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lnés Dussel

Marcelo Caruso
A INVENÇÃO
DA SALA DE AULA
UMA GENEALOGIA
DAS FORMAS DE ENSINAR
Tradução: B&C Rev isc7o de Textos S/C Lldc1.
Revisão técnica: Ana JHaria Faccioli de Camargo
Coordenação: Ulisses F Araújo
:Slll Moderna
4:1 EOICIONES SANTllLANA. 2002
: Ili Moderna
COORDENAÇÃO EOfTORtAl J1N.' C u lo.. d1..· l'.;1,1111
fRAOUCÁO E REVISÃO l\..~C..: Hc.·\1 ...\t1 t.11..· T,·s111... :-.1C 1..ul.1
COOROfNAÇÀO OE PROOUCÃO GRAF ICA l\.'rn.11Kl11 D .1111 , l'h·~;111
COORDENACÂO DE REVISÀO f _"4t,.' \ .nn \ ' u:1r.1 IA"tl11 J1
REVISÃO 'l'í!-!•º Nul.,.,:rto Tout·'
fDICÃO OE ARTE HLl":tnltl l'11\l :1tt..-l1i111
PROJETO GRÁflCO :\n:1 .\1.111.1 <11111fri
CAPA Hi1...mlo l10...1:1n : l11111
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PESQUISA ICONCXJRÀFICA :\n .1 l.t K1.1 St1.1c1..·,
DtACRAMACÂO t:nrKl lk!'t.1 ~l11n1l..-;1 .\h.·)'l..'r
TRATAMEN10 OE VMGENS .-\ml·r"·o J1..":>u~ . .
SAÍDA OE fllMES lldio p d1..• S.1t 11.1 1:ilh11. M:m11 1 l llth:pt~1 l\:110010
COOROENA(ÂO DE PRODUÇÃO lNOUSTRIAt \\ ,,.,, ,,, \p,lfl'• id1' T11 ~ 1 m·
li.i\PRESSÃO E ACABAMENTO Gr.\fu..1 \ ' ic.l.1 l ' C111 1...,.·i~·m1,1
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4. S;1l.1 ih: ~ul.1 - 1)1rc.,-:in L C:1ni"i1, ,\l;1n:do.
Dedico este livro a Lita, Maria e 1l'Jaruca.
11. l ituk1. Ili. Sém.•.
CDD·.Hl.IOZ
São meus avós, juntamente com Carlos, Enrique, China e Ada.
Índices poro cotólogo sisfemólico:
Não houve tragédia nem dor tão grande que lhes tirassem a
1. S:tb tk :l\ll:J : p~JaJ.tnJ.ti!.l : fa.llu.:~u;:lo j71. llll
vontade de viver e de amar.
Obrigada pelo que m e ensinaram e ensinam.
ISBN 85· 16· 03897-1
.
ReproduçAo pr0tbkta. Af1. 1&.4 do Código Penal e lol 9.6 10 de 19 de fevereiro de 1998. lnés
Todos os dln.:itos n.•sl!n'tulos
EDITORA MODERNA LTDA.
Hua Padre A<lcli1lo, 758 - Uclemdnho
À memória de meus avós Maria e Roberto, e também a Velia
S~o Paulo _ SP . Rr:isll • CE I' 03303·90-I
Vendas <: A1cnclimcn10 : Tel. (0__ t t ) 6090- 1500
e Ana, pela espera, pela paciência e pelo estímulo silencioso.
fo< (O_ _ ll) 6090·1501
\V\V\v.modcma.com .h r
2003 Marcelo
lmp~o tJ Q Brnsil
9 10 8 6
SUMÁ RI O
A L:!t \D EC l~ I ENTOS, 9
PRl )LOGO , 1 1
l>il RODLiÇ.-í.O, 13
De pedantes, pedagogos e sala de aula, 15
1 SALA DE AULA? GENEALOGIA? D EFINIÇÕES PAR.-\. INICIAR O
PERCURSO, 29
História e genealogia, 33
A sala de aula como materialidade e como
comunicação, 36
Do governo à "governamentabiliclade", 40
2 NASCE r\ SALA DE AU lX O PAPEL DA RELIGIÃO CO t-.10 P.-\R rEI RA , 47
(Pré)-hisLória: um olhar ao final da Idade Média, 48
A sala de pano da sala de aula: a divisão em religiões, 52
A sala de aula chega com atitude dominadora:
defini ção do poder pastoral, 63
Omnes ou o lado grupal ela sala de aula: o método
global de jan Amos Comenio, 67
Sing1.1latim ou o lado individualizador da sala de aula: o
método dos jesuítas, 77
O triunfo do aspecto grupal na sala de aula: o método
global para a conquista da escola elementar, 84
E NSAIO
A pedagogia e suas metáforas, 92
3 A SALA DE AULA CRESCE: A DISCIPLINA NOS TEMPOS DA
REVOLUÇÃO l NDUSTruAL, 103
Condições do "crescimento" da sala de aula:
AGRADEC l íVIENTOS
·· - .
transformações das sociedades européias no íinal do
século 18, 104
Primeira consolidação da sala de aula global: a escola EM PRIMEIRO lugar, a Graciela Frigerio, que nos reiterou o
prussiana, 11O convite para escrever e dialogar. Agradecemos pela confiança,
Segunda consolidação: como a sala de aula global pelo estímulo, pelas palavras e comentários sobre cada urna das
derrota 0 método de ensino mútuo, 117 versões e pelas conversas eletrônicas que tornaram mais interes-
Terceira consolidação: a escola prnssiana , dos sante o percurso durante a elaboração do livro.
princípios pestalozzianos à teoria educacional de Em segundo lugar, a Cecília Braslavsky, a Adriana
Herbart, 1 33 Puiggrós e a todos os nossos companheiros das cadeiras de His-
Quarta consolidação: os pedagogos da sala ele aula tória Geral da Educação e de História da Educação Argentina e
simultânea na Inglaterra, 146 Latino-americana da Universidade de Buenos Aires. Muitas das
idéias que discutimos neste livro têm relação com aquilo que
4 A SALA DE AULA EM IDADE DE CASAR: A TÁTICA ESCOLAR NO aprendemos deles e com eles; e as atividades, por sua vez, com-
SÉCULO 20, 157 partilham da maneira como essas cadeiras desenvolveram for-
O triunfo do capitalismo e o biopc der, 160 mas de questionar e ajudar a refletir. Sem eles, sem as discussões
A pedagogia normalizadora: controlar ou regular as sobre corno redigir as questões de exames parciais, sem os exer-
cíc ios que fazíamos e refazíamos para tomá-los interessantes e
trocas que ocorrem na sala de aula?, 171 .
produtivos, sem essa experiência que nos formou em tantos sen-
A crítica "escolanovista": outra forma do btopoder, 192
tidos, este livro não poderia ter sido escrito.
ENSAIO Em terceiro lugar, aos companheiros de jornada que
A autoridade da pedagogia, 226 continuam a nos apoiar, apesar da distância: Pablo Pineau, Ale-
jandra Birgin, Gabriela Fairstein, Gustavo Fischman, Silvia Fi-
5 À GUISA DE CONCLUSÃO: PERGUNTAS SOBRE O FUTURO nocchio, Valeria Cohen, Sílvia Duschatzky, Guillennina Tiramon-
DA SALA DE AULA, 235 ti, Andréa Brito e Daniel Pinkasz. Pablo Pineau e Estanislao Ameio
deram-nos o prazer de ler e comentar os manuscritos; além dis-
BIBLIOGRAFIA, 239 so, Pablo ajudou-nos a procurar fontes e dados aos quais não
tínhamos acesso. Agradecemos a todos.
9- . .
1 •
A I NV [ NÇÁO DA S A L •\ DE A UL ,I
Em quarto lugar, ambos residimos aLualm ente no
exLerior, completando estudos de pós-graduação. Com ceneza,
este livro não seria o mesmo se não tivéssemos passado por esLa
nova socialização em outros discursos, modelos de redação e
··-.
PR() LOGO
vicia institucional na Alemanha e nos Estados Unidos. Quere-
mos agradecer também aos nossos professores e amigos das no- /
vas geografias, Tom Popkewitz, Miguel Pereyra, lrmgard Bock,
Christian Harten e Jürgen Schriewer.
E no amplo terreno do público e do social, assim como no
espaço íntimo e privado da subjetividade, dos mecanismos psí-
Por último, a Pablo e Torsten, agradecemos, mais uma qu:cos , da alma onde se constatam os vestígios e as marcas que
vez, por tudo. a educação produz nos indivíduos e na sociedade. A educação
tem no estudante seu território específico, uma das formas mais
Baltimore/Munique, março de 1999. universais de sua institucionalização. Nesse território há um ce-
nário emblemático, Lestemunha das combi nações múltiplas que
resultam ela articulação de invariâncias e mudanças, trad ição e
novidade, repetição e inovação, lembranças do passado e so-
nhos de futuro: a sala de aula. Nesse cenário desenvolvem-se os
múltiplos roteiros que, como atores, produzimos todos nós, ed u-
cadores e alunos. Em determinadas ocasiões, repetimos palavras
de outros; em muitas outras, criamos nosso próprio texto; nem (
sempre nos damos oportunidade de refletir sobre ambos, ele
pensar sobre eles e sobre nós.
lnés Dussel e Marcelo Caruso propõem-nos um livro
relativamente incomum, uma vez que não procura impor uma
leitura, mas si m solicitar-nos como autores, incorporando es-
trangeirismo ao cotidiano , ao dar conta de uma genealogia que,
omitindo a neutralidade, restitui as múltiplas maneiras de ver o
espaço e as práticas que nele transcorrem e que, dando-lhe sig-
nificado, se significam.
Por trás das páginas que contam histórias, oferecem
conceitos, estimulam exercícios, convidam à lembrança e, prin-
.-. 1o 11
- .
_J__
~-
A I NV[NÇÃO DA SALA 0[ A ULA
cipalmente, habilitam para a criação, está presente a preornpação
com o destino da pedagogia e com nosso próprio destino. Esta preo-
cupação com uma pedagogia, ou com pedagogias no plural , que
não se apresentam como foi escrito, mas como algo que "aconte-
ce" e se constrói coletivamente, é w11 convite a retomar um concei-
to carregado de sentidos e práticas.
O trabcilho da echicação, que é o trabalho das culturas, o
trabalho de transmissão, o trabalho de descobrimento , o trabalho
psíquico de elaboração de conílitos sociocognitivos e de ruptu-
ras epistemológicas demandam uma pedagogia não conformista,
que não ignore seu passado e que ofereça algum futuro. Um
futuro onde o homem não seja descartável, onde a técnica e a
tecnologia estejam ao serviço do bem-estar coletivo e não sejam
utilizadas para produzir exclusão, onde as produções culturais
sejam um bem de uso comum, e não um privilégio reservado a INTRODUÇ ÃO
poucos, e a ética, um componente da ação.
Estamos certos de que , como educadores de hoje e edu-
cadores de amanhã, os leitores encontrarão neste texto elemen-
tos para questionar-se, descobertas para desfrutar, apoio para
suas práticas, critérios para projetar as edificações, categorias
para analisar as observações, exemplos para organizar suas clas-
ses, o prazer de um trabalho intelectual, e muitas informações
para criar seus próprios andaimes conceituais e compartilhá-los
com outros. 1 1.
Graciela Frigerio
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11
.-. 12 l
1
[
1\
D E P r: D/\NTES, P EDAGOGOS E
SA LAS DE Au LA
··-.
Quando recebemos o convile para escrever este livro,
começamos a revisar tratados ele pedagogia de outras épocas e
observamos que na maioria deles de fi niam-se a pedagogia, seus
tipos ou divisões, as ciências auxiliares e as áreas de aplicação.
Quase todos consideravam a pedagogia como um saber que ca-
bia integralmente neste esquema: para alguns, tenderia mais para
uma ciência, e para outros, tende ria mais para uma arte. No
entanto, em todos os casos, constituía um corpo de conheci-
mentos definidos, que bastava especificar e transmitir aos futu-
ros professores para que estes os pusessem em prática.
Uma obra de Bernard Shaw, Pigmalião , expressa exata-
mente esta visão da pedagogia. Em Pigrnalião, Liza Doolittle, uma
humilde flo rista de rua, tem um encontro fortu ito com dois aris-
tocratas ingleses, Pickering e Higgins. Estes estudiosos da lin-
güística decidem faze r uma experiência: reeducar a flo rista para
que fa le e se comporte como uma dama da sociedade. A idéia é
que a educação, quando utiliza um bom método, consegue trans-
formar as pessoas por completo, até apagar os vestígios de sua
origem social e cultural. Instalam Liza em sua casa e ministram-
lhe aulas diárias - teóricas e práticas. Os lingüistas triunfam:
Liza transforma-se em uma dama, casa-se com um jovem de boa
família (embora sem posses) e mantém um relacionamento pla-
tônico com seu mentor, Higgins. Final feliz para a pedagogia:
Liza ama seus professores e estes a amam, por ter-se transfor-
mado exatamente no que desejavam.
Vejamos outro exemplo literário. Trata-se do conto in-
fantil de Emma Wolf "Escola de Monstros". A autora narra a (
1 5 -. (
. (
A 1NVENÇÃO DA SALA OE A UL A
1
INrt\OD UÇÃO
vida em uma escola onde FrankensLein e Drácula, entre outros eix~s ~ais im portantes ela interação professor-aluno. Se a peda-
alunos, aprendem a comportar-se como monstros. Em cerLa oca- gogia e um saber que ajuda os docentes a serem "bons" professo-
sião, um deles, querendo cumprir uma ordem ao pé ela letra, res, é conveniente começar por estabelecer como se define um
destrói as paredes da escola. Transformou-se em monstro. Final "bom professor", quem o define, como traba lha, antes de pensar-
feliz para a pedagogia? Você dirá. mos em regras, divisões e formas de transmitir esse saber.
Com um pouco de desconfiança, pode-se Lambém per- Para nós, não há melhor maneira de abordar estas ques-
guntar se não há algo de monstruoso na Liza de Bernard Shaw, se tões senão através de uma visão histórica. Partimos elo princípio
ela támbém não aprendeu a ser um monstro, colocando-se no ele que as definições de um bom professor, cio conteúdo dos
lugar que seu professor determinou e cumprindo suas ordens ao ensi.namentos, de métodos e didáticas são saberes históricos, pro-
pé da letra. Espantamo-nos diante da menção da clonagem da d~z~dos por indivíduos sociais, por pensadores, grupos, insti-
ovelha Dolly, mas não nos assusta da mesma maneira essa idéia da tu1çoes que atuaram e pensaram em outros contextos - alguns
pedagogia que quer replicar individuos, moldá-los e formá-los à muno semelhantes aos nossos, outros muilo diferentes. Inclusi-
medida que prelencle dominá-los e conhecê-los por completo. ve a idéia .de que é preciso levar em conta a psicologia infantil e
Certamente, a vontade de tê-los sob controle está asso- as categonas e conceitos utilizados para falar sob re a aprendiza-
ciada ao temor provocado pela situação de ensinar. Como en- ge m da criança, que parece "natural" e "necessária", é no entanto
fremar um grupo de crianças, cada uma com sua própria histó- um procl_uto histórico: como será visto nos capítulos a seguir, há
ria, com desejos dife rentes em uma sala de aula? Seremos capazes quatro seculos, ou mesmo dois, não se falava nesses termos.
de transmilir-lhes alguma coisa, de conseguir que aprendam al- Percorrendo a história da sala de aula e das formas de
guma coisa? E se falharmos? E se utilizarem nossos ensinamen- ensinar, procuramos esclarecer o fato de que muitas técnicas e
tos ele maneira diversa daquela que pretendíamos? E se nem palavras que utilizamos para nos referir ao que acontece na
sequer nos escutarem? Esses temores são reais e concretos; en- ~ala de aula têm um passado, surgiram em situações concretas
tretanto, a intenção ele controlá-los completamente não contri- como respostas a desafios ou problemas específicos, e que pro-
bui senão para aumentá-los, porque diante de nosso fracasso - vavelmente, quando as utilizamos hoje em dia, ainda trazem
apesar de tudo, a vida sempre é mais complexa do que qualquer pan.e desses significados. Compreender de onde surgem, de
mecanismo de controle - agigantam-se ainda rnai~. quais estratégias e problemas fazem parte, como foram ou são
Este livro pretende servir de apoio para que nos livre- utilizadas, e que efeitos causaram pode ajudar-nos a aliviar essa
mos do medo de ensinar, e também de aprender, de ler, de conhe- carga e ~ ~ssumir nossa tarefa como uma reinvenção própria
cer outros mundos. É provável que urna parte desses temores nos das tracl1çoes que recebemos. Embora não voltemos a inventar
acompanhe sempre, corno a todo ser humano; entretanto , oxalá a a pólvora, também não seremos clones de outros e nem clona-
questão do controle e do medo de perdê-lo deixe de ser um elos remos nossos alunos. Pois, em última instáncia, transmitir é
: 16 17 :
1
[. 1
A 1NVEN ÇÃO DA SA LA DE A ULA
INJl\OOl l( ii O
Lambém abrir espaço para que o outro uLilize de maneira dife-
lniciaremos pela palavra que nos conrnca, a você e a
renLe nosso saber e nosso desejo de educá-lo - para que seja
outro, e não o mesmo indivíduo. Como disse um psicanalista, nós, a nos encontrarmos neste livro. Apalavra pedagogia teve signi-
o que é fascinante "na própria aventura da transmissão é preci- ficados muito dibentes através dos tempos. Le,·ando-se em con-
samente o fato de sermos diferentes daqueles que nos precede- sideração apenas os significados produzidos desde 1500 até os
ram, e que provavelmente nossos descendentes seguirão um nossos dias, ou seja, na idade moderna - cujas características ana-
caminho bastante diferente do nosso. (. .. ) E, no enLanLo, (... ) é lisaremos no primeiro capítulo - pode-se dizer que as primeiras
aí, nessa série de diferenças, que inscrevemos aquilo que trans- definições diferenciavam o pedagogo - entendido como o "aio
mitiremos" (Hassoun, 1996, p. 17). que cria a criança" - do pedante - "mestre que ensina as crian-
ças"1 (Covarrubias Orozco, 1611). Desse modo, o pedagogo era
Gostaríamos que este livro ajudasse a entender de onde
entendido como um educador no sentido mais amplo do termo:
vem o hábito dos alunos de levantar a mão, formar fila ou utili-
não era somente um professor de escola, mas também podia ter a (
zar cadernos, para poder avaliar se isto é realmente o que quere-
mos lhes ensinar, e assumirmos essa decisão e essa responsabili- seu cargo funções que hoje chamaríamos de a criação das crianças.
dade. Um cios ensinamentos que gostaríamos de transmitir, à A palavra pedagogia compartilha sua raiz - pecl: pé,
maneira de Hassoun, é que no ensino não há lugar neutro nem aquele que anda a pé - com a palavra pedante, que é aque le que
indiferente: todas as estratégias e opções que utilizamos em nos- "se diz sábio", aquele que pretende ser erudito. Isto revela prin-
sa tarefa cotidiana têm histórias e significados que nos superam cipalmente o pouco prestígio que as pessoas letradas tinham na
e produzem efeitos sob re os alunos - não só em termos de época. Esta ambigüidade fica bem definida na seguinte frase.
(
aprender ou deixar de aprender determinado conteúdo, mas tam- "um bom professor galês, um bom estudioso, porém muito pe-
bém de sua relação com a autoridade, com o saber letrado em dagógico (extraído do Oxford English Dictiona1y de 1888). Ser
geral e com os demais. Alguns professores, temerosos desta res- "pedagógico" não era, então, sinônimo de uma qualidade positi-
ponsabilidade, acreditam que o melhor seja renunciar a trans- va, e sim o contrário. (
mitir algo, laissez-Jaire (deixar fazer), não intervir, como se com
O Diccionalio de Auto1idades de 1737 define pedagogo (
este gesto pudessem desfazer-se do poder inerente à posição
docente. Como argumentaremos adiante (Caruso e Dussel, 1996, como "qualquer um que ande sempre com outro, e o leva aonde
cap. 3), o poder continua sendo, sem dúvida, constitutivo da desejar ou lhe diz o que deve fazer". Neste caso, aparecem tanto o (
relação professor-aluno; trata-se de assumir o papel de transmi- significado de "pé" como o de conduzir ou guiar como ação pró-
tir a cultura da forma mais consciente possível, utilizar estes es- pria. Entretanto, já em 1788, o significado que conhecemos hoje
paços de liberdade de que fala o psicanalista mencionado, pro- aparece com mais intensidade. A pedagogia aproxima-se daquilo
curar sair do modelo de clonagem e produzir uma diferença em
nossas vidas e nas vidas de outras pessoas. 1· N. T. Uma definição ontigo do polovro pedante. hoje em desuso. significo ·mestre que
ensino gromótico ós aíOfl{os indo de coso em coso ·.
:18
1
19-. .
\ A 1NVENÇÃO DA 5 ALA OE A ULA

I NTl\ODUÇÃO
qu~ ensinam. Analisemos também as conseqüências de "ped .-
que denominamos "mestre" e deixa de ser a ação de guia geral za1 os adolescentes e os adultos: não se trata a enas d agog1
(Terreros e Panda, 1788, p.73). Surge no século 19 a definição de
pedagogia como "a arte e a ciência de ensinar e educar as crian-
~~~s ;orno ~~jeitos do saber, mas também dé su:me:ê-1~ ;'~::;~
. e Vlgt anc1a, com a idéia de que devem ser cuidados e
ças". Esta descrição, que hoje nos parece natural, é, na realidade, maior esn:ero e assiduidade. A modernidade talvez seja a é ~:
uma invenção recente, dos últimos séculos (Rizzi Salvatori, 1996). em que
· diversos
· setores da sociedade va-o -s··e "ped agog1zan
. dpo'" -
Analisemos mais detalhadamente a definição moderna p:ec1so cu.1dar dessas pessoas, dizer-lhes o que devem fazer coÍo~
de pedagogia. A pedagogia é uma ciência e uma arte; está asso- ca~las em mst1tu1ções educativas, se possível - lembre- d,
ciada ao "ensinar" e ao "educar". A pedagogia ocupa-se das "cri- ate hoje se diz que e- me Ihora cnança
. estar na escola do se
que ebrin-
que
anças". Neste caso, pode-se acrescentar que algumas versões con- candona rua-e dar ' -lhes regras mm.s precisas (Narodowski, 1995).
temporâneas sustentam que a pedagogia não se ocupa unicamente
das crianças, mas que há também uma pedagogia dos adoles-
1 ~· A pedagogia encarrega-se do "ensinar" e do ed
centes e uma pedagogia dos adultos. Para analisar os compo-
Pode-se dizer que nao - se ocupa somente das "situações de ensino"ucar.
nentes desta definição, à qual voltaremos diversas vezes no de-
- como , .por .exemplo , o ensmo · da estrutura e das funções do
correr do livro, começaremos pelo último ponto: \ aparelheo d1gest1vo-
abran . , mas tarn b'em da educação, que é muito mais
.d'. g nte. As cn~nças ~ão educadas desde seu primeiro dia de
1. De acordo com o pedagogo Mariano Narodowski, a \ :a~ t:nta~se , por imposição, que obedeçam a um ritmo, que dur-
pedagogia moderna nasce com o conceito de que a criança deve proibiçõ:1~~~~~e co~am_com c:rta periodicidade. Logo vêm as
ser educada. Se durante muito tempo as crianças corriam pelo po- .d d ,, d de s1tuaçoes pengosas, virá o controle das "neces-
voado, aprendiam espontaneamente e se vinculavam a mui.tos adul- st a es evern tamb -
, . em se acostumar a comer outros alimento
tos, em determinado momento (que o historiador Philippe Aries em1 determmadas
- . 1u1. preceitos
horas do dia · A "educaça"o" me . coms
situou no final da ldade Média) surgiu uma nova "sensibilidade" :e açao aos palavrões, à sexualidade, à ideoloaia à rnane1·ra d .
. sao : a c~tlca aos meios de comunicação, entre muita~
a cornpreen - , - . b" • e Vlver
com relação à criança, uma nova forma de cuidar dela. Narodowski o t
argumenta que a criança será "infantilizada": inicia-se uma tendên- u ras coisas. Dtz-se, inclusive, que a educação não termina nunca
cia segundo a qual a criança precisa de maiores cuidados, que é urna vez que urna. pessoa Jamais
· . estara, completamente educada.
preciso colocá-la em uma instituição, que necessita de regras mais Desse mod1
com o' amda
- que a pe dagog1.a esteja
. diretamente relacionada·
rígidas. Esta postura constante de cuidados com a criança, e sua a escoa, parece que também a excede, e muito.
vigilância intensiva, permite a formação e a estruturação de um
saber que justifica as razões para essas ações, suas finalidades e
seus métodos: a pedagogia. Surge a disciplina universitária, e sur-
"c·. . ,, 3. Por último , di z_se que a ped agog1a
. é tanto uma
1enc1a como urna "arte,, . por um 1ado, pretende esse presti- r
1,
gem os catedráticos, que afirmam que a ciência orienta aqueles Pli
- • !li'
21
!,1l·
.
-. 20
l ------------- ~
A I NV EN ÇÃO DA SALA DE A UL~ 1N rf\ ODUÇÃO
gioso rótulo de "científica", uma forma de conhecimento que Diante desta "in !1ação" do espectro da pedagogia, é
pode ser comprovada, com regras, méLoclos de avaliação e pa- difícil decidir por onde abordá-la. Haveria muitos pontos de
drões compartilhados. Sabemos que em nossas sociedades os partida, muitas formas e temas. Have ria inúmeras possibilida-
"cientistas" constituem uma profissão de grande prestígio, ainda des, cada uma com sua ên fase, suas virtudes e defeitos. Pode-
que nem sempre recebam retribuições de acordo com esse pres- ríamos realizar um estudo sistemático, um histórico, mais fo-
tígio e muiLos não entendam o conteúdo do trabalho científico. calizado na aprendizagem ou no ideal docente, entre muitas
Portanto, a pedagogia quer ser tratada como ciência. Por outro outras possibilidades. Os temas seriam inúmeros e todos jun-
lado, porém, a pedagogia é uma arte. Vejamos: um professor tos formariam uma enciclopédia de vários volumes.
pode ser muito versado em diversas disciplinas, conhecer o con-
Não se pode ignorar, no entanto, que, de todas as par-
teúdo a ensinar, conhecer as diversas dificuldades de aprendiza-
tes possíveis da pedagogia, a mais importante é a pedagogia es-
gem, dispor ele uma longa lista ele métodos de ensino e de bons
colar. Na história dos últimos séculos, esta combinação "ciência
instrumentos ele diagnóstico e de avaliação. Entretanto, a ma-
e arte" concentrou-se cada vez mais nos aspectos do ensino, na
neira, o momento e a fo rma como utiliza seus conhecimentos -
atividade pedagógica dentro ela escola (Benner, 1998). Além disso,
essas decisões da prática de ensino - são por si mesmas uma
"arte", se entendermos por arte uma estruturação pessoal, uma a pedagogia escolar provavelmente in íl~i u para que muitas ve-
sintonia específica com a situação daquele momento. Mesmo zes a televisão, a família, as instituições, apesar de sua força pró-
que se possa aprender as regras do ensino, estas se modificam pria, se asse melhassem mais às escolas. Pensemos nos progra-
em cada situação e dependem do julgamento daquele que as mas infantis, que se preocupam muito com o entendimento das
utiliza e da situação em que são utilizadas. A pedagogia, então, crianças, a tal ponto que às vezes as subestimam. Pensemos na
prolonga-se cada vez mais no tempo: o que se iniciou com a ofança mãe que auxilia nas tarefas de casa, ou na educação em uma
chegoii aos adultos e desenvolve-se até a terceira idade. A pedagogia empresa, que se torna cada vez mais escolar, uma vez que oferece
owpa-se ela escola, mas também da famí lia, dos meios de comw1ica- cursos rápidos e já não se aprende somente com a experiência.
ção e de todas as mitras instâncias ou agências que "educam", ainda Pensemos nos brinquedos "didáticos" - - por exemplo, nas pe-
que não ofaçam conscientemente. Por último, a própria pedagogia é quenas carteiras escolares para crianças em idade pré-escolar,
tanto um saber sistemático - uma ciência - como um saber mais que vão educando e socializando na maneira de sentar-se de
'
localizado, especifico, info rmal - uma arte, um uso. Isto é, parece postar-se para escrever e olhar para a frente.
ter-se tornado importante, perpétua, uma vez que acompanha a Hoje em dia, é impossível pensar urna pedagogia sem
vida inteira do indivíduo, e polimorfa, com muitas formas, uma a escola. Entretanto, durante muitos séculos esse era exatamente
vez que pode se encontrar em estado mais ou menos puro, como o caso, e as pedagogias eram reflexos de como um pedagogo
ocorre na escola, até ser mais clifusa e implícita, corno no caso tinha que educar os p1í ncipes e as crianças de determinadas clas-
dos meios de comunicação. ses privilegiadas, e nessas funções se confund iam o cuidado, o
.-. 22 23 - . .
~
1
\ A I MVHI ÇÃO DA 5 ALA DE A ULA
1N TRODUÇÃO
desse período; pelo contrário, os gregos, os romanos, os pri mei-
ensino, os modos e a vestimenta. Atualmente, as peclagogias es-
ros cristãos, os povos indígenas, todos idealizaram maneiras de
tão concentradas, e com razão , na escola. transm itir conhecimentos e tiveram formas de ensino mais ou
A pedagogia ajudou a estruturar, a dar forma e .c~~po menos institucionalizadas. Conservamos muitas delas: os amau-
às escolas como as conhecemos. Formulou programas, ideias, tas incas, os sofistas gregos, a figura socrática da interrogação mai-
diretrizes que foram adaptados em maior ou menor grau, com êutica deixaram marcas no imaginário sobre o que é ser um bom
melhores ou piores resultados. Dessa forma, queremos ex~~r a professor e sobre como se faz para ensinar. Entretanto, suas preo-
edagogia em ação, em funcionamento. Queremos associa- a a cupações e seus mundos eram mais distintos dos nossos do que
p . . de mate1·iais que mostrem como os pedagogos pensa- os de 1500. Seus espaços educativos eram povoados por outras
uma sene
ram as salas de aula em sua época, o que propuseram e. como inquietações e temores. Certamente, nas práticas que surgiram
lacionavam com realidades mutto diferen- por volta de 1500, havia muita influência das pedagogias anterio-
estas propostas Se re · d j
tes. Queremos mostrar que o conhecimento pode ªJU ar-nos no res, que eram, afinal, o conhecimenLO disponível para homens e
1
desafio que compartilhamos com vocês de enfrentar um grupo e 1 mulheres daquela época, e nosso estudo ganharia em profundida-
fazê-lo de maneira responsável.
ll de caso fizesse todas as conexões possíveis tanto com o passado
Para darmos as boas-vindas à reílexão peclagóg~ca, fo- \ como com o futuro. O argumento poderia retroceder ainda mais,
l d como o conhecimento em uma cadeia infinita. Dizem os que sabem escrever que em
calizaremos neste livro um exemp 0 e l 1
.- · essa arte_ desempenhou um pape
eda ó ico _essa ciencia, 1 algum lugar deve-se colocar o ponto final, dizer "cheguei até aqui",
~ gg ment o de armar e dar um contorno a um de e é até aqui que chegaremos. Restringimos nosso trabalho à mo-
importante no mo l
. tt'gos conhecidos: a sala de aula da escola e emen- dernidade ocidental: em primeiro lugar, porque acreditamos que
nossos mais an f' · \
tar. Neste trajeto ela história da sala de aula, talvez ique ma~~ esta é a época em que a maior parte das práticas pedagógicas con-
claro or que a pedagogia podia ser entendtda tanto como me temporâneas foi estruturada; e, em segundo lugar, porque enten-
P. u acompanhante. Queremos mostrar como a pedago-
1 demos que toda empreitada de escrita é pretensiosa e modesta ao
todo, a10 o d · - d ço a mesmo tempo, define certos problemas e pontos de vista, excluin-
. d forma a· sala de aula à ispos1çao o espa ,
g1a tentou ar ' . - do outros. Diferentemente dos tratados de pedagogia a que nos
seus rituais costumes, modos de interação e de comumcaçao.
Talvez isso ~os ajude a lidar com nossos ~emores e a nos apro- referimos no início desta introdução, não consideramos que esta-
mos transmitindo um saber completo e absoluto, e sim que a pe-
priarmos com decisão desse espaço de açao.
dagogia pode ser reescrita milhares de vezes, e em cada uma delas
Para tanto, desenvolveremos a idéia de que a sal.a de
dizer algo diferente. O livro desenvolve um argumento basica-
l elementar é uma invenção do ocidente cristão, a pa:ur de
mente histórico. Os capítulos cobrem peiiodos da história dos
~~~O e que nesse processo a pedagogia utilizou-se de muttas ar- últimos cinco séculos e os desenvolvem, focalizando o surgimen-
gum~ntações diferentes para dar corpo e forma a este ~s~aço. Isto to de práticas e teorias sobre como ensinar e a quem ensinar.
não significa que não existissem experiências pedagog1cas antes
25 - .•
:24
l
\
A 1NV[ll ÇÀ O DA SA LA DE A UL .\ I Mlíl O DUÇ/\O
Provavelmente será útil consultar livros de história e ela história o:
que mosqui tos voe m zu mbindo, é preciso ter coragem para
da educação para ampliar alguns temas e para compreender me- ..:hama-los de anjos. Quando uma Lia nos leva a uma visita, cum-
lhor as transformações que mencionamos. lncluímos, junto aos primentamos todos, mas Lemos vergonha ele apertar a mão do
capítulos históricos, dois pequenos ensaios sobre conceitos que senhor gato, e mais tarde, ao sentir vontade de viajar, pegamos
nos ajudaram a compreender esta "biografia" ela sala ele aula da um bilhete de uma agência ele navegação em vez de trans forma r
escola elementar: um sobre metáforn e outro sobre autoridade. Por uma cadeira em transatlântico" (Espantapájaros", ci tado em: Sar-
último, propusemos algumas perguntas sobre o futuro ela sala ele lo, 1988, p. 62). Para ser professor não é preciso fazer as vacas
aula com relação à sua história. voarem e rir dos cadernos- embora certame nte nos caísse bem
Como professores e alunos, estivemos, estamos e esta- um pouco mais de poesia e de humor. É melhor considerarmos
remos na sala de aula por muito tempo. Entretanto, na agitação este sacudir das teias de aranha da rotina de Oliverio como um
da rotina de aprender e de ensinar, nem sempre paramos para si~al de que podemos faze r outras coisas com o que temos à
pensar qual é realmente esta situação, tão importante para nos mao, v~r de outra maneira os sinais da realidade, pensar de ma-
definirmos como docentes e pedagogos. O fato de ocuparmos neira diferente. Pode-se transformar a carteira escolar em um
uma sala de aula não significa automaticamente que a "habita- me10 de transporte para outros mundos, colocando-nos em con-
mos". Quando alguém apenas "ocupa" um espaço, trata-se de tato com outros saberes e outras experiências. Efetivamente su-
uma estrutura já existente: móveis, rotinas, tudo está lá e nos põe-se ~ue esta seja a tarefa da escola: integrar o i ndivíd~1 o a
espera. O docente mais experiente nos diz o que considera fun- outros tipos ele experiências e códigos diferentes daqueles apren-
damental para ser um bom professor. Se permanecermos com didos em família. Em parte, depende de nós que essa viagem
estas orientações, com a tradição que nos transmite a experiên- sep prazerosa e que chegue a bom termo. (
cia dos outros (por mais valiosa que possa ser), estaremos "ocu- Esperamos que ~ste exercício de reflexão pedagógica
pando" a sala de aula de uma maneira passiva, na qual simples- nos coloque de maneira diferente nesta situação e que façamos
mente nos acostumamos a coisas já existentes. "Habitar" a sala da sala de aul~_nos_so "habitat", não no sentido animal de adap-
de aula significa formar esse espaço de acordo com gostos, op- tar-se ao que Jª e~iste, mas sim no sentido de aj udarmos a ga-
ções, margens de manobra; considerar alternativas, eleger algu- nhar em autonomia e responsabilidade para que possamos nos
mas e descartar outras. Habitar um espaço é, portanto, uma po- comprometer com esta velha conhecida que é a sala de aula e
sição ativa. Assim, este convite não se esgota no tema da sala de
que talvez seja o coração educativo da cultura moderna. Ox~lá
aula, mas tenta ser uma convocação para ativar nossas forças no
p_ossamos levar o leitor a sentir o pulsa r deste coração, vivo e
sentido de "habitar" o lugar que apenas "ocupamos". Vital, através deste livro.
Agrada-nos esta citação do poeta Oliverio Girando: "A
(
rotina tece diariamente uma teia de aranha em nossas pupilas.
Pouco a pouco, nos aprisionam a sintaxe, o dicionário, e ainda
(
..- 26 27 - . .
1
1
1 1
S ALA DE A ULA? G ENEA LO GI A?' D EFrNI ÇÕES
··-.
PARA INICIAR O P ER CU RSO
SE UMA pessoa pergunta espontaneamente na rua o que é uma
escola, pode receber muitas respostas. Em algumas delas, pode apa-
recer a sala de professores, a biblioteca, os pátios; em outras, a dire-
tora, o porteiro. Se pensarmos em uma escola rural, talvez a figura
da diretora seja ao mesmo tempo a da professora, o pátio talvez seja
o campo ao redor e a biblioteca, uma reivindicação pendente há
anos. Entretanto, podemos quase garantir que em todas as respostas
aparecerá um lugar que todos conhecemos e que surge como o núcleo, o
elemento insubstituível da escola: a sala de aula.
A situação de sala de aula é conhecida de todos nós; é
muito provável, inclusive, que este livro esteja sendo lido em tal
situação. Todos passamos por ela, e, como professores atuais ou
futuros, continuaremos a fazê-lo, e não apenas uma vez; pelo
contrário, estivemos e estamos na sala de aula pelo menos qua-
tro horas por dia, cinco dias por semana, nove meses por ano,
durante muitos anos. Assim como acontece com uma pessoa
que passa grande parte de sua vida em um hospital, a institui-
ção, com sua estrutura, seus costumes e seus hábitos, torna-se
"natural" e marca nosso caráter.
Entretanto, a sala de aula como a conhecemos hoje não
tem nada de "natural". Talvez nos surpreenda reconhecer que um
viajante do século 15 não entenderia o que acontece em nossas
escolas, como provavelmente também não o entenderia um via-
29:
1
A 1MV Ul (AO DA S AI 1\ DE A. e'
Fig. 3. Sala de aula inglesa, segundo a proposta de David Stow, em
f-
Fig. 1. Gravura d e 1592, provavelmente de uma escola de latim, gravura de 1836 (Extraido de: D. Hamilton. Towards a Theory o(
Schooling, Falmer Press, Londres, 1989, p. 104) .
onde se vêem o pro fessor e seus colaboradores (Extraido de H.
Schiffler e R.Winkeler. Taunsend Johre Schu/e. Eine Kulturgeschichte
des Lernens in Bildern. Belser Verlag. Stuttgart-Zurique, 1993).
Fig. 4. Sala de aula infantil, escola de Londres em 1906
Fig. 2. Sala de aula na Alemanha da época, tal como aparece em
(Ext raído d e: Dina Coppelman. London'sWomen Teachers.
uma publicação em 1575 (Extraído de: D. Hamilton. Towards a
Theory o(Schooling, Falmer Press, Londres, 1989, p. 37). Gender, class, and (eminism 1870-1930, Routledge, Londr es
e Nova Iorque, 1996). __ _
.- . JO 01
1
1 A \ NV[NÇÀO DA ~ ALA OE A ULA

SALA DE AULA) GrN[ALOGI A ) ÜEFI NIÇÔES PAl\A IN ICIAI\ o p[l\(Ul\SO


são do termo
somente com "sala de aula"
a .l... d e~ re. 1açao
_ a. escolaridade
. elementar surgiu
janle do futuro, do século 252 . Como mostram as figuras l (Alt,
pintura que representa uma escola da época de Comenio, em: organizaça·o dovt º'. w os metoclos pedagógicos que propunham uma
Schiffler e Winkeler, 1993, p. 351), 2 (sala de aula alemã em 1575, vezes po, ·c1 d ensino por gru/?os escola1.es d ~erenciados
;~ . entre si às
1 ' a e e outras por seus resultados de aprendizagem. ,
em: Hamilton, 1989, p. 37), 3 (Stow, sala de aula inglesa eml836,
Hamilton, 1989, p. l 04) e 4 (escola de Londres no início do sécu- surgimen~e:~ac~;~t~~~d~~~~~~~\u~ exa~e dessa história do
lo, em: Coppelman, 1996), aquilo que conhecemos como "sala de cativo privile i l
. -
ª
. ª e au ªcomo espaço edu-
g ac o, procurando identificar as continuidades e
aula" sofreu modificações, tanto em sua estrutura material (na or-
ganização do espaço, na escolha dos locais, no mobiliário e no raçã e nesse trajeto, compreendendo a 1-og1ca
movaçoes . de sua estrutu-
as
instrumental pedagógico) como na estrutura de comunicação de a~-la"oem~- se ~evel ter notado, falamos de "genealogia da sala
(quem fala, onde se situa, o fluxo de comunicações). ciação nos a;~o~~~~a~::~~t: !~~~r'.stória". Sobre essa diferen-
De acordo com dados fornecidos pelo pesquisador Da-
vid Hamilton, o termo "sala de aula para lições" começou a ser
utilizado na língua inglesa no final do século 18 (Hamilton, 1989). HISTÓRIA E GENEALOGIA
Em castelhano , por sua vez, o uso de "sala de aula" e de "lições"
a partir deMuitos de nós ce_rt~m~~te con hecem a palavra genealogia
"árvores
era comum ao ensino universitário na Idade Média, conservan-
do seu significado latino de "local onde o professor ou catedráti- nos fornecem um " gen~~logic~sC, que raslreiam os antepassados e
co ensina aos estudantes a ciência e a disciplina que professa" tes familiares Po mapa! ~om m o:mações sobre nossos anteceden-
(Diccionario de Autoridades, 1726). Entretanto, não era comum das cie"nc1·a . . r outro a o, este e um recurso utilizado no ensino
ue er nle s sociais na escola
, pri~ana,
, · quando se propõe às crianças
seu uso para referir-se ao recinto no qual teria lugar o ensino ele-
mentar, o qual, até aquele momento, era ministrado na casa do
~da pE f1 m a seus avos e pa!S sobre sua origem e sua história de
. sh~ r~c~rso permite abordar alguns temas como a hist . .
próprio professor ou em salas disponibilizadas pelo município ou 1ocal, a 1stona. do dpais ou ª-1guns D • • ona
pela igreja, denominadas scholas (em latim). A diferenciação dos imigração (m enomenos específicos, como a
ant ) u~tos esses avos foram imigrantes ou filhos de imi-
alunos por idade era ainda·focipiente (o que investigaremos mais
~s ~~~a partir de uma a~ordagem mais significativa para os alu-
adiante neste capítulo), e, na maioria das vezes, todas as crianças , vez que podem vmcular estes fatos à sua própria história.
recebiam os ensinamentos juntas, sob a tutela de um professor
Entretanto o uso da g l .
que sabia apenas ler e escrever, e que lhes ensinava os rudimentos capítulo é um pouc~ difer penea ~g1a que sugerimos neste
das primeiras letras, de cálculo e de catecismo. Entretanto, a diftt- filósofos e historhdores d:~:e . . ar; nos, de aco~do_ com alguns
de olhar e d secu o, a genealogia e uma forma
e escrever a história q d. e d h"
2. Um bom exemplo desta disjvnçõo qve se prodvzirio em vm svposto encontro com nossos nal, por ue é definid . . ~e 1 ere a istória tradicio-
ontepossodos é o filme Novigotor (Vincent Word. Avstrólio. 1989). qve conto o história de
vm grupo de camponeses ofetodos pelo peste bvbônico por volto do ano 1350. qve por
À
ressada. genealogiaapco~odh1stona com perspectiva, crítica, inte-
ar e e um problema ou conceito atual e
ocaso ·svrgem· em pleno sécvfo 20.
33 - . .
:02 1
\
s,.~ º' ~UL111 GEMlALOG IA; Dtr1M1 ÇOEs PARA INI CIAR o Prnc uRso
A I NVENÇÃO DA SALA OE A UL.l.
uina mecânica, apenas ao acaso da luta" (FoucaulL, 1980, p. 20).
elabora um "mapa" - não dos antepassados, mas sim das lutas
[ ntre outras coisas, isto obriga a um posicionamento, a uma análise
e dos conflitos que configuraram o problema tal como o conhe- lbs exclusões realizadas, daqueles que venceram e daqueles que ío-
cemos hoje. Os materiais históricos (íontes, escritos de época, r.1 111 derrotados nessas lutas. Afasta-nos da idéia de que os processos
análises históricas) não são revi.sados com um interesse mera- ~il) ine,·itá,·eis e que as coisas "aconteceram porque sim, porque as-
mente erudito ("para aprender mais"), e sim com o objetivo de sim tinham que ser". Há 15 anos, LiLo Nebbia cantava que "se a
compreender como se criaram as condições que configuram o histó1ia é esciita pelos vencedores, isto quer dizer que há ouLra histó-
presente. É um olhar que adota o ponto de vista daqueles que s~frem ria, a verdadeira história; quem quiser ouvir, que ouça" (em relação à
os efeitos ele poderes e saberes especificas (Varela, 1997, pp.36 e 61). viela de Eva Perón). Foucaull acrescentaria a Nebbia que não há duas
Esta posição é claramente contrária à da história tradicio- histórias, e sim muilas, dependendo do tema e ele como cada um se
nal, que pressupõe que o conhecimento é neutro e objetivo, e que o posiciona diante do presente, e que isto toma muito mais complexo
historiador pode situar-se acima de seu tempo e de sua sociedade, e atribuir o valor ele "verdadeira" a uma dessas histótias em panicular.
pode conhecer "o que verdadeiramente se passou" na Revolução de Há, certamente, muitos debates epistemológicos e his-
Maio ou em qualquer outro evento históiico, independentemente de wriográíicos dentro da íilosoíia e da históiia com respeito a estes
seus valores e posições, ou dos conceitos e calegotias que sua época argum~ntos de Foucault, que não queremos subestimar. Aqueles
lhe provê para analisar a história. Agenealogia, pelo contrário, assume que quiserem aproíundar-se nestes temas têm à disposição abun-
uma visão perspectiva e não tenta enganar ninguém com relação à sua
~a~te bibliograíia para consulta.~ Muitos consideram que, se tudo
neutralidade. O filósoío e historiador Michel Foucault3 aíirrna que "as e simplesmente perspectiva, então resta somente o relativismo
[orças presentes na história não obedecem nem a um destino nem a
ab.s?luto de que LUdo resulta na mesma coisa - o que leva ao
nnhsmo, a não acreditar em nada, ou seja, à desesperança. Para
3. Michel Foucoulc ( 1926-1984) foi um filósofo. h1Stoflodor e cnllco sOC1ol. CUJOS trabalhos. que
nõo podem ser foolmente enquodrodos em umo motério determ1nodo. se enc011trom entre os nós, que deíendemos os argumentos de Foucault, assumir uma
mo1s 111/luentes nos oênoos sooois e humooos do último metade do século. €mboro seja d1fíol perspectiva implica, ao contrário, um ato de liberdade considerá-
s1stemoeizor em poucos polovr-os os linhos principais de suo obro. pode-se dizer que seus
maiores interesses foram: 1) o formação e o tr011sformcx;ôa do saber e dos cOl1heomentos e vel: si_gniíica rebelar-se contra um conhecimento imposto, tirar
suo relação com o poder e com o c011St1UÇào do verdade: 2) os sistemas de poder "invisíveis". prov~ito e assumir os riscos da decisão e de seus próprios pontos
porém ceroo1s nos scxiedodes moderoos: 3) o cOflsàUÇõo dos diferentes tipos de sub1etiv1CJo.
de em nossos scx1edodes e seus ontecedenles em reloçôa tonto aos c0flhec1mentos sobre de Vlsta. A genealogia não implica que todas as perspectivas le-
nós mesmos corno ós dNelsos formos de orgonizaçõo do poder. Verdade. saber. poder. sub- (
jetividade. A obro de Fcxxoult é dlÍÍol e esqut\IO. porém seus temos ceroo1s sõo de fundamen-
to/ importàncio poro os pecJogogos - sejam eles "cient1stos" do ectxação ou professores_ do poder. compilação. \/Órios edições. A diferenço entre geneo/ogt0 e h1stóno. que utilizore·
€ntretCY>to. vo/e o pero tentar uroo leitura. O livro no qual Fcxxoult croto mois explkitomente do mos em nosso percurso. encCXJ!To-se em "Nietzsche. o geooolog10 e o h1stório" (197 J). incor-
escola e do edlxação éVi91or e punir. fmO nosc1rnento do pnsõo (1976). onol1so o escola porodo oo JÓ mencionado Microfísica do Poder. Poro ono/isor olgumos dos repercussões do
com relação o prcxessos comuns o outros instituições de "corlinomerito". corno hosp1to1s. pri- trabalho de Foucoult no pedogog10 iberoomericono. pode-se c011SUltor Lo Arqueologio de lo
sões. qtXxtéis e fóbncos. Também sõo bostante corihecidos seus IMOS sobre o loucura - escuelo. de Vorelo e Álvorez-Urio. e Escuelo. poder e subJetrvoción. de Lorroso.
Históno do loucura no época clóssKo ( 1961 ): sobre medicino-O nascimento do clinico ( 1963): 4. Ver. por exemplo. Noiriel (1997) e Foucoult (1980) sobre o problema do perspectiva no
sobre o nascimento dos hum011idodes - As polo111"os e os coisos (1966): suo Históno do momento de escrever h;stório e do foto inevitóvel de assumir umo perspect1\IO em porticulor.
se:ruolidode (3 \/Olumes. 1977- 1984): e seus m;gos e entrev1Stos sobre opoder- Microfísica
.
.- 34
35 - . .
1 1

1 A l NVENÇÀO DA 5 ALA DE A ULA
l ) ALA DE AULA ) Grnr 11LOG 1A) DmN 1çOES Pllf\A I N1c1111\ o Prncuf\SO
r
- haja critérios para hierarquizá- conhecidas até hoje. 5 Além desse aspecto material, a sala de aula
vem ao mesmo ponto, ou que nao . "J·usta" ou "verdadeira"; implica também uma estrutura de comunicação entre sujeitos. Está
.d. l nos parece mais definida tanto pela arquitetura e pelo mobiliário escolar como
las, ou para dec1 ir qua h. rquização ou decisão é um ato
apenas nos lembra que esta ielr)a . ue implica tomar posição pelas relações de autoridade, comunicação e hierarquia que apare-
. ( 1· . diria foucau t , poiq . cem na sala de aula tal como a conhecemos, e que são tão básicas
própno po lllCO, íl. e dinâmica. Não renunoa a
l"dade con imosa d no momento de ensinar que muitas vezes passam desapercebidas.
diante de uma real . t·1·za todas as ferramentas os
d d ,, e para lsso u l l Corno se caracteriza essa comunicação da sala de aula?
"conhecer a ver a e , . _ . . sa paciente e cansativa de
d çao mmuoo ' ,
historiadores - essa en 1 Sustenta porém que o que Sabemos que é wna comunicação hierárquica: suas regras não são
· \ documentos. ' ' definidas por todos, há muitas decisões já tomadas quando as
consultar arquwos ~ e;, b' deve ser questionado, pois essas
· "" " "verdade1ro tam em ,. crianças e os professores entram na sala de aula. Sabemos tam-
e JUSto e - d de lutas e conílitos espec1ficos. bém que é urna relação que não está baseada unicamente no
definições sao pro uto
saber, que não trata apenas de quem sabe mais matemática, mas
que é uma relação de poder: o docente, pelo simples fato de ser
A SALA DE AU LA COMO MATERlAUDADE professor, independentemente de como ensine ou quanto saiba,
E COMO CO MUN ICAÇÃO , tem mais poder do que as crianças para definir o que transmitir
la de aula que conhecemos é como e a elas. É claro que esse poder não é absoluto, uma vez que o
Saber por que a~ª- f m tomadas no passado e que docente ensina em urna escola regida por leis, opiniões, planos
uais deosoes ora f"
ajuda-nos a ver q h os a esta determinada con l- de estudo e outras coisas; entretanto, ele tem o poder de definir
processos ocorreram para c egal~ e a sala de aula onde as lições as pautas dessa relação, de torná-la mais igualitária, mais varia-
_ N ·gumento centra e qu da, ou mais uniforme e hierárquica. Uma vez que a situação de
guraça~. osso ~1 ão histólica, produto de um desenvo1-
são mintstradas e uma construç . possibilidades Uma vez ensino implica uma complexa situação de poder, consideramos que o
. l · utras alternativas e · ensino, como "condução" da sala de aula, pode ser analisado em rela-
vimento que mc u1Lt o . . al de nossa atividade docen-
que a sala de aula é o recinto pnnClp sta opção triunfou e quais ção à condução das sociedades e dos grandes gnipos.
· ' bvio ver por que e Assim sendo, a sala de aula pode ser analisada corno
te, quesuonar o o • ·buir também para pensar-
º ções foram excluídas pode contn , . urna situação de governo. São estas conexões entre sala de aula e
p . hos para nossas prancas. governo que orientarão nossa genealogia. É esta a perspectiva que
mos outros camm . mos discutir pri-
Para abordar nossa genealog1a, quere te muitos ele- elegemos: a história das Jormas de comunicação egoverno da sala de
, l d aula Ela tem, certamen ' aula moderna como parte de uma história mais ampla, a história do
meiro o que e a sa a e . os alunos mas também mo-
- s os docentes e •
mentes. Nao apena d.d . . as questões da arquitetura
·1·, . . t umentos l aucos, l 5. As contribuiçôes de Hamilton (1989). Cutler (1989) eJohnson (1994) sõo trobolhos pio·
b1 iano, ms r l d la Os bancos escoares, as nelfos neste sentido. No âmbito do nosso trobolho. o história do caderno de liçôes e suo
d f arte da sa a e au . difusão no Argentino foi trobolhodo por Silvino Gv1rtz (1997).
escolar, tu o az p A história e uma especificidade pouco
lousas e os cadernos tem uma
37 - . .
.-

36 _L
\
1 •
A I NV EN ÇÃO DA SALA DE A ULA
governo das sociedades modernas. CenamenLe, pode haver genea- as décadas, quando Sigmuncl Freud - o fundador ela psicaná-
111
logias que orientem o leiLor em outras direções (a sala ele aula lise - começou a refletir sobre quando eleve Lenninar a Lerapia
como surgimento do indivíduo moderno ou como lugar de pro-
psicanalítica, e tentou formular qual setia o ponto de maturidade
fissionalização docente, para citar alguns outros exemplos). mas da ação terapêutica, enconLrou-se diante de uma questão ainda
acreditamos que esta é uma linha central na reflexão pedagógica
mais radical. Existe realmente esse momento no qual se pode afir-
da qual nem sempre nos encarregamos como educadores. Quan- m:-ir que uma pessoa está curada? Freud responde provisoriamente
do um professor lê o recibo ele seu salário ou percebe a quanti- que sim, e acrescenta: "Detenhamo-nos por um momento para
dade de instâncias que estão acima dele e que decidem sobre garanlir ao analista nossa sincera simpatia por ter que cumpri-lo
(
sua tarefa (ministérios, leis, diretores, especialisLas), pode pen-
com requisitos tão difíceis no exercício de sua atividade. E até
sar que não tem poder algum. Esta estrutura do sistema, as frus-
parece1ia que analisar seria a terceira das profissões 'impossíveis', em
trações diárias e os poucos sucessos tornam difícil para os pro-
que se pode dar antecipadamente como certa a insuficiência do resulta-
fessores pensar sobre o poder em geral e sobre seu próprio poder
do. As outras duas, hei milito conhecidas, são educar egovernar" (Freud,
em particular. Em outro ponto, vimos como o poder é algo que
1937; 1986, p. 249; a parte em itálico foi destacada por nós).
está em todos os lugares, é onipresente; e corno circula, se trans-
forma e se consolida.6 Em seguida, tentaremos mostrar como foi Com esta afirmação, que voltaremos a analisa r no
constniída essa est111tt1ra de poder partiwlar que é o ensino na sala último capítulo, Freud tenta formu lar algo além do simples
de aula, e se as formas da "liderança" da sala de aula se relacionam fato de que a educação não termina nunca, que nenhum go-
com as formas de "liderança" na sociedade e na política. Tentaremos verno é para sempre, simplesmente porque não existe gover-
verificar se algumas características do governo das sociedades no "completo" ou "perfeito", ou que o final de uma terapia (
modernas têm algo em comum com as farmas do "governo elas psicanalítica é um momento relativo. O que a afirmação de
crianças", como alguns autores defin iam a educação há 200 anos. Freud parece sugerir é que talvez educaç(w, psicanálise e gover-
Se durante muito tempo se fa lou da educação "autoritária". terá no tenham estrnturas semelhantes. As trê.s atividades propõem-
sido porque houve ditaduras ou porque o totalitarismo também se a modificar o indivíduo em determinada direção; ao mes-
está presente na sala de aula, em seu interior? Este uso do termo mo tempo, as três enfrentam a dificuldade de moldá-lo de
"autoritário" talvez nos diga que entre a condução da sociedade acordo com um esquema prefixado - pois assim como não (
e a "condução" da aprendizagem existem algumas analogias. existe go:erno totalmente on ipotente e eficaz, que consegue
tudo aquilo a que se propõe, também não existe um processo
As vinculações entre governo e pedagogia foram ampla- educativo que garanta totalmente que o produto final seja o
mente discutidas por outros autores, entre eles o filósofo Imma- esperado. Em nossa abordagem genealógica, proporemos que
nuel Kant, sobre quem voltaremos a falar mais adiante. Há algu- os problemas da educação são mais bem-compreendidos quando
os enfocamos como parte das relações de poder e de estruturas de
6. A esse respeito. consultor nosso trobolho anterior. (oruso e Ousse/ ( 1996) capítulo 3. 1
governo e de organização da sociedade.
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:08 39 - .• .,1
I_ 1
5ALA DE AULA) GENEALOGIA) ÜEFINIÇÓES PAl\A INICI AR O PEl\CUl\SO
A 1NVEN ÇÃO DA SALA DE A ULA
fazia. Antes cio início da modernidade - que dataremos ao redor
Do GOVERNO À " GOVERNAM ENTA LI DADE"
de 1500 -, os reis herdavam terras, casavam-se com as fil has de
Para entender a sala de aula e a condução da aprendiza- outros reis para expandir seus domínios, e certamente também
gem como recintos e atividades vinculados ao governo das socieda- guerreavam para conquistar novos territórios e obter outros des-
des, proporemos algumas definições que nos acompanharão na ar- pojos de guerra. Entretanto, entre suas atividades, além de arreca-
gumentação. Dizemos que "proporemos" as definições porque, assim dar os impostos dos camponeses e de outros senhores (com vio-
como "o movimento é demonstrado andando", como dizia Carlitos lência, se fosse necessário), não se preocupavam em convencer
Balá, as definições consolidam-se quando ajudam no entendimen- seus súditos ele que todos faziam parte de uma unidade coletiva
to de nosso objetivo: a sala de aula. Comecemos pelo governo. ou da justiça da ordem social. 7 Por esse motivo, as identidade~
O "governo", entendido como qualquer tipo de estru- "nacionais" eram menos que incipientes, e os semimentos de união
tura de ordem social que organize as energias e as forças, e que coletivos eram articulados através do cristianismo. Este se apre-
resolva conflitos, surge quando as sociedades se tornam mais sentava como um elo universal, uma vez que todos os homens, ou
complexas. Pode-se observar que as culturas tribais, embora não pelo menos todos os cristãos, eram considerados irmãos. Desse
possuam uma instituição estatal desenvolvida, têm algum tipo modo, na Espanha da época, quem vivia sob o reinado de Isabel
de condução, onde as ·decisões que afetam toda a comunidade a Católica, não era identificado em primeiro lugar como espanhoi
algumas vezes cabem às mulheres, e em outras, aos anciãos. ou castelhano, mas basicamente como Ciistào.
. Entretanto, ao falarmos aqui sobre governo, estamos nos . A noção de "governo" como tal su rge na modernidade,
referindo a um fenômeno ainda mais específico. Se retrocedermos ou seja, com o lento desaparecimento das formas feudais que des-
até a ldade Média, encontraremos sociedad.~s onde existiam rela- crevemos no parágrafo anterior. Este processo é muito complexo,
ções de autoridade e de obediência, relações desiguais de poder, e uma vez que muitos fatores concorrem para sua estruturação: eco-
também uma espécie de tropa ou exército do qual se valia o se- n?mic?s (o surgiment_o do cap_italismo), políticos (a expansão colo-
nhor feudal, dono da terra, para impor sua vontade. Entretanto, nial ate a América, a Asia e a Africa), sociais (a crescente urbaniza-
no sentido exato em que utilizamos o termo em nossa argumenta- ~ã~ da Europa ocidental) e religiosos (o desafio protestante). Este
ção, não existia um governo. O senhor era dono das terras e as ulnmo processo interessa-nos de maneira especial, porque teve pro-
arrendava aos camponeses. Estes permaneciam ligados ao "senhor", fundas conseqüências sobre a pedagogia. Com a Reforma protes-
não podiam abandonar as terras que ocupavam e aceitavam suas tante e as guerras religiosas que banharam de sangue a Europa até
regras em troca de uma série de benefícios, como a proteção con-
tra perigos "externos". Entretanto, o senhor feudal não centrava 7. €mboro o lgre;o orgumencosse que o poder distribuído d'~sso maneiro correspondia ó
vontade d1v1no. suo próprio copocidode poro convencer os súditos ero /im1todo (Brown
seu domínio no fato de os camponeses (seus servos) pensarem 1996). Umo amostro_ do lírmtoçõo do poder de persuosõo do Igreja é o sobrevivêno~
bem a seu respeito ou estarem de acordo com esta ordem. Tam- mooço dos superst1çoes locais. dos antigos divindades romanos e germônicos em formo
de deuses noturo1s. deuses do fertilidade e do relômpogo.
pouco o rei (primus inter pares, ou senhor entre os senhores) o
41
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- . 40
1
1 1
A I NVEN ÇÃO 0 11 5ALll DE A u L ~
1648, abriu-se um cisma dentro do cristianismo que obrigou as nais importante. Como veremos nos próximos parágrafos, a pe-
1
igrejas a rever seu relacionamento com seus fiéis. Uma vez que exis- d.1gogia desempenhará papel fundamental na estruturação elas obe-
tiam duas religiões concorrentes no mesmo ambiente cultural e ter- diências e na configuração elas moralidades.
rit01ial, já não era suficiente que os fiéis obedecessem a dete1mina- Em relação a esse processo, uma primeira definição ele
dos rituais: tomou-se necessália a inleriolização elas crenças eoexercício go\'erno, breve e sintética, é a seguinte: tratei-se da condução das
de i1m controle supelior sobre elas para evitar qtie os fiéis se identificas- co11dt1çlies. Sem dúvida, este "conduzir" está longe do ato ele dirigir
sem com a outra religião. As duas religiões, mas principalmente a automóveis, e talvez mais próximo ela "conduta" dos boletins es-
protestante, afirmavam que, para ser um bom fiel, a pessoa deve colares: como alguém se comporta, corno se conduz. Conduzir as
trabalhar sobre si mesma, perguntar a si mesma quem é, o que quer conduções não é fácil. O primeiro reqt1isito é que a poptilação "sinta"
e no que acredita. Este processo de autoconhecimento foi denomi- qt1e deve conduzir a si mesma, que eleve cumprir as regras e que,
nado por Michel foucault - em outro contexto - como técnicas caso não o faça, deve justificar-se e saber por que não as cumpre,
do eu. Nessa época, começam a surgir muitas referências a algo que e aceitar um castigo ou reprimenda. A idé.ia de que é preciso go-
até então apenas determinados círculos haviam experimentado (prin- vernar-se, controlar os impulsos, comportar-se de acordo com
cipalmente conventos e rnonastérios): a consciência. Ter uma cons- determinados códigos e reíletir sobre as causas e conseqüências
ciência boa ou má tomou-se o elemento central da religião. Essas de nossos atos é um fenômeno que, embora reconheça antece-
técnicas do eu, essas questões ditigidas a si próp1io são o que chamalia- dentes na Antigüidade clássica, se expandiu apenas durante os
mos ele a base de nossa conduta, ou seja, de nossa "conclução". Ao longo séculos que estamos analisando. O camponês da ldade Média,
desses séculos, conduzir a si próprio, controlar-se através da boa ou embora pagasse os impostos anuais, não tinha necessidade ele jus-
má consciência converteu-se em algo primordial para as pessoas tificar-se detalhadamente por seus atos, nem de "comportar-se"
(KiLtsteiner, 1991, p. 357 e ss.). Do mesmo modo, o pai de família ou "_conduzir-se" de maneira minuciosamente regrada. Isto não
começou a questionar-se sobre suas obrigações, entre elas a educa- s1gniftca que fosse livre ou que pudesse fazer o que bem entendes-
ção de seus filhos, embora naquele momento a "educação" fosse se. Por um lado, não era livre em termos jurídicos, e tinha muitas
compreendida como algo diferente daquilo que entendemos hoje. obrigações para com seu senhor; por outro, sua vida tinha outras
O que ocorre entre os séculos 16 e 18 é a constituição regulações, provenientes de seu relacionamento com a natureza
de uma moral coletiva ainda vigente entre nós, embora conviva- de sua religiosidade e de seu trabalho como camponês. O qu~
mos com os sintomas de sua prolongada crise. Esse processo ele queremos destacar com esta comparação retrospectiva é que o
moralização interessa imensamente aos reis e a outras autoridades "poder ~en~r.al" ~reis e senhores) não estava interessado nem pro-
da época, que vêem o mundo transformar-se diante de seus olhos. cu1:ava JUSttftcattva para o que seu subordinado pensava, sentia e
Já não se trata ele impor a obediência cega sob ameaça de violência, fazia, a não ser em relação às suas obrigações mínimas. (
mas de obter a obediência reflexiva, aceita como correta. Aobediência Uma vez que a população aceita a necessidade de go-
com "boa consciência", a obediência "interior", toma-se cada vez vernar-se a si própria, o segundo requisito é agnipar, organizar e
:42 43-. .
t 1
A 1NV[NÇÃO DA SALA 0( A ULA
t
selecionar estas concluções, definindo quais dessas condutas po-
remete à 'artificialidacle' elas técnicas ele condução ( )" (L l
dem ser consideradas desejáveis e quais não o são. Por esse mo- 1997 ... em <e
tivo, definimos governo como essas defi'.1i ç~e~ sob.re as conduções ~os . . , P· 158; a parte em itálico foi destacada por nós). Esta artifi~
sLiditos, essa condução das conduções 111d1v1dLia1s. A esse respeito c1altclacle refere-se a uma "arte" que age sobre a natureza; é algo
afirmou Michel Foucault: "Em minha opinião, o ponto de con- que cl:ve ser inventado, provado, avaliado, modificado, uma vez
tato no qual a forma de dirigir os indivíduos ~stá_ligada a outra~ que nao se pode pegá-la como se pega uma maçã ele uma árvore.
conduções, como a forma de condução de si propno, p~de set ~este process~, a educação elo príncipe que governa, ou governa-
chamado de governo. Em um sentido amplo da palavra, gover- ra, .e a eclucaçao elo governado passam a ter importância crncial.
no' não é uma forma de forçar os homens a fazer coisas que o Assim sendo, ogove~110 também se define pela maneira como se pensa a
governante deseja; na realidade, trata-se ante~ d~ um equilíbrio quem e a que se d111ge a condução. Nos primórdios ela modernidade
móvel com agregados, e de conflitos entre as tecmcas que gara~­ ~por v~l.ta de 1500 até 1700-, surgiram duas formas para defi-
tem a obediência (imposição) e os processos através dos quais m.r as praticas de governo: a primeira (prevalente na Idade Média)
aÍitmava que governar era ter a soberania sobre um tenitório en-
uma pessoa se desenvolve e se transforma" (Foucault, ~ 993a,
quanto que a segunda considerava que governar não se referi~ so-
pp. 203-204). Ou seja, para criar um governo, para cnar um
estado de "governamentalidade" (uma mentalidade de governo, .~ente a um .tenitório, mas principalmente a o~jetos ou pessoas.
que aceite e valorize o governo), duas coisas são necessárias: em ~... )o co~ce1to de 'governo' não envolve uma questão de imposi-
primeiro lugar, a condução de si próprio; ~ em segund_o lugar a çao da~ le1_s .ªºs homens, ~as dispor as coisas: isto é, de empre-
?e
articulação, a união, a combinação de munas conduçoes (a do gar ':1ais tat1c~~ elo que leis, e inclusive utilizar as leis como táticas
em si mesmas (Foucault, 1991, p. 95). Embora desde a Antigüi-
pai, a do professor, inclusive a do médico) com_ª co~dução glo-
dade cláss~ca (~regos e romanos) sempre tenham existido alguns
bal de um estado moderno. Estas duas conduçoes nao necessa-
tipos de leis, cod1gos ou regras de validade geral, 0 governo mo-
riamente coincidem: muitas vezes, o ato de autogovernar-se vai
contra aquilo que a sociedade impõe, e dessas discrepâncias sur- derno, embora continue a utilizá-los, combina-os com novas formas:
por exe.mplo, quando um governo "investe" em determinados em-
gem espaços de liberdade. Assim, o governo moden~o'. ~onge de
ser a antítese da liberdade, é sua condição de poss1b1hdade - ~reend1mento~ econômicos,já não se trata de aplicar uma lei, mas
pois a condução de si próprio e dos dem~is implica, paradoxal~ s~m de ~utJ:O tipo d~ intervenção, que regula outros aspectos da
mente a administração e a regulação da liberdade: governar-se e vtda social, mtroduzmdo novos agentes e novas instituições. A es-
aprend~r aJazer uso da liberdade, de uma liberdade que nem. é pura cola Jaz part: d~sses novos tipos de intervenção: a preocupação em j or-
nem está livre de contaminação, mas que surge das aprendizagens. m~r a cons.c!en~ia. da população e de criar uma nova aceitação para as
sociais, das regulações e dos espaços intersticiais criados por elas. ' coisas q:1e Jª existwm (os impostos, por exemplo) ou para as novas in-
tervençoes (o serviço militar obrigatório, por exemplo).
O governo deve ser produzido e, mais do que isso, deve se~.
produzido de maneira constante. "O conceito de 'arte de governar . Para desenvolver essas táticas, a acumulação de conhe-
cimentos sobre os objetos (homens e mate riais) que devem ser
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45-; .
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1 •
A lrNEN ÇÀO DA 5 ,\LA DE A ULA
conduzidos constituiu fator primordial. A partir do século 16,
vai tomando forma lentamente um saber que íoi denominado 2
"ciências do governo". De acordo com estas "ciências", não se
governa um pedaço de lerra ou simplesmenle uma Jamília, esi m uma NASCE A SALA D E AULA: o PAPEL DA
··-.
população. O conceito de população é mais um que também nos R E LIGI ÃO COMO PARTEIR A
parece natural, e, no entanto, aparecerá bem mais tarde na his-
tória das práticas de governo. Governar é, portanto, conduzir uma
população (idem, p. 99). Este é o espaço central da pedagogia, R ETOMEMOS o exemplo da pergunta usual sobre a educação.
uma vez que trata de educar as consciências e os corpos. 8 Se perguntássemos agora quais são as tarefas principais da escola
elementar, básica ou primária, teríamos muitas respostas diferen-
A sala de aula como a conhecemos e também as esl111turas tes, embora certamente todas elas coincidissem em poucos ele-
qLte a pr~cederam são siluações sociais nas quais se produzem as con- mentos: ler, escrever, contar ou fazer operações. Entretanto, como
duções. Em pÍimeiro lugar, interessa que a criança conduza a si vimos no exemplo da educação imaginada para o herdeiro da co-
mesma, seja ficando quieta em seu banco ou conduzi ndo seu pró- roa espanhola, na Idade Média e no início da modernidade estes
prio pensamento durante a aprendizagem. Em segundo lugar, que conteúdos não estavam incluídos. O histotiador Phillippe Aries
conduza a si mesma por meio de e com base em modelos, pautas afirma que "conhecimentos empíricos e elementares( ... ) não eram
e normas definidas pelo condutor dessas conduções: o proíessor objeto do ensino escolar: os mesmos eram ensinados no interior
e, acima dele, o Estado. Nos postulados da pedagogia com relação da família ou durante a aprendizagem de um oíício por meio de
à sala ele aula, principalmente com respeito ao método , pode-se um tipo particular de aprendizagem" (Aries, 1996, p. 226). Aessa
observar como se produz uma certa "governamentalidade", esta- época, a escola elementar, ele nível primário, não existia com esse
do que permite que sejamos governados. Em seguida, analisare- conceito. A "escolarização" estava associada à cultura clássica e ao
mos ele que maneira a sala ele aula se estruturou como uma situa- latim. Considerava-se que as escolas existiam ~m relação a outras
ção de governo na qual as crianças, os jovens e também os íunções da cultura, muito ligadas à teologia e à formação dos ecle-
professores deveriam ser conduzidos. Veremos, por wn lado, como siásticos. Por esse motivo, a ninguém ocon:eria reclamar uma es-
swgi u na pedagogia uma condução especificamente moderna - a do cola para todos. Entretanto, ocorreram transfomrnções que modi-
professor na sala de aula onde as lições são ministradas; e como se ficaram esse panorama. Neste capítulo, desejamos mostrar alguns
vincula esta nova situação com a tendência a longo prazo do mundo processos que conduziram à invenção da sala de aula na escola
moderno de produzir a condução de si mesmo e de combinar todas as elementar ou primária. Neste sentido, queremos registrar algo já
conduções em uma condução central, ou governo. mencionado, porém igualmente importante: programas e proje-
tos não conduzem as realidades educativas; pelo contrário, cho-
8. Note·se qve o estotístico edvcocionol menciono "popvloçõo escolor qvondo se refere o cam-se com elas. No entanto, estes programas e projetos marcam
grvpos de olvnos.
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1 .. I
A 1NVE NÇÃO DA SALA OE A ULA N AS( [ A SALA DE A UI A · o P AP[L DA fl.HIGIÃO (0 \1 0 PAl\T[ l l\A
a direção cio desenvolvimento, as fo!lTlas que a sociedade deseja sendo indiví~uos detentores ele certas imunidades e de ptivilégios,
para sua socialização escolar, e, assim sendo, têm algum tipo de que se organizavam em grupos e escolhiam seu:s professores, e os
efeito sobre as duras realidades sociais. Neste histórico sobre o remuneravam. Inicialmente, as universidades eram itinerantes e
nascimento da sala de aula, veremos que o trabalho de parto é funcionavam "por empréstimo" em instituições eclesiásticas ~u
difícil, contraditório e muito pouco "natural". Queremos demons- em casas particulares. Não havia assentos propriamente, tanto que
trar de que maneira foi inventada a escola elementar, induzida s.e espalhava feno sobre o chão para evitar dores nas costas (ver
por processos sociais, políticos e culturais mais amplos. Por en- figura 5, Alt, 1961, p. 126). Entretanto, estes estudantes, muitas
quanto, estaremos concentrados na visualização da situação de veze.s prov~nientes do campo, de famílias aristocráticas, porém
partida, ou seja, o que ocorria antes da "sala de parto". rurais, precisavam de um lugar para dormir e onde guardar seus
pertences. Desde o século 15, as pensões mais ou menos improvi.-
sacias on~: r:1oravam transformaram-se, por pressão da campa-
(PRÉ)-H ISTÓR IA: UM OLHAR AO FINAL DA n.ha e~les1asnca de moralização da vi.da estudantil, em uma espé-
IDADE MÉDI A
cie ele internato. Tratava-se de tirar os estudantes de seu espaço de
liberdade: a rua. "A partir desse momento, não se tratava mais de
Entre as instituições existentes na Idade Média, as univer- garantir aos estudantes pobres a manutenção de suas vidas mas
sidades desempenhavam papel central. Estavam organizadas de sim de superar esse estágio e obrigá-los a uma maneira de c;ndu-
maneira muito diferente ela que conhecemos atualmente, com es- zir suas vidas que os protegesse das tentações do mundo exterior.
colas preparatórias, um tanto caóticas, onde se ensinavam elemen- Assim, os estudantes foram submetidos a uma vida comunitária
tos da cultura clássica, como o latim, a lógica e a retórica, e faculda- det~rminada pelo espírito de uma prática religiosa, garantida por
des onde o ensino tinha certa semelhança com o ensino de terceiro me10 de estat~t~s permanentes" (Aries, 1996, p. 24 7). A arqui-
grau de hoje em dia. Sem dúvida, estas instituições educativas aten- tetura cios colegios tomou-se mais complexa, com espaços para
diam a um público minoritário, embora diversificado (Le Goff, 1984). oraçã?, claustros e salas de aula, que eram as mesmas para todos e
A escola elementar, por sua vez, é uma invenção moderna. Como orgamzadas com assentos dispostos em duas filas voltadas urna para
dissemos, mesmo quando existiam foITTlas de aprendizagem ele- a outra ao longo da sala. O professor ocupava uma das extremida-
mentar antes da modernidade, não tinham semelhança com a escola des da sala e circulava pelo amplo espaço livre entre os alunos.
que conhecemos hoje. Em nosso percurso, estaremos c?ncen~rados Mais tarde, esse espaço fechado recebeu funções educati-
nas técnicas prescritas para os níveis inferiores desses colégios ou vas. Já não se tratava simplesmente de manter as crianças confina-
escolas de latim, que recebiam indivíduos que hoje identificaría- ! das fora do horário da escola - que continuava sendo externa -
'
mos como crianças (aproximadamente 10 anos de idade). n:as sim de transformar essa pensão, onde se realizavam ritos reli~
É importante salientar que os estudantes e os escolares g1osos ~ se praticavam rotinas determinadas, em um espaço de
constituíam uma categoria distintiva nas cidades da Idade Média, aprendizagem. A problemática do governo das crianças corno "o
:48 49-.

1
' .. A I NV ENÇÃO DA SALA DE A ULA
grande tema da pedagogia que surge e se desenvolve no século 16" Consideremos os elementos da estrutura de comuni-
(Foucault, 1991, p. 87) foi algo novo e rompeu com as tradições GlÇão da sala de aula que estava em formação. Ari es demonstrou
estabelecidas. O governo das crianças aj ustou-se progressivamente que esta nova consciência ele que a criança precisa\·a de um es-
a um modelo de confinamento em instituições que buscavam a paço específico é responsável pela lenta formação elas salas de
formação completa, em todos os aspectos, da criança ou do adoles- aula de acordo com a idade. "Durante muito tempo, a escola
cente. Evidentemente, este modelo não se generalizou por comple- comportou-se com indife rença frente à divisão por idades por-
to, uma vez que estas instituições eram caras, porém o inlernato que seu objetivo principal não era a educação das crianças. A
passoi1 a ser considerado a condição ideal parei a aprendizc1gem . Aima- escola de lati m ela Idade Média não estava preparada para assu-
gem do estudante da Idade Média- um menino de 10 anos podia mir os papéis da fo rmação moral e social. A escola medieval não
começar seus estudos de gramática - que se deslocava de uma l se destinava aos escolares - era antes uma espécie de escola
condição ele aprendizagem a outra, por espaços utilizados para o
ensino, mas que não eram muito diferentes nem mais higiênicos
j técnica para o ofício sacerdotal, tanto 'dos velhos quanto dos
jovens'. Assim, adm itiam-se na escola todos os estudantes possí-
cio que um estábulo, foi paulatinamente substituída pela imagem veis, sem preocu pação de serem eles crianças, jovens ou adultos"
de um estudante que se subordinava a normas cotidianas concretas (Aries, 1996, p. 458). Embora já começasse a ser definido um
e a um espaço escolar separado da vicia na rua (Snyders, 1974). espaço separado - uma sala de aula dentro de uma escola - e
1 já se pensasse em antecipar a alfabetização das crianças, os pro-
cessos que ocorriam nesse espaço estavam vinculados ao passado.
\ "O ensino da escrita pelo professor, vale lembrar, era quase um
\
ensino para adultos. Daí decorre uma fom1a de ensino (. .. ) orien-
tada para os ofícios e suas corporações na Idade Média, e que se
1 destinava aos aprendizes" (Aries, 1996, p. L~ 19). Ou seja, o cânone
do conhecimento ampliava-se às crianças pequenas, mas o pro-
blema é que não havia um método específico para elas. Por um
lado, porque não haviam sido realizadas experiências de escola-
rização infantil em grande escala, mas principalmente porque,
como argumenta Aries, a infância como tal, como identidade
que demanda tratamento e sensibilidade particulares, não exis-
tia na Idade Média, e estava sendo formada paulatinamente na
Fig. S. Aprendizagem da gramática na alta Idade Média, extraído de um manuscri-
então nascente modernidade. Assim sendo, as cenas de ensino
to inglês do século 14 (Extraído de: R. Alt. Pictorial History o( Education and descritas pelo autor são um tanto grotescas: são formas vincula-
Sc/100/s, vol. l ,Volk und Wissen Volkseigner Verlag, Berlim, 1961 ). das à prática de aprendizagens, porém sem método específico:
51
- .
A I MVENÇÃO DA SALA DE A ULA
NAS CE A SA l A DE AULA. p
)
.o APEL DA flE llGIÃ O (0 \' 0 PA.O f [ff.,\
"assim devemos imaginar o andamento do ensino: uns apren-
maior ou menor grau as d .
.É natural, portamo, ~'u/~~r~seb:tv1da r: l'.giosa (Le Goff, 1984).
dem a soletrar, outros, a cantar" (Aries, 1996, p. 405).
Por que motivo, questiona Aries, a criança começa, instituições e das regu laç- b ' es teoncos e a estrutura das
nessa época, a ser vista com outros olhos? O que leva a socieda- ' oes so re a trans . - 1
ressem nos espaços re11g1 . .
osos. missao e a cultu ra ocor-
de a, de um momento para outro, considerar que as crianças
- Martinho Lutero Cl 483-15 ) . . . .
merecem um tratamento especial? No nível da sala de aula, o
que se pergunta é por que motivo as crianças precisam de uma
sao. Clérigo católico da Baixa S -
sua vida religiosa em
:6 fo1º,m1c1ador dessa divi-
axoma (atual Alemanha), iniciou
forma de comunicação "metódica" especial. O cenário em que . um convento p - ~ . .
enVJado a Wittemburgo d , orem o1 postenonnente
se instala este processo é a Europa do século 16. Uma Europa nar teologia. Na manhã,~\~ sJ tomou doutor e passou a ensi-
divi.dida em "confissões". suspeitava que o papel q e 1 e outubro de 1517, Lutero não
. ue evava em su - .
porta da igreja de Wittembur os . . , ~s maos para fixar na
A SA LA D E PA RT O DA SALA DE AULA :
mações, e também de grand g ena o tntc10 de grandes transfor-
HaVJa. e es guerras na Eu -
1ormulado 95 teses contra - ·' ropa pos-medieval ·
A DI VI SÃO EM RELIG IÕES
pedia uma discussão a respeito R P'.~ticas e crenças da Igreja, e
tesa favor e contra Lut . ap1 amente . fonnaram-se fren-
Analisar o surgimento da sala de aula e da pedagogia ero, e os estados euro
como fenômeno específico implica notar a emergência de um casas monárquicas tom . - . peus nascentes e suas
aram posiçoes diversas.
novo mundo, de uma nova cosmovi.são: a da modernidade. Em Ainda que esta história · .
outro trabalho (Caruso e Dussel, 1996), assinalamos que os sé- mento dos que protestavam - os Seja conhecida como o nasci-
culos 15 e 16 marcam a consolidação de uma nova era social, movimento com mu1'tas - protestantes -, trata-se de um
expressoes Figu
caracterizada por uma urbanização crescente, uma estruturação ram o norte da Europa d d . ras como Lutero povoa-
. es e antes da m ·r -
territorial dos estados, uma concentração do poder em estrutu- orgamzado: por exemplo 200 anl!estaçao do desafio
ras centralizadas como as monarquias e o advento de novas for- existência de cultos cn· t ~ an~s antes, era possível verificar a
s aos que já - ·
mas de saber denominadas científicas. Esses fenômenos são pro- papal, e que fo ram persegui.do nao. aceitavam a autoridade
Re s e extennmados o ·
duzidos simultaneamente ao descobrimento da América, em e1onna teve expressões d. e . moVJmento da
11erentes em Cal · .
1492, e à divi.são do cristianismo europeu ocidental em várias no desenvolvimento do an l' . . Vlno, em Zwmglio, e
religiões, e são catalisados por estes acontecimentos. Trataremos, terianismo, na Escócia, e e!~~a~~mo, na Inglaterra, e do presbi-
em particular, deste último, por seus efeitos na configuração d~ uss, em Praga, entre outros
As demandas dos prot .
pedagogia moderna. A esse respeito, é preciso salientar que o ção de novas fonnas de aut .dedstante.s ~entravam-se na solicita-
saber letrado era preservado no âmbito da Igreja, e que os inte-; . on a e relig10sa o
nhec1do dos questionamentos de Lut - . - . aspect? mais co-
lectuais da época geralmente eram clérigos que observavam, em ca da confissão-absolviçã d ero e a cnt1ca maciça à práti-
o, e as vantagens materiais relacionada:
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A 111 /[llÇÃ O D ~ SALA Of A UL A N AS ( [ A SAL A I)[ AULA o PAP[L º'' f\ [LIG l .\0 CO MO P M!lll\A
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a ela - já que nessa época era possível comprar o perdão da condenação ou a salvação depende das ações de cada um (We-
Igreja. Lutero atacou essa forma por sua hipocrisia e porque alguns ber, 1997). Esta forma de mitoridade, que, simplificadamrnte, subs-
papas haviam utilizado essa arma de maneira política e fi nanceira, tillli aautoridade da Igreja extelior pela consciência intclior, foi aceita
vendendo perdões em troca de fa\'Ores. Entretanto, havia também no norte da Europa, em algumas regiões da França, em toda a
em seu protesto uma volta ao rundamento doutrinário, que, para Escandinávia, na Holanda e na Suíça. A Alemanha atual - à
alguns teólogos, constitui um fundamentalismo: para Lutero, o época, um conglomerado ele diversos principados - aderiu ma-
(
importante não é a absolvição; o importante é não pewr Mas como ciçamente à Reforma, porém um terço da população manteve-se
evitar o pecado7 Lutero sabia que mesmo um exército ele religio- no catolicismo.
sos não poderia evitar o pecado se os próprios fiéis não estivessem
O que hoje pode parecer uma discussão superficial
convictos de que era preciso resistir a ele. Conclamou seus segui- sobre idéias religiosas significou, no entanto, 150 anos de en-
dores a converter-se em supervisores de sua consciência e de suas
rrentamentos e causou uma das guerras mais sangrentas da his-
boas ações. Ao invés de propor uma vigilãncia espiritual exterior,
tória européia. Enquanto escrevemos este capítulo, 20 chefes ele (
propôs outro procedimento: em lugar de um controle impossível
Estado ela Europa celebram o tratado ele paz de Westfalia, firma-
e dispendioso para os soberanos, sugeriu formar a consciência
do há 350 anos 0648), que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos
dos fiéis e trabalhar sobre seu íntimo. Lutero opôs-se ao uso da
entre as religiões. assi m denom inadas a partir do surgimento de
força em matéria de crenças: para ele, a fé era uma questão ele
Lutero: a católica e a protestante. Imaginemos um mundo que
consciência individual, e a coerção poderia produzir efeilos con-
trários naqueles que a buscavam (Sabean, 1984, p. 42). A inten- conhecia uma religião hegemônica, e que, de um momento para
ção dos protestantes era governar as almas: para tanto, estabelece- outro , tem duas opções que competem entre si e se enfrentam.
ram práticas como a leitura coletiva da Bíblia e o hábito de escrever Tanto a Reforma protestante, com sua ênfase na consciência in-
diários íntimos, que fomentavam a reílexão cotidiana sobre a con- dividual, como a Igreja católica, com suas posições tradicionais,
duta (Rose, 1990). 9 realizaram então grandes esforços para manter os fié is a seu lado. (
Na visão dos protestantes, cada fiel é responsável por Nos livros de História, este processo é denom inado "Re-
~
sua salvação, e o pastor é um administrador ou conselheiro, de forma e Contra-Reforma". Falaremos mais detalhadamente da
quem não dependem nem a salvação, nem a condenação. A 1 "confessionalização" das sociedades. A investigação histórica
l concluiu que as ações da Igreja para manter a fé de seus fiéis,
(
para conseguir novas formas de obediência não constituem so- (
9. Neste sentido. sõo interessantes alguns debates do épo<a sobre se deveriam ou nõo ser
oplicodos castigos oos fiéis que nõo cumpriam os rituais rel1g1osos. Em olgumos províncias mente uma reação ao desafio da Reforma protestante: na Itália,
olemõs. por exemplo. costigovom-se com repreensões e oté com o pnsõo os pessoos que
não !Teqüentovom o misso e que nõo foziom seus juramentos religiosos: entretanto. o co mo também na Espanha da Reconquista, os estados e a Igreja (
mo1ono dos teólogos protestantes opôs-se o estas repreensôes. enfotizondo que o erans· empreenderam grandes campanhas de "moralização", diante de (
gressor deveria desenvolver orrepend1mento ou sentimento de culpo mteoor poro sonar
suo falto (Sobeon. 1984. cop. 1).
transformações inacreditáveis para a época - como o desco-
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brimento da América, a desestabilização de antigas formas de
autoridade, o crescimento das cidades, eLc. 10 O que a Reforma a~ pessoas demonstravam um nível de , . . .
gido anteriormente" (D l . pontualidade Jamais atin-
protestante parece, sim, ter feito foi acelerar este fenômeno e e umeau, citado em Hunter, 1998, p.105).
cristalizar duas versôes da religião cristã na Europa ocidental, . Dessa forma, pode-se dizer . .
tlr do surgimento ci . . que, pnnc1palmente a par-
que se denominam "confissões" (Reinhard, 1995, p. 390). Este o p1otestant1smo r - b
que os fiéis apenas repetissem rit . , a nao astava às igrejas
processo de "confessionalização" estreitou os vínculos entre reli-
gião e política, e constituiu uma forma de "invasão" do religioso preendiam (a missa aind ua1s que multas vezes não com-
. a era rezada em lat· )· b
nas outras esferas da vida: o religioso e sua estruturação conver- conVJcção interior e im · uscavam-se a
que as pessoas ti
teram-se em princípio articulador da sociedade (Schilling, 1992). apenas obediente mas ta b. .vessem uma conduta não
' ' m em consc1ente, a ca da momento de
quais eram as dec1·so-
Esse processo ocorre paralelamente, e, por vezes, em oposição à es por que · •
constituição dos Estados modernos e à formação dessa sociedade eram praticadas A e t ' .. mouvo eram tomadas e como
· s e propos1to pod · ·1
que na introdução denominamos "moderna", com indivíduos dis- entre o Requerimento C : e ser ut1 a comparação
ou omumcaçã · d.
ciplinados e autogovernados. O historiador francês jean Delumeau 1513, e as palavras de Lu t . b ' o aos m tos, escrito em
afirma: "Desde que, após o Renascimento, as igrejas começaram a
ezo so re se r..
documento que informava a . d. us 1e1s. Requerimento,
o
os m 1os que p h . 0
exercer seu peso em um Estado mais poderosamente constituído suas terras aos espanh .. apa aVJa outorgado
ois e portugueses l'd
do que antes, as duas Reformas, cada qual a seu turno , puderam americanos por um cu . ' era 1 o aos aborígenes
ra evangelizador s · .
vigiar os povos da Europa com muito maior escrúpulo e eficiência pondo-se que aqueles que , em Interprete, pressu-
. 0 compreendessem ·
do que seria concebível apenas um século antes. Como resultado, senam seres capazes de b e o aceitassem
. rece er a graça d· ·
em 1700, depois de anos de perseverante esforço, havia sido al- sofreriam penas terríve1·s N- . ivma, e que os demais
· ao importam aq · .
cançada uma situação na qual a religião se apresentava como uma a consciência, apenas a d . _ UIª compreensão ou
escolha pessoal, como uma decisão do coração e da mente, como 1996). lutero , por outro la~:maçao_ e a submissão (Puiggrós,
um caminho para a salvação, porém uma situação em que todos munhão o fiel estives , .propos que no momento da co-
ou quase todos estavam comprometidos em ir à igreja, e em que se consciente de seu t . "
comungar precisa ser capa d . a o. quem quiser
z e repetir por ·
vras da comunhão e d 1 s1 mesmo as pala-
ec arar com pala ·
l O. Por porte do €stodo. forom os fomosas Reis Cotól1cos que propiciorom umo forte ofensivo receber na comunhão a l , . vras s1mp1es, que deseja
cristã com opoio estotol. que incluiu também o expulsão dos religiões judio e muçulmano 1990 p 11 5) C pa avra e o smal da graça" (Schwarz
do territóflo espanhol. No /tálio. é conheodo o coso de Sovonorolo (1452·1498). um ' · · orno veremos p •
monge dominicano fundamento/isto que. com seus seguidores. tomou o poder no cidade luterano, algumas ordens da [ ro~co te_n:po depois do desafio
de Florença e tentou introduzir umo teocrocio (governo segundo o religião) e umo vido
regulamentado de acordo com regras estritos de um cristianismo fundamento/isto. Os se·
postulados com seus p . . g e1a. catohca retomariam esses
' ropnos matizes.
guidores de Sovonorolo sõo conhecidos por suos queimas de quodros e livros. suo rejei·
çõo ó vida daquela cidade comercio/ que ero o Florença do époco. €stes são dois exem· . A pedagogia apresentou-se com .
pios de que. em visto do inicio dos tronsformoções modernos. o reoçõo religioso hovio tlvo para essa nova tarefa d o um espaço s1gnifica-
começado antes de lutero (Zentner. 1990. p. 495). tomar as pessoas mais e gover~ar_ as almas. Como fazer para
crentes, nao as cegas, mas conhecendo 1•
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A lrivrnçÃO DA SALA DE A ULA
bem a Bíblia - assunto que não estava, de íonna alguma, resol- '
'1tt bfr'Jliabl1rriít aurr ftrbtr ·brutfébrs
(,.
vido - e mais, como fazer para que conheçam e aceitem a inter-
pretação específica da Bíblia de sua profissão de íé? Para a Euro- (anbs:t>M fie <O)lift{iá)( fd)n(ett auffnd)ti~m 'Ctlb 9aftcn fQUm.
pa daquela época, este era um problema enorm e. Em suas tl'Turtír1us i.utt9cr. n?ittat~. m·. lt>, x x ÍÍiJ.
pregações doutrinárias, Lutero argumentou que o acesso de todos à
leitura é a melhor maneira de colocar o crente em contato com cr ~bit ~t1txr lJÚ rnlr eornm wtttb ttirrrt '99ttm 1ridtt tl'JAe. 19,
divindade - o que, por vezes, é associado com a expressão nem
sempre feliz de "livre interpretação da Bíblia". Para garantir es-
sas aprendizagens, produziu um fato notável: traduziu a Bíblia
do latim para a língua vulgar - neste caso, o alemão falado na
Baixa Saxônia. Isto dw à confissão luterana ou protestante um ar-
gumento central para tentar desenvolver maciçamente uma nova ins-
tituição: a escola elementm: Lutero escreveu um documento inti-
tulado "Aos alcaides e intendentes de todas as cidades sobre o
dever de íundar e manter escolas cristás", no qual pedia apoio
material e político para a criação de estabelecimentos onde se
ensinassem "alemão, a Bíblia e a palavra divina" (Lutero, 1969,
p. 69). Note-se que se ensinava a ler, mas não a escrever; a escri-
ta estava reservada às escolas superiores. A figura do professor
de escola multiplicou-se nas aldeias, ainda que muitas vezes essa
pessoa soubesse apenas ler e escrever, e tivesse se dedicado a 1
ensinar a cantar e tocar órgão nas igrejas (Sabean, 1984, p. 16).
Outra questão importante é que, ainda que se considerasse que
a mulher ocupava posição subordinada em relação ao homem,
era preciso instruí-la para que educasse conetamente seus filhos (
dentro da Íé cristã. Isto levou a um crescimento relativamente
rápido da alfabetização das mulheres nos países protestantes
(Graff, 1986). Muitas vezes, as mulheres dos pastores (que pro-
vavelmente tinham um nível de instrução muito rudimentar, e Fig. 6. Ilustração da Bíblia de Lutero (Extraído de: H. Schiffer e R. W inkeler.
não sabiam escrever) educavam as meninas, enquanto que os Taunsend jahre Schule. Eine Kulturgeschichte des Lerne·ns in Bildern, Belser Verlag,
pastores encarregavam-se dos varões. Stuttgart-Zurique, 1993).
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A I NVENÇÃO DA SALA DE A ULA
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Al11 (li'\ A
De maneira geral, o protestantismo, com as diferentes
das instalaç - d
correntes que o constituíram,_deu grande impulso à escolariza- oes a escola· cad
se a um · · • a professo
ção, e, em particular, à pedagogia. Preocupado com a conforma- a unica <í rea de e h . r era obrigado a 1· .
a promoção do on ecimento Oatim Hnitar-
ção de uma nova instituição e um novo indivíduo, centrou-se gressos s . r ~ e.studantes estava condic· ,dgrego, gramática) ;
nas formas de propagar sua pregação a amplas massas da popu- v atis1atonos ao lon o d . tona a a conduta e ro-
lação. Algumas tendências, principalmente a dos calvinistas em ez, reconheceria esse . g o ano, a universidade p
Genebra, foram mais longe e tentaram criar uma sociedade dos to do curriculum (esta ~r~gresso nos estudos como co~Jor sua
homens "à imagem e semelhança" das escrituras cristãs. Nelas se
palavra foi assoei e rece ter sido a primeira v emen -
que tem atualn ada) ao sentido moderno de " ez em que essa
valorizavam e se prescreviam ordem e disciplina rigorosas, e a 1ente . cu rso de estudos"
escola foi estruturada segundo esses parâmetros. Muitos dos clé-
rigos e leigos que ali se educaram difundiram por toda a Europa
os novos métodos de ensino baseados em uma organização se-
qüenciada do conhecimento.
Aparentemente, os calvinistas tiveram muita iníluên-
cia na adoção de termos como currículo, aula e método na pe-
dagogia (Hamilton, 1989, p. 46 e ss.). Em primeiro lugar, prega-
vam que a vida·devia seguir uma regra, uma ordem, determinadas
pelo ·cumprimento das sagradas escrituras, e que a Igreja devia
impor essa disciplina a seus fiéis. junto à desconfiança sobre as
tendências naturais que os levavam a ter rígidos códigos de dis- Fig. 7. Planta ""' ..... .....,._,, ~ ....
da escola d G , - ...
ciplina, os calvinistas aderiam à idéia de que o homem (orienta- pavimento, com as d e ui/ford, 155 7 1586
Seaborne. The En /tas em que cada cômod~ i . ' planta baixa e primeiro
do pela Igreja) podia dominar suas paixões, e que devia educar-
University o f Toro~;:h p~choo/. lts Architecture ~~~oo~struído'.(Extraído de: M.
se dentro desse objetivo. Assim, deram muita importância ao aula; courtyord: pát' . . ess, Toronto, 197 /) (li d _gan1zot1on, 1310-/ B70
método de ensino e de orientação da Igreja. Na Academia de ush . h 'º·statrcase· e d ra uçao· sch I
er s ouse: aposenros do . sca a; master 's house· a . oo room: sala de
'
Genebra, formaram grande número de discípulos vindos de to- grande dormitório. professor assistenre; librar;· ::i~entos do professor; 1.
. ' loteca; greot chamber:
das as partes da Europa, que posteriormente ensinariam em seus l'
1 /1'
locais de origem. Um deles, o escocês Andrew Melville, foi o ! Por outro lado .
diretor da Universidade de Glasgow, onde implementou seu sis- f
esse desafio. Em 1534 a confissão católica também . ti
1 Igreja católica, denomi, ~ndou.-se uma nova ordem d reagiu a
tema - uma combinação da aprendizagem com Calvino e das Seus oponent na a Socretas}esu (Co . entro da
tradições medievais. As reformas que impôs incluíam: residêl}i." '" . ,, es chamavam seu . mpanhra de Jesus) ,..
Jesuuas , nome que se cansa r s Integrantes, ironicamente de.
eia obrigatória de cada reitor ou diretor da Universidade dentro
ordem. Os jesuítas formara~ ou com a acelerada expansã~ d
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uma cone .hierarquizada, co~
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NASCl A ),\ LA or Au LA o P APEL DA f\Eu c. 1Ão co.110 PA f\T El flA
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algumas rem rniscências militares, que combateu a crescente in - ção, cuidados , programas e controle: a escola. Para gove rnar
fluência dos protestantes. Uma característica muito específica os fiéis sob a ameaça ela existência de outra confissão, foi ne-
elos jesuítas foi sua obediência direta ao Papa, em oposição à cessário um processo ele afirmação de certas disposições, atitu-
dependência ao monarca ou ao senhor local, como acontecia des e idéias. Em fllnção ele suas características ele duração, perse-
anterionnente. Os jesuítas destacaram-se por sua ação educati- verança e constâ ncia, o processo de escolarização aparecia como a
va, fundando inúmeros colégios e universidades que, em pou- forma maciça ideal para atingir esse objetivo.
cos anos, espalharam-se por toda a Europa. Como bem expres-
sou Émile Durkheim no início do século 20, 11 embora os jesuítas
tentassem recuperar o terreno perdido para a Reforma protes- A SALA DE AULA CHEGA COM ATITUDE DOMINA DOR A :
tante, "tiveram que compreender muito rapidamente que, para DEFINIÇÃO DO PODER PASTORAL
alcançar seus objetivos, não bastava apenas pregar, confessar,
catequizar: mas que o verdadeiro instrumento ele dominação das Co mo vimos, a sala de aula como espaço particu la r
almas era a educação da juventude. Decidiram, então, apoclerar- começa a delinea r-se no final da Idade Média. Entretanto, a
se dela" (Durkheim, 1992, p. 293). No caso das colônias ameri- pergunta sobre o que deveria ocorrer entre as quatro paredes
canas, sua ação, juntamente com a dos franciscanos, será funda- da sala de aula era ainda uma questão totalmente aberta, ou ao
mental para a educação da elite crioula e indígena. menos em gestação.
Em síntese, para produzir urna posição católica ou Em seu livro sobre o surgimento da escola moderna,
protestante de profunda convicção, ambas as Igrejas encontra- Anne Querrien afirma que a pergunta inicial da pedagogia era:
ram um espaço em desenvolvimento ao qual dedicaram aten- como dirigir e ensinar uma tropa de alunos? como governá-
los? (Querrien, 1979, p. 45). Para a autora, o único mode lo
l l. fmtle Durnhe1m ( 1858-191 7). que voltaremos o menoonor no capitulo 4. fo1 um teónco disponível pa ra esta tarefa era o modelo militar, portanto a sala
soc1ol francês considerado um dos grandes dóss1cos da sooolog10. Seus diversos traba-
lhos defendiam o posição de que muitos fatos cons1derodos "pessoais" ou "notur01s " de· de aula foi estruturada como um espaço no qual se produz
corriam. no verdade. de estrvturos soc1ois. Por exemplo. o foto de que estotistKamente o uma militarização particular. Sem dúvida, os exércitos - que
número de suicídios de protestantes é mo1or do que o de cotól1cos levou DurHheim o ver o
su1cíd10 como um fenômeno soe/OI influenoado pelos diversos regras dessas confissões. e ainda não eram as formações disciplinadas e uniformizadas que
não simplesmente como uma deosào pessoal. Mesmo assim. questionou-se sobre como conhecemos atualmente - não eram o tínico modelo de referência
serio passivei que os sociedades se mantivessem unidas e. nesse contexto. escreveu
diversos trobolhos sobre o papel do educação o esse respeito. €ntre suas obras desco- sobre como governar um grupo. As tradições religiosas proporcio-
com-se: A divisão social do trabalho ( 1895). O suicídio ( 1897). As formos elementares do navam outro modelo que inspirou muitos pedagogos no momento
vida religioso (1912) e vónos textos metodológicos. fntre seus trabalhos sobre educoçôa
encontram-se: História do educação e dos doutrinas pedagógicos (aulas dos onos 1904- em que perguntaram de que maneira a sala de aula deveria ser
1905. publicados pelo pnme1ro vez postumamente. em 1939) e Educação e sociologia organizada: o pastorado. Tudo parece indicar que, àquela épo-
(1911). Ver também. de vónos autores. Educação e sociedade (1980). Rindo que os
posições de Durnheim nôa sejam desenvolvidos neste trobolho. troto-se de uma leitura ca, os pedagogos não viam numerosos conjuntos de alunos
recomendóvel poro o percurso aqui proposta. como uma "tropa", mas sim como um "rebanho". (
(
6J: (
1
A I NVENÇÃ O DA SALA DE A ULA
N 11scE A SA LA DE AuL
A . O P APfl DA í\ fLi GIÀO COMO p Af\ f [ l l\A
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Na visão de um grupo de crianças como um "reba-
mente de governar as pessoas Para .
nho", estabelece-se um tipo de conduta, uma forma de liderar a de.maneira abrangente, deve~o ·~ara~~enzar o poder pastoral
situação que denominamos "sala de aula", que tenta articular-se objetivo não era somente a m Ih s I/nt1f1~ar seus propósitos: o
e vincular-se com essa conduta de si mesmo baseada na boa ou homens, mas também le ~r isposição das coisas para os
má consciência: o poder pastoral. A vinculação entre o desen- sua sa vaçao Este ob · ( b
técnicas que mantivessem - b h .
0
~e ivo am icioso exigia
volvimento da modernidade e a idéia do poder pastoral que ex- l empo, técnicas que se ocu a ie an o como totalidaae, i e, ao mesmo
poremos a seguir deve-se também ao trabalho de Michel Fou- cau/t identificou essa orie!ta s~em de cada membro do rebanho. Fou-
cault. A idéia básica do poder pastoral é que o poder do pastor a cada um" (em latim O çao co.mo um .poder dedicado "a todos e
não é exercido sobre um espaço, uma cidade, mas sim sobre um ta trabalha com um~ e;nes e.t smg.ulanm). Este tipo de condu-
rebanho ou um conjunto ele homens que se deslocam (Foucault, onom1a suo! de pecad
tos, tendo sempre como ob . . os e merecimen-
l 992a, p. 268 e ss.). Esta idéia é uma representação ancestral do tor decide de que maneira ~~~~eº a s~!vação. Uma vez que o pas-
poder que provém das grandes culturas asiáticas da Antigüidade esse equilíbrio entre atos b ser Interpretado e solucionado
Qudeus, semitas, babilônios, entre outros). Pensemos no caso ons e atos maus e · d
pante do rebanho obediênc· b 1 . , x1ge--se o panici-
clássico de Moisés no Antigo Testamento. Se Moisés tem poder, ~bediência, Foucault come~~: ,;~e uta. Com relação ao tema da
não é sobre um território limitado, sobre fortificações, etc., mas fim, a obediência transforma . um _me10 para alcançar um
sim sobre um grupo de pessoas cuja identidade é percebida como diência não é mais um i·n t -se em um fim em si mesmo: a obe-
comum. Essa idéia continua viva em muitas culturas que vivem s rumemo par h
so, mas(. .. ) converte-se ela - . a se e egar a ser vinuo-
de maneira nômade, como os ciganos ou as tribos berberes do alcançar um estado de obed~~~~~ em virtude. Obedece-se para
deserto do Saara. Assim, a idéia do pastor e do rebanho também 1997, pp. 154-155). eia (Foucault, citado em: lemke,
pode ser entendida em uma situação de diáspora ou de disper-
são, em que um povo se desloca e permanece como povo, ape- O fato de analisarmos os · .
aula através do modelo d d pnme1ros passos da sala de
sar de haver perdido seu território. Foucault contrapõe esse
pane, uma desqualificaç;op~u :!asto_ral não implica, de nossa
modelo ao modelo grego da cidade e do cidadão. Enquanto em
ao que nela ocorre Como c1· a atitude de censura quanto
sua forma ateniense o exercício do poder constitui um direito e , · 1ssemos · ..
tu1a o reservatório da cult l , o universo rehg10so consti-
é a base da democracia, no caso das formações pastorais é visto ura etrada e era t l
resse às tecnologias dispo - . , na ura que se recor-
como uma obrigação moral do pastor para com seu rebanho, e deste - mve1s à época pa .
sa ber. E verdade que ide r·r· ra a transmissão do
com relação a seu pastor: - · docentes vai na n 1 icar_as raízes rei·1g10sas
· de nossas
praticas
Esta forma de poder não se diferencia da forma grega contramao da pró · . _
pública construiu sobre · pna VIsao que a escola
apenas por acentuar as "obrigações", e não os direitos; também si mesma como
e1aramente diferenciado d I . ' _espaço secu 1arizado e
não basta reconhecer que, enquanto na concepção grega se trata no capítulo 4, quando ab:rJ:;~~~ qu:s~ao qu: ficará mais clara
de governar as coisas, no poder pastoral trata-se fundamental- zação; e, neste sentido pod s o ultimo seculo de escolari-
' e causar certa irritação. No entanto
1
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''· A I NVENÇÃO DA SALA DE A ULA
N 1\SCE A )AL A DE A ULA o PAPEL DA RELI G IÃC coi.10 PA11 r E1f\A
acreditamos que colocar em evidência essas relações e homolo- íorça. Um grupo de intelectuais urbanos - os humanistas -
gias entre as práticas de aula e o poder pastoral pode alertar-nos propôs programas pedagógicos para as elites, que são citadas
quanto aos efeitos dessa técnica de ensino e dessa utilização do com maior freqüência nos livros de História ela pedagogia. Erasmo
poder, que são diferentes de pensarmos a sala de aula como um de Rotte rdam, Vittorino da Feltre, entre muitos outros , escreve-
sistema de democracia ateniense, para citar outro exemplo. Como ram longos tratados sobre a educação dos futuros príncipes e
salientamos no capítulo introdutório, o ensino e a aprendiza- cortesãos, e insistiram na necessidade de reformar os costumes e
gem sempre envolvem relações ele poder, e, portanto, nunca são as maneiras de se comportar em sociedade, incluindo, como vi-
neutros em seus efeitos e resultados. De qualquer maneira, para mos no capítulo anterior, preceitos que envolviam desde como
nós é desejável poder ter maior consciência desses fatos e tomar assoar o nariz em público até como comer (Elias, 1990). No
decisões mais responsáveis. entanto, quem se ocupou das grandes massas, quem formulou
Recapitulando, a boa ou má consciência dos séculos programas para a escola de massa e popu lar em gestação?
(
15 a 18 constituiu a forma pela qual se buscou que as pessoas se
identificassem maciçamente com a profissão da fé católica ou Ü i'YINES O U O LA D O G RU PAL D A SALA D E AULA:
com algum dos diversos grupos protestantes. A partir da estru- . l 12
turação de instituições pedagógicas a cargo do Estado local ou O M ÉTODO G LO BA L DE ]A N A MOS C OMEN I0
nacional, o poder pastoral estabeleceu que a consciência era o
objetivo a se buscar para a produção de uma nova obediência, Surge neste período a figura de jan Amos Comenio
(1592-1670), outro reformador religioso que se comprometeu (
uma obediência que não fosse superficial. Foucault afirma que o
tipo de condução pastoral baseou-se em uma coerção moral, com a causa da autonomia dos checos (dominados por diversos
quase obrigatória, a qual, além do mais, fo i uma condução per- principados alemães), e morreu no exílio, em Amsterdã, após
manente. O ponto central é que a "obediência" já não consistia inúmeras peripécias.
em fazer o que se dizia que devia ser feito - ou seja, uma obe- Comenio foi um clérigo preocupado com a universali-
diência exterior-, mas passou a ser, na época da divisão religi- zação da mensagem divina, com a leitura da Bíblia e com a mora-
osa em catolicismo e protestantismo, uma consciência aceita e lização de grandes massas. Escreveu várias obras educativas -
"interior''. Embora essa obediência nunca fosse completa, o gran-
de programa de moralização foi formulado e implementado, e 12. Falaremos do método globo/ de ensino que todos nós conhecemos: um professor dirige-
influenciou a conformação do Estado e do individuo modernos se o um grupo de alunos e organizo centro/mente o situação de oprendizogem. No enton-
\
to. usaremos também. poro corocterizó-lo. o polovro "frontol". que se encontro no biblio-
(Schmitt, 1997, p. 648 e ss.). grofio de língua olemõ. €nquonto com o polovro globo! se enfatizo o popel do docente de (
maneiro gero/. o foto de suo polovro o/conçor todos os alunos. com o polovro frontal
De que maneira se traduziu na pedagogia esta inten- solierito-se o orgonizoçõo espacial do método em função de uma posição frontal ocupado
(
ção de moralizar as sociedades em meio a guerras e mudanças pelo professor. De qualquer monelfo. esclore<emos que ambos os termos referem-se ó
mesmo situação de comunicoçõo no interior do solo de ou/o.
\
de credo religioso? Para começar, a pedagogia surgiu com nova (
67: e
_,
NA)(f A SALA DE AU LA : o PAPEL DA l\ELIGIÃO C0.110 PA1\TEll\A
A 1NVENÇÃO DA SALA DE A ULA
entre elas, livros com ilustrações e um famoso livro de ensino de tal como o .homem as vê e tal como as utiliza, "Comenio apre-
línguas estrangeiras, utilizado durante 400 anos nas escolas eu- senta as c01s.as em sua ordem divina" (Helmer, 1990, pp. 684-
ropéias. No entanto, sua obra programática mais importante no 685). Acreditava que por meio da imitação da natureza seria
campo da pedagogia é a Didactica Magna (1632), obra que mar- possível chegar a implementar as leis da criação divina e alcan-
~~r sua perfei~ão. Na parte final da Oidactica Magna, afirmava:
ca a fundação da didática escolar moderna. Embora não chegue
a transformar as práticas educativas de sua época, estabeleceu as E nos~o desejo que o método de ensinar alcance tal perfeição
premissas sobre as quais se estruturou a sala de aula moderna. que exista, entre o que até agora era usual e corrente e este novo
procedimento didático, a mesma diferença que admiramos en-
A tese central de Comenio - seu sistema de metáforas tre a an.tiga arte de multiplicar os livros por meio da cópia e a
- apoiava-se na natureza: "ao procurar os remédios para os de- ~:te de impressão dos livros, recentemente descoberta, mas que
feitos naturais, devemos procurá-los na própria natureza. (. .. ) j~ se tornou costume" (Comenio, 1986, p. 308, tradução modi-
Daí se deduz que essa ordem que pretendemos que seja a idéia ficada pelos autores). 13 Neste século da "confessionalização", em
universal da arte de aprender e ensinar todas as coisas não deve que se procurou produzir uma nova piedade, uma fé mais fun-
e não pode ser buscada de outra forma que não por meio do que dada na reflexão e na interiorização, o sucesso do ensino passou
ensina a Natureza" (Comenio, 1986, pp. 106- 108). Por exem- a ser fundamental. Ao formular seu método, Comenio conside-
plo, quando tratava de fundamentar o conceito de solidez como ro~ a ~ficácia da transmissão como uma questão central. "(. .. )
eixo. do método para ensinar e aprender, Comenio desenvolvia ate hoje, o método de ensino foi tão indeterminado que qual-
princípios ou axiomas, tais como "a natureza não faz nada sem quer pessoa se atrevia a dizer: 'Educarei este jovem em tantos e
uma base ou sem raiz", apresentando-os como imitação da na- ta~tos anos, de um jeito ou de OL1tro, etc.'. Para nós, parece que este
tureza (neste caso, a árvore que cresce quando suas raízes se metodo deve ser: Se a arte desta plantação espilitual puder estabe-
afirmam, ou o arquiteto que constrói uma casa sobre os alicer- lecer-se sobre uma base tão firme, que seja empregada de maneira
ces). Da mesma maneira, os docentes devem corneçar por tor- se~ra sem que possa falhar'" (Comenio, 1986, p. 121). Educar
nar seus alunos dóceis e atentos, basear-se em seus gostos e suas nao era uma atividade simples que qualquer pessoa pudesse exer-
vontades, e educar seu entendimento e sua memória. Essas são cer; pelo co~trário, a pessoa deveria conhecer as regras do méto-
as raízes do ensino-aprendizagem (Comenio, 1986, pp. 156-158). do e estar disposta a aplicá-las. Como vimos, esta idéia do méto-
Sua concepção era cosmológica, ou seja, estava basea- do e da ordem era muito cara aos protestantes; Comenio
da em uma ordem "natural", considerada parte da criação divi- desenvolveu-a amplamente para o ensino elementar.
na. Dentro dos projetos educativos elementares do século 17,
Comenio representou uma linha não antropocêntrica, uma vez 13. Comenio escreveu suo obro em latim, o que era comum em suo época. €mboro tenhamos
adotado como base o tradução espanholo fornecido pelo editoro Al!ol. introduzimos modi·
que o homem não constituía o centro do curriculum: enquanto ficoçôes em algumas citações do tradução olemõ de 1913. que foi reolizodo por uma
outros programas inclinavam-se pela representação d~s coisas prest191oso equipe de lotinistos.
.
- . 68
69-· .
1 1
A 1NVENÇÃO DA SALA DE A ULA
N ASCE A SALA DE AULA : o PA PE L OA RELI GI ÃO COMO P Al\ TEll\A
No entanto , Comenio tinha consciência da ruptura que
ceiro lugar, a fala e a mão. O docente deve levar em conta todos
sua tecnologia de sala de aula su punha em relação ao mundo
os meios para abrir o conhecimento e utilizá-lo de maneira con-
medieval e com as formas de aprendizagem elementar do passa-
gruente." (Comenio, 1986, p. 130). Daí decorre a necessidade
do. Opunha-se às formas de ensino que iam contra a vontade da
de formular "princípios" ou fundamentos "para a facilidade de
criança (1986, p. 141) e às pessoas que recorriam ao castigo
ensinar e aprender". Estes princípios afirmam que:
corno método educativo (1986, p. 151); propôs também que,
em lugar dos salões escuros e impessoais observados na figura 1, 1. De1·e-se começar cedo, antes que o espírito seja corrompido;
as salas de aula fossem ambientes agradáveis, cheios de luz, lim- ll. Deve-se atuar com a devida preparação dos espíritos;
pos e com pinturas educativas sobre as paredes (l 986, p. 142). ll l. Deve-se proceder do geral para o particular;
IV E do mais fácil para o mais difícil;
Entretanto, mais do em qualquer outra coisa, a novi- V Não se eleve pressionar nenhum dos alunos;
dade do método residia em seu caráter sistemático e em seu fun- VI. E todos os procedimentos devem transcorrer devagar,
damento na natureza, em sua globalidade e frontalidade. Come- VI l. Enão se deve obrigar os espíritos a nada que não seja conveniente
nio enunciou, como programa do futuro , a sala de aula que hoje para a idade e para a lógica do método;
chamamos de "tradicional": o professor- corno figura centrali- Vil!. Ensina-se tudo pelos sentidos atuais;
IX. Para sua aplicação imediata;
zada ou "encarnação" da autoridade - expõe didaticamente,
X. E sempre por um método único e constante.
diante dos alunos, que o escutam e obedecem. Um problema Comenio, 1986, p. 138.
central desta proposta é conseguir que os alunos efetivamente
escutem, e assim surgiu o tema da motivação-atenção como objeto Observemos que os princípios não mencionavam nada
de preornpação da pedagogia. A esse respeito, Comenio anuncia o sobre a organização da sala de aula: não diziam, por exemplo, se o
1
que, à época, era uma orientação nova: "para qualquer estudo "" professor deveria controlar individualmente cada aluno ou falar
que deva ser empreendido, é preciso preparar o espírito dos alu- '! com todo o grupo. Tentavam apenas garantir que a mensagem
nos. É preciso despojar os alunos de impedimentos. De nada ·, docente chegasse aos alunos, lecionando em seu ritmo constante.
adianta transmitir preceitos se antes não tiverem sido removidos
os obstáculos que se interpõem aos alunos, afirmou Sêneca" (Co- Existe um elemento na cosmologia de Comenio que
menio, 1986, p. 127). O método coloca o problema novo de estrutura toda sua didática: o panteísmo, caracterizado dentro
captar a atenção de todos, no momento em que a educação ele- de uma corrente ampla de pensamento cujo auge ocorreu en-
mentar passa a ser obrigatória - não do ponto de vista legal, tre os séculos 15 e 17 (Hroch, 1992). Trata-se de uma concep-
mas do ponto de vista moral. ção intermediária entre a visão sagrada do mundo que existia
na Idade Média e as novas correntes profanas da ciência e do
Uma vez que a natureza começa toda sua atividade no conhecimento da natureza: "Uma vez descoberto ou intuído o
interior, saindo para o exterior, "deve-se formar primeiro o co- sistema da natureza, atribui-se a ele a onisciência divina, que
nhecimento das coisas; em segundo lugar, a memória; e, em ter- impregna toda a criação de uma certa ordem, porque a mente
~
71
- . (
N ASC E A SALA DE AULA o PAPEL DA í\ELiG IÀO COMO PAll lE l l\A
A 1NVENÇÃO DA SALA DE A ULA
no ideal metodológico de Comenio. Como "a natureza trabalha
divina é perfeita. É o que a Escolástica chama de 'ordenado por
um ente uno'. A partir deste conceito, a concepção panteísta, sempre da mesma maneira", Comenio recomendava:
formu lada pela primeira vez por São Francisco de Assis, sus-
tenta que a idéia ordenadora é algo que está na natureza huma- 1. Que existisse um mesmo e único método para ensinar ciências;
apenas um único e o mesmo para todas as artes; e um único e
na , porque tudo na natureza está impregnado de Deus. Trata- idêntico para todos os idiomas;
se de uma idéia de tradição oriental que não estava nem na 2. Que em cada escola fossem seguidos a mesma ordem e o mes-
tradição bíblica, nem na cristã: toda a Criação está impregnada mo procedimento em todos os exercícios;
14
de seu Criador, e este está na Criação" (Romero, 1987, p. 80). 3. Que, na medida do possível, os livros de cada matéria tivessem
edições iguais. Dessa forma, todas as coisas aconteceriam, fa-
Se o ensino extrai sua estrutura da natureza, ela passa a admi-
cilmente e sem nenhuma dúvida.
rar 0 mundo como "Criação". O eixo central do método é esta Comenio, 1986, p. 153.
relação que Romero descreve como "ordenado por um ente
uno"; ou seja, a variedade empírica e concreta da natureza - Não apenas se unificava o método, mas também o
ainda que· pareça desordenada - é, na realidad~, uma ordem docente aparecia com toda sua centralidade, corno encarna-
que provém de um "ente uno" ou. totalid: de smgu.~ar como ção da unificação. Embora diante da característica maciça da
princípio organizador. Para Comemo, este ente ~no era, .cla- sala de aula de sua época utilizasse como aj udantes os alunos
ramente a divindade. Por esse motivo, quando mtroduz1u o mais adiantados ou mais hábeis (chamados monitores, a exem-
método ~lobal ou fro ntal, o fez como uma metáfora naturali~ta plo da pedagogia jesuítica que analisaremos a seguir), Come-
que continha essa idéia de um "ente uno" oposto a uma v~ne­ nio não queria que a autoridade centralizada do professor se
dade empírica: "o sol", que "não se ocupa apenas de objetos diluísse. As funções centrais, co mo a responsabilidade de ga-
singulares - por exemplo, um animal ou u.~ª árvor~ -, mas rantir a atenção dos alunos, cabiam ao professor: "Essa aten-
que ilumina, aquece e dá vida a toda a terra (Comemo, 19_86, ção não pode ser despertada ou mantida simplesmente pelos
p. 176). Com esta metáfora naturalista, a~resenta~a-se o meto- 1 monitores ou outras pessoas às quais seja confiada a inspe-
1
do global: a partir de então, a pedagogia passana a postular 1 ção: esse trabalho é realizado mais adequadamente pelo pró-
que 0 professor (ente uno) ordenaria uma variedade de alunos l prio professor (.. .)" (Comenio, 1986, p. 180, tradução modi-
diante de si. 1 ficada pelos autores).
O princípio unificador na sala de aula era uma tentati- Comenio propôs uma sala de :aula na qual se configu-
\
va de fazer sentir a divindade por meio dessa "derivação" da ! rava uma autoridade centralizada por meio da fala direta ao
natureza, que é o ensino global. Esse p1i ncípio estava presente rebanho ou grupo que se situava à sua frente. No contexto da
Reforma protestante, movimento do qual sua ordem fazia par-
14. ( omo vimos no coro<terizoçôo que Foucoult foz do poder pastoro/. troto-se - assim e~ te como seita dissidente, tal proposta não era surpreendente.
o panteísmo - de umo trodiçóo oriento/.
-.• 72
73 - . .
1
A J NVENÇÃO DA 5 ALA DE A ULA
N AI CE ;\ S11Li\ DE A UL A o PA PEL Dll f\ELI GIÃO COMO P~l\TEll•. /•
No protestantismo, a pregação constitui o eixo central da mis- Pensemos nas conseqüências. A azinheira e a fa ia, o
sa; é "o meio clássico de comunicação religiosa na forma de céu e a terra não estão na sala de aula. O livro e o professo r,
um discurso público". Desse modo, a pregação utiliza uma sim. Ou seja, somente se o livro e o docente tiverem uma es-
"forma de apresentação própria". Centralmente, "a pregação é trutu ra de acordo com a natureza poderão exercer uma in ílu -
entendida principalmente pelas pessoas que freqüentam o ser- ência semelhante à dessa natureza, que, como vimos, é uma
viço religioso regularmente e que podem ver-se confrontadas expressão da divindade. No entanto, essa iníluência de acordo
com a interpretação religiosa da realidade exposta pelo pastor" com a ordem natural deve ser compreendida, e não apenas
(Drehsen, 1995, p. 993). "percebida". No mesmo método que unificava a autoridade em
Assim sendo, tudo parece indicar que o método glo- uma pessoa e suas ações (o docente), Comenio negava que tal
bal ou fronta l adota muitos elementos da tradição e da cena da auto ridade fosse o único princí pio docente. Nesse pastorado
pregação. Assim como a regularidade da freqüência à missa é imaginado por Comenio, as "ovelhas" pra ticariam "técnicas do (
uma característica importante para a aceitação dessa represen- eu" baseadas na obediência por meio da compreensão. Não lhe
tação particular, dessa "interpretação" da realidade, que é a interessava a obediência cega à autoridade, mas sim a obediên-
pregação, a regularidade do ensino e sua cotidianidade assegu- cia pensada, aceita: temos aqui o programa de Lutero desen-
ram que aqueles que escutam possam fazer parte da cena se- volvido em sua expressão máxima. Assim, para ele, o proble-
guindo sua forma de apresentação; que é diferente das comu- ma do controle direto era secundário: "pode-se argumentar que
nica ções que existem fora da esco la. A comunicação a inspeção individual é necessária para o controle, para verifi-
car se cada aluno tem seus livros limpos, se faz suas tarefas
hierarquizada e ritualizada estabelece-se por meio de uma cena
com seriedade, se memoriza os detalhes, et.c. E para tanto, quan-
constante, que se repete mediante diversos conteúdos. No
do são muitos os alunos, há necessidade de muito tempo. Res-
entanto, essa unificação da figura da autoridade e de sua cen-
pondo: não é preciso ouvir todos sempre, nem revisar sempre
tralidade não significa que a relação de autoridade seja uma
os livros de todos. Pois o docente conta com o auxílio dos
simples imposição. Comenio afirmava: "é preciso ensinar aos
monitores, que exercerão vigilância sobre os alunos sob seus (
homens, enquanto é possível, que devem conhecer as azi-
cuidados para que cumpram seus deveres com a maior preci-
nheiras ·e as faias, não pelos livros, mas pelo céu e pela terra;
são" (Comenio, 1986, p. 182). Desta vigilância surgiria a obe-
ou seja: conhecer e investigar as próprias coisas, e não obser- diência reflexiva. O que importava era adequar as almas con-
rações e testemunhos alheios sobre elas". Para tanto , reco- forme essa natureza divina. O governo das crianças apresenta-se
h1endava que "nada deve ser ensinado simplesmente a partir nesta versão por meio de sua condução grupal. Comenio acre- (
lla autoridade: tudo deve ser exposto por meio da demons- ditava que a obediência grupal, mais do que o controle indivi- (
lração sensorial e racional (Comenio, 1986, p. 163, tradução dual, constituía a técnica escolar adequada para conduzir a alma (
~odificada pelos autores). . das crianças maciçamente. l
74 75-.

1 A 1NVENÇÃO DA SAL A DE AUL A
N ASC E A SALA DE A UL A . o PAPEL DA RELIGIÃO COMO PA l\IEll\A
O programa pedagógico de Comenio não chegou a se
concretizar completamente, e, superando a Didactica Magna, suas
obras mais difundidas foram seus livros didáticos "sensoriais" (apren-
der por meio de imagens, como em Orbis sensualiLim pictum,já men-
cionado). Embora hoje seja considerado normal ou natural, o mé-
todo global ou frontal não era facilmente assimilável em sua época.
De maneira geral, nas escolas luteranas e protestantes, assim como
nas católicas, prevaleceu a "memorização simples" (Karant-Nunn,
1990, p. 36). E como veremos, mesmo dois séculos depois, a gene-
ralização do método global-frontal era uma grande inovação.
SJNGULAT/i'v/ OU O LADO IND IVIDUAUZADOR DA SALA
<E.Ar.:~ .. ocJ.r/.,,.. + 6.z. DE AULA: O MÉTODO DOS JESUÍTAS
9'%« , (~
L~..,.- c11t.,,_, ,ui:MJ,
Embora Comenio tenha-se baseado em como a centra-
lidade da pregação poderia ser transferida para as formas de co-
municação da sala de aula, existiu também uma pedagogia que
acentuou o outro aspecto do poder pastoral: a atenção a cada
individuo (Singulatim). já mencionamos anteriormente que a
escolarização foi uma das tarefas prediletas dos jesuítas, que, no
entanto, imaginaram em sua pedagogia uma sala de aula dife-
rente daquela proposta por Comenio.
A pedagogia jesuíta está materializada na regulamen-
tação de estudos válida para todas as escolas da ordem em todo .
o mundo: a Ratio Studiorum. Esta regulamentação foi elaborada
ao longo de várias décadas, por meio de consultas às diversas
organizações da ordem, e com base em experiências que se acu-
Figs. a e 9. Ilustrações dos livros ]anua linguarum reserata ( 1675) e _Or~is
mulavam na área escolar. A primeira versão definitiva foi final-
sensualium pictu m ( 1658), de Jan Amos Comenio. (Extraídas de: R: Alt. P1àoflal mente sancionada em 1599, mantendo-se em vigor até 1832,
History o( Education and Schoo/s, vol. I, Volk und W issen Volkse1gner Yerlag, quando recebeu pequenas modificações. Todas as obras da pe-
Berlim, 196 1).
..- 76
77-. .
1 1
NA SCE A )ALA DE AU LA o P APEL DA l\(LIG IÀO CO'AO PAl\TEl l\A
A 1NVfNÇÀ O DA SALA DE A ULA
dagogia jesuíta dedicaram-se a comentar, introduzir, exemplifi- adiantado, capaz de controlar os demais individualmente em seu
car e detalhar a Ratio Studiorum, motivo pelo qual essa obra as- processo de aprendizagem, e esse aluno era nomeado ajudante
sumiu o caráter de texto pedagógico básico dentro da ordem. do docente. A esse respeito, diz a Ratio Studiorum:
Os jesuítas insistiram decididamente nas relações entre
Os monitores devem ser escolhidos pelo docente. Os mesmos devem
o ensino, o governo e a pregação. Um membro da ordem poderia
ouvir o que foi memorizado, devem recolher os trabalhos escritos para
não ser um grande teólogo, nem estar interessado nas sutilezas da o docente, devem anotar em um caderno quantas vezes a memória
discussão religiosa. Nesse caso, os jesuítas abriam a seus irmãos falha, quem não fez o trabalho escrito ou quem não trouxe os materi·
outra possibilidade: uma carreira escolar. Esta atividade prestava- ais; devem também realizar outras coisas, caso o docente assim deseje.
se àqueles que podiam fazer pregações e govemar. 15 Os jesuítas Ratio Studiorum, 1887, p. 395.16
foram provavelmente a primeira ordem a dedicar-se à formação
de um corpo erudito, que ocupou posições não apenas ensinando . Os monitores foram uma criação da pedagogia jesuíta que
outras gerações como parte da ordem, mas também dentro da determinava grande parte da vida cotidiana na sala de aula. Nas
crescente burocracia do Estado (Varela, 1983). regras para os professores das classes iniciais, o artigo 19 determina:
A sala de aula jesuíta era um espaço claramente recor-
tado da vida diária, onde se falava apenas o latim e onde se ensi- Os escolares devem repetir para os monitores aquilo que deve ser
navam conteúdos literários clássicos. O latim, o grego e a religião memorizado. (. .. ) No entanto, os próprios monitores devem repetir
constituíam a essência do curriculum. Dentro da estratégia do po- o que deve ser memorizado diante do monitor superior ou do.pró· (
prio docente. O professor deve ouvir a repetição de alguns alunos,
der pastoral, a pedagogia jesuíta deu destaque à questão da aten- . 1'
como, por exemplo, os mais lerdos e aqueles que chegam tarde,
(
ção individual, provavelmente derivada da tradição da prática para poder comprovar a confiabilidade dos monitores e para manter (
católica de confissão e absolvição, tão criticada pelos reformadores o esmero de todos os alunos. (
'
protestantes. Um dos obstáculos para esse método era o grande -l Ralio Studiornm, 1887, p. 385.
(
número de alunos na sala de aula jesuíta (calcula-se que no espaço
pedagógico conviviam entre 200 e 300 alunos). Os jesuítas esfor- Ou seja, assim como o restante dos alunos, o próprio (
1 çavam-se para criar um método que conservasse tanto a indivi- monitor também é testado de maneira individual. Essa forma de (
i dualidade quanto a educação de massa. Para tanto, criaram a fazer perguntas individualmente equivale ao que em nossa cultu- (
1 figura do monitor: identificava-se o aluno mais esperto ou mais ra pedagógica identificamos como "dar aula". Nome curioso, uma
vez que se supõe que a aula seja um discurso contínuo, enquanto
1S. O artigo 7 do Rotio Studiorum decloro: "se alguém ofino/ nõo tiver um to/ente extroordinó·
rio. mos tiver um dom excepcionol paro fozer pregoçoos e governar". pode compensor
16. Nos citações do Ratio Studiorum. tomamos com base o edição b1/íngüe (lotim-olemõo) de
sues deficiências no disputo teológico com sues hobilidodes "que são de interesse do
Pochtler (1887). que foz porte de importante série documento/ do fino/ do século 19: (
Sociedade·. por meio de mois oportunidades de formação com vistos o um futuro posto
Monumento Germonioe Poedogogica.
escolar (Rotio Studiorum. 1887. p. 249). (
-

. 78 79-. . (
( .
_,J illl.....__________________________._. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1....1 \ )
NAS([ A )ALA D[ A Ul A o PAP EL DA f\ EUGIÃO COMO P Al\IEll\A
A 1NVENÇÃO DA SALA DE A ULA
que a aula escolar que conhecemos lembra muito mais um inter- Basicamente, a sala de aula jesuíta é uma sala de aula de
rogatório (uma forma de confissão?) do que a apresentação sus-
indivíduos. A unidade à qual o docente se dirige é um aluno, seja
tentada e contínua de um tema. Além da participação dos moni- ele um aluno "raso" ou um monitor. O importante é que, nesse
procedimento de interrogatório ou repetição, o docente jesuíta
tores, existia ainda na sala de aula jesuíta a aula como ação exercida
trabalha basicamente conteúdos de memorização que devem ser
pelo docente. No artigo 27 das regras para professores das classes
reproduzidos na sua presença. Aparece aqui, com grande eloqüên-
iniciais, consigna-se sua estrutura: em primeiro lugar, lê-se em
cia, o caráter quase obrigatório do pastorado: a "salvação" do alu-
voz alta um trecho de um texto, "em seguida explica-se muito
no implica aprender um texto concreto, que deve ser memoriza-
sucintamente seu conteúdo, e, caso seja necessário, a relação com
do e estar à disposição na memória a qualquer momento em que
o que foi visto anteriotmente". A seguir, explicam-se as orações
o docente o solicite. De certa forma, o aluno que repete seu texto
obscuras, "relaciona-se uma coisa com outra e esclarece-se o sen-
diante do docente jesuíta confessa seu pecado e o expurga, acei-
tido, porém não de maneira infantil, substituindo um termo por
tando a orientação, o texto e o ritmo que o docente determina. A
outro, mas sim por meio de uma explicação real do sentido por
esse respeito, podem ser salientadas analogias entre a aula-inter-
meio de orações mais claras" (Ratio Studiornm, 1887, p. 391). rogatório jesuíta e os "exercícios" que seu fundador, Santo Inácio
No entanto, a aula era apenas urna pequena parte da de Loiola, havia escrito para purgar os pecados da alma. Os "exer-
jornada escolar. Os jesuítas preocuparam-se mais com a ativida- cícios" de purificação eram pequenos martírios que os fiéis iníligiam
de cqntínua na sala de aula e com a personalização do contato. a seus corpos para "purificar" a alma. Enquanto repete suas frases
Vejamos as regras para o professor de humanidades: na língua oficial dessas escolas- o latim - , o aluno jesuíta apren-
de que a obediência é uma virtude; o importante não é apenas o
A divisão do tempo é a seguinte: na primeira hora da manhã, os texto curto de Cícero que deve memorizar, mas também a mecâ-
monitores devem ouvir o que foi memorizado com relação à elo- nica de que existe uma ordem determinada e um papel designado
qüência e à métrica; enquanto isso, o docente corrige os trabalhos para cada um. Ainda que esta idéia esteja na base de cada situação
escritos recolhidos pelos monitores, e os escolares fazem alguns exer- na sala de aula, e que também seja encontrada nas prescrições de
cícios determinados pelo docente; finalmente, alguns escolares de-
vem falar diante da classe aquilo que guardaram de memória, e o
Comenio, a particularidade do jesuíta é que o aluno responde e
docente deve controlar as anotações feitas pelos monitores. obedece como indivíduo. Em Comenio, o momento da obediên-
17
Ratio Studiorum, 1887, p. 385. cia é basicamente um momento coletivo, no qual todos, a um só
tempo, ouvem as mesmas coisas, preparadas de forma a produzir
17. Esta organização é basicamente o mesmo poro outros disciplinas. Por exemplo. os regras efeitos semelhantes em todas as cabeças.
poro o professor de retórico. artigo 2. estabelecem que: ·a divisõo do tempo é o segumte:
no primeiro hora do monhó. (os alunos) repetirõo o que foi memorizado: o docente comge Outra diferença é que, no caso dos jesuítas, o sistema de
os trabalhos escritos recolhidos pelos monitores. e. enquanto isso. diversos exercfoos vigilância sobre a obediência está muito mais desenvolvido e or-
escolares são dados oos olunos: fino/mente.o docente repete o /içõo anterior" (Rotio
ganizado. Cada aluno devia confessar-se pelo menos uma vez por
Studiorum. 1887. p. 401).
81 .
- -
..- 80
A I NVENÇÃO DA S ALA DE A ULA
N AS([ /\ )A LA D[ A ULA o PAPEL D/\ f). (LIGIÃO COM O P Al\l[ ll\A
mês, sempre com o mesmo confessor, que, dessa forma, manti-
·m 0 aluno dos j·esuítas nunca ficava só" (Durkheim, 1992, p. 325).
nha a relação de seus confidentes. Como manifestado pelas reco- SI , · l
Seiia possível estar só na sala de aula de Comemo? Prov~~e mente.
mendações aos docentes da ordem do padre j ouvency, no século
De qualquer forma, naquela, assim como em outros cenanos peda-
17, a partir desse conhecimento íntimo, nada acontece por acaso
gógicos, um docente pode falar e os alunos pode~ pensar e~ qual-
- nem o sermão, nem a aula, nem o livro que o professor traz
quer outra coisa enquanto parecem prestar atençao. D~ante d~~, os
debaixo do braço nos encontros "casuais" com os alunos:
jesuítas fo1mularam um sistema didático que reduzma. ao mm1mo
essa possibilidade, e que garantiria que cada pessoa havena de obede-
Será bom falar com freqüência com os alunos que parecem mais rela-
cer e trabalhar sobre sua consciência cumprindo as ordens dadas. 18
xados em sua conduta e que talvez estejam expostos a vícios mais
graves(. ..), lendo um texto ao acaso ou recomendando um livro sobre Apresença do monitor assegurava que a autoridad~ fosse_uma indivi-
piedade que esteja à mão; recitando um conto(. .. ), fazendo com que dualização "próxima", um individuo que era a contmuaçao dos olhos
compreendam que mentir, enganar, jurar, pronunciar palavras obsce- e da autoridade "verdadeira" ou original, que é a figura do professor.
nas e ímpias, criticar (. ..) são comportamentos vergonhosos; em todas
as circunstâncias, fará escolhas com habilidade e criará, mesmo à dis- Por outro lado, o sistema jesuíta i.ntroduziu outras novi-
tância, oportunidades para ensiná-los a conduzir-se em direção a Deus dades. Por exemplo, os jesuítas foram os ptirneiros a utilizar as tão
(. ..). Dará a cada aluno livretos que falem de piedade e recompensará discutidas notas escolares. Em um esquema no qual se instalava a
aqueles que melhor se aplicarem à sua leitura. Em seguida, pergunta- competição dos sujeitos individualizados na vida cotidiana d~ sala
rá aos alunos se os leram (. .. ), porém sempre com doçura, urna vez
que o maior inimigo da virtude é a violência.
de aula, as notas foram um incentivo à competição. Como afirma
Citado por Varela, 1983, p. 134.
Foucault, a forma pedagógica da sala de aula jesuíta era "a guerra
e a rivalidade" (Foucault, 1995, p. 149). O artigo 31 das regras da
Assim sendo, observa-se, no caso dos jesuítas, que a individuali- Ratio Studiorum para os professores das classes iniciais determina:
zação da educação é uma individualização do momento de obediência. 1 1
Não se trata da individualização da pedagogia contemporãnea, ligada (. ..)geralmente, fica combinado que o professor pergunta e os com- 1
ao desenvolvimento das capacidades e dos gostos da criança, mas petidores respondem, ou que os competidores fazem per?untas_ en- 1
tre si. Este procedimento deve ser levado em alta constderaçao e 1 l
sim uma individualização como forma de alcançar ou convocar cada
deve ser desenvolvido tão freqüentemente quanto a disponibilidade
aluno no momento de obedecer. Como salienta Durkheim, um dos de tempo permita, para que se promova urna competição respeitosa,
princípios dos jesuítas era que "não pode existir uma boa educação essa poderosa alavanca do esforço e da aplicação.
sem um contato ao mesmo tempo contínuo e pessoal entre o aluno e Ratio Studiorum, 1887, p. 393.
o educador, e com duplo objetivo. Em primeiro lugar, porque o alu-
no não deve jamais ser abandonado a si mesmo. Em sua formação, é 18. Com relação ao uso do tempo nos escolas jesuítas. Foucoult comento: "o princíp'.o subjo·
cente ao emprego do tempo em suo formo tradicional ero essencialmente negottVO; pnn·
preciso que seja submetido a uma ação que não conheça nem eclip- cipio do não ociosidade: é proibido perder um tempo contado por Deus e pago pelos
ses nem desmaios: porque o espírito do mal está sempre atento. As- homens: 0 emprego do tempo devia afastar o perigo de esbonjó·lo. o falto moral e o falto
de honradez econômico · (Foucoult. 1995, p. 158).
.- . 82 83:
J 1
l A I NVE NÇÃO DA SAL A DE A ULA
NASCE A SALA DE AULA ; o PAPEL DA f'ELI GIÃO COMO PAíll [ lf\A
Durkheim também vi.u na introdução da competição educativos, La Salle organizou, por volta de 1680, uma co muni-
dade denominada "Irmãos das escolas cristãs", que se incumbiu
entre os alunos um fator de sucesso das escolas jesuítas, dentro.de
de abrir escolas e casas para crianças pobres a partir de doações
sua estratégia de "contínuo envolvimento" dos alunos (D.urkheim,
dos ricos ou de ajuda dos municípios. Seu empreendimento
1992 . 3 26). De acordo com seu mérito, os alunos senam agru-
pado~ ~m insatisfatório, ruim, fraco, mé?io ~satisfatório". Estas alcançou sucesso significativo, uma vez que os municípios ga-
rantiram apoio financeiro e a rede de "escolas livres" expandiu-
categorias determinavam também a locahzaçao de cada grupo na
se consideravelmente. La Salle criou também um sistema para
sala de aula. ajudar as famílias a mandar seus filhos para a escola: somente as
Sem dúvida, o método jesuíta foi pensado para con- famílias cujos filhos freqüentavam regularmente a escola recebiam
teúdos que iam além de ensinar ª.ler,, escrever .e fazer contas. donativos da fundação. É preciso lembrar que, até o final do
Que tipo de população escolar os Jes~n~s r~ce~iam : procura- século 19, grandes parcelas da população, principalmente das
vam? Uma vez que o ingresso nos colegi.os Je.su1tas t~nha como áreas rurais, opunham-se à escolarização de seus filhos, uma vez
requisito conhecimentos rudimentares de laum, mllltos alunos que sua colaboração no trabalho familiar ainda era significativa.
recorriam antecipadamente a professores particul~res. Por esse Além disso, embora não seja esse o caso das escolas lasalleanas,
motivo, os alunos da primeira série da escola Jesuna chegavam as taxas cobradas em muitas instituições não favo reciam a pre-
com qualificações distintas, e, conseqüent~mente, o docen~e disposição à escolarização. Esse tipo de estabelecimento centra-
podia ~scolher seus "colaboradores", ou monitores, entre os mais do na atenção aos pobres e aos órfãos expandiu-se também na
adiantados. Esta não era a situação na escola elementar ~e massa Inglaterra, a partir da fundação , em 1698, da "Sociedade para a
que nascia então. Nesse aspecto, o e~sino element~r tmha o~­ promoção da consciência cristã", que manteve inúmeras escolas
tras demandas. Essas demandas consmuem o conteudo da pro- de caridade por todo o reino (Sanderson, 1995, p. 2).
xima seção deste capítulo. La Salle escreveu um Manual para os professores de sua
ordem, que imediatamente se transformou em texto de orienta-
Ü TRIUNFO DO ASPECTO GRUPAL NA SALA DE AULA: ção da pedagogia elementar. A Conduta das escolas cristãs, que
começou a ser escrita em 1695 e foi finalmente publicada em
O MÉTODO GLOBAL PARA A CONQUISTA DA ESCOLA
1720, um ano depois da morte de la Salte, i'.lcluía três partes: a
ELEMENTAR primeira detalhava tudo o que devi.a ser feito desde o momento
No final do século 17, surgiu no mundo católico ou~ra em que a escola abria até seu fechamento; a segunda, os meios
necessários e úteis para manter a ordem na sala de aula; e a ter-
iniciativa, agora orientada para a educação elementar, e mmto
ceira definia critérios para a inspeção das escolas e a formação
bem-sucedida: a fundação de escolas para pobres por parte d~
de professores. Este Manual tornou-se ainda mais necessário à
cura francês juan Bautista de La Salle (1651-1719). E~bora tl-
medida que a ordem (que se tomou congregação em 1725) cres-
vesse participado com religiosos de diversos empreendimentos
.-. 84
55 - . .
1
1
A 1NV[N ÇÃO DA SALA DE A ULA N ASCE A SALA DE AULA o PA PEL DA f\[ll(jlà O COM O PMTElf\A
eia, incorporando mais professores à tarefa de ensinar crianças Uma das maiores inovações introduzidas pelo método
pobres. Por volta de 1790, a congregação já estava dislribuída lasalleano foi a adoção da língua malerna como p1imeira língua
por 108 cidades e povoados, e educava cerca de JS mil crianças de ensino, que parecia mais eficaz do que o latim para o ensino de
em escolas que recebiam entre 100 e 300 alunos cada uma (Ha- religião e das primeiras letras. Em suas memórias, La Salle afir-
milton, 1989, p. 70). mou: "Para crianças que escutam uma e não escutam a outra, a
língua francesa, sendo a natural, é, sem, dúvida, muito mais fácil
A inovação que Juan BauLista de La Salle produziu com
de aprender do que a língua latina. Conseqüentemente, é preciso
relação às escolas de caridade anteriores foi a maximização da re-
muito menos tempo para ensinar a ler em francês do que em la-
lação entre um professor e seu grupo de alunos: "este método
tim. A leitura do francês prepara para a leitura em latim; ao con-
simultâneo de leitura implica que cada criança traga seu livro e
trário, como mostra a experiência, a leitura em latim não prepara
que to~os os livros sejam iguais, o que ocorre pela primeira vez"
para a leitura em írancês" (Citado em: Chartier e outros, 1976, p.
(Quernen, 1979, p. 49). Ou seja, La Salle adotou o método global
128). A partir desse momento, a maior parte das experiências es-
em suas escolas, porém manteve a visão moralizadora e de con-
colares elementares foi realizada nas línguas maternas, que, em
versão das escolas jesuítas. Desenvolveu o que se denominou uma
muitos Estados, se tomaram idiomas nacionais; e o latim passou a
pedagogia do detalhe, na qual cada pequena ação, cada assunto
ser um conteúdo da educação de nível superior.
por insignificante que parecesse, submetia-se à regulamentação à
atenção e~ influência do docente. "A minúcia dos regulament~s. La Salle adotou também diversas formas disciplinado-
o olhar exigente das inspeções, a submissão ao controle dos míni- ras individualizadoras dos jesuítas, ampliando-as a ponto de exer-
mos detalhes da vida e do corpo" eram características dessa estra- cer uma "vigilãncia constante sobre o corpo infantil" e sobre o
tégia (Foucault, 1995, p. 144). A comunicação entre o docente e corpo docente (Narodowski, 1995, p. 113 e ss.). Em sua obra
os alunos tomou-se muito mais ritualizada e menos verbal. Por Conduta das escolas cristãs, por exemplo, estipulava que "os esco-
exemplo, .ªs ~rações começavam quando o professor batia pal- lares devem permanecer sempre sentados, inclusive lendo a ta-
ma.s; a recttaçao do catecismo começava quando o professor fazia bela do alfabeto e as sílabas, manter o corpo ereto e os pés firme-
o smal da cruz; e as aulas eram organizadas como uma espécie de mente apoiados no chão. Quando lêem as sílabas, devem manter
orquestra, na qual a intervenção de cada aluno era indicada pelo os braços cruzados, e quando lêem livros, devem segurar seu
professor, ao tocar um instrumento sonoro de metal chamado "si- livro com as duas mãos (. .. ), com o olhar voltado para frente,
nal" (Hamilton, 1989, p. 60). Neste conjunto harmonioso 0 si- levemente inclinado em direção ao professor" (Citado em: Char-
lêncio passou a ser um fator determinante na sala de aula: p~r um 1 tier e outros, 1976, p. 115). O mérito de La Salle foi perceber
'
lado, porque permitia que fossem detectadas condutas transgres- . [ que o pastorado precisava tanto do momento coletivo quanto do indi-
soras por parte dos alunos; por outro lado, porque garantia a ex- vidual. Ao contrário de Comenio, que negligenciava o aspecto do
1
clusividade do controle sobre quem fala ao professor e sobre qual 1 controle individualizador por parte do professor, delegando-o
assunto (Narodowski, 1995, p. 115). aos monitores, La Salte adotou algumas das táticas jesuítas de
':- 86 87:
l 1
A INV[ NÇÀO DA SALA DE AULA
T º NA ~([ A SALA DE AUL A : o PAPEL DA RELI GI ÃO COMO PAl\T[l l\A
governo da sala de aula. A mais visível era a distribuição espacial podiam ser considerados isoladamente. Apartir desse sistema, ain-
dos alunos, ou localização, princípio que determinava em que da que chegasse a ter 100 alunos por classe, o docente sabia onde
lugar da sala de aula as crianças deviam sentar-se, ~e a:ordo cada um estava situado , e por que motivo. Isto lhe permitia um
com seu mérito, suas notas e seu progresso. A locahzaçao era panorama melhor para controlar a situação da classe, com trocas
uma arma dos jesuítas para manter continuamente a co.m~et.i­ mais previsíveis e padronizadas: o aluno A podia falar com B, C ou
ção entre os alunos. A intervenção de La Salte adota o pnnc1pto D, e, se tudo transcorresse como previsto, o docente tinha uma
de que a localização é uma decisão da autoridade. No entanto, o zona "livre" de preocupações e podia concentrar-se nas zonas "difí-
docente não pode atuar livremente: ceis". Observamos também que as categorias da distribuição provi-
nham do sentido prático (os alunos eram organizados por seu nível
(...)em todas as salas de aula haverá lugares determinados para todos
de progresso ou de lições) ou moral (estavam localizados segundo
os estudantes de todas as disciplinas, de modo que todos aqueles que seu comportamento com relação a libertinagem, sossego, sensatez,
freqüentam uma mesma disciplina ocupem sempre os mesmos luga- frivolidade e desregramento moral). Estas categotias são distintas
res, que serão fixos. Os estudantes das disc1plmas mais avançadas de mérito-obediência, critério utilizado pelos jesuítas.
deverão sentar-se nos bancos situados mais próximo à parede, e os
demais ocuparão os lugares em seqüência, de acordo com a ordem A vantagem da proposta de La Salle residia não só no
das disciplinas, avançando em direção ao centro da sala de aula (. ..~ fato de contemplar aspectos práticos, mas também, produzindo
Cada aluno terá seu lugar determinado e nenhum deles abandonara um pastorado equilibrado entre o método global e a individua-
ou trocará seu lugar, salvo por ordem e com o consentimento dos lização, em atender as diversas demandas de uma sociedade com
inspetores das escolas. A distribuição dos lugares será .feita de fonna
que os alunos que têm parasitas e cujos pais são descuidados fiquem
pouca mobilidade social, com estratos definidos e não cambiá-
separados daqueles que são asseados e não têm parasnas; que um veis, onde importavam a obediência corno grupo ou corno estra-
estudante leviano e relaxado fique entre os sensatos e sossegados, to, o reforço da moralização e a disciplina rnaciça. 19
que um libertino fique sozinho ou entre os piedosos.
La Salle, Conduta das escolas cristãs, Quando falamos em disciplina, não nos referimos ape-
citado em Foucaull, 1995, p. 151. nas ao castigo corporal. Com relação a este último, o mundo esco-
lar sempre foi muito criativo no momento de castigar o corpo:
Alocalização ou disposição espacial definia dentro da clas- ajoelhar-se sobre grãos de milho, suportar durante horas a barriga
se ~ategorias às quais os alunos ficavam ~culad~s. Enq~anto. e~ cheia de água, ficar parado durante horas de braços cruzados, a
Comenio o grupo constituía uma massa mdehmda, a dispos1çao régua que golpeava os dedos, o puxão de orelha, o puxão de cabe-
lasalleana tomou o espaço "serial": um lugar para cada um, uma lo. No entanto, la Salte - e antes dele, os jesuítas - haviam
pessoa por lugar, posições permanentes; tudo constituía um~ série
que somente fazia sentido em conjunto com uma ordem parucular. 19. Foucoult afirmo: -Pouco o pooco (. ..) o es{XJ{o escolar se desdobro: o classe torno-se
homogêneo. estó composto openos por elementos individuais que se dispõem um oo
A "massa" de alunos tomou-se analítica, com componentes que lodo do outro sob o olhar do professor- (Foucoult. 1995, p. 150).
l
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..- 88 59 - ..
1 1
~
A 1NVENÇÃ O DA SALA DE A ULA
T NAICE A SALA DE A ULA o PA PEL DA f\EL!GIÀO COMO PAl\T El l\A

"corretas" para nosso senso comum. Essas técnicas, por sua vez,
formulado claramente que o que se deve castigar é a alma, aquilo
produzem saberes que influenciam a maneira pela qual perce-
que neste trabalho denominamos boa ou má "consciência".
bemos a realidade social e humana: a economia, a lingüística, a
história, a biologia, a medicina. A hipótese central de Foucault
Por castigo deve-se entender tudo o que é capaz de fazer com que as com relação a essas "disciplinas" distintas do castigo é que fo-
crianças percebam que fizeram alguma coisa errada, tudo o que é capaz
ram-se desenvolvendo em diversas instituições - quartéis, hos-
de humilhá-las, de provocar uma confusão (. .. ),cena frieza, cena indi-
ferença, uma pergunta, uma humilhação, uma destituição de posto.
pitais, escolas, internatos, mais tarde nas fábricas - e começa-
La Salle, Conduta das escolas cristãs, ram a dominar a vida cotidiana elas pessoas.
citado em: Foucault, 1995, p. 183. Essas ações disciplinares desenvolveram-se dentro de
um Estado absolutista, forma dominante do governo político à
Esta disciplina aplicava-se tanto aos alunos quanto ao época. O absolutismo é uma "forma de governo na qual o sobe-
corpo docente. É importante lembrar que na Conduta das escolas rano detém poder ilimitado sobre a competência de legislar e
cristãs foi incluída uma terceira parte sobre a inspeção e a forma- sobre o cumprimento da legislação. Trata-se de um poder que
ção dos docentes. O professor é "objeto de outros olhares (do dispensa as leis" (Zentner, 1990, p. 9). Durante o século 18, e
diretor), que, por sua vez, poderá ser. controlado diretamente em função de mudanças culturais, econômicas e políticas que
por um inspetor (que também observa os professores e os alu- analisaremos no próximo capítulo, o despotismo ilustrado con-
nos) (. .. ). Institui-se dessa forma uma cadeia de vigilância na verteu-se em absolutismo.
qual os elos permanecem unidos em função do controle que
Em que resultou este desenvolvimento da pedagogia
exercem uns sobre os outros. Instalam-se assim nas instituições
da escola elementar nas condições da "confessionalização" e da
educacionais relações de poder sustentadas na capacidade de olhar
formação dos estados absolutistas? O pastorado como p1incípio de
ejulgar(. .. )" (Narodowski, 1995, p. 119).
condt1ção integra-se cada vez mais à vida das massas, por meio de
Assim, a sala de aula é constituída por ações disciplina- uma nova forma institucional: a escola elementa1: Ainda que tenha-
res. Com essa denominação, Foucault conceitualiza técnicas que mos verificado que algumas pedagogias, como a de Comenio,
se aplicam ao corpo para domesticá-lo, e, por meio dele, conseguir acentuavam o momento grupal do pastorado, outras, como a je-
efeitos na alma (Foucault, 1995, pp. 182-189 e ss.). Ser observa- suíta, praticavam a relação individual como forma de condução.
do, sentar-se em determinado lugar e permanecer quieto, as ins- A estrutura da sala de aula e a organização das interações desen-
truções para sentar-se "corretamente", a insistência em escrever volvidas a partir desses princípios foram, portanto, diferentes.
com a mão direita, a orientação da cabeça para frente, que favo-
Entretanto, La Salle produziu uma síntese na qual a obe-
rece a curiosa "comunicação" entre rosto e nuca, são técnicas
diência grupal e a individual se combinavam, não por meio de uma
aplicadas ao corpo - não necessariamente castigos- que, com
o passar do tempo, se internalizaram, tornando-se "naturais" e
mescla de métodos, mas priorizando o método global - e, ;ortarrto, ··
/r::

.
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1 \. ..f
A 1NVENÇÃO DA SALA 0( A ULA
NA S( [ A SALA D[ AU LA : o PAPEL DA ílEL!GIÃ O CO MO PMHll\A
1
o grupo - como interlocuto1: La Sal/e optou por Lima forma de con-
ma coisa, po rém em cada caso nos dizem alguma coisa diferen-
dução que admitia que a obediência grupal era decisiva. Por essa
te. Quan~~-se diz que o/a diretor/a da escola é como um presi-
forma, uma desobediência individual ncio produzia catcístrofes, podia
dente, a ideia é que, ainda que dirija o conjunto da escola, seu
ser conigida, porém uma desobediência grupal era considerada gra- poder não é ilimitado. Quando se diz que o/a diretor/a é corno
ve. Em uma sociedade que começa a mover-se em direção à um rei, essa afirmação provavelmente evoca outras coisas: certo
massificação, veremos que força poderá adquirir esta forma de
despoti~mo, caprichos, um poder que parece não regulamenta-
condução baseada no grupo escolar quando as sociedades co- do. Assim sendo, estas comparações não são inocentes nem neu-
meçarem a transformar rapidamente seus princípios de funcio- tras: evocar outros significados implica destacar as relações e
namento no final do século 18. conexões que podem não ser evidentes para as outras pessoas, e
que queremos que o sejam.

ENSAI0 20 Na retórica, essas afirmações não inocentes foram de-


norni na~~s "metáforas", e são conhecidas desde a Antigüidade,
A PEDAGOGIA E SUAS METÁFORAS
quando Ja foram utilizadas por Aristóteles em sua Poélica. Desde
então, a metáfora é de fi nida como "a substituição de um termo
Vimos muitas vezes em Comenio: o docente deve atuar
por outro" (Innes, 1997, p. 344). Por exemplo, pode-se dizer
como a natureza; sua ação de ensinar a todos os alunos ao mes-
que a a:tla de um professor de História sobre os dados das guer-
mo tempo assemelha-se à atividade do sol, que aquece todos os
ras de independência adota a mesma "vertente" do já extinto
objetos de uma só vez. Comenio dizia também que o docente na
programa "Domingos para a juventude"- Se eu decidir definir
sala de aula é como o arquiteto, que começa a casa pelos alicer-
essa aula como "Domingos para a juventude", e não como "um
ces; assim, o professor deve começar por esse alicerce específico,
modelo_ de perguntas e respostas que não ajudam as crianças a
que é a disciplina das crianças. construtr compreensões sobre a história", esta rei definindo a
O mesmo processo de ver alguma coisa com uma lupa, mesma aula com duas metáforas diferentes. E cada metáfora
porém sob outra perspectiva, encontramos na discussão que constrói.diversos pontos de vista, estabelece percursos distintos.
apresentamos sobre o poder pastoral - ou seja, se os alunos são ~ pnrne1ra talvez saliente o ritual escolar: essas datas que memo-
vistos como um exército ou como um rebanho. Para definir uma nzamos por alguns dias e depois caem no esquecimento parcial
coisa, usamos outras. É isto o que fazemos todos os dias: pode- ou total. A segunda está direcionada à (não) contribuição dessa
ríamos dizer que o/a diretor/a da escola é como um presidente aula para a ati~da~e de aprender em um sentido mais preciso.
ou um rei. Em ambos os casos, as comparações nos dizem algu- Enquanto a pnme1ra metáfora indica principalmente a cultura
escolar, as regras da aula em si mesmas, a segunda refere-se basi-
20. "Porte introdutório de um discurso. espécie de prelúdio" (Webster's Comprehensive Dictio· ca~ente às operações de conhecimento ligadas à situação da re-
~~~~,~~~ . petição de memória para vencer um jogo. Ou seja, escolher uma

.
- . 92
93-. . 1'
1 1


;
1
A 1NVENÇÃO DA SALA OE A ULA
NA SCE A SALA OE AULA: o PAP[L DA f\El!GIÀO COMO PAl\TEll\A

metáfora para descrever um objeto especííico não é uma ação todo esse processo da imaginação, do desejado, as metáforas
inocente; marca uma direção e dá à definição um matiz específi- desempenham papel muito importante (Lakoff ej ohnson, 1988).
co. Neste sentido, a linguagem não reflete a realidade, mas sim
Voltemos a Comenio para dar outro exemplo. Se o do-
produz compreensões, cria a realidade social.
cente é "o sol", as crianças são colocadas, nessa comparação, no
As metáforas são cruciais para permitir o desenvolvi- lugar da "árvore" e dos "animais''. Esta metáfora ajuda Comenio a
mento em situações sociais. Por exemplo, quando alguém per- justificar sua afirmação de que o princípio ativo da sala de aula-
gu nta: "Você tem horas?" e a outra pessoa responde apenas seguindo a imagem do sol - só pode ser o professor. A diferença
"Sim", a resposta é correta do ponto de vista estrilo da pergun- abismal entre o sol e a árvore ou entre o sol e o animal combina
ta. No entanto, do ponto de vista de como nos comunicamos, muito bem com o preconceito de que o abismo entre o professor
o "correto" é responder: "Quinze para as duas''. Ou seja, utili- e o aluno na sala de aula pode ser comparado aos conceitos da
zamos diariamente metáforas para viver. Um menino de dez atividade-passividade, ou à idéia que muitas pessoas têm - entre
anos pode falar de sua "velha" para se referir a sua mãe, que elas alguns professores - de que, quando chegam na escola, as
talvez tenha 35 anos. No sentido literal, estrito, a mãe não é crianças "não sabem nada de nada", e colocam o professor como
velha· no entanto ao chamar sua mãe de "velha'', o menino
• 1 um sol que as "iluminará", como se todas elas tivessem vivido no
constrói seu ponto de vista, sua distância com relação à outra desconhecimento/escuridão antes da escolarização. Ou seja, defi-
geração. Ou seja, escolher uma metáfora particular coloca o nindo um segundo aspecto, pode-se dizer que as metáforas não apenas
filho em uma posição particular. não são inocentes, mas também podem ser analisadas como estratégias
Cada cultura desenvolveu sistemas de metáforas dife- para formular algumas idéias que muitas vezes permanecem fora
rentes. Lakoff e johnson, dois pesquisadores americanos, colo- da discussão. Vejamos novamente o exemplo comeniano: a árvo-
caram em páginas admiráveis todas as metáforas que existem na re e o animal são impensáveis ou impossíveis sem o sol. É impen-
cultura americana em torno da idéia de que "tempo é dinheiro". sável um aluno sem o professor? Aprender é o mesmo que "ser
Outro exemplo pode ser a comparação das diferentes formas de ensinado", como esta metáfora propõe por meio da figura passiva
insulto que existem em diversas línguas e culturas: é muito inte- da criança? O tipo de dependência do animal e da árvore com
ressante verificar que em algumas culturas predomina o compo- relação ao sol é o mesmo tipo de dependência do aluno com rela-
nente sexual e, em outras, o componente animal ou da cultura ção ao professor? Todas essas idéias não formuladas cruzam-se na
campestre - ainda que atualmente não existam muitos campe- formulação de Comenio.
sinos. As metáforas falam da imaginação das culturas. As pessoas Dessa forma, quando analisamos a metáfora de Come-
que vivem dentro dessas culturas sentem que algumas coisas nio, não sabemos muito bem se realmente descrevia a relação
são adequadas e outras são inadequadas, e por vezes também entre o professor e o aluno em sua época, mas sabemos, sim, que,
questionam como deveriam ser as coisas dessa sociedade. Em provavelmente de maneira inconsciente e permeada por sua

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l A I NVENÇÃO DA. SA LA DE A ULA
NASCE A SA LA DE Au
LA : o
p
AP[L DA RELIG IÃO COMO Pl\íl TE iílA
1
l
1
cultura, Comenio nos fala mais sobre sua estratégia em relação à a realidade social, produz maneir d
sala de aula do que à própria sala de aula como objeto "real". A metáfora é portanto as e compreender o mundo.
Analisar as metáforas é, portanto, vê-las fundamentalmente como definir as coi;as. , um recurso decisivo no momento de
sintomas ou resultados de estratégias, de intenções de quem as
As metáforas povoam 1·
cria. É precisamente o fato de a metáfora não ser inocente que hém a linguagen1 esp . 1· d nossa mguagem cotidiana e lam-
nos revela a "não inocência" de quem a pronuncia e nos dá pis- ecra iza a Na m · · d
lar, usamos metáforas d '. a10na as vezes, ao fa-
tas para poder compreender aonde quer chegar". 21 ciência. Quando fa lan as dqua1s geralmente não temos cons-
. < 1os a teona por exernpl d
Queremos com isto indicar uma perspectiva importante d1zer que é como um ed 1·f· . · ' . º· po emas
deve ser construída icio que tem suas fu d -
no momento de analisar a escola, a sala de aula e a pedagogia: as . n açoes, que
metáforas não são "enfeites" colocados para dizer "a mesma coisa" demo lida. Quando fa~~o~r~~1sa ser ª.bandona~a ou ainda
com outras palavras. Vimos que utilizar uma metáfora ou outra também é uma _ aprendizagem, dizemos que
casos construçao ou uma estrutura. Em todos os
não é dizer "a mesma coisa", mas, sim, que o que aparece como
"a mesma coisa" é o docente: o docente é um sol, o docente é um com ~l;u~~ i~~~:as metáf~ras cria re lações de semelhança
nos, e nao com outr .
guia. No entanto, esta "mesma coisa" não é independente da de forma que também 1. os, nomeia e define
exc ui ou tras possibilidades.
forma pela qual nos referimos a ele: quando Cornenio diz aos
Vejamos outro exemplo de um d .
professores o que é que devem fazer, essa orientação é extraída analisaremos no fina l do . pe agogo inglês, que
das metáforas, e não de urna suposta qualidade universal do pro- va a metáfora d . d' cap1tu 1o seguinte. Este educador usa-
fessor. Daí termos afirmado anteriormente que a linguagem cria
ª Jar magem. e do creSCimento
referir-se ao processo d
·
natural para
. e ensino-aprendizagem Dizia "( )
mente das crianças e ta b. d . ... a
21. No teoria psiconolítico considerou·se com muito seriedade que o metóforo e o metonímia rada com justiça a ~m .md em os adultos, pode ser compa-
- esta último é umo metóforo que não substitui uma polovro por outro. mos sim umo porte
por um todo (por exemplo. "cabeço de godo · poro menoonor o voco intetro) - são meco·
estará invadido por erva~ª~ 11'.1 ~ue, se não for .cuidado, logo
nismos centrais no fvncionomento de nosso inconsciente. no sonho. nos piados. em nos· fundamente que sufocarão~~~ as, que se enraizarão tão pra-
sos lapsos. Algumas situoçôes psíquicos graves. como o psicose. também foram defini- tos e até mesmo a . . os ~s bons pensamentos e afe-
dos. de formo bostante simpl1ficodo. como ·ausênoo do mecanismo do metóforo •. No
mundo psiquiótrico encontramos \/Órios vezes uma anedota um tonto trógico. cujo autenti-
p l9) O d propna consciência" (Wilderspin 1824
cidade não podemos garantir. mos que porece bem cloro. Em um hospital psiquiótrico. os .. . ever do professor-jardineiro é re ar a '1 '
familiares levam o um psicó(lco internado algumas coisos poro suo higiene pessoal. entre cuidar e satisfazer suas necessid d .. g ~ p antas,
elos um tubo de posto de dente "(olgote •. O paciente recebe o nome do posto de dente vas daninhas ate· fl a es especiais, retirar as er-
como umo mensagem literal. nóo como algo que se lê de outro maneiro. uma marco. mos
, que oresçam por ·
sim como uma mensagem real. e se enforco (N. T.: em esponhol. "cólgote" significo ·enfor·
conteúdo conservador do e . d s1 .mesmas. Observe o
que·se). Por esse motivo. diz· se que o ousêncio do metóforo é um problema de primeiro dar a planta a crescer m nu_nc1a o: o Jardineiro pode aju-
grou. A metóforo é visto como umo função simbólico de primeiro importãncio. Sobre o ' as nao pode mod if
inerente ou inato de cad 1 d icar o potencial
popel do metóforo e do metonímia nos processos inconscientes. consulte Dor. 1987. cops.
6-1 O: Widmer. 1997. cop. 5.
própria direção. a p anta e desenvolver-se em sua

..- 96
1
97-. .
A 1NVEM ÇÃO DA SAL A OE A ULA
N 1\5CE A SAL A DE A UL A . o P APEL DA f\ (LIGIÃO COMO PAf\1(11\ A

Neste sentido, queremos enfatizar que as metáforas têm ser "segunda màe" no "segundo lar" são expressões metafóricas
conseqüências22 , definem um universo de qualidades e de ações que nos informam que as pessoas que as usam pensam a escola
possíveis, tanto como no caso do professor-sol. Neste sentido, como uma família. É possível que em uma família haja uma divi-
participam diretamente da construçào de nossa subjetividade, são do trabalho: alguém retira o lixo, alguém serve a mesa, al-
por exemplo, dando-nos formas para nomear nossa atividade guém corta a grama. Por outro lado, na família predominam as
docente que determinam de que maneira vamos processar nos- relações afetivas, e as regras costumam ser mais ílexíveis do que
sas experiências na sala de aulan Propomos agora que a escola em outras organizações sociais. Essas características são transferi-
seja pensada segundo estas metáforas: das para a escola? Existem em uma escola as relações de "heran-
ça", como em uma família? O poder e as faculdades de um docen-
1. Como uma empresa. Se a escola é vista como uma em- te são comparáveis aos de um pai ou aos de uma pessoa que detém
presa, pode-se dizer que os investimentos devem estar relacionados o pátrio poder? O que acontece com a condição de trabalhadora
com os lucros esperados, pode-se pensar que a escola deve oferecer de uma professora quando é considerada uma "segunda mãe"?
"garantias" de seus produtos, como fazem as empresas e, para tanto,
devem criar um sistema de medição da aprendizagem que estabeleça 3. Como agente do progresso. A escola aparece como o
de algum modo os parãmetros da garantia. O diretor passa a ser um meio para combater a "escuridão" da ignorância, como um lugar
gestor, quase um executivo da escola, que deve procurar sponsors, onde a luz do conhecimento (diz-se que uma pessoa inteligente é
fazer propaganda da escola, traçar uma estratégia, entre outras coisas. "iluminada") expande-se à custa da escuridão. Nesta visão, a esco-
Da mesma forma, em uma empresa, trabalhadores são demitidos la pode ser vista também como um bastião contra uma sociedade
quando não há trabalho; e quando a educaçào é considerada unica- cada vez mais "brutal", ou como um centro onde a razão governa
mente como uma empresa que deve ser rentável, uma escola com 20 e se desenvolve. No entanto, será que essa escola está atualizada e
alunos situada em local distante de um centro urbano, pode ser eli- participa de muitas pesquisas científicas, da política e das mudan-
minad~ do organograma, já que não teria suficiente trabalho, nem ças das formas de relacionamento entre jovens e adultos que ocor-
"produziria" uma quantidade significativa de alunos escolarizados. rem na sociedade não escolar? Será que as sociedades mais escola-
rizadas são sempre as que mais progrediram?
2. Como uma família. Se a escola é vista como uma fa-
mília, é possível que as professoras - já que, em sua maioria, os 4. Como templo do saber. Esta metáfora está vinculada
docentes de hoje são mulheres - sintam-se "mães". Ser "mãe", à anterior, mas contém elementos religiosos, ainda que sem uma
presença divina. Diz-se que a docência é um "apostolado" (então
22. Frigerio e Poggi trobolhorom algumas destas em seu ltvro Coro y ce<o. principalmente no será destino dos professores serem comidos pelos leões nos anfi-
capitulo dedicado às culturas institucionais escolares.
23. Sobre este temo. vejo Frigerio. 1995.
teatros, como os apóstolos cristãos?). Também se ouve dizer que a

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A I NV[NÇÀO DA SAL A D[ A ULA N AS([ A 5ALA D[ AULA · o P APEL DA l\E LIGIÃO COM O Pl\f\ TE ll\A

escola é um "templo" e, portanto, tem regras especiais: assim como como um templo do saber, deverão ser reforçadas todas as formas
os fiéis se benzem ao entrar na igreja ou lavam os pés antes de mais ou menos solenes ela cultura escolar; se for considerada como
entrar na mesquita, nas escolas há saudações "pouco naturais": uma família, será preciso verificar se a autoridade do professor pode
colocar-se de pé, formar fila, tratar de forma diferente o inspetor ser igual à dos pais; isso leva alguns pais a "autorizar" os professores
ou o diretor. Observe, por exemplo, o seguinte parágrafo sobre os a castigar fisicamente seus filhos, uma vez que, para eles, a escola
professores que fumam na sala de aula, escrito em 1884: "Em não deve ser diferente do modelo familiar - que às vezes também
Pedagogia, muito se falou e se escreveu sobre a escola como um inclui a bofetada, o puxão de cabelo e toda uma variedade de ações.
templo e o professor como um sacerdote; como conseqüência, se Assim sendo, pensar a escola através de certas metáforas significa
o maior respeito é guardado na casa de Deus, também deveria ser determinar o que se acredita que deve ser feito com ela. As metáforas
observado naquela onde a juventude se educa. O professor que que utilizamos, e que nos parecem apropriadas, contêm toda uma
fuma na sala de aula começa por profanar o sagrado recinto em série de conseqüências possíveis para o futuro de nossas escolas.
que se encontra, faltando com o respeito que deve a seus alunos,
e tem1ina por lhes abrir o caminho da imitação e cio desejo, por- Apedagogia como um saber específico, com sua história,
que as crianças são imitativas e copiam facilmente tudo aquilo suas vinculações, seus efeitos diretos ou indiretos, também pode
que vêem fazer os mais velhos, e principalmente o professor, que ser pensada a partir das metáforas que organizaram seus discursos.
é seu modelo diá1io" ("El maestro que fuma en clase": em Revista Neste livro utilizamos muitas metáforas para nos referir a ela.
de EdLicación, N!.! XL, de 1884; citada em Pineau, 1997, p. 100). Neste percurso, é fundamental poder ver que as metá-
foras nos dizem algo, que nos indicam muito mais do que pode
Essas metáforas foram e são usadas para referir-se à educa- parecer. Por esse motivo, como professores, é importante ver
ção, e podem ser analisadas com a pedagogia normalizadora descri- quem usa determinadas metáforas, que situações nos ajudam a
ta no capítulo 4. Sua aplicação sofreu mudanças através do tempo, formu lar uma metáfora e que situações nos estão sendo oculta-
embora se possa afirmar que as metáforas da empresa e do agente do das. Tal como na vida cotidiana, também estão na :.:scu~'1. t :~::­
progresso continuam amplamente em uso, assim como a da escola sim como "cortar" uma relação pode sugerir que uma pessoa
como uma família. Estas mudanças nos regimes metafóricos fazem corta um cabo que a une a outra, as metáforas pedagógicas da
referência a mudanças mais gerais do lugar da escola na sociedade e aprendizagem como "apropriação", do professor corno "gestor
dos discursos que a sociedade aceita. Por exemplo, a idéia de que a da sala de aula" também nos fornecem muitas informações so-
escola é como uma empresa não era comum há 60 anos na Argenti- bre o cenário pedagógico e de forças educativas onde atuamos.
na (mas era comum nos Estados Unidos), mas hoje é uma das mais Para aprofundar este terna, consultar: Charbonnel
utilizadas na linguagem dos políticos e administradores do sistema. (1991); jakobson (1980); Kliebard (1972); Lakoff e johnson
Ou seja, se um tipo de metáfora toma-se mais importante em uma cultu- (1988); e Richardson, "Writing: A Method of lnquiry", em: Den-
ra, esse fato indica oque está ocorrendo nessa ailtura. Se a escola é vista zin e Lincoln (1994).

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l
3
A SALA DE AuLA CnEscE: A D1sc1PLINA NOS

TEMPOS DA REVOLU ÇÃO INDUSTRIAL

·· - .
Quando deixamos a sala de aula nas mãos de La Salle,
algumas páginas atrás, estávamos em uma sociedade que funciona-
va basicamente com formas sociais bastante estáveis: o camponês e
o rei nasciam e morriam como tal, a maioria das pessoas nascia e
morria no mesmo lugar, a ordem social também era vista como algo
estável, e não como algo que poderia mudar. Neste capítulo, quere-
mos mostrar como a sala de aula "cresceu" em suas estruturas e
penetrou no contexto das grandes mudanças econômicas, sociais e
políticas na Europa ocidental pouco antes de 1800. Vamos concen-
trar-nos nessa época cheia de novidades e de mudanças estruturais
e na forma como a sala de aula, como materialidade e como forma
de comunicação, foi não apenas reagindo a este desenvolvimento, (

mas também contribuindo para que de fato ocorresse.


Vamos retomar algumas pontas soltas do capítulo an-
terior. Argumentamos que a pedagogia de 1700 imaginava e pro-
punha uma sala de aula onde a condução pastoral havia sido deslo-
cada, passando a dar prioridade ao grnpo, e havia deixado de lado
certa individualização das práticas educativas anteriores (por exem-
plo, a prática implícita na educação de ptíncipes e artesãos). Um
dos motivos do sucesso dessa proposta entre os estadistas era o
número de alunos que pretendia incorporar. O outro lado da
moeda era o fato de privilegiar uma obediência em grupo, con- (
siderando a individual como um resultado daquela. No entanto,
as novas condições nas sociedades européias reivindicaram mu-

103 - . . (

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A I NVENÇÃO DA 5ALA DE A ULA A S ALA D E A UL A ( l\f)~f A DI SC I PLINA N OS TEMP OS DA f\ [ V OLUÇÃO INO USTl\ I A L

danças na transmissão pedagógica. O méLOdo grupal-global con- rios. As mudanças que introduziu foram impressionantes, desde a
seguiu impor-se, mas foi submetido a críticas e transformações íisionomia das cidades até a constituição familiar e a transforma-
que criaram urna geografia da sala de aula muito diferente da- ção do espaço íntimo. Em 1846jules Michelet, escritor, historia-
quela de Cornenio ou dos irmãos lasalleanos. Vamos deter-nos dor e político francês, dizia: "(a diminuição do preço do algodão)
nessas condições sociais na próxima seção. foi.uma revolução para a França. Vimos que o povo pode ser um
grande e poderoso consumidor quando sua mente está voltada
11 para isso. (. .. )Antes, toda mulher usava um vestido azul ou preto,
CONDIÇÕES DO CRESCIMENTO" DA SALA DE AULA:
e nunca o lavava com medo de que se desfizesse em pedaços ...
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPÉIAS NO Agora, pelo valor de urna jornada de trabalho, seu marido, pobre
FINAL DO SÉCULO 18 trabalhador, vai vesti-la com estampados de ílores. Este conjunto
de mulheres, que agora cria um arco-íris de milhares de cores em
O fato de a proposta da sala de aula global ter tido su-
nossas ruas, até pouco tempo parecia estar de luto" (Michelet, Le
cesso, ainda que com cena lentidão, não é surpreendente. No sé-
PeL1ple, citado em: Cacciari, 1993, p. 7).
culo 18, as sociedades européias enfrentaram mudanças que teri-
am grande importãncia para seu futuro. Ainda que se baseassem No entanto, as transformações não ocorreram igual-
na atividade agrária e conservassem pane das suas estruturas tra- mente para todos. As respostas dos contemporâneos foram tão
dicionais, uma série de processos começou a transformá-las drásticas como a própria revolução: alguns, entusiasmados, fize-
radicalmente, mesmo quando cada região assumia essas mudan- ram fortuna rapidamente; muitos outros - a maioria - sofre-
ças com seu próprio ritmo e com configurações particulares. ram dramáticas mudanças em sua vida cotidiana, empobrece-
A primeira mudança importante é l RevolLlção IndL1strial. ram e foram obrigados a se suhr.1CL0 a ._:.._:tr·. ·5 n~P: ;nes d~ trnb'. 1.lho
Apesar de tratar-se de um processo, e não de um fato pontual e e de social i z~i:-~·.; . .\~;;\ms desses grupos mais af~tados resistiram,
determinado, vários historiadores concordam ao datar seu surgi- desmtindo as máquinas; outros começaram a se organizar para
mento na Inglaterra entre 1760 e 1780. Como indica seu nome, o pedir melhores condições de trabalho, movimento do qual sur-
ponto central foi o surgimento de um novo tipo de produção: o giram os sindicatos e os partidos dos trabalhadores modernos.
da indústria centralizada nas fábricas. As formas artesanais e des- Massas de camponeses converteram-se em habitantes proletários
centralizadas da produção, até então dominantes, foram desapa- das cidades, e em poucos anos, pequenos vilarejos transforma-
recendo em certas áreas, principalmente na têxtil, para dar lugar à ram-se em poderosos centros industriais. Por último, em função
fábrica, essa construção gigantesca com sua chaminé fumegante, de seu poder econômico, a posição central da Inglaterra causou
que se instalou em uma paisagem cada vez mais urbanizada, um novas tensões internacionais (Hobsbawm, 1977).
lugar novo no qual se desenvolveram relações sociais inéditas e de A Europa continental incorporou-se a este processo mais
onde surgiram novas identidades, como as de capitalistas e operá- tarde e de forma paulatina. Embora já em 1780 tenha sido in-

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A I NVEN ÇÃO DA SALA OE A ULA A ) A LA OE A ULA ( f\ E5C[ A Ü ISCIPLINA NOS T EMPOS DA !\EVOL UÇÃO INO U51f\IA L

traduzida a primeira máquina na Alemanha, e na mesma época, política para colocar fim a estas relações servis com relação à no-
na França, havia um problema central. Aindústria nascente preci- breza e à monarquia. A Revolução Francesa (como esLe momen(o
sava de grande quantidade de trabalhadores, que nesses países passou para a história) irrompeu em Paris em 1789, a partir de
ainda viviam no campo e dependiam legalmente da nobreza para uma aliança entre burgueses antimonárquicos e as camadas po-
subsistir. A liberação dos camponeses das relações feudais, que os bres da cidade, que decidiram eliminar a monarquia. A história
obrigavam a viver em um lugar específico e a pagar seus impostos desta revolução (corno a de tantas outras) é complexa, com fac-
a um nobre ou a um senhor determinado ocorreu lentamente, e ções internas e episódios de grande drarnaticidade (Vovelle, 1984).
em 1850 (quase um século depois da Inglaterra), o camponês Para as outras casas reais da Europa, a decapitação do rei da Fran-
desses países já era "livre" em termos burgueses: livre para deslo- ça e de sua mulher teve um caráter mais que simbólico: mostrava
car-se de um lugar a outro, livre para trabalhar como operário que um novo ator político (a burguesia mercantil e industrial), que
ganha diariamente seu salário. A "liberdade" significou principal- exigia sua parte na divisão. Foram desenvolvidas novas linhas de
mente uma grande migração às cidades, que adquiriram caracte- conflito entre um bloco monárquico, com apoio dos camponeses,
rísticas de massa (Kemp, 1974). As cidades massificadas foram da nobreza e da maior parte da Igreja católica; e um bloco burguês,
objeto de fascinação e de medo para os contemporâneos: a idéia com o apoio das nascentes classes operárias nascentes, que reivin-
de uma multidão incontrolável expressava como poucas a per- dicavam melhores condições de trabalho e representação política.
cepção da aceleração da mudança social e da dificuldade de go- Apesar de os governos revolucionários terem sido derrotados e a
vem_á.:la com as antigas técnicas. Vejamos, por exemplo, como monarquia, restaurada, a Revolução inaugurou o legado da mo-
Edgar Allan Poe descreve Londres na metade do século passado, derna tradição liberal e republicana, baseada nos direitos huma-
sentado em um bar e olhando pela janela: "esta rua é uma das nos e dos cidadãos. As idéias de democracia, progresso e secula-
principais avenidas da cidade, e durante todo o dia passou por ela rização, ou separação da igreja e do Estado, passaram a ser os
uma grande multidão. Ao cair a noite, o movimento aumentou, e, baluartes do credo cidadão na maior parte dos países ocidentais
quando as luzes se acenderam, pôde-se ver uma dupla e contínua e, sem dúvida, influenciaram as revoluções pela independência
corrente de transeuntes passeando apressadamente em frente à das colônias hispano-americanas.
porta. Nunca tinha estado no café a esta hora, e o tumultuoso mar Ocorreu nessa época um terceiro movimento, de limites
de cabeças humanas encheu-me de uma emoção deliciosamente
mais difusos e que talvez se tenha iniciado mais cedo, que envol-
nova" (Poe, "O homem na multidão", citado em: Benjamin, 1988,
veu uma progressiva transformação do panorama cultural e a for-
p. 143). A massa aparece como um conjunto amorfo, desfigura-
mulação de novos programas de governo, como a república par-
do, anônimo, e como o pano de fundo ideal para o cenário de um
lamentarista. Esta transformação originou-se no poderoso
crime, como continua no relato de Poe.
movimento intelectual e político chamado Iluminismo, que se es-
juntamente com a Revolução Industrial, e em parte esti- tendeu por toda a Europa. O Iluminismo era definido por si mes-
mulada por ela e por outros movimentos, ocorreu uma revolução mo como a "luz" em oposição à "escuridão" dos tempos medie-

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A 1NVE NÇÃO OA SAL A OE A ULA A SALA OE A ULA CRESCE· A Ü i)(I PLINA NOS TEMPOS DA íl EVOLUÇÃO I NOUSTf\IAL

vais; Kant, um de seus mais famosos expoentes, afirmou que re- cimento acelerado. Em 1768, o presidente do parlamento de Pa-
presentava a saída do homem da infância à qual estava submetido ris dizia: é necessária a educação comum que divulgue "os mes-
pela escuridão medieval. Ainda que, como todo movimento, in- mos princípios e as mesmas luzes (de maneira uniforme). Imbu-
cluísse tendências e pensadores heterogêneos, a maioria acredita- ídos desde a infância das mesmas verdades, os jovens de todas
va que a razão é a capacidade humana fundamental, e que habilita as províncias se libertarão dos preconceitos do nascimento, de-
o ser humano a pensar e a atuar corretamente. Do ponto de vista senvolverão as mesmas idéias de virtude e justiça, e aprenderão
político, os iluministas eram ambíguos: em alguns casos, como na a derrubar as barreiras que os separam ele seus compatriotas"
Prússia (atual Alemanha), estavam à disposição do monarca abso- (citado ei:n Chartier e outros, 1976, p. 209). Entre 1763 e 1803,
luto e tentavam que este liderasse as reformas modernizadoras Prússia, Austria, Saxônia e Baviera foram os primeiros estados a
(Schneiders, 1997). Na França, muitos iluministas integraram as introduzir a obrigatoriedade escolar por um período de seis a
filas da Revolução e chegaram a criar uma politica oposicionista. sete anos (Manacorda, 1987, p. 391). Em alguns casos, era com-
Independentemente dessas posições, somando-se o surgimento plementada com a obrigatoriedade de participar de uma escola
da industrialização, o aparecimento de novos programas políticos dominical de fundo religioso até os 18 anos. A escola não era
- que incluíam novas formas de governo - e as discussões cio gratuita e, apesar de as taxas não serem muito altas, o grande
Iluminismo, formou-se um conjunto que preocupava os pensa- número de crianças em uma família camponesa poderia resultar
dores: nunca se viu, desde as guenas religiosas, tanto movimento e em uma soma total considerável a ser paga. Por outro lado, a
tanta fransformação . Estas condições forjaram o lento surgimento escolarização significava afastar as crianças do mundo do traba-
do liberalismo clássico. Em cada estado, esta situação surgida no lho, privando as famílias de uma renda que, em muitos casos,
último terço do século 18 foi processada de maneira diferente, era insubstituível. Isto significa que, para mandar as crianças para
desde a radicalização política e a reforma social (como no caso das a escola, a famílla camponesa pagava, de fato, um imposto esco-
revoluções americanas pela independência) até a reação monár- lar - obrigatoriedade e não gratuidade simultaneamente - e
quica absolutista de muitos reinos europeus. perdia renda e fo rça de trabalho. Por esse motivo, durante todo
Neste contexto em que as transformações causavam o século XIX, a escola, corri.o i!:c:[ituiç:'in. revi:'. uma fama duvi.dosa
novas demandas e inseguranças, os estados centrais começaram nesses setores. No caso da Revolução Francesa, durante os pri-
a demonstrar maior interesse na questão da educação primária. meiros anos de governo republicano, foram feitos diversos pla-
Lembremos que, até este momento, as iniciativas da educação nos de instrução pública, que, embora não tenham conseguido
popular tinham-se baseado em obras de caridade de caráter pri- impor-se de forma clara e homogênea, estabeleceram as bases do 1.
vado e, além disso, de forma inorgânica e pouco coordenada. A ideal liberal na educação: obrigatoriedade, centralização e, em
educação obrigatória apareceu como a nova Jerramenta para a pro- alguns casos, gratuidade e laicidade (Debesse e Mialaret, 1973). 1
dução em massa da obediência, no contexto de populações que mi- A adoção da escolaridade obrigatória implicou que o
gravam, cidades que cresciam descontroladamente e ritmo de cres- espaço fechado da sala de aula e sua metodologia se convertes-
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A I NVENÇÃO DA SALA DE A ULA A SALA DE AULA (l\ESCE. A ÜISCIPLINA NOS TEMPOS DA f\EVOLUÇÃO I NDUS Tl\ IAL

sem paulatinamente em urna experiência pela qual passariam animalidade. Para Kant, o objetivo da escola era disciplinar os
todas as crianças. O modelo de sucesso era proporcionado pelas instintos animais e "humanizar" o homem. Assim, o tema da con-
diversas iniciativas caritativas: na Inglaterra, as já mencionadas dução das oianças era central em suas preowpações. Dizia que,
"escolas de caridade"; na França, a rede escolar de La Salle; nas inicialmente, as crianças são encaminhadas "à escola, não ainda
áreas protestantes da atual Alemanha, os "filântropos". No en- com a intenção de que aprendam algo, mas· sim com o objetivo
tanto, a massificação deste modelo trouxe novos problemas. de habituá-las a permanecer em silêncio e a observar pontual-
Começaremos pelos debates que surgiram na escola prussiana mente o que lhes é ordenado, para que mais tarde não se deixem
(a primeira experiência organizada de educação pública) e con- dominar por seus caprichos momentâneos" (Kant, 1803; 1983,
tinuaremos com a única grande "ameaça" que o modelo global p. 30). Não por acaso, Kant escolhe a metáfora das plantas e da
enfrentou ao longo de sua história: o método de ensino mútuo. jardinagem para falar da educação. Ao comparar o trabalho com
Por último, delinearemos as pedagogias de Pes~alozzi e Herbart as crianças ao trabalho com as plantas, mostra claramente as
no mundo de língua alemã, e de outros educadores ingleses que tendências disciplinadoras da época por meio da idéia de que o
discutiram a importância do processamento didático e idealiza- pensamento infantil pode ser endireitado como um galho torci-
ram outras técnicas de disciplina e governo na sala de aula, esta- do (Petrat, 1987, introdução).
belecendo muitas das bases de nossas práticas educativas atuais. Entre os filósofos modernos, Kant é um dos primeiros
a refletir sobre a relação entre o governo e a educação. Em suas
aulas, argumentava que "a arte do governo e a arte da educação"
PRIM EIRA CO NSOLIDAÇÃO DA SALA DE AULA GLOBA L:
são as duas invenções mais difíceis da humanidade, e sobre as
A ESCO LA PRUSS IANA quais sempre haverá controvérsia (Kant, 1983, p. 35). O gover-
no que imaginava devia basear-se na razão, e não na força; por-
Considerado como um dos grandes protagonistas des- tanto, era preciso que a obediência estivesse fundada na racio-
se tempo de mudanças, Immanuel Kant (1724-1804) fo i profes- nalidade, e não na repetição de memória: "deve-se cultivar a
sor de Filosofia na Universidade de Kõnigsberg (atual Polônia). memória desde muito cedo, sem esquecer também da compre-
É uma das figuras mais básicas e controvertidas da filosofia mo- ensão" (idem, p. 65, tradução modificada pelos autores). Con-
derna, produtor de uma teoria de conhecimento humano que centrar-se, sentar-se em silêncio, obedecer às instruções: para
ainda se discute apaixonadamente. Kant também trabalhou in- Kant , eram estas as atitudes fundamentais na sala de aula. Afir-
tensamente com os problemas da filosofia política, da filosofia ma: "A escola é uma cultura coercitiva" (p. 63); deve habituar a
da religião, a estética e a ética. Entre suas obrigações docentes, criança ao trabalho, separando a vida escolar da brincadeira e
estava a de lecionar pedagogia, que nesse momento era conside- dotando-a da seriedade e da coação necessárias. Embora se ba-
rada um ramo da filosofia . Em 1776, começou seu curso afir- seasse no uso da razão, a seriedade de sua pedagogia tem conti-
mando a importância da educação para sair da barbárie ou da nuidade na vida escolar jesuítica, que criava um universo artifi-

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A SA LA DE AULA (f\ESC[· A ÜISCIPLINA NO S T EMPOS DA l\[VOLUÇÃO IN DUSTf\ IAL
A INVENÇÃO DA SALA DE A ULA

eia[ em latim, com vigilância minuciosa. "A memória deve ser As recomendações de Kant retomavam uma velha prá-
utilizada apenas com as coisas cuja conservação nos é conveni- tica das escolas elementares el os primeiros tempos da moder-
ente, e que tenham relação com a vicia real. A leitura de roman- nidade. O catecismo católico (o mais famoso foi esc rito por
ces é prejudicial para a criança, porque só lhe serve de distração um jesuíta, Pedro Canisius) e o catecismo protestante (escrito
enquanto os lê; debilita também a memória, pois seria ridículo pe lo próprio Lutero) tinham uma longa trajetória de utilização
absorver o romance e querer contá-lo aos demais. Desta forma, nas salas de aula da escola elementar. "Catecismo" (do latim
medieval catechismus) significa "instruir em viva voz" (Cucu-
é necessário tirar das mãos da criança todos os romances" (idem,
zza, 1997, p. 1), e era a fo rma corrente de instrução religiosa.
p. 65). A imaginação e a fantasia não eram úteis para a vida real
No entanto, a insistência de Kant no método catequista con-
e deveriam ser desconsideradas pelo professor.
tinha elementos novos, uma vez que propunha resolver a ques-
Reíerindo-se aos métodos existentes, Kant descar- tão da disciplina em meio a grandes mudanças sociais e políti-
tou os progressos que seus amigos, os filântropos, 14 haviam cas. No caso alemão, a obrigatoriedade da escola - sancionada
realizado em suas escolas experimentais e centrou-se, por na Prússia por um regulamento para as escolas ru rais de 1763,
outro lado, na validade do método catequista. O catecismo é e reforçada por outro regulamento em 1794, no qual as doutri-
t1m livro para a transmissão de conteúdos ela fé organizado nor- nas kantiana e iluminista de "educar o camponês" estavam na
malmente em forma de perguntas e respostas (Drehsen e outros, ordem do dia - não coincidia estritamente com a industriali-
1995_, p. 595). Kant dizia que "(o) método socrático deveria zação, nem com a ascensão da burguesia, como nos casos in-
ser a regra no catecismo. Na verdade, é um pouco lento e glês e francês. Naquele momento, o problema da Prússia era
difícil expor o catecismo de tal forma que alguém aprenda corno "liberar" os camponeses das velhas relações de submis-
alguma coisa a partir dos conhecimentos de outra pessoa. O são à nobreza e introduzi-los nas relações mais modernas sem
método mecânico-catequista é bom para algumas ciências; sofrer as turbulências revolucionárias que colocariam em risco
por exemplo, para a apresentação da religião revelada. Pelo a ordem absolutista estabelecida. Kant e os iluministas alernães-
contrário, para a religião geral, deve-se utilizar o método so- prussianos pensavam que, nesse contexto de transformações,
crático. Recomenda-se especialmente o método mecânico- a escola deveria desempenhar um papel estabilizador (Van Horn
catequista para aqueles que devem ensinar historicamente" Melton, 1988), e por esse motivo sua pedagogia reduziu o
(Kant, 1983, p. 69, tradução modificada pelos autores). método global à catequização, onde a dinâmica de pergunta e
resposta era, na verdade, urna contrapartida na qual a resposta
24. Os filôntropos foram um grupo de pedagogos de origem protestante que. orgonizodos em já estava estabelecida e deveria apenas ser reproduzida.
diversos obras de caridade. tentaram concretizar o velho programo de Comenio de ensino
globol-frontol e desenvolveram importantes materiais poro o ensino. Partindo de umo pos- Ao mesmo tempo em que Kant desenvolvia seu pensa-
tura religioso. queriam fazer uma componho de morolizoçõo dos pobres e morginolizodos. mento filosófico, ocorreu um fato que mostra a nova importância
A tradução de filôntropo é ·amigo do homem·. Os f1lô11tropos viam no educação. mais uma
vez. uma formo de redenção do homem (Blonkertz. 1992. p. 48 e ss.. p. 79 e ss.). da educação, não apenas pela regulamentação da obrigatoriedade

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A 1NVENÇÃ O DA SALA OE A ULA A 5ALA DE AULA ( l\ESCf : A Ü ISCIPLI NA llOS TEMPOS DA f\EVOLUÇÃ O IN DUSll\IAL

da escola25. Na Alemanha, a pedagogia assumiu nesse momento tratava de apenas manter as crianças quietas na sala de aula ,
o caráter de disciplina universitária. Em 1779, na Universidade mas também de faze r com que ap rendessem. Até então, a es-
da cidade de Halle, criou-se a primeira cadeira de Pedagogia em cola elementar tinha muito da creche disciplinar, onde as
língua alemã. Essa cadeira foi ocupada por Christian Trapp (17 45- pessoas soletravam, cantavam e, às vezes, liam e contava m. O
1818), que no ano seguinte publicou suas aulas com o título "ensino" em se ntido estrito e moderno existiu a partir da estnitu-
Ensaio de Pedagogia. Na sua obra, a didática - esse ramo da ra do processamento didático e ocorreu a partir da preocupa-
pedagogia que se ocupa do método de ensino - emergiu como ção não com uma disciplina aparente ou superficial, mas sim
uma catequização disciplinadora, como vimos em Kant. No en- com um governo "profundo" das crianças, por uma internali-
tanto, tinha uma preocupação crescente com a atenção do aluno zação de saberes que modificava condutas e atitudes. Esta
e a compreensão do conteúdo, que recuperava a velha demanda transição fo i possível porque a memória perdeu o monopólio
de Comenio sobre a compreensão e a motivação com base no como objetivo da formação, e a compreensão ou o entendi-
ensino (Trapp, 1977, p. 256 e 286 s.). Trapp defendia que a mento passou a ocupar o centro. A nova pedagogia exigia
compreensão do aluno (e não apenas a repetição de memória) que os "alunos (fossem) levados paulatinamente a pensar"
fosse incluída na estrutura de comunicação na sala de aula. O (Petrat, 1979, p. 187). Diferentemente da obediência reflexi-
que ocorreu então foi o que hoje chamaríamos de processamen- va de Lutero, centralizada na relação da pessoa com sua co-
to didático da catequização. Este processamento serviu tanto para munidade e com Deus, a idéia pós-kantiana da compreensão
aprofundar as disciplinas já existentes como para inaugurar um novo como objetivo do ensino centrava-se em um indivíduo carac-
campo profissional: o professor especializado. Neste momento, não terizado por uma nova consciência de si mesmo, pe la inte-
por acaso, surgiu afarmação docente propliamente dita: no momen- gração da personalidade individual e pela capacidade de con-
to em que o ensino, tanto das oianças como das almas, precisava de duzir sua própria conduta (Sabean, 1984, p. 35).
conhecimentos especializados. Esta ênfase na compreensão foi aplicada tanto aos ve-
Coincidindo com o surgimento da pedagogia como lhos como aos novos conteúdos. Vamos usar como exemplo o
disciplina diferenciada, registrou-se uma lenta mudança nas caso do processamento didático da parábola bíblica do semeador
práticas que Gerhard Petrat identificou como a transição de (Bíblia, 1997, Mateus 13, 4-10, Marcos 4, 3-9 e Lucas 8, 5-8),
"sustentar a escola" 26 para "ensinar" (Petrat, 1979). Já não se uma narração com moral (Petrat, 1979; Rumpf, 1984). A novida-
de da escola que "ensinava" foi que esse objeto (a narração bíbli-
ca) transformou-se em conteúdo escolar. A didática nascente ela-
25. Um comentário do êpoco dizia: "Alguém pode imog1nor o trabalho que dó ensinar codo
umo dos 80 o I 00 criol1{os o soletrar e ler. talvez duos vezes pelo manhã e duas vezes borou 17 perguntas para trabalhar a história do semeador, por
pelo tarde. O professor deve ficar tonto muito rapidamente" (crítico anônimo do final do exemplo: "Como sabemos que as sementes significam a palavra
sé<ulo 18 citado por Peuot. 1979. p. 193).
26. A expressão olemó é "Schule-Holten ": obseNe que holten é o verbo que também designo
divina?/ Por que a palavra divina não é aceita por todos os ho-
o expressão "pronunciar uma prédica. reine Predigt holten "). mens?/ Onde Cristo planta as sementes?/ Como Cristo interpreta

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A 1NVENÇÃO DA SA LA DE A ULA
í A SALA DE AULA (llEKE · A ÜJSCIPLI NA NOS TEMPOS DA f\EVOLUÇÃO IND USTlllAL

a semente que cai no chão?" Perguntas deste tipo dirigidas a um SEGUNDA CONSO LIDA ÇÃO: COMO A SALA DE A U LA
individuo causaram uma ruptura com o método de ensino anterior.
GLOBA L DERROTA O MÉTODO DE ENS INO MÚTUO
Enquanto na sala de aula jesuíta o professor controlava as respos-
tas de um aluno e os outros realizavam ações diferentes, na escola Paralelamente à evolução da escola prussiana e da pe-
prussiana o professor interrogava o aluno como parte de um gru- dagogia como disciplina universitária, ocorreram no âmbito pe-
po ou sala de aula. Rumpf formula uma hipótese para explicar dagógico outros fatos que se constituíram em alternativas de
esta transformação: "as perguntas que se sucedem mostram a di- ensino de rápida difusão em todo o mundo. Entre eles, o desen-
reção: não se pode e não se deve deixar ao acaso o que efetiva- volvimento do método de monitoramento ou mútuo, que co-
mente ocorre aos homens em relação à parábola e em relação aos meçou a ser utilizado aproximadamente em 1800; foi provavel-
fantasmas que estas histórias despertam. Se alguém se contentas- mente o mais espetacular, já que, alguns anos depois, tinha-se
se em contar alguma coisa para as crianças (aula) ou as deixasse conve rtido no preferido dos incipientes sistemas educativos na-
dizer alguma coisa sobre o tema, a relação estaria fora de controle cionais (Kaestle, 1973). Aceita e propagada por Bernardino Ri-
(.. .). Assim, a pergunta do professor é um meio de evitar as rela- vadavia em Buenos Aires, Bernardo de O'Higgins, no Chile, josé
ções privadas, caóticas e irregulares dos homens com os conteú- de San Martín, no Peru e Simón Bolívar, no norte da América do
dos de ensino, todos devem entender o correto (o mesmo) sobre a Sul, e como escola oficial no México desde 1823, a escola lan-
parábola do semeador" (Rumpf, 1984, p. 102-103). Dessa forma, casteriana converteu-se também no método privilegiado de en-
vemos que este ensino, caracterizado pelo processamento didáti- sino popular das ex-colônias hispano-americanas (Weinberg,
co dos conteúdos escolares nessa época e pela duração das formas 1984, p. 98 e ss.; Newland, 1992; Narodowski, 1995). Nos Es-
catequistas de interrogação, obedece tanto à necessidade de com- tados Unidos, foi adotado como método oficial de ensino entre
preensão Qá não é uma mera memorização) como a uma forma 1820 e 1840. Em quase todos os casos, sua propagação foi o
mais efetiva e cotidiana de atribuir urna direção "disciplinada" ao resultado da ação das sociedades (particularmente da British anel
pensamento das crianças. Foreign School Society) que financiavam as escolas, enviavam
representantes e propagandistas, e consrguiam impor o método
Desta f arma, no inicio do século 18, o catecismo era afor- como pedagogia de Estado (Kaestle, 1973) 27 . Este método, tam-
ma de processamento didático privilegiada, com uma nova ênfase na
compreensão individua!. Na Prússia agrária e campesina, esta com- 27. Einteresso~te obseNor mmo é feito o compilação de Jean Pierre Bostion (1990). de
binação causou uma síntese nova e maciça. A formação da técni- que o difusoo do loncosterionismo no Américo Lotmo foi mediado pela disputo entre 0
ca interrogativa foi um primeiro conteúdo central da formação protestantismo.e o cotolic1smo. James Thompson. o enviado do British ond Fore1gn School
Society. escrevia e"! seus relatórios sobre estes temos sul-americanos os progressos dió·
docente que surgia. O método global já se consolidava com o nos no vendo de 81bllos protestantes. junto oos avanços do método loncosteriono. Apa-
objetivo de conquistar o mundo. No entanto, como veremos no rentemente. conseguiram o apoio do Coroo britônico com o argumento de que o expansão
de suo couso atrairia adeptos oo império mglês oo difundir o religião e o cultura daquele
item seguinte, chegava um concorrente. país (Bostion. 1990).

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A I NVENÇÃO DA SALA DE A ULA A SA LA DE A ULA ( l\ESC E· A DI SCIPLINA NOS TEMPOS DA: f\[ VOLUÇÃ O IND USfl\IAL ___;

bém chamado lancasteriano pelo nome de um de seus iniciado- contexto de uma revolução industrial e da transformação política
res, Joseph Lancaster (1778-1838), baseava-se na utilização sis- da Europa e da América, o método parecia vantajoso com relação
temática dos alunos auxiliares (os quais foram chamados moni- ao global, porque permitia alfabetizar muitas crianças em pouco
tores), que já vimos quando analisamos a proposta educativa tempo, e com menor custo. Lancaster afirmava que podia realizar
dos jesuítas. Através do auxílio de monitores ou alunos adianta- em dois anos o mesmo trabalho que uma escola tradicional reali-
dos, o método possibilitava que um só professor conseguisse zava em sete, e que se poderia economizar 60% do orçamento
. "conduzir" uma classe de até mil alunos. Junto a Lancaster, ou- (Narodowski, 1995; Kaestle, 1973). Mesmo quando muitos seto-
tro introdutor do método foi Andrew Bell (1753-1832), que o res dominantes não olhavam com bons olhos a escolarização ma-
desenvolveu nas missões cristãs inglesas na Índia, provavelmen- ciça, temerosos de que, quanto maior fosse a educação, maiores
te a partir de elementos do ensino .jesuítico. Bell publicou seu seriam as reivindicações de mobilidade social, a idéia de que a
livro de divulgação e aperfeiçoamento do método em 1797, e educação traria ordem e progresso começou a ser cada vez mais
Lancaster o fez em 1803. Bell, que era protestante, insistia na consensual; e, nesse contexto de consenso, o apoio ao método
constante supervisão dos professores e na necessidade de con- mútuo cresceu de forma exponencial.
servar a ordem escolar e social, ensinando a cada um o estrita- O método mútuo progredia de forma ordenada e regu-
mente necessário (propondo o ensino da leitura, mas não o da lamentada por uma série de etapas para ensinar os alunos a ler,
escrita); por outro lado, Lancaster, que pertencia às igrejas dissi- escrever e contar. Havia uma série de cartazes ou figuras impres-
dente!? britânicas, enfatizou as conquistas individuais e desenhou sas que marcavam os passos a serem cumpridos por todos e cada
um sistema de castigos e recompensas que estimulava a auto- um deles; uma vez que a primeira era aprendida e memorizada,
superação individual. Apesar destas diferenças28 , ambos concor- passava-se para a segunda, e assim sucessivamente. Os passos
davam com relação à estrutura básica do ensino mútuo, organi- do método correspondiam às aulas organizadas em sala de aula.
zado a partir de um professor e seus alunos-ajudantes. Como a aprendizagem destes passos era avaliada de forma indi-
Devido à semelhança dos alunos-ajudantes com os mo- vidual, o ensino podia ser mais rápido ou mais lento, segundo
nitores jesuítas, o pedagogo uruguaio Jesualdo denominou este os progressos do aluno; a promoção de uma série a outra era um
método "velha novidade" (idem, p. 24), que Bell definia como "o tema individual e dependia do próprio ritmo. Os monitores (es-
método pelo qual uma escola inteira pode ser instruída sob a vigi- colhidos pelo professor depois de uma avaliação) controlavam o
lância de um só professor" (citado por Jesualdo, idem, p. 24). No cumprimento das etapas, davam as orientações para a leitura e a
repetição, e controlavam a disciplina. As crianças, por sua vez,
28. As diferenças entre lo()(oster e Bel/ nõo eram menores. jó que (Q()(oster. opesor de contar tinham lousas ou caixas com areia onde escreviam as letras ou
com o apoio do Rei e de alguns nobres. sofria o resistência do lgre10 ongficono. que realizavam as operações aritméticas que eram pedidas. A lousa
lançou violentos componhas contra ele. e que opoiovo Bel/ (Tovlor. 1996). Considerado
um libero!. loncoster teve que emigrar poro os €stodos Unidos em 1818. e em 1826 viveu
individual, chamada também lousa manual (Gvirtz, 1997, p. 44
algum tempo em Corocas. controtodopor Simón Bolívor (Norodowski. 1995. p. 141 ). e ss.), era a tecnologia fundamental do ensino: grande parte da

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A 1NVCNÇÃO DA SALA DE A ULA r A SALA DE AULA (l\ESCE A Ü ISCIPLINA NOS TEMPOS DA f\E VOLUÇ;\O IN OUSTl\IAl

interação e da regulação das relações professor-monitor-alu no ensino mútuo co meça a ser construído engrenagem por en-
era realizada através dela, situação que perdurou até princípios grenagem: começou destinando aos alunos maiores tarefas de
do século 20. A centralização da lousa pode ser observada nas simples vigilância, depois de controle do trabalho e, mais tar-
ordens que os professores deveriam dar aos monitores, confor- de, de ensino; a tal ponto que, no fi nal das contas, todo o
me um professor lancasteriano: tempo dos alunos ficou ocupado, seja ensinando ou apren -
dendo. A escola converte-se em um aparelho de ensinar, na
Classe, mostrem suas lousas: as crianças da sala instantaneamente co- qual cada aluno, cada nível e cada momento, se combinados
locam suas lousas sobre a carteira. com o lado onde escreveram para como devido, são utilizados permanentemente no processo
freme, e levemente inclinada ( .. .).
geral de ensino" (Foucault, 1995, p. 170). A metáfora da
Classe, apaguem as lousas: apagam as palavras inspecionadas com
suas esponjas. máquina ajuda a considerar o caráter sistemático e interliga-
Classe, vamos Jazer a lição, vamos para fora da escola; à Igreja; ao Cate- do das etapas do método. ·
cismo; ou às Contas: as crianças levantam-se de suas cadeiras e, vol-
tando-se em direção ao professor, esperam a nova ordem.
No entanto, também podem ser feitas comparações
Classe, levantem-se: saem de suas carteiras, e colocam-se detrás das da escola lancasteriana com a estrutura militar. O próprio Lan-
mesmas, mantendo os olhos fixos no professor. Os meninos cruzam caster dizia que era necessário transfo rmar a autoridade tra-
suas mãos por detrás das costas; as meninas, pela frente. dicional do professor, baseada em sua personalidade, em um
Poole, John, "The village school improved" (J 813),
sistema que fosse independente do caráter do mesmo; e que
citado em: Gosden, 1969, p. 5.
para isso, o exército, onde "o sistema, mais que a pessoa, está
Estas ordens eram dadas da frente, com uma série de investido de autoridade; a categoria , antes do homem, orde-
sinais escritos, que Lancaster chamou de "telégrafo": um quadra- na a obediência; e o oficial subordinado é tão rapida mente
do de madeira com seis quadrados menores nos quais se podia ler obedecido como seu chefe", ofe recia uma estrutura mais acei-
as letras iniciais da ordem respectiva. Outros professores, junta- tável do que a da escola tradicional. "U m homem de idade de
mente com as ordens da lousa, também usavam um sino para alta patente ou um jovem de 16 anos ordena e é obedecido.
chamar a atenção dos monitores e dos alunos: o primeiro toque Esta ordem admirável, geralmente associada à guerra, não se
indicava que deviam preparar-se para ficar de pé; o segundo, para torna desordem se for aplicada em tempos àe paz" (Lancas-
ficar parado de pé; o terceiro, para avançar à direita e à esquerda; ter, "The Lancasterian System of Education", 1821 ; citado em:
o quarto, para juntar-se no fundo da sala Qohnson, 1994, p. 1O). Kaestle, 1973, p. 89).
O método lancasteriano foi comparado ao jLLncionamento Logicamente, esta ordem quase militar nem sempre era
da indústria nascente. Na opinião de Foucault, o método de cumprida estritamente, e há relatos de alunos e professores que
monitoramento era uma máquina pedagógica de grande efi- não podiam ou não queriam segui-la. Para complementar e re-
ciência: "(. .. ) o complexo sistema de relojoaria da escola de forçar a obediência grupal, Lancaster criou um sistema de re-

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A 1NVENÇÀO DA SALA DE A ULA A )A LA DE A ULA (l\fS( [_ A D1SC IPWI A NOS T EMPOS DA !\EVOLUÇÃO IN DUSTl\IAL

compensas e castigos. Estipulou que os alunos deveriam agru- ria que a carreira fosse mais atraente para os melho res estu-
pa r-se em conjuntos ou classes de 10 ou 12, numerados conse- dantes, e daria à sociedade o direito de controlar o ensino
cutivamente e com um cartaz no peito, pendurado no pescoço, que ofereciam. Com re lação à generalização, diz Mariano
que mostrava seu número. O monitor devia passar a lição para Narodowski que o método lancasteriano instaurou "a alter-
cada um e, se alguém errava, voltava um número na fila. Com o nativa como estratégia geral na expressão elas atividades: os
passar do dia, os alunos que cometessem menos erros encabeça- que agora são alunos, logo poderão ser professores; os mais
riam as filas, e os que cometessem mais erros ficariam no final. adiantados ensinam os atrasados, que , por sua vez, estão em
Quem levava o número um tinha também um cartaz de couro condição de formar outros em piores cond ições no estudo, e
ou cobre que dizia: "Mérito em leitura" ou "Mérito em escrita", e assim sucessivamente" (Naroclowski, 1994, p. 137). Neste
recebia uma ilustração de presente; se falhasse, também perdia sentido, foi introduzido um critério de mobilidade das posi-
ções educativas que teve conseqüências políticas libera lizan-
este distintivo (Lancaster, "lmprovements in Education", 1806;
tes (Hamilton, 1989).
citado em: Gosden, op. cit., p. 6).
Comparemos por um momento a mobilidade "regu-
O que diferenciou este método de outras experiên-
lamentada" do sistema lancasteriano com a técnica da locali-
cias educacionais com monitores fo ram sua generalização
zação de jesuítas e lasalleanos - posicionar um aluno em um
como sistema e o desenvolvimento de uma série de técnicas
lugar determinado da sala conforme seu mérito_ Enquanto a
desttnadas a garantir sua eficácia - técnicas que logo perma- posição do aluno na sala jesuíta e na lasa lleana era algo mais
neceriam nos sistemas educacionais nacionais. Com relação à ou menos estável, que podia mudar de vez em quando (tal-
formação de um sistema, Lancaster considerava que os pro- vez um antecedente de nossos bimestres, trimestres e quad ri-
fessores deveriam ser rigorosamente formados através de seus mestres?), e que era decidida diretamente pelo professor, a
livros e de seus ensinamentos diretos. Em 1805, existia um "posição" no sistema lancasteriano podia mudar dia a dia.
grupo considerável de alunos que viviam com ele; identifica- Imaginemos que diariamente eram possíveis mudanças mais
va-os como "sua família" e ensinava-lhes sobre a condução ou menos importantes na "ordem" da sala de aula e que estas
da escola, a seleção de monitores e "as paixões"; os futuros mudanças não eram decisões diretas do professor, mas sim
monitores deveriam aprender a registrar o temperamento e a obedeciam à aplicação de regras gerais. O professor, nesta
conduta dos alunos, e a usar a si mesmos corno exemplo situação, está afastado do aluno, sua autoridade não aparece
(Taylor, 1996, p. 17). Propôs também que a Sociedade Lan- corno próxima ou pessoal, mas sim corno afastada e anôni-
casteriana pagasse uma pensão ou salário fixo aos professores ma; não é um "fazedor de lei" (um legislador que determina
(e não, como ocorria até então , que esta remuneração fosse as regras da situação), mas sim alguém que aplica regras exis-
proveniente do pagamento das mensalidades dos alunos), tam- tentes e que escapam ao seu poder. Lembremos que , em Co-
bém quando estivessem doentes ou na velhice. Isto permiti- menio, o professor, visto como o sol, era uma espécie de en-

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A ) ALA DE A ULA CRESCE : A ÜISCIPLI NA NOS TEMPOS DA !\EVOLUÇ ÃO I NDUSTl\IAL
A 1NVENÇÃO DA SA LA DE AULA

carnação da autoridade divina que atuava aplicando as regras veremos mais ad iante, também estava minuciosamente re-
no ensino. A autoridade do professor lancasLeriano era uma gulamentada. Lancaster premiava a pontualidade e sancio-
autoridade técnica, de aplicação, uma autoridade que talvez nava ou mandava para suas casas os alunos que chegavam
não fosse vista como algo derivado do sagrado, mas sim como tarde; também pautou a agenda escolar diária chegando a
algo mais profano e empírico. Neste sentido, assemelha-se extremos desconhecidos até então. Dizia: "Ninguém pode
muito à autoridade elo inspetor da fábrica, que também se ignorar a grande quantidade de tempo que se perde na es-
encarrega de levar os homens a "cooperar" com a máquina cola, durante o qual os alunos não estão fazendo suas tare-
industrial e tenta que isto ocorra de aco rdo com regras que fas, e talvez nem mesmo tentando aprendê-las. As me lhores
não são de fi nidas por ele. esco las que vimos, em outros países ou neste, dedicam urna
Se há algo que caracteriza uma "máquina de ensino" parte do tempo muito pequena aos misteres de pagamento"
é a massividade. Por isso, produziu-se nela uma série de téc- ou burocráticos (citado em: Tay lor, 1996, p. 105). Esta nova
nicas e saberes para garantir o controle e a docilidade ela po- preocupação com o. tempo deve ser entendida no contexto
pulação escolar massificada, que se consolidaram como parte da transformação social mais geral do capitalismo. Enquan-
to os agricultores ou os artesãos podiam organizar com rela-
das relações sociais dentro ela escola. Um destes saberes é o
tiva liberdade seu tempo de traba lho - por exemplo, traba-
registro minucioso e detalhado da vida escola r (Naroclowski,
lhando mais no verão para a colheita, ou descansando aos
1994, p. 142 e ss.). Estes registros, que relatavam o progresso
domingos e às segundas-feiras, quando não eram solicita-
de cada aluno em cada matéria e sua freqüência, eram guar-
dos - , os donos das fábricas não toleravam estes vaivéns, e
dados ano após ano. O controle da freqüência não se realiza-
exigiam freqüência pontual e regular. O ócio passou então a
va chamando os alunos por seus nomes, como é feito hoje,
ser considerado de maneira depreciativa, e foi perseguido
mas prolongava-se durante o dia e era realizado classe por
pelas leis que castigavam a p rt.':guiç~~ e o ~.' '.:' mprPso . N::
classe. Quando um grupo estava em aula, os alunos que o
terreno educativo, pode-se observar que, enquanto na esco-
compunham eram chamados (10 ou 12, lemb remos); os nú-
la jesuíta e lasalleana o importante era não perder um tem-
meros que não estavam presentes eram então marcados no po divino, e estar ocioso era considerado pecado, na civili-
registro. Se um aluno estava ausente durante vários dias, al- zação contemporânea, na escola lancasteriana, o ócio na sala
gum funcionário da escola ia até sua casa para saber se algu- de aula era visto como uma perda mais em nível econômi-
ma coisa estava acontecendo. co. "Quanto à disciplina, busca uma economia positiva; pro-
Outra reestruturação da experiência áulica que te- põe sempre o princípio de uma utilização do tempo teorica-
ria muitos efeitos sobre a escolaridade, assim como a co- mente crescente; esgotamento mais do que ocupação; trata-se
nhecemos hoj e, é a reorganização do tempo e do espaço esco- de extrair do tempo cada vez mais instantes disponíveis e,
lares. Na escola lancasteriana , a jornada escolar, como de cada instante, cada vez mais forças úteis" (Foucault, 1995,

12s :
A SAL A DE AULA ( l\ ESC E 1\ ÜI SCIPLINA NOS ·TEMPOS DA f\[V OLU ÇÃO I NDUSTl\IAL
A I NVENÇÃO DA SALA D[ A ULA

p. 158). Esle princípio ele ulilizaçào elo lempo tinha um com-


ponente de maximização: aproveitar o tempo, não porque
. - . J9
perdê-lo fosse pecado, mas sim porque era antteconomtco- .
Quanto à organização espacial, eleve-se destacar que
a sala de aula lancasteriana era, em geral, um grande salão,
muilo cheio de alunos , com uma disposição espacial também
estritamente regulada (ver figura 10). O professor devia estar
na frente , sobre um tablado, para controlar os movimentos e
as lousas elos alunos e o trabalho elos monitores; os alunos
eram dispostos em fileiras de nove, sendo que no final estava
um monitor. Ocasionalmente, os alunos paravam junto ao Fig. 1O. Uma escola lancasteriana em fun cionamento. A ilustração mostra
monitor e, em semicírculo , recitavam a lição ou as contas. 365 alunos sentados. com os monitores encostados, conforme um Manual
da British and Foreign School Society de 183 1 (Foto de W. Johnson." 'Chanting
Esta organização serial (em séries de monitores e alunos, em
Choriste rs': simultaneous recitation in Balcimore's Nineteench Cencury
vários grupos distintos) do espaço escolar, disse Foucault, foi Primary Schools", History o( Education Quarterly. vol. 34, NQ 1, 1994).
"(. ..) uma das grandes transformações técnicas do ensino fun -
damental. Permitiu ultrapassar o sistema tradicional (um aluno
quç trabalha alguns minutos com o professor, enquanto o professores e os alunos se sentiriam nessá sala de au la. A sala
grupo confuso dos que esperam permanece ocioso e sem vi- media aproximadamente 7 metros de largura por 12 de com-
gilância). Ao determinar lugares individuais, possibilitou o primento. As carteiras, comuns para todas as fileiras, mediam
controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Orga- por volta de 2,5 metros e estavam lornlizadas a um metro de
nizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez o distância uma da outra. Assim sendo , cada aluno tinha apro-
espaço escolar funcionar como uma máquina de aprender, ximadamente 30 cm de carteira à sua disposição. A situação
mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar" (Fou- piorava com os assentos: eram banquinhos com uma base
cault, 1995, p. 151). superior de 20 x 15 cm üohnson, 1994, p. 6). Compare este
assento e esta parte da carteira com o tamanho do livro que
A escola da figura 10 pode nos dar uma idéia apro-
tem em suas mãos, e verá que era pequeno.
ximada de como as medidas eram ajustadas e de como os
A situação material das escolas lancasterianas nas ex-
29. Pode-se comporor esto preocupoçàO pelo efictêncio do tempo escolar com o comentório de
colônias hispano-americanas não era muito melhor. Por um
Domingo F. Sormiento em suo viagem oos €stodos Unidos: "nesto époco de movimento lado, havia maior pobreza de recursos e não se contava com
universo/. o povo que tiver emborcações mois velozes. de constluÇàO mois boroto e. porten-
to. com fretes menos elevodos. seró o rei do universo· (Sormiento. 1845-184: 1993. p. 335).
as carteiras fabricadas em massa ou com escolas construídas

127:
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A 1NVENÇÃO DA SALA DE A ULA A SALA DE A ULA ( l\fSCE A Ü l \ (IPLJ NA NO\ TEMPO S DA R EVOLUÇÃO INDU\íl\ IAL

especialmente para este fim, como no caso dos Estados Uni- Agenda do dia do professor Mjilton (1836)
dos, como mostra a figura 10. Um relato sob re uma esco la 9:00 - 9:10 Sentar-se. Fazer contas ou figuras nas lousas.
lancasteriana em Bogotá, em 1820, revela as dificuldades que 9: LO - 9:30 Aula. Primeira lição: gramãtica, geografia.
9:30 - 9:45 Exercícios simultãneos: corrigir erros de sintaxe.
eram enfrentadas:
9:45 - 10:00 Exercícios simultâneos de escrita.
10:00 - 10:30A escola deve estar em silêncio. O sinal toca 4 vezes;
O local constava de duas partes: um corredor de ped ra e susten- levar os alunos até os monitores que estão nos cor-
tado por uma enorme coluna de pedra, e uma sala estreita, com redores. Os temas, de acordo com a aula: gramática,
fumaça, escura e tão úmida que a parede estava coberta até a geografia, escrita e leitura.
altura de um metro por um limo verde que causava um cheiro 10:30 - 10:45 Toca o sinal; os mon itores recolhem os livros.
muito desagradável. Uma antiga mesa de cedro, uma cadeira de Escrever palavras dadas pelo monitor.
braços, em cujo espaldar havia um touro e um toureiro em rele- 10:45 - l l:l 5 Gramática ou geografia simultâneas.
vo; quatro bancos duríssimos e um banco de tijolo eram os úni- 11:15 - 12:00 Escri ta, primeiras 5 lições erri papel, as seguintes na
cos móveis que decoravam aquele lúgubre cômodo. lousa.
Sobre a cadeira do professor havia um adereço composto por um 12:00 Saída.
enorme chapéu de palha decorado com penas de peru (vulgar- 2:00- 2:10 Reunião igual à da manhã.
mente chamado "tonto"), uma corda trançada de seis fios, duas 2:10 - 2:30 Aula, primeira lição: aritmética.
palmatórias e um cartaz escrito em grandes letras vermelhas, que 2:30 - 3: 15 Com os monitores nos corredores: aritmética, exceto
dizia: a primeira classe, que estuda geografia com mapas
"A letra marca-se com sangue, que estão pendurados na parede mais alta da sala.
O professor examina por 15 minutos a primeira classe.
e o trabalho, com dor".
3: 15 Voltam aos seus bancos.
R. Carrasquilla. "Lo que va de ayer a hoy",
3: 15 - 4:00 Quadros simultâneos, com explicação incluída.
citado em: Weinberg, 1984, p. lOL
4:00 - 5:00 Contas.
5:00 Saída.
Como sabemos, os homens não são máquinas e as Copiado dejohnson, 1994, p. 10-11.
crianças, menos ainda. Por isso, uma "máquina de ensino", cuja
"matéria-prima" eram pessoas, não podia funcionar inteiramen- Em segundo lugar, logo surgiram manifestações críticas
te como uma máquina. Como mostra a descrição anterior, e sobre a habilidade e a capacitação dos monitores para ensinar os
muitas outras, o método não funcionava na prática como foi alunos (Kaestle, 1973;johnson, 1994). Muitas vezes, os monitores
proposto por seus criadores. Por um lado, olhando um plane- só sabiam ler (mesmo tendo sido dadas instmções posteriores de
jamento do tempo escolar de uma escola lancasteriana norte- Lancaster para tentar evitar isto e propor, em troca, maiores requisi-
americana, pode-se observar que o regime de monitoramento tos para sua seleção); e muitos temiam também que, ao tomar o
coexistia com outras formas de instrução simultâneas a cargo ensino independente de sua própria atuação, a capacidade de con-
do professor e com outros rituais não "mutualizados". trole e de instrução do professor sobre o conjunto de seus alunos

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A 5 AL A OE A ULA (l\ESCE A Ü ISCIPLINA N05 TEMPOS DA R EVOLUÇÃO I NOUSTl\I AL
A 1NVENÇÃO DA SA LA DE A ULA

fosse reduzida. As crianças aprendiam os conteúdos por meio de Ltm ganizavam àquela época em favor do sufrágio universal, da re-
companheiro, o qual, embora estivesse mais adiantado na hierarqLtia, gulamentação da jornada de trabalho e ela educação obrigatória.
era, de qLtalquer maneira, wn de seus pares. Conia-se então o risco de Por sua vez, os alunos das escolas do método global pa-
que o monito1;o ajudante,fosse mais importante do que afigura centra- reciam mostrar resultados menos evidentes , porém mais "segu-
lizada do professo1: Muitos julgavam que este método não garantia o ros": a proximidade relativamente constante do professor - rela-
sentido moralizador do ensino, a produção nos alunos da boa ou tivamente, porque nas salas "globais" era comum encontrar 100
má consciência corno regulador interno: o professor estava muito dis- alunos - , o fato de que uma e só uma figura estivesse encarrega-
tante dos alunos e sua autoridade era mediada por outro aluno. Para os da de organizar, sancionar, avaliar e dispor, não despertava a des-
críticos da época, não bastava alcançar a docilidade dos corpos; era confiança dos Estados, que também estavam centralizando mui-
preciso também educar a alma. Além disso, o método estava cen- tas funções: a educação, a saúde, a punição do ócio, o exército.
trado no ensino da leitura-escrita e de cálculo, e negligenciava as Por esse motivo, dizia-se que aos estados capitalistas nascentes
aprendizagens religiosas, que até então tinham sido centrais. "Lan- não interessava tanto qual método era barato e rápido, mas sim
caster aceitava em suas escolas crianças de todas as seitas, não ensi- qual método constante, centralizado e paciente, corno a gota qu~
nando nenhum dogma, limitando-se à leitura de passagens extrai- pinga na pedra, poderia garantir a "ordem" nas jovens gerações no
das d~ Bíblia, sem comentários, convencido de que o ensino religioso contexto de uma sociedade que se transformava aceleradamente.
propnamente dito deveria ficar sob a responsabilidade dos pais"
Qesualdo, 1954, p. 31). Pode-se ver como exemplo a organização Devido a estas críticas, e a esta crescente desconfiança
da jornada escolar proposta pelo professor MJilton citado anterior- do Estado com relação aos resultados do método, a escola lancas-
mente: lá se verifica que não há rituais religiosos nem lugar para teriana foi perdendo terreno. Na metade do século 19 , o método
orações, como nas escolas jesuitas ou em outras da mesma época. de monitoramento havia sido abandonado na maioria dos territó-
rios franceses e ingleses. Mesmo assim, continuava vigente na Amé-
Por outro lado, o método lancasteriano teve efeitos não
rica Latina, em função das guerras civis e da escassez de docentes.
desejados, como a formação de lideres operários sindicais e po-
No entanto, no último terço do século 19, quando os estados
líticos na França e na Inglaterra (Querrien, 1979). Isto foi facili-
nacionais se organizaram, foi combatido decididamente (Pineau,
tado, em primeiro lugar, pela presença de crianças e jovens de
1997). Os estados nacionais decidiram progressivamente pela prima-
diversas idades que transmitiam entre si experiências e conheci-
zia do pastorado modernizado que surgia juntamente com a disciplina
mentos que podiam exceder o limitado curriculum proposto por
independente chamada pedagogia, baseada em sistemas de ensino si-
Lancaster e Bell, e incluir saberes sindicais e sociais. Em segun-
multâneos, como os que veremos a seguir.
do lugar, muitos tinham aprendido a desenvolver um trabalho
mais autônomo, sem nenhum representante unificador imedia- Como vimos, a sala de aula global quer que os alunos
to, como o professor; e a leitura e a escrita permitiam que en- obedeçam de forma reflexiva, e não às cegas, que todos acreditem
trassem em contato com as sociedades semipolíticas que se or- que a ordem na qual participam - seja na sala de aula, seja na

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A 1 NVENÇÃO DA SALA DE AULA 'í
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A SALA DE AULA (l\ESCE . A Ü JSCJP LJN A NOS TEMPOS DA !\ EVOLUÇÃO IN DUSTl\JAL

sociedade - seja correta e legítima. Aparentemente, para os críli- ça controladora do docente talvez fosse o elemento de que mui-
cos da época, o método mútuo representava uma organização da tos pedagogos sentiram falta no método lancasteriano.
sala de aula na qual, ainda que se solicitasse que todos tivessem Cada vez mais, a sociedade industrial e a economia ca-
papéis e tarefas contínuas, a identificação elas crianças com essa pitalista preferiram o "velho" sistema global a um método pouco
ordem era muito mais superficial e instável. Talvez a distância seguro em seus resultados "morais" ou de "obediência". Propuse-
relativa da figura central do professor tivesse permitido passar para mos ver os métodos de governo da sala de aula como vinculados
segundo plano a produção da obediência por meio da boa ou má à forma de governo mais global das sociedades. Isto não significa
consciência. Ou seja, aquilo que La Salle denominava "humilhar" que ambos os governos sejam idênticos, mas sim que têm vincu-
ficava relegado frente às ocupações diárias de organização elo gru- las e que permitem a circulação de empréstimos de urna esfera
po em todos os seus aspectos (ver p. 88). para outra. O fato de o método lancasteriano, com sua lógica de
Para produzir a obediência "profunda" era necessário ensino contínuo muito semeÍhante ao ritmo das fábricas, não ter
um passo fundamental: que a autoridade "externa", que é o pro- conseguido se impor nas sociedades industriais a longo prazo
fessor, se convertesse em "interna". Ou seja, que o controle do mostra-nos que, em uma sociedade "moderna", nem todas as ins-
professor sobre o discípulo se "interiorizasse" na consciência cios tituições ou partes dessa sociedade se modernizam concomitan-
alunos, e que estes começassem a autocontrolar-se. Para isto, o temente. A partir do momento em que os setores dominantes eu-
olhar "próximo" do professor tem importância fundamental. Por ropeus e americanos destinaram à escola uma função mais
um lado, porque permite que os alunos aceitem as regras; por conservadora ou estabilizadora do que transfonnadora, o método
outro, no caso daqueles que não as aceitam, o olhar próximo global foi considerado a forma mais indicada para esta função de
também tem uma eficácia disciplinar especial. Por exemplo, em ordenamento. Como veremos a seguir, a pedagogia atendeu a este
uma situação de exame, os alunos muitas vezes não colam por "mandato" com a produção de teorias de ensino abrangentes.
temer que o professor os descubra, mesmo sendo difícil que o
professor exerça vigilância eficaz sobre 35 ou 40 alunos: ou seja,
que a autoridade do professor produza efeitos independente- TERCEIR A CONSOLID AÇÃO: A ESCO LA PRUSSIANA,

mente de sua presença física ou de suas ações imediatas. Assim DOS PRINCÍPIOS PESTA LOZZl ANOS À TEO RI A EDUCATIVA
sendo, sua proximidade não consegue apenas acentuar a obedi- DE HERBART
ência em alguns - aqueles que vêem que colar é imoral-, mas
também nos outros - os que não acreditam que essas regras Ao mesmo tempo em que o método lancasteriano estava
sejam particularmente morais, mas que, diante da possibilidade no auge na Inglaterra, outros desenvolvimentos na atual Alemanha
do olhar do professor, "autocontrolam-se". Neste sentido, o mé- mostravam um caminho diferente. Ali o sistema de ensino mútuo,
todo global parecia oferecer uma situação onde se possibilitava ou lancasteriano, havia sido muito pouco desenvolvido na escolari-
essa transição do controle externo ao autocontrole. Essa presen- zação elementar, e os seguidores de Comenio e seus discípulos ti-

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A 1NVEN(Ã O D/> SALA DE A ULA
A SALA DE AUL>\ C""ESCE A D 1'c1PL1NA
J
NOS TEMPOS DA l\EvOLUÇÃO I NDusrn1AL _ :

nham mais força. Um deles,johann Heimich Pestalozzi (1746-1827), derivar-se do ensino familiar, considerado como natural; por isso,
que viveu nos cantões suíços de língua alemã, produziu um método
a importância de observar como Gertrudes (uma ~ul~er dopo~~)
que teria muitas repercussões na sala de aula e na formação docente.
ensinava seus filhos. Dizia nesse livro: "Homem, 1m1te est~ auvt-
Pestalozzi era um personagem forasteiro e. ilustre, proveniente ele
clade da excelsa natureza, que desenvolve o genne da maior das
uma família abastada que tinha empobrecido durante sua infância
árvores a partir de uma semente minúscula" (citado em: LL~zuna­
devido à morte de seu pai. Na juventude, leu Rousseau 30 e outros
ga, 1992, p. 212). Assim também devia proceder a educaçao, co-
iluministas, que o convenceram da necessidade de educar as massas
meçando pelo essencial e desenvolvendo-se lentameme do rr:e-
para superar o atraso e a pobreza social. Quando estourou a Revolu-
ção Francesa (veja p. 104), Pestalozzi apoiou-a fervorosamente e foi nos essencial ao essencial. Esta consideração do educativo tambem
contribuiu para que Pestalozzi escolhesse a forma de "lares" ou
nomeado cidadão francês pela Assembléia revolucionária em agos-
to de 1792, juntamente com outros 18 estrangeiros "iluministas". pensionatos como estabelecimentos educativ~s, fazend_o_ com que
Sua fama como educador na Europa cresceu, e seu estabelecimento o ensino se assemelhasse ao máximo ao ambiente fam1har.
educativo em Yverdon recebeu visitas de todas as partes, incluindo Ao longo de sua vida, Pestalozzi fundou in_úmera~ es-
membros da sociedade lancasteriana (da qual se tomou membro colas· muitas delas fundiram-se por falta de apoiü fmance1ro e
honorário em 1815). Mesmo depois de sua morte, a escola que seus devido a divergências entre seus professores. Ele defen~ia prin-
discípulos mantiveram era visitada como escola modelo por peda-· cipalmente um método experimental para tes~ar as le is da n~­
gog9s e políticos da Europa e da América (Luzuriaga, 1992). · tu reza que "descobria". Destacou a importância da obse rvaçao
Qual era o motivo de tanto sucesso? Pestalozzi fundou direta assim como tinha postulado Comenio, e desenvolveu
várias escolas ou lares nos quais esta nova qualidade de ensino, o um m~todo de questionamento para a educação da per~epção
processamento didático dos conteúdos a ensinar, encontrou uma ou educação intuitiva. Para ele, o objetivo da ação educativa era
de suas primeiras formu lações. Continuou com a tradição de olhar a 0 "desenvolvimento de todas as forças humanas", e neste sentido
natureza para deduzir as ações educativas, assim como tinham feito sua proposta implicava uma ampliação da proposta lancast~ria~a,
Comenio e como propunha Rousseau. Em um de seus livros mais que superava amplamente a noção de instrução ou alfabetizaçao,
famosos, Cómo Gertrudis educa a sus hijos (Como Gertrudes educa que era o eixo do curriculum da escola mútua.
seus filhos), destacou que o modelo para o ensino escolar devia Em Cómo Gertnidis educa a sus hyos, Pestalozzi conta que,
durante muito tempo, esteve tentando determinar quais eram os
30. .Jean.Jacques Rousseau(/ 712-1778). de quem trotaremos em detalhe mo1s odiante. foi
um filósofo. poh?ico e teórico social de grande importância poro suo época. Formulou o
pontos básicos do ensino da cultura que foram adapta~os à essên-
proposição de que os sociedades se basearam em um ·contrato" - nós o chomorfomos cia da natureza, e subitamente encontrou a resposta: todo nosso
pacto ou constituição - entre pessoas livres e iguais. De suo vosto obro, destaco ·se. no
campo educativo. Emílio ou do educoçõo ( 1762). onde troço uma utopia pedogógKo no
conhecimento procede de três fonnas fundamentais: o nú_rnero, .ª
qual o educação devia aproximar-se ó natureza do criança. Emílio é um dos grandes clós- forma e a palavra"; finalmente chegou à "essência" tão dese3ada (ci-
sicos do pedagogia moderno e suo le1turo é muito recomendóvel.
tado em Luzuriaga, 1992, p. 221). Como conseqüência, o profes-

:104 10s:
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A I NVENÇ ÃO DA SAL A DE A UL A A SALA DE A ULA (l\ESC E- A Ü ISCI PLINA NOS TEMPOS DA RE VOLUÇÃO I NDUS Tl\IAL

sor sempre dirigiria a atenção dos alunos a esses três aspectos: quantos Para os contemporâneos de Pestalozzi, esses e~erc ícios
objetos e de que classes se apresentam a seus olhos; como se mos- eram uma espécie de milagre metodológico. De forma indutiva,
tram como são sua forma e seu contorno; como se chamam, como
)
com base na observação, Pestalozzi criava situações nas quais as
cada um deles pode ser representado por meio de um som e de crianças partiam de suas representações e idéias "caóticas" ou "de-
uma palavra. Tais deveriam ser os guias de todos os professores sordenadas" para iniciar-se na observação' sistemática e em uma lin-
para educar a mente, a mão e o coração de seus alunos. guagem cada vez mais complexa. Como mostra o exemplo, o con-
teúdo da observação era quase irrelevante, e o importante era o
Estes três pilares constituíram a base ela didática pesta- exercício de observação em si. Como estes princípios eram rela-
lozziana, juntamente com o princípio ela obse1vação e da educa- tivamente independentes dos conteúdos das observações, foi dito
ção perceptiva. Vejamos como funcionava este método na prática. que o método de Pestalozzi - como já vimos, global - tinha
johannes Ramsauer, discípulo e colaborador de Pestalozzi, reme- uma tendência à fo rmalização: podia converter-se em regras e
morando sua experiência como aluno, narra um exemplo do en- princípios mais abstratos, utilizados em diferentes contextos e
sino da língua. Esta se organizava a partir de exercícios de obser- para diferentes disciplinas. Esta possibilidade de formalizar e pa-
vação-intuição sobre um velho tapete pendurado na parede. dronizar o ensino tornou-o mais atraente. Em 1810, o reino da
Prússia deu bolsas de estudo a dez professores das escolas fun-
Este tapete freqüentemente estava estragado e tinha rasgos e bura- damentais para que aprendessem o método pestalozziano na
- cos. Nós (os alunos) deveríamos observar o tapete. que tinha figuras Suíça. Inclusive, de muitos programas de estudo das escolas
desenhadas. e deveríamos descrever a superfície com seus buracos e populares do século 19 constava a disciplina "ensino intuitivo"
rasgos, e tínhamos que dizer algo sobre a forma, o número, a locali- (ou de observação) como matéria independente que preparava
zação e a cor do que víamos e percebíamJs. Entào, o que dizíamos
para a alfabetização e o cálculo, entre outros. Também nos livros
era formulado em orações cada vez mais !Jngas. Ele dizia: Rapazes,
o que vocês estão vendo aqui7 (ele nunca se dirigia às meninas). de pedagogia argentinos do final do século 19 e início do século
Respostas: Um buraco na parede. 20 há capítulos dedicados ao método de Pestalozzi.
Outra resposta: Um rasgão na parede. Como já mencionamos, apesar de a posição política de
Pestalozzi: Muito bem! Agora repitam comigo: vejo um buraco no
Pestalozzi ser republicana, contra a monarquia e de apoio à Revolu-
tapete. Atrás do buraco, vejo a parede. Atrás do buraco estreito e
comprido, vejo a parede.
ção Francesa, seu método parecia muito compatível com a política
Os alunos repetem. disciplinar das monarquias do início do século 19, que se baseavam
Pestalozzi : Repitam comigo! Vejo figuras sobre o tapete. Vejo figuras em princípios contrários ao liberalismo. Graças a este consenso, foi
pretas no tapete. Vejo figuras pretas redondas no tapete. Vejo uma considerado o pai da escola popular de língua alemã, um Sarmien-
figura quadrada e amarela no tapete. Ao lado da figura quadrada to dos Alpes, e converteu-se em um verdadeiro mito pedagógico.
amarela, vejo uma figura redonda e preta. A figura quadrada comu- '
.i Os estados imaginaram que com o método pestalozziano poderiam gerar
nica-se com a figura redonda por meio de uma linha grossa preta.
Citado em Blankertz, 1997, p. 109-110. planos de estudo que garantissem um ensino unificado em todo seu terri- 1

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• t 1 1 J
A I NVENÇÃO DA SALA DE A ULA
A S~ L ~ DE A ULA el\E SC E A D1 sc 1PL1N A NOS TEMPOS DA R EVO LUÇÃO IN ous m 1AL _ :

tório. Isto era cada vez mais necessário devido à liberação dos cam- Na aula de leitura, ocupar a maior pane do tempo com explica-
poneses e à incipiente industrialização, que provocava deslocamen- ções de palavras, exercícios de vozes, sinõnimos-parõnimos, .etc.
tos e migrações de populações e que exigia uma massa mais disci- Na aula de caligrafia e desenho, exigi r que as cnanças copiem
corretamente os modelos, sem ter um conceito claro da forma
plinada. Com este argumento, entre outros, os responsáveis pela
nem de seus elementos.
política educativa desejavam construir um ensino homogêneo, dis- Ensinar o que são um sabiá, uma calopsita, etc.. antes de ensi-
ciplinado, regulamentado até nos detalhes. nar o que são um pardal, um pintassilgo , etc.. . . _
Começar uma aula sobre adje tivo dando sua deí1mçao.
Qual é o conteúdo governamental da proposta pesta- Usar em todas as escolas um planejamento uniforme, de ma-
lozziana? A criança aprende a abordar os objetos do ponto de neira que as crianças conheçam anteci padamente a ordem em
vista do conhecimento. Aprende a conduzir-se corno alguém que que o assunto será apresentado.
conhece, em uma situação de grande estruturação determinada Senet, op. cit. , pp. 86-87.
pelo professor. Os alunos aprendem a "conduzir-se" a si mesmos.
Assim sendo, o professor é um verdadeiro "condutor" das condu- Apesar do sucesso de Pestalozzi e de sua inco rporaç~o
ções dos alunos, um governante da situação de ensino que ele ao saber pedagógico comum à sua época, foi outro conte.m?ora-
mesmo estrutura, guiando e sistematizando as percepções e as neo seu,johann Friedrich Herbart (1776-1841), que tena m~u­
disposições dos alunos. Pestalozzi avança na proposta do método ência decisiva no momento de estruturar a sala de aula do meto-
global, redefinindo um sistema centrado em uma criança que do global e da necessidade de processa~ento didátic~.· ~erbart
aprende e que: por sua vez, o guia até objetivos preestabelecidos. foi o sucessor de Kant na cátedra de Filosofia de Konigsberg
Neste sentido, pode-se dizer que o método pestalozziano parece (veja p. 107), mas também foi professor partic ~lar e ~cupou-se
especialmente do que agora seria o ensino médio. Foi p~ovavd­
ser uma das grandes formulações do governo da sala de aula con-
mente quem mais sistematizou a idéia de que a pedagogia dev_ia
temporânea, que mais tarde viria a se aprimorar e se tornaria mais
complexa, como veremos no próximo capítulo. fundar-se principalmente na psicologia e em uma conce~çao
determinada do sujeito de ensino e de conhecimento, segumd.o
O próprio pedagogo argentino, Rodolfo Senet, transcre- a linha naturalista de Comenio e Pestalozzi, porém levando mais
ve uma das atividades que a diretora da Escola Normal de Dolo- longe sua formalização nas leis e regras universais, ao modo de
res, Lupercina Laborda, utilizava para ensinar o método pestaloz- Immanuel Kant. Seu impacto foi estendendo-se com o passar
ziano. Aprofessora propunha uma série de problemas pedagógicos dos anos por toda a Europa, e também nos Estados Unid~s e ~a
baseados nos nove princípios, a partir de uma situação de ensino Argentina os pedagogos herbartianos organizaram-se e d1fund1-
que não cumpria alguns deles. Os alunos deviam indicar qual era ram sua proposta.
o princípio que não estava sendo seguido e quais seriam os passos
Como bom sucessor de Kant, Herbart manteve na pe-
para corrigi-lo. Laborda perguntava: "Que princípios pestalozzia-
dagogia o vínculo direto das atividades de gover_no_e das ativi-
nos são violados procedendo da seguinte forma?"
dades de ensino: "a pedagogia geral, com relaçao a qual fare-

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' A )ALA DE A ULA (l\EKE · 1\ ÜISCIPLINA NOS TEMPOS DA !\EVOLUÇÃO I NDUSTl\IAL
A 1NVENÇÃO DA SALA DE A UL A

do. Para que sua imaginação não voasse, era necessário mantê-
mos adiante algumas considerações particulares, é. e~tudada,
los ocupados. Segundo, se a ocupação estava garantida, era bom
no primeiro momento, de acordo com os três pnnc1p1os capi-
que aprendessem algo. Com esse propósito, Herbart formulou
tais: governo, instrução e disciplina" (Herbart, 1935, p. 35). O
algo semelhante a uma didática geral que continha indicações
governo era 0 de maior extensão, porq~e sem ele os outros dois
não seriam possíveis. Herbart entendia por governo o alcance de como organizar o ensino de acordo com as disciplinas e a
da ordem e a condução da classe, e incluía tanto os corpos idade dos educandos.
como as almas. Seu fundamento estava em manter ocupadas as Pode-se dizer que Herbart é um dos primeiros pe-
crianças e em vigiar, castigar e dar orden~ múltipla_s _(pp. 3 7- dagogos que estruturaram o clássico triângulo pedagógico:
39). A instrução, por outro lado, era a atividade espmtual que professor-aluno-conhecimento. "Que a instrução tome ou não
chegava a multiplicar o interesse e a virtude; a ê~fase _sobre o seu verdadeiro caminho depende do professor, do aluno e do
interesse_ que, como veremos, tinha impor_tâncta capital para objeto, simultaneamente" (Herbart, 1935, p. 94) 31 . Esta afir-
Herbart - indicava a necessidade de motivar o aluno e de mação, hoje tâo incorporada em nosso senso comum, era, no
dotar 0 saber da energia que vem da vontade. Por último, a entanto, completamente nova se comparada com a pedago-
disciplina tinha como objetivo formar o caráter e educa: a von- gia de Comenio, La Salle ou Lancaster, que não fa lavam de
tade; em lugar da obediência cega, por temor ~u adesao, Her- um objeto de conhecimento nem do professor como media -
bart propôs uma obediência reílexiva e escolhida pe~o aluno. dor nessa relação. Herbart explicitou e fundamentou esta trí-
Por .esta razão, devia adaptar-se a cada aluno, considerando ade de conceitos, e formu lou uma pedagogia que triplicasse a
suas debilidades e forças (Herbart, 1935, p. 142--149). relação entre os três. Como se depreende das considerações
A partir desta descrição dos princípios capitais da _pe- anteriores sobre o governo e a disciplina, o triângulo não era
dagogia, observa-se que o papel de conduzir e governar as cnan- equilátero, nem supunha uma relação equivalente entre as
ças era mais importante do que as estratégia~ de processam~nto partes: o professor continuava sendo o "sol" que Comenio imagi-
didático. Tudo estava subordinado à necessidade de mante-las nou, ainda que em um sistema mais rico e complexo, cheio de
ocupadas: "As crianças devem estar sempre ocupadas por~u~ a alunos com vontades, interesses e experiências que deviam ser
ociosidade causa a desordem e o mau comportamento. Sera am-
da melhor quando a ocupação consistir em trabalho útil (por 31. Hetbort distinguiu um sujeito de cOllhe<:imento e um ob1eto de conhecimento distintos e
exemplo, trabalhos manuais ou agricol_as). E será melhor ~am­ seporodos entre si. A episcemolog10 concemporôneo qveSitono eSio oposiçôo, sustentando
que cOllhe<:emos o objeto sempre de formo mediado por nossos cotego1/os de pensamento
bém quando, com a ocupação, se ensmar algo que contnbua e nosso forroo de ver o mundo. e que estas cotegorios não sõo 7111/0riontes • atemporais e
para a educação para o futuro" (Herbart, 1_935, p. 46)._ Co~o universais poro todos os sujeitos (como disse Hont). Assim, umo órvore pode representar um
elemento vivo do natureza (o biologia moderno). umo criatura divino (o visôo teocrótico do
vemos, as prioridades de Herbart eram muito clar~s. Pn_meiro, sociedade). ou urra princesa encontodo (como os ceibos de algumas mitologios indígenas):
i queria que as crianças não pensassem no q~e ~hes Vtesse a cabe- estos representações sôo construções sociais e históricos que determinam o formo pelo qual
1 observemos o ·Ó!Vore · e pelo que o integramos em umo 1101TotM:> ou lógico roois gero/.
ça, mas sim no que o professor e a pedagogia julgavam adequa-
.
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A INVE NÇÃO DA SALA OE A ULA
A SALA OE A ULA Cf\ESCE A Ü l5CIPllNA NOS TEMPOS DA !\EVOLUÇ ÃO I NOUSTf\IAL

conside.rados, ~de saberes ou conhecimentos científicos, religiosos dos imigrantes. "Falar bem", corretamente, sem palavras gros-
e morais que tinham suas próprias lógicas. seiras ou vestígios de outros idiomas passou a ser o "ponto" de
. Para harmonizar todos esses pólos, Herbart propôs di- diferenciação entre os alunos educados e os não educados. Her-
ferenciar entre uma instrução sintética e uma analítica (disLin- bart e a pedagogia geral participaram deste processo de vigiar e
ção muito freqüente nos manuais de pedagogia no início do sé- reprimir as falas não autorizadas e de legitimar a fala escolar e
culo 20): enquanto na primeira era o professor que determinava erudita como correta e válida.
o que era ensinado, na segunda partia-se dos pensamentos do Tampouco é por acaso que Herbart propôs o uso de
aluno, que em seguida seriam analisados, retificados e comple- castigos físicos quando necessário. Mas também neste plano o
mentados sob a direção do professor. Uma partia da iniciativa pedagogo alemão tratou de inculcar nos alunos a auto-reflexão e
do professor, e a outra iniciava-se com os relatos de experiências a obediência racional. Assim, propôs que os castigos fossem pro-
d?s ~l~nos, dirigidos para um ensino específico (a gramática, a porcionais ao erro, como reparação pelo mau comportamento, e
h1stona, a geografia). Por meio da recomendação do uso de am- qL1e o aluno os reconhecesse como justos (Herbart, 1935, p. 15). O
bos, Herbart tentou reconciliar a autoridade docente e a ênfase monopólio da força e a violência deveriam estar no professor e
no saber do professor com suas noções de interesse e atenção cio no Estado; o conflito deveria ser visto como algo ingrato, incul-
aluno como fundamentos da aprendizagem. No entanto como to, incivilizado (Elias, 1983).
já mencionamos, nesta equação o professor era um ter~o com
muito mais peso relat.ivo do que o aluno: "Costuma-se exigir Outra das cont ribuições de Herbart ao formu lar a
que os alunos se exercitem com relatos e descrições; mas não se idéia de um triângulo de três vértices claros e distintos foi
deve esquecer que aqui predomina principalmente o exemplo reconhecer que na situação de ensino-a prendizage m encon-
do professor" (Herbart, 1935 , p. 97). Por exemplo, Herbart re- tram-se várias "diferenças": as diferenças entre os alunos e as
comendou que, nos relatos "espontâneos" de seus alunos os diferenças entre o professor e o grupo. Apesar de não tê-lo
1

professores tivessem cuidado com expressões idiomáticas co- formulado nesses termos, Herbart percebe u que a sala de aula
muns, erros de pronúncia e sons fora de lugar. Olhando mais de moderna é uma situação híbrida, urna mistura de conheci-
perto e:ta vigilânci_a, é evidente que o espaço dedicado para a mentos, personalidades e relações diferentes. Assim, para dar
expressao estudantil ou para o trabalho sobre os erros tal como
1
conta dessa variedade, para poder captar a atenção das crian-
hoje o concebemos, é pequeno. É necessário considerar tam- ças, "a instrução (deve ser) múltipla, e com esta mu ltiplicida-
bém que esta ênfase em disciplinar a língua e a linguagem dos de, uniforme para muitos, de forma a contribuir para a corre-
alun?s_ é paralela à constituição de um idioma nacional e à per- ção das desigualdades nas orientações espirituais" dos alunos
segu1çao e repressão dos dialetos e falas populares que ocorre- (Herbart, 1935, p. 49-50). No entanto, pouco depois de tran-
ram na segunda metade do século na Alemanha, França, Itália e sitar pelo caminho da diversidade, Herbart tentou controlá-
também na Argentina, com relação à fala indígena, popular e la e discipliná-la: para que não fosse perigosa nem levasse ao

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A I NVENÇÃO DA SA LA DE A ULA
A SALA DE A ULA (l\[S([ A DISC IPLI NA NOS T EMPOS DA !\EVOLUÇÃO IN DUS ll\IAL
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descontrole, esta diversidade deveria seguir um único modelo. Com destaca r as id éias principais e aproximar o aluno do conhe-
este objetivo, propôs um método aplicável c1 todas as idades e a ctmento de forma ordenada. O pensamento metód ico - ou
todos os conteúdos. método - era o que deveria guia r a ap licação, levando os
Como conseguir esta unidade ou uniformidade' a lun~s a fa ze r trabalhos próprios nos quais exercitasse m o
Como Pestalozzi, Herbart recorreu à natureza, ainda que tam- que unham aprend ido, sendo co rrigidos pelo professor (Her-
bém tenha incorporado seus próprios saberes de referência ban , 1935, pp. 56-58).
- a refl exão fil osófica. Anunciou pela primeira vez que a Vejan:os a importância deste professor para exercer o
educação é uma disciplina rnjos objetivos são colocados pela filo- governo das cnanças. Primeiro, captava-se a atenção: como vi-
sofia, e cujos meios são formulados pela psicologia. No entanto, n:os , não se permitia que as crianças registrassem suas impres-
quando dizia psicologia, pensava em algo abstrato, em meca- soes ª.ºacaso, eram conduzidas a determinados objetos que lhes
nismos gerais, não em uma psicologia infantil especifica, e eram impostos como obrigatórios. Se atentarmos para os termos
menos ainda em uma psicologia experimental. Seu sistema que Herbart usava - clareza, associação, sistema método _
era psico-lógico: a lógica da psique era compreensível do observamos. que :ada um desses passos tinha o ~orne de alg~
ponto de vista "lógico", mais do que do ponto de vista "psi- qu~ acontecia no momo da criança. A criança de Herbart escla-
co". Em vez de recorrer às etapas infantis de pensamento, recia suas representações, as associava, refletia sobre elas como
Herbart propôs um método que seguisse o que para ele era a sis~e_ma e as aplicava metodicamente. A tática de Herbart era que
lógic·a do conhecimento: "quando se tem que aprender mui- o d_wlogo professor-aluno, o interrogatório professor-a/uno, causasse
to, é necessária a análise, para não cair na confusão; mas como efeitos n_as mentes e nas almas das c1ianças. Dessa forma, a didática
também se necessita de unificação, esta pode começar pela he.rbartiana ~stava orientada para um trabalho profundo sobre a
conversação, avançar destacando os pensamentos principais criança, refletmdo sobre deque maneira as operações externas (ensino)
e concluir em uma auto-reflexão ordenada. Clareza, associa- desencadeavar:i operações internas (aprendizagem). Logicamente, em
ção, sistema, método" (Herbart, 1935 , p. 55). s~a pedago?1a, o primeiro determinava a segunda. As crianças
nao aprendiam ape~as certos hábitos mentais, mas principal-
Para Herbart, eram estes os quatro passos formais
mente como conduzi-los; não os ensinavam para que eles mes-
do ensino. O primeiro passo - clareza - requeria que se
mos apresentassem situações, mas sim para que reagissem de
falasse com palavras compreensíveis, que alguns.alunos de-
forma correspondente e adequada a situações já apresentadas.
veriam repetir com precisão. Para associação, o melhor era a
De ~ena forma, apesar de todas as rupturas que Herbart intro-
conversação livre, porque nela se dava a melhor possibili-
duzm , em seu sistema podem ser encontradas características da
dade para que o aluno estabelecesse conexões com seu pen-
pedagogia c~te.quista, que estabelece as interações antecipada-
samento. Por outro lado, o sistema necessitava de mais uma
~ente e as hm1ta em um intercâmbio predeterminado. Houve,
apresentação ou aula do professor para esclarecer os termos,
sim, inovações: o pensamento e a identidade que propôs a didá-

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A 1NVENÇÃO DA SALA DE A ULA A 5AL A DE A ULA ( f\[S([· /\ Ü ISC IPLI NA NOS TEMPOS DA [\EVOLUÇÃO INDUSTl\ IAL

tica herbartiana estavam centrados na obediência- uma obedi- aula e da escola, as f01mas de comunicação e as táticas cotidianas, para
ência baseada na compreensão, tema já presente em Comenio e alcançar a ordem e a condução do grupo escolw: Vários deles foram
em Pestalozzi, mas que encontrou em Herbart uma fo rmulação professores e diretores de escola que escreveram suas experiências
muito mais rica e complexa, "autorizada" e legitimada pela filo- inovadoras e estabeleceram as bases para uma sala de aula diferen-
sofia e pela ciência de sua época. te. Detalhando suas práticas burocráticas e as soluções concretas
Devido a esta capacidade de produzir um pensamento que encontraram nos problemas que enfrentaram, estes pedagogos
inovador, e também sistematizador de tradições existentes, Her- constituíram um conjunto de técnicas de governo escolar tão mi-
bart converteu-se no pedagogo oficial da Alemanha do século nuciosas como novas. Nenhum deles tentou, como fizeram Pesta-
19 e em uma referência para a Europa e para a América. A peda- lozzi ou Herbart, escrever a grande teoria da pedagogia; no entanto,
gogia herbartiana, seu estudo didático, seu caminho e seu suces- através de percursos distintos, chegaram a algumas soluções e pro-
so vincularam-se à eficácia desta pedagogia emergente para con- postas similares para os dilemas da educação de massa. Considere-
cretizar as formas de processamento didático para todos os objetos mos, por exemplo, o caso de Samuel Wilderspin, professor escolar.
a serem ensinados e para todos os sujeitos educáveis. Estas for- Este é o relato de como se colocou à frente de uma escola infantil
mas implicavam o cerceamento da espontaneidade, tanto de pro- para crianças ele 18 meses a sete anos de idade:
fessores como de alunos, e a imposição elo costume de que os
alun_os devem reagir perante situações que não podem estrutu- A escola para crianças em Quaker Street, Spitafields, foi abena em
24 de julho de 1820, e 26 crianças foram aceitas no primeiro dia; no
rar (porque isto não lhes é permitido). Desta forma, a sala de
segundo dia, 21; em 31 de julho, 65, e em 7 de agosto, 36; nesse
aula foi pensada como um espaço de um governo que buscava momento, minha esposa e eu fomos convocados por Joseph Wilson
adaptar e disciplinar as massas, principalmente quando, na se- para dirigir a escola. Esse cavalheiro construiu a sala de aula da esco-
gunda metade do século 19, apareceram os movimentos sindi- la, custeou de seu próprio bolso tudo o que era necessário, e pagou
cais, operários ou populares que impugnavam a ordem social e nosso salário.
Assim que nos instalamos, começamos a ensinar e logo percebe-
que tornaram mais urgente a "necessidade" de disciplina. mos que tínhamos diante de nós, por assim dizer, um dese rto a
cultivar, já que as crianças não se conheciam e poucas delas co-
nheciam as letras. A primeira coisa que parecia necessário era for-
QUARTA CONSO LIDAÇÃO: OS PEDAGOGOS DA SALA
mar classes com as crianças, o que, uma vez feito, nos permitiu
DE AULA S IMULTÂNEA NA INGLATERRA selecionar os alunos de cada classe para atuar como monitores. No
entanto, uma vez que não havia mais do que seis crianças em toda
Paralelamente aos trabalhos de Pestalozzi e de Herbart na a escola que conheciam as letras, foi impossível contar com algu-
Alemanha, ocorreram na Inglaterra outros avanços realizados pelos ma ajuda para poder ensinar aos demais. Como conseqüência, vimo-
nos obrigados a pegar crianças de uma sala por vez e dar a cada
pedagogos que se desenvolveram por caminhos menos atraentes, uma delas um cartão, no qual estava impresso o alfabeto em letras
mas igualmente eficazes: os de pensar a estrutura material da sala de grandes. Colocamos todas em um quadrado, e passamos a recitar a

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A 1NVENÇÃO DA SALA DE A ULA A SALA DE AULA (l\ESCE . A Ü ISCIPLINA NOS TEMPOS_ DA í\E VOLUÇÃO INDUSfl\IAL

letra A, fazendo com que cada criança indicasse a letra com seu para toda a sociedade" (idem, p. 138). Esta afirmação o aproxi-
dedo; uma vez feito isto, reci távamos a letra seguinte, e assim por
diante até que tivessem repetido todo o alfabeto. Seguindo este
mava das experiências pestalozzianas de educação "natural" e de
plano, com o passar do tempo, conseguimos encontrar monitores caráter, as quais, por outro lado, eram conhecidas há mais de
que conheciam as letras e assim adotamos um sistema regular, que uma década na Inglaterra (Taylor, 1996).
passamos a relatar nas páginas seguintes.
Wilderspin, 1824. pp. 30-31.
Como conseguir isto? Wilderspin propôs várias táticas ao
mesmo tempo. Em primeiro lugar, adotou urna posição mais ativa
Em um primeiro momento, pode-se identificar alguns em relação aos pais: estabeleceu para eles regras ou obrigações, e
elementos do sistema lancasteriano: os monitores, as letras do alfa- também ofereceu benefícios; em outras palavras, estruturou uma
beto, a subdivisão do grupo de alunos em classes. No entanto, o aliança com as famílias (Hunter, 1998; Narodowski, 1995). Entre as
próprio Wilderspin mostrava em seu relato que a ajuda dos moni- regras, constava mandar seus filhos para a escola pontualmente, lim-
tores era pobre e que teve que reconer ao ensino simultãneo de pos e alimentados, e avisar em caso de ausência justificada. Quando
todo o grupo para suprir esta carência. A simultaneidade, termo ini- uma criança nova era aceita na escola, os pais recebiam uma cópia
cialmente utilizado para designar a instrnção simultânea da leitura eda das regras em uma pequena lousa para que a pendurassem em sua
escrita, ou para oensino que reqttelia que os membros da classe repetis- casa e se lembrassem sempre delas (Wilderspin, 1824, p. 36). Em
sem em coro as lições de leitura, começou a ser utilizada, como no caso troca, Wilderspin e sua esposa os ajudariam a disciplinar seus filhos,
deste professor, para refc1ir-se ao método pedagógico pelo qual os profes- ensinando-os a não mentir, a ser obedientes e limpos, e evitariam
sores di1igiam a atenção simultânea dos alunos. No final de 1830, era que ficassem na rua enq 1anto seus pais trabalhavam, expostos ao
1

este o uso mais difundido, que constituiria a base da nova experi- perigo das más companhias. Wilderspin relatou alguns casos nos
ência desses professores e diretores (Hamilton, 1989, pp. 102-103). quais, junto com a mãe de um aluno, descobriu que ele estava fu-
~ndo cl~s aulas e aprendendo a roubar na rua, e que com esta reve-
Assim corno Lancaster, Wilderspin queria educar as
taçao salvou a criança de um mau futuro (idem, pp. l:J l-15-t).
crianças pobres Qá que os ricos preocupavam-se em educar a si
mesmos). Confiná-los nas escolas era a solução para que não se Em segundo lugar, estabeleceu-se um tipo de autori-
contaminassem com os males da rua e não se convertessem em dade pedagógica diferente: menos brutal, mais sutil, orientada
delinqüentes precoces (Wilderspin, pp. 13-17); no seu caso, po- para satisfazer as crianças e a ensinar em um contexto no qual o
rém, essa formação tentava alcançar a interiorização da discipli- afeto era moeda de barganha. O professor deveria ser exemplo
na e a autoridade de forma mais sistemática e pormenorizada. de bom humor e paciência, proporcionar atividades interessan-
"Foi a prática de muitos", dizia o professor Samuel, "considerar tes e divertidas, e, seguindo um preceito da filosofia utilitarista
que a escola só deve preocupar-se em ensinar as letras às crian- então em voga, tentar que, na medida do possível, as crianças
ças; mas eu sou da opinião de que a formação do caráter é da fossem felizes e úteis à sociedade. Com este espírito, Wilderspin
maior importância, não apenas para as crianças, mas também propôs as seguintes regras para o professor e a professora:

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A 5ALA D[ AULA (l\[S( [ A ÜISC IPLINA NO S TEMPOS DA f\[ VOLUÇÃO INDUS TJ\I AL
A 1NVENÇÃO DA S ALA DE A ULA

lº. - Nunca corrigir a criança quando estiver aborrecido. demonstração de sua honestidade. Aescola convertia-se assim em
2°. - Nunca deixar de devoh-er alguma coisa que tirou da criança. uma prova moral cotidiana e permanente, mesmo quando a cri-
3º. - Nunca quebrar uma promessa. ança não a via como tal; qualquer ocasião consistia em uma opor-
4º. - Nunca deixar passar um erro; mas estudar sempre, para apre- tunidade para vigiar suas inclinações e julgar suas respostas e ati-
sentar às crianças um exemplo digno de ser imitado, para que elas
tudes. Neste confinamento das crianças na sala de aula e nos pátios
vejam as boas ações do professor e glorifiquem a Deus, nosso pai,
que está no céu.
implementado por Wilderspin, foram ampliadas as formas de
Wilderspin, op. cit. , p. 37. governo da infância, e enriqueceram-se as técnicas e os dispositi-
vos de vigilância e de disciplina (Hunter, 1998).
Em terceiro lugar, Wilderspin implantou algumas mo- Vamos deter-nos um momento nesta inclusão do pátio.
dificações na edificação e na jornada escolar, principalmente pela Na proposta de Wilderspin, o pátio é a continuação da sala de aula
introdução do pátio de recreação. Considerava o pátio como o por outros meios. Nele se produz a mesma dinâmica que na sala de
lugar de maior eficácia da fonnação do caráter: "O pátio pode ser aula: a criança está sob uma autoridade que o observa e o educa de
comparado com o mundo, onde os pequenos são deixados livres; uma maneira mais "invisível", apesar de estar em uma situação que,
ali é possível verificar que efeitos foram produzidos por sua edu- à primeira vista, não parece educativa. Imaginemos que o pátio tam-
cação, já que, se algumas das crianças gostam de brigar e discutir, bém pode funcionar como a situação de exame que descrevemos
é ali que vão fazê-lo, e isto dá ao professor uma oportunidade de (ver pp. 111-11 2). Sabendo que são observados pelo professor no
l~e·s dar um conselho claro sobre a inadequação de tal conduta; pátio, os alunos vão aprendendo, pouco a pouco, a autocontrolar-
se, ao contrário, as crianças são mantidas em uma escola sem pá-
tio, estas inclinações negativas, e muitas outras, não se manifesta-
riam até que estivessem na rua, e então o professor não teria a
oportunidade de tentar remediá-las" (Wilderspin, 1824, p. 134).
O pátio era o lugar onde tais condutas poderiam ser detectadas,
' se "por via das dúvidas", como no caso de não colar em uma prova.
Na imaginação pedagógica, o professor devia funcionar como um
Deus para as crianças: apesar de não o ver, está sempre presente.
Esta é a "mensagem" implícita daquele professor que, escrevendo -·
na lousa de costas para seus alunos, avisa: "Cuidado que tenho olhos
onde seria possível executar uma vigilância mais completa; obser- na nuca". Desta fonna, o pátio, algumas vezes considerado como
vando as brincadeiras infantis e a interação entre os alunos, os um espaço de liberdade, em oposição à ordem da sala de aula, é, na
professores alcançariam uma avaliação mais completa e cabal de proposta de Wilderspin, a extensão da própria sala, em outras con-
seus educandos e poderiam intervir a tempo para resgatá-los das dições. No pátio as crianças aplicam autocontroles que são uma das
más tendências. Wilderspin também propôs que os pátios tives- "técnicas do eu" na situação pastoraP 2.
sem árvores frutíferas e flores, com o objetivo não só de que agra-
dassem às crianças e pudessem ser um eventual objeto de estudo,
32. fsto situação postara/ foi tão difundido que durante muito tempo o esco/o sancionou e
mas principalmente para que aprendessem a respeitar a proprie- castigou coisos que ocomom foro do escola. No Argentino. alguns regulamentos discipfi·
dade privada. Não comer as frutas ou cortar as flores seria uma nores costigo\/Om o que os alunos foziom no saído do esco/o oté um raio de 500 metros.

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A I NV[N ÇÀO DA SALA D[ A ULA
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A
DISCIPLINA NOS TEMPOS DA f\ [VOL U ~ÀO I NDUS íl\iAL
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Vamos fazer um balanço preliminar das inovações pro- Permitam que todas as crianças, ou algumas delas, respondam simulta-
postas por Wilderspin. Pode-se observar uma linha ~e-~ontinui­ neamente no anfüeatro. Anotem uma ou duas das respostas, cenas ou
erradas. Por meio da exposição do tema, convençam as crianças que
dade entre Pestalozzi e Wilderspin, não apenas na 1de1a da for-
deram a resposta errada de que estavam equivocadas: exercitem suas
mação do caráter, mas também naquela de considerar algumas mentes por meio ele analogias, ilustrações, etc., até que seu erro fique
noções sobre a psicologia infantil. Neste sentido, ambos formam claro. Se as respostas incorretas não forem discutidas junto com as cor-
parte do movimento que começa a propor queº. "~ujeito da apren- '.etas'. os erro_s continuarão a ser repetidos. Se todas as respostas forem
1gno1adas ate que se obtenha uma resposta correta, só se vai c1iar, ou
dizagem" é algo diferente de um adulto em miniatura, e que, ~e
~elo menos perpetuar, confusão e ruído. Façam todas as c1ianças rep~­
conseguirmos estudá-lo cientificamente, poderemos conseguir urem a resposta correta, não na mesma forma em que foi dita, mas
um método de ensino totalmente eficaz. Wilderspin desenvol- mvenendo a frase. Este é um princípio fundamental cio sistema (. .. ).
veu estes conceitos em torno da idéia de aprender brincando. Stow, 1854, p. 324.
Este professor acreditava que a aprendizagem deveria alternar-
se com a brincadeira, principalmente considerando que toda sua . . A incorporação da galeria à paisagem da sala de aula
população escolar tinha menos de sete anos de idade; .assi_~· ta_mbem introduziu mudanças nas práticas de questionamento. já
propôs instalar redes na sala de aula e inventou rimas antmetl- nao se tr~tava de man.ter as perguntas e respostas catequistas
cas para que os alunos cantassem enquanto desc~nsava~. Po~e­ ~u~ ª.nahsamos anteriormente neste capítulo; Stow e outros
se observar neste duplo "uso" da atividade da bnncade1ra (brm- m~ 1st~ r~ m que era importante desenvolver o entend imento e
car'e aprender) a obsessão compartilhada com Lancaster pela a 1~d1v1d~alidade infant is, e que isto deveria ser feito por
otimização do tempo: tudo deveria ter um fim educativo, nada o~t10s metodos. Como vimos no exemplo anterior, Stow propôs
poderia ser negligenciado. Por exemplo, os exercícios físicos ~1 ~car as perguntas e as respostas mais abertas pela elipse, a frase
deveriam ser feitos enquanto se aprendiam os números e o alfa- in1c1a.da pelo professor que deveria ser completada pelos alunos
beto, levantando um braço ou uma perna juntamente com a (do tipo: "San Martín era .... ", respos ta da classe: "um patrio-
vogal soletrada ou o número dito em voz alta. Quase paralela- ta"). O s.istema de. perguntas e respostas era b~néfico porque
mente à escola de Wilderspin, David Stow abriu uma escola nor- conseguia produzll' conhecimento, mas se u uso reiterado co-
mal em Glasgow, na qual também introduziu outras inovações. locava as crianças na defensiva, fato pelo qual era conveniente
Além do pátio de recreação, Stow propõs a introdução de anfitea- tr~~á-lo pela elipse (Stow, 1854, p. 325). Nunca se devia per-
tros ou arquibancadas como parte do mobiliário escolar. Duran- mitir qu~ ~s alunos intuíssem pelo tom da voz, ou pelo cará-
te boa parte do dia, os alunos se sentariam em degraus de frente t~r repet1t1vo, qual seria o próximo passo. Assim, eram man-
para o professor, o que daria a este um domínio visual completo tidos permanentemente ocupados (como queria Herbart) e
e lhe permitiria dar suas lições a setenta ou oitenta alunos de aprende~do. ~or outro lado, outro pedagogo escocês, William
uma só vez. Em seu livro para a formação de docentes, Stow Meston, 1~e.ahzou , na mesma época, um sistema para orde-
dava os seguintes conselhos aos futuros professores: nar a participação grupal: "Aquele que acha que é capaz de

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A INVENÇÃO DA SALA OE AUL A

responder deve levantar-se ou dar algum sinal" (Meston , 1823,


citado em Hamilton, 1989, p. 107). Surgia assim a costume
de levantar a mão para poder intervir na resposta.
Segundo Stow, eram muitos os benefícios desse sis-
tema de ensino. Basicamente, interessava-lhe salientar a efi-
ciência do método e sua capacidade de questionar em outras
situações por meio dos fut uros professores que estavam se
formando em seu sistema. Destacava também os benefícios
(
na aprendizagem para todos:

As meninas e os meninos podem responder, ou é possível chamar


uma única classe (subgrupo de alunos) ou fazer a pergunta a um úni- Fig. 11 .A aula na gale ria, segundo o sistema de Wilderspin ( 1840). Observe que
co indivíduo; no entanto, todos escutam e todos aprendem. Talvez as crianças levantam a mão (Extraído de: D. Hamilton: Towards a Theory of Schooling,
Falmer Press, Lond res, 1989).
apenas a metade das crianças responda; mas se o professor dirigir sua
atenção de forma que garanta que todos tenham seus olhos fixos nele,
pode estar seguro de que estão recebendo instrução; e devemos refe-
rir-nos ao fato de que, durante as respostas simultâneas, observa que Recapitulando tudo o que foi dito sobre esta etapa da
são as crianças que estão em silêneio aquelas que geralmente apren- Revolução Industrial, da Revolução Francesa e da modernização
dem a maior quantidade de conhecimentos e as mais comunicativas
com seus pais em casa sobre o tema das lições do dia.
do século XIX, podemos dizer que o pastorado, na maneira como
Stow, citado em: Hamilton, 1989, p. 103. foi integrado à sala de aula nos primeiros tempos da modernida-
de, adquiriu nessa época uma forma mais definida e minuciosa-
Retomando o exemplo da parábola bíblica prussiana mente regulamentada. A imagem clássica elo professor diante da
(ver p. 112), pode-se observar que também neste caso a pergun- lousa e as crianças olhando para frente - tão clássica que às
ta é dirigida ao mesmo tempo ao indivíduo e ao grupo. A grande vezes nos custa imaginar outra, apesar de existirem variantes,
vantagem do método de Stow e Wilderspin foi a invenção das como tentamos mostrar neste capítulo - aparece corno uma
técnicas que permitiam, ao mesmo tempo, a individualização proposta que sintetiza os propósitos moralizadores da condução
dos alunos, por meio de uma vigilância e da colocação de per- pastoral e os disciplinadores da condução industrial.
guntas ao longo de toda a jornada escolar, incluindo as brinca- Nessa época, com a lenta, porém segura expansão da
deiras, e a conquista de uma ordem grupal disciplinada e alta- obrigatoriedade da escola e com a produção de técnicas de con-
mente estruturada. Neste jogo duplo centrava-se a ma ior dução e vigilância por parte dos pedagogos, consolidou-se essa
conquista do sistema. "mentalidade de governo" que chamamos "governamentalidade".
1
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A INVEtlÇÃO DA SALA DE A ULA
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De fato, as crianças foram colocadas em uma situação definida
pela obediência - responder uma pergunta, não se arriscar a
colar, aprender que a autoridade está centralizada e que define
4 1
as coisas. A civilização industrial, não só através da sala de aula A SALA DE AULA EM IDADE DE CASAR : i
e da escola, mas também tomando-as como pilares, ampliou as A TÁTI CA ESCOLAR NO SÉCULO 20 33 1
··-.
formas e o alcance do governo. Iamas horas, tantos dias, tanlos
anos em uma situação de governo como é a sala de aula levavam
as grandes massas a pensar no governo como algo "natural", e ~pe~ar dos grandes debates e das mudanças que surgi-
não como algo construído pelos homens e pelos poderes. Em- ram na pnmma metade do século 19, o ensino escolar no final
bora anteriormente se produzisse obediência (vimos inclusive desse século ainda continuava sendo passível das mesmas críticas
que Lutero falava de uma obediência reflexiva), na nova ordem que inspira_ram_Pestalozzi e Wilderspin a "inventar" outras propos-
social que surgiu depois da Revolução Industrial e da Revolução tas educ~c10na1s. Por exemplo, quase cinco décadas depois de
Francesa, esta obediência foi produzida em termos de um indi- ~Yilde.rs_rin e de Stow, Richard Church, que fo i aluno da escola
víduo autônomo, capaz de governar suas condutas e seus senti- infantil inglesa em 1890, recordava assim sua escolaridade: "Lenta-
mentos. lsto ocorreu por meio de muitos agentes: o serviço mi- mente e com muito esforço, aprendi o alfabeto e a escrever palavras
litar, a autoridade médica, a adoção das línguas vulgares na missa, de duas letras, ~antando-as em uma sala de aula com 60 crianças
a legislação estatal sobre a família, nascimentos, cemitérios, etc. peq_uenas,_ seguindo o ponteiro vermelho da professora e o que ela
Nesta estratégia, a sala de aula global ou simultânea, com sua haVJa escnto na lousa ... Um adulto conseguiria ficar sentado das
comunicação organizada em torno de uma figura centralizada, 8h50 da manhã até as 12h00, com rinitc\)S intervalos em um ban-
desempenhou papel fundamental. co ele m:idt?ir;i rlt!r~. 1..um uma lousa cobena ae cus~t e u1t1 1:1pt:i
. A formação do caráter e a docilidade dos corpos foram estrag~do,_(. ..) cont~nte por não mostrar quase nenhum progresso,
dois lados do mesmo processo; no entanto, este não foi automá- dia apos dia; e depois voltar a esta tarefa cheia de pó e malcheirosa
tico, imediato ou completo, mas sim o resultado de muitas pro- das 13h40 até as 16h30?" (citado em: Davin, 1996, p.115).
postas e de desenvolvimentos divergentes. junto a eles, a didáti- Sem dúvida, parte desta critica continuaria válida ao lon-
ca emergiu no meio dessas mudanças como uma tecnol_ogia em rápid~ go dedo século 20. A artificialidade de manter meninos e meninas
expansão. AJormação docente sistematizada seguiu este desenvolv~­ s.entados e atentos durante a jornada escolar é um fato que foi enfa-
mento e institucionalizou-se. No entanto, longe de ser um cami- tizado por pedagogos e literatos, como veremos mais adiante neste ·
nho de desenvolvimento e aperfeiçoamento sem riscos, a pro- capítulo. Quase todos nós experimentamos também, em maior ou
dução pedagógica sobre a condução da sala de aula sofreria ainda
outros questionamentos e mudanças. Serão estes os ternas do 33. €mprestomos este subtilulo do porte Ili do trabalho de AJrggrós f 990
se baseou em Senet. 1918. · · que. por suo vez.
próximo capítulo.
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1 1

li - t 1
A I NVEllÇÃO DA SALA DE A UL A A SALA DE AULA EM I DADE DE (ASAI\ A TAflCA ESCOLA!\ NO StCULO 20

menor grau, essa resistência. Entretanto, desde a opinião daquele objeto é ogntpo, mais exatamente o que se denomina "população". Fou-
aluno inglês até a nossa época, houve um processo que se tomou cault define esta estratégia de poder como uma operação para apo-
natural e universal na escola. Embora possamos reclamar por estar- derar-se da vida (Foucault, 1992b, p. 166, e 1993, p. 177). De fato,
mos confinados, por não termos tido pátios suficientemente gran- enquanto muitas gerações viveram sem nenhum tipo de atenção
des para jogar ou porque não houvesse espaços verdes em nossas por parte dos governantes, estes observam que as populações -
escolas, atualmente a maioria das c1ianças e dos adultos está acostu- que são, afinal, o reservatório de mão-de-obra para a economia -
mada com a experiência escolar e a compreende como etapa inevi- devem ser administradas. Aparecem a medicina social, as estatísti-
tável para crescer e integrar-se na sociedade adulta. Mesmo aqueles cas de nascimento e de mortalidade, e os programas sociais; o Esta-
cuja escolaridade é difícil por motivos econômicos compreendem- do percebe que é necessário dar garantias contra os riscos e aciden-
na como um bem desejado e relevante. tes de trabalho, controlar casualidades, implantar a idéia de um
bem-estar comum com a contribuição de todos (Ewald, 1986).
O que aconteceu desde a surpresa e a estranheza de
Desenvolve-se toda uma série de novos instrumentos para adminis-
Richard Church até nossos dias? Basicamente, a escola passou a
trar a vida das pessoas: o governo interessa-se pelas vidas de seus
fazer parte de ttma estnitura de massa, o sistema educacional, e ser- súditos e as administra; quer que vivam mais, que se alimentem de
viu como modelo e centro de transmissão da cultura letrada. determinada maneira e que adotem hábitos higiênicos. O Estado
Enquanto na primeira metade do século 19 a diversidade cresce: a palavra "crescer" é exatamente a palavra-chave.
de propostas e de agentes educacionais era muito grande, veremos, Foram muitas as repercussões dessas mudanças no
neste capítulo, de que maneira no final do século 19, e principal- governo da sala de aula, nas formas de governo "dos corpos e
mente no século 20, houve uma homogeneização e uma centraliza- das almas" que habitavam as escolas, e as abordaremos neste
ção das formas df' educar em tomo do ensino simultâneo e do mé- capítulo. Como síntese geral, podemos assinalar três grandes .
todo global. Além disso, oEstado nacional assumiu afunção de controlar mudanças. Em primeiro lugar, o próprio docente passou a estar su-
e di1igir a educação, o que não implicou a anulação da diversidade jeito à disciplina. Em um sistema de massa, que contava com gran-
nem o surgimento de outras propostas; apenas, diferentemente da de número de professores, tomou-se decisiva a necessidade de
experiência anterior, estas foram organizadas em tomo de um câno- estabelecer regras para suas atividades, de contar com informa-
ne-padrão dominante fornecido pela escola pública estatal. ções mais detalhadas sobre seu gestual e: de garantir que ensi-
Esta mudança aconteceu paralelamente ao surgimento nassem o que fosse determinado pelo Estado. Em segundo lugar,
daquilo que Michel Foucault chamou de "biopoder". Este autor houve uma mudança nas atitudes com relação à infância: não só de-
afirma que no século 19 surgiu uma nova estratégia de poder e de via ser controlada, mas também protegida e "civilizada". O ensino
governo, uma nova forma de condução das conduções: o biopoder. da higiene e da educação cívica, por exemplo, passou a ser um
Por biopoder entende-se um tipo de poder quejá não se aplica somente fundamento da função educadora dos docentes. Por último, a
ao corpo individual, como no caso elas disciplinas, mas sim um poder cujo pedagogia adquiriu uma força inusitada: transformada em "ciência e

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A 1MVEN(ÀO DA SALA DE AULA
-T A SALA DE AULA rM ID ADE Dr CASM · A TÃT1U1 ESCOLA/\ NO StcuLO 20
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arte de ensinar", tornou-se a base dos dispositivos de controle e tam- as descobertas científicas. a difusão das letras foram elementos que
bém afonte de muitas posturas de oposição. Surgiu um campo pe- dotaram as sociedades de uma riqueza superior e que lhes deram
dagógico, isto é, um conjunto de instituições e ~e~soas qu.e se uma fisionomia muito diferente da que possuíam anteriormente.
reúnem para discutir e elaborar as regras e. estrat:g1as da d1sc1-
plina com o objetivo de dominar ~s demais partt.c1pantes. Es;: Entre estas modificações destaca-se, em primeiro lugar,
campo pedagógico também conquistou autonomia crescente. o triwifo da burguesia liberal. Esta burguesia, um setor que reunia
não somente industriais e comerciantes, mas também setores das
Para iniciar a análise deste processo de estruturação do
elites educadas, dos funcionários públicos, da população urbana
biopoder, descreveremos algumas características do p~ríodo que
abastada, foi impondo cada vez mais suas representações sobre o
vai desde 1840, ano em que terminou o relato do capitulo ante-
governo, a sociedade, a moral e o Estado. Aumentando sua influ-
rior, até aproximadamente 1914, data em que se iniciou a Pri-
ência, após um momento de agitação e mobilização social, passou
meira Guerra Mundial.
a ocupar um lugar conservador dentro da estrutura social. Princi-
palmente a partir das revoluções liberais de 1848, que impuseram
Ü TRIUNFO DO CA PITALISMO E O BJOPODER de fo rma majoritária a idéia de governos parlamentares, ainda que
As transformações ocorridas na segunda metade do sécu- restmos, a burguesia assumiria uma atitude apática e temerosa
lo XIX foram tão surpreendentes .para seus contemporâneos como ante o surgimento de uma nova força determinada pelo desenvol-
haViam sido as transformações ocorridas na primeira metade do vimento industrial: o movimento operá1io. No princípio, fez o
século para Edgar Allan Poe e outras testemu~h.ª~; A marca p.ri~ci­ possível para ignorar a questão social, ou seja, a crescente pobreza
pal da época foi "o transitório, o.inceno, o .'.ugid10 , com? d:~m1u o urbana, e tentou bloquear qualquer tipo de reforma distributiva.
poeta Baudelaire em 1851, assim como tudo o que e sol~do se Com este bloqueio, os partidos liberais perderam o voto operário
desmancha no ar", como afirmou Marx em 1848. ~ expansao_ das já conquistado e surgiram as correntes socialistas, comunistas e
estradas de ferro, a conquista de países e reinos na Africa e na Asia, anarquistas. Cumo ·.-cremos, surgiu mais t:irdt:: :) !-:<:t:1dc. ,~:'. h:'::1
estar social como uma solução p;ra responder a este desafio sem
perder sua posição de dominação.
34. Sobre 0 noção de campo. ver Bourdieu (/ 9W). €ste sociólogo fron:ês define comP'} com_o
·uma rede ou uma configuração de relações objetivos entre rx:s1çoes.. €st~s pos1çoes soo
definidos objetivamente em suo existência e nos determmoçoes que 1mpoem o seus ocu· Ao longo desse periodo, o principal objetivo das lutas
{XJntes. cgentes ou instituições por suo situação (sítus) atuo/ e pcteno~I dentro do estru· políticas foi elaborar a herança da Revolução Francesa. O lema "li-
curo do distrtbuição dos diferentes espécies de poder (ou e cop1tol). CUJO posse oriento o
acesso aos benefícios especificas que estão em jogo no campo. e. ao mesmo tempo. fXJf
berdade, igualdade, fraternidade" havia-se tom.ado um programa
suas relações objetivos com os outros posições" (Bourdieu. 1992. pp. 72· 73). Pensar no
pedagogia como um campo é um c0t1vite poro olhor além dos intenções e oftrn:ioções ~~
i democrático radicalizado para uma Europa cujas monarquias rea-
giam contra essas proclamações. Todo o século 19 foi marcado por
pessoas e dos instituições. e fXJro considerar seus comportamentos como porte de es~
lutas entre conservadores e liberais, entre monarquistas e republi-
tégios dentro de um espoço no qual estão em jogo relações de poder, dentro e foro do
campo considerado. j canos, entre religiosos e leigos. Essas lutas tiveram várias etapas,
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A I NVENÇÃO DA SALA DE A ULA A SA LA DE A ULA EM I DADE DE CASA I\ : A H r 1CA EscoL M NO StGJLo 20

movimentos revolucionários (como o de 1848, ao qual nos referi- municações, na política, na imprensa. Comparando-se, por
mos), e pactos nos quais se adotaram formas mistas: reis confirma- exemplo, a circulação do jornal lond1ino The Times de 1830, que
dos mediante plebiscitos (como na França), parlamentos com po- editava regularmente 10 mil exemplares, co m a circulação do Daily
deres divididos (como nos estados alemães) e monarquias Telegraph, periódico popular mais barato, de 1860, com uma tira-
constitucionais, entre outras. Por outro lado, a Europa tomou-se a gem de mais de 140 mil exemplares, pode-se ter uma idéia do cres-
força que efetivamente dominava o mundo. No final do século 19, cimento exponencial de um público leitor e da difusão da cultura
os impérios de Grã-Bretanha, França, Alemanha, Bélgica, Portugal, letrada a amplas camadas da população (cí. figura 12, onde se vê
Holanda e Itália compreendiam quase todo o planeta, com exceção uma família operária com um jornal, em 1861)35 . A meta cio mun-
do japão e da China. O modelo europeu de civilização e cultura, do europeu era o crescimento: crescer tornou-se ci nova lógica da
assim como a escolarização, impôs-se nessas regiôes, quando ne- sociedade e da cultura européias. Enquanto dezenas de gerações vi-
(
cessário a ferro e fogo, o que determinou relações desiguais entre as veram no campo o que se denomina uma "economia de subsistên-
(
diversas regiões do mundo, desigualdade que ainda hoje subsiste cia" ou de sobrevivência, a vida econômica e a extensão do capita-
com toda sua dramaticidade (Hobsbawm, 1996). lismo transformavam as expectativas e a realidade das pessoas.
Demograficamente, esse processo foi acompanhado por Diz-se que o capitalismo, como sistema de produção e
uma explosão populacional, pois, apesar dos inúmeros proble- acúmulo de riqueza, triunfou defi nitivamente no dia em que todos
mas, algumas condições de vida foram melhorando: a mortali- os operários ingleses tomaram seu chá com açúcar. A que se deve (
·dade infantil diminuiu, enquanto a expectativa de vida cresceu esta associação, que nos parece estranha' O raciocínio é o seguinte:
de maneira considerável. O avanço da medicina e a refo rma ur- se o operário necessita de açúcar para seu chá- e lembremos que
bana, que instalou sistemas de fossas para drenar os resíduos, havia muitos operários, formando um mercado maciço - , se está
contribuíram para esta melhora. Além disso, essa população acostumado a esse consumo, isto põe em marcha toda uma máqui-
deslocou-se territorialmente de maneira significativa. O mundo na econômica mundial que vai desde a plantação de açúcar nas
Antil~as, em Cuba ou no Brasil, passando pelo transporte·, refino, ·
de experiências configurado neste período caracterizou-se pela
comercialização, venda ao varejista, entre as tantas etapas necessá- (
mobilidade entre o campo e a cidade, pela vida ruidosa das ci-
rias desde a produção até o consumo. Embora antigamente estes
dades em crescimento e pela competência onipresente da pro-
artigos de consumo fossem considerados artigos de luxo, começa-
dução industrial capitalista. Grandes massas de população des- (
ram a incorporar-se como produtos básicos que as pessoas precisa-
locaram-se por todo o globo no último terço do século 19: entre
os países cuja população duplicou ou triplicou nesse momento
35. Na Argentina, esse crescimento foi um pouco mois tordio e ocorreu nos décadas de
estavam Argentina, Estados Unidos, Austrália e Canadá. 1880-1920. embora também tenho sido espetacular. No opiniôo de Adolfo Prieto. o
Argentino era. em 1882. o quarto pois do mundo no relação de periódicos editados
Por outro lado , as pessoas deviam acostumar-se às mu- por número de habitantes. fm 1877. La Noción e Lo Prenso editavam 18 mil exemplo·
danças que ocorriam diariamente, na área da higiene, nas co- res diórios; em 1888. vendiam cerco de 60 mil (Prieto. 1988. pp. 37-39) .

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A SALA DE AULA EM IDADE Df CA SAI\ A TÀll(A ESCOLA!\ NO S(CULO 20

Esse processo foi designado, no nível cultural, como a


. uma vez que não os produziam por si mesmas. Des-
vam comptar, . nto contínuo: <la econo- "dinâmica crescente" do sistema (Link, 1997, pp. 24-25 e 170).
modo o sistema baseava-se no cresci me . ) lniciou-se em todo o mundo o fascinante processo da eletrificação;
se _ '. d "d des EmsuafamosaobraOCap1tal(l867 ,
mta , da nqueza , as c1 a .. l. a ele "reprodução amp1ia
· da". E·sta- a iluminação noturna tornou passiveis novas atividades (pensemos
Marx chamou esta caractens ic . .. " _ _ no cinema ou no teatro modernos). A estas foram agregadas novas
beleceu a diferença_enAtre "n~emp;~~l~~~r:~~;~~co:or~:ot~l~~(~~:n~l: formas de comunicação, corno o telégrafo, o telefone e, mais Larde,
liada" da economia. P ' o rádio. Um automóvel que viajava a 40 quilômetros por hora pro-
p b obreviver e voltar a plantar batatas no ano que
duzia enjôos nos primeiros motoristas, que até aquele momento só
planto ~tat~s pa~~:ocrio"· com as batatas que vendo adquiro ou-
vem, so revwo, , minha família podemos produzir. A andavam a Lal velocidade no trem de ferro. O mundo parecia, ao
tros produtos que nem eu nem . . . d - mesmo tempo, diminuir e acelerar-se: as notícias chegavam mais
- \" d ,, por sua vez vai mais alem. Trata-se e acu
"reproduçao amp_ 1a a , de sobr~viver e simplesmente procriar, rapidamente, havia mais coisas para fazer e também mais tempo
mular riqueza, nao apenas . . d de produzem para acu- livre, as sociedades tomavam-se mais complexas, principalmente
uma vez que toda a economia e a socie a . nas cidades. Este novo ritmo, pautado por um constante cresci-
mular e crescer. Este ciclo ele produção _crescrn~e e df~n~~~~~:~~l~ mento das possibilidades, foi denominado "modernidade clássica".
caracteiistica especifica da nova situaçao socia no '
Destaquemos a diferença entre esse processo e os aconte-
19 (Marx, 1974, PP· 591, 624 e 647 ). cimentos do final do século 18. Naquele tempo, as sociedades, ain-
da majoritariamente agrárias e tradicionais, viam aparecer novos
"monstros" na forma de fábricas, cidades e movimento de pessoas e
objetos que tanto as surpreendiam. Entretanto, boa parte da socie-
dade permanecia afastada desse processo. Nn decorrer do .sf.rnlo J 9:
generaliza-se a lógica de acumulação capilalista, ou seja, a produção da
mais-valia. Os operários ingleses começam a colocar açúcar em seu
chá, lêem jornais, compram roupas diferentes. O capitalismo e sua
"dinâmica crescente" passam a ser o eixo organizador das socieda-
des européias, enquanto o setor agrário toma-se "tradicional", qua-
se uma relíquia do passado. Grandes camadas da população passa-
ram de uma forma de vida para a outra; certamente criaram também
formas mistas, nas quais coexistiam as duas situações. Por outro
l lado, esse dinamismo tomou o mundo europeu menos estável: as
'1'
crises econômicas mundiais sucediam-se umas ás outras, e aumen-
1861 De uma pintura da época.
taram as guerras intercoloniais entre os impérios, para conseguir
Fig. 12. Operário inglês e sua família em sua casa, em . 1

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A l "VENÇÃO D~ SALA DE A ULA A SALA 0( AU LA EM I DA DE DE CASAI\ A TÀfl(A ESCOL A!\ "'º St CULO 20

mercados e praças onde colocar suas mercadorias e empréstimos. século 19 seus efeitos puderam ser sentidos com intensidade na
Entretanto, a linha de crescimento sustentado não foi inte1TOmpi- pedagogia. As ações derivadas da biopolítica foram denominadas
da. Mais exatamente, esta é a época da grande expansão da econo- por Foucault 'regulações': já não se tratava de disciplinar o corpo
mia de monopólio na Argentina, da explosão da população e das para produzir efeitos na mente, como nas disciplinas que, como
grandes ondas migratórias. vimos, Pestalozzi e Stow tentaram estabelecer, mas de regular um
Qual foi a repercussão dessas mudanças nas formas de organismo vivo, que cresce e se transforma, que nesse momento
governo da sociedade? Vimos que as disciplinas são invenções e começou a ser denominado "sociedade". Se o que caracterizava
técnicas anteriores à expansão do capitalismo como forma de pro- essa nova época era o "crescimento", esse fator, sob a perspectiva
dução - lembremo-nos dos jesuítas e dos lasalleanos -, que , do governo , deve1ia ser administrado. A partir de então, a expan-
embora tentassem consolidar o poder do rei e da monarquia, o são da economia, das possibilidades de vida começou a ser regu-
faziam com uma lógica que identificamos como "fixadora", porque lada (Foucault, 1993, p. 177). "A reprodução, as taxas de natali-
queriam, afinal, fixar cada um em seu lugar, queriam disciplinar dade e de mortalidade, o nível de saúde pública, a expectativa de
para que as pessoas agissem segundo as ordens. Entretanto, com a vida, a vid~ longa com todas as suas variações foram convertidas
difusão da reprodução ampliada, surgiram novas demandas de go- no objeto de medidas interventoras e de controles normativos;
vernabilidade para a sala de aula na Europa ocidental. A forma (isto é a) biopolítica da população" (Foucault, 1992b, p. 166). E
~isciplinar não foi abandonada, mas esta nova forma da lógica social, evidente que a regulação não elimina a disciplina, uma vez que se
a dinâmica crescente da cultura e da economia, onde a mudança apare- preocupa com outra coisa: o crescimento. Como veremos, as duas
ce como regra e não como exceção, começou a constituir outra forma de formas combinaram-se no caso da pedagogia republicana france-
governo que integrou as disciplinas em uma estrutura maior, abrangen- sa e da pedagogia dos normalizadores argentinos, onde, na maio-
te, mais de acordo com o ritmo vertiginoso dos tempos. ria das vezes, a disciplina acabou articulando e prevalecendo so-
Como dissemos, Michel Foucault denominou biopoder bre a idéia de regulação. No entanto, também entraram em
esta nova estratégia de poder e governo. O objeto do poder já não contradição, uma vez que, enquanto a disciplina dava um molde
era mais visto como um indivíduo isolado, mas como parte de prévio para as condutas, a regulação partia das condutas já existentes
uma população que devia ser controlada como população. Embo- para dar-lhes uma nova direção. Neste processo, as ciências natu-
ra as formas de biopoder tenham surgido antes do período con- rais tiveram papel fundamental. A idéia de que com a ajuda da
siderado por Foucault 36 , acreditamos que somente no final do ciência a humanidade poderia "descobrir" as leis naturais e domi-
ná-las tomou-se cada vez mais forte no senso comum. Embora
36. Foucoult doto do aparecimento do biopoder de moneiro contraditório. fmboro os primeiros
esta ênfase na ciência como fundamento da ação pedagógica já
indicias provenham de meodos do séallo 17 (l 992b. p. 166), no reolidode considero que estivesse presente em Pestalozzi e em Herbart, veremos que a par-
suo extensão e sucessos tornom-se evidentes no início do século 19 (1993. p. 175). tir deste momento há maior obstinação com relação a elas, há um
Mesmo assim. menciono claramente que entre os disciplinas e os regulações existe "uma
diferenço cronológico· (l 992b. p. 166. e 1993. p. 178). desenvolvimento muito mais marcante das técnicas de observa-

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________...... : 167:
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A SALA DE A UL A [M I DA()[ DE (ASM · A TAT ICA ESCOLA!\ NO StCULO 20
1

ção e de classificação, e uma construção do sujeito objeLo de ensi-


no como uma pessoa que deve ajustar-se a leis "naturais" e in- existe"'. é ent.encl_ido como um acontecimento natural e que é
necessano onenta-lo. A partir de então, egraças à combinação des-
questionáveis. Como veremos, esta afirmação levou a enormes
disparates, fundamentados no que era considerado então "conhe- sas novas_Jormas de governo e dos conhecimentos médicos e biológi-
cimento científico". ª.
cos, a~1 ~11d1zagem passou a ser considerada wn processo com raí-
zes bwl?g1cas, que .se desenvolve e cresce. Enquanto a disciplina
Para esclarecer este ponto, consideremos a afirmação de produzia a aprend~zagem através de uma sala de aula já configu-
Francis Galton, um dos "pais" da estatística moderna e da investi- r~da, com comunicações preestabelecidas, a aprendizagem no
gação educacional. Em 1877, Galton afirmava: "As leis típicas (... ) b1o_roder su rgiu como algo que, na situação ele sala de aula, de-
explicam quão pequena é a contribuição que passam para as gera- vena an tes ser "orientado", e não criado ou produzido. Nesta
ções futuras aqueles que se desviam da média (ou promédio), seja concepção "b i~pol ítica", o professor deveria facilitar um proces-
por excesso ou por falta( ... )" (citado em: Hacklng, 1990, p. 180). so q~e ocorrena espontaneamente; deveria guiar e orientar um
Para os cientistas dessa época, o importante era analisar associe- caminho que já estava fixado, assim como estavam fixadas as
dades como produto de regularidades e normas; encontrar as leis capacidades i ntel~ctuais. dos alunos. Foi também nessa época
que as governavam e explicar por que motivo, algumas vezes, as qu~ se começou a investigar o pensamento infantil com caracte-
coisas se desviavam desse caminho prefixado, que é o crescimen- rí~ticas positivas próprias, e quando se afirmou que as crianças
to._ Aregulação converte-se em algo normativo: prescreve qual é a nao esperam ser ensinadas para começar a aprender.
conduta "natural" e previsível, e que por isso "gera" e "produz" a _ Enq~anto nas disciplinas vinculadas à época da Revo-
anormalidade, a transgressão, o desvio. "A norma é uma medida , luçao I.ndustnal o aprender era visto como uma conseqüência
uma maneira de produzir a medida comun" (Ewald, 1990, pp. do ensmar, neste mundo moderno, que adotava o crescimento
168). Nessa ação de produzir a medida comum, o estabelecimen- com? natural, o aprender, o pensamento e a atividade da criança
to da norma exclui aqueles que não a cumprem. Não por acaso, é surgiam como algo "dado", corno algo já existente, corno um
nessa época que surge a classificação dos alunos de acordo com elemento da realidade que deveria ser aceito. A discussão dentro
suas capacidades e o confinamento dos "anormais" em institui- da pedagogia estruturou-se em torno dessas novas percepções;
ções especiais. Observe-se a linguagem utilizada para se referir por exemplo, uma questão muito importante foi estabelecer se a
aos "desviados": "deficientes", "anormais", "incapacitados". Todos comunicação na sala de aula deveria estruturar-se de acordo com
estes qualificativos somente ganham sentido quando comparados a~ caractetísticas deste pensamento infantil ou de acordo com os
com o indivíduo "normal". ditames da sociedade adu lta. Reformadores denominados "es-
Voltemos por um instante à idéia do biopoder e suas colanovistas" (porque queriam uma "escola nova") inclinaram-
implicações na pedagogia. Dissemos que o biopoder pressupõe se, na rnai~·~ª ~as vezes, em favor dos "interesses da criança" e,
administrar o crescimento, o que significa que o crescimento "já em consequenc1a, pela organização da sala de aula com base na
"natureza" infantil. Um segundo grupo de pedagogos, que de-
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r A 1NVENÇÃ O DA 5 ALA DE A ULA A )A LA DE AULA [M I DADE DE (A~Af\ : A TAll(A ESCOLA(\ NO StCU LO 20 :

nominaremos normalizadores, tentou administrar o crescimento educação, que se propôs a aprofundar a idéia de regulação e .qu.e
criando uma sala de aula em torno das "necessidades" da socie- viu com maior clareza suas contradições em relação às dtsClph-
dade adulta, que eram as necessidades da pátria, da república, nas utilizadas anteriormente.
do império ou do desenvolvimento industrial.
A visão reguladora de todos estes grupos apoiava-se em A PEDAGOG IA NO RMALIZAD ORA: CONTROLAR OU
uma noção sobre o que é e o que deveria ser o sujeito da aprendi-
REGULAR AS TROCAS QUE OCORREM NA SALA DE AULA?
zagem; estabelecia uma série de suposições sobre a natureza, a
afetividade, os níveis de maturidade e a autonomia das crianças: Adriana Puiggrós denominou "normalizadores" os pe-
nesse sentido, pode-se dizer que expandiu a intervenção exterior dagogos leigos e católicos argentinos que, desde o final do sécu-
a limites muito mais amplos. Para o "escolanovismo", não bastava lo 19, impuseram um modelo de ensino-aprendizagem que te-
instruir o indivíduo em suas funções intelectuais, mas procurar ria ampla repercussão até nossos dias (Puiggrós, 1990, p. 41 e
que o indivíduo fosse criativo, autônomo e livre, que sentisse de ss.). Este era o modelo da instrução pública, na qual "o ~du~~­
maneiras determinadas, que controlasse seus impulsos e fosse dor era portador de uma cultura que deveria impor a um 1~d1v1:,
cooperativo e generoso. Desse modo, a regulação intervinha ati- duo incapaz, socialmente inepto e ideologicamente pengoso
vamente, configurando o campo de experiência ao qual as nor- (idem, p. 41). Os indivíduos do povo , os imigrantes pobres_, os
mas ·Seriam aplicadas (Macherey, 1990, p. 172). Além disso, ao campesinos originais da região do Rio da Prata e que sobreviv~­
sustentar-se em uma linguagem biológica e psicológica, a regula- ram à migração maciça, os indígenas que escaparam do e~term1-
ção buscava um nível de inquestionabilidade e imobilidade maior nio não eram considerados "confiáveis": seu desenvolVlmento
do que se estivesse baseada em uma decisão política,· como as autônomo levaria à perpetuação da barbárie, daí a necessidade
necessidades da república ou da indústria, uma vez que a arbitra- de impor-lhes a cultura "civilizada".
riedade desta última surgia de forma mais imediata. Analisando a pedagogia de Rodolfo Senet - que apre~
Nas seções seguintes, aproíundaremos estas idéias. Em sentamos no capítulo anterior, quando nos referimos a Pestalozzt
primeiro lugar, trataremos dos pedagogos "normalizadores", - , Adriana Puiggrós a identifica exatamente como um exemplo
como foram denominados por Adriana Puiggrós, ou seja, aque- desta pedagogia uniformizadora e disciplinadora. Tomando como
les que deram ênfase à estruturação de normas, para que todas exemplo a proposta de Senet sobre a professora Laborda, qu~ exer-
as condutas e açôes de docentes e alunos se adaptassem a elas, e citava seus alunos de acordo com os princípios pestalozztanos,
idealizaram mecanismos para detectar e castigar os transgresso- Puiggrós enfatiza quanto se perde quando estes preceitos se con-
res. Em segundo lugar, faremos uma resenha das idéias e ações vertem em regras que devem ser memorizadas, tomando-se um
de correntes distintas que se enquadram dentro dos conceitos "sistema de homogeneização e rotinização da prática docente".
do "escolanovismo", uma tendência pedagógica renovadora na O sistema pestalozziano foi utilizado para "acompanhar os ges-
-- .
.
- . 170 171

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A I NVENÇÃ O DA } ALA DE A ULA A SAL A f)( A ULA EM lo
ADE DE
eASAI\ : A fÂf l ( A E SCOL A ~ NO St CU LO 20

tos, reprimir a palavra , estabelecer uma ordem nas ações de .res, os textos pedagógicos são fru to de sua atividade abundante
ensino-aprendizagem cuja alteração descaracteriza a palavra mce:sanl te2, ommuc1osa, que formaria boa parte dos professore;
'educar"' (idem, p. 269). A idéia de normalização utilizada por do secu o . Mesmo qu d h d. . - .
tantes38 e ~n o ouve 1ss1denc1as muito irnpor-
esta autora foi, sem dúvida , tomada de Foucault. Como já dis-
de vínc~l~ra:~ os _normalizadores que impuse ram seu conceito
semos, a normalízaçâo implica a criaçâo de uma norma geral em
bases d p ~gog1co e que por muitos anos estruturaram as
cujos termos se pode medir cada uma das singulalidades individtiais, e uma reação entre professores e alunos na sala de aula.
e verificar se cada um a cumpre ou se desvia do parâmetro comum.
Assim, a norma supõe a idéia de que é preciso "corrigir" o indi- . Interessa-nos principalmente analisar como concebe-
1am a estrutura da sala de aula, enquadrada no d .
viduo que se desviou, seja mediante um castigo ou adotando nou "a tática escola " E _ que se enom1-
estratégias de reforço que evitem que a conduta transgressora . r . sta expressao era utilizada desde 1880
nas esco las argentinas E .
volte a se repetir. No entanto, como salientamos anteriormente, · m um arttgo publicado em 1884 · ·
tufado "La táctica esc 0 1 ,, , mt1-
esta visão da normalização não faz parte de uma estratégia de . .. d
de Educacwn ar ' um colaborador anônimo da Revista
a Dire · · G
regulação "pura": na maioria das vezes, aplica-se a indivíduos . dº . . cc10 n eneral de Escuelas da província de
Bue nos Aires 1z1a" ·
que, embora cresçam, e se reconhece que crescem, são tratados . os movimentos que professores e alunos re-
cisam executar na escola são muito se Ih . p
como sujeitos estáticos, que não têm e nem devem ter autono- tos militares e me antes aos rnovimen-
mia, e a relação que se estabelece é mais de imposição do que . p· , , como tal, devem ter uma tática especial" (citado
em. meau 1997 p 95) e . .
de orientação. Como veremos mais adiante neste capítulo, a ' , · · onst1tu1a também um conteúdo d
programa de pedagogia do ri . d o
posição dos pedagogos "escolanovistas" a este respeito será bas- 1903 (G . p metro ano as escolas normais em
tante diferente. virtz, 1991, p. 73) e surgiu no livro de peda o ia d
Senet para as escolas normais de 1918 _ gg e
Foram os pedagogos "normalizadores" que construí- . como capitulo especial.
ram os pilares de nosso sistema educacional no final do século ·11· d As~im como os lancasterianos, a metáfora militar era
Utl za a mais urna vez 1·
19 e início do século 20. A denominação "normalizadores" tam- .
eontmuava -. para ana isar o que ocorria na sala de aula
valida a idé1· d ·
bém está associada ao fato de que muitos se formaram nas pri- t bl . ª
e que era necessário ordenar 0 conjun-
meiras escolas normais que foram criadas no país, princip~lmente º'. esta e ecer um sistema de hierarquias tornar os co .
na Escola Normal de Paraná e nas Escolas Normais N~ 1 e 2 da c.e1s-_ A tátic~ escolar, definida por Senet ~orno "um sis~: d~­
Capital Federal. Através delas, difundiu-se uma pedagogia que sma1s e rnoV1mentos" (1918 p 115) . d
. ' ·
b ª e
, ªJU ava a o ter ordem pou-
reformulou as formas de ensinar e aprender na Argentina37 . Os
planos de estudo, os códigos disciplinares, as edificações escola-
l
i
pava tempo e cnava nos alunos o hábito da obed. - . , d
uniformidad . renc1a, e ava
e ~~s moV1mentos. Dentro desta tática, Senet dedi-
cou-se a especificar aspectos da vida escolar que até então eram
1
37. A esse respeito. recomendamos o leitura do história do formação do profissão docente, e
do influencio dos esmlos normais nessa etopo. no trabalho de Pineou. 1997, cujo terceiro
capítulo detalho os trocos nos reguloçôes do tarefo docente e nos métodos pedagógicos.
l 38. Sobre os dissidências, remetemos oo livro de Pu.
que troto do pedagogo Cor/os Vergara.
. .
iggrós JÓ Citado. principalmente 0 porte li.

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A 1NVENÇÀO DA SALA DE A UL A
A ) A LA DE A ULA [M I DA DE DE ( AS A f\ A lÀT I CA b C0LAI\ NO StCU LO 20

mais rrouxos e ílexíveis: horário de entrada e saída da escola , to- também de medições mais sofisticadas sobre o limiar de atenção
que de campainha antes de iniciar as aulas, fom1ação de nlas para de uma criança (20 minutos, entre 7 e 10 anos de idade, e 25
entrar na sala de aula, respeito aos recreios, formas de sair da es- minutos, entre 10 e 14, afirmava Senet), que tipo de memória
cola sem aglomerações; preocupou-se até em escrever parágrafos pode exercitar, que imagens devem ser estimuladas.
sobre a necessidade de os alunos ficarem em pé ao lado de suas
A esse respeito, é importante salientar a escola filosófica
carteiras até o professor ordenar que sentassem.
e psicológica em que se baseava a maioria dos pedagogos norma-
O que nos interessa especialmente neste capítulo são suas lizadores: o positivismo. Este foi um movimento intelectual amplo,
presc1ições para a sala de aula: Senet estabeleceu que os alunos de grande alcance na segunda metade do século 19, e que incluiu
deveriam executar movimentos de maneira uniforme e simultânea tanto uma renovação filosófica como um plano de regeneração
e que o professor deveria ter sempre o controle da situação. Deveri; social. Como afirmou Frederic Harrison, discípulo inglês de Comte,
determinar as formas e os momentos de levantar e sentar, de pegar "o positivismo é, ao mesmo tempo, um programa educacional,
ou guardar os objetos, de sair da sala de aula. Continuava sendo o uma forma de religião, uma escola de filosofia e uma fase do soCl-
"sol"que Comenio imaginou nas primeiras formulações do método alismo" (citado em: Stromberg, 1989, p. 166). Propôs reformas
global; todos deveriam organizar-se em tomo do professor, como universais não apenas nas ciências, mas também em todas as esfe-
raios que irradiavam sobre cada um dos alunos-planetas. ras humanas. Embora nesta corrente houvesse posturas distintas,
Entretanto, Senet também introduziu algumas inova- determinaremos alguns elementos comuns.
ções no método da sala de aula global. Em primeiro lugar, ima- Em um sentido social, pode-se dizer que o positivis-
ginava-se o professor como um "guia" e "orientador" dos alunos, mo processou de maneira peculiar a herança da dupla revolu-
que realizariam a maior parte do trabalho da aula. O docente ção política e industrial. O temor da mobilização das massas e
deveria proporcionar conhecimentos aos alunos apenas quando estes da restauração da monarquia absolutista foi fundamental para
não pudessem descobri-los por si mesmos; entretanto, esta "desco- muitos pensadores da época. De acordo com W H. Simon
berta" não aconteceria mediante uma atividade autônoma ou (1965), os positivistas propuseram-se a construir "um novo
espontânea dos alunos, mas sim por meio das técnicas de ques- credo comum para tomar o lugar da religião católica, que a
tionamento do professor e da aprendizagem por meio de ilustra- revolução havia abalado de maneira irremediável para os ho-
ções, também conduzidas pelo docente. Neste sentido, essa no- mens educados. Cada um propôs elaborar uma doutrina de
ção de aprendizagem através da descoberta estava bem distante salvação social, e da necessidade de uma reconstrução inteli-
daquela que, mais tarde , proporiam os seguidores de Piaget. Por gente após a crise desencadeada em 1789". Desse modo, a or-
outro lado, surgiu uma ênfase muito acentuada sobre a necessi- dem, a reconciliação e a harmonia sociais surgem como elementos
dade de adaptar a pedagogia à psicologia do educando, não ape- fundamentais do discurso positivista. Não é por acaso que a ba~­
nas em termos de seu interesse, como afirmava Herbart mas deira do Brasil, elaborada na década de 1880 por uma geraçao
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A 1NVENÇÃO DA SALA DE A UL A A SALA DE A ULA EM I DADE DE CASAI\: A Hr1c A EscOLAf\ NO StcuLO 20
l
de pensadores positivistas, contém o lema "Ordem e Progres- men_tação e o cálculo (idem, p. 75). Destacaremos duas das prin-
so". Ao mesmo tempo, Jules Ferry, um dos organizadores do c1pats regras do positivismo:
ensino republicano, afirmava, na França: "se prestamos tanta
atenção à ordem, se a consideramos como a pedra fundamen-
. 1. Negar valor cognitivo aos juízos de valor e aos enun-
Lal do edifício republicano, é porque a ordem é a condição
primeira, a condição essencial para o progresso" (Ferry, discur- ~ta~os normativ?s, porque não são proporcionados pela experi-
encia, embo~a nao se negue a importância da moral para o orde-
so pronunciado em 1883, citado em: Barrai, 1978, p. 159). Os
positivistas construíram uma imagem do passado que o apre- namen:o soC1al. Mais adiante retomaremos este tóp ico de capital
unportanc1a para a educação.
sentava como uma seqüência de progressos sucessivos que nos
conduziam à condição positivista final - a do reinado ela ci-
ência que traria o conhecimento coletivo e o domínio sobre a 2. Estabelecer a unidade fundamental do método cien-
natureza. Não foi por acaso que este movimento ganhou força tífico. ~positivismo sustenta que os modos de aquisição de um
com a consolidação dos impérios coloniais na Europa e serviu saber vah~o-são os mesmos para qualquer campo da experiência;
como justificativa do empreendimento educacio nal colonial, ª-ª~uai d1v1sao das ciências é uma etapa do desenvolvimento his-
que levava a "civilização" aos povos atrasados da Ásia e da Áfri- t~nco, que nos levará a um momento em que as diferenças serão
ca. A leitura do darwinismo, que citaremos mais adiante, no mvelad~~ e_ reduzidas a apenas uma ciência geral. Para a maioria
contexto desta situação social e política resultou no apogeu do dos posltlV1sta~, a ciência única era a física, que explica as propri-
racismo e das posturas que afirmavam a supremacia dos bran- edades e os fen?menos mais universais da natureza, ou seja, aque-
cos sobre outras raças e etnias do mundo. les sem os quais outros _fenômenos não podem ocorrer (idem, p.
Leszek Kolakowski define o positivismo 39 , em sua abor- 21)._ Para outro~, esta ciência unificada estava representada pela
dagem filosófica, como "um conjunto de regulamentações que teona d~ evolt_içao_ de Charles Darwin, que estabeleceu que a vida
rege o saber humano e que tende a identificar como 'ciência' as pr~gred1a devido a luta entre as espécies, na qual sobreviviam os
mais aptos.
operações observáveis na evolução das ciências modernas da
natureza" (Kolakowski, 1988, pp. 14-15). Comte afirmava que
uma mente positiva não pergunta "por quê?", e sim estuda como _ _Para o positivismo, a base da pedagogia deveria ser a
os fenômenos surgem e se desenvolvem, reúne fatos e está pre- ps1~olog1a e, a~ém dei~, a biologia. Um dos filósofos positivistas
parada para submeter-se a eles; utiliza a observação, a experi- mais r~c?nhec1dos, o mglês Herbert Spencer, sustentava que era
necessano estabelecer primeiro as bases da psicologia racional
39. A denominoçôo rilosofio positivo· foi origino/mente utilizada por Oaude Henri de Soint- cientifica, para fundament~r a arte da educação ou pedagogia'. 1
1
Simon (/ 760-1825) eporAuguste (omte (/ 798-1857). Mais tarde. foi adaptado e refor- "i
mulada por Herbert Spencer (/ 820-1903). difundindo-se e exercendo influências muito S~e~cer propunha os seguintes princípios pedagógicos, que se
amplas. chegando à América e à Ásia. ' ongmavam nas leis da evolução:

..- 176 177 - •.


1
1
A 1NVENÇÂO DA SALA DE A ULA A SAL A DE A ULA EM IDADE DE C ASAI\ · A TÁ TICA bCO LA I\ NO SECULO 20

1) ir do simples para o composto; Este inspetor concebia a forma de relacionamento en-


2) do indefinido para o definido; tre docente e aluno, ou "vínculo pedagógico", como a ação atra-
3) do concreto para o abstrato;
4) a educação da criança deve estar de acordo, em sua forma e vés da qual o educador conduz a criança pela mão por um cami-
seqüência, com a marcha da humanidade. A suposição é que a nho sujeito a leis fixas, e "qualquer infração dessas leis pode ser
ontogênese (desenvolvimento de um indivíduo) repete a filo- extremamente prejudicial". Este prejuízo era traduzido rapida-
gênese (desenvolvimento global da espécie), e que a ciência mente em termos médicos: "qualquer descuido por parte (do
segue os mesmos passos da história social com relação ao de-
senvolvimento da criança; professor) ocasiona um mau hábito C..) em detrimento da saúde
5) ir do empírico para o racional; do educando (. .. ). E uma questão tão simples como a má postu-
6) estimular o desenvolvimento espontâneo da criança, com um ra elo corpo traz consigo, em mais de um caso, os efeitos desas-
mínimo de palavras e obrigando-a a averiguar ao máximo, con- trosos de uma tuberculose prematura ou de um aneurisma. Não
fiando na disciplina da Natureza;
7) orientar-se pelos interesses e excitações da criança: um conheci-
estou exagerando os perigos: atenho-me à opinião dos homens
mento agradável para a criança é o indício mais seguro de que de ciências, cuja autoridade é indiscutível" (idem).
estamos no caminho certo. Caso tal não ocorra espontaneamente, . Como vimos na introdução, a pedagogia começou a ser
devemos estimular seu interesse, motivando-a para a experiência.
Spencer (1861), 1983, pp. 105-112. definida como "ciência e arte de ensinar": se com a primeira com-
partilhava a busca por razões teóricas e leis naturais que organi-
_ De acordo com a filosofia positivista, muitos pedago- zam o ato de educar, com a segunda associam-se a ela um caráter
gos normalizadores consideraram que tudo poderia ser englo- idiossincrásico, isto é, específico de situações particulares, e a von-
bado sob leis gerais que deveriam ser respeitadas quase como tade de orientar e transformar a concluta40 . Nesse espectro, existiam
uma lei sagrada. Em um artigo do inspetor Félix Maria Calvo aqueles que, como o sociólogo Émile Durkheim, afirmavam que a
intitulado "Principias generadores como base de la instrucció~ pedagogia estava mais próxima da ciência por ser, antes de tudo,
y educación" (Princípios geradores como base da instrução e da
educação), a proposta ganha dimensões quase desumanas: 40. O D1Cc1onorio de Pedogog10 de Ferdinond 8u1sSCV1. vno wo efl(1c/opédico de tom pos1tMsto
editado no Fronço em 1882 e reeditado onos mois tarde. fonte de c0f1sulto obngotóno poro 05
mestres franceses. e bostonte c0f15Ultado no Argentino. ofrrmvo que o pedagogia ero uma
O mestre deve seguir passo a passo as evoluções da inteligência infan- oêricro moro!. com vn objeto mois concreto e especifico: e S(X) vizimo mors próximo ero o
til para sujeitar o desenvolvimento do ensino a uma ordem metódica pol!Vco. 01zro o outor. Hem Morl0f1. que poro ombos (pedagogia e polr?Ko) é difícil determincx
e gradual: um passo em falso, um salto não premeditado, uma exigência se sõo c1êlxro ou Olte. pois têm como finolrdode o oçôo. e não o sober. €ntretor1w. todo Olte
exagerada desequilibram o espírito, como se desequilibra o funciona- requer crêlxio. corÍl<Uirnentos. embora não com o objetivo de cor:xdenor e sif'l(etizor 05 usos
mento de um relógio quando se altera a engrenagem das cordas ou existentes e dingi-105 o um propósito de sober. Se negarmos o coróter científico. seremos escra-
vos do prótico sem o teoria. do coleto de procedirnert05. sem outro outondode senõo o uso
quando se dá mais corda do que necessário. Um bom mestre, um verda- correrte (o sentido corrx.m. o experiêncro). -cettOO!etlte. o uso corrooe é vn gronde mestre~
deiro pedagogo não se engana na aplicação dos princípios e leis que regem le"1'.ll1Cb-se em conto que irdicomos diretomerte o prótico: e o expenêncio que deve recuperar
o desenvolvimento físico e intelectual, nem no modo de infundir sen- o pedagogia é pessoal de codo mestre e do histótio dos doutrinas e cios s1stemos pedogógi·
timentos nobres que haverão de formar o caráter da criança. cos. €ntretooto. -não se aproveito o experíêricio próprio e de outros. somente o condição de
Calvo, 1900. rnterpretó-lo com justiço: o história deve ser lido com cn?ico- (8uis50f1. 1882. p. 2239).

- . 178 179-
·. .
A I NVENÇÃO DA SALA DE AULA
A SALA DE AU LA [M I DADE Df CASAR A TAí l(A ESCOLA!\ NO StCULO 20 l
.
um conjunto de teonas
. que fundamentavam .a prática;d.outros,
como muitos pedagogos nomrnlizadores argentm?s~ acre itav~r:1 A partir destas concepções sobre a herança e a raça,
que a pedagogia era uma série de receitas e prescnçoes qu~ po I- Mercante idealizou uma série de instrumentos para recolher in-
formações sobre as crianças e suas famílias, que ajudariam apre-
am ser aplicadas universalmente, pois derivavam do conhecunento
ver seus resultados escolares e seus comportamentos sociais fu-
de leis naturais e imutáveis. .
turos. Por exe mplo, propôs que a escola realizasse uma "anamnese
Independentemente dessas divergênc'.as, ~ode-se d1- de família", ou seja, um trabalho de investigação sobre as ori-
zer em termos gerai·s . que a pedagogia tomou a .bwlogta,d" como mo-l gens da criança, averiguando dados sobre avós, pais e irmãos
dei~, e esta se transformou rapidamente ~m _ci_ência m~ _ica: aque e~ com relação a: raça, idade, origem, doenças, condutas, aptidões
l(Lle se deSV!ava
- . mdas 11ormas' fiom1Cl1iam ind1v1duos ·deficientes,
d anor d profissionais, bem-estar econômico, regime de vida doméstico e
. Jermos E se os regulamentos foram cnados e acor .º público, relações sociais, ali mentação, freqüência à escola, apli-
mais, en.J' · , . _ · ento das regras trana
com essas leis científicas, o nao cumpnm _ d. l cação e aspirações. Estes dados deveriam ser conseguidos por
graves consequen · . - c·1as Daí surge uma regulamentaçao
l 1996)ra ica meio de "conversas afáveis" com a família, como o fazem os psi-
entre os inspetores e diretores da época (ver Dusse ' . quiatras, e de visitas a seus lares, e colocados em uma ficha que
Aassimilação da pedagogia pela biolo~a tar:1bém resultou poderia ser consultada, e que teria tanto valor como "uma certi-
. . da ana'li·se daqueles que podenam tnunfar dão de nascimento", pois permitiria explicar e prever condutas
d
no eterm1msmo . · na esco-
). ·1
.
la e daqueles que fracassanam. 0 pedagogo argentmo Victor
d E 1v er- 1 (idem, p. 48). No pensamento de Mercante, a escola deveria
cante citado anteriormente, um dos primeiros egressos a scue a aliar-se a outros dispositivos de vigilância e de controle da po-
N , l de Paraná professor, diretor de escola, inspetor, professor da pulação, e produzir informações tanto ou mais fidedignas que
Fa~~;ade Ciê~cias
de da Educação da Univ:rsid~de ~
de Piara_ e
os arquivos policiais.
criador do Laboratório de Paidologia dessa umverstdade, afirmava. O aumento da regulação do trabalho docente trouxe
consigo uma exigência maior tanto para professores como para
A herança é uma força transmissora tão poderosa que os pedagogos alunos. Todos deveriam ajustar-se às regras naturais, ei:cprec;c;iis
.
se viram d.tan te da necessidade de segui-la, afirmando,
d ·por·um ·lado,
fi nos regulamentos escolares fonnulados "cientificamente". Deve-
a ocorrência simultânea; por outro, a sublimação o t~stmto, e - se levar em consideração que na época, devido à escassez de
l ente a educação vocacional, espontânea e oportunista, em o~o­
:i~~ às disciplinas que se contrapõem ao sentimento e à obng~ç:~~ professores formados pelas escolas normais, apenas muito pou-
cos possuíam títulos oficiais (ou seja, eram formados por insti-
ue são contrários a essa tendência. Aeducação adapta o que Jª ~
;da tado. Valoriza seus êxitos sobre o caminho traça~o pelos pais e tuições reconhecidas), e boa parte deles era composta por pes-
pU
avós. ma vez que
o individuo traz consigo suas mchnações para o
b bl ma escolar
soas com interesses distintos para ensinar, cuja "idoneidade" e
mal, somadas a muitas inclinações para o em, o pro e autonomia eram motivos de crescente preocupação. Para evitar
consiste em cultivar estas e não exercttar aquelas. 1927 46 desvios, e para promover maior homogeneidade no ensino, au-
Mercante, , P· ·
mentaram-se os requisitos para a obtenção do título: se antiga-

: 180
181 -.
1
A SA LA OE A ULA EM I DA DE OE (ASAI\ A TAl l(A ESCOLA!\ NO StCULO 20
.I
A I NV ENÇÃO DA SALA OE A UL A

mente os educadores podiam obter habilitação das autoridades seja a definição mais famosa do termo educação: "É o a_to ex~r­
escolares, isto foi tomando-se cada vez mais difícil, e foram cria- cido pelas gerações adultas sobre aquelas que amda nao estao
dos exames complexos para aqueles que não freqüentararn es- maduras para a vida social. Tem por objelivo suscitar e desen-
colas normais ou magistério, mas que desejavam exercer a do- volver na criança determinado número de estados físicos, inte-
cência (Pineau,1997). lectuais e mentais, exigidos pela sociedade política como um
todo e pelo meio especial ao qual está particularmente destina-
A imagem do professor que se foi constituindo através
da" (Durkheirn, "Education", citado em: Buisson, 1882, p. 532).
desta crescente regulação foi a de uma personalidade consistente,
Pode-se constatar aqui a tensão entre a noção da educação corno
representante do Estado ou da República, encarregado de urna
ação social, destinada a transmitir a cultura - em última ins-
missão superior, à qual deveria dedicar-se com todas as suas for- tância, intervenção fortuita - e a idéia de um determinismo
ças. Senet recomendava: "O professor terá de cuidar para que toda social que aparece referente ao "destino" da criança, que a_sit~a ­
ordem dada seja cumprida; assim sendo, antes de ordenar, deve rá em algum lugar determinado da estmtura social, contnbum-
pensar em sua ordem, e, se tiver dúvida de que ela seja cumprida
do, desse modo , para a ordem.
à risca, o mais conveniente é que se abstenha de dá-la (Senet,
1918, p. 129). A autoridade que surgia destas recomendações era Além disso Durkheim criou urna definição de autori-
absoluta, perfeita, indiscutível, pois era "científica". dade pedagógica cor:io "ascendência moral" que exerceu grande
iníluência sobre os normalizadores. Pode-se ver aqui corno co-
. Entretanto, este personagem perfeito e consistente, o meçaram a surgir mais claramente os elementos de uma estraté-
professor, deveria impor urna disciplina flexível e razoável, ba- gia de regulação, combinados com a linha disciplinar~impositi~
seada principalmente no valor da experiência. Para o filósofo va mais rigorosa. A disciplina social e escolar devena levar .ª
positivista inglês Herbert Spencer, caso todos os aspectos da vida fo rmação moral do indivíduo, promovendo urna certa regulan-
infantil fossem regulados despoticarnente, as crianças seriam dade (norma) na conduta das pessoas e proporcionando-lhes
convertidas em espíritos dóceis ou em antagonistas rebeldes, o determinados objetivos que limitariam seus horizontes (Du-
que não era desejável para um movimento cujos eixos eram a rkheirn, 1961 , p. 47). Existe uma idéia tanto para ordenar e pro-
ordem e o progresso, e yw.: valorizava tanto a invenção criativa cessar as condutas existentes, como para criar o campo de experiên-
como a obediência. Pelo contrário, as crianças deveriam ser sub- cia dos indivíduos; neste sentido, dizemos que a disciplina e a regulação
metidas por meio da interiorização da regra e da culpa: muitas coexistem. Para Durkheirn, a própria moralidade era constituída
vezes, a aprovação ou desaprovação, a dor ou a indignação dos pelo espírito da disciplina; e, na formação desse espírito, a ação
pais são mais valiosos do que o castigo corporal. educacional da sociedade era fundamental. Afirmava: "(. .. ) para
Um dos que contribuíram para a reavaliação da ques- cumprir as obrigações e agir moralmente, deve-se ter apreço pela
tão da disciplina em sala de aula foi o francês Érnile Durkheim, autoridade sui generis que configura a moralidade. Em outras
já citado no capítulo 2. Durkheim produziu aquela que talvez palavras, é necessário que a pessoa tenha uma formação tal que

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1
l
A I NV(NÇÃO DA SALA DE A ULA
A SA LA Df A ULA (M I DAD [ D( (ASAI\ A TÁTICA ESCOLA!\ NO StCULO 20

sinta a existência de uma força desvinculada dela própria, que


compor~tar-se dura~te os recreios. Pelo contrário, tal regula-
não depende de suas preferências pessoais, e à qual deve obedi-
mentaça~ provoc.ana o efeito con trário ao desejado: tornar-se-
ência". Esta figura moral era exemplarmente representada pelo
r~ detestavel e odwsa pa~·a a criança, ou esta se submeteria pas-
professor de escola, que deveria sentir que falav~ em nome de
si~ament~ , .º.que destruma toda iniciativa própria e, portanto,
uma realidade preponderante e elevada, e se sentir mvesudo ele
nao permiu~1a que desempenhasse nenhum papel pessoal des-
uma força superior a si próprio. Cabia ao professor inculcar nas
taca.do na vida coletiva. 1àmbém deveriam ser proibidos os
crianças este respeito pela sociedade instituída, mostrando-se
ca.sttgos corporais e outros que produzissem danos à saúde das
como uma autoridade legítima, justa e necessária. A noção de
crianças. Para Durkheim, o castigo, baseado fundamentalmen-
disciplina escolar proposta por Durkheim considernva ª.sala de te na repro\iação do professor e do grupo, deveria ser adminis-
aula como uma sociedade em pequena escala, muito mais pare-
trado de maneira muito racional, juntamente com um sistema
cida com a sociedade adu lta do que a família, uma vez que seus de recompensas pelas boas ações. Uma das maneiras escolhi-
laços não são motivados por preferências ou sentimentos pessoais.
da~ para castigar era privar a criança de alguma atividade pra-
A disciplina não era um simples dispositivo para "garantir su-
zerosa, P?r exemplo, não permitir que participasse dos jogos,
perficialmente a paz na sala da aula" (idem, p. 148); pelo contr~­ nos recreios ou em outra atividade que a divertisse.
rio, era o coração moral do ensino e da sociedade. Não podena
ceder a temperamentos particulares; deveria necessariamente ser . Voltando à pedagogia normalizadora como corrente
mai's fria e impessoal do que os laços familiares, estava mais pre- mais geral, deve-se destacar que esta também introduziu mu-
ocupada com a razão do que com os sentimentos; exigia esforço danças importantes na estrutura material e de comunicação da
e aplicação maiores, pois implicava interagir com estranhos, o sala de aula .. Em p'.imeiro luga r, converteu-se em um espaço
que era necessário porque a vida moral da sociedade é mais ri- º.nde se reuniam cnanças com um nível semelhante de conhe-
gorosa do que a da famíli~, e as crianças dev~riam acostumar-se ciment~s e resu~tados, "de mane ira que seja mais conveniente
e preparar-se para ela. "E respeitando as leis da escola que a e vantajoso ensmar a todos juntos" (Menet, 1870, p. 2). Ao
criança aprende a respeitar as leis em geral, que desenvolve o mesmo tempo, na Argentina, o diretor do Departamento de
hábito de autocontrole e recato( ... ). (A disciplina escolar) é uma Escolas, don Eduardo Costa, em uma carta enviada em 8 de
primeira iniciação na austeridade do dever" (idem, p. 149). Jtdho.de ~870 ao ministro de governo Antonio Malaver, pedia
aut~nzaçao para contratar três professoras norte-americanas
No entanto, diferentemente da meticulosidade de al- trazidas por Sarmiento, que estariam voltando ao seu país. As
guns pedagogos normalizadores, herdeiros dos jesuítas neste professoras propunham criar duas escolas com características
aspecto, Durkheirn não acreditava que a vida escolar devesse j novas que, segu~do Costa, "não duvido (que) estejam destina-
ser regulamentada detalhadamente. Para ele, não era necessá- das a ~e ge~erahzar entre nós: uma delas denominada '.Jardim
rio determinar como os alunos deveriam caminhar, corno de- da ln'.anc1a e a outra, 'graduada'. A idéia de que as crianças
veriam escrever ou manter seus cadernos, ou como teriam de J deveriam ser agrupadas em função de suas idades e de seu 1
1
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A I NVENÇÃO DA S ALA DE A ULA A SALA D E Au LA fM IDADE DE CASAI\ , A H 11cA EscoL A l1 NO St c uL O 20

desempenho em algu mas áreas do conhecimento transformou rais" à siLUação educaciona l. Por outro lado, as funções disci-
a estrutura das escolas, que de uma única sala de aula, ou várias plinares também estavam claramente determinadas: "(o) do-
sem ordem por idade, passaram a ter a estrutura aLUal de séries cente não deve ficar permanentemente em uma mesma posi-
escolares, cada série com sua própria sala. ção, pois os estudantes travessos adaptariam suas próprias
posições conforme a posição do professor para enganar ou se
Por outro lado, um dos organizadores do sistema
esconder; e uma posição no fundo da classe , exceto por sua
educacional norte-americano, Henry Barnard (18 11 -1900)
inconveniência para discursar, é melhor para detectar do que
pro porcionou o modelo para a mudança: em 1848, escreveu
para prevenir a transgressão. O olhar do professor, esse gran-
um tratado sobre a arquitetura escola r que observava como
de instrumento ele disciplina moral, não pode estimular con-
princípios fundamentais a conveniência, a comodidade e a
fiança, nem encontrar o olhar confiante cio aluno" (Barnard,
saúde dos ocupantes do edifício escolar. Os assentos e cartei-
1849, p. 74) .
ras para os alunos "deve riam ser fe itos para jovens, e não para
pessoas adultas, e teriam alturas variadas: para crianças abai- Barnard também indicou quais eram os elementos
xo de 4 anos e até 16 anos ou mais" (Barnard, 1848, p. 69). didáticos necessários na sala ele aula: um quadro-negro, cer-
Deviam ser individuais, ele fácil acesso, e permitir que o alu- tamente, embora fosse melhor ter vários quadros móveis; lou-
no mudasse ele posição. Também deveriam permitir que o sas, tinteiro, e esponja para cada banco; um relógio, para uma
docente se aproximasse de cada estudante para dar-lhe a aten- justa distribu ição elo tempo entre as au las; as medidas e os
ção e a instrução exigidas, sem atrapalhar quem estivesse ao pontos cardeais desenhados na parede; ábacos; desenhos ou
lado. A carteira deveria ter 60 cm ou 70 cm x 45 cm ele largu- pinturas representando fatos geográficos ou históricos; cole-
ra, com uma prateleira inferior para guardar livros e uma lousa ções de minerais e outros espécimes para aulas de ciências
na parte posterior (ver figura 13, Barnard, pp. 122, 216 e naturais; lanterna mágica (um tipo de projetor) para ilustrar
222). Co mpare-se esta carteira com a que era utilizada nas aulas de astronomia e geografia; e livros para a biblioteca (Bar-
escolas lancasterianas e será possível comprovar que se inicia- nard, 1848, pp. 75-80). Sugeriu também comprar alguns
va uma nova era de configuração do espaço. implementas didáticos que estavam em moda na época, como
as tabelas aritméticas ou de ensino do alfabeto, ou as duas
A sala de aula deveria ter um tablado ou superfície
combinadas (ver figura 13).
mais elevada para o professor, para que pudesse inspecionar
a sala apenas com um olhar e transmitir seus ensinamentos A pedagogia normalizadora também induziu mudan-
sem ser interrompido. O tablado também era coerente com ças nas práticas cotidianas de ensino e aprendizagem das disci-
este lugar ele mestre-sol, centro das interações e do saber, con- plinas escolares. Analisando a história cio ensino da redação nas
ferido ao docente pela pedagogia normalizadora, mas agora escolas francesas, o historiador André Chervel relata as conse-
com metáforas científicas, pois o professor aplicava leis "natu- qüências da expansão da redação - antes reservada aos colégios

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1
A 1NVHIÇÃO DA SALA Df A ULA
1 A SA LA or AULA fM l oAo r o r CAS AI\ A TÃTrCA Es coL A f\ NO Sr cuLO 20
(
- a todas as idades, na relação com o saber e na constituição
dos sujeitos pedagógicos:

Apesar de a pedagogia tradicional dirigir-se essencialmente para a


memória, de agora em diante convém focalizar a inteligência da crian-
ça, cuja existência finalmente se reconhece: apelar para seu sencido
moral de maneira diferente da recitação do catecismo, despertar seus
sentimentos estéticos, fazê-la sair da passividade e do silêncio em que
a confinavam. Enfatiza-se agora a importância da "leitura inteligente",
e a "leitura mecânica" não é mais considerada um objetivo satisfatório
para a escola. As leituras, por outro lado, devem ser explicadas, ao
mesmo tempo em que no ensino secundário deve-se ampliar a expli-
cação dos textos. Afirma-se o direito dos alunos à palavra e, inclusive,
começa a ser tolerado, embora controlado, corrigido pelo professor:
pois a expressão oral é reconhecida como precedente à expressão es-
crita. (. .. )As aulas sobre diversos cernas tornam-se um dos auxiliares
obrigatórios da redação, para a ampliação do vocabulário. Os textos
de leitura do ensino primário são totalmente renovados; a poesia en-
tra finalmente na escola. Com ela introduz-se um novo exercício· a
recitação clássica, que substitui a amiga "rr·i::i,11,:ao", a rçLit,1ç,io do
manual de gramática, do r1tcli~mo, Ja aritmética.
Chervel, 1987, pp. 29-JO.

Criou-se também um espaço nas escolas secundárias


j para o surgimento da leitura privada ou particular, à qual o anti-
go mode lo jesuítico era absolutamente hostil. A idéia da leitura
1 em silêncio, para si, foi outra mudança importante nas práticas
de ensino dos normalizadores. A interio1ização da palavra e da
1
nonna eram um de seus objetivos mais valorizados; e, entretan-
to, ao abri r as portas a atividades menos suscetíveis a regula-
ções, lançaram também as bases para alguns questionamentos
b'I' . . materiais escolares, pro1e
· tados por He nry sobre a relação saber-poder centrada na figura do docente e na
Fig. 13. Conjunto de mo 1 iano de 1848 SchoolArchitecture,Teacher's Col ege
Barna rd em 1848 (De H. Barnar . . 1 '
Press, Nova York, 1970). crença na ciência como verdade revelada, como os que seriam
fonnulados pelo "escolanovismo" pouco mais tarde.
188
189~ .
1 li
A INVE NÇÃO DA SAL A DE A ULA A SALA DE A ULA EM IDADE DE CASA~ . A TÃT ICA ESC O LAR NO StCULO 20

Por último, qual foi o legado da pedagogia normaliza- está "destinado"). Talvez um de seus legados mais permanentes
dora? Gostaríamos de nos deter em dois elementos: a idéia de seja a manutenção desses sistemas de classificação, que embora
uma pedagogia homogeneizante que levaria à igualdade e, ao moldem o que consideramos um "bom aluno" ou um "aluno com
mesmo tempo, à definição de grnpos diferentes na sala de aula, capacidade para aprender", poucas vezes paramos para reavaliar.
de acordo com suas origens e capacidades. A escola é um espaço com muita inércia. O positivis-
Em primeiro lugar, os normalizadores deixaram uma mo e as pedagogias normalizadoras desenvolvem-se como críti-
herança de ensino universal e homogeneizante. Como dizia o cas a essa sala de aula formada pelo sentido prático que vimos
ministro de educação francês Jules Ferry, o ideal da escola repu- nos ingleses do início do século 19 (ver pp.143-153), não tanto
blicana era colocar ricos e pobres em um mesmo banco escolar. para torná-la flexí vel, mas também para dar-lhe uma proposta
Dizem os professores do principio do século 19 entrevistados "científica" que inclua urna visão mais diferenciada da aprendi-
por Jacques Ozouf que o mais belo elogio que lhes poderiam zagem. Lembremos que os passos do ensino-aprendizagem em
fazer era que "não faziam diferenças"- Sobre essa base de confian- Herbart (ver pp. 136-143) - clareza, associação, sistema, mé-
ça, o período que vai de 1880 a 1930 mostra, na Argentina, um todo - constituíam uma afirmação psico-lógica que era, na re-
grande desenvolvimento da escolaridade primária, uma explo- alidade, mais "lógica" do que "psico": estes passos constituíam
são no número de matrículas que incluiu grande parte da popu- uma lógica do ensinar e do aprender para todos os conteúdos e
lação imigrante (Puiggrós, 1991). Também à carreira docente para todas as idades. Com a nascente psicologia evolutiva que
ofereceram-se oportunidades de inclusão e mobilidade social: começou a utilizar uma investigação baseada em experimentos
em primeiro lugar às rr.ulheres, que até então estavam pratica- sobre percepção, conceitos, memória, etc., percebeu-se que a
mente excluídas da educação secundária e superior, mas tam- atividade de aprendizagem modificava-se com o tempo. Muitos
bém a indivíduos provenientes de locais mais põbres, qnr. pude_- pedagogos normalizadores reconheceram esta modificação e cria-
ram estudar nas escolas normais graças a bolsas de estudos ram toda uma série de materiais didáticos e de diagnóstico dife-
fornecidas pelo Estado e ao seu esforço individual. renciados. Com esses materiais, procurava-se, em geral, regula-
Juntamente com esta postura uniformizadora, a peda- mentar esses processos "naturais" da aprendizagem com base no
gogia normalizadora desenvolveu também um detalhado sistema fato de que as "leis" da aprendizagem permitiam ver essa regula-
de classificação e diferenciação dos alunos de acordo com idade, mentação como legítima, quase indiscutível.
desempenho, origem social, raça, etc. De alguma maneira, era essa Desse modo, os normalizadores diagnosticavam as crian-
classificação que permitia sustentar ao mesmo tempo um modelo ças não mais corno almas que tinham que educar, mas como indi-
de instrnção para todos e urna postura conservadora com relação víduos que se desenvolviam. Entretanto, a forma de organizar a
ao social, contribuindo para manter as desigualdades existentes comunicação da sala de aula que elegeram por meio de sua didá-
(como dizia Durkheim, a posição à qual cada menino ou menina tica estruturada era um tratamento muito disciplinar. Diagnóstico

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- .
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\ A 1NV[NÇÃO DA SALA D[ A ULA
A SALA DE A ULA EM I DADE DE ( ASAI\ A Hr1 cA Es COLAI\ NO StcuLO 20

. - redominantemente disciplinadora: estas . de rerorma escolar e da sala de aula que diferiam profundamente
regulador mtervençao P - entre si. Por outro lado, apesar elas diferenças didáticas, pedagógi-
' . . · · · tas foram tão reguladoras e tao pou-
l·eceitas pedagogKas posmvrs ·· ·
de que o poslt\Vlsmo cas, históricas e até políticas que existiam entre elas, reuniram-se
co flexíveis que às vezes nos esquecemos . . em organizações internacionais pela reforma educacional. Este fato
ntigas práticas artesanais de ensmo, trocan-
tentava reformar as a .. l o teve importância fundamental, uma vez que marcava a dinâmica
" . t1·r·1cas" O caso da tauca esco ar mostra com
do-as por fom1as c1en . . . d' . r deste mundo moderno que crescia e se acelerava.
. . ta psicologicamente em cresomento, e rsctp r-
uma cnança, vis l d l O positi- As primeiras escolas novas - em muitos casos, inter-
. detalhes dos movimentos da sa a e au a.
nada ate nos .
. o como principal corrente entre as peclagog1as norma iz_a -
r do natos, escolas particulares para ricos - começaram a funcionar
v1sm , de suas idéias principais: a evoluçao, o nos últimos anos do século 19. A influência da escola nova como
ras parece temer uma
, . d Embora reconhecendo que os novos movimento pedagógico fez-se sentir com intensidade até a Se-
crescimento e a mu ança. .d.. d
f . de acordo com essas leis, a dr anca e a pe a- gunda Guerra Mundial (1939-1945). Após seu desaparecimen-
te;raos º~~~~~:;procuraram criar uma ordem diante de t~1~a­ to como organização internacional, não houve outro movimen-
gg p . d ver na escola um lugar de estab1hza- to comparável nesse nível , uma vez que os organismos
nho crescimento, queren ° . com novos
dela as cida'des explodiam educacionais da Organização das Nações Unidas são entidades
ção enquanto fora . .
habltantes, o mundo se acelerava e Julio ~eme ~magmava _c~n- interestatais. Em sua caminhada, o auge da escola nova, aproxi-
. ndo todo em um submarino, e mdusrve chegar a ua. madamente entre 1900 e 1945, encontra um mundo que se po-
qu1star o mu ._
. Esta contradição quase fundamental entre uma Vlsao q~e lariza, um mundo que o historiador Eric Hobsbawm caracteri-
. l . odema para caraéte1izar os alunos, mas que e - zou como a "era dos extremos" (Hobsbawm, 1996b).
~:~;ep:1~:iaº~: : la como um lugar de produção de uma ordem A Europa havia conquistado quase o mundo todo e
. d . ta e· a chaga onde os "escolanovistas"' esse outro grupo multiplicavam-se os sinais da iminência de uma grande guerra
am a impos , - d d d'rãO'
d eda o os nascidos nessas décadas, colocarao o e o e t . européia. Entre 1914 e 1918, este processo de internacionaliza-
b~sia de~i~ciplinar, de fixar um sujeito que cre_sc.e e a que~ se deve ção culminou no que se denomina a Primeira Guerra Mundial,
regular. Esta idéia central será o objeto das proximas seçoes. que banhou de sangue a Europa. Este conflito teve custos tão
altos, material e culturalmente, que abriu a possibilidade pará
que grupos que desejavam mudanças radicais encontrassem, de
A CRÍTlCA "ESCOL AN OVlST A "·. repente, maior repercussão. O caso mais conhecido é o da Revo-
OUTRA FO R MA DO B[QPODER lução Soviética de 19 17, que tentou estabelecer a primeira orga-
nização social moderna não capitalista no mundo. Os socialistas
O movimento de pedagogos conhecido.como esc?la nova
- s da pedagoaia mais difíceis de analisar. Por e comunistas criticavam o crescimento descontrolado dos mer-
é uma das expressoe b" . • t5 cados, afirmando que criavam grandes problemas e exploração.
um lado, muitos destes pedagogos criaram mumeras propos a

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193 -•.
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A 1NVENÇÃO DA SA LA DE A ULA A SA LA DE AUL A [ M IDAD E DE (ASAI\ : A TAT l ( A ESCO LAR NO St.CU LO 20

Para eles, o desafio consistia em organizar o crescimento das tria como desumanizadora e totalmente arbitrária. Esta situação
sociedades de tal maneira que as injustiças e as guerras seriam encontrou várias formas de oposição.
impossíveis. Esta posição não era compartilhada por muitas for-
Esse protesto fo i denominado "progressi\i smo" nos Es-
ças políticas, inclusive por socialistas que desejavam reformar o
tados Unidos, embora tivesse variantes em outros países. O pro-
capitalismo existente em vez de derrotá-lo. O ponto fundamen-
gressivismo acreditava que era necessário modificar as formas de
tal é que, a partir dessa época, o crescimento das sociedades e
autoridade para conseguir deter as grandes corporações. A ciên-
das economias não era apenas um fato, mas um problema, pois
um crescimento descontrolado levava a crises que se repetiam cia e o conhecimento especializados seriam seus baluartes. A au-
em nível mundial. toridade não viria de um chefe.imposto arbitrariamente, mas sim
de saber conhecer e manipular as técnicas e os d;idos necessários
Essa situação foi complementada por algumas mudan- para executar uma atividade concreta. Seriam as atitudes concre-
ças na esfera do trabalho e do Estado. Durante as duas primeiras tas do indivíduo que o colocariam em uma posição hierárquica;
décadas do século XX, houve um protesto essencialmente polí-
por outro lado, este indivíduo não se perderia em uma burocracia
tico com relação às novas formas de organização social, "a cida-
anônima, pois deveria legitimar diariamente sua posição median-
de moderna, com administrações muitas vezes corruptas, a sin-
te seus saberes. A figura do líder social que estes intelectuais e polí-
dicalização do trabalho e a onda de fusões e integrações bancárias
ticos conceberam foi a do manager ou gerente (Miller e O'Leary,
e industriais que estabeleceram as corporações industriais e fi-
1989). Pode-se analisar sua importância na educação: o professor,
nanceiras" (Miller e O'Leary, 1989, p. 254). Considerou-se que
que passou a ser gerente da aprendizagem de seus ai imos, deve realizar
esta concentração afetaria a vida democrática, inclinando a ba-
lança para o lado destes superpoderosos. Os demais grupos so-
as tarefas e ações necessárias para que a aprendizagem ocorra. Não é
ciais permaneceriam sem iniciativa e sem poder de negociação,
o representante do Estado ou de Deus, nem o guardião do templo do
e, por outro lado, a relação entre direito e obrigação, que era a saber, como era para muitos positivistas; seu saber é mais técnico e está
base do direito moderno, se perderia: a burocracia diluía as res- associado à sua eficiência para produzir determinados resultados. Pen-
ponsabilidades em entidades enormes e anônimas, e a idéia de sava-se a escola como um espaço administrativo, organizado de
que a ação individual provoca efeitos pelos quais alguém deveria maneira funcional e eficiente, de acordo com um regime neutro
ser responsabilizado se perderia em um emaranhado de mean- de dados e técnicas. No nível da organização do trabalho da fábri-
dros administrativos. Entretanto, não se tratava simplesmente ca, esta tendência foi denominada taylorismo, nome retirado de
de um problema do Estado: as mudanças nos modos de produ- seu mais eficiente propagador. A técnica, os procedimentos, tanto
ção, a introdução da linha de produção, a precisão no trabalho em nível burocrático como produtivo, passaram à frente do que
davam uma imagem da civilização industrial que não era aceita era considerado importante para o governo de uma sociedade.
por todos. Os filmes da época - como Metrópolis, de Fritz Lang, Outra resposta, não apenas aos problemas de cresci-
ou Tempos Modernos, de Charles Chaplin - mostravam a indús- mento das sociedades, mas também à alternativa que propu-

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A I NVENÇÃO DA SA LA DE A ULA A SALA DE A ULA EM IDADE DE CASAI\ · A TÃ llC A b CO LA I\ NO 5(CULO 20
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nham os comunistas, foram os movimentos fascistas que toma- No in ício do século 20, a sueca Etlen Key publicou uma
ram o poder, primeiro na Itália (1923) e depois na Alemanha obra chamada O sérnlo das Crianças, muito famosa em sua época.
(1933). Estes movimentos tentaram dominar o crescimento com A autora argumentava que a escola tal como estava estruturada
armas autoritárias dentro de uma economia que continuava sen- era uma máquina que prejudicava o desenvolvimento natural das
do capitalista. Expressaram também seu descontentamento com c_n~nças, e propunha que se reorganizasse em função das caracte-
certas camadas da população que não queriam nenhum tipo de n.sttcas naturais. da criança, em vez ele ter que adaptar o desenvol-
modernização cultural e da vida. vimento da cnança à estrutura fechada da au la (citado em·
Quando, em 1929, estourou a pior crise econômica Blankertz, 1~92, p. 214). Elten Key expressava uma espécie d~
mundial, as respostas foram diferentes: por um lado, a Rússia ma_l-est.ar ~a ep~ca compartilhado por muitos pedagogos: a esco-
soviética começava seu processo de industrialização, por outro, la_ e ~rt1.f1~1al, dissociada do processo de crescimento da criança;
os estados fascistas impuseram uma série de controles às eco- nao e ef1~1ente, pois ensina a repetir, mas não a pensar. Estas idéias,
nomias·, nos Estados Unidos iniciou-se também um Estado mais embora mterpretadas de maneiras diferentes, eram compartilha-
intervencionista e provedor de serviços sociais, para que a so- das por muitos pedagogos dessa corrente.
ciedade não permanecesse à mercê dos caprichos do mercado. . A escola nova foi objern de um grande número de in-
Entretanto, a convivência de todos esses modelos foi impossí- ve.sugações. ~oi den~minada de diversas maneiras, uma vez que
ve.l,' devido à ideologia agressiva, militarista e extremamente fo1 um m~vi~en~o mternacional - como a lógica do cresci-
nacionalista dos fascistas , cujas provocaçôes foram o ponto de ~ento capitalista a qual, acreditamos, correspondia-. e foi tam-
partida para a sangrenta Segunda Guerra Mundial, o Holocausto bem fortemente criticada. Aescola nova como 111m:i :; •..: , ,;,, .,J ..... .. -.
do povo judeu e o terror exercido de forma sistemática contra g~u inúmeras correntes, exp:-~:i..,ões e prop~~~a~. N~-~~;· ~~o
os povos eslavos da Europa oriental. ~1fere~t~s corn_o os de John Dewey, Maria Montessori. , Ovídio
Como seria possível que neste quadro de crescente Ué~roly, Jean Pia.get (se o considerarmos como pedagogo) e
polarização, marcado por duas guerras com vários milhões de muitos outros faziam parte desse movimento.
mortos cada, uma organização internacional de pedagogos fa- Entretanto, o que os unia não era o amor, e sim o as-
lasse sobre a boa natureza da criança e sobre a reforma necessá- sombro. O que estas e muitas outras propostas tinham em co-
ria da escola e da sala de aula? Como vimos no início deste capí- ~um era sua rejeição à ordem da comunicação catequista, e tam-
tulo nas memórias de Richard Church, a escola não só continuava
) . bem aos retoques "científicos" dos normalizadores. Alguns
tendo uma série de características antigas, indiferentes, catequis.- pedagogos da esco.la nova tinham idéias políticas progressistas,
tas, como também a intervenção do positivismo, principalmen- outros eram socrahstas ou comunistas, muitos, liberais, outros,
1 1
te nas escolas urbanas, havia dado às formas mais autoritárias reformadores católicos, alguns deles voltaram-se ao nazismo mas l·
1 um toque "científico" e "correto". todos guardavam uma profunda distância da sala de aula fr;ntal-

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A I NVENÇÃO DA SALA DE A ULA
A SALA DE AULA EM IDADE DE CASAI\ : A lÃTICA ESCO LA!\ NO )(CULO 20

global, que viam como uma inibição do crescimento. A escola nova zada (cap. 2), ou como corpo que devia ser disciplinado (cap.
então, parece estar afinada com a pergunta plincipal da época: com; 3), ou como indivíduo que cresce e que deve seguir ordens e ser
regulamos o crescimento, como administramos essa força que já está moralizado (p. 148 e ss.), a escola nova apóia-se na natureza da
atiiando sem prejudicá-la, mas também sem que nos prejitdique? Esta criança, considerada basicamente boa. Pensemos então que sob
mesma pergunta era feita pelas forças políticas, e resultou nos di- esta postura que unia muitos pedagogos "escolanovistas" existia
versos modelos de sociedade que mencionamos anteriormente. um importante potencial para estruturar a sala de aula de ma-
Ou seja, ao que parece, a escola nova nasceu do mal-estar com neira diversa. A escola nova como movimento pedagógico teve
relação à cultura do momento, considerada artificial. muitas expressões, concretizou inúmeras propostas de organi-
Um elemento importante dessa cultura rígida era, sem zação da sala de aula, algumas ainda vigentes. Nas próximas
dúvida, a sala de aula. Recordemos por um momento a história seções apresentaremos alguns exemplos que não esgotam o tema,
do ministro da Educação francês, que dizia a seus visitantes que nem incluem toda a variedade de propostas e experiências, po-
podia garantir que a determinada hora, em toda a França, os rém mostram como esta idéia da bondade da natureza da crian-
alunos estariam realizando determinadas tarefas. Essa unifica- ça foi concretizada em contextos e culturas muito diferentes e
ção e homogeneização do ensino, da qual o positivismo partici- de maneiras muito diversas.
pou ativamente, passou a ser o centro da crítica: se as crianças Talvez uma das figuras deste movimento mais conhe-
são .tão diferentes entre si, por que o ensino deve ser tão homo- cidas no âmbito internacional seja John Dewey (1859-1952),
gêneo? Os "escolanovistas" queriam que o ensino se adaptasse à filósofo norte-americano de grande influência na educação41 . Par-
naturez~ da criança. Há aqui uma mudança importante com re- tidário das idéias liberais, este pedagogo afirmou que a educa-
lação ª? conceito de naLUreza e de leis naturais da pedagogia ção deveria representar a vida atual e formar indivíduos abertos,
normahzadora que analisamos. Enquanto a pedagogia normali- empreendedores e inquisitivos, que sustentariam a vida demo-
zadora via nas leis naturais uma possibilidade de que a interven- crática. Para ele, a educação não deveria "preparar para a vida",
ção dos pedagogos sobre os professores e dos professores sobre como se esta fosse uma etapa ulterior, e sim ser um processo de
os alunos fosse indiscutível, os defensores da escola nova viam vida que deve ser tão real e vital como outras etapas.
na natureza infantil algo basicamente bom, flexível e variado, A base da educação deveria estar na criança, em suas
que deveria servir de base para a preparação da sala de aula. capacidades, seus interesses e suas disposições. Queixava-se de
Em sua grande obra sobre a escola nova, o pedagogo
Jürgen Oelkers afirmou: "A escola nova (Reformpadagogik) não foi 41 . Trobolhov no Universidade de Chicago ( 1894· 1904) e no Universidade de Columbio ( / 906.
1922). Escreveu vários livros. entre eles Demo<rocio e educação (/ 916). Meu credo peda·
uma reforma escolar, mas sim uma reforma do ensino" (Oelkers, gógico ( 1897) e Escola e sociedode ( 1899). Nesta último obro. conto o experiência que
1996, p. 166). Se até esse momento o ensino era pensado em desenvolveu em uma escola laboratório dependente do Universidade de Chicago. que é o
único experiência no qual colocou em prótico suas idéias pedagógicos (depois deu ou/os
torno de figuras como a criança pecadora que devia ser catequi- universitórios e nunca assumiu um cargo público).

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·IT \.
1 A l NVENÇ ÁO DA S ALA D[ A ULA
A SA LA DE AULA [M I DA DE DE (ASAI\ A TÃTIO ESCO L AI\ NO )( CUL O 20

que "(n)as condições atuais, uma parte excessiva dos estimulas e formas para resolver o problema. A solução estava em considerar
do controle provém do professor" (Dewey, 1967, p. 57). Em vez o conhecimento discipli nar como experiência acumulada da hu-
de dar visões acabadas e cristalizadas dos saberes alcançados pela manidade, como respostas sociais e históricas a problemas reais;
humanidade, o professor deveria "selecionar as iníluências que nessa medida, seria encontrado o elo de continuidade entre os
possam afetar a criança e ajudar a responder ad~quadamente a interesses e disposições dos alunos e o saber que a escola deveria
essas iníluências" (idem). O objetivo da educaçao era educar a transmitir. A relação entre autogênese (história do indivíduo) e
capacidade de imaginação da criança, baseando-se em seu~ inte- íilogênese (história da espécie) era de homologia: "quando um
aluno aprende fazendo, está voltando a viver mental e fisicamente
resses. Estes eram "sinais e sintomas da capacidade em crescimen-
alguma experiência que já se mostrou importante para a raça hu-
to", "representam a capacidade em forma de embrião( ... ) e o grau
mana; segue os mesmos processos mentais daqueles que origina-
a que está perto de alcançar" (idem, p. 63); e~ todos estes conc~1-
riamente realizaram essas experiências".
tos vê-se claramente a idéia de que a educaçao regula um organis-
mo vivo que cresce e se modifica, com tendências naturais que Em sua época, havia dois grandes grnpos com tendên-
devem ser canalizadas e ordenadas com flexibilidade. cias opostas na pedagogia norte-americana: aqueles que sustenta-
vam que o curriculum deveria estar centrado na criança, em seus
Dewey definiu a educação como "a reconstruçã~ con-
interesses e suas capacidades (G. Stanley Hall, W Kilpatrick), e
tínua da experiência". O modelo era o das ciências naturais, c~­ aqueles que acreditavam que o cu rriculum deveria ajustar-se às
jos procedimentos recorriam a hipóteses e provas_, em uma.esp1- finalidades e necessidades sociais (a formação da nação, o desen-
ral ascendente. O conhecimento escolar tambem devena ser volvimento industrial, como E. Ross e F Taylor). Dewey, pelo con-
estabelecido como provisional e sujeito à revisão. "Uma vez que trário, reformulou a questão da "criança versus cuniculum", de tal
(o saber) nunca pode levar em consideraç~·.o todas as c~.~ex~es,: maneira que ~ssa oposição tomou-se desnecessária. Ilustrou seu
nunca pode cobrir com perfeita precisão todas as c~nsequencias ~
1 argumento referindo-se a urna d::t ermir..:::r.:~ d:s._iµlina escolar. ",.;
(Dewey, 1966, p.151). O pensamento ocorre n~ zo.na c_r~pus­ geografia", disse, "não é apenas um c01~unto de fatos e principias
cular da investigação": é constituido de conclusoes h1potet1cas e 1
l que podem ser classificados e discutidos em si próprios; é tam-
de resultados incompletos.
O conceito central de sua pedagogia era a experiência.
Dewey perguntou-se: "Seria a experiência uma ql~estão pe:soal de
l bém uma forma na qual qualquer indivíduo presente sente e pen-
sa o mundo" (citado em: Kliebard, 1986, p. 70). Para Dewey, o
problema residia na aparente distância entre a forma com que a
natureza tal que estimulasse e dirigisse de forma merente a obser- i
'
criança vê o mundo e a forma com que o adulto o vê. "Para a
vação das conexões envolvidas(. .. )? Ou seria imposta de fora, e o criança, simplesmente por ser criança, a geografia não é, nem pode
cumprimento dos requisitos externos seria simplesmente pro?l~­ ser, o que é para aquele que escreve o tratado científico sobre
ma do aluno?" (Dewey, 1966, p. 153). Para Dewey, tal opos1çao · geografia. O cientista viveu exatamente a experiência que constitui o
entre interior e exterior era falsa e era preciso encontrar novas problema que deve induzir a instrução. (. .. ) Devemos descobrir o

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A 1NVENÇÃO DA 5 ALA OE Á ULA A SALA DE AULA [M 1DAO[ DE CASAI\: A TA 1l(A E SC O L AI\ N(' StCULO 20 ____;

que há dentro da esfera atual de exrperiências da criança (ou den- ceria a ponte que poderia harmonizar os fins individuais e sociais,
tro do espectro de experiências possíveis que possa viver facil- onde, no seu entender, situava-se o problema principal de qual-
mente) que possa ser chamado de geográfico" (idem, p. 70). Ne- quer teoria educacional (Kliebard, 1986, p. 73).
nhuma experiência estava predefinida e estabelecida como Durante alouns anos (1896-1904), Dewey dirigiu a
b
geografia. Por exemplo, se tínhamos um hectare de terra podería- escola experimental da Universidade de Chicago. Nessa escola,
mos considerá-la sob o ponto de vista geográfico, trigonométrico,
os nove anos de escola elementar eram divididos em três seções:
geológico ou histórico. O ponto de referência do indivíduo que
a primeira incluía crianças de 4 a 7 anos; a segunda, crianças de
olhava o território era o ponto inicial para qualquer tipo de orga-
7 a 10 anos; e a terceira, crianças de 10 a 13 anos de idade
nização lógica das características da área. Para Dewey, a primeira
(Kliebard, 1986, p. 72). O plano de estudos continha três gran-
questão do currirnliim era "de que maneira, a partir da experiência
des áreas: educação manual, história e literatura, e ciência. A
básica original que a criança já possui, o conhecimento completo
educação manual representava uma oportunidade para "cultivar
e maduro da consciência do adulto é conquistado de forma gra-
dual e sistemática" (idem, p. 70). o espírito social" e "oferecer à criança motivos para trabalhar de
maneira efetivamente útil para a comunidade à qual pertence''.
Desse modo, para superar a dualidade entre indivíduo Poderia, além disso, tornar-se ponto de partida para a reflexão
e sociedade, Dewey imaginou um cuniculum que repetisse os disciplinar e científica: "A cozinha, por exemplo, é um caminho
estágios ou épocas da humanidade, e que estabelecesse em tor- natural para chegar a fatos e princípios químicos simples, po-
no dê um eixo integrador todos os conhecimentos estruturados
rém fundamentais, e ao estudo das plantas que nos fornecem
que fossem necessários. Este eixo seria composto pelas "ocupa-
produtos comestíveis (citado em: Kliebard , 1986, p. 72). O tra-
ções". E a idéia de ocupação não se refere apenas a formas de
balho de carpintaria não tinha por objetivo desenvolver as habi-
trabalho, mas também a fo rmas de vida da humanidaJe: colhe-
lidades de usar o serrote e o martelo, mas era uma excelente -
rlnr:::, agrária, pastoril, industrial. "As ocupações", afirmou Dewey,
oportunidade para - "culti~ar ui-n genuíno sentido do número"
"determinam os principais modos de satisfação, os padrões de
sucesso e fracasso. Desse modo, fornecem as classificações e de- (idem, p. 72). Os conhecimentos sobre química e aritmética se-
finições de valores operantes(... ). O conjunto de atividades e de riam compreendidos de maneira mais clara se as crianças perce-
ocupações é tão importante e permanente que mantém o esque- bessem primeiro de que modo esses conhecimentos se tornaram
ma ou o padrão da organização estrutural. de traços mentais" uma necessidade urgente para a raça humana.
(citado em: Kliebard, 1986, p. 73). A compreensão das ocupa- O historiador Herbert Kliebard relata esta experiência
ções fundamentais de uma sociedade implicava também uma detalhadamente: "Esperava-se que as disciplinas escolares con-
maneira de entender outros traços de uma cultura: a arte, a reli- vencionais evoluíssem a partir destas ocupações sociais - como
gião, o matrimônio, as leis. Para Dewey, então, um curriculum plantar alimentos, construir um abrigo e confeccionar roupas - ,
elaborado em torno das ocupações sociais fundamentais forne- mas com um sentido mais vital e construtivo do que aquele ex-

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A 1NVENÇÃO DA SALA DE A ULA
A SA LA DE A ULA EM I DADE D[ CASAI\. A TÃíiCA ESCOL AR NO S(CULO 20
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presso no curriculum tipico. Esperava-se, por exemplo, que a zadores e de management, que também eram encontrados na pe-
aritmética surgisse das atividades na cozinha". "Em um amplo da.gogta norte-americana. Embora Dewey propusesse wna série de
relatório realizado pela professora de cozinha, Miss Scates rela- p.nncípios e idéias organizadoras associadas à questão da democra-
tou que as frações 1/3, 2/3 e 3/3 e a razão 1:2 estavam incluídas c1~ ~ .do desenvolvimento das pessoas, outras pedagogías pliolizaram
no cozimento de copos de arroz e de farinha, embora tivesse a ideia de que as técnicas neutras, dentro de uma escola tida também
notado que 'o experimento não tinha um grande êxito em pe- :orno Ltm. sistema neutro, poderiam atender mais satisfatoriamente
quena escala' ". "(. .. ) Em 1900, por exemplo, o grupo V testou as nec~ss1~ades do governo, da sociedade industrial e das clianças. O
sementes que seriam utilizadas mais tarde no jardim, para deter- behavtonsmo,. urna psicologia que teve seu auge após a Segunda
minar qual porcentagem germinaria na primavera (Group V, Guerra Mundial, representa um extremo dessa concepção, se-
1900). Em uma aula de história conduzida por Miss Camp, por gundo a qual aqueles que aprendem não são vistos como pessoas
meio de um trabalho na cozinha, as crianças descobriram as van- qu~ tenta~: erram e. refletem, e sim como pessoas que reagem a
tagens do carvão sobre a madeira no processo de cocçào (Group esttmulos Ja determinados e ordenados. Os behavioristas acha-
V, 1900)". "Em outro grupo, as crianças que haviam criado uma vam que o ideal docente era a máquina de ensinar, derivando
história sobre uma tribo que deixou suas cavernas e que estava desse conceito o caráter tecnicista que lhe foi conferido. Entre-
descendo o rio expressaram o desejo ele utilizar a argila corno os tanto, antes do behaviorismo - que não é considerado inte-
índios em sua história, e começaram a experimentar os usos da grante do movimento "escolanovista" - su rgiu uma série de
argila". (. .. ) As crianças foram convocadas a avaliar seu próprio propostas na pedagogia norte-americana onde se retornava a idéia
trabalho manual como um aparente clímax do esforço de envol- das "técnicas j~st~s", neutras e do docente como uma espécie de
vê-las não apenas nos momentos de planejamento da atividade, manager especializado, não associado à idéia de democracia. A
mas também em sua conclusão. O filho de Dewey, Fred, de 9 seguir veremos, de maneira sucinta, duas destas propostas.
anos de idade, por exemplo, declarou: 'Fizemos uma tenda de
índios. Minha tenda não estava bem-feita. Eu não seria um bom Os tecnicistas mais neutros, mais ligados às "necessida-
índio. A tenda de Harper era muito boa. William também tinha des" da indústria, à formação de homens empreendedores, etc.,
uma tenda boa. Ontem procuramos um fio no joelho de uma co~plementavam o que as orientações de Dewey, de acordo com
ovelha. Encontramos. Era o tendão' (University Primary School, muitos ~ocentes, não ofereciam: técnicas. Por isso, junto com a
1896)" (citado em: Kliebard, 1986, p. 75). P~~agog1a e os princípios orientadores de Dewey, houve toda uma
sene de pedagogos que introduziram e praticaram diversos méto-
1f
[
A postura de Dewey com relação à pedagogia e à orga- ~os p~ra fazer da sala de aula um espaço para o desenvolvimento
nização da sala de aula não se tomou a forma de ensino predo- mfanttl. Uma das propostas mais conhecidas foi a de William Heard
·''
minante das escolas norte-americanas, que se voltaram para o Kilkpatrick (1871-1965), que baseou sua didática na idéia do tra-
behaviorismo (condutismo) - uma corrente psicológica tecni- balho .em pequenos grupos, como urna forma que equilibra as
cista que expressava os fortes elementos tayloristas, racionali- necessidades individuais - a criança real e suas necessidades não

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205-. .
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r A I NVEN ÇÃO DA SALA DE AULA A SALA DE A ULA EM I DADE DE CASAI\: A TA1 1CA EscOLAI\ NO StcuLO 20 •

1 se perdem na "massa" da classe-, mas que, ao mesmo tempo,


não isola a criança de seus companheiros, não leva a uma indivi-
trabalhava com seu material, como havia sido combinado em
seu contrato de aprendizagem, ou quando os grupos trabalha-
dualização extrema. Diante de outras propostas mais radicais e vam nas atividades que Washburne denominou desenvolvimento.
conseqüentes, que pretendiam dar às crianças o poder na sala de Assim como Dewey criticava a escola que preparava para a vida,
aula e que queriam que os pequenos grupos se auto-organizassem, pois isso significava que a própria escola não fazia parte da vida,
Kilkpatrick opôs-se e manteve certa centralidade do docente , no as propostas de sala de aula de diversas atividades pareciam con-
mínimo como organizador. Kilkpatrick desenvolveu esta teoria vergi r para a idéia de que na sala de aula não se percebia que se
em "O método de projetos" (1918), onde conceitualiza uma série estava na sala de aula, pelo menos não na sala de aula tradicional
de experiências que muitos docentes, predominantemente urba- que todos conhecemos. Embora essa forma rígida da sala de aula
nos, estavam realizando (Knoll, 1994). parecesse dissipar-se um pouco, a sala de aula subsistia. Entre-
tanto, o que se observa nestas propostas é o lugar central ocu-
A professora Ellen Parkhurst também propôs um siste- pado pelo "técnico", visto como algo geral, aplicável a muitas
ma que, de certa maneira, desestruturava a sala de aula tradicional.
situações; em suma como algo racionalizado.
Sua proposta - conhecida como o projeto Dalton (onde estava
Embora o contexto de crescimento rápido nos Estados
localizada sua escola)- ajustava o "ensino" ao ritmo individual de
cada aluno. Fora da sala de aula - espaço coletivo por excelência Unidos constituísse a base para o aparecimento ele diversas pro-
postas para a produção de uma sala de aula que se adaptasse à
- o aluno era livre em sua atividade e fazia um "contrato" com o
natureza dos alunos, na União Soviética, país que se tomaria
professor sobre qual seria seu ritmo de aprendizagem, quanto tempo
"inimigo" dos Estados Unidos, novidades desse tipo também
iria dedicar-se a uma ou outra tarefa. O único limite era o ano
foram produzidas e adaptadas. Durante a década de 20, a nas-
escolar. Outra forma de individualização foi proposta por Carleton
cente União Soviética foi um espaço para centenas de experiên-
Washbume, em Winnetka, nas vizinhanças de Chicago. Washbur-
cias pedagógicas novas, um tanto caóticas, porém repletas de
ne propôs um programa mínimo para os alunos, que constava de
interesse, pois mostram a dificuldade que as grandes reformas
atividades relacionadas aos conhecimentos tradicionais, e um "pro-
às vezes encontram. Durante essa década, os pedagogos russos e
grama de desenvolvimento", constituído por atividades em grupo,
ucranianos analisaram as propostas da escola nova para tentar
de caráter mais criativo Uesualdo, 1945). modificar a antiga, ineficiente e pouco abrangente escola russa
Em todas essas propostas aparecem elementos novos: do czarismo. Embora estes pedagogos tivessem orientações muito
para o trabalho em grupo intercalado com aulas era necessário diferentes - uns aboliram o sistema de notas, outros criaram
poder deslocar as carteiras. Desse modo, as carteiras parafusa- repúblicas infantis, outros aplicaram testes, etc. - , todos estive-
das no solo eram consideradas inimigas dos movimentos de re- ram muito envolvidos com a questão de como seria possível in-
forma . Mesmo assim, a posição central do docente parecia di- tegrar a aprendizagem e a atividade - e atividade por excelên-
luir-se intermitentemente, por exemplo, quando uma criança l cia era o trabalho. Tratava-se de fazer com que as crianças não só
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1 ~L_ _ _ _
A 1NVHIÇÃ O DA SA LA Df A ULA
A SA LA D[ A UL A [ MIDA DE D[ (AS Afl A TA rt CA E><OL.4 ~ NO SíCUL O 20 1
as também que, por meio de sua própria
soubessem trabalhar, m funcionam os sisLemas eco- resses das crianças com relação ao mundo, e não na imposição
d. entendessem como ...
apren izagem, . . deles de maneira igualttana. dos conteúdos do mundo nas mentes das crianças (Carbonel!
nômicos e que pudessem parttc1par . 1d la Sebarroja, 1978, pp. 11-1 2). Os planos de estudo de 1923 suge-
Isto supunha mudanças fundamentais para a sa a ~ au .
riam aos professores que utilizassem o método dos complexos.
Pavel B1on1<lJ.. (1884-1941) foi um elos mais· míluentes
· [ E Os soviéticos pensavam que se as disciplinas desaparecessem
pedagogos do tra bª lho dessa época. Em sua· obra pnnc1pa d d, · s-
· como matérias e fossem substituídas por problemas, o método
d . l (1919) estabelecia que o ver a euo também deveria superar as características separadas, fragmentá-
cola do Trabalho In udstna . " , caminho que vai do cérebro,
... d ·no evenaser o . rias da pergunta de forma catequista, e dedicar-se a observar as
pnncip10 ol ens1 -
Ih até às maos e vice-v . ersa" (citado em: Anwe1-
relações entre as coisas. Esta superação da fragmentação é obser-
passando pe os o osl k'. ôs dividir a educação elementar
ler, 1978, P.· 1~2). B on lJ ;~~!ada em torno do jogo infantil, e
vada no caso do método dos complexos, que se define como
"um determinado procedimento científico no qua l o estudo das
em uma pnmeira fase, org . d 'd de na qual as
d f artir dos olto anos e i a , coisas e dos fenômenos não é visto de maneira isolada, mas em
em uma segun
.- a as~,ª Pa conhecer as máquinas e os mecanis-
ndenam suas relações recíprocas, em sua totalidade e em sua dependên-
crianças
1. dJª apre u func10namen. to. lsto é, não apenas propôs cia mútua" (citado em: Anweiler, 1978, p. 269). Nesta proposta,
mos iga os ao se . everia ser o mais importante - a criança era "sua Majestade", uma vez que a seleção e a organi-
uma .sala de aula on~e o~~~~~ dos bancos, a centralidade do zação dos conteúdos - e também seu modo de apresentação -
mudando-se com e e ª . t global _ como tam- deveriam ser criados apenas a partir das "leis de desenvolvimen-
. predommantemen e ,
docente e o ensino da sala de aula: o lugar onde se apren- to e de crescimemo da criança" (idem, p. 270).
bém desdobrou o espaço
. d fase era uma o tema
r· . de trabalho onde se traba-
"As mudanças metodológicas que se pretendia conquis-
dia na segun ª ssão dos ritmos econômicos.
lhava de verdade, embora sem a pr~ o ensino e a comunicação tar implicaram também uma nova organização do trabalho do
Blonkij acreditava q~e desta ~:t~:~:-se à natureza infantil, que
ensino. O sistema da 'classe' tradicional deveria se tornar flexí-
no espaço da aprendizagem ªJU Ih d . ,, vel através do ensino do grupo·, que não era definido por icbcle.
.
caractenzava como "impulso para o traba o pro uttvo . e sim por um interesse comum. Outra forma de flexibilização da
de Blonkij era representativa para esses classe tradicional era a proposta de que o trabalho escolar fosse
A proposta - . d o a Nadheza Krupskaia deslocado da sala de aula, 'onde as crianças recebem as respos-
pedagogos. A esposa de Lenm, a ?e ag ;ovos lan~s de estudo tas já preparadas de um livro', e fosse centralizado mais em labo-
(1869-1939), afirmava, com relaçao ao~ . p -no uai
e sua base deveria ser o ensmo mtegrado ~
ratórios ou oficinas, 'onde as crianças aprendem o novo e o des-
de 1923, qu . . disci linas e a atividade é orgamza- conhecido'." Dessa maneira, o docente passava a ser um
desaparecem os hmJtes das p . d a· to·gica de círculos "coordenador do trabalho de investigação realizado pela crian-
1 etos _ assoCia o
da por p.rob emas concr do ela deveriam iniciar com os inte- ça" (Anweiler, 1978, p. 273). Mais uma vez, deparamo-nos com
concêntncos - que, segun ' .
a sala de aula saindo de seus limites, pluralizavam-se suas ins-

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.
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A 1NVE NÇÃ O DA SALA DE A UL A
A SA LA DE AULA EM I DADE DE (A SA f\ · A TA1 1(A ESCO LAf\ NO St CULO 20

tâncias (laboratório, oficina) e tentava-se descentralizar a figura dente e descendente (ajuda para os mais fracos! Exercício de
daquele que ensina. Via-se inclusive com maus olhos o apren- leitura!); uma menina propõe nomear os números que se encon-
der a partir dos livros, pois se pensava que fosse uma aprendiza- tram entre os múltiplos e dizer qual é o múltiplo corresponden-
gem dogmática, com verdades predigeridas que impediriam a te abaixo do mesmo; 60!, diz uma menina; as outras respon-
criança de participar ativamente e de criar sua própria aprendi- dem: 57! (múltiplo de 19 imediatamente inferior a 60). As
meninas propõem outros números e, em seguida, propõem di-
zagem. Como no caso dos seguidores norte-americanos da esco-
zer não apenas o múltiplo imediatamente inferior, mas também
la nova, observamos aqui a tendência de que a sala de aula não
o superior; propõem também escrever os resultados para que
deveria parecer uma sala de aula. Esta tendência inclui a idéia de
não os esqueçam; uma aluna propõe conta1r 'histórias de calcu-
que a sala de aula, como estrutura, dificultava a aprendizagem.
lar' nas quais se utilize a série de múltiplos de 19 em determina-
Estas experiências soviéticas chegaram a seu fim com o stalinis-
dos problemas; a classe faz a pergunta e elabora a resposta, por
mo e sua política autoritária e centralizadora: em 1931 o Partido
exemplo: Era natal e tínhamos 57 nozes na árvore de Natal; ma-
Comunista da União Soviética sancionou lei na qual a aul~ e a mãe precisava dividi-las entre os 3 filhos; quero saber quantas
exposição global-frontal deveriam voltar a ser os métodos dese- nozes cabem a cada um. Outra menina responde: A cada um
jados para uma sociedade que se tornava rígida (Bowen, 1985). cabem 19! (. .. )As meninas definem por si mesmas suas lições de
Vimos que ganhava terreno, dentro de sistemas com- casa" (aprox. 1910, citado em: Dietrich, 1969, pp. 34-35).
ple~amente diferentes - como na emergente Rússia soviética e Neste exemplo de um protocolo de aula publicado em
nos Estados Unidos-, a idéia de que o centro da sala de aula uma revista da escola nova alemã, é possível ver outra forma
deveria ser a natureza infantil. As propostas não eram tão radi- pela qual a sala de aula modificava em parte sua estrutura de
cais em todos os casos, mas a pedagogia sentia que a forma de comunicação: as meninas deviam desenvolver a aula em função
interação da aula deveria ser outra. Vejamos um exemplo de 191 O, do objetivo estipulado pela professora. Esta lhes dava assistên-
de uma professora alemã da escola nova, Kãthe Lingner, para cia, escrevia no quadro negro, fazia poucas perguntas, parecia
uma atividade em matemática para crianças de nove anos: fazer retirar-se do processo de comunicação da sala de aula. Entretan-
operações aritméticas com séries de números, todos múltiplos to, nesta estrutura a sala de aula parece mais visível: o quadro-
de 19. A professora propõe: negro, as meninas sentadas em grupo e a atividade sem a utiliza-
"Vamos conhecer a série do número 19! Cada etapa do ção de livros, mas focalizada em uma única tarefa. Esta cena,
esquema de trabalho deve ser liderada pelas alunas organizadas também considerada corno escolanovista, não tem nada a ver
em grupo; uma aluna levanta-se e diz: precisamos armar primei- com a utopia dos comunistas segundo a qual a cena do ensino
ro a série de múltiplos; em seguida, cada criança diz µm múlti- acontece na fábrica. A desestruturação também não vai tão lon-
plo e o docente os escreve no quadro negro, iniciando pela parte ge ao ponto que cada aluno aprenda individualmente em seu
inferior do mesmo; repetem-se os números de maneira ascen- próprio ritmo - corno na proposta de Ellen Parkhurst - ou

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~ \ A \H VEHÇÀO DA SALA DE A ULA
A SALA DE AutA EM IDADE DE CASAI\ A TA r1cA EscOLAP NO St cuLO 20

cientes, e para isso interou-se da tecnologia de medição que a


"matérias" - como no caso antropologia positivista italiana, particularmente bem-desen-
- heça a presença de ·- . d -
q ue nao se recon . . k Nesta expenencta a pro volvida, havia criado. Um princípio de seu trabalho na época
. t s de Kilkpatnc . . d
do método de proJe o ue alguns princípios a es- foram as correlações entre o corpo e a mente dos mentalmente
. . pode-se ver q
fessora Kathe Lmgner, ço que no entanto, mos- atrasados. Uma proposta de exercícios físicos era, então, um
. dos a um espa ' .
cola nova foram mtegra l um sentido muito mais requisito para o progresso mental. Sua insistência na pedago-
ala de au a em . l
trava-se como uma s . d de de propostas da esco a gia científica era constante. Propunha que seu fundador - o
da grande vane a d.
tradicional. Dentro d t uturar a sala de aula tra i- médico francês Itard, que tratou no início do século 19 um
. - fase em eses r .
nova, houve muita en d. . al em devolver à cnança menino lobo da localidade de Aveyron, na França - permitiu
l d0 docente tra ioon ,
cional e o pape .d de porém todas estas propos- a determinação de um programa de reeducação com a sistemá-
. . espontanei a ,
sua inicianva e sua lºd de do que se passava na tica adequada. Dentro do espaço biológico, a utilização que fez
lhe a centra i a
tas tentaram outorgar· de conceitos foi seletiva para a fundamentação da plasticidade
sala de aula. . ade não significa que não hou- da criança. Desse modo, por exemplo, os conceitos que defi-
Entretanto, esta ce.ntrahd o muito influente de pe- niu como relevantes foram os de mutação e metamorfose, e
. d · fluênoa Um grup não os da genética e da imobilidade da herança. Assim. o cres-
ve formas suns e m . ue tentaram estruturar uma
s à escola nova. q .. .d. " cimento visto como mutação, como mudança, converteu-se na
dagogos pertencente . f os chamados me icos .
a cnança oram ( 870
sala de aula centradª n . '. Maria Montessori 1 - base de sua proposta de sala de aula.
. . l te da ita1iana d
Trata-se pnncipa me~ . écrol (1871-1932}, ambos estu a- Suas primeiras experiências na educação infantil de
1952) e do belga Ov1dio D y t s de trabalho na sala de "crianças normais" foram patrocinadas por maçons, radicais e
d l eram propos a
raro medicina e esenvo v h ·mentos sobre o crescimento socialistas, para quem a infância trabalhadora tinha-se converti-
. d seus con eci b do em objeto de preocupação. Em 1905, essa coalizão gover-
aula relaoona as aos b lh pode-se ver uma nova a or-
. Nesses tra a os · nante no município de Roma encarregou-a - dentro de um
natural da cnança. . . normalizadores hav1am es-
a pedagogia. os .
dagem interessante n ·r
· d s dt erenças ex
i·stentes entre as cnanças
·
amplo trabalho de remodelação do bairro operário de San Lo-
tabelecido que muitas a d "anormalidade". Neste senn- renzo - da organização da primeira "Casa das Crianças". Com
eram en[ermt·dades, problemas e . do nos médicos . para pro- esta iniciativa, Maria Montessori estava articulando três deman-
. d t"nham-se apota
do os normahza ores t l ·r· ções das crianças. Tanto das: a realização do discurso iluminista-maçon de melhoramen-
, .. d troles e c asst tca to social através da educação, o problema - caro aos radical-
<luzir uma sene ~ con Ovídio Décroly mostram-no~ qu~ a
socialistas - da infância trabalhadora, e a condição da mulher
Maria Montesson . .
como d
· a pe agogta
. de uma maneira dife-
dº . a podena mtervu n trabalhadora, que necessitava de espaço para cuidar de seus fi-
me tem d elos normalizadores. lhos. A iniciativa ampliou-se rapidamente. Em 1908, a "Socie-
rente daquela pensa a p . . lher italiana a termi-
Maria Montesson,
. a pnme1ra mu d cação de de r·t- dade Humanitária" de Milão, integrada por liberais-maçons e
e medicina, trabalhou na ree u
nar os estudos d
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A IN VENÇÃO DA SA LA DE A ULA
A )ALA DE AU LA [M IDADf Df (ASAI\ · A l à llCA ESCO LA!\ NO StCULO 20

socialistas, inaugurou a primeira "Casa das Crianças" no norte dicional, que não considerava essa centralidade dos sentidos,
da Itália. A partir de então, e principalmente com a publicação Montessori elaborou exercícios para cada um desses sentidos
de seus livros em 1912 e 1913, Montessori alcançou fama mun- que se divulgaram rapidamente. Além disso, Montessori ideali-
dial (Bowen, 1985, pp. 500-501 ). zou toda uma série de materiais, blocos de construção e formas
geométricas que ainda são utilizados atualmente em muitas es-
Se, por um lado, vimos que Dewey e os norte-americanos
colas. Nesta proposta, o papel do docente restringia-se à função
seguidores da escola nova associavam suas novas propostas de sala
de "orientador das experiências de aprendizagem" que as pró-
de aula com o individualismo, e que os soviéticos queriam reformar
prias crianças deveriam realizar. O docente, tal como aconteceu
a sala de aula em função da criação de uma nova sociedade, no caso
com a sala de aula, parece afastar-se um pouco da situação edu-
de Montessori, a intenção era outra: "Com certeza virá o dia em que
cacional. Do mesmo modo que afirmava que a mente absorven-
a professora perceberá, com grande surpresa, que todas as crianças
te da criança era diferente da mente adulta, Montessori dizia que
a obedecem como cordeirinhos e que não só estão preparadas quan-
o espaço edLtcacional da criança deveria ser um espaço simplificado,
do a professora manda que obedeçam, como também esperam que
onde as contradições e a multiplicidade da vida exterior deveriam
isto ocorra(. .. ). Aexperiência nos ensinou isto, e a disciplina conse- ser atenuadas. Explicam-se, desse modo, a construção de um
guida como que por forças mágicas produz uma impressão muito mobiliário com as dimensões adaptadas para a criança e a sim-
boa nos visitantes da casa das crianças" (citado em: Gõhlich, 1993, plificação de todas as barreiras fís icas do espaço educacio-
p. ll 4). Parafraseando a vovó de Chapeuzinho Vermelho, Montes- nal. A sala do jardim da infância como a conhecemos hoje tem
sori quer reformar a sala de aula para "disciplinar-te melhor". muita influência dessa pedagoga. O sucesso do método baseava-
Entretanto, sua estratégia pedagógica era complexa e se na complementaridade do espaço reformulado da sala de aula
distanciada da disciplina tosca, catequista que vimos na escola e dos materiais didáticos fundamentados em momentos especi-
moderna até este momento. Considerava que uma educação sen- ficamente sensíveis da criança a determinados estímulos. Essa
sorial era a base de qualquer ensino. Entretanto, não se tratava dependência fazia supor que esses materiais garantiriam a curiosi-
de fazer da criança um ser dependente de suas sensações, mas dade e o interesse da criança mediante a determinação científica
sim fazer com que esse domínio lhe permitisse a liberação de dos periodos de sensibilidade. Ou seja, a medicina diagnosticava
sua criatividade e de sua verdadeira espiritualidade. Inclusive, em que momento do crescimento um sentido era particularmente
determinava Montessori, a questão da "auto-educação" somente sensível à influência educacional, e os métodos tentavam exerci-
é possível após esse desenvolvimento, que, uma vez que siste- tar esses sentidos por meio dos materiais, mais do que por meio
matiza as imagens nas crianças, libera suas capacidades huma- do docente. Como vemos, a estratégia conservadora de Montes-
nas. A esse respeito, a insistência nos aspectos sensório-motores sori - que na década de 20 dedicou-se a questões mais tradici-
da infância conspirava contra a ordem e a passividade das esco- onais, como a inclusão da missa e da oração na sala do jardim da
las tradicionais. Para fazer frente a esta tendência da escola tra- Infância - é complexa. Como médica, compreende muito bem

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(
1
A I NVENÇÃO DA SALA DE AUL A A SA LA DE AULA EM IDADE DE CA SAI\ A TA rtcA E scot .H\ NO StcuLo 20 !
.. a educação e o entorno pedagógico
que, para serem ehciente_s, 1 . de crescimento da criança, entre Embora também fosse médico, o belga Ovídio Décroly
não podem se contrapor as eis apresentou uma proposta de sala de aula diferente daquela apre-
· ·dade42 ·
as quais está a auv1 sentada por Montessori. Se Montessori separava um exercício para
materiais estruturados, o docente que cada sentido em particular (para a visão, para o tato , para a audi-
. Entretanto,
· ção de um munelo completamente a parte,
os . que ção), método que se denomina analítico, Décroly contrapunha uma
comge e a mven dulto produzem um movimento cunoso: por proposta de globalização das Junções mentais supeliores, juntam.ente
d
imita o mun o a fazer ' desaparece r a sala de aula como estru-1 com uma teoria particular dos interesses. Neste sentido, sua propos-
um lado, procura-se se tambe'm a diluição do pape ta respeitava a aproximação global sincrética que as crianças apre-
b 1f tal- procura-
tura rigida glo a -e ronfator' d eterm1·nante sej· a a relação da criança sentam em relação às diversas áreas da experiência. A globaliza-
d 0
do ocente, e qu . ça- com os docentes e com ção questionava a seqüência pela qual se devia passar do concreto
.l ão sua comunica 0 - d
com o matena , e n . ndo-se a esta intençao e ao abstrato, do simples ao complexo, da pane ao todo , e determi-
P tro lado porem, opo .
seus pares. or ou . . '. l da sala de aula , Montessori ena um
. t art1hc1a nava outra aproximação da criança à realidade, que desmentia
dissimular o cara er .r· . 1que parece natural para as essa linearidade. Décroly dizia que a criança visualiza em primei-
h. tificial tão aru tCla
ambiente 1per-ar ' d deiras pequenas só existe na ro lugar as totalidades, ainda que de maneira caótica; mais tarde,
undo rep1eto e ca -
crianças: um mmbora a au la tra d. 1 .
c10 nal deva desaparecer, este e o descobre os elementos, e em seguida pode voltar à totalidade,
d 1 E
sala e au a. _ as_ propostas soviéticas: enquanto desta vez compreendendo-a melhor, pois já compreende suas par-
om relaçao . a
ex~remo oposto c
1 . ginada pe os revo
l lucionários russos devena . ser
tes. Entretanto, para que isto ocorra, a sala de aula deve estar or-
sala de ganizada de tal maneira que a criança se interesse por essas totali-
. au a imavida real - e como Vl.da entendia-se princ1pa - 1-
dades (Abbagnano e Visalberghi, 1980, pp. 667-669).
parecida com a abalho e do processo de produçao -, a
mente o mundo do tr ndo à parte totalmente sepa- O curliw /um dos centros de interesse parecia claramente
d M oricria um mu '
proposta e ~ntess . . temas aos muros da escola. Montes- detem1inado por questões -a.ssor.iadas à n.ec~s.:.:d::lde, 2 bicilnp,i,1
rado das questoes sociais ex 1d falsa avó de Chapeuzinho Décroly argumentava que o interesse ge:1L1ino estava relacionado
sori cumpre bastante bem ºrpape
lh "D sa forma a re arma
s:gue
sempre o mesmo prin-
. -
com a satisfação das necessidades infantis e, devido à sua formação
Verme o. es ' . d -o do entorno pedagógico a particular em medicina, dizia que eram quatro essas necessidades:
cípio: o princípio da perfeita~ apt:;~der com liberdade e auto- nutiir-se, restabelecer-se ou proteger-se, defender-se dos perigos,
criança, onde ela mesma p~ e ap as nem or isso menos efici- agir ou trabalhar, sozinho ou em grupo. Esta determinação apriorls-
atividade. Os efeitos são mdireto~~:Ores" (O:ikers, 1996, p. 180): lica constituía a pedra fundamental da definição curricular. Desti-
entes e tampouco menos mampu ,
tuíam-se as disciplinas tradicionais, organizando-as de acordo com
por
,, Montessori foi enun<.iodomeio
estas quatro necessidades fundamentais, e dava-se maior impor-
- -- . - didótico no solo de ou/ove
42. Uma boa formuloçõo do s1tuoçoo. docente e ô importôncio do oprendizogem por ' ' tância às atividades de expressão. Por isso, para Décroly, a sala de
Jü~gen Oelkers. Frente ô difuso figuro . I é o método" (1996. p. 180). r
"mau·· ·o meteria
00 moteriol. Oefkers º''~ . aula era organizada em tomo de "centros de interesse", diferentes
1

..- 216
2 11 :
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1
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A 1 NVENÇÃO DA SA LA Df A UL A
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1
1
A SALA Df AULA EM I DAD E DE C ASAI\
1
A H11cA EscOLAf\ NO StcuLO 20

para cada idade, a partir dos quais sucediam-se as etapas de obser- mático que a escola urbana, ou seja, a escola mais ligada à moderni-
vação, associação e expressão. O que se instituiu com os centros de dade e à "civilização industrial", tenha sido iníluenciada pela escola
interesse foram os famosos "cantos" na sala de aula, que já estavam nova, inclusive em nosso meio. Assim como observamos que o tra-
de alguma maneira presentes em vários estabelecimentos, inclusive balho industrial se racionalizava medindo as tarefas, apostando em
em algumas escolas lancasterianas (Gõhlich, 1993, pp. 128-129). um saber que se acreditavã ir além das questões sociais e políticas, e
Cada canto da sala tinha elementos e funções distintos; a sala de que se via como neutro, a "técnica pedagógica" (termo muito utili-
aula parecia fragmentar-se um pouco em diversos momentos que zado pela escola nova) tendia a ser iníluenciada por essas mudanças
transcorriam em ambientes diferentes, e não era mais uma repeti- no mundo do trabalho. Na sala de aula, isto significava que "duran-
ção constante de UM método em UM espaço homogêneo. Embora te o processo de aprendizagem, as diferenças entre os alunos e o
a obra de Décroly não tenha a repercussão internacional consegui- professor desaparecem gradualmente, alcançando-se um mesmo
da pela obra de Montessori, várias de suas propostas foram adota- nível de compreensão da vida. A escola, dizem, deve educar para
das pelos sistemas educacionais belgas e franceses. Suas obras fo- a vida. A pedagogia da escola nova brasileira é, portanto, uma
ram traduzidas muitas vezes e seu impacto chegou à América Latina, psicologia, ou melhor, uma psicopedagogia. O professor nunca
principalmente Chile, Uruguai, Brasil e Argentina. reprime, e sim cria áreas de consenso, valorizando os interesses
No caso do Brasil, onde a escola nova teve grande impac- individuais, convertidos em centros de aprendizagem. Adminis-
to, Carlos Monarcha observou uma relação entre o processo de cres- tra as tensões e os conflitos individuais e coletivos típicos da vida
cimento e urbanização e a expansão destas propostas: "o escolano- em sociedade" (idem, p. 23).
vis~o brasileiro expressou a emergência de urna nova sensibilidade Não é por acaso que os escolanovistas argentinos, mui-
diante do caos da cidade e da era da máquina: tomando-se compa- tos dos quais bastante preocupados com novas formas de ordem,
tível com os princípios da economia de mercado: produtividade, tenham aceitado muitas das idéias de Montessori - que visitou
disciplina, circulação, procurando homogeneizar a cultura e elimi- nosso país em 1926 - e de Décroly. A reforma de planos de estu-
nar os laços pessoais, propondo a construção de urna sociedade do das escolas primárias argentinas de f936 invocava explicita-
aberta, em um movimento semelhante a uma revolução de cima mente o nome de Décroly como base (Ghioldi, 1936) e suas pro-
para baixo" (Monarcha, 1989, p. 24). Ou seja, já não se pode con- postas foram aceitas por muitos destes escolanovistas, mais
seguir a criação de urna ordem social com as velhas armas da cate- conservadores. Por exemplo, urna idéia de Décroly importante para
quese, a disciplina sobre os corpos e os métodos de governo da sala os escolanovistas argentinos era que o interesse da criança, elevado
de aula, provenientes de uma época em que a dinâmica da socieda- a elemento central para organizar a sala de aula, poderia ser fixado
de ainda era muito diferente. Nessa época em que os operários se antecipadamente "de maneira científica". Décroly organizava sua
organizavam, as mulheres protestavam para que seus direitos cívi- sala de aula baseando-se nesses quatro interesses vitais, que eram
cos fossem reconhecidos, os pacifistas levantavam-se contra as guer- os mesmos para todas as crianças. Nesse sentido, o "interesse" das
ras, etc., faltavam outras formas de governo. Por outro lado , é sinto- crianças considerado dessa maneira abstrata talvez não tivesse re-

.-• 218 219-. .


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f
1\
1 A 1NVENÇÃO DA SALA OE AULA
A SA LA DE A UL A EM IDADE DE CAS AI\ : A TA11cA EscoLAI\ NO StcuLO 20

tos: era mais higiênico (relembremos o relato que abriu este capí-
\ação com os interesses concretos das crianç~s da década de 30.
tulo sobre as cuspidas para limpar a lousa, e o pó de giz que ainda
Ou seja o conceito de interesse parecia inquietante, porque da~a
é utilizado para escrever no quadro negro), pennitia o acúmulo e
muito 'oder à criança para decidir na sala de aula sobre co~t.eu­
o registro de dados sobre as tarefas escolares ao longo do tempo e
dos rit~os fonnas de adqui1ir conhecimentos, etc. Ao classificar
tornava mais fácil a análise do processo de aprendizagem como
o i~teresse 'antecipadamente para todas as c1ianças em to~las as
uma atividade sustentada em uma série temporal. Entretanto, sur-
situações, Décroly permite vê-lo como uma am1a para a m em. giu, além disso, a idéia do caderno único: em vez de um caderno
Um bom exemplo desta corrente - que c.ons1dera o para cada matéria, haveria um caderno que unificaria e simplifica-
. ula como fonna de cnar uma or- ria a interação entre professores e alunos (Gvirtz, 1997, pp. 45 e
crescimento das cnanças e o reg l h' - . do
l d au a - é a 1stona
dem estabilizadora no governo ª sa ª e
d . . -· ss.). Além disso, Rezzano, como bom escolanovista, deu ênfase às
caderno escolar, estudada recentemente por Silvi~a Gvmz. Aideia atividades do aluno: o caderno deveria ser um "caderno do fazer",
cio caderno escolar único - embora já tivesse s1do propost.a no que permitisse constância naquilo que um aluno aprendia e era
Dictionnaire de Pédagogie de Buisson (1882), ao qual nos. ref~nmos capaz de realizar. Gvirtz analisa como o caderno passou a ser o
. t fo'1adotada nas escolas argentmas devido a pres- centro de interesse de professores, diretores e inspetores: seria uma
antenonnen e - · f·
são dos escolanovistas. De acordo com Silvina Gvutz, esta Ol uma peça chave na avaliação daquilo que os professores ensinavam e
. . . t. a de jose· Rezzano professor e inspetor escolar. Rezzano do que os alunos aprendiam. Seria convertido em um registro de
1mcia 1v ' da-
f. leitor de Décroly muito interessado, e sua esposa,~ pe como o governo das crianças funciona em sala de aula.
o~ ~~lotilde Guillén de Rezzano, publicou em 1946 ~m impor- Dissemos que a regulação da aprendizagem como posição
~a;te livro metodológico que intitulou Os centi·?s de i.nteresse na nova favorecia o fato de a comunicação da sala de aula se ter adapta-
escola. Com relação ao caderno, josé Rezzano ahnnou. do à criança, e não o contrário, o que significava grandes mudanças
no governo da mesma. Os refonnadores da escola nova propuseram
veres ou caderno único) deve ser orientado no sen- muitas fonnas para organizar a sala de aula, das quais vimos apenas
(O caderno de de h · ·d \ \me
tido de levar a criança aJazer, para poder alcançar, OJ~·.º i ea a bé - algumas. Outras experiências, como as pedagogias associadas à idéia
·ado or todos: que a escola seja verdadeiramente pr~t1ca e ta~. m
Jde ca~áter pré-profissional e pré-industrial - entendido este u~ll:O
da comunidade nos países de língua alemã, a individualização psi-
tem10 não em sua acepção puramente técnica, m~s _no senti o ~ cológica derivada da psicologia suíça, as experiências escandinavas,
trabalho organizado e fecundo, de iniciar e ap~1car ideias ~om enge etc., não foram aqui apresentadas. Entretanto, vimos na análise dos
nhosidade prática e executiva para obter a mai~r produt~~;;de. 43. casos uma série de elementos que queremos sistematizar.
Rezzano, citado em. Gvutz, • P·
Nossa tese é a seguinte: o biopoder desenvolvido na socie-
Como se pode observar, este dispositivo parecia mais dade global por parte do Estado em sociedades que adquiriram uma
adaptado aos tempos industriais do taylorismo do q~e as tecnolo- dinâmica crescente tem sua expressão pedagógica mais acabada na
. . O caderno era superior à lousa em dwersos aspec- escola nova. Esta imaginava uma sala de aula onde o processo de
g1as antenores. .
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1

A I NVENÇÃO DA SALA OE A ULA A SALA OE AULA [M IDA DE DE (ASM A TÂT l(A ESCOLA!\ NO StCULO 20

crescimento era dirigido, administrado, baseando-se, entretan- constitui, portanto, a produção de normas, de padrões para medir e
to, nas "próprias" leis do crescimento. A escola nova procura comparar e de regras para julgar. A normalização não produz obje-
adaptar a didática à maneira como as crianças crescem e às mu- tos, e sim procedimentos que levam a um consenso geral na escolha
danças pelas quais passam constantemente. Se por um lado a sala de normas e padrões" (Ewald, 1990, p. 148). Se o que importa na
de aula tradicional, global ou catequista, governava as crianças, normalização não é tanto o fato de os alunos se tomarem "nor-
obrigando-as a participar de uma situação já estruturada, o que mais", e sim que sejam aceitos como corretos os mecanismos de
denominamos didática antecipativa,já a escola nova aceita o cres- normalização, e que sejam transformados em procedimentos acei-
cimento como um fato, tenta acompanhá-lo sem colocá-lo nos tos, pode-se ver a escola nova também como uma variação da nor-
limites da estrutura de antecipação e do diálogo (o monólogo) malização cultural e social das sociedades ocidentais. Se o que im-
didático já ritualizado, derivado da catequização. porta são os procedimentos, que sejam aceitos como legítimos, é
Vimos também algumas das armadilhas: se o importante sobre eles que a escola nova situa seu "dogma". Os procedimentos,
na situação de sala de aula é respeitar o crescimento, a questão run- as técnicas definem antecipadamente um "ideal de alunos": o aluno
damental dessas pedagogias é a maneira como caracterizam e pen- criativo, o "gênio" (E. Key), o ativo. É claro que a escola nova não
sam este crescimento. Vimos em John Dewey uma concepção flexí- conseguiu que todos os seus alunos fossem criativos, ativos e geni-
vel da experiência; em Maria Montessori, uma concepção centrada ais, mas conseguiu que se acreditasse na importância de ter estas
nos s~ntidos, relacionando-os com os materiais; nos pedagogos so- características. Neste sentido, é normalizadora: não porque tenha
viéticos, o crescimento como integração crescente da criança na convertido todas as crianças em pequenos Einsteins, mas porque
vida social; em Ovidio Décroly, o crescimento como forma evoluti- impôs uma série de normas pelas quais as crianças são avaliadas na
va de interesses prefixados. A escola nova pensava que "liberava" a sala de aula. Entretanto, esta normalização é diferente daquela que
criança. Acreditamos que produziu uma estrutura de comunica- descrevemos no início do capítulo, uma vez que utiliza muito mais
ção, uma fragmentação e uma pluralização do espaço de ensino a lógica das regulações, de acompanhar aquilo que se define como
- a oficina, os laboratórios, a horta, os cantos de atividades, os "natural": o crescimento.
centros de interesse - , que deram origem a uma forma de gover- De nossa parte, não negamos a importância das carac-
no diferente da forma de governo do método global; uma forma terísticas de atividade, criatividade, circunstância, mas quere-
mais compatível com estas sociedades onde a industrialização, a mos mostrar que estão vinculadas a um programa de governo
administração do crescimento das sociedades e, portanto, de seus da situação da sala de aula relacionado ao governo das socieda-
componentes transformou-se em um tema central. des industriais. Os escolanovistas haviam proposto a liberação
François Ewald afirmou que a normalização "não é tanto da criança: depois de tudo, Ellen Key havia dito no início do
uma questão de fazer com que os produtos se adaptem a um pa- século 20, que esse seria o século das crianças. Se por liberação
drão, e sim com que se chegue a uma compreensão sobre a escolha da criança entende-se que não seja governada de nenhuma for-
do modelo. Fornece um critério para julgamento. A normalização ma, podemos dizer que o escolanovismo estava enganado.

:222 223 - . .
1
A J NV ENÇ ÃO DA SALA DE A ULA
A SALA DE AULA EM IDADE DE CASM : A Hr1 cA E scO LAI\ NO S(cuLo 20
f

Desde o final do século 19. a pedagogia conheceu uma Para termina r, que remos destacar que o escolano-
nova utopia, a utopia do docente que não ensinava algo deter- vismo e suas propostas deixaram marcas nas imagens do bom
minado, mas que procurava coordenar e animar as ações de docente que circulam entre nós. Como todo movimento de
aprendizagem que as crianças realizavam "naturalmente". Os renovação, continha esperanças e asp irações legítimas de mu -
reformadores da escola nova viam-se a si mesmos como advoga- dança; e mu itos professores que a adotaram produziram arti-
dos.da criança, como responsáveis por sua liberação. Esta posi- culações democráticas da pedagogia, em termos de sua sensi-
ção, um pouco missionária, não os deixou ver o fato de que bilidade social, seu estabelecime nto da questão da autoridade
respeitar a "naturalidade" da criança, fazer a transição da situa- e sua contribu ição pa ra uma ampliação dos saberes escola-
ção de controle estatizado da sala de aula catequista para uma res43. Este fato pode ser visto na obra de Herminia Brumana
i sala de aula onde se desenvolviam "projetos" significavam tam-
bém governar a criança, embora com outra lógica. Entretanto,
(1901-1954), professora feminista que escreveu mu itos con-
j'. tos e ensaios sobre a docência, exemplo para tantos professo-
este governo da criança na era da biopolítica adotou formas íle-
res com vontade de transformar. Quando lhe perguntam por
1: xíveis até então desconhecidas para a sala de a_ula elementar. que não mantém uma caderneta de poupança junto com seus
1:1
1 Aescola nova mais "regulava" do que "controlava", mas, alunos e por que não lhes ensina hábi tos de poupança, a pro-
1 em ambos os casos, "governava" a população que, de qualquer fessora responde:
forma, se encontrava na escola porque era uma "obrigação". Es-
queceu o caráter obrigatório da escola e quis transformá-lo em Eu ensino a gastar. Ensino que o dinheiro não deve ser um fim,
uma questão de novas técnicas, de novas propostas (Schirlbauer, mas um meio, de proporcionar a si mesmo os melhores momentos
1996). A sala de aula reformista foi a sala de aula do biopoder, d~ vida. Obrigo-os - obrigá -los não é f~7Pr 11ma insinuaç:io inte-
desse poder que procurava administrar o crescimento, para que ligente e carinhosa? - a trazer todos os meses cinco ou dez centa-
não se desviasse. Como durante vários séculos a escola havia vos para a au la para assinar um jornal matutino para a turma. Su-
giro a utilidade de comprar revistas, para poder fazer excursões e
sido o lugar onde verdades quase reveladas eram comunicadas
visitar museus. (. .. ) Minha turma é a última em poupança ... Mas
às crianças, que deviam aceitá-las, os escolanovistas estavam em troca posso garantir-lhe que minhas crianças saem da aula sen-
encantados com suas próprias inovações. tindo vontade de conhecer terras estrangeiras e longinquas, a feli-
cidade das excursões de estudo e de prazer, o encanto da sala de
Este movimento encontrou eco em todos os desconten-
aula alegre( ... ). As crianças devem viver como pássaros, sem medo
tes com a situação predominante nas escolas. Entretanto, muitos do futuro. Antes de alimentar a poupança, o governo e os homens
perderam de vista o fato de que não é a técnica por si só o que que orientam o povo devem consolidar a justiça.
d~fine os acontecimentos na sala de aula. Após o anúncio da libe- Brumana, 1958, pp. 216-218.
ração das crianças das amarras da antiga pedagogia, inventaram-
se novos constrangimentos, mais sofisticados, mais moderniza-
dos, que não deixavam de ser regulações e atos de poder. 43. Um exemplo disso é o obro de Roso Ziperov1ch.

:224 22s:
1
A 1NVENÇÃO DA SALA DE A ULA A SALA DE AuLA EM IDADE DE C'AsM : 11 TAr1c11 EscoL1111. NO StcuL o 20

ENSAIO conheceram e conhecem muitas experiências nas quais a autorida-


de foi brutalmente impositiva, selvagemente intolerante, o que de-
A AUTORLDADE DA PEDAGOGI A senvolveu uma sensibilidade especial com respeito a esse tema.
Os argumentos que desenvolvemos até agora confir- A palavra "autoridade" vem do latim auctor: aquele que
mam a idéia de que a sala de aula e as estratégias de ensino são causa ou faz crescer - portanto, fundador, autor. Vem também
formas de governo das almas e dos corpos, que reconhecem uma do francês antigo, em sua raiz augere:incrementar. Nas duas acep-
longa história ainda presente na maneira como organizamos ções existe a idéia de uma força ou poder externo que provoca
nossas práticas, no fato de que os alunos devem sentar-se de alguma coisa, que institui, que determina um sentido de mudan-
determinada maneira na sala de aula, que levantam a mão para ça. Pensemos nestas afirmações: a autoridade decreta, a autorida-
intervir. Procuramos mostrar que nenhuma dessas estratégias de ordena, a autoridade penaliza e a autoridade castiga. Em todas
de ensino é neutra e que todas carregam sentidos e histórias que elas está presente a imagem de um poder que nos é imposto.
excedem nossas intenções. Para alguns leitores, esta afirmação A autoridade implica também a ação de autorizar: dar
pode ser um apelo ao pessimismo, um convite para que abando- permissão, deixar falar, sancionar como válido e legítimo. Sob este
nemos nossa tarefa de transmitir por medo de prejudicar alguém. ponto de vista, surge como uma preocupação o modo como a
pedagogia se converte em uma voz autorizada a falar sobre educa-
Sob nosso ponto de vista, como deixamos explícito na
ção e, por sua vez, em uma voz que dá autorização a outros: que
introdução, essa posição de renúncia não é possível e sequer dese-
diz aos professores "escola simultânea sim, escola lancasteriana
jável. Entretanto, nós, educadores, indivíduos que ocupamos uma
não", ou "utilizem o caderno", ou "desestruturem a classe", e que
posição particular na transmissão da cultural da sociedade (ainda
diz aos alunos qual deles tem capacidade, como devem se com-
que este mesmo processo possa ser questionado e que se possa portar, do que podem falar no ambiente escolar. Corno vimos nos
pedir ou exigir a transmissão de outras culturas sociais), temos capítulos anteriores, as ações de "outorgar" a palavra, de estabele-
um poder e urna autoridade que nos transcendem como indiví- cer parâmetros não são apenas atos exteriores, mas também cons-
duos e que estão associados à posição social que ocupamos. Isto tituem a subjetividade: formam a identidade do docente ou do
não quer dizer que não importa a forma de exercer esse poder ou aluno, por exemplo, a do pai e a do filho. Neste sentido, a "impo-
autoridade; pelo contrário, acreditamos que devemos encarregar- sição" é muito mais complexa do que a ação exterior e violenta
nos desse poder e usá-lo de maneira responsável, ou seja, com que vem de fora para dentro; é mais sutil, mais complicada e,
mais clareza sobre seus efeitos, como parte de oposições e estraté- principalmente, internaliza-se como parte de nossas próprias dis-
gias decididas coletiva ou individualmente. posições e de nossos próprios sentimentos.
Neste ensaio, propomos revisar essa noção de autorida- Segundo Richard Sennett (1980), há duas grandes expli-
de, que às vezes parece um termo pejorativo por sua associação cações sobre a autoridade na teoria social. A primeira é de Max
com o autoritarismo. Digamos que a escola e a sociedade argentina Weber, sociólogo alemão (1864-1922). Weber pensava que a au-

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A 1NV(NÇÀO DA SALA DE A ULA A SA LA D[ A ULA ( M I DAD( DE ( ASAI\ : A TÃT ICA ESCOL A!\ NO StCU LO 20

toridade deveria ser analisada de acordo com o tipo de controle que cultura e pelas necessidades psicológicas: a necessidade de ser ama-
se exerce. Desse modo, distinguiu entre uma auL01idade tradicio- do e reconhecido, fantasias e temores associados a ela, entre outras.
nal, baseada nas tradições herdadas e nos costumes; uma autorida-
Pode-se analisar a autoridade pedagógica a partir dessas
de legal-racional, cujo fundamento é a legalidade das normas e o
duas perspectivas. Pode-se vê-la, como a definiram os pedagogos
direito dos indivíduos que ocupam postos de comando em virtude
normalizadores, como uma autoridade legal-racional, fundamen-
de suas condições para estar nessas posições (a burocracia é o exem-
tada em regras claras e em pessoas (os professores ou os cientistas
plo mais claro); e, por último, uma autoridade carismática, que se
da educação) que ocupam sua posição de comando porque são
baseia em um vínculo entre o líder e as massas, que acreditam que
mais qualificadas para fazê-lo. Ou também se pode dizer que o
O· líder é um herói, uma figura quase sagrada que as guiará até a
tipo de autoridade pode ser tradicional ou carismática, e que falha
felicidade (seus exemplos são jesus e Maomé, embora também pos-
samos considerar alguns políticos populistas nesta mesma catego- a capacidade de legitimar nossa ação docente em termos de nosso
ria). Para Weber, a questão primordial da autoridade é sua legitimi- saber fazer, de nosso ofício concreto. Um professor que supre sua
dade: as pessoas obedecem voluntariamente à autoridade porque insegurança com relação ao que não sabe fazendo-se amigo dos
acreditam que seja justa e que as levará a um lugar seguro. Quando alunos adota um tipo carismático ele autoridade.
a autoridade é imposta por meio da força, já não se Lrata de um Entretanto, como evidencia a segunda corrente, este mo-
gesto de autoridade, e sim de uma falta de autoridade, que fracas- delo de adoção voluntária de tipos de autoridade, ou de obediência
sou _na conquista do apoio voluntário das pessoas. voluntária a esses tipos de autoridade, padece de falhas graves. Em
Uma escola de pensamento distinta e contrária a Weber é primeiro lugar, deixa de fora a necessidade de acreditar: acreditar
encabeçada por Sigrnund Freud e alguns membros da escola de que o que a pessoa faz vale a pena, ou acreditar que será aceita e
Frankfurt - uma corrente de pensamento crttico que se manifes- reconhecida: isw nos torna mais escravos das opções que podemos
tou entre 1930 e 1960 na Alemanha e que esteve exilada nos Esta- fazer do que supunha Weher. Por outro bdo. tarnhrm não temos
dos Unidos durante o nazismo. Sua visão é um pouco mais trágica um número infinito de opções, nem somos livres para escolher. Como
do que a visão do reino da voluntariedade que sugere Weber, prin- vimos, a tarefa de ensinar tem cenas regras, restrições, ditadas pela
cipalmente porque a maioria de seus estudos procura explicar como tradição, pela teoria que nos ensinam e que ternos à mão, pela dis-
foi possível o apoio popular ao nazismo. Para esta segunda tendên- posição material da sala de aula, pelos recursos e pelos alunos. Além
cia, "aquilo em que as pessoas precisam acreditar não é simples- disso, temos noções interiorizadas sobre a autoridade que nos le-
mente uma questão da credibilidade ou da legitimidade que as idéias, vam a valorizar determinadas opções e a considerar que outras se-
normas e pessoas oferecem. É também questão de sua própria ne- jam impensáveis, imagens de nossos pais e avós, imagens dos líde-
cessidade de acreditar. O que querem da autoridade é tão impor- res políticos aceitos pela sociedade, que nos levam a identificar-nos
tante quanto o que a autoridade tem a lhes oferecer" (Sennett, 1982, mais com certos modos de exercer a autoridade do que com outros.
p. 25). Anecessidade de autoridade está moldada pela história, pela . Assim, a "liberdade" que temos é urna liberdade condicionada por

.-. 22 8 229 :
J
A I NV ENÇÃO D/\ SALA DE A ULA

1 ------
A SALA DE AuLA EM IDADf DE C ASAI\ : A TÀ TI CA ESCO LA!\ No
20 •
-
. StcuLo

forrnas de autoridade sedimentadas em nossas disposições, nas ins- palavras, das primeiras noções que deveriam ser ensinadas, partindo
tituições onde atuamos e na sociedade em seu conjunto. do concreto para o abstrato (não por acaso, a primeira noção era a de
j ean-Jaques Rousseau (1712-1778) foi um dos peda- propriedade). Rousseau divinizava a natureza, enfocando-a como
gogos que desenvolveram mais claramente este paradoxo entre uma ordem quase sagrada e perfeita que deveria ser seguida. Des.se
autoridade e liberdade. Rousseau fez parte do lluminismo fran- modo, a educação deve1ia aprender com a natureza; o aio deveria
cês (ver p. 104), embora tivesse algumas divergências importan- estar atento e vigilante aos menores sinais do entendimento infantil
tes com a maioria dos filósofos da época, a partir de sua descon- segui-los, vigiá-los para que nada os perturbasse e para que não s~
fiança no poder "iluminador" e redentor da razão. Uma de suas perdessem em meio a outras influências sociais. Em Rousseau, 0
obras mais famosas é Emilio ou da educação (publicada em 1762), professor (que prefere chamar de "aio": o que conduz) não deve dar
que causou sensação em sua época: foi queimada, proibida, e no preceitos, e sim levar a criança a identificá-los por si mesma.
século 19 começou a ser lida com maior interesse. Trata-se de Por outro lado, esta noção que Rousseau tem da liberda-
um texto de ficção, quase um romance, onde Rousseau reco- de é uma idéia rigorosamente vigiada e disciplinada. Afirmou:
menda claramente uma educação denominada "negativa": na "Apodera-te da criança assim que ela nasça e não a soltes até que
educação não se trata de encher a cabeça da criança com um chegue à idade adulta; sem isso, nunca conseguirás nada" (1982,
método que obriga a repetição e impõe coisas, porque isto cor- p. 21). O papel do preceptor é crucial para promover as mudan-
rompe as crianças. O texto narra a educação de Emílio por um ças "geradas espontaneamente": "Leva a criança a acreditar que és
preceptor, Juan jacobo, e combina o gênero de preceitos peda- o senhor, e tu o serás. Não há sujeição mais completa do que
aquela que preserva a forma da liberdade; é aí que se captura a
gógicos com reflexões filosóficas e históricas sobre outros temas.
vontade. Não está a criança, sem conhecimento, sem força nem
Rousseau afirrna que a criança é boa por natureza, que é sabedoria, inteiramente à tua mercê? Não és o senhor de todo o
desejável que o desenvolvimento siga um caminho natural, e que ambiente que a afeta? Não podes fazer dela o que quiseres? Seu
esta é a base de uma boa educação. Na primeira frase de Emílio, trabalho, seu jogo, seu prazer e sua dor, desconhecidos para ela,
afmna: 'Tudo está bem ao sair das mãos do Criador da natureza· não estão sob teu controle? Não há dúvida de que deve fazer o
tudo se degenera nas mãos do homem" (1982, p. S). Esta image~ que quer fazer, mas não deve querer nada mais do que aquilo que
da natureza boa da criança é uma das figuras que inspiraram ele tu queres que faça" (citado em: Donald, 1992, p. 6). Lucidamen-
diversas maneiras vários representantes da escola nova+i. Também te, Rousseau esboça os fundamentos da autoridade moderna: so-
foi um dos primeiros a elaborar uma noção de "evolução natural" da bre a base de uma personalidade autônoma, reflexiva, que contro-
criança e a estabelecê-la como base da pedagogia. Falou dos recém- le seus impulsos, ergue-se uma autoridade que não necessita da
nascidos, das amas de criação, dos primeiros passos e das primeiras força nem da repressão externa, e sim que opera desde os primei-
ros momentos da socialização, "domesticando" a criança.
44. €sto postura de Rousseau foi muito discutido: poro aqueles qw desejam aprofundar-se Dessa forma, o preceptor produz e estrutura a interiorida-
mais nessa discussão. recomendamos os obras de Norodowski ( J995) e de Lereno ( / 985).
de da criança, embora o faça em nome do desenvolvimento natural e

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A 1NV[NÇÃO DA SALA D[ A ULA A SALA DE AutA EM IDADE DE CASAI\ : A TA1 1cA EscoLAf\ NO St cuLo 20

da evolução autônoma. E esta estruturação está estreitamente ligada pode - e, segundo Derrida, se pode, deve - pensar em outros
à ordem social que Rousseau promove: a do conLrato social de uma tipos de ordens que contenham o paradoxo da autoridade e da
sociedade burguesa. "O homem verdadeiramente livre quer apenas liberdade em outra equação, que não subordine a segunda nem
o que pode e faz o que lhe convém" (1982, p. 65). O ajuste entre o desfaça a primeira. O psicanalista Pierre Legendre afirma: "Instituir
individuo e a sociedade deve ser completo. Deve-se conseguir que o implica a normatividade. Neste terreno, é preciso não confundir
cidadão virtuoso experimente os laços sociais, a autoridade social, uma reflexão sobre a normatividade com o desenvolvimento de um
como fruto de seus próprios desejos, de suas aspirações e culpas - pensamento normaLivo. (. ..) A exploração social e política da nor-
em suma, deve acentuar a capacidade de autocontrole (Donald, 1992, ma é uma coisa, a questão vital do vínculo de um indivíduo à nor-
p. 7). Por isso, devido à magnitude da tarefa, Rousseau imaginava matividade é outra. Nenhuma sociedade pode deixar de estabelecer
que essa relação pedagógica haveria de se prolongar por toda a vida, um ordenamento para seus integrantes(. .. ) Amenos que se promo-
em uma sujeição mútua de amor e dever entre professor e aluno. va a loucura ou a anulação subjetiva, não se pode ignorar uma exi-
O legado de Rousseau é complexo. Entretanto, sinteti- gência: a existência de um quadro de legalidade que garanta a con-
zando-o, poder-se-ia dizer que encontrou boa repercussão no servação da espécie de acordo com as restrições insuperáveis da
"escolanovismo". Como vimos no capítulo anterior, vários de diferenciação humana" (Legendre, citado em: Rochex, 1995, p. 26).
seus representantes radicalizaram muito mais suas propostas, Sem um certo ordenamento simbólico e jurídico que
sustentando que a autoridade deveria ser completamente bani- nos "nomeie" e nos estruture em nossas relações com os outros,
da'..Se recordarmos a frase de Célestin Freinet sobre a necessida- não há subjetividade, nem tampouco temos a possibilidade de
de de abolir o estrado e de colocar o professor no mesmo nível contestar e discutir essa posição. Assim como o indivíduo ne-
i
dos alunos, teremos uma referência dessas propostas. O protes- cessita de outro que o nomeie e o situe em uma série ou rede
1. to de maio de 1968, na França, também apresentou muitas des- exterior a si mesmo, para sair da indiferenciação na qual não
1 tas características: "a imaginação no poder", por exemplo, desta- existem nem ele nem o mundo, também na sociedade é necessá-
1 cava que, diante do regime professoral e burocrático nas ria certa no1matividade que estabeleça posições e procedimen-
universidades, novas hierarquias deveriam ser instaladas. tos. Certamente não estamos defendendo, como fazia Durkhrim ,
Em nossa opinião, o que se perdeu nessas críticas antiins- posições "destinadas" para cada um, pobres e ricos, e outros;
titucionais e antiautoritárias é o fato de que é sempre necessária pelo contrário , acreditamos que tais posições e tais procedimen-
uma ordem, porque esta é ·a condição da sociedade, e uma autori- tos deveriam estar muito mais sujeitos a questionamentos e a
dade que a organize, desde que a pense como uma rede horizontal modificações do que de fato estão, e que o desafio de pensar
de pessoas e instituições, ou como um fluxo mais dinâmico de uma autoridade democrática implica, em primeiro lugar, poder
,. movimentos, ou como uma posição muito mais aberta, rotativa, conter as duas questões: construir uma certa ordem que esteja,
1 com mecanismos de controle público muito mais claros. Alguém ao mesmo tempo, aberta e disposta à crítica e à transformação.
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5
À GUISA DE CONCLUSÃ O: PERGUNTAS SOBR E

o FUTURO DA SALA D E AU L A

·· - .
A história da sala de aula que relatamos nestas páginas
terminou em algum momento entre 1930 e 1950; além desse
período, não nos aprofundamos. A parte do relato que vem na
seqüência, no caso argentino povoado de lutas sociais, de gran-
des esperanças, e também de grandes derrotas e sofrimentos,
deixamos para que você, leitor, a reconstrua. 45 Mencionaremos
apenas brevemente que uma das grandes inovações dos anos
que se seguiram foi a instalação da técnica e da tecnologia no
contexto da escola. Embora se possa argumentar que já estava
implícita em alguns movimentos anteriores, como o tecnicismo
da escola nova, e o cientificismo e a confiança quase cega no
avanço tecnológico dos positivistas normalizadores, deve-sedes-
tacar que a invasão das pedagogias por objetivos, o planejamen-
to, a vontade taxionômica e classificatória foram aprofundamen-
tos e radicalizações dos movimentos precedentes que deixaram
marcas próprias em nossas salas de aula.
Uma dessas marcas consiste em configurar nossas ima-
gens sobre o ftituro. Parece quase impossível pensar a sala de
aula do íuturo sem computadores, sem equipamentos de vídeo,
sem muitas outras invenções das quais ainda não temos notícia,
mas que já nos rondam como fantasmas antecipatórios. Para

45. Poro quem tiver interesse. recomendamos alguns trabalhos sobre este período: Puiggrós.
1997: Gimeno Socristón. 1982. e Dias Barriga. 1986. entre muitos outros.

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A 1NVHIÇÃO DA SALA DE A ULA
À G u1sA DE CON CLUSÃO · P rnGu NrAs soor1E o F u r uRo DA SALA DE A ULA
1

muitos professores, esta é uma das fantasias mais temidas: o dia nós também não nos reconheceríamos nele. Do mesmo modo é
em que o ensino puder ser realizado pela Internet, de casa, ape- impossível prever o que acontecerá amanhã: se ainda haverá prof~s­
nas apertando teclas, e interagindo com programas que farão as sores com 35 alunos, se haverá cenas pedagógicas totalmente di-
vezes de professores. f~rentes das que conhecemos. Em todo caso, a função de transmi-
Este é o temor de Lucia, "a mulher sem sombra" de um tir a cultura pro~avelmente continuará existindo; e até o momento,
conto do francês Michel Tournier. Lucia, professora de um vila- po~ murtos motivos, e apesar de sua crise, a escola é a instituição
rejo, carregando traumas desde a infância e episódios confusos mais eficaz e poderosa para produzir este efeito. Desejamos que o
em seu trabalho, sente que a sala de aula vai-se convertendo em faça melhor, que o faça integrando os novos saberes e indivíduos
um monstro. "O que é uma classe?", pensa. E responde a si mes- qu~ h~je pul~lam em nossos mundos, que o faça repensando suas
ma: "Um monstro que se move, ri, bate os pés, cochicha, arra- propnas tradições, que muitas vezes postulam uma relação com 0
nha, adormece, sonha. E com essa coisa dissimulada, imprevisí- saber regulamentarista e burocrático, e se focalizam no controle
vel, sensível à época do ano, à tempestade, ao calor, ao gelo. O ~as crianças e ~os ad~lescentes. Neste sentido, desejamos que o
professor sente-se envolvido pelo monstro( ... )". Mais adiante governo das cnanças' na escola seja um governo aberto à discus-
no conto, encontra-se com outro personagem, que termina de são, não um dogma ou uma verdade eterna. Ainda que a tecnolo-
colocar adjetivos nesse monstro: "A culminação normal do ensi- gia invad~ o espaço da sala de aula, este tema estará presente. O
no moderno é o computador, disse-me, o professor-robô des- fato de nao haver uma pessoa que governe "diretamente" essa si-
proVido de qualquer sinal de afetividade, e por isso infinitamen- tuação social que é a sala de aula não significa que 0 governo
te paciente e objetivo, que leva em conta todas as particularidades desapareça; essa é uma idéia importante daqueles que propunham
do aluno único colocado diante dele, suas falhas e suas aptidões, a sala de aula como técnica pura: a possibilidade de que o ensino
destilando a um ritmo apropriado a informação do programa. apareça completamente adaptado à criança, a seus ritmos e for-
Ela trabalhava para atingir tal ideal (. .. )" (Tournier, 1994, p. 136). mas de acesso. No entanto, essa adaptação perfeita é outra forma
Não nos animaríamos a dizer, em um afã tranqüilizador d~ ?ºvemo da sala de aula (virtual) e, por esse motivo, aberta à
cntica e à reflexão.
diante desses temores, que o professor será sempre necessário,
que é eterno, que não se pode dissociá-lo da própria vida huma- . Neste sentido, parece-nos necessário incorporar estas
na. Como ficou claro, ao longo desses cinco séculos passados, sua d~me_nsôe.s ~o repen~armos a sala de aula do futuro. Esse espaço
função passou por mudanças e redefinições, e é difícil imaginar· nao e defm1.do mag1~amente pela tecnologia, mas depende em
que, se um professor do século 15 ressuscitasse subitamente, pu·~· grande medida daquilo que homens e mulheres se disponham a
desse sentir-se hoje parte da mesma associação ou categoria pro-' fazer com essa tecnologia.
fissional de um professor de 1999. A figura docente como a _ . U~a última reflexão: para nós, a pedagogia não se re-
concebia já não existe, e embora seus legados ainda nos rondem, duz a capacidade de utilizar determinadas técnicas, testes, ou

.- . 236 237-. . i!
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A I NVENÇÃO DA S ALA DE A ULA .·l

didáticas simples ou sofisticadas. A pedagogia é, antes de tudo,


uma prática que reflete sobre as Jormas de transmissão ela wltura, e
é a própria prática de transmiti-la. Acompanhando Giroux (1997),
acreditamos que essa prática deve responsabilizar-se pelas his-
tórias que produz, pelas memórias sociais que transmite e pelas
imagens de futuro que autoriza. Tal pedagogia deve concentrar-
se em reíletir e em gerar práticas que atendam a três questões:
uma noção de autoridade.democrática, com toda sua problemá-
tica; ã discussão das tradições que nos fo rmaram e daquelas que
queremos deixar para outras gerações (isto é, submeter a uma
revisão quais culturas são válidas em determinada sociedade,
para quem são válidas e quais acreditamos que deveriam sê-lo);
e a autorização da ação, ou seja, pensar quais ações autorizamos
e quais não autorizamos em nossa prática cotidiana, e conceber
procedimentos que permitam "autorizar" outras práticas, tanto BIBLIOGRAFIA
por parte dos professores como dos alunos. Talvez isto nos pare- - - - - ------- .. - -
ça muito difícil, até impossível. Porém, se conseguirmos ao me-
nos_reinventar certo horizonte utópico até onde possamos cons-
truir-novas experiências, é provável que essa situação não esteja
tão distante.
Esperamos que o percurso por estas páginas, prova-
velmente árduo em alguns momentos , os aj ude a entender uma
realidade que também é árdua e complexa. Temos a expectativa
de que os temas e pontos de vista propostos complementem e
estimulem outras leituras e outros saberes que vocês irão conhe-
cendo em sua formação. Esperamos que esta forma de fazer per-
guntas e estas respostas que oferecemos os ajudem, como nos
ajudaram, a entender melhor esta realidade esquiva da educa-
ção e a pensar em sua transformação.

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