se isentem
do enfoque social, e para pesquisas em Ciências Sociais que não se
furtem a reconhecer a relevância da linguagem nas práticas sociais
contemporâneas (RESENDE; RAMALHO, 2006).
Um desafio intelectual que se impõe é ampliar a relação
entre a Ciência Social Crítica e a Análise de Discurso Crítica
por meio de uma abordagem etnográfica multimetodológica
capaz de acessar práticas, eventos, discursos, ideologias, identi-
dades e relações sociais na pesquisa discursiva crítica, a fim de
tornar coerentes as perspectivas ontológica e epistemológica em
ADC (veja também o capítulo 4, neste volume, sobre a pesquisa
etnográfico-discursiva).
Por outro lado, a ADC pode prover a pesquisadores de tra-
dição etnográfica um arcabouço para análise sistemática de dados
textuais capaz de mapear conexões entre as escolhas linguísticas
de atores ou grupos sociais e categorias sociais mais amplas, como
hegemonia e ideologia. A ampliação do diálogo entre ADC e
etnografia pode, pois, significar avanços significativos para ambas
-para a ADC na necessária busca de coerência entre ontologia e
epistemologia; para a etnografia no aprofundamento da reflexão
a respeito das relações dialéticas entre linguagem e sociedade e
na provisão de um enquadre para análise de dados textuais.

164
CAPÍTULO 7
ADC E MINORIAS - REPRESENTAÇÃO E
PESO POLÍTICO NA ESFERA PÚBLICA

Introdução

A saída de cena do comunismo, seja como alternativa ao


capitalismo, seja como opção política relevante no mundo oci-
dental, ao contrário do que se poderia imaginar, fez renovar as
críticas ao sistema capitalista, que muitos julgam moribundo, e
mesmo à democracia representativa, que, conquanto não seja
exclusiva do mundo ocidental, nessa parte do mundo exerce maior
fascínio e firma-se como o regime político mais comum e a aspi-
ração política mais forte dos povos, não obstante as imperfeições,
limitações e recaídas autoritárias e mesmo ditatoriais recorrentes
em muitos países.
Uma democracia amplamente inclusiva ancora-se em um
programa abrangente, que preveja o respeito aos direitos humanos,
a proteção dos grupos sociais mais enfraquecidos e a promoção
de canais efetivos de expressão política, não permitindo a supre-
macia dos grupos mais poderosos, mas buscando o equilíbrio,
tanto quanto possível, entre direitos e possibilidades. Ou seja,
acesso à representação política, a bens materiais e simbólicos,
à justiça e à liberdade. Nesse caldeirão de aspirações, emergem
questões novas, ou, antes, questões antigas que ganham novos
desdobramentos . Falamos da questão ambiental, da diversidade
racial, de gêneros, do respeito e proteção às minorias, da distribui-
ção de renda e de novos canais de expressão da opinião pública.
IZABEL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS E VTVIANE DE M. RESENDE ANÁT.TSE DE DISCURSO CRÍTICA

Tudo isso tem levado a um questionamento mais forte das bases A construção de sentidos, a representação de imagens, a formação
do sistema político, desafiando-o quanto a aspectos tradicionais, do consenso, tudo isso passa pelo discurso dos meios de massa,
como liberdade de propriedade, política do mérito e métodos de não só nos canais e programas de forte viés jornalístico, como
intervenção direta dos cidadãos na política. também nos que se guiam preponderantemente pela perspectiva
Tomando como recorte os países que nos últimos 20 anos do entretenimento.
têm contado com sistemas democráticos sólidos e remontando Daí por que a luta de grupos minoritários pelo reconhe-
ao começo do século XX, um percurso, portanto, de cem anos, cimento de direitos e pelo acesso a bens materiais e ao poder
pode-se observar uma multiplicidade de experiências democrá- político não pode ser vista somente pela perspectiva da atuação
ticas variando quanto ao estilo, abrangência e sustentabilidade. política tradicional: intervenção junto aos poderes Executivo e
Observamos países que pelo menos uma vez experimentaram Judiciário e no âmbito dos parlamentos. É preciso, sim, priori-
ditaduras (Portugal, Espanha, Itália, Alemanha e Grécia) e outros zar os espaços mais abrangentes da sociedade e, nessa seara, os
que, em grande parte desse período, conviveram com ditaduras meios de massa.
ou com sistemas políticos de muita restrição de direitos, inclu- Os países contemporâneos de regime democrático têm na
sive aqueles referentes ao exercício político (como a maioria dos liberdade de imprensa um baluarte do sistema político. Mas a
países latino-americanos) . imprensa não se constitui em uma agência à parte das elites políti-
Outros tantos países, no âmbito governamental, empe- cas e econômicas da sociedade. Ao contrário, os meios costumam
nharam-se na prorrogação de sistemas colonialistas (França), ter entre seus donos e mantenedores pessoas e empresas da elite.
na manutenção da segregação racial (África do Sul e Estados Segundo van D ijk (2003), o discurso da imprensa constitui-se em
Unidos), no patrocínio de golpes de Estado e apoio a ditaduras um tipo de discurso de elite. É, assim, como discurso de elite que
(Estados Unidos) e na aprovação de uma legislação restritiva a imprensa intervém na esfera pública e participa da formação
à entrada de imigrantes provenientes de países empobrecidos do consenso político. É também esse consenso que vai propiciar
e mesmo ao reconhecimento de direitos da população n ativa a reprodução do poder na sociedade.
(a maioria dos países europeus e os Estados Unidos) . Assim, em
matéria de consolidação e aperfeiçoamento democráticos, a maio- 1 A democracia como alicerce básico
ria, senão todos os países, tem um dever de casa a fazer.
A luta pela democracia- seja por sua conquista ou por sua A tradição marxista aponta para o esgotamento do sistema
manutenção, ampliação e aperfeiçoamento - é uma luta que se capitalista, o impasse da luta de classes, o surgimento da revolução
trava também no âmbito do discurso. Se no passado a imprensa e a saída da crise com a implantação do socialismo e a passagem
desempenhou um papel crucial no surgimento e na consolida- para seu sucedâneo, o comunismo. Não é nosso propósito aqui
ção de regimes democráticos, hoje ele é exercido de forma mais analisar a proposta m arxista-leninista, sopesando as evidências
contundente e abrangente pelo sistema midiático como um todo, de chegada iminente da revolução ou a ausência delas. Não con-
muito bem representado pelos meios de massa e pela internet. sideramos aqui as muitas questões relativas ao liberalismo e ao

168 169
IZABEL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS E V!V!ANE DE M. RESENDE ANALISE DE DlSCUHSO CR[T!CA

comunismo com suas propostas de organização da economia e da Bobbio mostra que a esfera da sociedade civil é mais ampla
sociedade, antes queremos priorizar o enquadramento propiciado que a esfera política e que a democratização do Estado é um
pelo regime político democrático. processo distinto da democratização da sociedade, pois a existên-
Elencamos alguns pressupostos que dão conta da relevância cia de um Estado democrático pode ocorrer em paralelo a uma
mediata do regime democrático, mesmo nas condições limitadas sociedade em que a maioria das instituições não são governadas
ou sofríveis da maíoria dos países contemporâneos: democraticamente.
a) trata-se de um sistema imperfeito, sujeito a limitações Para Dahl (2001), a democracia exige pelo menos seis insti-
e fragilidades; tuições políticas: i) funcionários eleitos; i i) eleições livres, justas e
b) não obstante a realidade e recorrência de suas debili- frequentes; iiz) liberdade de expressão; iv) fontes de informação
dades, a democracia ainda assim propicia um espaço diversificadas; v) autonomia para as associações; c vi) cidadania
privilegiado de luta, de enfrentamento de conflitos e inclusiva. Se observarmos bem um país como o Brasil, pode-
divergências, e de negociação de regras e procedimentos mos constatar que, ao menos no que se refere às quatro últimas,
seguros para sua superação; a ocorrência dessas instituições não se dá de forma absoluta em
c) nenhum outro tipo de regime tem propiciado alternativa todos os recantos do país, nem nas mesmas localidades de modo
segura e confiável e de mais ampla aceitação por países homogêneo. Parcela significativa da população não tem seus direi-
e povos os mais diversos; tos mínimos garantidos, não goza de serviços de infraestrutura
d) excetuando-se a experiência grega, a construção da urbana ou rural, não tem acesso a um bom sistema de educação,
democracia é processo recente na história contemporâ- de saúde, de transporte, e está sem emprego ou subempregada,
nea, remontando às contribuições pioneiras dos ingleses ou seja, o projeto da cidadania inclusiva está por se completar.
e de alguns outros grupos nacionais, e, portanto, está De igual modo, em muitas regiões do país e mesmo nas
sujeita a aperfeiçoamentos diversos; grandes metrópoles, a polícia, organizações parapoliciais e o
e) as elites e grupos privilegiados costumam tirar mais van- crime organizado cerceiam de forma muito efetiva a liberdade
tagens e obter melhor proveito do regime democrático de expressão de comunidades e de seus membros, não há garantias
do que grupos minoritários ou em situação de exclusão. efetivas de proteção para pequenos meios de informação (rádios
Em O futuro da democracia (1991), o cientista político ita- comunitárias, pequenos jornais ou periódicos) que enfrentem as
liano Norberto Bobbio desenvolve a perspectiva de uma definição elites ou contrariem seus interesses, e as associações podem ser
mínima a ser aplicada à democracia, o que teria a ver com regras intimidadas sem que isso venha a resultar em processo investiga-
e procedimentos estabelecidos e respeitados por todos, com a tório e punição. Apelando a Bobbio, podemos dizer que o Brasil
amplitude do direito de votar e decidir, com o acatamento da deci- é um exemplo típico de país em que o Estado é democrático,
são da maioria e com a garantia, aos cidadãos políticos, a quem mas a sociedade, nem tanto.
cabe tomar as decisões, de direitos mínimos para o exercício de Dahl também elenca um conjunto de cinco condições cuja
seu mandato (liberdade, opinião, reunião ou associação, etc.). ocorrência dá suporte às instituições democráticas. Três delas

170 171
JZABH f\'1ACALHAES, AND.RI~ .R. MARTINS E VIVlA·l,fF. DF. M. RESENDE 1\NÁUSE D[ D!SCUHSO CEÍT!CA

seriam essenciais à democracia, duas, favoráveis. As condições faz-se presente no ordenamento jurídico do país, ainda que o
essenciais são: controle dos militares e da polícia por funcionários sistema seja um tanto emperrado, parcial e pouco eficiente c
eleitos, cultura política e convicções democráticas, e nenhum boa parte da população não tenha acesso efetivo a esses direi-
controle estrangeiro hostil à democracia. Já as condições favo- tos. Também a representatividade social dos dirigentes e de sua
ráveis são: sociedade e economia de mercado modernas e fraco política, bem como a consciência de cidadania, não são aspectos
pluralismo subcultural. Examinando a realidade brasileira à luz tão fortes na conjuntura nacional, estando em processo de cons-
dessas condições, podemos dizer que à exceção da inexistên- trução e de amadurecimento.
cia de controle estrangeiro hostil à democracia e de um fraco
pluralismo subcultural, as demais condições estão em processo 2 Minorias e esfera pública
de fortalecimento ou de consolidação no Brasil, o que efetiva-
mente acaba por se refletir no tipo de democracia que temos Vamos principiar essa discussão voltando-nos para o con-
no país. Mas, se servir de consolo, o próprio Dahl sugere que, ceito de "esfera pública"- uma contribuição do sociólogo alemão
mesmo nos países tidos por democráticos, há algo mais por se Jürgen Habermas (1984) que foi discutida por Fairclough (2003),
fazer em relação ao aperfeiçoamento das instituições. Diz ele: para quem a esfera pública deve ser vista como:
"Em quase todos os países democráticos há bastante espaço para
mais democracia" (2001, p. 133). uma zona de conexão entre os sistemas sociais e o
Outro estudioso que se debruçou sobre a questão da "mundo da vida)), o domínio da vida cotidiana, em
democracia no contexto contemporâneo foi o sociólogo francês que as pessoas podem decidir sobre questões sociais
Alain Tourainc (1999). Ele nota um movimento que opera uma e políticas como cidadãos e em princípio influen-
mudança de perspectiva no conceito de democracia. Segundo ciam as decisões quanto a políticas públicas. (p. 44).
ele, "a ideia de democracia, inicialmente identificada à de socie-
dade, aproximou-se progressivamente da ideia de Sujeito, do Para Chouliaraki e Fairclough (1999), "uma esfera pública
qual ela tende a tornar-se a expressão política" (TOURAINE, é constituída como uma forma particular de usar a linguagem
1999, p. 343). O regime democrático, portanto, é aquele que em público" (1999, p. 5). A discussão sobre a esfera pública é
garante a organização dos atores sociais, bem como sua livre ação também, portanto, a discussão sobre as formas de se usar a lin-
e manifestação na sociedade. Concorrem para essa configuração guagem. Essa discussão faz-se em paralelo com todas as ques-
política três princípios, a saber: o "reconhecimento dos direitos tões que interessam à democracia, a saber, o reconhecimento e
fimdamentais", a ",-epresentatividade social dos dirigentes e da sua a valorização das diferenças, e um projeto de inclusão o mais
política" e a "consciência de cidadania", ou seja, de que a pessoa abrangente possíveL
pertence a "uma coletividade fundada sobre o direito". Chouliaraki e Fairclough desenvolvem também o conceito
À luz desses princípios, o quanto seria robusta a democracia de esfera pública produtiva, que se constituiria tanto em um
brasileira? Q_yanto aos direitos fundamentais, o reconhecimento "lugar" quanto em uma '(prática". Trata-se, pois, de um ambiente

172 173
IZABEL MAGALHÃES, ANDl1E R. MARTINS E VJVlANE DF. M. RFSF.NDF. ANALISE DE DJSCURSO CHÍTfCA

e uma situação de debate efetivo de questões de fundo social e vincula-os sistematicamente à falta de instrução 1
político, com acesso permitido a todos os interessados, que dialo- à pobreza, à violência, à perturbação da ordem etc.
gariam entre si, e com base no que passariam a agir. Entre o ideal Sendo a mídia em geral, e a imprensa em particular,
e o real, como se sabe, há uma grande distância. A possibilidade uma arena de luta política de primeira grandeza,
de diálogo efetivo na esfera pública é questão complexa que as minorias estão em desvantagem no processo ele
demanda, segundo os autores, uma simetria entre os partici- participação política. (MARTINS, 2007, p. 30).
pantes, uma liberdade de representação e de participação, e uma
orientação simultânea para a aliança e para o desenvolvimento Também no mesmo trabalho, o autor recorre a van Dijk
de un;a nova voz partilhada sobre o assunto em apreço. ( 1996), para quem o racismo pode ser resumido a uma espécie
E na esfera pública que as aspirações das minorias reper- de dominação étnico-racial e essa realidade apoia-se não só no
cutem e são mobilizadas em busca de reconhecimento e atendi- "acesso diferenciado à moradia, empregos, aluguéis, educação ou
mento. É lá também que sua identidade se fortalece e mesmo se
f bem-estar", como também na representação discursiva desequi-
firma em oposição (contraste) a outros grupos, às elites e ao con-
junto da sociedade. Os meios de massa em geral e a imprensa em
I librada, que distingue quem integra a maioria e quem pertence
às minorias. Segundo van Dijk, o poder das elites em definir a
particular desempenham papel preponderante na esfera pública, realidade das relações raciais abarca o poder de acesso prefe-
contribuindo de forma decisiva para a formação do consenso.
Daí por que uma boa medida para aquilatar o prestígio social ou
o poder usufruído pelos grupos sociais é verificar como eles se
I
I
1l
rencial à mídia, que, por sua vez, coopera para a reprodução do
racismo. Como exemplo, temos a baixa participação de membros
de grupos minoritários nas redações, o que favoreceria não a
l
manifestam no discurso, que espaço é oferecido a eles ou como veiculação de um olhar próprio desses grupos na imprensa, mas
seus interesses são considerados pela perspectiva da apresentação sim um olhar do outro.
recorrente e da representação positiva, c como suas opiniões são Assim, para que a relação entre minorias e esfera pública
veiculadas. Martins (2007) analisa a relação entre imprensa, mino-
rias e análise de discurso, e a mobilização desses três elementos
na construção da democracia, levando em conta especificamente
Il esteja a contento, é necessário que lancemos mão de duas âncoras
que se mostram interligadas: uma, é a questão da democracia;
a outra, a questão do acesso e da presença no campo discursivo
a questão do racismo. Ele observa: j midiático. Ambas dão suporte, fundamentam e qualificam a par-

I
ticipação dos grupos minoritários na esfera pública.
O discurso da imprensa não favorece os grupos Uma democracia sólida, estabilizada e inclusiva permite que
étnicos minoritários, antes ele opera, contribuindo, grupos minoritários, sem restrição ou discriminação, tenham
a seu modo, para o fortalecimento e a reprodução
do racismo, na medida em que exclui ou minimiza
a visibilidade desses grupos na cena pública, não
I acesso a bens materiais e simbólicos usufruídos pela sociedade
abrangente, aos mecanismos de justiça, à representação no parla-
mento e na administração pública, bem como acesso e presença
prioriza questões de interesse dessas minorias ou no discurso midiático. A intervenção nesse domínio, por sua vez,
1
174 175
JZAREL MN_;Al.HALS, J\NORl: R. MARTINS E VlV!ANL DE JV1. RESEND[ ANÁLISE DE OISC1.mSO CRÍTICA

ocorrendo de forma justa e equilibrada, ao tempo em que é des- sabe, mais importantes que os conflitos bélicos, ou os embates
dobramento da democracia, torna-se também um motor que de ordem econômica- e do potencial de autoemancipação e de
produz novos movimentos e desdobramentos, cuja resultante é empoderamento que a ADC propicia às pessoas.
a ampliação da democracia e um ganho de imagem e prestígio Qyando falamos em onipresença do discurso, não queremos
junto à sociedade abrangente. nos referir simplesmente aos meios de massa e seu caráter ubíquo,
É preciso ver a esfera pública e o regime democrático, espe- mas também à função mediadora que o discurso desempenha no
cificamente, não como situações estáticas, mas como conjunturas interior das instituições, na formação do consenso e na definição
em movimento, que trazem consigo possibilidades de abertura e dos espaços da política, da economia e da sociedade como um todo.
ampliação. Basta ver sociedades de países com uma democracia Consideremos, inicialmente, essa função do discurso. O dis-
consolidada, como é o caso da Holanda, da Inglaterra, da Áustria curso desempenha papel decisivo no desenvolvimento das insti-
e da Suíça, em que a presença de grupos de imigrantes, sobretudo tuições. Cada uma delas tem seu processo discursivo, pelo qual
aqueles com o perfil de pessoas pobres, provenientes de países do constrói uma história própria, dialoga com o mundo circundante,
chamado terceiro mundo, ou com características físicas e culturais transforma-se- no compasso do processo histórico- e influencia
bem distintas (cor da pele, religião e outros hábitos c costumes), pessoas e outras instituições. No exame de um processo discur-
torna-se um incômodo, uma barreira quanto à demanda para que sivo, podemos identificar os vínculos com a realidade social mais
não sejam notados no espaço público, para que se tornem invi- abrangente, as contingências de ordem ideológica e os limites
síveis. Esses grupos são frequentemente alvos de discriminações históricos de cada instituição. Compreender o discurso de uma
e mesmo de violência, o que requer muitas vezes a intervenção instituição é, portanto, dominar um conhecimento privilegiado
de políticas públicas de proteção e assistência. sobre ela e seu modus operandi. Com base nesse conhecimento,
fica mais fácil agir sobre a instituição ou por meio dela.
3 ADC e minorias, diálogo e possibilidades Com relação aos meios de massa e à perspectiva midiacên-
trica das sociedades contemporâneas, observa-se que os meios
Articulando teorias e métodos, a ADC propicia tanto uma têm papel preponderante como fonte de notícias, como institui-
análise crítica de realidades de injustiças e desigualdades que ções formadoras do consenso social e mediadoras da política. Evi-
beneficiam alguns grupos em detrimento de outros quanto for- dentemente que, ao falarmos dos meios de massa e da mídia, não
nece um instrumental teórico-prático que pode ter papel pre- pretendemos excluir o fundamento de muitas dessas instituições
ponderante na luta política que precede à transformação dessas como promotoras do entretenimento e veiculadoras de conteúdos
realidades, o que implica fazer cessar a opressão e promover voltados para diversão, lazer e serviços diversos. Mas até mesmo
justiça c igualdade nas relações sociais. por isso, seu vínculo com o jornalismo ganha realce. É fato que,
Isso é possível em razão da conjuntura que marca a con- com as transformações recentes no mundo midiático, o próprio
temporaneidade - além da onipresença do discurso na esfera jornalismo ganhou um tratamento e uma perspectiva de abor-
pública, as batalhas travadas nessa arena revelam-se tão ou, quem dagem que realçam o entretenimento. Sobretudo no caso das

176 177
lZABEL MACALHÀES, ANDRÉ H. MARTINS E V!VJAN[ DE M. RESENDE ANÁLISE DE DISCURSO CR!T!CA

mídias que recorrem ao uso de imagens, os programas de notícias prático da realidade a seu redor, mas mantê-lo atualizado
são dosados para também distrair as pessoas (FAIRCLOUGH, a cada etapa histórica. Para que se passe a outros estágios
2001a), e a razão do sucesso de audiência fundamenta-se em boa elo processo, necessário se faz que esse conhecimento
medida no atendimento dessa expectativa. também seja teórico. Isso requer a compreensão das
Assim, os meios de massa são peças-chave no processo de ideologias que embasam essa conjuntura, elos processos
formação do consenso político, sustentáculo da manutenção e da históricos que a fundamentam. Essa é uma etapa neces-
reprodução do poder na sociedade. Para van Dijk (2003), o campo sária do processo ele investigação em Análise de Discurso
discursivo da imprensa materializa discursos de elite. Sendo assim, Crítica. Ao investir nessa abordagem, pode-se entender
torna-se relevante examiná-lo, posto que nos ajuda a compre- que uma conjuntura opressora, restritiva de direitos, não
ender os mecanismos pelos quais a linguagem é usada em favor precisa se perpetuar, mas pode ser modificada, a depender
de determinado segmento da sociedade ou de algum ponto de do acúmulo de forças e ela evolução do processo histórico.
vista específico que favoreça um ou outro interesse. Por meio de 2) Descoberta e preservação da identidade social- um dos
notícias, tem-se acesso a uma representação do mundo mediada propósitos e efeitos das ideologias dominantes é o de
pela linguagem. Trata-se, portanto, de uma construção, "não de embotar sentidos, mascarar a situação de dominação, ele
um reflexo dos fatos, isento de valor" (FOWLER, 1991). tal modo que pessoas pertencentes a um grupo mino-
É, pois, nesse cenário, por excelência, que o discurso domi- ritário têm dificuldade de se reconhecerem como tais.
nante projeta-se para toda a sociedade, que as minorias estão em Daí por que a percepção da diferença em relação à
luta por conquistas que vão do acesso a bens materiais (moradia, sociedade abrangente, elo pertencimento à minoria, é
renda, educação, saúde, etc.) ao acesso a bens simbólicos (ensino um processo que implica, basicamente, contribuições
superior, imagem e representação positiva, espaço na mídia, no advindas elo contexto familiar, do relacionamento com
poder público, etc.) e ao reconhecimento como ator político na o ambiente social, elo acesso à instrução formal e das
esfera pública. Diante desse quadro, abre-se um caminho de condições sociopolíticas. A descoberta e a preserva-
diálogo e de possibilidades para as minorias. Com esse pro- ção da identidade do grupo, embora tenham aspectos
pósito, apontamos cinco frentes de luta que podem e devem idiossincráticos, são essencialmente processos coletivos
ser assumidas concomitantemente. São elas: o conhecimento e e dinâmicos. Precisam sempre ser realimentados, ou
acompanhamento da situação social; a descoberta e preservação seja, as pessoas necessitam renovar suas referências,
da identidade social; a luta por direitos e por mais democracia; fortalecer sua autoestima como indivíduos e como
a luta por espaço na esfera pública; e o empenho pela represen- membros de uma coletividade, reinterpretar antigas
tação positiva na mídia. A seguir, vamos discorrer sobre cada e novas experiências e construir sentidos novos que
uma delas e sobre o papel da ADC em cada um desses domínios. as ajudem a se situar no mundo e, particularmente,
1) Conhecimento e acompanhamento da situação social- um !l em relação à sociedade abrangente. O instrumental i
grupo minoritário deve não somente ter um conhecimento l teórico-prático da ADC também pode ajudar nessa l
178 179
r
l7.ABEL MAG/\LHf\ES, ANDRt: R. MARTINS I VlV!i\NE DE Jvl. RESHWJ:: ANÁUSF DF DISCURSO CRÍTICA

etapa ao auxiliar a desfazer mitos, a questionar sentidos como forma de acumularem espaço e força política.
ideológicos e a construir sentidos novos que atendam Não sendo nosso propósito aqui enveredar pela análise ela
aos anseios do grupo. estratégia ele ações armadas, consideraremos tão somente
3) Luta por direitos epor mais democracia~ a compreensão da o específico das lutas na esfera pública. Essa frente de
situação histórica e social, a consciência ela desigualdade, luta engloba iniciativas no mundo da política, da mídia,
da opressão, dos mecanismos ideológicos, e o cultivo da articulação social (terceiro setor) e da cultura, ou seja,
ela autoestima do grupo e da solidariedade com outras há ações tanto na realidade material, concreta, ela con-
causas e outras 1ninorias deságuam necessariamente na juntura social, como no domínio do simbólico. A ADC
luta por direitos, por espaço e poder, pela ampliação também pode ajudar muito nessa etapa ao fortalecer
crescente e contínua do regime democrático. A luta por os participantes nessa busca, ajudando-os a discernir
direitos e a luta por mais democracia são duas faces de a realidade social, especialmente as oportunidades de
uma mesma moeda. Uma se alimenta da outra. O sucesso intervenção por meio do discurso.
em cada uma delas dá a medida de como as minorias 5) Empenho pela representação positiva na mídia~ num
vão se fortalecendo e ganhando espaço na esfera pública. mundo que se torna cada vez mais midiacêntrico, emba-
Em ambas, pode-se notar que um grupo minoritário lado por novas tecnologias e pela infinitude do ciberes-
não pode e não deve lutar sozinho. Essa etapa surge, paço, o campo discursivo da mídia tem peso de ouro
cresce e se agiganta por meio de lutas diversas em que nesse mercado em que operam múltiplas referências.
se acumulam forças na conjugação de apoios, estratégias Conquanto haja pessoas, grupos e movimentos que se
e perspectivas elo grupo com outros grupos e movimen- desenvolvem à margem da esfera midiática, o fato é que
tos. A ADC, mais uma vez, pode auxiliar na identifi- as decisões políticas, as influências culturais e as negocia-
cação de sentidos ideológicos, das ordens do discurso ções do mercado recorrem persistentemente e de modo
em operação na sociedade em questão, no questiona- preponderante à mídia. Assim, o apelo é muito forte
mento da ideologia dominante e no fortalecimento de para que as lutas sejam feitas também e, sobretudo, nesse
sentidos em prol de uma ordem social justa. espaço. Por mídia, entendemos, vale ressaltar, todo o
4) Luta por espaço na esftra pública~ essa etapa pode ser vista, domínio dos meios de massa, da publicidade e marketing,
na verdade, como um dos momentos ou aspectos da etapa das instituições clivulgadoras no espaço virtual, incluindo
anterior, mas se trata de uma situação tão específica e pre- a imprensa, seja na versão impressa tradicional, seja no
ponderante que achamos por bem pô-la à parte e assim espaço aberto pelas novas tecnologias. Mais uma vez,
analisá-la. No cenário mundial, há casos em que as minorias, a ADC é ferramenta teórico-prática para se entenderem
sem deixar de priorizar a luta na esfera pública~ na qual os processos envolvidos, o que deve incluir a transferência
as elites detêm o modus operandi e o controle das repre- desse conhecimento aos grupos minoritários em busca
sentações ~, recorrem paralelamente a ações armadas de ascensão nesse domínio simbólico.

180 181
IZAREL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS E VJVJANE DE M. RESENDE ANÁLISE DE DlSCURSO CRÍTICA

4 Um estudo de caso Texto 1- "Projeto espacial esbarra em quilombo/a" (Folha de S. Paulo,


31112010)
O que vimos discutindo aqui pode ser apreendido com o
exame de um caso concreto que envolve um grupo social em des-
vantagem em um determinado contexto social e político. Para isso,
FOUIAOI\ S.PAUJ.O
vamos analisar aqui textos de reportagens do jornal Folha de S. '"""''"'''""·''"''''"'
Paulo, publicadas no ano de 2010, tendo como tema a situação das
comunidades quilombolas na área rural de Alcântara, no estado i Projeto espacial esbarra em quilombola
( :ovcrno quc1· expandir operações em AlcàntaJ <I (MA), mas sofh:: resistência das tolllllllidades l radido11ais (b ll'gi[lo
do Maranhão, um dos estados brasileiros mais pobres e com
estruturas sociais mais arcaicas. O território, tradicionalmente
ocupado por famílias de descendentes de negros escravizados,
Il
foi em parte ocupado pela Força Aérea Brasileira (FAB), que ali 1
ergueu, a partir da década de 1980, uma base de lançamento de 1
foguetes destinada a realizar missões de lançamentos de satélites f
e testes do Veículo Lançador de Satélites (VLS).
O sítio geográfico tornou-se mais atrativo do que a Barreira
I'
l!
do Inferno no Rio Grande do Norte, onde já existia uma base
semelhante em razão de uma maior proximidade da linha do
i
1l
Equador (o que implica vantagens de ordem técnica e econô- iI
mica), em parte pela pressão do crescimento urbano nos arredores
da primeira base. Depois de um reassentamento inicial na década
de 1980, um novo assentamento está sendo demandado pela FAB
j
para viabilizar a expansão do projeto de parceria entre o Brasil e
a Ucrânia, por meio da empresa Alcântara Cyclone Space/ACS,
i
!
I) Matéria assinada por dois repórteres, tem como foco as
dificuldades da empresa binacional e o impacto desse
criada em 2006 com o objetivo de propiciar e comercializar :! projeto sobre os moradores locais. Traz uma foto, com
lançamentos de satélites. ! legenda, em que mostra crianças das comunidades em
l
Vamos nos aproximar dos quatro textos com base em alguns j momento de brincadeira. Além do título, há dois sub-
aspectos: i) características gerais; ii) seleção lexical; iii) modali-
zação; e iv) representação de atores sociais. j títulos e dois intertítulos.
2) O texto constrói uma comparação entre a tecnologia,
I o futuro, o moderno, o desenvolvimento, que associa
·il
í ao projeto de expansão do Centro de Lançamento de
í
Alcântara/CLA, e o atraso, a pobreza, a resistência,

182
I
j
j 183
·.;jJ< ·•
!7,AREL Iv1AGALHAES, ANDRÉ R. MJ\RT!NS E VJVIANl:: DE M. HESENDE ANALISL DE DJSCUI~SO CH[TICA

a falta de perspectivas, vinculados no texto às comu- Texto 2- "Resistência se impira no MSTe recebe apoio de ministério"
nidades quilombolas, sem a intervenção do projeto, (Folha de S. Paulo, 3/1/2010)
Os termos usados propiciam essa dupla associação:
"Projeto espacial esbarra em quilombola"; "exemplo
francês"; "parque tecnológico"; "mercado internacional
de lançamento de satélites"; "perspectiva nova para a
região"; "6.000 negros desdentados, sem salários, sem
previdência social"; "21 mil negros e brancos, com den-
tes, com o maior salário mínimo da Europa, a melhor
previdência social",
3) Nota-se uma indefinição quanto ao destino do projeto
por meio de modalizações: "quer expandir"; "vai ter
de ser discutido"; "será preciso convencer)); "pretende
levar". A modalízação nas formas verbais sinaliza o Resistência se inspira no NlS'f
processo em construção, ainda instável, sujeito às inter- e recebe apoio ministérios
to Agrário) e a que n:\o é amigá-
venções políticas. 00 rtNIA!IO A AI,CÁHT MA
vel (minislúio$ da Odes~ c da
Par~ conwncer os qttilornbo- Ciênriaelêçnnlogi")
4) No papel de atores, de protagonistas, estão: o governo, lao ~não deixarem :iU~s tNras, 0~ maÍS 1l\lVOS $~0 incentiva
f h~ dez atlns foi ni<1do i> Mab'· rlos pi·lo Mah~ a estudw-. Bor-
a empresa binacional e até mesmo o projeto espaciaL ll (Movimento dos Atingidos pela
Basç Eopacial). Desde a fl.mda-
jão lamenta o fato de os jovens
das comunidades qui!ombo!as
Já as comunidades quilombolas aparecem como aquelas t ç>~o. os coordenadores fazem
seminário~ nas l"Omlmkl~des
recebeJem ensino básico t:lo
nü.m. Por isso, alirm~ ele, rliio
quílo!iilmbó --Aidntara tem conseguiu preencher 3S vagu1
que se mostram " .
resistentes "; estao
- ' ' descon fid"
a as , con- ,l por volla t!e 150: A l.•'ollH\ 'Jtt<J tirúJ~ cuoseguido via MST
:\comp~IliiOll um dos ewutm, p~r" enviar estudantes p;•ra
figurando-se como obstáculo para a expansão do pro- 1 1\ inopiraçfto, diz Sérvulo Cuha e Venezuela. Um deles,
Borgc~, o BoJj5.o, !id~r do Ma- enttdallto. ioi !lWJld~do para

I
bc. súo ~s olicinBo •1ue o MST Goiás, por meio da Vi~ Campe
jeto; são comparadas a pessoas na Guiana Francesa que faz com os ~eu~ membros. "O sin3, pa.ra cnr~ar· direito
MST é um granJ~ parcniro. in- Noscmln~rio, um dos q11e [:,-
teriam se beneficiado de uma iniciativa governamental clusive~ m formação política." Iam an microfone diz aos ju-
Fabfldo p;u·,, SO pessoas, ou vens: "'Se você quer ll'r algo, se
semelhante; são representadas como: pobres, excluídas, ;
tro parlir:lpan\e qll<:s!ionou se
é justo qu~ '·csw> ~1npn-oúio~
quer ter emprego, r,-cci~aestu­
dar'" F:m scgtúd~, ot!l!O discor-
[a ACS) ganhem dinheiro ~o do: "Quem d1sse que dewmo.\
carentes; indivíduos que precisariam "ser convencidos". noss~s cu~las"'. "Estamos em procurar patrão":' Qmm disse

j
gurn a"', disse Borj:lo <r os q\Ú- que devemos !rJb"lhar para
lmnbolas que asóbtiam. eles !se referindo ao Centro dr'
l.~nc,mcntns de 1\\càntara]"/''
Doi~ lado~ c\dos Ganem, p1esidente da
O materi'll do evento vem AEB, tem procurado reverlnr ''
com as logotipo~ <IH Senctari~ resistência q1 ülombob com um

l Especi31 d, '-' Direi \po Hum,mos


e do grJVemo federal. Questio-
Jl<ido sobre como o movinwl>to
discurso de in~htsiio social
"Ilesenvo!venrlo o setor ~e
roe~paciaJ você miopromowsó

I l
consegue se b~ncar, TI01"jiiu
ali uno que ronl<l com a ~jurla
de llrasíJia. Ele divide o gover-
u th·scnvolvimento tácnico c
tfmológico", diz. "Você pro
porcwna um ext·r~ordin:íno
j flO em duas nwlmle:;: " que
apoi:1 os projetos do Mabe (rni-
mecanismo de alav;roc~gem so-
d:U, cull\u·al. edu,-acioJml, tu-
l niotó·ius d:o Cult1u·a, do Muin rístka e camerda! tambérn, pa·
í j
Ambiente, t!o ]k.;l'rJVolvimen- _mchegaraoespocinl." tRIM

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184 185 r

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IZABET. MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTJNS E VlVlANE DE M. RESENDE ANÁUSF DF DISCURSO CH.ÍTlCJ\

1) Acompanha a matéria principal e tem como foco a esbarra no ensino deficitário que é oferecido a crianças
resistência de moradores quilombolas, a influência do c adolescentes da região. Já a ação persistente da AEB
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) é sinalizada na modalização "tem procurado reverter".
e a divisão do governo em relação à questão, com o apoio 4) No papel de atores, aparecem o Mabe, seu líder e alguns
de alguns setores governamentais. Há somente um título participantes anõnimos, bem como o presidente da AEB.
e um intertítulo. Como meta da ação de convencer, ora exercida pelos
2) O uso de termos e expressões como "resistência", "se ins- líderes do Mabe, ora pela AEB, aparecem os quilombolas.
pira no MST" e "estamos em guerra" dá ideia de uma
mobilização intensa, uma organização ativa da parte dos Texto 3 - "Expansão terá de retirar quilombo/as, diz coronel" (Folha
quilombolas, que seria contraposta à política oficial de de S. Paulo, 11/9/201 O)
conciliação, de aceitação da proposta. O texto realça,
a começar pelo título, a capacidade de articulação dos Expansão terá de retirar quilombo las, diz coronel
quilombolas, seja porque têm como inspiração uma orga- DúUJVIADOAAl[AIJIAI<A wri<r ficar num loca! vizinho do·os veladanH'nte pelos família Cmzdru do Sul, que
à base, terraquilombol<t. atrasos no programa. devem substituir o \/l.S (Vd
nização de esquerda conhecida pela notória mobilização O govemo lançou ontem a
pedra fundamental do sitio
Mas os quilombola.'> não
acham que o conflito wm as
"Náo lemos culpa~~ ~t>a·
sou. Cada comunidade~ tem
culoUm~adord(•:\alé\iteo).
H;mge! di7. que os requisr·
de lançamento do foguete atividades espaciais esteja dheito de garantir seu pró· tos de segurança, como um
e pelo sucesso nos enfrentamentos Brasil afora, seja por- ucraniano Cydorse·4 na b>1oe rPsolvido. "Vamos achar prio terlitór io", diz Araújo. raio de lO km livres em volta
de Alcântara, já com um no· quando nossas terras estive· A próxima brigJ qlrilom do sítio de lançamcntu, lor·
que recebe apoio logístico de setores do governo. O texto vo alvo em vista: a porção
nordeste da península que
rem titularia~" di~. Samud
i\raújo, presidente do Síndi·
bola i! com o próprio CLA.
que aguarda parecer d~ Ad
nam necessária J. expansdo.
"HojP nós l<'tnü5 reserva·
forma o município, onde vi· cato dos Trabalh~rtores Ru· voc~da Geral da União um dos 8.7Jl hertaHcS rara o
fala de uma parte do governo "que apoia os projetos do vem 2.000quilombo!as.
A Aeronãutica e o MCT
raisdeAlcântara.
Três representantes de co·
p~dido de l"e>são de 12.6115
hectares pruao progrruna.
CLA. Isso só permite o sítio
do VLSeodaACS", ilflrma.
Segundo o coronel-avia Não é o suficiente para f o
Mabe" (Movimento dos Atingidos pela Base Espacial plEiteiam uma área de lVAS
hedH.!eS [l~•a PXpmdirOPto·
munidadcs quilombobs ou·
viram ontem, r~"abiados, o dor Ricardo Rangel, diretor gudes maiores, capazes d"
gtama Espacial Brasileiro. diretor br~sileiw da empre do CLA, a área é vital para colocar em úrbi!a sat~lites
de Alcântara) e outra que "não é amigável". São vozes Os qu!lomboiJs, que tive·
ramsua> te11as reconhecidas
sa, Roberto 1\maml, crit!can· projeto> romo os foguetes da geo~stacionários, ou lança
mentosern órbita polar, diz.
pel~ /trstiça rnas ainda aguar· "Um lançamento polar I~
do movimento presentes no texto: o líder do Mabe e três dam ~!1<1 homologação, di· da de passar por cima dct ca
zernqu~nãn vão ceder. É preciso decidir entre o interesse de !wça das comunidades. :i<•
participantes que não são identificados. O contraponto A resistência dos descen·
dentes de escr~vos jâ fez com
2.000 pessoas {jUe moram no setor Nordeste perdermos o Sl'lor nordeste,
fica muito rlificil fazer lança
que as otivit.l~des da ACS(AI· da petl.Ínsuhl que forma o município de mento po!ar",continua.
é dado pela apresentação e pela fala do presidente da cântara Cyclone Space) fos-
Aldl.Htara versus190 milhões de brasileiros
Para ele, "é preciso decidir
sem confinadqs aoCLA {C!"n· entre o inlercss~ de 2.000
Agência Espacial Brasileira (AEB), que acena com um tro de l.anc;amento de Alciin·
tara). da Aeronáutica. "f(4~DO"hiM!
pessoas que moram rso setor
Norde._~te versus 190 milhõ~s
Originalnwnte o sítio de· c'lroWdo(!A(<oohodot'"l'mmtoOoM,;n""l de brasildros." (cAl
discurso de inclusão social.
3) Na fala do líder, a parceria do Mabe com o MST é moda- 1) Reportagem feita pelo enviado do jornal à região e publi-
lizada com o advérbio "inclusive", que sinaliza tanto a cada em 11 de setembro de 2010, um dia após o lança-
influência da organização na formação política quanto a mento da pedra fundamental do local de lançamento do
possibilidade de que a parceria se dê também em outras foguete ucraniano. Trata do impasse existente entre os
situações. Duas modalizações dão ideia da pouca estrutura interesses das comunidades quilombolas e os do projeto
do Mabe- "consegue se bancar" e "conseguiu preencher" e da Aeronáutica.
-,mostrando que a sobrevivência é algo periclitante, que 2) Em torno do discurso que defende a expansão, há termos
depende de financiamento oficial, e que a qualificação ií
e expressões que enfatizam a tecnologia, a modernidade, ru

186
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187
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lZAREl. MAGALHÍÍII::S, ANDRF. R_ MARTINS E VIVIANF DF M. RESFNDF ANALISE DF UISCUHSO CH!TICA

o progresso -"novo alvo", "Cyclone-4)), "para expandir "deveria ficar", "veladamente".A justificativa do líder dos
o Programa Espacial Brasileiro", "foguetes da família quilombolas sugere que eles já admitem a capitLilação:
Cruzeiro do Sul", "que devem substituir o VLS" (Veí- "Vamos achar [que o conflito estará resolvido] quando
~
culo Lançador de Satélites), "requisitos de segurança", g' nossas terras estiverem tituladas".
1 Tanto no uso do discurso direto quanto no indireto,
"foguetes maiores", "colocar em órbita satélites geoesta- l' 4)
l
cionários", "lançamentos em órbita polar". Já em torno a fala do representante do CLA é favorecida em relação
J à fala do líder quilombola. Há duas falas diretas deste
do discurso em prol dos quilombolas, veem-se termos e l
expressões que realçam a resistência e a luta pelo direito '
1
l
contra três daquele e duas ocorrências ele discurso indi-
à terra- "tiveram suas terras reconhecidas pela Justiçan, _l
reto ele quilombolas contra quatro elo diretor do CLA.
('aguardam sua homologação", "não vão ceder", "resistên- :] No texto, portanto, há um domínio da perspectiva de
'1
quem quer a expansão e a consequente remoção elos
cia dos descendentes de escravos", "quando nossas terras
1' quilombolas. O texto se encerra com a frase elo coronel,
estiverem regularizadas", "criticando-os veladamente
pelos atrasos no programa", "direito de garantir seu pró-
f que se vale elo uso da oposição "nós versus eles" para isolar
1
prio território", "próxima briga quilombola". i' os quilombolas, sendo o "nós" integrado pelo conjunto
3) No texto, o emprego de modalizações contribui para l
J
abrangente ela população brasileira (representada pelo
reforçar a perspectiva de modernidade, segurança e tec- total presumido ele habitantes do país, "190 milhões de
nologia de ponta, em contraposição à resistência ele uma .1 brasileiros") c o "eles", os quilombolas da área (represen-
l tados pelo número ele "2.000 pessoas").
minoria tida como atrasada ou carente. O título da maté- :i
ria consiste numa frase atribuída ao coronel que é diretor .1'
do Centro, como uma ordem dada aos quilombolas; mas,
l
0:
em vez ele a ordem ser assumida pelo coronel, pela Aero- l
l
náutica ou, em última instância, pelo governo, ela é repre-
j
sentada como resultante de um processo. Ocorre aqui uma l
l
-_}
nominalização, processo discursivo pelo qual a agência
deixa de ser atribuída a um ator determinado e passa a
1
;;:

ser resultado de uma conjuntura. Outra nominalização :1


aparece no texto quando é dito que "requisitos de segu-
I
rança [ ... ] tornam necessária a expansão". Ou seja, é o
processo que está demandando isso, não os atores à frente
i:[
de instituições poderosas. Outros exemplos de modali- ·-t

zações: "terá de retirar", "já fez com que as atividades ela


1
ACS [ ... ]fossem confinadas ao CLA,""originalmente", l
J

188 189
!ZABEL MACALHÁJ::S, /\NDRE R. MARTINS E VIVIANE DE M. RESENDE r\NÁUSE DE DISCURSO CRÍTIC!\

Texto 4- "Quilombo/as terão de abrir caminho paraJoguetes no MA" I) Matéria assinada por dois repórteres, publicada em 10 de
(Folha de S. Paulo, 10112/2010) dezembro de 2010. Enfoca a perspectiva de setores do
governo que planejariam a reacomodação das comuni-
dades. Repete a foto e a legenda do texto principal de
3 de janeiro de 2010 e apresenta-se com um título, um
subtítulo e dois intertítulos.
2) Pelo uso de expressões como "empregos e outras com-
pensações", "benefícios aos quilombolas", "em troca da
ampliação do C LA'', "em troca, o governo oferece", "cons-
trução de moradias, garantia de emprego para os quilom-
bolas na construção da base, além de cotas nas escolas
que serão construídas para os filhos dos engenheiros e
técnicos", "acesso aos postos de saúde)), "construção de
rodovias", "acesso ao mar", nota-se uma decisão gover-
. li':'. -~- -:~;-_i.i. :-· _:,o,_·~.:
', _··. .·,_~-. ,/::~--'.::~i~
·._ namental já tomada no sentido de retirar os moradores
Cri:;mç<~s bl'incam em r. asa de pau a plqu"' de l~tmmnidade quilom.bola em Alcântara (MA)
e de conseguir seu consentimento e a simpatia da opi-
nião pública para implantação de políticas públicas que,
{,!uilombolas terão de abrir de outra sorte, não alcançariam aquelas comunidades.
í::aminho para foguetes no MA Ou seja, o que deveria ser feito por direito ou determi-
Governo quer realocar comunidades para ampliar lançamentos nação constitucional (moradia, educação, saúde e tra-
balho) é apresentado como moeda de troca para impor
ii-11\TflEUS LEITÃO O decreto estabeleceo pro- de8.500 hectares, dobraria.
!.'ELH'E SELIGMAN grama "Alcântara Sustentá- Em troca, o governo ofere- uma decisão governamental. Destaca -se o uso, como
ll!' ORASiliA vel", com beneficios aos qui- ce moradias, emprego na
1om bolas que vivem na re· construção da base, rodovias intertítulo, de uma expressão advinda do discurso que
O governo vai oferecer em- gião, em troca da ampliação com acesso ao mar para pes-
pregos e outras "compensa-
ções" às comunidades qui-
do CLA, onde funciona a Al- ca, e cotas nas escolas que se- pleiteia a realocação dos moradores, "mais segurança".
cântara Cyclonc Espace, em· rão constnúdas para os filhos
lombolas para tentar resolvei'
o impasse que inviabilizava o
presa binacional Brasil/U· dos engenheiros e técnicos
crânia com 100% do capital que chegarão à região com as
Ao mesmo tempo, pelo emprego das aspas, nota-se a ten-
início da ampliação do CLA público (SOo/ode cada país). obras. Não haverá, porém, tativa de garantir isenção, mostrando que o argumento
(Centro de Lançamento de A Folha npurou que o Mi· compensação financeira.
A!cântona), no Maranhão. nistério da Defesa quer am- O texto foi construído por não é assumido pela reportagem. Observe-se, ainda, que,
Uma minuta de decreto ao pliar o tcnitório para mais ll órgãos, entre eles Casa Ci-
qual a Folha teve acesso, perto do mar e fazer outros sí- vil, GSI (Gabinete de Segu-
produzida pela AGU (Advo- tios de lançamento de fogue- rança Institucional), e os mi·
no título, no subtítulo e nos intertítulos, só as falas dos
cacia Geral ela União), deve tes "com mais segurança". nistérios do Desenvolvimen-
ser apresent;:1da ao presiclen- O decreto que chegará às to Agrário, da Defesa e do
que apoiam a retirada dos quilombolas se manifestam.
te Lula hoje. Odocumentoes· mãos de Lula obrigará 21 das Meio Ambiente.
to.va pronto há pouco mais de 106 comunidades quilombo- Após a aprovação do presi· A estes, restam espaços restritos no interior da matéria.
dois meses, mas o governo las (um total Jei108 familias) dente Lula, o documento se-
n5o quNia o dPsgaste poli! i- a serem realocadas. Com is· rá submetido, em janeiro, 3) O emprego de algumas modalizações sinaliza o caráter
co dural!le período deitoral. so, o CLA, que hoje tem cerca aos líderes qui\ombolas.
processual da implantação do programa- "terá de ser",

190 191
l:t.ABLL M/\(_;f\LHÁFS, ANDRé R. MAHT!NS F V!VlANE DC M. RESENDE ANAUSC: IJl:: DlS~UI'\SO CRÍTICf1

"quer rea1ocar , tentar reso1ver " , "d eve ser )) , "quer


lJ " moradores não quererem deixar a área onde estão atual-
ampliar)), "caso essa proposta seja aprovada", "decidiu não mente. Assim, a reportagem é ancorada na perspectiva
c
01erecer " , e " tenta reso1ver "N
. o segun do paragra1o,
' .c o uso dos que apoiam a retirada das comunidades quilombolas.
do advérbio "consequentemente" condiciona a segurança Pretendemos mostrar, com a breve descrição desses textos,
do local ao projeto de ampliação do CLA. Este é apre- a possibilidade que se tem de examinar um contexto social e um
sentado como necessário para garantir aquela. Mais uma contexto discursivo enfocando textos que por si mesmos cons-
vez, com o uso das aspas, o termo "segurança" é atribuído tituem-se um processo, mas também produtos deste. Embora o
a quem defende a ampliação do CLA, distanciando-o corpus escolhido seja bastante restrito, é possível observar que esses
do jornal. Ainda assim, a transferência dos moradores é A quatro textos estão carregados de marcas linguísticas recorrentes,
l
mostrada como "necessária". Há um reforço argumen- e ensejam um padrão discursivo, ou seja, apresentam semelhanças
tativo. Notam-se, também, exemplos de personificação, entre si. Em outras palavras, os textos propiciam "regularidades
em que "o decreto" ou ('o documento" assume posição de discursivas". Pelos objetivos a que nos propomos, analisamos três
sujeito gramatical, desviando, assim, o foco dos atores delas - a seleção lexical, o uso de modalizações e a questão da
responsáveis pelas ações de "obrigar famílias a serem representação de atores sociais.
realocadas" e "tentar resolver uma briga". Feito isso, passamos à interpretação desse contexto discur-
4) Mais uma vez, a oposição "defensores x contrários" é sivo, explorando os vínculos entre a prática social e a discursiva.
explorada na descrição da questão social em Alcântara. Assim, alinhavamos alguns pontos que nos parecem significantes
Nesta reportagem, nota-se a ausência do discurso direto, nesse processo discursivo:
embora aqui e ali apareçam expressões provenientes do a) A realidade social conforme representada nos textos é
discurso dominante: "compensações", "mais segurança", marcada por uma oposição: o novo, o progresso, a tec-
"com mais segurança", "a segurança". O discurso indireto nologia e a segurança, que são associados ao projeto
é usado uma única vez, mas o dizente não é especificado, de expansão do centro de lançamento e a consequente
possivelmente alguma fonte do governo ou mesmo uma remoção dos quilombolas das áreas, contrastando com
pessoa ligada ao programa. Os quilombolas aparecem por o passado, o atraso, a pobreza e o entrave, vinculados
meio de algumas crianças na foto que ilustra a matéria e, às comunidades quilombolas e à resistência em curso.
no texto, figuram como possíveis beneficiários das "com- A defesa da opção pelo primeiro quadro é favorecida
pensações" a serem oferecidas pelo governo, por meio pela construção dos textos.
de líderes a quem o documento seria submetido para b) Os textos exploram um conjunto de "benefícios" sociais
apreciação. Nenhuma argumentação contra a retirada dos e econômicos prometidos a comunidades quilombolas
ffi
quilombolas é apresentada. Limitado( a) por essa matéria, carentes. Aparentemente, todos teriam a ganhar com
o leitor ou leitora terá de buscar em outras fontes ou em a expansão do projeto espacial em curso. No entanto, I
leituras prévias informação outra sobre o porquê de os as contradições que os textos não conseguem esconder I
192
I
~
193
11.'
IZABEL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS E VIVIANE DE M. RESENDE ANALISE DI:: D!SCURSO CRÍTICA

apontam o uso político desses benefícios, que funciona- Considerações finais


riam como moeda de troca para uma imposição menos
dolorosa do planejamento governamental. Ou seja, a aná- No embate em busca de mais espaço, de maior acesso a bens
lise que se faz é que as comunidades poderiam continuar materiais e simbólicos e de poder, as minorias podem dispor
na situação precária, a não ser pelo uso consequente da da ADC como um instrumental teórico-prático. Nos textos da
posição estratégica em que se encontram, o que implica imprensa, trava-se uma luta com repercussões na esfera pública,
por fim a adesão ao projeto. A expansão do projeto pode- de um modo geral, e no cenário político, especificamente. A ADC
ria trazer ganhos econômicos para a população, mas não propicia não somente um olhar crítico, como fornece também
resolve o problema crônico da vulnerabilidade social e elementos teórico-práticos para questionar sentidos desfavoráveis
política: não poder ser protagonista de seu próprio des- e pôr à disposição sentidos que favoreçam os atores sociais que
tino, além de ignorar as questões culturais envolvidas a utilizam. É instrumental notável para a autoemancipação de
com comunidades tradicionais. grupos sociais em desvantagem.
c) A análise sugere como instituições e pessoas detento- Certamente se trata de uma frente de luta que deve ser com-
ras de poder acabam tendo mais espaço e relevância binada com atuações em outros âmbitos: parlamentar, governa-
nos textos, particularmente, e no processo discursivo, mental,judicial, iniciativas político-sociais e político-econômicas.
em geral, do que pessoas que estão à margem dessas A intervenção no processo discursivo midiático, do qual o discurso
instituições. Ou seja, o desequilíbrio que se nota na da imprensa é parte das mais relevantes, apresenta-se para grupos
dominação político-econômica, no usufruto de bens sociais desfavorecidos no processo político como uma instância
materiais e simbólicos, ocorre também no âmbito dis- privilegiada, uma vez que a mídia, e a imprensa particularmente,
cursivo: o favorecimento da perspectiva dominante pela desempenha uma função de mediadora do processo político, seja
i
representação linguística e discursiva que é feita, pelo na formulação da agenda, seja na construção do consenso.
1
predomínio como fonte ouvida e citada, por marcas Valer-se estrategicamente da ADC nessa perspectiva implica:
linguísticas usadas com regularidade. a) identificar e explicitar os mecanismos ideológicos no
d) O processo discursivo, embora dominado por um dis- processo discursivo desequilibrado;
curso específico, é atravessado por sentidos de outro b) municiar as minorias de instrumentos para uma análise
discurso. Está assim marcado por contradições. As mar- crítica do processo político e de sua dimensão discursiva;
cas linguísticas indicam isso (sobretudo a seleção lexical c) proporcionar um contraponto e uma visão política estra-
e as modalizações). Na exploração dessas contradições, tégica mediante a construção de uma representação lin-
na crítica de sentidos do discurso dominante, abre-se guístico-discursiva favorável nesse contexto.
a possibilidade de promover o protagonismo do grupo O empreendimento é a um só tempo linguístico e político.
minoritário, a democratização do processo decisório, É político porque a linguagem atua na construção social e polí-
o fortalecimento da cidadania. tica da realidade. Ao interferir no processo discursivo, os grupos

194 195
IZABCL MACALl-lACS, ANlJ!-(1:: R MARTINS E V!VlANE DE M. F.ESENDl::

sociais também estão fazendo política e ajudando a dar forma a


sentidos que os favoreçam, c questionando outros que os preju- .nn.n'-'h'" DE DIE!ClrR
dicam. O sucesso do empreendimento dependerá de inúmeros -CHAVE PARA
fatores, sendo um deles a competência com que se usa o espaço
midiático e se utiliza do processo discursivo para promover sua
própria perspectiva da luta política.

Introdução

Reconhecendo a complexidade teórica do funcionamento


social da linguagem conforme proposto na versão de Análise de
Discurso Crítica que discutimos aqui, com base na ontologia da
constituição da sociedade no Realismo Crítico, iniciamos este
capítulo pela discussão do mapa ontológico que se constrói nessa
relação interdisciplinar para, em seguida, discutir algumas das
implicações conceituais dessa ontologia sobre trabalhos empí-
ricos em ADC.
Na primeira seção, focalizamos especialmente os concei-
tos de discurso, gênero e texto, porque vemos que na distinção
entre discurso e texto, por um lado, e entre gênero e texto, por
outro, reside uma das principais dificuldades encontradas na
compreensão teórica do modelo por estudantes. Ocorre que a
incompreensão das especificidades de cada um desses conceitos
na teoria da organização do potencial semiótico pode ter, e de
fato em muitos casos tem, implicações epistemológicas graves
na realização de trabalhos de pesquisa em ADC. Para discutir
essas questões, na segunda seção apresentamos sua aplicação a
um texto tomado como exemplo.

196
I
l
j
JZAUEL MM::;ALHÃES, ANDHÉ R. MARTINS E VII/JANE DE M. RESENDE 1\NÁL!SE D[ DISCURSO CHÍTlCA

1 Um mapa ontológico da organização social do potencial especialmente quando se objetiva superar, por um lado, abordagens
semiótico estrutnralistas - focalizadas na estrutnra e que não vislumbram
a possibilidade de ação criativa - e, por outro lado, abordagens
Uma teoria do funcionamento social da linguagem não pode voluntaristas -focalizadas na agência e que não enxergam o caráter
deixar de considerar teorias do funcionamento da sociedade. prévio das estrutnras em relação à ação social (BHASKAR, 1989).
Assim é que a interdisciplinaridade é uma das três caracterís- Sob a influência desse modelo teórico de constituição da
ticas comuns a todas as diferentes abordagens filiadas à ADC sociedade, o foco da abordagem relaciona! da versão de ADC que
(RESENDE, 2009a). Ainda que sejam diversificadas em suas discutimos aqui não está na estrutnra social ou na ação individual,
propostas teóricas e nas ferramentas analíticas que utilizam, todas mas na relação entre estrutnra e ação, como modo de focalizar,
as versões de ADC rompem fronteiras disciplinares, favorecendo simultaneamente, os constrangimentos e as possibilidades oriun-
o diálogo entre correntes do funcionalismo linguístico e dis- dos da estrutnra, que informam a ação, e os efeitos potenciais da
ciplinas das Ciências Humanas e Sociais. Nesse sentido, para ação reificadora ou transformadora de estruturas.
Blommacrt (2005, p. 2): Bhaskar (1998, p. 217) representa assim seu Modelo Trans-
formacional da Atividade Social (MTAS):
O desenvolvimento da análise de discurso crítica foi
impulsionado, por um lado, por desenvolvimentos Figura 8.1: Modelo Transformacional da Atividade Social (MTAS)
na teoria linguística em si, que chamavam atenção
------------l> Sistema-----------~
para abordagens mais centradas na atividade, no i
reconhecimento da linguagem em uso como um

Recurso/Constrangimento :•
"'i' Reprodução/Transformação
objeto de análise legítimo [ ... ],por outro lado, foi • •
impulsionado por contatos interdisciplinares inten- "' Texto
!

sos entre linguistas e pesquisadores ou pesquisa-


doras situados em campos como a análise literária, De acordo com o modelo, a sociedade provê as condições
a semiótica, a filosofia, a antropologia e a sociologia. ll para a ação humana, mas só existe nas ações humanas, que
sempre utilizam alguma forma pré-existente de ordem social
No caso do modelo teórico-metodológico de ADC desen- (BHASKAR, 1998). A assimetria temporal entre estrutnra e
volvido por Fairclough (1989, 1995b, 2001b,2003) e Chouliaraki ação implica que essa relação não é de equivalentes, o que leva a f
e Fairclough (1999), o foco é a relação entre discurso e mudança
social. Uma questão crucial, quando se focaliza a mudança social,
uma entidade organizacional intermediária: o sistema posição-
-prática. Práticas sociais e posições são, para Bhaskar, conceitos
lI
é a relação entre estrutnra e ação, ou entre sociedade e indivíduo. intermediadores entre as estruturas sociais abstratas e a ação !I
'i
Para discutir isso, o Realismo Crítico (RC), com seu Modelo
Transformacional da Atividade Social (MTAS), é muito útil,
social concreta. Bhaskar (1998, p. 221) explica a centralidade
desses dois conceitos para a crítica explanatória: I
198 I
$
199 ~
~
IZABJ::L MAGALilÁ[S, i\NDRF: R. MAH'l'lNS f. VlV!AN[ DE l'A. H.ESI::l'.!Dl:: AI'! Á! !SF DF DISC:lJRSO CRiTICA

Figura 8.2: Modelo Transformacional da Atividade Discursiva (1\IITAD)


Nós precisamos de um sistema de conceitos media~
dores [ ... ],um sistema de conceitos designando
'I>
o ponto de contato entre a agência humana c as
Recurso/Constrangimento :'
'' '
:' Reprodução/Transfonnaçào
estruturas sociais. Tal ponto, ligando ação c cstru~ ' ••
~
tura, deve ser simultaneamente durável e ocupado Ação
por indivíduos. Está claro que o sistema de media-
ção de que precisamos é aquele das posições (luga- Essa abordagem nos permite focalizar, em termos discursivos,
res, funções, regras, tarefas, deveres, direitos, etc.) não os sistemas semióticos em si mesmos, nem a ação discursiva
ocupadas (preenchidas, assumidas, desempenhadas, isolada, mas os tipos de relação que se estabelecem entre sistemas
etc.) por indivíduos, e aquele das práticas em que semióticos e produção textual em contextos específicos, ligados
se engajam, em virtude de ocuparem essas posições. às posições ocupadas nas práticas desempenhadas. Além disso,
Chamarei esse sistema de posição~prática. como a relação entre linguagem e sociedade é teorizada como
interna e dialética, não se pode desvincular a ação discursiva da
Os conceitos de práticas e posições, teorizados como organização social, o que nos permite realizar a crítica social com
entidades intermediárias entre estrutura e ação, possibilitam base no momento discursivo em sua relação com outros momentos
um foco nas condições estruturais para a ação, na relação trans- das práticas sociais. A relação entre estrutura, prática e evento, por
formacional entre estrutura social e agência. Essa ontologia um lado, e a constituição das práticas sociais em seus momentos
do RC pode ser aplicada à organização social do potencial irredutíveis, por outro, são ilustradas na figura 8.3, a seguir:
semiótico: no nível de abstração das estruturas sociais temos
os sistemas semióticos - como as línguas ou a gramática que Figm·a 8.3: Estrutura, prática, evento
orienta a produção de textos visuais, como propõem Kress e van
Leeuwen (1996 ); no nível de concretude da ação social, temos
os textos - materialização de nossas ações discursivas; e como
Estrutura I
................
entidades organizacionais intermediárias, temos as ordens do
discurso e seus elementos constituintes - gêneros, discursos e !
estilos (FAIRCLOUGH, 2003; RAMALHO; RESENDE, j
2011). A organização social do potencial semiótico poderia ser
representada como na figura 8.2, a seguir:

[ Evento ~
::
i I
Fonte: Baseada em Chouliaraki e Fairdough, 1999. "

2.00
I 201
II
lZABEL MAGALHÃES, ANOR[ R. MAP.TJNS E VIVIANE DE M. R.I::Sl:::NDE f\Nt\L!SE [)[ DlSClTRSO CI1IT!CA

Um dos aspectos centrais da teoria do funcionamento social morais da vida social associados ao discurso. A proposta de análise
da linguagem em ADC, então, é a abordagem da relação entre de problemas sociais pela lente do discurso se sustenta porque a
linguagem e sociedade, definida como uma relação interna e de relação entre discurso e sociedade é entendida como uma relação
mão dupla. A natureza interna dessa relação significa que textos de constituição mútua. Isso porque a organização do potencial
são resultantes da estruturação social da linguagem, mas são semiótico é articulada à organização potencial da sociedade.
também potencialmente transformadores dessa estruturação, do Na próxima seção, veremos como se conceituam as práticas
mesmo modo como os eventos sociais são resultado e substrato sociais nessa abordagem teórica do funcionamento social da lin-
das estruturas sociais. guagem, e algumas de suas implicações conceituais para trabalhos
Daí, podemos afirmar que a ADC reproduz, no nível epis- empíricos em ADC, especificamente no que se refere aos conceitos
temológico, a relação entre linguagem e sociedade defendida de gênero e texto, por um lado, e gênero e discurso, por outro.
no nível ontológico, a qual possibilita que a análise linguístico-
-discursiva aponte caminhos para uma crítica social discursi- 2 Nem tudo é discurso- por uma reflexão conceitual emADC
vamente orientada (nível epistemológico). Se podemos utili-
zar textos como material empírico para a crítica de processos Na versão de ADC de Fairclough, amplamente inspirada em
sociais de mudança/manutenção de práticas é porque a lingua- conceituações oriundas das Ciências Sociais na chamada "virada
gem, entendida como discurso, é constituída na/pela sociedade discursiva'', o discurso é entendido como um elemento das práti-
e constitutiva desta (FAJRCLOUGH,2001a; MAGALHÃES, cas sociais em relação com outros elementos das práticas, ou seja,
2005a). Assim, a relação interna entre linguagem e sociedade o discurso interioriza outros elementos das práticas, tais como
permite uma relação também interna entre a análise discursiva as relações sociais e as atividades materiais (CHOULIARAKJ;
e a crítica social, como sugere a figura 8.4, a seguir: FAIRCLOUGH, 1999; MAGALHÃES, 2010; RAMALHO;
RESENDE,2011). Essa conceituação complexa da relação entre
Figura 8.4: Linguagem e sociedade/Análise discursiva e crítica social
linguagem e sociedade permite entender, na sociedade, a organi-
zação do potencial para significação no discurso, e no discurso,

/,//··~,.·~álise
compreender e explicar problemas sociais. Por isso os problemas
que orientam as pesquisas nesse campo são problemas sociais,
Linguagem Sociedade dos quais nos acercamos pela via do discurso. Para pesquisas em
~' \ discursiva
\,, ',~',,, ADC lograrem explanação de problemas sociais, a relação entre
',,,'',,,
linguagem e sociedade precisa ser muito bem compreendida.
Nessa ontologia, como vimos, temos que o sistema "posição
e práticas" é intermediário entre a estruturação da sociedade e a
Como vimos, a versão de ADC de Fairclough estabelece possibilidade de ação concreta. Em ADC, as práticas sociais são
diálogo com a Ciência Social Crítica, ou seja, questiona aspectos conceituadas como constituidas de momentos em articulação interna.

202 203
lZABEL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS .E VJVIANF. DF M. RESCNDC ANÁl.lSE DE DISCURSO CRÍTICA

Figura 8.5: Prática social e o momento discursivo


são alçados em textos, isto é, materializan1-se em textos, mas não se
confundem com os textos empíricos. O mesmo se dá em re.lação às
noções de gêneros e estil.os, conceitos igualmente abstratos.
Tomando os gêneros como exemplo, temos que os dife-
rentes gêneros discursivos são modos relativamente estáveis de
agir discursivamente, mas que não se confundem com os textos
concretos que materializam os diferentes gêneros. Assim, todo
texto empírico recorre ao potencial serniótico informado por
algum gênero ou mescla de gêneros, e todo gênero só se realiza
em textos empíricos. O potencial genérico e os textos empíricos
estão em relação transformacional, mas não se confundem.

3 Gênero, discurso e texto: um exemplo

Para ilustrar essas distinções teóricas entre discurso, gênero e


texto, vamos apresentar um exemplo (RESENDE, 2008, 2009b) 1

RELATÓRIO SUCINTO DA REUNIÃO


Como vemos na figura 8.5, o momento semiótico (conceito Na reunião com Autoridades do Governo do Distrito Federal, convocada pelo
mais abstrato de discurso) é apenas um dentre os momentos proprietário do Restaurante X, estiveram presentes conosco os senhores X, X e a Sra.
X, onde ouvimos que as causas que levam os moradores de rua a permanecerem
da prática social, o que significa que as práticas sociais não se mais tempo em um só lugar é a facilidade de obterem as coisas básicas necessárias
como: comida, roupas, calçados e dinheiro, sendo este último transformado nas
reduzem ao discurso: o discurso interioriza os demais momen- drogas que utilizam.
tos da prática, mas nenhum desses momentos se reduz a outros Gostaria também de colocá-los a par, uma informação passada na reuniao, de
que existem duas ou três pessoas recentemente libertadas da penitenciária e que
(}'AIRCLOUGH, 2003). A figura 8.5 também ilustra a arti- estao ainda na condicional, entre eles. Por isso, gostaria de enfatizar novamente,
não dê nada a eles. Não é falta de humanidade, é simplesmente para dificultar
culação interna do momento semiótico: seus constituintes são a permanência deles perto do nosso prédio.
discursos (no sentido menos abstrato, como modos particulares Ontem mesmo presenciamos pessoas jogarem sacos de comida para alguns
deles embaixo do prédio. Nós também somos responsáveis, como foi dito pelo repre-
de representação), estilos (modos particulares de identificação sentante da Segurança Pública presente na reunião, da permanência deles, onde estão.
Esperamos ter-nos entendido e agradecemos a ajuda.
discursiva) e gêneros (modos particulares de ação discursiva). X- Síndico
Gêneros, discursos e estilos são os principais elementos das
ordens do discurso (}'AIRCLOUGH,2003) e são, portanto, concei-
tos abstratos; não se confundem com os textos empíricos. Discursos 1 No exemplo, a fim de garantir o anonimato das pessoas representadas, seus nomes
são modos situados para a representação de eventos e práticas, que foram substituídos por X.

204 205
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!ZABH MACALllÂES, ANDRt R. MAHT!NS 1:: VJV!ANE DL M. HESENDE 1 ANÁUSE DE DISCURSO CRITICA

A instância discursiva que temos no exemplo é a materiali- Qualquer enunciado [texto] considerado isola-
zação, o resu!tado concreto, de um evento discursivo; e, portanto, damente é, claro, individual [concreto l1nas cada
é um texto. E o "relatório sucinto" de uma reunião - referente à esfera de utilização da língua elabora seus tipos
prolongada permanência de um grupo de pessoas em situação relativamente estáveis de enunciados [potencial
de rua nas proximidades de um edifício residencial de Brasília abstrato, alçado na composição de textos], sendo
- distribuído aos condôminos e condôminas do edifício como isso que denominamos gêneros do discurso.
('circular de condomínio". (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 279).
Gêneros constituem "o aspecto especificamente discursivo
de maneiras de ação e interação no decorrer de eventos sociais" A referência a "tipos relativamente estáveis" é lembrada no
(FAIRCLOUGH, 2003, p. 65). Qyando analisamos um texto em trabalho de Hasan (1985), com o conceito de "estrutura genérica
termos de gênero, examinamos como o texto figura na (inter)ação potencial (EGP)", que inclui "elementos opcionais e obrigatórios" e
social e como contribui para ela em eventos sociais concretos. sua sequência. Como sugere Hasan: "é possível definir o POTENCIAL
Gêneros discursivos variam em relação aos níveis de abstração, DE ESTRUTURA de um gênero" (p. 64). Ressalvamos, entretanto,
e nesse sentido Fairclough (2003) distingue os pré-gêneros e os que, diferentemente da abordagem de Hasan, o que nos interessa
gêneros situados. Pré-gêneros são categorias abstratas, que trans- na análise de potencial genérico não é a descrição de "etapas", mas
cendem redes particulares de práticas sociais e que "participam" a análise de funcionamento discursivo em práticas situadas.
na composição de diversos gêneros situados. Narrativa, argumen- Sobre a estrutura genérica do texto no exemplo, Resende
tação, descrição e conversação são pré-gêneros no sentido de que (2008) faz o seguinte comentário:
são "potenciais" abstratos que podem ser alçados na composição
de diversos "tipos relativamente estáveis de enunciado", para usar O texto[ ... ] configura-se no gênero situado "circular
a definição canônica de Bakhtin (2003 [1979]). de condomínio", cujo propósito é estabelecer comu-
Gêneros situados, por outro lado, definem gêneros que são nicação entre o/a síndico/a de um condomínio resi-
específicos de uma rede de prática particular, como a "circu- dencial ou comercial e os/as condôminos, a respeito
lar de condomínio". Um gênero situado é "um tipo de lingua- de temas relevantes para o funcionamento da colnu-
gem usado no desempenho de uma prática social particular" nidade, como pagamentos, pendências ou problemas
(CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 56), por isso a envolvendo o conjunto da comunidade. No caso do
categoria de gênero discursivo relaciona -se ao significado acionai texto em análise, trata-se de circular de condomínio
de textos, a seu funcionamento no estabelecimento de relações residencial, texto produzido individualmente pelo
sociais particulares, textualmente mediadas. Para compreender síndico e distribuído aos/às condôminos/as por meio
o caráter de potencial abstrato dos gêneros, podemos recorrer de cópias impressas que foram deixadas nas caL-xas
novamente a Bakhtin (2003 [1979], acréscimos nossos): de correio das unidades domiciliares.

206 207
lL:I\BE!. i'-1AGALHÃES, i\NDHÉ H. MAR'l'lNS E VlVl/\NF DE M. HESENDE i\NÁLlSE DE DlSCUFSO CRJT!CA

Em termos de gênero, a amostra discursiva é relati- Entretanto, é recorrente a confusão entre os conceitos de
vmnente inovadora- circulares de condomínio geral- discurso e texto- é comum encontrarmos trabalhos analíticos que
mente versam sobre debates internos ao condmnínio, fazem referência, por exemplo, ao "discurso de uma professora"
sobre reuniões realizadas entre condôminos/as ou pro- entrevistada em pesquisa de campo. Ora, se o conceito de discurso
blemas específicos ao flmcionamento do condomínio. diz respeito a um modo particular de representação, que trans-
Essa circular, por outro lado, traz relatório de um debate cende textos particulares (embora seja materializado em textos
envolvendo agentes externos à comunidade de condô- concretos), não se deveria falar em "discurso da professora)), mas
minos/as, em reunião à qual estes/as não foram con- no "texto c! a pro1essora
.c 1a] a da pro1essora
" , na "C r " , no "tes t emun 110
vidados/as a comparecer. (RESENDE, 2008, p. 83). da professora", no "relato da professora"- que evidentemente
articulará discursos diversos na representação de sua experiência.
Ainda em termos da estrutura genérica, podemos dizer que Voltando ao texto da circular de condomínio, podemos dizer
o texto em questão articula os pré-gêneros narração c argumen- que o texto articula (materializa, traz para o nível do concreto,
tação, e materializa o gênero situado "circular de condomínio". do evento discursivo situado) determinados discursos - modos
Isso significa dizer que o exemplar textual que temos em foco não particulares de representação discursiva- em sua representação
é o gênero circular de condomínio, mas sim alça esse potencial da situação de rua e do grupo de pessoas em situação de rua que
(abstrato) para o nível do concreto (do evento discursivo) quando focaliza. Nos termos da análise de Resende (2008):
o materializa em texto, realização particular e individual desse
potencial disponível. Em outras palavras, o texto é uma circular [o texto articula] estruturas de pressuposição [veja a
de condomínio, mas não é o gênero "circular de condomínio". definição ]2 que formulam uma avaliação das pessoas
Oltalquer referência analítica a essa instância discursiva deve do grupo como oportunistas e perigosas. São classi-
ser feita em termos de texto, pois se trata de uma realização con- ficadas como oportunistas no primeiro parágrafo elo
creta, no nível ontológico do evento (ou da ação). Não há que se excerto) em que se define implicitamente a sih1ação
falar, portanto, no discurso do síndico, mas no texto elo síndico. Aliás, de rua como sendo "fácil)).Dc acordo com o pressu-
como o conceito de discursos refere-se a uma recorrência de modos posto necessário para a intcrpretaçao de "a Facilidade
de representação, disponíveis para materialização ou articulação em de obterem as coisas básicas necessárias))' a situa-
textos individuais, não se deve falar em "discurso de alguém", mas em ção de rua é vista como uma opção, apagando o
"discurso articulado por alguém em sua representação". Isso porque desemprego crônico como problema social. Isso se
o conceito de discurso (na acepção menos abstrata, mas que ainda coaduna com o discurso ncoliberal, da sociodiceia
assim não está no nível de concretude do texto) diz respeito a um da competência, segundo o qual as pessoas seriam
"modo particular de representar parte do mundo", ligado a práticas
2 ''A pressuposição é um enunciado considerado por f~tlantes como terreno comum_com
sociais particulares e às diferentes posições ocupadas/assumidas ouvintes, ou leitores, ou corno algo que se pode tomar como túcito" (NJAGALHAES,
por atores sociais nessas práticas (:F'AIRCLOUGH, 2003, p. 26). 2012, p. 41).

11
2.08 2.09
___________________________________________________________________.._____________________________________________________________________ ( II
JZABEL Ivlf\GALHAES, ANDRÉ R. MARTINS E VlVIANE DF Ivl. RESENDE ANALlSE m: DISCUESO CRiTJCA

individualmente responsáveis por seu sucesso ou por Evidentemente esses sentidos não siio criados nessa
seu fracasso (BOURDIEU, 1997). O segundo pará- circular de condom{nio. São aqui recriados, ressigni-
grafo do excerto opera uma avaliação das pessoas do ficados, recolocados em prática. Isso sugere o poder
grupo en1 situação de rua como perigosas, por meio da repetibilidade de discursos na manutenção de
da ((informação passada na reunião" de que haveria estruturas de poder c dominação, visto que a ava-
no grupo ex-presidiários/as. Ao mesmo tempo em liação negativa de grupos apartados e a desrespon-
que sugere sua periculosidade, o autor da circular sabilização do Estado são muitas vezes repetidas
reforça o preconceito contra pessoas egressas do em variados tipos de texto, tornando-se parte dos
sistema prisional e o estigma que pesa sobre elas. pressupostos sobre os quais novos textos são cons-
Há[ ... ] uma dissimulação do problema. Ao invés de truídos. Essa circular de condomínio é um exemplo
se reconhecer a estrutura que desagrega parcelas da disso. (RESENDE, 2008, p. 88, grifas nossos).
população, impedindo a coesão social, como sendo
o problema a ser enfrentado, focaliza-se como pro- Podemos dizer, portanto, que os discursos que aparecem
blema a permanência do grupo em um local que materializados no texto da circular - e que podem ser identifi-
causa incômodo a parcelas da população incluídas cados em análise textualmente orientada, já que deixam marcas
socioeconomicamente. [ ... ] Além disso, quando se na materialidade linguística- não são do síndico, não são por ele
formula como sendo o problema a ser enfrentado a criados, mas estão socialmente disponíveis para diversas reprcsen-
permanência do grupo "em um só lugar", reifica-se tações, transitando em diferentes textos, que, por sua vez, sempre
sua condenação ao nomadismo: não se configura materializam algum gênero situado ou uma combinação de gêne-
como um problema sua situação de rua, mas sua ros. Os gêneros situados, ainda, alçam o potencial mais abstrato
fixação prolongada em um mesmo local, o que dos pré-gêneros (por exemplo, narração, descrição, argumentação)
obriga os/as residentes na região ao convívio com em sua composição, o que implica a seleção de elementos do
suas misérias diárias. (RESENDE,2008, p. 85-86). potencial ainda mais abstrato, que é a língua.

A análise interdiscursiva de um texto deve identificar os discursos Considerações finais


materializados na representação, os modos como são articulados e seu
funcionamento em relação às questões de poder investigadas. O texto Qyem escolhe desenvolver pesquisas em Análise de Discurso
não se confunde com os discursos, já que por texto entendemos toda Crítica deve saber, desde o início, que o trabalho está longe de
instanciação eontextualizada, particular e individual, e por discur- ser fácil. A natureza interdisciplinar da ADC exige estudo para
sos entendemos modos de representação compartilhados socialmente, além do campo da Linguística do discurso. A necessidade de
e que são alçados, materializados em textos. Ainda sobre os discursos empreender análises contextualizadas exige esforço, e muitas
articulados no texto que nos serve de exemplo, conforme Resende: vezes incorpora o trabalho etnográfico, que demanda dedicação

210 211
I7.ABEL MAGALHÀI::S, ANDRÉ R. MAHTJNS E VIVIANE DE M. RES[]\lDE

e tempo. A necessidade de análises textualmente orientadas exige


domínio das ferramentas, o que inclui muitas categorias linguís-
ticas articuladas a complexos conceitos teóricos.
Além disso, a ADC é muito exigente em relação ao apro-
fundamento teórico. Há conceitos que podem confundir quem
inicia seus trabalhos nesse campo interdisciplinar. Como vimos,
é muito comum a confusão entre as noções de texto e discurso,
por um lado, e texto e gênero, por outro, o que tem implicações
teóricas graves nos trabalhos empíricos -porque está associada Introdução
à falta de compreensão do funcionamento social da linguagem.
Neste capítulo, propomos examinar algumas contribuições dos
estudos críticos do discurso. Focalizando a relação entre linguagem
e poder nas práticas socioculturais, esses estudos abordam temas
relacionados à crítica social. Diversos são os grupos sociais atual-
mente em situações de exclusão. Alguns são excluídos com base no
gênero, outros devido à classe social, à identidade étnico-racial ou
por não possuírem letramentos socialmente valorizados. Os usos
da leitura e da escrita são situados e classificam as pessoas na hie-
rarquia social, servindo muitas vezes como instrumentos de poder.
Essa perspectiva de estudos críticos da linguagem destaca o poder
no discurso, a maneira como os elementos textuais representam
(discurso) e (res)significam grupos em situações de exclusão (iden-
tidades) para manter relações assimétricas de poder. Este capítulo
defende o estudo do discurso como forma de debater e criticar a
exclusão praticada e representada nas práticas socioculturais.
Fairclough (2003, p. 202) sugere que a Análise de Discurso
Crítica seja "uma forma de pesquisa social crítica" 1 Segundo o
1
Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada por IzabellVIagalhães no
Congresso Internacional de Texto e Cultura, organizado pelo Programa de Pós~
~Graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, em
2008, c publicada, com o título "Textos c práticas socioculturais- discursos, letra-
mentos e identidades", na revista Linha D/Ígua, v. 24, n. 2, p. 217~233, 2011.1{Jdas
as traduções aqui são de autoria de Izahel Magalhães.

212
IZABEL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS E VJV!ANE DE M. RESENDE ANÁLJS[ DE DISCUHSO CRÍTICA

autor, a pesquisa social crítica pode começar com a seguinte per- Embora a mídia brasileira venha contribuindo para o ques-
gunta: "Como as sociedades existentes proveem as pessoas com as tionamento da prática de violência contra mulheres, o sequestro da
possibilidades e os recursos para vidas ricas e gratificantes; como, adolescente Eloá, e seu aprisionamento em cárcere privado seguido
por outro lado, elas negam às pessoas essas possibilidades e esses de assassinato por seu ex-namorado, em 2008, foi um espetáculo de
recursos?"Fairclough refere-se à desigualdade na distribuição de mídia televisiva que teve implicações morais (capítulo 4). Cabe per-
recursos entre segmentos das populações. guntar: até que ponto a exposição detalhada e repetida de um crime,
Contudo, é válido direcionar a mesma questão à relação de nesse caso um crime contra uma menina adolescente, não seria uma
gênero e à questão do poder. Foucault (1996) nos fala das interdições faca de dois gumes, ao mesmo tempo informando e contribuindo
da sexualidade e da política, interdições cruzadas, que se reforçam, para naturalizar a prática da violência contra mulheres?
"formando uma grade complexa que não cessa de se modificar". Como se sabe, os Direitos das Mulheres foram reconhecidos
Poder e discurso são elementos fundamentais dessa grade, internacionalmente como Direitos Humanos em 1993, na Confe-
rência de Viena (Conferência Mundial das Nações Unidas sobre
como se o discurso, longe de ser esse elemento Direitos Humanos). A intervenção do Estado brasileiro nessa
transparente ou neutro no qual a sexualidade se questão ainda é tímida, mas é preciso destacar dois momentos:
desarma e a política se pacifica,fosse um dos luga- i) em 2002, foi criada a Secretaria dos Direitos da Mulher, que,
res onde elas exercem 1 de modo privilegiado, alguns em 2003, foi transformada na Secretaria Especial de Políticas
de seus mais temíveis poderes. (p. 9). para as Mulheres; ii) em 2006, foi promulgada a primeira lei
para punir agressores, a Lei 11.340, denominada Lei Maria da
Um dos efeitos do poder nas relações de gênero é a violência, Penha (DIAS, 2011).
que se manifesta discursivamente em ameaças e insultos, e não A prática de violência contra mulheres faz parte das práticas
discursivamente em agressões físicas. Obviamente, há muitos socioculturais de gênero, que são materiais e simbólicas, incluindo
pontos de contato entre a violência simbólica, discursiva, e a física. ações, sujeitos e relações sociais, discurso, instrumentos, objetos,
Tome-se, por exemplo, a violência praticada contra mulheres por tempo e lugar,formas de consciência e valores (FAlRCLOUGH,
maridos e companheiros. De 1991 a 1999, em São Paulo, houve 2001b; MAGALHÃES, 2004; capítulo 1). Para combatê-la, é
um aumento de 41,1% no homicídio de mulheres, e o crime pas- fundamental investir em ações discursivas (por exemplo, leis,
sional é tido como o principal motivo (Pro-Aim- Programa de mas também campanhas publicitárias de conscientização) e não
Aprimoramento das Informações de Mortalidade do Município discursivas (punição) e, sobretudo, na formação de novas men-
de São Paulo). Em pesquisa do Instituto Avon!Ipsos, publicada talidades por meio do letramento, que é o uso social da leitura
em junho de 2011 no site da Agência Patrícia Galvão, 59% das e da escrita. Este capítulo propõe examinar a construção textual
mulheres entrevistadas de 31 de janeiro a 10 de fevereiro de de identidades de gênero, tomando como exemplos elementos
2011 informaram que conheciam alguma mulher que havia sido de uma notícia de jornal, que é considerada aqui um produto de
agredida pelo companheiro (DIAS, 2011). práticas socioculturais. As práticas incluem discursos, letramentos

214 i
2~
I
,.,,)!I I!.
lZJ\DEL Mi\GALHÁES, ANDRÉ R. MARTINS F: V!VJANE DE /VI. RESENDE i\NÁLJSL DE DlSCURSO Cl1ÍT!CA

e identidades femininas (MAGALHÃES, 2008, 2009). Na pró- das orações 1 ela coerência c dos esquemas narrativos,
xima seção, comentaremos sobre discurso e intertextualidade e, na dos atos de fala ou das interações próprias da con-
seguinte, sobre práticas socioculturais, letramentos e identidades. versa setnpre pressupõem que os usuários da língua
tenham conhecimento<. (VAN DIJK, 2000, p. 42).
1 Discurso e intertextualidade
Apesar de algumas diferenças entre versões da ADC, con-
Como forma de prática social, com elementos verbais e forme apontado no capítulo 1, não há dúvida de que existe mais
visuais de poderoso impacto na contemporaneidade, o discurso propriamente uma relação de proximidade. No caso de Fairclough
é uma dimensão fundamental na formação de crenças, conhe- e van Dijk, observa-se a preferência por determinados conceitos,
cimentos, valores e visões de mundo. Como já comentado nos como: poder, ideologia, desigualdade social (WODAK; MEYER,
capítulos precedentes, a ADC examina questões contemporâneas. 2009). Van Dijk (2008, 2011) dedicou-se ao estudo do papel do
Aqui, vamos focalizar a discriminação de gênero, a violência e as discurso na desigualdade social, principalmente com seus traba-
identidades (MAGALHÃES, 2005a, 2009). lhos sobre o racismo discursivo, mas é inegável a contribuição de
Também no contexto internacional, vários pesquisadores Fairclough (2001b, 2003, 2010) para a questão. Cabe destacar,
destacam-se pelo estudo de discursos contemporâneos. Fairclough ainda, a obra de Wodak, De Cillia, Reisigl, e Liebhart (1999), vol-
(1989, 1995,2000, 2001b, 2003,2006, 2010) tem-se dedicado tada para a construção discursiva da identidade nacional. O tema
à elaboração de uma abordagem teórico-metodológica para o é investigado nos trabalhos de Pacheco (2006) e Radhay (2007).
estudo desses discursos (cf a definição do conceito de discurso Portanto, precisamos considerar as contribuições da ADC em
no capítulo 1). São bem conhecidas as análises de Fairclough termos de uma relação de complementaridade.
dos seguintes discursos: os discursos políticos ligados à atuação Wodak e Chilton (2005) propõem que a pesquisa do dis-
de Margaret Thatcher c de Tony Blair (1989, 2000); discursos curso contemple quatro pontos relevantes. Vejamos cada um deles.
materializados em contextos da mídia (1995); e discursos ligados I) Considerando que a Análise de Discurso é praticada
à globalização e ao novo capitalismo (2006, 2010). atualmente em diversas partes do mundo (além da
Van Dijk (2000) defende a relação interdisciplinar entre Europa, onde se iniciou, no Oriente M.édio, na África,
discurso e cognição. Para ele: na China, nos Estados Unidos e na América Latina), há
uma demanda de uma agenda própria para diferentes
Dotar de sentido, entender, interpretar e muitas culturas, com explicitação da natureza, dos objetivos e das
outras noções [ ... ] não pertencem exclusivamente metas da Análise de Discurso Crítica em cada contexto.
ao domínio das estruturas do discurso e da interação 2) Essa "nova agenda" é interdisciplinar, o que pode ser um
social, mas também ao âmbito da mente. Por exem- problema. A interdisciplinaridadc não deve ser intui- I
m
plo, tanto as explicações abstratas como as mais tiva; precisa ser definida, de forma a produzir conhe-
concretas da ordem das palavras, do significado cimento novo. Além da integração com a teoria social,
!I

216 217 1
I
J; Ii
l7J\11EL /Vl./\C/\LHi\t:S, ANDRf. R. MARTlNS E V!VlANf. DF M. RESENDE 1\NAUSF DF Dl.SCUPSO CP.ÍT!CA

o "diálogo transdisciplinar" é necessário com investiga- às relações interdisciplinares e internacionais, em que o


dores da Ciência Política e das Relações Internacionais, termo "crítica)) é, às vezes, obscuro. A noção ((anállse de
da Psicologia, da Ciência Cognitiva e da Pragmática discurso positiva", defendida por Martin (2004), precisa
(HART,2011; WODAK,2007). Porém, não se trata de ser avaliada, pois pressupõe uma visão limitada do termo
uma agenda fechada, pois novas formas de integração "crítica,, como se fosse sinônimo de "negativa)), o que é
de conhecimentos são possíveis. um equívoco. A ADC deriva da crítica textual, passando
3) É preciso considerar as mudanças econômicas globais, as pela crítica filosófica do Iluminismo, de Kant, por Marx
mudanças climáticas, a revolução eletrônica na comunica- e pela teoria social crítica da Escola de Frankfurt. É fun-
ção, as novas tecnologias biológicas que impõem reflexão damental distinguir entre dois sentidos de "crítica", um
sobre dilemas éticos, os fundamentalismos religiosos e as referente a julgamento racional e outro ligado às práticas
novas guerras após o evento de 11 de setembro de 2001, de crítica social. É desnecessário dizer que à Análise de
os novos nacionalismos. Aqui, certo cuidado é recomen- Discurso aplica-se o segundo sentido, nunca o primeiro.
dado, pois não se trata diretamente de resolver proble-
mas, e sim de contribuir com o estudo do discurso para O método de Análise de Discurso Textualmente Orientada
questionar e problematizar o senso comum naturalizado. (ADTO) é praticado na vertente linguística da Análise de Dis-
curso, que foi influenciada pela Linguística Crítica (LC) e pela
Enquanto a Análise de Discurso Crítica (ADC) Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) (veja os capítulos 1 e
pode afirmar que promoveu conscientização em 2, neste volume). Diversos estudos na Análise de Discurso têm
importantes áreas do mundo da vida, reconheci- considerado a intertextualidade. Esse é um termo geral que se
damente em relação ao gênero, ao nacionalismo, à subdivide em interdiscursividade, que corresponde aos discursos
xenofobia e ao racismo, tópicos que até o momento e gêneros discursivos a que se recorre nos textos, e intertextua-
receberam corretamente a maior atenção e que lidade manifesta, que se aproxima da noção de polifonia. Esses
continuarão a receber atenção, questões novas e termos são de Pêcheux (1988) e Authier-Révuz (1990). O estudo
imprevisíveis surgem nos processos de mudança contemporâneo da intertextualidade deve-se, em grande parte,
histórica em diferentes partes do mundo, entre os à releitura da obra de Bakhtin.
quais se pode mencionar os que investigadores e Para Bakhtin, a enunciação depende das relações sociais,
investigadoras da ADC já conhecem, como a Aids, pois é na inter-relação social que se constrói. "A situação social
a mudança climática, a migração[ .. .]. (WODAK; mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente
CHILTON, 2005, p. xv). e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da
enunciação" (1979, p. 99, grifo do autor). É devido à inter-relação
4) A reflexão sobre os pressupostos filosóficos da Análise social que Bakhtin diz: "a palavra é uma espécie de ponte lan-
de Discurso deve ser continuada, principalmente devido çada entre mim e os outros" (BAKHTIN, 1979, p. 99). Portanto,

218 219
TZARFI. MAGAJJ-Ji'i.FS, ANDRt R. MAPT!NS f VJVJANF: DF M. RFSFNDF /\NÁLlSE DE DISCUPSO Cl1ÍTlC/\

a interação discursiva é necessariamente intertextuaL Além disso, mas que sempre implicam discursos particulares. Esses discursos
a intertextualidade atua em sentido mais amplo, construindo organizam as relações sociais de forma a reforçar poderes e privilégios.
textualmente cenários passados, presentes e futuros. É nesse sentido que Fairclough situa a análise intertextual
Essa forma de compreender a linguagem em termos de uma na ordem do discurso, que é formada de discursos c outros ele-
abordagem dialógica é conhecida no pensamento de Bakhtin mentos que se organizam segundo a dinâmica própria de um
(1997, p. 413)- "De minha parte, em todas as coisas, ouço as determinado contexto socioculturaL
vozes e sua relação dialógica". Na obra Ihe dia!ogic imagination
(1981, p. 259), Bakhtin sugere que se dê atenção à "vida social Enquanto a análise linguística mostra como os
do discurso [ ... ] nos espaços abertos das praças públicas, ruas, textos recorrem seletiva1nente a ordens do dis-
cidades e povoados, dos grupos sociais, das gerações e das épocas". curso - as configurações particulares de práticas
Portanto, o estudo da intertextualidade não deve restringir-se convencionais (gêneros, discursos, narrativas etc.)
a determinados textos, podendo focalizar textos diversificados. que estão disponíveis a produtores e intérpretes de
Koch, Bentes e Cavalcante (2008) separam a intertextualidade textos em circunstâncias sociais particulares [ .. .1
da prática sociocultural, o que limita o potencial analítico do con- a análise intertcxtual chama atenção para a depen-
ceito. Discordamos das autoras porque, ao contrário da concepção dência que têm os textos da sociedade e da história
que elas defendem, entendemos que os textos são elementos dos na forma dos recursos que são disponíveis na ordem
eventos sociais. Consequentemente, para serem compreendidos, do discurso. (FAIRCLOUGH, 1999, p.184).
precisam ser situados nos eventos e nas práticas sociais e culturais.
De forma mais geral, os textos são contribuições para a comuni- É a inter-relação entre textos e discursos na ordem do dis-
cação que podem ser repetidas, aceitas ou problematizadas. curso que constitui as interdições da sexualidade, construindo
O trabalho de Smith (1990, p. 4) acrescenta ao estudo da significados violentos, excludentes ou discriminatórios, repre-
intertextualidade a relevância do estudo de textos para compre- sentações, crenças e identidades.
ender as "relações de mando". Fairclough (2003) distingue dois tipos de relações nos tex-
tos: in praesentia- sintagmáticas, entre elementos presentes nos
O texto é analisado por sua forma caracteristica- textos, incluindo a semântica, a gramática, o léxico e a fonologia;
mente textual de participação nas relações sociais. e relações externas; in absentia- paradigmátieas, entre elementos
O interesse está na organização social dessas rela- presentes e outros ausentes. "O que é 'dito' em um texto é 'dito'
ções e em penetrá-las, descobri-las) expor seu inte- em relação a um lastro cultural do 'não dito'. Como a intertex-
rior, por meio dos textos. tualidade, os subentendidos ligam um texto a outros textos, ao
'mundo dos textos"' (FAIRCLOUGH, 2003, p. 40).
As relações sociais são mediadas intertextualmente, pois os textos
recorrem sempre a outros textos, nem sempre claramente definidos,
Há três tipos de subentendidos: existenciais ("sobre o que
existe))), proposicionais C'sobre o que é, ou pode ser, ou serán) c I
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220 221
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lZt\BEL l\·1AGAUIÃIS, AJWRf R_ ~'lARTINS I V!V!ANF: DF ,'<·i. WC2.INDE ANALISE DE DISCURSO CFiTTCA

avaliativos ("sobre o que é bom ou desejável") (FAIRCLOUGH, no pescoço e outro no peito, ontem. Tragédia já
2003, p. 55). Subentendidos podem criar terreno comum ligado havia sido anunciada.
ao poder (MAGALHÃES, 1995).
Vamos, agora, apresentar uma breve análise de uma notícia O vocábulo "violência" é desenvolvido na oração que se segue,
de jornal a respeito de um crime contra uma mulher praticado por "levou um tiro no pescoço e outro no peito", e no item lexical
seu ex-marido, em cidade próxima a Brasília, no Distrito Federal. "tragédia", no período seguinte, ligando-se também à manchete:
"Homem atira na ex-mulher e se mata". É, portanto, um vocábulo
1
1iomem atira na ex-nzulher e se mata" (Correio Braziliense, 26 de significativo tanto internamente quanto na relação com o con-
janeiro de 2002, p. 13, assinado por Paola Lima).2 texto local, pois a página do jornal aborda assuntos das cidades
do Distrito Federal. Os itens lexicais estabelecem interdiscurso
Abordando um crime passional, o texto destaca o item lexi- com os discursos da família tradicional e da maternidade ("foi à
cal "violência" na página do jornal dedicada a reportagens sobre as casa do ex-marido em Santa Maria, a pedido dele, buscar o filho
cidades do Distrito Federal e entorno. Trata -se de um vocábulo caçula"). Além dos discursos da família e da maternidade, o tema
que situa o texto não apenas localmente, na situação específica do do texto (sobre um crime passional) e uma foto que destaca o
jornal, mas também na prática sociocultural de gênero no Brasil carro da polícia estabelecem forte ligação com o discurso jurídico
(MAGALJ-IÃES, 2008, 2009). Como já foi comentado na Introdu- e o discurso policial (quadro 9.1, seção "Práticas socioculturais,
ção deste capítulo, a violência contra mulheres no país exigiu pressão letramentos e identidades", a seguir).
internacional ao governo, o que resultou na Lei Maria da Penha Nota-se aqui a intertextualidade sintagmática, em "Tragédia
(Lei n° 11.340/ 2006). O nome da lei é uma referência a Maria já havia sido anunciada", com o início do texto: "Já encomendei
da Penha Maia Fernandes, mulher cearense que sofreu do marido o seu caixão. É branco." O diálogo é emoldurado pela notícia,
duas tentativas de homicídio, ficando paraplégica. Após 18 anos do que se situa no contexto da imprensa escrita. Confere um tom
crime, em 2001, a Comissão Internacional de Direitos Humanos dramático à notícia, mas principalmente tem como efeito a bana-
acusou o Estado brasileiro de negligência, recomendando medidas lização de uma forma injustificável de violência. Como não há
para políticas públicas de enfrentamento do problema (DIAS,2011). um questionamento do ato de matar, o poder de vida e morte na
fala do agressor sobre a vítima mantém-se incólume. Compre-
Violência endemos aqui como as formas do discurso indicam "tendências
Professora foi à casa do ex-marido em Santa Maria, sociais estáveis características da apreensão ativa do discurso de
a pedido dele, buscar o filho caçula e levou um tiro outrem que se manifestam nas formas da língua'' (BAKHTIN,
1979, p. 132). A notícia reforça a fala atribuída ao agressor.
2
O exemplo é da pesquisa Narrativas da violência, coordenada por Izabel1Vlagalhãcs Além disso, há intertextualidade sintagmática com dois 1t
no Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade (Nelis), do Centro de Estudos
elementos imagéticos: a foto da mulher, entre as duas primeiras fu
Avançados Multidisciplinares (Ceam) da Universidade de Brasília (UnE). Colaborou
na organização do corpus desta pesquisa Sandro Xavier da Silva. colunas da notícia, seguida da frase "Ana havia se mudado para I
I"
222 223 li
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l?ARF:l, /Jlf\CAL.l-li\l:S, f,NDPL F. _MI\RTIN::'. [ VlVTI~NF: DE fi',. PCSCNDE f\.N.11.L!SE DE DlSCUPSO CRÍT1C/\

fugir das ameaças", e a foto da rua, com o carro da polícia e o corpo Há mais dois parágrafos, um com o detalhamento da ação
do homem no chão. Dessa forma, a notícia incorpora mudanças do crime e o outro com a busca de ajuda pela irmã e o filho,
ocorridas nos jornais nas últimas décadas, especificamente em e com o suicídio.
relação ao uso de imagens em notícias, caracterizando textos
multimodais (KRESS, 1996). Teste feito, Cícero esperou pela ex-mulher. Pouco
De modo geral, o texto explora relatos diretos e indiretos. depois do meio-dia ela chegou, acompanhada da irmã
Logo após o início do texto em relato direto, há dois parágrafos Marilene e de um sobrinho. Cícero os recebeu nor-
que apresentam o crime e a situação do casal, com relatos indi- malmente. Até mostrou à cunhada os progressos na
retos: "A ameaça já era conhecida"; "Costumava dizer aos amigos obra de construção da casa.Assim que ficou a sós com
c parentes de Ana que iria matá-la. Chegou a ameaçá-la pelo Ana, puxou o revólver calibre 38. Ela ainda tentou
telefone celular." A cristalização do sentido de "a ameaça", na correr, mas foi atingida. Levou um tiro no pescoço,
pressuposição linguística, sugere o poder do ex-marido sobre a outro no seio direito. Ferida, caiu no meio da rua.
mulher, mesmo encontrando-se ela separada do agressor. Marilene e o filho saíram em busca de ajuda. Cícero
Os dois parágrafos seguintes alternam relato direto e relato foi ao lugar onde a ex-mulher estava. Ajoelhou-se
indireto. ao lado dela e deu um tiro na cabeça. Seu corpo
caiu por cima do de Ana. O socorro chegou pouco
Há um mês, Ana mudou-se para Goiânia. Qyeria depois. Ana está em observação na neurocirurgia
ficar longe do ex-marido e, por isso, não lhe contou do Hospital de Base do Distrito Federal. Apesar da
onde morava[ ... ] "Nós a aconselhamos a não brigar bala alojada no pescoço, próximo à coluna cervical,
pela gnarda do menino. Era melhor entregar o caso e de ferimentos no rosto e no seio, está consciente.
para a justiça", contou a irmã de Ana, Marilene Até o final da tarde a família ainda não tinha infor-
Marques. Ana tentou levar o filho algumas vezes, mações sobre o enterro de Cícero.
mas Cícero a impediu. Da ílitima vez, os dois dis-
cutiram e ele chegou a bater nela. Anteriormente nesta seção, discutimos diferentes tipos de
Ontem Cícero parecia, enfim, ter cedido. Cerca de subentendidos: existenciais- sobre o que existe; e proposicio-
1Oh, ligou para a Ana, que viera a Brasília resolver nais - sobre o que é, pode ser, ou será. Aqui são significativos
problemas com o banco. Pediu a ela que levasse o filbo os subentendidos proposicionais no anúncio do crime e nas
para passar uns dias em Goiânia. O único sinal de ameaças, e o subentendido existencial em: "Cícero foi ao lugar
que algo estava errado foi percebido u1n pouco antes, onde a ex-mulher estava. Ajoelhou-se ao lado dela e deu um
por uma vizinha. "Ouvi um tiro e perguntei o que era tiro na cabeça. Seu corpo caiu por cima do de Ana." Note-se o
aquilo. Ele disse que estava fazendo um teste com o implícito de arrependimento no ato de ajoelhar-se e na ruptura
revólver.", contou a 1noça, que não quis se identificar. com a vida.
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!ZABF:L MACALHAES, ANDHE R. JVli\RTlNS E V!V!ANE DE M. RESF:NDE ANALISE DE DISCURSO CRÍTICA

Os subentendidos sugerem fortemente uma prática sociocultural obra de Larraín (2001). Para o autor chileno, as identidades pes-
em que as relações de gênero são fechadas, com um parceiro agres- soais dependem de identidades coletivas de gênero, classe social,
sor, mas sem perspectivas quer para a mulher, quer para o homem. etnia, sexualidade, nacionalidade, entre outras. Na perspectiva das
Como essa prática de gênero ainda está arraigada entre nós, caracteri- Ciências Sociais, Ortiz e Larraín entendem que as identidades
zando-se como violação dos direitos humanos, é preciso questioná-la são plurais, mas se constroem em relações de poder.
com o debate dos discursos conservadores (MAGALHÃES,2009). Como sugere Magalhães (2010b ), não há como separar o
debate sobre as .identidades de questões do discurso. Outros auto-
2 Práticas socioculturais, letramentos e identidades res, como Joseph (2004) e Edwards (2009), relacionam identidade
e linguagem.Joseph (2004, p. 13) defende que identidade e lin-
A crítica a esses discursos passa pela mudança nas crenças guagem são "inseparáveis". De acordo com Edwards (2009, p. 20):
das pessoas em relação ao gênero. Em parte, isso se realiza pela
força da lei, a Lei Maria da Penha. Contudo, uma mudança cul- De fato, uma vez que a linguagem é fundamental
tural é muito complexa, envolve a construção de novos valores e para a condição humana, c como muitos argumen-
de uma consciência do outro, um processo educacional no sen- taram que é a característica distintiva mais impor-
tido amplo. A mudança cultural pode estar ligada à valorização tante de nossa espécie, é possível dizer que qualquer
das mulheres. Considerando que as mulheres frequentemente estudo da identidade deva incluir algumas consi-
abandonam os estudos para cuidar da família, cabe investigar derações sobre a linguagem. (Grifo no original).
os usos sociais da leitura e da escrita (letramentos) por elas e o
acesso a leituras e escritas socialmente prestigiadas. Essas últimas A relação entre linguagem como discurso e identidade jus-
representam uma forma de poder (MAGALHÃES, 2005c). tifica-se porque nos dois casos estamos falando de dimensões
De acordo com Meurer (2004), nas práticas socioculturais das práticas socioculturais.
há uma relação entre identidades, normas, recursos e estruturas As práticas socioculturais são formadas de dimensões discur-
sociais. Dessa forma, mudanças nas práticas de gênero que foram sivas e não discursivas, que interagem umas com as outras, como
analisadas aqui estão ligadas a mudanças nas leis e nas identí- discursos, letramentos e identidades. Os discursos apresentam
dades, mas também nos recursos e nas estruturas sociais, como uma determinada visão do mundo, podendo, portanto, contribuir
os papéis de marido e mulher. A diversificação dos letramentos para letramentos e identidades (quadro 9.1, a seguir). Em estudo
significa novos recursos e novas influências para as identidades. de Magalhães (2008), foram analisados quatro discursos em rela-
Sugere Ortiz (1994, p. 7) que as identidades são definidas ção às identidades femininas: o discurso da família tradicional,
em relação a algo exterior, pois as identidades são diferenças. o discurso da escola, o discurso do afeto e o discurso profissional.
Dizer que somos diferentes, no entanto, não é suficiente; pre- Esses discursos de gênero produzem identidades femininas
cisamos especificar em que nos identificamos. A concepção de heterogêneas e metamorfoseadas. Marcadas pelo poder, como
identidade defendida por Ortiz tem pontos em comum com a ocorre na situação do texto analisado, as identidades tradicionais

226 227
[ZAREL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MARTINS E VIVIANE L)[ M. RESENDE ANÁLJSE DE D!SCURSO CHÍT!CA

são construídas por discursos conservadores (MAGALHÃES, Isso fica claro na seleção das fontes citadas; por exemplo, o texto
2009). Por exemplo, se Ana tivesse feito uma denúncia, poderia ter é iniciado com a citação do agressor em relato direto (seção 1).
evitado o desfecho trágico ela sua história. Porém, as iclenticlacles
0!-1adro 9.1: Práticas socioculturais
tradicionais podem coexistir com iclenticlacles profissionais e com
iclenticlacles metamorfoseaclas. Na notícia analisada, a vítima, DISCURSOS LETRAMENTOS IDENTIDADES
identificada como professora e ex-mulher elo agressor, transita família tradicional Mudanças no jornal Tradicionais
Maternidade Texto escrito e imagem Máe
nos três grupos iclentitários (quadro 9.1).
Jurídico (Fotos da vítima c da rua) Filho
Nas práticas socioculturais, conforme Thompson (1998b), Policial Irmã
situam-se as práticas ele letramento ela imprensa, que passaram Imprensa Vizinha
Agressor
por grandes transformações com o advento elas mudanças tecno-
Profissionais
lógicas, como é indicado na quadro 9.1. Street (1984) defende os Professora
conceitos ele "prática ele letramento" e ele "múltiplos letramentos", Metarnorfoseadas
Ex-marido
que são instrumentais para a análise dessas mudanças. Práticas ele Ex-mulher
letramento são matrizes culturais amplas, "com formas particulares
ele pensar e ele realizar a leitura e a escrita em contextos culturais" A interdiscursividade estabelecida na notícia reforça um
(STREET,2000, p. 22). Qyanto ao conceito de múltiplos letramen- estado de coisas que é altamente prejudicial às mulheres, estabele-
tos, relaciona-se à concepção da cultura como "um processo que é cendo elos entre posições conservadoras (quadro 9.1).Além disso,
contestado, não um inventário dado de características" (STREET, a repetição ele itens lexicais, como "ameaça", que tem o pressu-
2000,p.19). Para Street (2000,p.19), "cultura é um verbo". Entender posto ideológico de que existe ameaça, contribui para cristalizar
as práticas ele letramento da imprensa nesses termos significa, entre posições antagônicas: de um lado, o poderoso agressor; e de outro,
outras coisas, examiná -las como processos dinâmicos, com uma a vítima indefesa. A intertextualidade cria a materialidade tex-
heterogeneidade ele discursos, letramentos e identidades. tual adequada às posições estabelecidas pela interdiscursividacle.
Em decorrência ela mudança dos "recursos representacio- Vamos examinar os parágrafos iniciais da notícia.
nais", a produção e a leitura de reportagens de jornais atualmente
demandam a relação entre texto escrito e imagem (fotos, desenhos, "Já encomendei o seu caixão. É branco."
figuras, gráficos, mapas, etc.). Para Kress (1996, p.18), "os recursos A ameaça já era conhecida pela família da professora
representacionais constituem tecnologias altamente específicas Ana Costa Lima Casado, 30 anos. Separada há quatro
[ ... ],que capacitam em determinadas direções, e que impedem em meses do marido, Cícero Lima Casado, 30 anos mais
outras." Alguns desses impedimentos estão relacionados à incor- velho, ela sofria com a necessidade que ele tinha de
poração de discursos conservadores e mesmo discriminatórios nas aceitar o fim do relacionamento e com as ameaças que
práticas de letramento da imprensa (MARTINS, 2007, 2011). fazia. Ontem pela manhã, a história acabou em morte.
Cícero atirou duas vezes na ex-mulher, na porta de

Ii
_________________...........___________________
228 229

I,
lZABEL MACALHAES, ANDEÉ R. MARTINS E VJVJANE DF M. RESENDE /\NÁLJSF DE DJSCURSO CR(T!CA

sua casa, na quadra central de Santa l\llaria. Depois, a imagem. Porém, a imprensa reforça a identidade do agressor e
suicidou-se com um tiro na cabeça. Ana sobreviveu a violência contra mulheres, contribuindo para naturalizar atos
c está internada no Hospital de Base. de violência. As relações interdiscursivas e intertextuais reforçam
O casal ficou junto 14 anos e teve quatro filhos. a assimetria nas relações de gênero.
Ana decidiu se separar, por não aguentar mais as brigas
por ciúmes. E levou com ela as duas filhas mais velhas, Considerações finais
com idades entre 10 e 13 anos. O caçula, de sete anos,
ficou com o pai. Cicero, porém, não se conformou. O estudo dos textos nas práticas socioculturais demanda
Costumava dizer aos amigos e parentes de Ana que aproximação entre Linguística e Ciência Social. Como sugere
iria matá~ la. Chegou a ameaçá~la pelo telefone celular. Kristeva (1986, p. 40), "um texto não pode ser apreendido ape~
nas pela linguística". Citando Bakhtin, Kristeva nos fala de uma
A narrativa da história do casal anterior ao crime confere "ciência trans!inguística, que, desenvolvida na base do dialogismo
unidade à reportagem, construindo um todo, no qual se encai ~ da linguagem, nos tornaria capazes de compreender relações inter~
xam relato direto, relato indireto, pressuposições c subentendidos textuais (1986, p. 40, grifo do autor)". Esse é um caminho a ser
(figura 9.1). O caráter único da notícia é obtido pela combinação seguido em futuros trabalhos.
dessas unidades "subordinadas, mas relativamente autônomas" Além disso, é preciso dar continuidade ao estudo das identi~
(BAKHTIN, 1981, p. 262). dades de gênero nas práticas socioculturais. Aqui, o foco incidiu
sobre a notícia de jornal, na qual foram examinados os concei~
Figura 9.1: Notícia sobre violência contra mulher tos de discurso, letramento e identidade na perspectiva crítica.
INTEIIDISCURSIVIDADE A principal conclusão do capítulo é que as inovações nos recursos
representacionais da imprensa estão em descompasso com os
Família tradicional f--> Imprensa (Notícia) f--> lVIaternidadc ·<->Jurídico B Policial
discursos citados em reportagens sobre violência contra mulheres.
Entretanto, como discutimos nos capítulos 1, 4 e 6, a análise
INTERDISCURSIVJDADE
textual é um método de estudo do discurso que deveria ser com~
Narrativa+-? Relato Direto <-·-> Relato Indireto~·-> Pressuposiçáo +-? Subentendidos
plementado pela pesquisa de natureza etnográfica. Qwndo dize~
mos que o discurso é uma dimensão das práticas sociais é porque
A análise da notícia aponta a natureza dinâmica das práticas pensamos que elas devem ser investigadas, constituindo o foco dos
socioculturais, com a inter~relação entre discursos, textos e vida nossos estudos. Para a análise das práticas, a metodologia adequada
social. As práticas de gênero estão em processo de mudança, é uma combinação da análise textual e dos métodos da pesquisa
da mesma forma que os discursos e as identidades. A imprensa etnográfica, que incluem, conforme o capítulo 4: a observação parti~
contribui para novas experiências na produção e na leitura de cipante, entrevistas semiestruturadas ou informais, artefatos (textos,
reportagens e notícias em que há mescla entre o texto escrito e documentos, objetos), notas de campo, diários de participantes.

230 231
itt[
CONCLUSÃO

A ADC, como teoria e método, possibilita examinar a lin-


guagem como discurso, sua construção e possibilidades de uso em
contextos sociais particulares, e, valendo-se desse conhecimento,
promove a reflexão sobre situações sociais e políticas específicas,
contribuindo para a crítica e mesmo para a mudança, a depender
das condições sociais e históricas. Ao cooperar com outras áreas
do conhecimento, recebendo e fornecendo contribuições teóricas
e metodológicas, ela cresce como um instrumental científico e
político relevante no processo de mudança social. Convém lembrar,
porém, que é indicado definir as relações interdisciplinares especí-
ficas em cada caso, pois são complexas, exigindo que se verifique
a compatibilidade entre teorias e m étodos postos em relação.
A renúncia explícita a uma ilusória neutralidade é cons-
titutiva da ADC. Não há como pensá-la de outra forma. É no
marco legal da democracia, da luta pelos direitos humanos, pelo
fortalecimento da cidadania e pelo apoio a grupos minoritários
e em desvantagem na sociedade, na perspectiva política, social
e representacional, que a ADC atua e propõe uma contribuição
(capítulos 1, 3, 5 e 9). Com ela, os esforços em prol da mudança
social em contextos em que há m arginalização e discriminação
de grupos por razões étnico-raciais, de gênero ou de classe social
ganham um aparato científico, posto para refletir em favor desses
grupos e para contribuir com um conhecimento especializado
sobre a linguagem e suas formas de manifestação na sociedade.
IZABEL MAGALHÃES, ANDRÉ R. MART!NS E VIVTANf DF M. RFSENDE 1\NÁUSF. DI': D!SC\IRSO CRÍTlCf\.

Trata-se de elementos para identificar os sentidos ideológicos que outras áreas podem padecer do mesmo problema, a verdade
que atuam para a manutenção do status quo e, por conseguinte, não se opõe necessariamente à inverdade. Como registra Shuy
questioná-los com a mobilização de sentidos em favor de uma (1993, p. 136), à pergunta "Você estava recebendo medicação e
representação positiva em discursos de poder e prestígio social, ouviu uma opinião médica?" feita no Tribunal do Júri, se a tes-
como o midiático (capítulo 2). temunha estava tomando remédio sem orientação médica, não
Entretanto, não é demais lembrar um ponto vulnerável. Ape- há como responder sim ou não. Nesse caso, a defesa ou acusação
sar de toda a diversidade e riqueza das possibilidades de atuação pode recomendar à testemunha responder "parcialmente sim,
da ADC, pesquisadores e pesquisadoras que a ela recorrem como parcialmente não", mas pode fazer outra recomendação: "sim ou
instrumento de pesquisa e reflexão, uma vez que é um campo não, nunca ambas as respostas".
acadêmico-científico, devem estar conscientes das limitações do A respeito desse ponto, Shuy (1993) desenvolveu o conceito
instrumental, evitando expectativas desmedidas. Trata-se de uma de "contaminação conversacional", que significa o efeito exer-
teoria científica e, como toda teoria, está em construção, sujeita cido por um interlocutor, ou interlocutora, sobre participantes
a reformulações e aperfeiçoamentos. Como método, também do evento social, mediante a introdução de tópicos (aquilo de
comporta ajustes, adequações e contextualizações. Cada conjun- que se fala), como também as respostas dadas aos tópicos.
tura traz especificidades que demandam respostas que podem
aplicar-se àquele contexto c não a outro. Como vimos, a ADC Não há como linguistas (ou, tanto quanto sei,
pode instrumentalizar um trabalho de reflexão e pesquisa que quaisquer outras pessoas) penetrarem nas mentes
não se esconde sob as facilidades de uma pretensa objetividade, de falantes e determinarem quais são realmente
mas certamente a ADC, como campo científico, não deve ser suas intenções exatas. Mas quando há uma gravação
confundida com ativismo político, embora praticantes de ADC do evento em questão, temos acesso a importan-
possam, é claro, conjugar suas atividades acadêmicas a diversas tes pistas dessas intenções, da mesma forma como
áreas de ativismo, uma experiência fomentando a outra. A luta fragmentos de cerâmica podem fornecer a arque-
política desenvolve-se primordialmente em âmbitos outros, tais ólogos e arqueólogas pistas sobre as civilizações
como o parlamento, o governo, a justiça, os movimentos sociais, antigas. (SHUY, 1993, p. xvii). 1
a esfera pública, ensejando iniciativas político-sociais e político-
-econômicas. Nesses espaços, o conhecimento formulado em É por isso que em ADC não devemos basear análises em
pesquisas discursivas pode ser útil no refinamento dos debates. supostas intenções, mas nos traços que permanecem na materia-
É preciso discutir também a posição de quem analisa, uma lidade textual, sempre cotejados com a complexidade da prática
vez que frequentemente análises discursivas são limitadas, base- social particular de que os textos analisados participam. Na obra
adas apenas na interpretação da própria pessoa que faz a análise, Language crimes (1993), Shuy analisa casos concretos em que
sem preocupação com o embate de interpretações. Tomando-se
o exemplo emblemático do discurso jurídico, mas sem esquecer 1
Tradução de Izabel Magalhães.

234 235
emitiu pareceres em processos judiciais, com base na análise lin-
guística de gravações. Portanto, a verdade é algo relativo, muitas
vezes uma construção discursiva e ideológica (capítulo 2).
Por esse motivo, é fundamental explicitar posições assumidas
na análise, justificando-as com argumentos analíticos e éticos.
Uma posição analítica pode ser sustentada em determinadas
condições das práticas sociais, mas não em outras. De acordo
com Fairclough (2010), baseado no Realismo Crítico de Bhaskar,
a análise discursiva deve abordar duas relações transformacionais: ALTHUSSER, L. Ideology and ideological state apparatuses.
entre estruturas e práticas sociais, e entre práticas e eventos sociais In: . Lenin and philosophy and other essays. Londres: New
(estrutura e estratégia, pois as práticas são níveis intermediários Left Books, 1971.
entre estruturas e eventos sociais: capítulos 4 e 6).
Nesse sentido, a ADC só tem a ganhar em termos de con- _ _ _ .Aparelhos ideológicos do estado. Nota sobre os aparelhos
sistência analítica e validade na relação complementar com a pes- ideológicos de Estado. Trad. W. J. Evangelista et ai. São Paulo:
quisa de natureza etnográfica (parte 2). Portanto, recomendamos a Graal, 1992.
ênfase nessa relação. Não é recomendável discutir práticas sociais ANDI. Agência de Notícias dos Direitos da Infância. Andi e
sem conhecimento efetivo das práticas, o que se pode lograr Instituto WCF anunciam vencedores do Jo Concurso Tim Lopes de
mediante métodos etnográficos, como a observação participante Investigação Jornalística. Disponível em <http:l/www.andi.org.
e o registro de notas de campo (capítulo 4). É esse conhecimento br/noticias/tcmplate_pantas.asp?articlcid~13791&zoneid~187>.
que vai não apenas contribuir para a validade da pesquisa, mas Publicado em ago. 2006. Acesso em: 22 out. 2009.
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Izabel~agalhães

Doutora pela Universidade de Lancaster, ReinoU nido (1985),


Izabel Magalhães (mizabel@uol.com.br) é atualmente professora
visitante na Universidade Federal do Ceará. Ex-coordenadora do
Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade (Nelis/Ceam) e do
Programa de Pós-Graduação em Linguística da UnB. No Nelis,
fundou o periódico Cadernos de Linguagem e Sociedade, em 1995;
também é fundadora do curso de doutorado em Linguística da
UnB, em 2000. Desenvolve pesquisas sobre discurso, letramento
e identidade; também se interessa pela comunicação médico-
-paciente e pela formação docente. Atualmente, trabalha no pro-
jeto "O diálogo como instmmento de intervenção de profissionais
da saúde na relação com pacientes", financiado pelo PPSUS/
CNPq/Funcap/Sesa!Edital 3 - 2012. É bolsista de produtivi-
dade em pesquisa do CNPq. Seu livro mais recente: Discursos e
práticas de letramento: pesquisa etnográjica eformação de professores
(Campinas: Mercado de Letras, 2012). Publicou, também, Práti-
cas identitárias: língua e discurso (com Marisa Grigoletto e Maria
José Coracini. São Carlos: Claraluz, 2006) e As múltiplas faces
da linguagem (Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996).

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JZJ\l3EL MACALHAJ::S, ANDHJ:: R MARTJNS f VJVJAN[ OF: M. RfSENDE ANALISE DE DISC-;URSO C!~ÍTICA

André Ricardo Martins livros Análise de Discurso (para a) Crítica: o texto como material de
pe.rquisa (em coautoria com Viviane Ramalho. Campinas: Pontes,
Jornalista, graduado pela Universidade Federal doMara- 2011), Análise de Discurso Crítica e Realismo Crítico: implicações
nhão, André Ricardo Martins (andre33@uol.com.br) obteve o interdisciplinares (Campinas: Pontes, 2009) e Análise de Discurso
grau de mestre pela Faculdade de Comunicação da Universi- Crítica (em coautoria com Viviane Ramalho. São Paulo: Contexto,
dade de Brasília (UnB), em 1992, quando defendeu a disser- 2006; reimp. 2009, 2013). Seus interesses de pesquisa envolvem a
tação O discurso da imprensa sobre os militares. Em 2004, com a pesquisa etnográfica participativa com movimento sociais, a Aná-
tese A polêmica construída - racismo e discurso da imprensa sobre lise de Discurso na mídia e o jornalismo cidadão - em relação a
a política de cotas para negros, concluiu seu doutoramento em contextos de extrema pobreza e de mobilização da sociedade.
Linguística pelo então Departamento de Linguística, Línguas
Clássicas e Vernáculas da UnB, com passagem pela Universidade
Pompeu F abra, em Barcelona (Espanha). A tese foi publicada
na íntegra pela editora do Senado Federal em 2011. Membro do
Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade, da UnB, André
R. N. Martins tem investigado- baseado na Análise de Discurso
Crítica -tópicos relacionados a racismo, minorias, imprensa e
mídia. André Ricardo trabalha como repórter e apresentador na
TV Senado desde 1999.

Viviane de Melo Resende

Doutora pela Universidade de Brasília (2008), Viviane de


Melo Resende (resende.v.melo@gmail.com) é professora adjunta
do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas
da Universidade de Brasília, pesquisadora do Programa de Pós-
-Graduação em Linguística, na área de Linguagem e Sociedade, c
do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e
Cooperação Internacional, na linha de Desenvolvimento e Políticas
Públicas. É coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Linguística (2014-2016). Foi coordenadora do Núcleo de Estu-
dos de Linguagem e Sociedade (www.nelis.unb.br) do Centro de
Estudos Avançados Multidisciplinares (2009-2014). Publicou os

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Este livro foi composto em Adobe Caslon
Pro 12, no formato 140x210 mm, e impresso
no sistema 1fiet, sobre papel offset 75glm2 ,
com capa em papel-cartão supremo 250 g/m2 •

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