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Túlio Madson de Oliveira Galvão

Reconhecimento e Cultura: a figura do Reconhecente (Erken-


nende) em Nietzsche

Natal, RN, Brasil


2023
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Filosofia

Reconhecimento e Cultura: a figura do Reconhecente (Erken-


nende) em Nietzsche

Túlio Madson de Oliveira Galvão

Tese apresentada ao Programa de Pós-Gradua-


ção em Filosofia da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte como requisito necessário
para obtenção do grau de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Alípio de Sousa Filho

Natal, RN, Brasil


2023
Túlio Madson de Oliveira Galvão

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio


Grande do Norte, sob o título “Reconhecimento e Cultura: a figura do Reconhecente (Erken-
nende) em Nietzsche”, como requisito necessário para a obtenção do grau de Doutor em Filo-
sofia, sob orientação do Prof. Dr. Alípio de Sousa Filho.

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Alípio de Sousa Filho (Presidente)

Prof. Dr. Dax Fonseca Moraes Paes Nascimento (membro interno)

Prof. Dr. Lucas Fortunato Rêgo de Medeiros (membro interno)

Prof. Dr. Miguel Angel de Barrenechea (membro externo)

Prof. Dr. Fernando Facó de Assis Fonseca (membro externo)


Espaço reservado para a Ficha Catalográfica
Resumo

Esta tese aborda os tópicos do reconhecimento e da cultura a partir da figura do Reconhecente


(Erkennende) nas obras de Nietzsche. O objetivo principal é evidenciar como, em Nietzsche,
há uma figura central, conquanto não suficientemente explorada na literatura, do Reconhecente
(Erkennende) — que articula filosoficamente reconhecimento e vivência no âmbito da cultura.
Para alcançar esse objetivo, esta tese é divida em três capítulos. O primeiro capítulo trata de
uma epistemologia do reconhecer, partindo da divisão de graus do conhecimento em Kant e da
crítica de Schopenhauer à epistemologia kantiana, onde se evidencia como, em Nietzsche, o
conhecimento enquanto conhecer e reconhecer possui uma importância relativa à vida. O reco-
nhecimento é o saber tornado vivo. Já o segundo capítulo trata da figura do Reconhecente na
obra nietzschiana, analisando passagens de seus estudos sobre Demócrito, seu Período Trágico
e, por fim, suas obras de maturidade. O terceiro e último capítulo se dedica a formular a tese
central do Reconhecente como aquele que articula conhecimento e vida e em que medida ele
atua como médico da cultura.

Palavras-chave: Nietzsche, reconhecimento, conhecimento, vivência e cultura.


Resumen

Esta tesis aborda los temas del reconocimiento y cultura desde la figura del Reconocente (Er-
kennende) en la obra de Nietzsche. El objetivo principal es mostrar cómo, en Nietzsche, hay
una figura central, aunque no suficientemente explorada en la literatura, del Reconocente (Er-
kennende), que articula filosóficamente el reconocimiento y la experiencia en el contexto de la
cultura. Para alcanzar este objetivo, esta tesis se divide en tres capítulos. El primer capítulo trata
de una epistemología del reconocimiento, a partir de la división de grados de conocimiento en
Kant y la crítica de Schopenhauer a la epistemología kantiana, donde se evidencia cómo, en
Nietzsche, el saber cómo conocer y reconocer tiene una importancia relativa para la vida. El
reconocimiento es el conocimiento hecho vivo. El segundo capítulo trata de la figura del Reco-
nocente en la obra de Nietzsche, analizando pasajes de sus estudios sobre Demócrito, su Época
Trágica y, finalmente, sus obras de madurez. El tercer y último capítulo está dedicado a formu-
lar la tesis central del Reconocente como quien articula el saber y la vida y en qué medida actúa
como médico de la cultura.

Palabras-clave: Nietzsche, reconocimiento, conocimiento, experiencia y cultura.


Abstract

This thesis addresses the topics of recognition and culture from the character of the Recognizer
(Erkennende) in the works of Nietzsche. The main goal is to put into evidence how, in Nietzsche,
there is a central character, although not sufficiently explored in the literature, of the Recognizer
(Erkennende)—who philosophically articulates recognizing and experience in culture. In order
to achieve this goal, the thesis is divided into three chapters. The first chapter deals with the
epistemology of recognizing, starting from the division of levels of knowledge in Kant and
passing through Schopenhauer's critique of Kantian epistemology, showing how knowledge as
knowing and recognizing has a vital importance in Nietzsche. Recognition is knowing made
alive. Second chapter deals with the figure of the Recognizer in Nietzsche's work, analyzing
passages from his early studies on Democritus, his Tragic Period and, finally, his mature works.
The third and final chapter is dedicated to formulating the central thesis on how the Recognizer
articulates knowledge and life and to what extent he acts as a physician of culture.

Key words: Nietzsche, recognizing, knowledge, living, and culture.


Abreviações das obras de Nietzsche em alemão

ASZ: Also Sprach Zarathustra (Assim Falou Zaratustra).

DW: Die dionysische Weltanschauung (A Visão Dionisíaca de Mundo).

FW: Die fröhliche Wissenschaft (Gaia Ciência).

GT: Die Geburt der Tragödie (O Nascimento da Tragédia).

M: Morgenröthe (Aurora).

MA: Menschliches, Allzumenschliches (Humano, Demasiado Humano)

NF: Nachgelassene Fragmente (Fragmentos Póstumos).

PZG: Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Época Trágica
dos Gregos)

UB: Unzeitgemässe Betrachtungen (Considerações Intempestivas).

WL: Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre Verdade e Mentira no
Sentido Extramoral).

Referência:

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe. Paris:
Institut des Textes et Manuscrits Modernes, 2009.
Sumário

Introdução ......................................................................................................................... 10

1 A Epistemologia do Reconhecer em Nietzsche ..................................................... 21


1.1 Os Graus do Conhecimento em Kant .......................................................................... 25
1.2 A Crítica de Schopenhauer à Epistemologia Kantiana ................................................ 27
1.3 O Conhecimento enquanto Conhecer e Reconhecer em Nietzsche .............................. 30

2 O Reconhecente na Obra Nietzschiana.................................................................... 37


2.1 Demócrito como Reconhecente Universal .................................................................. 38
2.2 Prometeu como Reconhecente .................................................................................... 49
2.3 O Reconhecente nas obras de maturidade ................................................................... 59

3 Reconhecimento, Vivência e Cultura em Nietzsche ............................................. 75


3.1 O Reconhecente e a Vivência Cultural........................................................................ 76
3.2 O Reconhecente como Médico da Cultura .................................................................. 81
3.3 Cultura Autêntica e Cultura Decorativa ...................................................................... 86

Conclusão ......................................................................................................................... 99

Referências ..................................................................................................................... 109


Introdução

Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844–1900) expressou seus pensamentos de modo bas-

tante singular, nos mais variados aspectos. Contrapondo-se à maioria dos filósofos de sua época,

ele optou por uma linguagem mais poética e menos dissertativa. Com exceção de alguns textos

pontuais, não escreveu tratados sistemáticos, mas sim ensaios, aforismos e poemas. No lugar

de extensas citações dos cânones da filosofia, desenhou caricaturas de filósofos e escolas de

pensamento. Em vez de silogismos, premissas e corolários, anunciou seu pensamento por in-

termédio de aforismos e frases por vezes enigmáticas, mas sempre atravessadas pela profundi-

dade de suas reflexões filosóficas e pela singularidade de seu estilo.

A escolha dessa forma de expressar seus pensamentos não deve ser entendida como uma

falta de rigor metodológico. Com seu estilo Nietzsche buscava resguardar a profundidade e o

potencial de ressignificação do seu pensamento, para que assim pudesse continuar vivo e po-

tente. Ou seja, para que seu pensamento possa continuar fazendo sentido apesar do devir ine-

rente aos mundos humanos e, também, para que possa continuar profundo o suficiente para não

se esvaziar numa superficialidade jornalística, numa homogeneidade interpretativa de rebanho

ou seita, num mero convite e respaldo à ordem tradicionalmente instituída. Dito isso, devemos

ter cuidado com as interpretações que simplificam o pensamento nietzschiano como meras ex-

pressões de devaneios e inspirações literárias sem uma clara intencionalidade filosófica ou rigor

metodológico — pois nem toda falta de clareza significa falta de profundidade, veracidade ou

comprometimento.

Para Nietzsche, a clareza metodológica e a abstração conceitual costumam ser os meios

teóricos pelos quais muitos pensadores justificam uma disposição moral por conforto, superfi-

cialidade e familiaridade de rebanho. Nesse caso, uma forma mais profunda e potente de

10
expressar e interpretar os pensamentos torna-se necessária. Para que o método tenha como fi-

nalidade a potencialização da vida — e não a potencialização de si mesmo. Pois, como falou

pela boca de Zaratustra: "não quando a verdade é suja, mas quando é rasa, o Reconhecente [der

Erkennende] reluta em entrar nas suas águas" (NIETZSCHE, ASZ,1,13). Assim, reconhecer o

valor das ideias e verdades filosóficas a partir de suas próprias vivências e expressá-las de modo

que possam ser reconhecidas e interpretadas por outros viventes, também em suas vivências,

exige um rigor metodológico quase espartano. Apenas quando as águas teóricas são profundas

o suficiente para elevar o indivíduo para além do mediano, levando-o à sua própria estilística

existencial, é que um mergulho nelas se torna desejável. A construção e expressão de um estilo

único, um modo singular de reconhecer os saberes a partir de uma perspectiva própria, exige

disciplina, abnegação e comprometimento.

Essa abordagem metodológica singular gerou controvérsias e muitas críticas à época,

mas hoje costuma ser reconhecida como uma das mais relevantes contribuições filosóficas do

século XIX, ecoando em quase todos os grandes filósofos do século seguinte. Desse modo,

compreender a profundidade e diversidade de sentidos da sua abordagem metodológica, nos

ajuda também a compreender como o estilo singular de Nietzsche contribuiu para a relevância

e atualidade de seu pensamento, mesmo após mais de um século desde a sua produção. O pop

não poupou Nietzsche, mas a singularidade do seu estilo, o uso de metáforas e figuras, não

permitiu que a popularização do seu pensamento formasse escolas e nietzschianismos. Nietzs-

che é pop, mas continua dinamite. Não apenas por sua crítica aos valores ocidentais (fosse

apenas isso hoje ele seria irrelevante) mas, sobretudo, pela profundidade e potência de suas

metáforas e figuras e como elas ainda ajudam no diagnóstico de nosso tempo e no prognóstico

do futuro que almejamos.

Para compor este estilo filosófico singular e relevante, Nietzsche elaborou uma série de

“figuras” emblemáticas que marcaram o seu pensamento desde o início. Personagens

11
mitológicas ou históricas, como Prometeu, Dionísio e, talvez a mais célebre das figuras nietzs-

chianas, o Zaratustra, foram encarnadas no pensamento do filósofo de maneira muito particular,

moldadas de acordo com as formas e contornos de suas perspectivas 1.

Sobre essas personagens, o filósofo francês Gilles Deleuze (1925–1995) listou, em sua

obra intitulada Nietzsche (1965), algumas das principais: ele menciona a Águia (e a Serpente),

a Aranha (ou Tarântula), o Bobo (ou Macaco, Anão ou Demônio), dentre outras. Esse recurso

revela, segundo Deleuze (1965, p. 17), “(...) uma nova concepção da filosofia, uma nova ima-

gem do pensador e do pensamento” mais imagética e intuitiva, ao invés de abstrata e racional,

ao utilizar figurações como forma de expressar ideias e conceitos.

Deleuze argumenta que essas personagens permitem que o filósofo dê um sentido mais

profundo e abrangente aos seus pensamentos. Ele ainda afirma que “Ao ideal do conhecimento,

à descoberta do verdadeiro, Nietzsche substituiu a interpretação e avaliação. Uma fixa o sentido,

sempre parcial e fragmentário, de um fenômeno; outra determina o valor hierárquico do sentido

e totaliza os fragmentos, sem atenuar nem suprimir sua pluralidade” (Idem, ibidem). Sendo a

verdade uma perspectiva, a compreensão de um conceito só poder ser alcançada através da

interpretação e da avaliação. É no ritmo de uma leitura muito próxima a de Deleuze que esta

tese procura identificar, no conjunto das obras de Nietzsche, outra personagem, ainda pouco

explorada pela literatura, a saber: o Reconhecente (Erkennende). Desse modo, busca interpretar

a personagem Reconhecente, fixando-lhe um sentido, e determinar o valor desse sentido perante

a cultura e a filosofia; para que assim esta figura possa ser compreendida.

Deleuze segue salientando que, em Nietzsche, essa nova concepção da filosofia e essa

nova imagem do filósofo são incorporadas em sua estilística, já que “O aforismo, precisamente,

é ao mesmo tempo a arte de interpretar e a coisa a se interpretar; o poema é ao mesmo tempo a

1
Para um estudo sobre as personagens históricas e sua incorporação em Nietzsche, cf. FERNANDES, 2003.
12
arte de avaliar e a coisa a avaliar”. (Id., ibid.). Disso resulta que “O intérprete é fisiólogo ou

médico, aquele que considera os fenômenos como sintomas e fala por aforismos. O avaliador é

o artista, que considera e cria ‘perspectivas’, que fala pelo poema. O filósofo do futuro é o

artista e o médico — numa palavra, legislador.” (Id, ibid.), conclui Deleuze. Consonantemente,

defendemos que o Reconhecente é esse artista e médico que interpreta e avalia sua cultura, seus

mundos (assim interpretamos seu sentido), e, com isso, torna-se também seu legislador (assim

determinamos seu valor).

Por vezes traduzido como “homem do conhecimento” — ou algo similar, o Reconhe-

cente passa quase desapercebido para a maioria dos leitores de Nietzsche. Não raro, o termo

Erkennende é tomado como mera expressão casual. Porém, como se pretende mostrar ao longo

deste trabalho, o Erkennende, ou o Reconhecente (como se optou por traduzir aqui)2, representa

muito mais do que isso. Ele diz, antes, da perspectiva filosófica nietzschiana conformada em

mais uma de suas personagens, mais uma de suas figuras emblemáticas. Essa perspectiva, como

ver-se-á, diz respeito à articulação entre dois conceitos fundamentais, quais sejam: o

2
Sobre a tradução do termo Erkennende, um dos tradutores de Nietzsche, Paulo César de Souza, escreve em nota:
“’homens do conhecimento’: Erkennende, do verbo erkennen (...) Observe-se que não se trata de homens de co-
nhecimento, isto é, que o possuem; uma alternativa seria ‘cognoscente’, mas, embora se trate de um gerúndio
substantivado como o termo original, pertence a um registro mais elevado (mais erudito) do que este. As versões
consultadas oferecem: ‘que buscais o conhecimento’, hombres del conocimiento, uomini dela conoscenza, qui
cherchez la connaissance, disciples de la Connaissance, you lovers of knowledge, you enlightened men, you who
understand (...)” (NIETZSCHE, 2011, p. 321-322). Em outra nota, afirma: “(...) Erkenntnis corresponde a erken-
nen [conhecer, reconhecer, discernir, perceber] (...)” (NIETZSCHE, 1992, p.220) julgamos que o termo Erken-
nende pode ser melhor compreendido se delimitarmos conceitualmente Erkenntnis como uma síntese entre o saber
(wissen), o conhecer (kennen) e o reconhecer (erkennen), por isso, “homem do reconhecimento” seria mais ade-
quado por preservar essa relação que propomos entre Erkenntnis e erkennen, caso queira-se salvar a palavra “ho-
mem” na tradução. De fato, podemos encontrar trechos na obra nietzscheana onde ele utiliza a expressão “der
erkennende Mensch” (NF-1877 22[28]), ou ainda “Mann der Erkenntniss” (M§342) e “Der Mensch der Erkennt-
niss” (ASZ I§10), possivelmente esses usos (alguns com sentidos similares ao termo “der Erkennende”) motivou
a tradução por homem do conhecimento. No entanto, julgamos problemática a tradução do termo com a palavra
“homem”, diante da demanda nietzschiana para que o filósofo do futuro, o Erkennende, seja o percursor do além-
homem (Übermensch). Comentando essa tradução de Souza, Moura (2020, p. 184) pontua que “Apesar de não
termos nenhuma objeção em relação à essa opção, preferimos utilizar ‘conhecedor’ para manter a prática nietzs-
chiana de recorrer a um substantivo derivado de verbos como modo de caracterização de si mesmo”. No caso da
nossa tradução por Reconhecente, endossamos a posição de Moura, todavia, optamos por um termo que logre
distinguir claramente que não se trata de “conhecedor” ou “reconhecedor” no sentido comum. Por esse motivo,
sustentamos que o termo Reconhecente alcança o objetivo de destacar que se trata de uma figura nietzschiana e
não de mera nomenclatura.
13
reconhecimento (erkennen) e a cultura (Kultur). Sobre esses conceitos, vale esclarecer um

pouco melhor seu emprego, à guisa de introdução.

Com o termo reconhecimento, não se indica aqui o uso da palavra no sentido corriqueiro,

mas sua aplicação conforme o vocabulário filosófico alemão — sobretudo aquele dos séculos

XVIII e XIX. Literalmente, o verbo erkennen pode ser definido como “(...) ver tão claramente

que se sabe para quem ou o quê se olha (...) identificar baseado em certas características (...)

ganhar clareza sobre alguém ou sobre algo; estimar de forma correta” (DUDEN, 2023). Nesse

sentido, o reconhecer se diferencia do conhecer (kennen) porque trata de “(...) notar [bemerken],

descobrir [entdecken], contemplar [erblicken], compreender [erfassen]” (Idem, ibidem) e não

de um “entender [verstehen]” ou de um “dominar [beherrschen]” (que caberiam ao conhecer).

Por isso, dentre as traduções para o português, encontramos termos como “(...) distinguir-se (...)

(re)conhecer (...) diagnosticar (...)” (LANGENSCHEIDT, 2001, p. 780). Como ficará claro no

decorrer deste trabalho, o reconhecer está muito mais ligado à experiência e à vivência do que

à abstração teórica, própria do conhecer das ciências (Wissenschaften). Assim, ele se distingue

também do saber (wissen) — aquele conhecimento que pode ser acumulado e catalogado, cuja

ação não depende de um contexto específico. Nesse sentido, as máquinas e inteligências artifi-

ciais podem saber tanto quanto seres humanos — ou mais, desde que sejam capazes de acumular

e processar informações. Por outro lado, o reconhecer é o saber tornado vivo, pois ocorre sem-

pre durante uma vivência. Isso quer dizer: é um saber incorporado, uma carne que se fez verbo

— e, por isso, apenas viventes reconhecem. Há, portanto, um elemento sensível e intuitivo no

reconhecimento que não pode ser dissociado do corpo do vivente que reconhece, nem tampouco

plenamente comunicado a outro vivente. Por isso, aquilo que é reconhecido por um corpo não

pode ser totalmente conhecido por outro, ou por uma máquina.

Além disso, por cultura, entende-se não o conceito de educação ou formação (Bildung)

cultural, pertinente a uma “pedagogia” do cultivo moral (cf. ALVES, 2018; STONAJOV, 2012).

14
Refere-se aqui à cultura (Kultur) enquanto fatos sociais — tanto no sentido de um sistema de

ideias e representações, quanto desde uma perspectiva mais refinada dos fatos sociais como

estruturas (cf. MERLEAU-PONTY, 1980, pp. 193-196)3. O Reconhecente enquanto médico da

cultura é, portanto, alguém que interage e devolve aos mundos seu caráter de condição para a

vida — isto é, sua possibilidade de incorporação — desconstruindo e reformulando as crenças

arbitrárias e ilusórias que orientam e ordenam as dinâmicas sociais.

Em certa medida, esse é o critério que embasa a noção de saúde de Nietzsche: a cultura

como unidade de sentido dos mundos incorporados é saudável quando afirma o corpo, quando

não distingue uma saúde essencialmente corporal de uma mental, pois já superou a dicotomia

corpo e espírito, cultura e natureza (cf. LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 41ss). Não é uma cultura

antinatural pois não renega a animalidade dos humanos, nem se restringe às sensações corporais

compartilhadas, já que nos mundos há muito de simbólico e “espiritual”. Para revelar a “glória

dos mundos”, no entanto, o Reconhecente oferece sua carne, torna-se cobaia e oferenda.

Para isso, leva-se em conta, como dito, que há algo das vivências que não pode ser

comunicado, já que a vivência é singular — e, caso fosse possível comunicá-las em sua inte-

gridade de sentido, elas poderiam ser transmitidas em sua totalidade de modo intersubjetivo (o

que não é possível, já que exige o corpo presente). Desse modo, aquele que alimenta um pathós

pelo conhecimento possui valor maior enquanto ser existente, pessoa encarnada, do que aquelas

mortas abstrações em papéis e máquinas de silício que possam, de algum modo, comunicar e

classificar os saberes. Sendo assim, essa pesquisa nos permite pensar uma vida acadêmica que

esteja para além da produção acadêmica e transmissão de saberes desencarnados; uma vida

3
Não cabe nesta tese entrar em uma discussão pormenorizada das múltiplas definições de cultura postuladas nas
mais diversas áreas das Ciências Sociais e Humanidades. Por esse motivo, limita-se às referências anunciadas por
Maurice Merleau-Ponty (1908–1961) em seu estudo De Mauss a Lévi-Strauss (1963), onde o autor elenca as con-
tribuições de Émile Durkheim (1858–1917), Marcel Mauss (1872–1950) e Claude Lévi-Strauss (1908–2009). No
terceiro capítulo desta tese, expor-se-á uma definição de cultura própria ao pensamento de Nietzsche.
15
política para além daquelas institucionais; uma vida estético-cultural para além da mercantili-

zação da arte e cultura de massa.

Com isso em mente, esta tese visa defender que o Reconhecente representa um tipo de

“filósofo ideal” para Nietzsche. Isso, porque ele não procura o conhecimento como um fim em

si mesmo, todavia, antes, conhece e reconhece para viver melhor e atuar sobre a cultura. Ao

contrário de ainda outra figura, do Sabido (Wissende) — que se apaixona e se vangloria por um

conhecimento racional que somente apazigua inquietações, mas o deixa inerte diante do mundo

— o Reconhecente acumula as experiências na medida em que vive e, assim, transforma seus

mundos. Sendo assim, busca-se tornar claro como é possível articular reconhecimento e cultura

a partir da figura do Reconhecente em Nietzsche — isto é, de verificar como o reconhecimento

que advém de uma vivência possui condições de operar transformações na cultura e como, em

última instância, o Reconhecente é filósofo que promove essa articulação. Ou ainda, conforme

sugeriu Deleuze, o Reconhecente é, em uma só mão, intérprete e médico da cultura.

Ademais, interessa-nos aqui as intuições que o uso do termo Erkennende traz: a abertura

para outras formas de pensar, no lugar da rigidez das definições conceituais. Dentre as intuições,

as que mais nos interessam são aquelas que evolvem o sentido do ato de reconhecer, dentro do

debate epistemológico e ético-político acerca do reconhecimento4.

4
O reconhecimento em sua acepção social, como Anerkennung, tornou-se um conceito central nas últimas décadas
dentro da Filosofia Política, sobretudo a partir da obra “Kampf um Anerkennung” (Luta por Reconhecimento, 1992)
de Axel Honneth (1949), em suas últimas obras Honneth irá contrapor o conceito de Erkennen com o de Anerken-
nen, valorizando este último em detrimento do Erkennen, sobretudo em Verdinglichung - Eine anerkennungsthe-
oretische Studie (Reificação: Estudos de teoria do reconhecimento, 2005). Nessa obra, ao pensar a questão da
reificação, ele irá categorizar o Modus des Erkennens e o Modus des Anerkennens como duas condições existen-
ciais do ente humano, concluindo que o modo do Anerkenenn precede ao do Erkennen. A contraposição do reco-
nhecimento como Anerkennen e Erkennen, torna ainda mais relevante a definição do termo Erkennen em Nietzsche
para proporcionar outra perspectiva a este debate ético-político acerca do reconhecimento. Deste debate surge o
que ficou conhecido como “lutas por reconhecimento” que passou a ser capitaneadas por duas tendências: a assim
chamada positiva cujas referências clássicas além do Honneth é o Taylor (1931), cuja visão do reconhecimento
identitário de minoras é vista como algo positivo, defendendo a partir disso uma normatização institucional do
reconhecimento dessas minorias, dando origem aos debates identitários que moveram movimentos sociais e em-
basaram em grande medida as lutas políticas desde então; a outra vertente é representada por Judith Butler (1956),
entre outros, no Brasil defendida por Vladimir Safatle (1973), conhecida geralmente por reconhecimento negativo,
ou reconhecimento antipredicativo, que propõe que o reconhecimento quando normatizado torna-se instrumento
de sujeição dessas minorias a um poder reconhecedor. A esta vertente, que chamamos de reconhecimento
16
Essa articulação depende, todavia, do diálogo entre duas áreas da filosofia que compõem

o pano de fundo da discussão desta tese, quais sejam: epistemologia (ou teoria do conhecimento)

e filosofia social e política.

A epistemologia ocupa um lugar de importância por dois motivos: em primeiro lugar,

porque é com uma revisão e uma crítica da epistemologia desenvolvida nos séculos anteriores

que Nietzsche começará a formular suas considerações sobre o reconhecer, o Reconhecente e,

ademais, também sobre sua função na cultura; em segundo, porque a centralização das ciências

e do conhecimento na nossa cultura exige, sem dúvidas, uma reflexão filosófica urgente. Sem

isso, não é possível avançar muito no que tange especificamente aos problemas filosóficos de

nosso tempo.

Já a filosofia social e política entra na medida em que representa uma demanda filosófica

de promover alterações reais e mudanças significativas — o que conversa diretamente com a

proposta do próprio Nietzsche de transvalorar os valores.

alteritário, buscamos outra perspectiva a partir desta pesquisa. Nossa pretensão é fundamentar este debate político
acerca do reconhecimento partindo do pensamento nietzschiano, ao invés do pensamento hegeliano, como faz
Honneth e, em maior ou menor medida, ambas as tendências. Assim, partindo de uma fundamentação epistemo-
lógica do Erkennen a partir da obra de Nietzsche, pretendemos valorizar as consequências ético-políticas da inter-
pretação do reconhecimento a partir de seu caráter alteritário, indiferente à aceitação e reconhecimento de uma
racionalidade estatal ou institucional para afirmar-se. Com isso, visamos uma alternativa ao reconhecimento iden-
titário, fundamentado a partir da noção hegeliana de Anerkennung e vinculado à noção de uma racionalidade que
busca abarcar em si a totalidade das diferenças. Dentro dessa corrente, formulou-se uma visão comumente deno-
minada de multiculturalismo com o intuito de repensar as noções de igualdade, diferença e tradição a partir de um
contexto de globalização. Embora a problemática multiculturalista tenha perdido força dentro da academia nos
últimos anos, sobretudo na Europa, ela adquiriu nova relevância a partir da ascensão de governos nacionalistas e
o surgimento de uma nova ordem mundial multipolar. Especialmente no que diz respeito à questão do reconheci-
mento de minorias dentro das democracias liberais ocidentais, uma problemática que também ganhou relevância
no Brasil. No âmbito do debate filosófico o tema se torna relevante a partir da necessidade em se pensar um ethos
humanista que não seja universalista e abarque em si diversos modos de ser humano, ou ainda, para que a crítica
à cultura de massa não se converta em tradicionalismo, nacionalismo ou provincianismo e, sobretudo, para que a
crítica aos identitarismos não se torne um pretexto para desumanizar e atentar contra a dignidade de grupos sociais
marginalizados ou invisibilizados. O reconhecimento quando identitário normatiza, quando alteritário potencializa.
O reconhecimento enquanto saber incorporado não pode ser normatizado nem reconhecido por uma instituciona-
lidade política ou acadêmica, pois é uma experiência, e assim, há algo de singular que não pode ser transmitido e
classificado. Incorporar o estranho (no contexto de uma política e epistemologia alteritária) é uma forma de trans-
formar o corpo em instrumento político e epistemológico. A valorização do caráter alteritário do reconhecimento
também aproxima esta tese da valorização ética da alteridade proposta por Emmanuel Levinas (1906-1995), desde
sua obra magna Totalidade e infinito (1961), mas, sobretudo, em seus últimos escritos, como Entre nós: ensaio
sobre a alteridade (1991).
17
Em suma, a tese sobre o reconhecimento e a cultura a partir da figura do Reconhecente

em Nietzsche é, no final das contas, uma tese sobre os fundamentos epistemológicos desde os

quais se torna possível atuar filosoficamente sobre nossos mundos e culturas — e esse é nosso

alvo final. Desse modo, pensamos a epistemologia de um modo encarnado e resguardarmos seu

caráter de condição para a vida. Tanto do ponto de vista ético, o Reconhecente enquanto indi-

víduo singular que justifica e potencializa sua vida através da paixão pelo conhecimento; quanto

pelo ponto de vista político, o Reconhecente enquanto agente de transformação social atuando

através da ressignificação da cultura e dos mundos que o transpassa. Para que o conhecimento

e a cultura possam ser reconhecidos e vivenciados em nossos mundos.

Para Nietzsche, o filósofo ideal é aquele que percebe a dinâmica fluida e vital dos sabe-

res e da cultura, compreendendo que o valor histórico e teórico das representações abstratas

está intimamente ligado às vivências atuais. Assim sendo, a filosofia deve promover uma cul-

tura autêntica, que possa ser vivida e encarnada, a fim de evitar que ela se torne promotora de

uma cultura decorativa e desvinculada das vivências. Quando a meta da cultura é a formação

de indivíduos singulares, pautados por um ideal de grandeza e autossuperação, a sua meta torna-

se a mesma da filosofia.

Dessa forma, cabe ao filósofo reconhecer o papel que exerce perante a cultura, utili-

zando seus saberes para compreender as vivências autênticas de um povo e distinguir aquela

cultura que se limita ao passado e às abstrações teóricas daquela que é vivida no presente. Para

tanto, é necessário que se compreenda como a cultura se desenvolveu genealogicamente ao

longo do tempo e como ela pode evoluir e se adaptar às novas vivências, evitando que ela perca

a sua vitalidade e possa, assim, desaparecer.

O filósofo, dessa maneira, não só reconhece a cultura passada, mas também busca criar

um novo futuro para ela, dotando-a de vitalidade. Para isso, o conhecimento e o saber são uti-

lizados como medicamentos pelo filósofo, com o intuito de harmonizar a cultura e a vida. É

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essencial que o saber e o conhecimento sejam reconhecidos e incorporados às vivências cultu-

rais, a fim de que possam promover uma cultura autêntica e singular, capaz de se adaptar às

transformações inerentes à vida, expressando assim a vontade unitária de uma coletividade em

determinado tempo e espaço. Daí a necessidade em fundamentar epistemologicamente o reco-

nhecimento para compreendermos a sua potência alteritária, agindo como instrumento de ação

filosófica na cultura e nos mundos que nos transpassam.

Para alcançar o objetivo proposto, esta tese apoia-se em uma metodologia de leitura e

análise de textos de Nietzsche, oferecendo interpretações desde contextualizações específicas

— seja do cenário histórico-filosófico com o qual Nietzsche dialogava, seja levando em consi-

derações aspectos biográfico-filosóficos de seu pensamento.

Além disso, optou-se aqui pelo cotejamento dos escritos de Nietzsche no idioma original,

em alemão5, com as traduções já estabelecidas e amplamente utilizadas — que, embora sejam

criticadas por reducionismos terminológicos — não podem ser desconsideradas. Sempre que

possível, recorreu-se ao texto traduzido para o português ou ao espanhol e, quando necessário,

utilizou-se da fonte original em alemão para propor uma tradução.

Por fim, a tese aqui apresentada persegue o seguinte roteiro: o primeiro capítulo aborda

“A Epistemologia do Reconhecer em Nietzsche”. Ali, apresenta-se os graus do conhecimento

conforme as Preleções sobre Lógica de Immanuel Kant (1724–1804), explorando, na sequência,

como Arthur Schopenhauer (1788–1860) critica a epistemologia kantiana e, ao final do capítulo,

tratando das considerações de Nietzsche sobre o conhecimento enquanto conhecer e reconhecer

a partir de sua epistemologia.

O segundo capítulo se dedica a analisar “O Reconhecente na Obra Nietzschiana”. Em

primeiro lugar, investigando o emprego do termo nos estudos de Nietzsche sobre Demócrito de

5
Optou-se pelo uso da Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe, disponível no site Nietzsche Source,
por ser a versão mais amplamente acessível aos leitores.
19
Abdera (c. 450 a.C.) enquanto “Reconhecente Universal” (universale Erkennende); logo após,

verificando como Nietzsche situa Prometeu como Reconhecente, em seu chamado “Período

Trágico”; ao final, resgatando algumas referências de Nietzsche ao Reconhecente em suas obras

de maturidade.

O terceiro e último capítulo, “Reconhecimento e Cultura em Nietzsche”, desenvolve os

dois temas mais importantes da tese, quais sejam: como o conhecer e reconhecer proporcionam

um conhecimento projetado para uma vivência da cultura e, finalmente, como o Reconhecente

atua como médico da cultura.

Portanto, esta tese pode ser considerada como um ponto de partida para outras pesquisas

acadêmicas que porventura envolvam essa figura ainda inexplorada nos estudos nietzschianos

que é o Erkennende — o filósofo como aquele que reconhece, não apenas aquele que sabe ou

conhece. Para além de proporcionar um fruto ao leitor interessado em Nietzsche, alimentando

outras pesquisas acerca do pensamento nietzschiano, esta tese também foi movida pela sede de

semente por novas terras, longe dos férteis vales nietzschianos. Essa possibilidade foi o que

adubou esta tese, nutriu suas raízes. Plantada nas dunas e falésias do litoral nordestino, irrigada

e colhida nas planícies alagadas amazônicas, esta tese também foi adubo e alimento para mu-

danças e andanças país afora, norte adentro, interior acima, em tempos pandêmicos e governos

transgênicos, foi sobretudo as lentes teóricas para reconhecer melhor os mundos que nosso Bra-

sil monocultural invisibiliza.

20
1 A Epistemologia do Reconhecer em Nietzsche

O termo epistemologia pode ser amplamente definido como uma teoria ou um discurso

filosófico em torno ao conhecimento, ao entendimento ou à ciência (cf. STEUP; RAM, 2020).

Apesar de amplas, as questões epistemológicas orbitam algumas perguntas fundamentais como:

o que é conhecimento?; o que queremos dizer quando afirmamos que sabemos algo?; quais são

as fontes do conhecimento?; quais os limites do conhecimento?; como distinguir conhecimento

de crença?; entre outras (cf. WENNING, 2009, p. 3ss). Em sentido mais estrito, a epistemologia

pode ser concebida como uma das áreas basilares da filosofia.

Embora seja possível encontrar questões epistemológicas relevantes já entre os filósofos

gregos6, somente na Modernidade a epistemologia assumiu uma posição de importância nuclear

para o pensamento filosófico. Como ficou historicamente conhecida, a “virada epistemológica”

deve sua nomenclatura às respostas dadas, não apenas, mas, principalmente, por René Descartes

(1596–1650) e por Thomas Hobbes (1588–1679) às demandas de seu tempo. Pelo menos essa

é a interpretação do filósofo estadunidense Richard Rorty (1931–2007), em seu A Filosofia e o

Espelho da Natureza (1979).

Conforme Rorty (1994, p. 137), no século XVII ainda não havia uma filosofia enquanto

disciplina acadêmica autônoma, nem uma divisão entre metafísica, epistemologia, ética e assim

por diante. Antes, os filósofos modernos “Lutavam (embora discretamente) para tornar o mundo

intelectual mais seguro para Copérnico e Galileu.” (Idem, ibidem). Rorty prossegue salientando

que tampouco havia diferença evidente entre filosofia e ciência e que “Não foi senão depois de

6
Para um estudo mais aprofundado da epistemologia na filosofia grega clássica, cf. GERSON, 2009.
21
Kant que uma distinção filosofia-ciência entrou em vigor.” (Id., ibid., p. 140). Ainda sobre isso,

Rorty pontua que

A consequente demarcação da filosofia em relação à ciência foi tornada possível pela

noção de que o cerne da filosofia era a “teoria do conhecimento”, uma teoria distinta

das ciências porque era seu fundamento. Agora retraçamos essa noção pelo menos até

as Meditações de Descartes e De Emendatione Intellectus, de Espinosa, mas a mesma

não adquiriu autoconsciência até Kant. (Id., ibid.)

Essa consciência de que a epistemologia havia se tornado o centro das preocupações filosóficas

derivou dos esforços de Kant em elevar a ciência do nível empírico ao a priori. Também coube

a Kant identificar, ademais, as questões centrais da epistemologia.

Em suma, Kant sintetizou as duas premissas fundamentais de seus predecessores, quais

sejam: a hipótese racionalista de que o conhecimento é adquirido por meio da razão e a hipótese

empirista de que ele advém, antes, das percepções sensíveis. Sobre isso, Kant sustenta que “Não

resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência (...) Se, porém, todo o

conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência.”

(KANT, 2001, p. 36). Ademais, ele propôs como primeira e mais importante tarefa da filosofia

a dissolução de perspectivas dogmáticas e relativistas, formulando, com isso, uma crítica acerca

do método das ciências (cf. Idem, ibidem, p. 23). É a partir de suas considerações, portanto, que

o pensamento filosófico se volta para o questionamento em torno às possibilidade de conhecer

e os fundamentos da ciência.

Mais tarde, já a partir do século XIX, com a recepção da filosofia de Kant, emergiram

termos para nomear esse novo movimento, como “doutrina do conhecimento” (Erkenntnislehre)

e “teoria do conhecimento” (Erkenntnistheorie). Com isso, a epistemologia alcançou estatuto

disciplinar e, na mesma toada, um questionamento rigoroso sobre si mesma. Nascia, então, a

22
problemática epistemológica que orientaria praticamente todo pensamento filosófico do final

do século XIX e início do XX.

É com esse cenário em mente que este capítulo se dedica a apresentar a epistemologia

do Reconhecer em Nietzsche. Para tanto, surge-nos a necessidade em delimitar a atividade do

conhecimento (Erkenntniss) em duas instâncias: conhecer (kennen) e reconhecer (erkennen). A

diferenciação da atividade do conhecimento em conhecer e reconhecer remonta filosoficamente

à Poética de Aristóteles de Estagira (384–322 a.C.) e sua diferenciação entre oída, gignósko e

anagnórisis quando analisa as ações dos personagens trágicos. Para ele, “o reconhecimento

[anagnórisis], como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar [agnoías]

ao conhecer [gnósis]” (ARISTÓTELES, 2008, p. 64). Aristóteles faz uso, na obra em questão,

do termo anagnórisis para designar o momento em que o herói reconhece a tragicidade de seu

destino. Por exemplo: Édipo “sabia-que” (oída) havia praticado um assassinato e desposado

uma mulher, “sabia-como” (gignósko) havia realizado isso, mas não “reconhecia” (anagnórisis)

o incesto e o parricídio presente nas suas ações. O momento de maior tensão na tragédia era

quando esse reconhecimento acontecia. Tratava-se de um recurso narrativo que consistia na

tomada de consciência por parte de uma personagem de dados essenciais de sua identidade,

assim como daqueles que o cercam, de modo a produzir uma mudança na compreensão que o

personagem tem de si e daqueles que o rodeiam. Há um elemento trágico no reconhecimento,

comumente associado às tragédias clássicas, como aponta Aristóteles, no momento da trama

onde há um giro da fortuna dos personagens, uma mudança de perspectiva, momento auge da

catarse. Quando, por exemplo, em As Bacantes a personagem Agave retorna à Tebas e, então,

reconhece que a cabeça que carrega nas mãos não é de uma fera como acreditava, mas do seu

próprio filho, Penteu. A anagnórise ocorre até nas comédias, como nas obras de Menandro e

seus personagens que, sendo nobres, são criados na pobreza, mas, ao final, reconhecem a sua

identidade como membros da realeza. Na arte épica um clássico exemplo de anagnórise aparece

23
nos cantos finais da Odisseia, no retorno de Ulisses à sua pátria, quando seu cão, sua velha ama,

seu filho, seu pai e, por último, sua esposa, passam a reconhecê-lo.

Portanto, sustentamos que a vocação filosófica passa por algum tipo de experiência de

anagnórisis. Alguma epifania que nos leva a reconhecer a realidade e os saberes por intermédio

de uma perspectiva que foge ao comum, ao estabelecido, ao habitual.

Os pensadores jônios, assim como os poetas arcaicos, também valorizaram o espanto e

o reconhecimento, dando a essas duas ações um caráter que ultrapassa o uso estético e estende-

se para a epistemologia e a ética. Os jônios exaltavam o papel do espanto como condição inicial

de uma investigação da natureza que permitisse o reconhecimento das forças e causas naturais

até então ocultas pelos mitos.

Ademais, a busca do reconhecimento da natureza estava associada à prática moral, um

modo de conduta, uma estilística existencial. Não por acaso, Aristóteles afirma que os poetas e

os filósofos possuem o mesmo desejo pelo conhecimento, na medida em que amplifica nossa

capacidade em reconhecer o mundo que nos cerca. Para o Reconhecente, a apreensão e o saber

são meios, a finalidade é o reconhecimento de si e dos mundos que o transpassa para que assim

possa agir sobre si e os mundos.

Levando em conta essa reflexão inicial, o objetivo central deste capítulo é, portanto,

demonstrar como, em Kant, a empreitada epistemológica realiza uma divisão das atividades do

conhecimento por graus de importância e, em seguida, como essa divisão kantiana é criticada,

primeiramente pelas considerações apresentadas por Schopenhauer em sua obra O Mundo como

Vontade e Representação (1819) e, logo em seguida, por Nietzsche — principalmente, em sua

Gaia Ciência (1882). Com esse objetivo, buscamos fundamentar conceitualmente o que é isto

— o reconhecimento — para, no capítulo seguinte, compreendermos melhor porque Nietzsche,

por meio da figura do Reconhecente, valoriza o reconhecimento como atividade principal do

24
filósofo ideal na busca pelo conhecimento e, no capítulo final, compreendermos a relação entre

reconhecimento, vivência e cultura.

1.1 Os Graus do Conhecimento em Kant

Como já foi dito, com Kant, a problemática epistemológica passa a orientar a filosofia.

Já na Crítica da Razão Pura (1781) vigem as condições de possibilidade do conhecimento que

fundamentarão sua ulterior divisão dos graus do conhecimento. Ali, Kant propõe uma primeira

divisão em representações (Vorstellung) das impressões sensíveis e do conhecimento do objeto

por meio dessas representações (durch diese Vorstellungen einen Gegenstand zu erkennen) (cf.

KANT, 1919, p. 106; 2001, p. 88). Segundo Kant, enquanto a primeira nos dá objetos, a segunda

os pensa e produz conceitos. Nesse sentido, para Kant, toda produção conceitual e propriamente

filosófica faz parte de uma atividade do reconhecer (erkennen).

Contudo, como é possível observar nas Preleções sobre Lógica (1800), Kant aprofunda

essa primeira divisão e especifica que há graus do pensamento hierarquicamente distintos e que

se referem aos acréscimos do nível do conhecimento.

O primeiro e mais baixo graúdo do conhecimento é, para Kant, o representar (vorstellen).

Esse grau do conhecimento envolve os elementos presentes naquilo que Kant havia postulado

na Estética Transcendental da Crítica da Razão Pura, conforme os quais, segundo Kant, “A

capacidade de receber representações (receptividade), graças à maneira como somos afetados

pelos objetos, denomina-se sensibilidade.” (Idem, 2001, p. 61). Isso quer dizer: o primeiro grau

do conhecimento em Kant coincide com o início do conhecimento nas experiências adquiridas

por meio das percepções dos sentidos.

Em seguida, Kant coloca o perceber (wahrnehmen) — para o qual também emprega o

termo latino percipere e cuja definição é “(...) representar algo por meio da consciência (...)

25
[sich mit Bewusstsein etwas vorstellen]” (Id., 1800, p. 96). Ou seja, para além da percepção

sensível propriamente dita, o perceber enquanto percipere envolve um ato de abstração.

Depois, Kant posiciona o conhecer (kennen) — fazendo uso da expressão latina noscere

— definido enquanto “(...) conceber alguma coisa em comparação com outra, tanto em suas

semelhanças quanto em diferenças [etwas in der Vergleichung mit andern Dingen vorstellen

sowohl der Einerleiheit als der Verschiedenheit nach] (Idem, ibidem).

Logo após, Kant põe o reconhecer (erkennen) — para o qual utiliza a palavra latina

cognoscere e que é definido como “(...) conhecer algo com a consciência [mit Bewusstsein

etwas kennen]” (Id., ibid.), ou seja, introspectar o conhecer já previamente mencionado dentro

da consciência.

Conforme Pimenta (2013, pp. 293-294), esses quatro primeiros graus descritos por Kant

podem ser esquematizados com base em dois critérios: consciência e comparação. O primeiro

grau não dependeria de consciência, nem de comparação. O segundo envolveria a consciência,

mas não comparação. O terceiro não dependeria da consciência, mas sim da comparação. O

quarto grau envolveria ambos, consciência e comparação.

Ainda sobre esse ponto, Kant oferece um exemplo dizendo que: “Os animais também

conhecem os objetos, mas não os reconhecem [Die Thiere kennen auch Gegenstände, aber sie

erkennen sie nicht]” (KANT, 1800, p. 96). Ou seja, só os seres humanos têm uma consciência

pela qual logram reunir o conhecimento adquirido e, a partir disso, reconhecer esses objetos.

Adiante, Kant situa os três graus do conhecimento superiores, quais sejam: o entender

(verstehen/intelligere); o discernir (durch die Vernunft erkennen/perspicere); e o compreender

(begreifen/comprehendere) (cf. Idem, ibidem, p. 97). Enquanto o primeiro concebe conceitos

básicos, o segundo os distingue racionalmente e, por fim, o último se refere ao conhecimento a

priori.

26
Em suma, ao estabelecer os distintos graus do conhecimento, Kant posiciona o conhecer

(kennen) e o reconhecer (erkennen) em níveis muito mais baixos do que as outras atividades do

conhecimento. Será a partir desse ponto que Schopenhauer e Nietzsche formularão suas críticas

à epistemologia kantiana.

1.2 A Crítica de Schopenhauer à Epistemologia Kantiana

Para Schopenhauer, todo sistema filosófico deve ser fundamentado, em princípio, por

uma teoria do conhecimento — que, por sua vez, fundamentaria uma metafísica, seja ela da

natureza, do belo, ou ainda, dos costumes. É nesse sentido que Moreira (2004, p. 266) comenta:

No curso da história da filosofia, encontramos filósofos que negam a metafísica em

sentido tradicional, mas reconhecem a existência de uma forte aspiração metafísica

no homem. Schopenhauer acredita pertencer a esse grupo, mas, apesar de toda sua

discrepância e quebra da continuidade tradicional de enfrentar problemas filosóficos,

ele lida com o mesmo problema da busca do sentido metafísico do universo. O mundo

é enigma a ser decifrado. Para ele, Kant teria abandonado a tarefa própria da filosofia:

a decifração do enigma do mundo. Certamente, a negação da metafísica implicaria a

negação mesma do saber filosófico.

Daí seu esforço — no primeiro livro de O Mundo como Vontade e Representação (1819) —

em construir uma estrutura epistemológica que sirva de alicerce para sua metafísica imanente.

A epistemologia de Schopenhauer divide os objetos passíveis de serem representados

por um sujeito cognoscente em quatro classes. Primeiro, há representações intuitivas empíricas

— que correspondem às representações dos objetos materiais provenientes da sensibilidade e

do entendimento, sujeitas ao espaço e tempo e regidas pela lei da causalidade. Em seguida, há

as representações abstratas ou conceituais — provenientes do uso da razão e regidas pela lei da


27
justificação dos juízos. Depois, há representações do espaço e tempo — que são as formas puras

da intuição sensível, provenientes da sensibilidade pura. Por fim, Schopenhauer posiciona as

representações da vontade empírica tal como ela é percebida por um sujeito cognoscente —

provenientes da sensibilidade empírica.

Sendo assim, apenas a classe de objetos acessíveis pelas representações abstratas dos

conceitos exige o uso da razão em Schopenhauer, sendo as demais provenientes da intuição.

Enquanto a materialidade dos objetos da intuição é proveniente da intuição, a materialidade dos

objetos abstratos utilizados pela razão não vem dela mesma, mas da intuição, uma vez que não

há conceitos inatos e que nem tampouco a razão pode gerar conceitos abstratos que não estejam

inicialmente apoiados em representações intuitivas. As representações conceituais são, portanto,

representações de representações intuitivas — e quanto mais abstratas forem mais longe estarão

da sua origem intuitiva efetiva.

Desse modo, a estrutura epistemológica proposta por Schopenhauer, ao contrário da de

Kant, privilegia a intuição em detrimento da razão, subordinando essa àquela. Nesse sentido,

apropriamo-nos dessa valorização da intuição como elemento transgressor da razão dos mundos

estáticos e ideológicos.

Mas, para que a defesa de mundos e de culturas não desvirtue para o tradicionalismo

arcaico, a xenofobia e o nacionalismo, precisamos reconhecer que as representações culturais

abstratas possuem menos valor do que as representações intuitivas diretamente vinculadas à

vivência do povo que a sustenta. Por isso, a intuição é elemento transgressor de racionalidades

que perduram apenas de modo abstrato na vivência de um povo, que não lhes pertencem mais,

pois a materialidade e a vivacidade do passado abstrato que um povo possui em comum só pode

ser valorizado se for reconhecido intuitivamente no que é agora.

Schopenhauer irá superar o cânone geral no pensamento alemão da época de valorizar

a consciência abstrata e a concepção de uma razão transcendental alheia ao corpo que a sustenta.

28
Para ele, a razão não é autônoma, pois está submetida à vontade e, essa vontade, a um corpo.

Isso quer dizer que, em última instância, todos os esforços empreendidos por nossa consciência

abstrata derivam de um corpo que possui uma vontade pela qual a razão opera.

O filósofo de Frankfurt propôs, antes, uma filosofia imanentista. Com isso, na ausência

de algo que transcenda a vontade e o mundo, toda categoria epistemológica transcendental

emerge de uma manifestação da vontade no mundo. O pressuposto idealista da autonomia da

razão como consciência do mundo e consciência de si sofre um abalo com a prevalência de uma

vontade inconsciente proposta por Schopenhauer. Não há razão que seja autônoma da vontade

de um corpo efetivo e singular. E mesmo nesse corpo, a razão não é soberana.

Ademais, as estruturas epistemológicas se constituíram como manifestação da vontade

ao longo do devir histórico, o que não significa que a vontade se manifestará futuramente do

mesmo modo como foi antes. Nesse sentido, o mais relevante na crítica de Schopenhauer a

Kant não é tanto refutar a sua epistemologia, mas, antes, questionar a sua organização e os seus

resultados. Em O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer escreve:

Saber [Wissen], cujo oposto contraditório, o conceito de sentimento, explanei anteri-

ormente, é, como disse, qualquer conhecimento abstrato, ou seja, conhecimento raci-

onal. No entanto, visto que a razão reconduz perante o conhecimento sempre apenas

o que foi recebido de outro modo, ela não amplia propriamente dizendo o nosso co-

nhecer, mas meramente lhe confere outra forma. (SCHOPENHAUER, 1997, p. 104;

2001, p. 102)

Embora Schopenhauer reconheça a importância do conhecimento abstrato para a comunicação

acurada, ele não necessariamente elenca esse conhecimento como sendo superior às intuições.

Antes, como ele afirma, trata-se tão somente de uma forma diferente de conhecer. É a partir

desse ponto de vista que Nietzsche erguerá sua epistemologia do reconhecer.

29
1.3 O Conhecimento enquanto Conhecer e Reconhecer em Nietzsche

Se fôssemos estabelecer os graus do conhecimento em Nietzsche, poderíamos dizer que

ele volta três casas no tabuleiro kantiano e coloca o reconhecer (erkennen) no grau mais elevado

do conhecimento. Nietzsche parece não apenas ter aproveitado as críticas de Schopenhauer

como, ademais, levado adiante tais críticas em proporções muito mais radicais. Para Nietzsche,

as coisas não existem para serem conhecidas por um sujeito cognoscente. Antes, o sujeito é

quem busca dominar as coisas, conhecendo-as.

Ele irá propor que a história da ciência — do socratismo às ciências modernas — não

pode estar restrita a uma sucessão de métodos para explicar e entender o mundo, nem tampouco

à desinteressada busca por esclarecimento. Para Nietzsche, a ciência não faz senão justificar,

manter e aprofundar uma determinada convicção moral, a saber, aquela que busca e valoriza a

segurança e o conforto e que teme e desqualifica tudo aquilo que é desconhecido e inaudito.

Em outras palavras, para Nietzsche, o conhecimento se tornou um meio dissimulado para, de

algum modo, justificar a imobilidade e a comodidade.

Ao contrário do que afirmava Aristóteles, em Nietzsche não buscamos o conhecimento

por uma inclinação natural. Antes, buscamos conhecimento por medo do desconhecido, isto é,

por ânsia de segurança e conforto. Em sua Gaia Ciência (1882) Nietzsche indaga:

O que deseja quando quer “conhecimento (Erkenntniss)”? Nada além disto: alguma

coisa estranha deve ser posta em conexão com algo conhecido habitual (Bekanntes).

E nós, filósofos, que pretendemos entender por conhecimento? Aquilo que é conhe-

cido habitual (Bekannte), isto é, aquilo a que estamos habituados acostumados

(gewöhnt), de modo que não nos espantamos mais, nosso movimento quotidiano, uma

regra qualquer que nos rege, tudo que sabemos (wissen) nos é familiar; como?! Nossa

30
necessidade de alguma coisa conhecida reconhecer (Erkennen)? O desejo de descobrir,

entre todas as coisas estranhas, inabituais, incertas, alguma coisa que não nos inquiete

mais? Não seria o medo, enquanto instinto, que nos levaria a conhecer reconhecer

(erkennen)? O júbilo daquele que conhece dos Reconhecentes (Erkennenden)7 não

seria realmente o júbilo da segurança reconquistada? (NIETZSCHE, FW, 355; 1976,

pp. 243-244)

Nietzsche se levanta contra essa disposição moral no ato de conhecer — fruto de uma ânsia por

conforto e comodidade. Para ele, o conhecimento, encarado dessa forma, coloca o ser humano

no caminho oposto ao do filósofo, já que sacia o impulso de se lançar ao desconhecido e o

coloca para dormir naquilo que já conhece.

No final das contas, parece razoável admitir que é o fomento do desconhecido que co-

loca o filósofo em marcha — enquanto o habitual, conquanto confortável, deixa-o, antes, inerte,

estático diante do mundo, das experiências e mesmo da vida.

É possível pensar esse conhecimento (Erkenntniss) em Nietzsche como o resultado de

duas ações: conhecer (kennen) e reconhecer (erkennen)8. Esta distinção, como vimos na citação

7
Vemos aqui um uso crítico da expressão Reconhecente. Nietzsche o coloca no plural [Erkennenden] e o associa,
nesta conotação crítica, àquele que reconhece apenas o habitual, como o fazem os idealistas ao olharem para os
mundos humanos para reconhecer neles uma ideia a qual já estão habituados. Esses são os Reconhecentes do
passado, não o Reconhecente como filósofo do futuro, que busca reconhecer o estranho, o inabitual. O reconheci-
mento que busca o habitual é identitário, pois enxerga apenas o familiar e tende ao imobilismo dos mundos, en-
xergando apenas aquilo que lhe é próprio. O reconhecimento que busca a distância, o estranho, inabitual, é alteri-
tário, pois ressignifica, é transmundador. O mundo consciente é aquele a qual mais estamos habituados, por isso,
o reconhecimento alteritário deve ressignificar também o “mundo interior”, a própria consciência, através da afir-
mação dos impulsos não conscientes e da afirmação daqueles a qual não estamos habituados. Em se tratando do
“mundo exterior” é preciso reconhecer nele algo que nos seja alheio, estranho, inabitual, o reconhecimento nesse
sentido possui um caráter de “trazer algo” para o mundo interior, uma disposição anti-narcisista de reconhecer o
que não se é, mas que se poderia ou deveria ser. O reconhecimento do inabitual como potencializador do poder-
ser, isto é, como ação que amplia nossas possibilidades existenciais.
8
. Enquanto o ato de conhecer é estático e acumulativo, o ato de reconhecer é sempre uma ação dinâmica e sintética.
Posso conhecer (kennen) o alfabeto, mas não reconhecer (erkennen) algumas letras no exame de vista. Se eu não
conhecesse o alfabeto latino de antemão, mesmo com a visão aguçada, não poderia reconhecer os caracteres mos-
trados. Essa é a distinção entre o ato de reconhecer e o de conhecer, o reconhecer pressupõe um saber prévio, o
conhecer não. Se fosse estudar Platão em grego, precisaria antes conhecer o alfabeto grego para reconhecer um
significado naquilo que leio. O conhecer acumula conhecimento, o reconhecer o respaldo ou ressignifica. A esco-
lha por valorizar, na busca por conhecimento, o ato de reconhecer [erkennen] e não o de conhecer [kennen] é
porque o reconhecimento exige familiaridade, exige que se esteja habituado, ao contrário do conhecer
31
acima, não fica clara nas traduções9. O reconhecer se diferencia do conhecer não apenas na

questão temporal — enquanto algo que reconheço na duração de uma vivência — mas, também,

no quesito epistemológico, ou seja, no que tange especificamente à maneira pela qual Nietzsche

pensa a questão do conhecimento.

Por exemplo, posso conhecer que fisguei um peixe, mas não reconhecer de qual peixe

se trata pela puxada da linha. Quando o arrasto para a beira do rio, reconheço se tratar de um

curimatã. Eu já conhecia o curimatã antes, isto é, já sabia seu formato, sua textura, mas, apenas

agora, enquanto o arrasto pela beira, reconheço que foi ele que fisguei, ou, dito de outro modo,

agora conheço e, finalmente, reconheço qual peixe fisguei. Por isso, há conhecimento quando

conheci o curimatã através de outras pescarias, um conhecimento mais conceitual, e, também,

há conhecimento quando o reconheço na linha — um conhecimento mais intuitivo e ligado à

experiência de outras pescarias.

O mesmo vale para quando conheço uma doutrina ética e a reconheço nos julgamentos

que faço das minhas ações ou mesmo das ações de outras pessoas. Ou ainda, quando conheço

um dado científico e o reconheço em algum fenômeno natural ou social. Isso se dá em função

de duas instâncias basilares do conhecimento: a instância intuitiva e a instância racional ou a

priori.

Intuição, conforme própria origem latina do termo, tem algo de “in” ou “intus”10, isto é,

um voltar-se para dentro que necessita de uma ação, ou olhar individual mais atento. Trata-se

9
Paulo César de Souza também irá traduzir, nesse aforismo, Erkennen e suas derivações indistintamente como
conhecido, cognoscível e reconhecido
10
Nas duas considerações mais aceitas para a sua origem latina como intus (dentro) e actionis (ação), ou in (em)
e tueri (ver). Quando o jovem Nietzsche usa o termo intuição (Anschauung ou Intuition) durante os anos de 1871
a 1873, não o faz do mesmo modo que Kant ou Schopenhauer. Em Kant, Anschauung adquire o sentido limitado
de percepção sensorial, sendo em Nietzsche uma das “faculdades” do intelecto, assim como a razão, que embora
esteja associada com a percepção sensorial no sentido de apreensão de uma experiência, não se limita apenas a
uma atividade meramente perceptiva no sentido psicofisiológico, mas também uma atividade do espírito que não
se deixa simplificar em meros processos materiais. Nesse ponto, Nietzsche e Schopenhauer alinham-se na crítica
à intuição como mera percepção dos sentidos proposta por Kant, afirmando que a intuição está além da sensibili-
dade. Para Schopenhauer, as representações intuitivas não se justificam apenas pela sensibilidade pois dependem
32
de algo mais ligado à ação do que à memória. Daí a ligação do “in” da intuição com o “re” do

reconhecimento, que ao mesmo tempo tem algo de reflexivo, mas também de imersão. Caso

não atentasse esteticamente contra nosso gosto, até poderíamos falar de um “inconhecimento”

ou de uma “ingnosis” — que é diferente, diga-se de passagem, de algo como “aconhecimento”

ou “anticonhecimento”.

Mas, de qual intuição tratamos aqui ao relacioná-la ao conhecimento? Certamente, não

de uma intuição transcendental ou inteligível. Não é a intuição dos Românticos, nem uma graça

divina, tampouco a intuição de Gottfried Leibniz (1646–1716) da apreensão de verdades eternas

e necessárias (cf. LACERDA, 2014).

Trata-se, antes, de uma intuição imanente. E sendo uma intuição imanente, ela parte da

sensação, do corpo e, por essa razão, possui um caráter sensível, ôntico.

Quando falamos aqui em um “reconhecimento intuitivo” nos aproximamos daquilo que

Baruch Espinosa (1632–1677) entendia como o “terceiro gênero do conhecimento”, isto é, o

conhecimento intuitivo (cf. TEIXEIRA, 2001, p. 13). E sabendo que Nietzsche era um bom

leitor de Espinosa11, parece razoável que essa esteja presente.

Se formos avaliar o conhecimento tendo como critério a sua potência, colocaríamos no

grau menos elevado o conhecimento imaginativo, ou opinativo. Trata-se de um conhecimento

prático, advindo diretamente das percepções e sem pretensões de finalidade ou de casualidade

intersubjetiva. É, portanto, o grau mais subjetivo de conhecimento e o menos potente, já que

limita nossas potencialidades de ação às meras impressões e opiniões pessoais.

da lei da causalidade que só pode ser dada pelo entendimento, sendo assim, a intuição é possibilitada conjunta-
mente pela sensibilidade e pelo entendimento. A intuição empírica fundamenta, assim, todo o conhecimento abs-
trato e conceitual advindo do uso da razão. Apesar de Jaco Guinsburg (cf. NIETZSCHE, 1992, p. 27) optar pelo
neologismo “introvisão” para traduzir Anschauung, preferimos traduzi-lo por intuição. Há algo de visão e de olhar
na intuição — no entanto, não é uma introvisão, um olhar para dentro; seria, antes, uma extrovisão, um olhar para
(anschauen) algo que está fora, um modo de relacionar-se com o mundo de modo contínuo, sem as ilusões espa-
ciais e temporais da razão.
11
A influência de Espinosa em Nietzsche passou, sobretudo, pela leitura dos seis volumes da História da Filosofia
Moderna (1854–1877) de Kuno Fischer (1824–1907). Para um estudo mais detalhado sobre esse assunto, cf. SOM-
MER, 2012.
33
Logo acima, estaria o conhecimento racional, que possui um caráter dedutivo, como é o

caso da física e matemática. Ele busca causas e finalidades e, é, portanto, mais objetivo do que

imaginativo. Ele procura as características que os objetos possuem em comum e é, assim, mais

potente por permitir conjecturas e uma maior ação humana sobre a natureza.

O conhecimento intuitivo, o mais potente de todos, dar-nos-ia a percepção de realidades

que estão além da mera finalidade e casualidade. Com ele, intuímos a própria noção de deus

como casualidade do existente e passamos a ver o mundo com os seus olhos. Por esse motivo,

ele é o conhecimento mais perfeito, pois no conhecimento intuitivo encontramos a adequação

entre o espírito do sujeito e do objeto, superando as limitações entre sujeito e objeto presentes

nos outros graus de conhecimento.

Sendo o conhecimento o mais poderoso dentre os afetos e o conhecimento intuitivo o

mais potente dentre eles, por seu intermédio podemos nos construir e ser de muitos modos. Já

que é chegando à intuição de que somos parte de deus, também nos enxergamos como criadores

da vida — esse elemento é, em especial, aquilo que interessa-nos.

Nietzsche valorizará a intuição como meio de apreensão dos fenômenos empíricos. Ele

encarará o saber científico como estritamente conceitual e, nesse sentido, derivado de intuições

esvaziadas de sentido, que por sua vez estão sujeitas ao tempo, espaço e causalidade. No entanto,

Nietzsche, ao contrário do seus antecessores, não irá defender a noção de verdade como relação

de objetos intuitivos com conceitos racionais.

As verdades são fruto da linguagem, bem como a própria razão e, portanto, possuem,

em última instância, um caráter essencialmente ilusório e metafórico. Nietzsche vai ainda além

ao vincular a razão, assim como toda operação racional, ao âmbito da linguagem, transformando

o problema da verdade e dos limites da razão em um problema linguístico. Por esse motivo, a

compreensão epistemológica de Nietzsche nos interessa mais para pensar um conhecimento

34
dentro dos mundos que o sustentam e, ademais, a possibilidade transgressora da intuição e do

reconhecimento.

O conhecimento para Nietzsche se dá a partir de artigos de fé (Glaubenssätze). Não há,

portanto, uma estrutura epistemológica transcendental nem categorias a priori, mas tão somente

artigos de fé ou erros fundamentais que foram se consolidando. Ele enumera seis deles, quais

sejam: (i) existem coisas duráveis; (ii) existem coisas iguais; (iii) existem coisas; (iv) uma coisa

é aquilo que parece; (v) nosso querer é livre; e, por fim, (vi) o que é bom para mim é bom em

si.

Porém, se há alguma universalidade no ato de conhecer, essa universalidade não se dá

a priori, pois esses artigos de fé foram construídos e assimilados ao longo do devir histórico do

humano.

Ao contrário de Kant e Schopenhauer, as percepções dos sentidos e as sensações não

são, em Nietzsche, o primeiro ato do conhecimento — já que antes de sentir ou de perceber a

realidade e seus mundos, já somos condicionados pelos erros fundamentais que influenciam e

enviesam nossas percepções e sensações.

Assim, Nietzsche sustenta que

O intelecto gerou apenas erros durante vários séculos; alguns mostravam-se úteis à

conservação da espécie: quem os encontrava ou os recebia como herança lutava com

maior felicidade por si e pela sua descendência. Existem muitos desses artigos de fé

que transmitidos hereditariamente acabaram por se tornar uma espécie de massa e

fundo humanos (...) Apenas muito tardiamente se apresentaram pessoas que negaram

ou puseram em dúvida tais proposições — mui tardiamente surgiu a verdade, esta

menos eficaz forma de conhecimento. (NIETZSCHE, FW, 355; 1976, p. 123).

A verdade aparece, portanto, como a mais fraca forma de conhecimento. Essa fraqueza se dá

porque “A força do conhecimento, portanto, não reside em seu grau de verdade, mas em sua
35
antiguidade, seu grau de assimilação, seu caráter enquanto condição vital.” (Idem, ibidem).

Logo, quanto mais antiga uma verdade, mais incorporada por um povo em sua cultura, mais

“verdadeira” ela será.

É possível, portanto, concluir este primeiro capítulo sustentando que a epistemologia

nietzschiana recupera a importância do conhecer e reconhecer por meio de uma mudança de

critério, qual seja: não é a verdade que determina em qual nível um conhecimento encontra-se

— se mais alto e melhor, ou mais baixo e pior — mas, antes, a condição vital ou vivência que

o conhecimento proporciona.

Para Nietzsche, a valorização da capacidade humana de guiar suas ações e reconhecer o

mundo por meio de representações conceituais caracterizará aquilo que ele chamará de humano

teórico.

O teórico não é, todavia, algo estrutural ou a priori no humano, mas, antes, constituído

historicamente na humanidade europeia, sobretudo a partir de Sócrates (?–c.599 a.C.).

Esse humano teórico nietzschiano, chamamos também de “Sabido” (Wissende) — que

é aquele que conhece tendo como finalidade o mero saber em si. Contraposto ao Sabido está o

“Reconhecente” (Erkennende) — que busca saber para intensificar suas vivências. Um é o

amante da sabedoria, outro é amante da vida. A distinção entre um e outro é, justamente, o tema

de abertura do próximo capítulo.

36
2 O Reconhecente na Obra Nietzschiana

A predileção de Nietzsche por um conhecimento (Erkenntniss) do conhecer (kennen) e

do reconhecer (erkennen) — em contraste ao saber (wissen) das ciências (Wissenschaften) —

irá o levar à formulação de ainda outra distinção, qual seja: entre “Reconhecente” (Erkennende)

e “Sabido” (Wissende).

A figura do Sabido será duramente condenada por Nietzsche em diversos momentos de

sua obra. Em um de seus Fragmentos Póstumos, Nietzsche adverte “(...) contra a arrogância do

Sabido (...) [gegen den Hochmuth der Wissenden]” (NIETZSCHE, NF, 1875, 11, 50), atentando

para “(...) a impossibilidade de uma vida de sabedoria (...) [die Unmöglichkeit eines Lebens im

Wissen]” (Idem, ibidem).

Ele também condena o Sabido na segunda Consideração Intempestiva, ao exclamar:

“Europeus super orgulhosos do século dezenove, vocês estão loucos! Seu saber [Wissen] não

aperfeiçoa a natureza, apenas mata sua espécie. Mede a sua altura como Sabido [Wissender]

pela profundidade de sua proficiência.” (Id., UB: 9). Ademais, ele ainda diz, sobre o Sabido,

que “Sua forma de andar, escalando enquanto um Sabido [Wissender], é sua sina. O solo recua

ao desconhecido para você; não há mais nenhum suporte para a sua vida, só teias de aranha que

se rompem a cada nova tentativa de capturar algo do conhecimento [Erkenntniss].” (Id. ibidem).

Em outro momento, já em Humano, Demasiado Humano (1878), Nietzche novamente

falará da relação entre Sabido e o orgulho arrogante. Nietzsche afirma: “Em todas as épocas

chama-se — com razão — o orgulho de ‘vício do Sabido’ (...) [das Laster des Wissenden]” (Id.,

MA: 26). Ou seja, em resumo, Nietzsche identifica o Sabido com uma posição pretenciosa,

arrogante e ineficaz no que se refere ao manejo do conhecimento para com a vida.

37
Já o Reconhecente será, por outro lado, situado por Nietzsche como um modelo superior

na relação com o conhecimento. Em outro de seus Fragmentos Póstumos, Nietzsche refere-se

ao Reconhecente (der erkennende Mensch) como aquele que busca o conhecimento, não como

uma finalidade, mas como uma escada para uma meta maior — “(...) apenas o Reconhecente

deveria olhar para além da escada; afinal, enquanto seres humanos plenos, não somos somente

conhecimento” (Id., NF, 1877: 22), diz ele. Com essa passagem, Nietzsche sugere uma postura

na qual se lida com o conhecimento, mas não se limita a ele. O Reconhecente compreende que

há mais no mundo que o conhecimento. Por essa razão, ele não investe ali toda sua humanidade

e, ao contrário do Sabido, não se torna vaidoso daquilo que sabe.

Entretanto, a despeito da distinção entre Sabido e Reconhecente, não há, na literatura,

uma investigação pormenorizada desta figura do Erkennende. É levando isso em consideração

que, neste capítulo, dedicamo-nos a rastrear como o Reconhecente é pensado na obra nietzschi-

ana. Em primeiro lugar, explorando os estudos de Nietzsche sobre Demócrito de Abdera en-

quanto Reconhecente Universal. Em seguida, pontuando Prometeu enquanto Reconhecente. Ao

final, abordando a figura do Reconhecente nas obras de maturidade.

2.1 Demócrito como Reconhecente Universal

Encontramos um primeiro uso do termo Reconhecente (Erkennende) em Nietzsche nos

seus estudos sobre Demócrito, que remontam ao período no qual ele era estudante em Leipzig,

por volta de 1869. Ao elencar a lista dos sábios gregos, Nietzsche se refere a Demócrito como

o Reconhecente Universal (Der universale Erkennende). Por se tratar do primeiro emprego do

termo e por estar associado a Demócrito, julgamos importante compreender o contexto no qual

essa reflexão se manifestou, bem como o sentido no qual Demócrito foi assim entendido, como

Reconhecente Universal.

38
Nietzsche dedicou-se disciplinadamente aos estudos no período em que cursou Filologia

Clássica em Leipzig, entre 1865 e 1869. Esse foi um momento decisivo e determinante na sua

formação filosófica. Data desse período sua leitura de Kant, seu contato com Schopenhauer e

sua leitura de A história do materialismo (1866) de Friedrich Albert Lange (1828–1875)12.

Ao ler a obra de Lange, em 1866, Nietzsche se depara com os debates do Neokantismo

e da crise do Idealismo Alemão. Assim, Nietzsche assume duas posições que o acompanharão

ao longo de toda a sua obra: uma rejeição do essencialismo, ou do universalismo metafísico, e

a vinculação entre conhecimento e vida. Não por acaso, essas duas posições serão diretamente

atribuídas ao pensamento de Demócrito e à figura do Reconhecente.

Vale pontuar que, em um contexto no qual a Alemanha procurava firmar uma identidade

cultural comum, e na ausência de uma história compartilhada e um território recém unificado,

a busca por um retorno aos gregos por outra via que não fosse aquela eleita pelo Renascimento

e pelo Classicismo francês representava também a tentativa de encontrar uma identidade alemã

a ser gestada. A reação ao racionalismo imbuído nas narrativas sobres os gregos fazia com que

Nietzsche, de alguma forma, confluísse com a mentalidade romântica, apesar de suas críticas

ao Romantismo. Além disso, como resposta à artificialidade decorativa do racionalismo, essa

nova geração — cujo movimento mais expressivo ficou conhecido sob a alcunha “Tempestade

e Ímpeto” — propunha um retorno à natureza por meio de uma restauração dos ideais gregos,

como a serenojovialidade e as sensações.

Posteriormente, o naturalismo alemão passou a ligar as sensações aos processos naturais

e materiais. O materialismo naturalista transformou esse ímpeto romântico em meras relações

causais, advindos de fenômenos corpóreos, tirando o prisma filológico e filosófico e, em última

instância, delegando-o às ciências naturais. Nesse ínterim, em resposta à crise de um retorno

12
Sobre essas leituras, conforme comenta Power (2001, p. 118), Nietzsche teria afirmado em uma carta a Mus-
chake: “Kant, Schopenhauer e este livro de Lange — eu não preciso mais do que isso!”.
39
singular aos gregos, Nietzsche propõe o espírito científico de Demócrito e, posteriormente, a

sabedoria trágica dionisíaca.

Nesse contexto, a leitura de Lange foi, provavelmente, a maior influência de Nietzsche.

Em sua obra, Lange analisa criticamente o materialismo, problematizando as suas limitações e

potencialidades, ressaltando seu caráter metodológico, mas negando as implicações filosóficas.

Os últimos avanços nas ciências naturais permitiram um olhar mais acurado dos fenômenos

fisiológicos, levando à defesa de alguns materialistas da vinculação entre ideias e sentimentos

aos processos puramente mecânicos e materiais. Por isso, alguns materialistas defendiam uma

autonomia das ciências naturais diante das especulações filosóficas, principalmente porque elas

permitiam explicações muito mais verossímeis sobre o pensamento e sobre as possibilidades

do conhecimento do que aquelas oferecidas pela filosofia. Se tais ciências podiam desvendar as

causas materiais do sentir e pensar, a especulação filosófica seria dispensável (sendo a matéria

a única realidade possível e os processos fisiológicos a única causa do conhecimento). Lange

irá se levantar, justamente, contra a postura reducionista de delimitar a realidade ao estritamente

material.

Nesse sentido, observa-se que Nietzsche não estudou Demócrito à toa, já que o espírito

de seu tempo exigia um anteparo à valorização exacerbada das ciências naturais. Demócrito foi,

então, lido como Reconhecente Universal — que facilita o trabalho das ciências naturais por

meio de uma cosmovisão abrangente e um olhar poético e ético sobre os fenômenos naturais.

Essa disposição convertia-o em modelo para a formação alemã e, ademais, como um antídoto

contra o avanço das ciências naturais nas universidades, que requeriam, a cada nova descoberta,

uma autonomia cada vez maior em relação aos outros ramos do saber. Assim, diante da postura

naturalista do idealismo de buscar a origem das ideias por intermédio de processos naturais, o

Neokantismo, apoiado no criticismo kantiano anterior, reivindicava uma autonomia do conceito

de consciência para além de processos fisiológicos e materiais, desde a subordinação kantiana

40
do objeto ao sujeito cognoscente. Com isso, as ciências naturais não poderiam estabelecer sua

metodologia desde estudos dos processos fisiológicos que possibilitam o pensar, já que estariam

confundindo o sujeito com o objeto. Ao entrar em contato com a crítica à postura filosófica dos

materialistas modernos, por meio do Neokantismo de Lange, é que Nietzsche inicia seus estu-

dos sobre a phýsis de Tales de Mileto (c. 624/623—548/546 a.C.), de Anaxágoras de Clazôme-

nas (c. 499–? a.C.) e de Demócrito em 1866.

Em 1868, Nietzsche pretendia compilar os estudos sobre Demócrito em um artigo a ser

publicado em uma edição em homenagem ao seu orientador Friedrich Ritschl — que o indicara,

no mesmo ano de 1868, para a cátedra de Filologia Clássica na Universidade da Basiléia e que

também havia sido professor de Lange, em Bonn, no ano de 1848. Nesses estudos, Nietzsche

atenta para o pioneirismo do pensamento de Demócrito que, segundo ele, foi um predecessor

da tese de que a coisa em si é incognoscível (cf. NIETZSCHE, 2011, p. 241). O pioneirismo do

qual fala Nietzsche pode ser visto nos seguintes fragmentos de Demócrito: “(...) em realidade,

nada sabemos (...) ver-se-á bem que não se pode chegar a saber o que cada coisa realmente é

(...) Não aprendemos o que, na realidade, cada coisa é ou não é.” (BORHEIM, 2005, p. 107).

Além disso, para o jovem filólogo, já em Demócrito podemos encontrar uma vinculação das

categorias de espaço, tempo e causalidade como sendo as únicas verdades eternas e a única

permanência em meio ao devir. Nesse sentido, o abderita teria sido um precursor da crítica

kantiana acerca da possibilidade do conhecimento — assumindo uma posição crítica contra a

metafísica idealista.

Em Demócrito encontramos fundamentos para um materialismo construcionista, posto

que defende o caráter de construção da realidade sem recorrer ao idealismo essencialista. Ele

postula um mundo sem metafísica, um mundo sem arché. A realidade material, para o abderita,

pode ser explicada através do choque, do movimento e impulso dos átomos e, nesse sentido,

mesmo a psyché é material e perecível.

41
Não se pode ignorar que, para Nietzsche, a cultura grega era grandiosa e digna de ser

um modelo. Isso porque a educação do grego era voltada para um cultivo da singularidade dos

indivíduos. Sua finalidade era arar a terra para a colheita de novos gênios. O retorno aos gregos

era um modo de fundamentar a Building alemã em uma paidéia grega, resgatando seus valores.

Para a cultura decorativa alemã se tornar uma cultura autêntica, com a mesma vivacidade que

os gregos a conceberam, era preciso uma formação que não fosse específica, nem reivindicasse

uma natureza histórica, tampouco aderisse à superficialidade. Desse modo, vemos nos estudos

de Nietzsche sobre Demócrito que, para ele, “(...) a maioria dos filólogos são trabalhadores a

serviço da ciência (...)” (NIETZSCHE, 2011, p. 242), isto é, meros operários especialistas em

uma diminuta área do saber, mas que no geral “(...) pertencem ao vulgo (...)” (Idem, ibidem) —

algo que, como vimos anteriormente, estará associado ao Sabido (Wissende).

Sendo assim, era preciso “formar” um pensador completo, alheio às fronteiras impostas

ao conhecimento e que condiciona o saber ao devir de suas vivências. Tal modelo de indivíduo

completo, necessário à grandeza da cultura alemã, o jovem filólogo encontrou em Demócrito,

um anti-metafísico por excelência.

Algum tempo mais tarde, enquanto cumpre o serviço militar, lotado como artilheiro no

exército prussiano, Nietzsche se encontra bem adaptado à rigidez da vida na caserna e direciona

seus estudos para as fontes de Demócrito, sobretudo Diógenes Laércio (180–240), Trasilo de

Atenas (?–406 a.C.) e, em especial, Caio Apuleio Diocles (?–104). Como isso, ele faz uma

associação entre Demócrito e os pitagóricos. Para o jovem filólogo, em Demócrito há o pleno

desenvolvimento da filosofia pré-platônica, explicando os fenômenos naturais do mýthos por

meio do lógos. Encontramos no abderita uma explicação da phýsis que prescinde totalmente da

teologia e da teleologia, ou, como Nietzsche definirá, uma etiologia sem teologia. Além disso,

sua epistemologia não se desvincula da ética porque o conhecimento das causas é um modo de

alcançar o estado de tranquilidade necessário para a felicidade.

42
Para o jovem estudante de Leipzig, “ (...) a sutileza de uma etiologia sem teleologia, um

estudo das causas sem a hipótese divina, é o ponto marcante no pensamento de Demócrito” (Id.,

ibid., p. 245). O mito em Demócrito está já sempre associado à ignorância e, consequentemente,

à infelicidade. Uma vida científica, dedicada ao conhecimento, proporcionaria um estado de

serenidade de espírito, sendo assim um modo de exercer a eudaimonía, a felicidade enquanto

ação. Nietzsche pontua que, “(...) para Demócrito, então, sua visão sobre as coisas adquiria um

valor ético; ele acreditava na felicidade dos homens, uma vez que seu método científico fosse

vivenciado.” (Id., ibid., p. 256). Apenas aquele que desconhece pode temer ou sofrer.

Nietzsche destaca os dizeres iniciais da obra O Sistema da Natureza de Demócrito, onde

se lê que “O homem é infeliz simplesmente porque não conhece a natureza” (Id, ibid., p. 247).

Aquele que conhece as causas dos fenômenos deixa de admirar-se por eles. O conhecimento da

natureza produz um estado de athaumastía, isto é, ausência de espanto — algo já presente no

mēdèn thaumázein pitagórico — a ausência de admiração como máxima do conhecimento.

Na Modernidade, também Francis Bacon (1561–1626) defendia essa disposição de um

conhecimento científico que evita resultados que visem o espanto e admiração. Não por acaso

Nietzsche irá lembrar que “(...) o sistema de Demócrito era o preferido de Bacon.” (Id., ibid., p.

245). Sendo assim, toda admiração e espanto advém de um olhar apressado e fantástico sobre

a natureza, olhar esse que nos causa medo e sofrimento, gerando assim infelicidade. Logo, a

busca pelo conhecimento é também a busca por felicidade. Ou seja, o sistema filosófico de

Demócrito não visa tão somente explicar os fenômenos naturais, mas libertar os seres humanos

do temor dos deuses e da morte, libertando-os de entregar seu destino ao mero acaso.

O longevo e centenário Demócrito, contemporâneo de Sócrates e Protágoras de Abdera

(c. 490–415 a.C.), foge ao dualismo filósofo/sofista, ou ainda, filósofo/cientista. Seu objeto de

estudo não foi somente a phýsis dos jônios, tampouco o lógos dos sofistas, ou ainda, o éthos

socrático. A alteridade de sua epistemologia consiste em sintetizar essas conceituações em uma

43
mesma visão de mundo, em detrimento de epistemologias particulares que visam delimitar as

atividades dos sofistas, filósofos e cientistas.

Sobre isso, concordamos com Campioni (2016) sobre dois aspectos do pensamento de

Nietzsche que já se encontravam em Descartes, a saber: a necessidade do método e a alegria no

conhecimento. No entanto, propomos que, para Nietzsche, esses elementos também se faziam

presentes — já em Demócrito. Portanto, propomos, além disso, um terceiro elemento comum a

Demócrito, Descartes e Nietzsche: a abrangência epistemológica. Isso quer dizer: um olhar mais

amplo e uma busca pelo conhecimento de maneira universal e que caracteriza o indivíduo que

identificamos aqui como Reconhecente Universal.

Em geral, Demócrito costuma ser caracterizado como um pensador da phýsis, sobretudo

por causa do materialismo atomista que absorveu de Leucipo de Abdera (c. V a.C.) e que foi

difundido posteriormente por Epicuro de Samos (341–270 a.C.) e Lucrécio Caro (94–50 a.C.).

Porém, não devemos ignorar que a parte mais preservada da sua obra é aquela que trata de

educação, ética e política. A fama de pensador debruçado à compreensão somente do mundo

natural não condiz com a abrangência de seu pensamento, nem tampouco representa aquilo que

mais exerceu influência entre seus contemporâneos. Antes, o Demócrito naturalista surge pela

ênfase dada por filósofos posteriores, sobretudo Epicuro e Lucrécio. Até mesmo nas reflexões

contemporâneas, na fenomenologia e no existencialismo, observamos os ecos dessa ontologia

materialista.

Inicialmente, a Escola de Abdera, fundada por Leucipo e desenvolvida por Demócrito,

buscava um princípio que justificasse o devir. Propôs-se, então, que a descontinuidade e o vazio

não estariam no interior do ser, mas que se constituíam como uma realidade paralela, alheia ao

ser. Portanto, ao contrário dos eleatas, para a Escola de Abdera o “não-ser é”.

Em resumo, a abrangência do pensamento de Demócrito, sintetizada poeticamente em

sua visão atomista dos fenômenos naturais e justificada pela busca por uma vida feliz associada

44
ao conhecimento, seria, para Nietzsche, o tronco por onde se sustentaram diversos pensadores

gregos — sobretudo aqueles que, de algum modo, aventuraram-se em explicar os fenômenos

naturais por meio de causas materiais, não metafísicas, consolidando assim o legado da filosofia

pré-platônica no pensamento helenista.

Demócrito conseguiu oferecer uma unidade sistemática e poética aos diversos modos

de conhecimento sobre a phýsis disponíveis em seu tempo sem postular uma força sobrenatural

como explicação para a constituição material do mundo. É nesse sentido que interpretamos essa

afirmação de Nietzsche sobre Demócrito: “(...) o primeiro a alcançar o caráter científico, que

consiste em explicar de maneira coerente uma multidão de fenômenos de maneira unificada,

sem introduzir, nos momentos difíceis, um deus ex machina” (NIETZSCHE, 2011, p. 256). Em

um contexto de formação especializada no qual Nietzsche encontrava-se, a disposição científica

em explicar os fenômenos diversos de modo unificado era um esforço necessário. Enquanto o

fariseu da cultura pavoneia-se, com seus conhecimentos decorativos e ineficazes para a vida, o

filósofo andarilho conhece na medida em que vivencia.

O “antídoto Demócrito” de Nietzsche, além de impelir a uma curiosidade universal,

serve também para chacoalhar o estereótipo do filólogo de gabinete, enclausurado em cômodos

fechados e imersos nos seus manuscritos. Em Demócrito há um chamado para o “grande livro

do mundo” — para usar uma imagem construída por Descartes — e a necessidade da paixão

pelo conhecimento. Assim, conhecer na medida em que se vivencia, conhecer na medida em

que perambula, torna-se um imperativo tão epistemológico quanto ético, já que, no final das

contas, além de aprofundar o conhecimento sobre o mundo é uma maneira excelente de viver.

Demócrito remonta a uma tradição na qual podemos incluir também Tales e Anaxágoras

de “pensadores viajantes”, empenhados em transvalorar a paidéia grega predominantemente

marcada por uma visão antropomórfica de mundo conforme os mitos homéricos. Demócrito

como escritor e viajante que atua na cultura e contra os mitos é o modelo de pensador universal

45
que Nietzsche irá valorizar, aquele que se debruça sobre tudo que é passível de conhecimento

— disposição oposta daquele que busca um conhecimento especializado, pensando sob viseiras.

O Reconhecente Universal, como Nietzsche nomeará Demócrito, não busca conhecer

todas as coisas indistintamente, nem tampouco conhecer a realidade em absoluto. Seu caráter

universal consiste em abarcar em seu sistema todos os domínios do conhecimento. Não se trata

de conhecer todas as coisas, mas de estar aberto à possibilidade de poder conhecer tudo aquilo

que potencializa a vontade de viver, independentemente das áreas do saber com as quais esse

conhecimento possa estar, porventura, vinculado.

Porém, esta abrangência não significa superficialidade — pelo contrário, ela precisa ser

densa o suficiente para sustentar em seu tronco todos os galhos das ciências experimentais,

sintetizadas em uma mesma visão de mundo. Demócrito seria, assim, uma espécie de arquétipo

dos naturalistas alemães do século XIX, cujo principal expoente é Alexander von Humboldt

(1769–1859) — “Demócrito, o Humboldt do mundo antigo”, afirmará Nietzsche (ibid., p. 277)

em seus estudos filológicos. O que Demócrito, Humboldt e Nietzsche possuem em comum é

certo naturalismo, porém, não um naturalismo que nos impele a viver de acordo com uma na-

tureza essencial, todavia, antes, o reconhecimento de que toda ação humana é natural e de que

não é possível transcender essa natureza. Ou seja, já estava ali a tese fundamental de que os

fenômenos naturais não possuem causas sobrenaturais.

Nietzsche, Demócrito e Humboldt se esforçaram para oferecer uma unidade sistemática

ao conhecimento de sua época e de seus predecessores, além de serem pensadores andarilhos,

viajantes — o tipo de cientista que “recorre ao mundo” ao invés de refugiar-se tão somente em

bibliotecas e laboratórios, encarando a atividade do conhecimento para além das escrivaninhas.

Além do caráter volante de suas vidas, ambos possuíam em comum uma visão tão singular

quanto abrangente do universo e que perpassava por diversas áreas do conhecimento, propondo

através desse vislumbre uma justificação científica da existência.

46
Tal empreendimento exige uma vida dedicada ao conhecimento e, para tanto, o cultivo

de certo ócio. O “otium litteratum” que Nietzsche (ibid., p. 277) associa a Demócrito, significa

a serenidade alcançada pela busca do conhecimento, através de uma vida dedicada à atividade

de conhecer as causas que dão sentido ao mundo e em detrimento de uma vida dedicada ao

conforto e ao ganho econômico. Demócrito “pobre e desamparado” (cf. Id., ibid.) encontra a

eudaimonía no páthos pelo conhecimento, mesmo que o preço para isso seja viver “como um

mendigo” (cf. Id., ibid.). Nietzsche relembra que Cícero (106 a.C.–43) define, em seu De finibus

bonorum et malorum, a ética de Demócrito como uma tentativa de alcançar o bem-estar da alma

por meio do conhecimento do mundo. Nesse sentido, a investigação da natureza seria um modo

de viver com confiança e segurança.

Além disso, Nietzsche (ibid.) ressalta que “Demócrito não é um criador de ideias, mas

sim um sistematizador”. Tendo algumas de suas ideias sido postuladas anteriormente por Leu-

cipo, Pitágoras e outros pensadores, sua genialidade consistia em sistematizar essas ideias em

causas e princípios gerais que se articulam em uma macrovisão do cosmos, prescindindo, assim,

de quaisquer causas divinas para explicar a phýsis. Em contraposição, a racionalidade socrática

é marcada pela postulação de um além-mundo ideal, restringindo a atividade epistemológica à

anamnese do mundo suprassensível. Desse modo, o otimismo socrático acaba se convertendo

em nova mitologia, posto que considera a existência de um plano sobrenatural. Demócrito, ao

contrário, utiliza-se instrumentalmente da razão para outros fins. Sua racionalidade se volta para

as causas materiais que dão sentido ao mundo como meio de combater explicações metafísicas

e religiosas. Por isso, sua visão de mundo atomista possui não só um elemento epistemológico,

mas sobretudo ético e estético. Dessa maneira, o Demócrito de Nietzsche encarna a disposição

materialista em contrapor-se às mitologias metafísicas, sejam elas teológicas ou idealistas, que

assolavam a intelectualidade alemã.

47
O materialismo de Demócrito, de acordo com o jovem Nietzsche, teria sido deturpado

e combatido pelo Platonismo, Neoplatonismo e Cristianismo subsequentes. Para Nietzsche,

houve uma tentativa de destituir a racionalidade de seu pensamento, atribuindo-lhe um caráter

alquímico e mágico que não lhe eram inerentes. Demócrito, como se sabe, rivalizava com Platão

(428/427–348/347 a.C.), que instigou a queima de seus livros. Apesar disso, a sua influência

perseverou no relativismo de Protágoras, no ceticismo de Pirro (318–272 a.C.), na medicina de

Hipócrates (460–370 a.C.), no sistema de Aristóteles e até na física de Epicuro.

Sua ligação visceral com o mundo grego e sua visão materialista do mundo fez com que

fosse associado ao paganismo durante boa parte da era cristã. A maioria de seus escritos foram

consumidos pelo fogo da negligência, esquecidos, relegados a uma história paralela da filosofia,

que o então filólogo e catedrático Nietzsche ambiciona resgatar, dentro de um contexto maior

de valorização do pensamento dos filósofos pré-platônicos — apontando, com isso, uma via

alternativa ao racionalismo socrático. Esse racionalismo socrático confundia ciência e mito,

justificando uma disposição mítica de criar além-mundos e postulados metafísicos como causas

dos efeitos naturais. O racionalismo encontra em Platão seu principal expoente, que propõe um

demiurgo como causa dos fenômenos naturais e postula uma racionalidade transcendente ao

mundo, entrando em uma disposição oposta àquela dos filósofos trágicos que o precederam e,

em última instância, retroagindo do lógos ao mýthos.

O riso de Demócrito difere-se do otimismo socrático. Enquanto este está voltado para

um futuro escatológico e idealizado, aquele se volta para uma superficialidade do sofrimento

humano, advindo do imediatismo e do desconhecimento das causas. Por isso, a tragicidade de

todo sofrimento se converte em comédia, como conclui Hipócrates em seu suposto encontro

com Demócrito: seu riso era sinal de saúde. Para Nietzsche, a vinculação de “Hipócrates como

discípulo de Demócrito ou de [seu discípulo] Metrodoro (...)” (cf. NIETZSCHE, 2011, p. 246)

pressupõe que os ensinamentos médicos hipocráticos sofreram influência de Demócrito, sendo

48
condizentes com sua ética. Para Hipócrates, a medicina é uma técnica (techné) que buscaria

harmonizar phýsis e nómos (leis/normas). A cidade (pólis), assim como o indivíduo, adoece

quando ambas estão em desarmonia. O riso de Demócrito visa alertar os abderitas do mau uso

da razão, sobretudo em suas normas, seu exemplo de vida que condiciona o nómos em função

da phýsis é um remédio (phármakon) contra a falta de razão de seus conterrâneos. Daí a resposta

a Hipócrates (2011, pp. 52-23): “na verdade eu rio de uma só coisa relativa à humanidade, a

falta de razão que preenche o homem, ou em outras palavras, a vacuidade que há nas suas ações

corretas”. Desse modo, já em Demócrito, podemos encontrar o que, mais tarde, Nietzsche irá

definir como uma “ciência capaz de rir”, uma gaya scienza.

2.2 Prometeu como Reconhecente

Em um momento posterior aos estudos iniciais de Nietzsche sobre os filósofos gregos,

no contexto de seu “Período Trágico”, é possível encontrar a figura do Reconhecente associada

a Prometeu.

Por ter o dom da clarividência, Prometeu é o deus que mais sabe. Entretanto, não reside

nisso seu orgulho, mas, antes, no reconhecimento do já sabido. Ele sabe que Zeus um dia cairá

e, por isso, regozija-se pelo reconhecimento de que os passos que o levarão à queda estão sendo

trilhados. Assim, acorrentado e continuamente torturado, Prometeu aguarda pelo momento em

que possa reconhecer e vivenciar sua queda. É nisso que consiste seu riso orgulhoso ante a fúria

punitiva de Zeus.

Em uma carta ao amigo Erwin Rhode (1845–1898), Nietzsche reconhece a importância

da leitura do Prometeu Acorrentado de Ésquilo (525/524–456/455 a.C.):

49
Felizmente, nos intervalos que a dor me concede, experimento felizes exaltações do

pensamento e da sensibilidade. Há pouco, tive, graças a Prometeu Desagrilhoado, um

verdadeiro dia sagrado. Não sei o que possa ser a palavra “génio” se não for aplicável

a tal poeta. É maravilhosa a sua obra, e pareceu-me, ao lê-la, encontrar nela o meu Eu,

elevado e divinizado. Inclino-me profundamente perante um homem que pôde criar

tal coisa, dentro de si mesmo, e em seguida exprimi-la. (NIETZSCHE, 1954, p. 1143)

Nietzsche reconhece no personagem Prometeu, assim como Dioniso, um contraponto à cultura

apolínea da justa medida, convertendo-o em símbolo da desmedida (hybris), do orgulho e da

rebeldia contra a ordem instaurada pelos deuses olímpicos.

Interessa-nos pensar, nessa análise, a respeito dos limites do conhecimento e dos perigos

que sofre aquele que aspira ao titânico, à desmedida. Isso, seja na sua busca pelo conhecimento,

seja assumindo um papel altivo e ativo dentro de uma cultura instituída. Nisso consiste “(...) a

tragédia prometeica dos Reconhecentes” (NIETZSCHE, FW: 300). Ademais, analisaremos a

relação entre orgulho, prazer e reconhecimento. Já que Prometeu não pode mais sentir prazer

em saber, posto que em relação ao futuro ele tudo sabe, resta o prazer no reconhecer o já sabido.

Eis o seu orgulho perante Zeus, seu algoz.

Para Nietzsche, em A Visão Dionisíaca de Mundo, “(...) em Prometeu é mostrado aos

gregos um exemplo de como um fomento desmesurado do conhecimento [Erkenntniss] humano

tem efeito nocivo tanto para o fomentador como para o fomentado.” (Idem, DW: 2). O jovem

filólogo desenvolve aqui uma reflexão epistemológica sobre o apolíneo, afirmando que “(...) o

culto às imagens da cultura apolínea (...) tinha o seu fim sublime na exigência ética da medida,

que corre paralela à exigência da beleza” (id., ibid.). O imperativo ético e estético da “justa

medida”, do “nada em excesso”, possui um sentido epistemológico, já que o conhecimento

desmedido também é um vício, uma hybris, para Apolo. A busca desenfreada pela verdade e

por tudo saber atenta contra a cultura apolínea, já que “(...) o fim mais íntimo de uma cultura

50
voltada para a aparência e a medida pode ser somente o velamento da verdade (...)” (Id., ibid.),

o conhecimento aqui está sob as rédeas da medida e da beleza, não sendo assim um fim em si

mesmo, por isso, “(...) ao incansável investigador a seu serviço gritava-se como advertência,

assim como ao superpotente titã, µηδεν αγαν – nada em excesso (...)” (Id. Ibid.). Desse modo,

“(...) quem quer sair-se bem com sua sabedoria diante do deus deve, como Hesíodo, µετρον

εχειν σο ϕιης [ter a medida da sabedoria]” (Id. Ibid.), ou seja, deve reconhecer os limites do que

pode ser sabido e da busca pelo conhecimento, condicionando-a à uma finalidade que não esteja

nela mesmo. No entanto, “(...) a medida, colocada como exigência, só é possível onde a medida,

o limite é reconhecível (...)” (Id., ibid.), isto é, não é possível reconhecer nossos limites se nem

ao menos o conhecemos. Ora, “(...) para que se possa observar os próprios limites precisa-se

conhecê-los [kennen]: por isto a advertência apolínea γνϖ ϑι σεαυτον [conhece-te a ti mesmo]”

(Id., ibid.). O uso do verbo kennen é importante aqui, pois adiante é contraposto ao erkennen,

quando afirma: “O espelho, no entanto, no qual somente o grego apolíneo podia ver-se, isto é

reconhecer-se [erkennen], era o mundo dos deuses olímpicos” (Id., ibid.). Assim, podemos reler

a sentença apolínea da seguinte forma: conhece-te a ti mesmo para reconhecer teus limites.

A cultura é aqui entendida como um “espelho” onde os indivíduos se reconhecem e são

reconhecidos — no caso do grego arcaico, ainda excessivamente apolíneo — e o indivíduo “(...)

reconhecia [erkannte] sua mais própria essência envolvida pela bela aparência do sonho (.,.)”

(Id., ibid.). O conhecimento nessa visão não é, porém, um fim em si mesmo, como será na

cultura socrática, mas um meio para o reconhecimento do belo, entendido como a justa medida,

o limite, a proporção.

Esse mundo olímpico que surge após a derrocada do mundo dos titãs era medido pela

beleza — “(...) o limite que o grego tinha que observar, era o da bela aparência (...)” (Id., ibid.)

— e por essa medida reconheciam a si, aos outros e aos deuses. Por esse critério também era

medido o conhecimento, cuja finalidade não era a de analisar os segredos do mundo, todavia,

51
antes, de embelezá-lo. Prometeu, cujo destino coube ser abençoado e amaldiçoado com o dom

do conhecimento desmedido do futuro, foge à justa medida do mundo apolíneo, por isso serve

como seu contraponto, assim como Dioniso “(...) no qual a inteira desmedida da natureza se

revelava ao mesmo tempo em prazer, em sofrimento e em conhecimento (...)” (Id., ibid.). Sendo

assim, “(...) tudo o que até agora valia como limite, como determinação de medida, mostrou-se

aqui como uma aparência artificial: a ‘desmedida’ desvelava-se como verdade (...)” (Id., ibid.).

Os sofrimentos de Prometeu e Dioniso servem de advertência apolínea contra os perigos do

conhecimento desmedido e da falta do reconhecimento de limites. Ambos representam também

o estabelecimento de um novo parâmetro, um outro mundo, uma outra medida, onde o limite

do mundo olímpico, a prudência apolínea, não é mais a meta do conhecimento e da cultura. A

desmedida e a afirmação da vontade contra todos os limites impostos é a nova meta, não importa

quais sofrimentos advenha. Por isso, há algo de trágico no Reconhecente, pois romper os limites

do conhecimento instituído é fugir do conforto e estar disposto a encarar a dor da perda dos

referenciais que nos dão conforto, pois os limites do muro geram certa segurança e estabilidade,

mas diminuem a visão.

Aspirar grandes coisas para além da existência de um eremita, isto é, entre os indivíduos,

— tal como Zaratustra que desce da caverna — possui algo de sacrifício pessoal. Aquele que

amplia o reconhecimento de uma perspectiva pessoal para uma dimensão cultural e expressa

isso em obras, atrai a inimizade de muitos e corre o risco de ser incompreendido — novamente,

como Zaratustra, após expor o além-homem em praça pública. Prometeu, Dioniso e Zaratustra

seriam mais felizes se desprezassem os humanos. Assim, Prometeu “(...) na heroica impulsão

do singular para o geral, na tentativa de ultrapassar o encanto da individuação e de querer ser

ele mesmo a única essência do mundo, padece ele em si a contradição primordial oculta nas

coisas, isto é, comete sacrilégio e sofre” (Id., GT; 1992, p. 69). Prometeu e Zaratustra são más-

caras dionisíacas, pois tal como o deus da embriaguez, eles buscam elevar os humanos, essa é

52
a sua hybris, o contraponto desses personagens à medida apolínea, pois desconhecem os limites

que os separam dos demais humanos e, querendo, elevar-se, carregam os demais em seu dorso,

tal como Atlas. Sobre isso, Nietzsche comenta:

Essa repentina maré montante do dionisíaco toma então sobre o seu dorso as pequenas

vagas dos indivíduos, assim como o irmão de Prometeu, o titã Atlas, tomou sobre o

seu dorso a Terra. Esse afã titânico de ser como que o Atlas de todos os indivíduos e

carregá-los com a larga espádua cada vez mais alto e cada vez mais longe, é o que há

de comum entre o prometéico e o dionisíaco. O Prometeu esquiliano é, nessa consi-

deração, uma máscara dionisíaca (Id., ibid. p.68)

Há algo de sacrilégio quando seres singulares aspiram à grandeza, ao titânico, ao contrário da

cautela e do comedimento socrático, o conhecer cauteloso, o impulso titânico à desmedida quer

arrastar como maré os humanos consigo. Enquanto Apolo nos ensina a tranquilidade dos limites,

a calmaria do litoral já conhecido, o conforto das fronteiras, Dioniso e Prometeu procuram as

intempéries do ilimitado, utilizam-se do conhecimento para transgredir os limites. Prometeu,

assim como Eva, experimentam o conhecimento transgressor, insubordinado. Nesse sentido,

Nietzsche escreve:

Quem compreende esse cerne interior da lenda de Prometeu – quer dizer, a necessi-

dade de sacrilégio imposta ao indivíduo que aspira ao titânico – deverá também sentir

ao mesmo tempo o não-apolíneo dessa concepção pessimista; pois Apolo quer con-

duzir os seres singulares à tranquilidade precisamente traçando linhas fronteiriças en-

tre eles e lembrando sempre de novo, com suas exigências de autoconhecimento e

comedimento, que tais linhas são as leis mais sagradas do mundo (Id., ibid. p.68)

53
O conhecimento aqui não aspira o identitário e seus limites, mas sim a alteridade e suas possi-

bilidades, não busca o habitual, o natural, mas a transgressão da natureza “(...) pois como se

poderia forçar a natureza a entregar seus segredos, senão resistindo-lhe vitoriosamente, isto é,

através do inatural?” (Id., ibid., p. 65). O caminho que leva ao Reconhecente, à valorização da

sensação e do reconhecimento em detrimento da razão e do saber pelo saber, passa, sobretudo,

pela experiência potencialmente perigosa de desintegrar-se, fracionar-se, assim como Dioniso,

despedaçado pelos Titãs, tornar-se de algum modo antinatural, ou uma natureza desmedida,

sem controle, cujos limites não são claros.

Nietzsche retomará essa reflexão acerca do caráter antinatural da sabedoria dionisíaca,

também prometeica, afirmando:

(...) o mito parece querer murmurar-nos ao ouvido que a sabedoria [Weisheit], e pre-

cisamente a sabedoria dionisíaca, é um horror antinatural, que aquele que por seu sa-

ber [Wissen] precipita a natureza no abismo da destruição há de experimentar também

em si próprio a desintegração da natureza. O aguilhão da sabedoria se volta contra o

sábio [Weisen]; a sabedoria é um crime contra a natureza’: tais são as terríveis senten-

ças que o mito nos grita. (Id., ibid., p.65)

O humano possui uma natureza epimeteica, que é aquela determinada, que dividimos com os

animais — como Epimeteu, irmão de Prometeu, que foi o responsável na mitologia por formar

e dar todos os atributos aos animais, relacionado aqui, portanto, ao animalesco, no sentido do

natural, do humano como espécie animal — mas também algo de prometeico, alguma astúcia

que lhe permite transcender as determinações da nossa natureza. Sendo assim, ao possibilitar

aos humanos estabelecer uma cultura, Prometeu os presenteia com algo de não humano, não

animal, não natural, divino e titânico. Desse modo, “(...) o homem, alçando-se ao titânico,

54
conquista por si a sua cultura e obriga os deuses a se aliarem a ele porque em sua autônoma

sabedoria [selbsteignen Weisheit], ele tem na mão a existência e os limites desta” (Id., ibid.).

Em sua própria cultura os humanos colocam autonomamente os próprios limites, não há

mais limites divinos. Agora, os deuses possuem uma avaliação externa e autônoma para suas

ações. Agora também são eles julgados. Assim, “O mais maravilhoso, porém, nesse poema

sobre Prometeu é o profundo pendor esquiliano para a justiça: o incomensurável sofrimento do

‘indivíduo’ audaz, de um lado, e, de outro, a indigência divina, sim, o pressentimento de um

crepúsculo dos deuses.” (Id., ibid.). O humano não é mais passivo diante dos deuses, o humano

dotado de cultura é o senhor de sua realidade, seu próprio deus — “À glória da passividade

contraponho agora a glória da atividade, que o Prometeu de Ésquilo ilumina” (Id., ibid.), diz

Nietzsche. Ao criar seus próprios limites e ter a capacidade de ultrapassá-los, o humano afirma

sua natureza trágica, ao mesmo tempo dionisíaca e apolínea. Ainda sobre isso, Nietzsche afirma:

E assim a dupla essência do Prometeu esquiliano, sua natureza a um só tempo dioni-

síaca e apolínea, poderia ser do seguinte modo expressa em uma formulação concei-

tual: “Tudo o que existe é justo e injusto e em ambos os casos é igualmente justifi-

cado”. Isso é o teu mundo! Isso se chama um mundo! (Id., ibid.)

Nietzsche termina essa sessão de O Nascimento da Tragédia, onde trata em grande medida do

Prometeu esquiliano, com uma citação de Goethe: “Isso é o teu mundo! Isso se chama mundo!”.

Há aqui um apelo para um mundo humano, para além da moralidade divina e, por vezes, até

contra essa moralidade transcendental.

Essa acepção interessa-nos, pois, como já vimos, os humanos “são” apenas em mundos,

em mundos que são seus, mundos imanentes, esse é o caráter prometeico, vivemos em culturas,

o que nos torna em alguma medida inatural, algo que perpassa a nossa natureza epimeteica.

Esse mundo que é nosso e no qual vivemos – melhor, no qual somos - tem algo de desmedida,

55
de hybris, de altivez em relação ao restante da natureza. O humano em seu mundo é orgulhoso,

pois em seu mundo é senhor de si, em seu mundo Zeus não reina. Ao criar os humanos e dar-

lhes cultura e conhecimento, Prometeu destrona Zeus.

A Prometeu que tudo sabe, resta apenas reconhecer. Prometeu que sabe da derrocada de

Zeus, mas anseia pelo momento do reconhecimento da sua queda, do momento certo (kairós)

onde os tormentos que sofre recairão sobre o orgulhoso Zeus para denunciar seu orgulho vazio,

pois seu orgulho pelo cárcere de Prometeu é também a causa de sua queda. A Zeus cabe o

reconhecimento de que não está acima das moiras, o reconhecimento do seu destino, não mera

aceitação. Ao saber da fatalidade do seu destronamento e dos meios oferecidos por Prometeu

para evitá-lo, Zeus deveria — caso quisesse evitar sua queda — reconhecer a aliança firmada

com o Titã, desde a Titanomaquia, e a possibilidade de evitar seu destronamento, com a valiosa

ajuda da clarividência de Prometeu. Portanto, a Zeus não cabia mera aceitação determinista do

seu destino, cabia agir para superá-lo e, ao renegar seu destino e punir cruelmente Prometeu,

sabotou qualquer possibilidade de superação.

O orgulho de Zeus é vazio porque é soberbo. É soberbo porque seu orgulho é vaidoso e

age para provocar uma reação nos outros deuses, para demonstrar sua força após entronar-se.

Seu orgulho é vazio pois sua finalidade são os outros. Ou seja, não é orgulho, é soberba, vaidade.

Ao não reconhecer a vaidade presente no castigo contra seu aliado, na desmedida de seu senso

de justiça, Zeus age contra o que sabe de antemão, o ocaso de seu reinado, seu destronamento

por um filho seu. Prometeu entrega-se ao castigo que sabia de antemão, pois sabe também que

sua punição é prenúncio da queda de Zeus. Mesmo acorrentado nos rochedos — dilacerado

diariamente pela águia — pode consolar-se: “assim mostrarei aos orgulhosos quão vazio é seu

orgulho!” (ÉSQUILO, 2005).

Renegar o destino é, assim como em Édipo, uma forma de aceitá-lo, fazê-lo cumprir, tal

como uma teia de aranha onde, quanto mais luta-se, mais enrosca-se. Reconhecer o destino que

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sabe de antemão depende do esforço em avaliar as ações presentes visando esse saber futuro.

Desse modo, o destino, a fatalidade, seria uma espécie de meta, um télos anteriormente dado,

uma destinação que não interfere no traçar do caminho. Afinal, se vamos chegar em nosso

destino, se há a fatalidade de uma destinação certa, ao menos podemos escolher nossos cami-

nhos, reconhecer o modo mais digno de percorrê-lo, estar presente no caminho e não na desti-

nação. Prometeu sabe seu destino, mas escolhe percorrer seu caminho de modo digno, a des-

peito dos pedidos de seus aliados para que não seja orgulhoso. Assim, responde a Hermes:

PROMETEU: Que discurso arrogante e soberbo! E como fica bem ao ministro dos

deuses! Novos senhores de um novo império, vós acreditais habitar palácios inacessí-

veis às desgraças... Pois bem! Por acaso não vi eu caírem dois tiranos? Verei a queda

do terceiro: será a mais rápida e a mais vergonhosa. Pensas porventura que me aco-

varde, e que me submeta a esses novos deuses? Longe disto estou, Hermes! Podes ir-

te embora! Volta sem tardança ao lugar de onde vieste: nada mais saberás por mim.

HERMES: Eis o invencível orgulho que tantas desgraças já te causou!

PROMETEU: Sabe que eu não consentiria em trocar minha miséria por tua escravidão.

Prefiro, sim! prefiro jazer acorrentado a este penedo, a ser o mensageiro e confidente

de teu pai. Eis aí como podemos ferir àqueles que nos maltratam (Idem, ibidem).

Como se vê, a via do orgulho e da não subordinação foi sua escolha, seu caminhar, não importa

quais destinos Zeus ou as moiras o reservem, seu caminhar será livre e altivo, mesmo que seu

caminho seja as correntes no rochedo ou abaixo dos seus escombros, pois como afirma ao final

da tragédia de Ésquilo: “faça ele o que fizer!... eu hei de viver!” (Id., ibid.). Vivendo e do seu

modo, reconhecendo seu modo de vida, seu orgulho é mais prudente que a soberba desmedida

de Zeus. Esse orgulho vem da superação da desvantagem ou da transgressão de uma norma.

Nesse sentido, não há orgulho em se mostrar rico para um pobre, mas é possível sentir

orgulho da sua pobreza diante de um rico. Ser pobre e, mesmo assim, sentir-se vencedor é

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transgredir a condição de inferioridade comumente atribuída aos pobres. Não há orgulho em

agir de acordo com uma convenção amplamente estabelecida. Não faz sentido orgulhar-se do

uso da burca dentro de países onde seu uso é comumente aceito, o orgulho nesses casos só faz

sentido pela comparação com outros países. No entanto é possível orgulhar-se da transgressão

do uso da burca ao vestir-se de modo diverso da maioria das pessoas de um determinado país,

como é possível também orgulhar-se do uso da burca em um contexto em que as maiorias das

mulheres no mundo não a usam e em determinado país se usa. O orgulho depende deste caráter

transgressor para efetivar-se, no sentido de ser diferente da ordem “natural” das coisas.

O orgulho também possui um caráter “inatural” no sentido de alteritário, inabitual. O

orgulho, portanto, não é um afeto meramente identitário, depende da comparação com uma

alteridade. Não há orgulho no que se é tão somente, mas na relação entre o que se é e como as

coisas costumam ser.

Afirmará Nietzsche (FW: 275): “(...) qual o emblema da liberdade alcançada? — Não

mais envergonhar-se de si mesmo”. A vergonha é uma forma velada de proibição, mais sútil do

que as normas. Assim apela o coro para Prometeu: “Zeus quer que abandones esse orgulho e

adotes uma decisão sensata, ó Prometeu. O que ele diz, afigura-se-nos razoável... Crê! Para o

sábio é uma vergonha perseverar no erro cometido” (ÉSQULO, 2005). Seu poder coibitivo não

depende da ação de uma vigilância externa, o próprio indivíduo é seu algoz. Onde a vergonha

atua a proibição legal não é necessária. O adversário envergonhado é sempre mais fraco. O

medo e a vergonha debilitam. Nesse caso o orgulho fortalece.

O orgulho é o sentimento de valorização de algo, quando estamos satisfeitos com o que

somos, temos orgulho próprio. A vaidade é a valorização da imagem que projetamos aos demais.

Enquanto o vaidoso necessita do outro, o orgulhoso basta a si mesmo.

A presunção — a exemplo de Zeus—- é um orgulho dissimulado, representado, quando

fingimos que não estamos fingindo. A tentativa de simular uma vaidade como orgulho. Quando

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criamos uma imagem acima do que somos e simulamos um orgulho de algo que não somos. O

orgulhoso, para não ser presunçoso, precisa do autoconhecimento para saber se o seu orgulho

se baseia em méritos próprios, ou se é tão somente uma projeção do que queria ser. O orgulhoso,

para não ser soberbo, precisa do reconhecimento dos seus méritos, do seu valor, isto é dado pela

grandeza da meta a qual se coloca. Zeus ao ter como meta apenas a manutenção do seu poder,

ignorando os presságios de Prometeu, o destino e a justiça das moiras, torna-se vaidoso, teimoso,

não orgulhoso, quer conservar-se, isto é, estagnar-se em seu trono. Ao fim, será destronado por

sua própria vaidade, travestida de orgulho e senso de justiça. Não há mérito em seu orgulho.

2.3 O Reconhecente nas obras de maturidade

A figura do Reconhecente tomará uma forma mais consistente na obra nietzschiana a

partir de Humano, Demasiado Humano. Embora não seja nomeado diretamente, no aforismo

34 dessa obra encontramos a questão central para a figura do Reconhecente a partir da relação

entre verdade, conhecimento e vida, iniciando-se com a seguinte pergunta: “Para tranquilizar.

— Mas nossa filosofia não se torna assim uma tragédia? A verdade não se torna hostil à vida,

ao que é melhor?” (NIETZSCHE, MA, 34), seguida por outro questionamento: “(...) é possível

permanecer conscientemente na inverdade?” (Idem, ibidem). Em outros termos, poder-se-ia

perguntar: se os humanos são constituídos a partir dos mundos que os transpassam, mundos

cuja essência simbólica é a ilusão, o autoengano, a dissimulação, como ser consciente disso e,

ainda assim, buscar apaixonadamente o conhecimento? Ou ainda, conforme indaga Nietzsche:

“o conhecimento só pode admitir como motivos o prazer e o desprazer, o proveitoso e o nocivo:

mas como se arrumarão esses motivos com o senso da verdade?” (Id., ibid.: 107). A chave para

essas questões está no reconhecimento do caráter imanente e dissimulado do conhecimento

humano e, assim, de reinar absoluto sobre o próprio conhecimento, montar em seu dorso, guiá-

59
lo de acordo com sua vontade, inventando seu próprio prazer e sua própria verdade, sendo uma

espécie de “Demiurgo de si mesmo”.

Nietzsche concebe o conhecimento como esforço imanente de retorno à natureza por

meio do resgate do reconhecimento do humano como ente natural. O reconhecimento do caráter

natural do ente humano é também o reconhecimento do caráter ilusório do livre-arbítrio e da

moralidade. Desse modo, os eventos humanos e naturais passam a ser equivalentes, já que em

relação aos eventos naturais não cabe culpa ou mérito, já que o devir é inocente, amoral, alheio

a louvores ou méritos. Aceitar a naturalidade do ente humano dá ao Reconhecente um elemento

trágico que permite este pairar livre e destemido sobre as avaliações humanas. Não se trata de

um retorno à animalidade perdida, mas certa sabedoria inocente que aceita o caráter transitório

e imanente do ente humano sem o peso de julgamentos morais.

Não é à toa que o primeiro uso do termo “der Erkennende”, em uma obra publicada,

aparece no aforismo 107 de Humano, Demasiado Humano, intitulado “Irresponsabilidade e

inocência”, onde afirma que: “A total irresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser é a

gota mais amarga que o Reconhecente [der Erkennende] tem que engolir” (Id., ibid.). Assim,

“(...) tal como ele se coloca diante das plantas, deve se colocar diante dos atos humanos e de

seus próprios atos” (Id., ibid.). Ou seja, “(...) neles pode admirar a força, a beleza, a plenitude,

mas não lhes pode achar nenhum mérito (...)”, já que “(...) o processo químico e a luta dos

elementos (...) possuem tanto mérito quanto os embates psíquicos e as crises em que somos

arrastados para lá e para cá por motivos diversos, até enfim nos decidirmos pelo mais forte”

(Id., ibid.). Bem como a umidade não possui nenhum mérito pela chuva, tampouco o calor solar

pelo aumento da umidade, as hierarquizações dos impulsos que levam a determinadas ações

não possuem nenhum mérito essencial, nem tampouco finalidade transcendente ou resultam

exclusivamente de um processo histórico. Esse seria o fundamento de uma moral imanente, isto

é, aquela que não atribui uma significação transcendente aos atos morais humanos, tampouco

60
mérito transcendente para além de um encadeamento conjuntural, uma casualidade “natural”.

Natural aqui no sentido de imanência, não transcendente. Por essa razão, Nietzsche afirmará,

em Assim Falou Zaratustra, seguindo essa mesma linha de argumentação: “O Reconhecente

[der Erkennende] anda entre os homens como se estivesse entre animais” (Id., ASZ, 2, 3), não

no sentido de sentir-se superior aos demais humanos, mas, antes, no sentido de naturalizar as

suas ações, tal como ele se coloca diante das plantas, como vimos nesse aforismo 107.

No aforismo 157 de Humano, Demasiado Humano, Nietzsche parece comparar o tipo

de gênio associado ao Reconhecente com o “gênio sabido” [Der wissende Genius]. O gênio

reconhecedor “(...) tem mais prazer em criar do que o restante dos homens (...)” (Id., MA, 107),

já que “(...) no mesmo indivíduo se fundem o gênio de criar e de conhecer e o gênio moral.”

(Id., ibidem) e por isso sua atividade e prazer no conhecimento se volta para o presente, para os

humanos atuais, o que por vezes causa sofrimento pois “(...) ele não tem o direito de obrigar os

homens ao prazer. Seu pífaro soa, mas ninguém quer dançar” (Id., ibid.). Já “ (...) o gênio do

saber, como Kepler e Spinoza, em geral não é tão ávido, e não faz tamanho caso de seus sofri-

mentos e privações, na realidade maiores. Ele pode mais seguramente contar com a posteridade

e se despojar do presente” (Id., ibid.). Enquanto o gênio sabedor dirige seu saber à humanidade

posterior, conseguindo assim desligar-se estoicamente da humanidade presente, o gênio reco-

nhecedor dedica “(...) os sentimentos extra e supra pessoais, dirigidos a um povo, à humanidade,

a toda uma cultura, à inteira existência sofredora: os quais adquirem seu valor graças à ligação

com conhecimentos particularmente difíceis e abstrusos” (Id., ibid., 157) e, por esse motivo,

não consegue ser indiferente na atualidade, seus sentimentos não podem esperar, pois aquele

que reconhece tem mais urgência em ser entendido do que aquele que sabe. No entanto, seu

conhecimento transgressor e as sensações e sentimentos que adquire dele não são facilmente

assimilados por aqueles a qual se dirige, eis a sua angústia.

61
A relação do Reconhecente com as sensações e os sentimentos também está presente no

aforismo 43 de Aurora (1881), onde Nietzsche defende um novo papel para o pensador, como

não mais sendo aquele que concebe abstrações para conduzir, mas sim, para seduzir, assim, faz

uma ligação entre as abstrações conceituais e o “mundo palpável”, aquele onde é possível vi-

venciar, isto é, o mundo dos sentidos, sensações e sentimentos. Por essa razão, o pensador en-

quanto Reconhecedor deve comprometer-se com abstrações conceituais na medida em que elas

possam seduzir nossa existência nos mundos que habitamos. Nietzsche escreve:

Quantas forças devem agora confluir no pensador. — Afastar-se da consideração sen-

sorial, elevar-se à abstração — outrora isso foi realmente visto como elevação: já não

podemos sentir exatamente dessa forma. Regalar-se em pálidas figurações de palavras

e coisas, jogar com tais seres invisíveis, inaudíveis, intangíveis, foi percebido como

uma vida em outro mundo superior, a partir do fundo desprezo pelo mundo palpável

aos sentidos, sedutor e mau. “Essas abstrações já não seduzem, mas podem nos con-

duzir!” — com isso lançávamo-nos como que para cima. (Id., M, 43)

O conhecimento não pode ser uma meta em si mesmo, assim como o conhecimento por si só

não potencializa a descoberta de novos conhecimentos, é a sensação de amor a todo o existente

que nos move a reconhecer as coisas que existem, a buscar conhecer o existente. Assim, “(...)

não só os conhecimentos foram descobertos separadamente e aos poucos, mas também os meios

do conhecimento, os estados e operações que no homem antecedem o reconhecer [erkennen]”

(Id., ibid.), esses estados são sentimentais, não racionais.

Para o pensador que somente busca o saber como finalidade última em si “(...) parecia

que a operação recém-descoberta ou o estado recém-experimentado não era um meio para todo

reconhecer [Erkennen], mas já conteúdo, meta e soma de tudo o que era digno de reconhecer”

(Id., ibid.). Desse modo, pensador abstrato, desvinculado desse sentido para o conhecimento

como meio de vida, perde o sentido do reconhecimento, pois busca apenas saber, só descobrir
62
e, quando experimenta algo novo, o faz apenas conhecer, para acumular mais uma descoberta,

ao invés de converter tudo aquilo que sabe como meio de reconhecer o existente e assim amá-

lo. O amor ao existente passa a ser uma relação abusiva, de domínio, apropriação, ao invés de

se seduzir pelo existente, acaba o tomando como presa.

Quando amamos algo por intermédio de uma finalidade, não o amamos de fato, mas o

tornamos apenas meio. Quando nos voltamos à existência apenas para conhecê-la, o próprio

existente torna-se um meio e já não conseguimos mais amá-lo enquanto existente em si mesmo,

mas como meio para acumular nossa vontade de conhecer, de criar novas descobertas e abstra-

ções. Assim, deixamos de reconhecer o existente enquanto existente e com isso deixamos de

amá-lo. Nietzsche diz:

O pensador necessita de fantasia, vôo, abstração, dessensualização, invenção, intuição,

indução, dialética, dedução, crítica, coleta de material, pensamento impessoal, con-

templação, visão de conjunto e, igualmente, justiça e amor em relação a tudo o que

existe — mas todos esses meios já contaram isoladamente como fins e fins últimos,

na história da vida contemplativa, e deram a seus inventores a beatitude que penetra a

alma humana quando refulge um fim último. (Id., ibid., 43)

Quando um pensador descobre um novo meio de potencializar o conhecimento, tende a encarar

esse novo meio como fim último, assim busca-se apenas potencializar o conhecimento, poten-

cializar os meios para torná-lo mais eficaz, como os listados acima, com isso, perde-se o sentido

principal do conhecimento, que não é tornar-se mais potente, mas nos seduzir pelo existente.

Assim como um filme ou um livro com perigos e sofrimentos e muitas reviravoltas é

mais sedutor, é melhor, uma existência não previsível e com perigos e sofrimentos também o é.

Por esse motivo, “(...) o segredo para colher da vida a maior fecundidade e a maior fruição é:

viver perigosamente!” (Id., FW: 324). O reconhecimento e a abstração não devem nos levar a

63
uma vida mais tranquila, a uma busca por segurança e previsibilidade, mas sim, converter-se

em refúgio para uma vida repleta de mudanças e perigos.

Assim, o reconhecimento é entendido como meio necessário para sobreviver aos perigos

e inconstâncias de uma vida que valha a pena. Nesse sentido, devemos fazer como “(...) os

gregos, (que) numa vida exposta a grandes perigos e reviravoltas, buscaram na reflexão e no

reconhecimento [Erkennen] uma espécie de segurança do sentimento e um derradeiro refúgio”

(Id., M: 154), ao invés de transportamo-nos à “(...) periculosidade para a reflexão e o conheci-

mento [Erkennen], e dela nos recuperamos e nos tranquilizamos na vida” (Id., ibid.). A aventura

da existência não deve estar em nossa capacidade de conhecer e reconhecer o conhecido, mas

em conhecer e reconhecer a existência para fazer de nossa existência uma aventura.

O que nos leva à singularidade e a uma vida que valha a pena ser vivida não é o conhe-

cimento, mas sim, certo orgulho em nos afirmar perante o existente, certa fé em nós mesmos,

como “(...) o meio de tornar-se o profeta e milagreiro de seu tempo continua hoje o mesmo de

sempre: viver à parte, com poucos, algumas ideias e muita presunção” (Id., ibid., 325). Dife-

rente do Sabido, próximo ao povo e repleto de conhecimentos, o Reconhecente alimenta “(...)

a crença de que a humanidade não pode prosperar sem nós, porque evidentemente nós prospe-

ramos sem ela. Tão logo surja esta fé, outros terão fé em nós” (Id., ibid.). Assim, tendo fé em

si e na sua vontade, reconhecendo o seu valor, o Reconhecente terá a fé dos demais.

No entanto, o pensador enquanto Reconhecente não é aquele que egoisticamente coloca

a intensificação da sua própria vida como valor maior. Como vimos, há algo de sentimento por

uma cultura, pela humanidade, pelos outros, algo de sacrifício com a própria vida em prol da

possibilidade de intensificação da vida que o excede. Um sacrifício da própria vida em nome

da intensificação da vida. Como um músico que dedica sua vida à música para que outros pos-

sam ter o mesmo sentimento e prazer que ele tem na música, para torna-la mais intensa. Do

64
mesmo modo, o Reconhecente faz do seu corpo um instrumento vivo para que os saberes e a

cultura possam tornarem-se vivas e, assim, possam também viver em outros corpos.

O saber é incorporado no Reconhecente, mas ele reconhece que nem todo conhecimento

está no saber que incorporou, que algo o escapa e, ao tornar-se instrumento dos saberes, incor-

porando-os, torna-se generoso com os demais, pois quanto mais conhece, quando mais incor-

pora, mais vai perdendo a fé em si mesmo, mais vai abrindo mão da sua singularidade para

converter-se em meio para a vitalidade de sua cultura. Sobre isso, Nietzsche toma como exem-

plo dois pensadores — Rousseau e Schopenhauer — dizendo que:

(...) ambos foram orgulhosos o bastante para inscrever esta divisa sobre as suas exis-

tências: vita impendere vero [consagrar a vida à verdade]. E ambos, também, como

devem ter sofrido em seu orgulho, por não conseguirem verum impendere vitae [con-

sagrar a verdade à vida]! — verum [verdade], como cada um deles a entendeu — por

suas vidas terem corrido junto a seu conhecimento, como um baixo caprichoso, que

não quer corresponder à melodia! — Mas o conhecimento estaria mal, se fosse atri-

buído a cada pensador apenas na medida em que assentasse no seu corpo! E os pen-

sadores estariam mal, se a sua vaidade fosse tão grande que eles tolerassem apenas

isso! Justamente aí se acha a mais bela virtude do grande pensador: a generosidade de,

como Reconhecente [als Erkennender], impavidamente, muitas vezes envergonhado,

muitas vezes com sublime escárnio e sorriso — fazer o sacrifício de si mesmo e sua

vida. (Id., ibid.: 459)

Essa é a generosidade do pensador enquanto Reconhecente, fazer-se de instrumento, fazer de

seu corpo elemento de incorporação dos saberes, como o místico que abre mão da sua vida para

incorporar espíritos, curar doentes, psicografar cartas e com o tempo torna-se cada vez menos

indivíduo e cada vez mais instrumento incorporador. No caso do Reconhecente, que não precisa

65
de centros de cura e multidões em seu entorno, o sacrifício é silencioso, solitário e muitas vezes

inglorioso. Por isso precisa ser orgulhoso.

Mais tarde, na Gaia ciência, Nietzsche aprofundará melhor essas questões. De fato, a

Gaia Ciência é a obra onde o Erkennende será mais citado. O próprio título já demonstra uma

relação com o saber, leve, alegre e apaixonante, que, como vimos, é característica fundamental

do Reconhecente e já estava esboçado nas reflexões sobre Demócrito, conhecido como o filó-

sofo que ri. Nessa obra Nietzsche se colocará como Reconhecente em primeira pessoa quando

afirma “(...) também eu, o ‘Reconhecente’ [Erkennende], danço a minha dança, que o Reco-

nhecente é um recurso para prolongar a dança terrestre e, assim, está entre os mestres-de-ceri-

mônia da existência (...)” (Id., FW, 54). O Reconhecente como “mestre-de-cerimônia da exis-

tência” é aquele que apresenta as coisas dignas de serem conhecidas conforme a música — isto

é, as demandas de seu tempo. Assim como a dança, seus conhecimentos exigem variação, afinal,

estátuas não dançam. “Os mestres-de-cerimônia da existência” são aqueles tipos que criam um

sentido único para o existente, apresentam a tragédia de existir, sem precisar incorrer na tenta-

ção de atribuir um télos, seja um deus ex machina, conhecimento transcendental ou um sentido

histórico ou natural e, assim, unifica criativamente e esteticamente o conhecimento através de

um sentido ilusório que seduza, que aumente a beleza do existir.

Sendo os sentidos criados e ilusórios, podemos ter ainda “(...) a consciência de que so-

nho e tenho de prosseguir sonhando para não sucumbir” (Id., ibid.). Desse modo, “(...) a sublime

coerência e ligação de todos os conhecimentos é e será, talvez, o meio supremo de manter a

universalidade do sonho e a mútua compreensibilidade de todos esses sonhadores, e, precisa-

mente com isso, a duração do sonho” (Id., ibid.). Criar uma crença é atribuir um sentido e, mais

importante do que guiar nossas ações através de um saber ético universal, a priori, é criar uma

crença que dê um sentido ao agir ético coletivo, um sonho que se possa sonhar junto. Nietzsche

sustenta que

66
Por mais importante que seja saber [wissen] os motivos que realmente guiaram a con-

duta humana até hoje, talvez a crença neste ou naquele motivo, isto é, o que a huma-

nidade presumiu e imaginou ser o autêntico motor do seu agir até agora, seja algo

mais essencial para o Reconhecente [Erkennenden] (Id., ibid., 44)

Quando perdemos o sentido do reconhecimento, que é a intensificação da vida, e passamos não

a reconhecer para viver melhor, mas a viver para reconhecer mais, reconhecer melhor, acaba-

mos nos tornando meras máquinas reconhecedoras, como computadores de silício programados

para reconhecer. Como se um deus oculto, uma consciência transcendental, nos usasse como

meio para processar e reconhecer. Como se a intuição que guia o reconhecimento não fosse

nossa. Como se criássemos um pesadelo coletivo por meio do qual abdicamos de nossa vontade

para tornamos instrumento de uma intuição transcendental, universal, alheia às nossas vivências.

Como se fossemos máquinas que reconhecem apenas para abastecer o banco de dados de uma

rede teórica intersubjetiva e abstrata, como se a meta do reconhecimento fosse a intensificação

e perpetuação dessa rede e não da vida.

À essa tendência, Nietzsche nomeia de “pensadores de exceção” — aqueles que criam

um outro da vida e dos mundos e se refugiam lá, utilizando sua consciência e seu reconheci-

mento a seu serviço. Ele diz:

Quando viver e conhecer reconhecer [Erkennen] pareciam entrar em contradição,

nunca houve sérias lutas; a negação e a dúvida eram consideradas loucura. Os pensa-

dores de exceção, tais como os eleatas, que apesar de tudo estabeleceram e se ativeram

aos opostos dos erros naturais, acreditavam ser possível também viver o que era

oposto: eles inventaram o sábio como o homem da intuição imutável, impessoal e

universal, como sendo Um e Tudo ao mesmo tempo, como uma faculdade sua para

aquele conhecimento invertido; eles criam que o seu conhecimento era igualmente o

67
princípio da vida. Para poder afirmar tudo isso, no entanto, eles tiveram de se enganar

a respeito de sua própria condição: tiveram de falsamente atribuir-se impessoalidade

e duração sem mudança, de compreender mal a natureza do Reconhecente, negar a

força dos impulsos no reconhecimento [Erkennen] (Id., ibid., 110)

Ao atribuir um conhecimento desvinculado da vida, os “pensadores de exceção” passam a viver

em função desse reconhecimento. No entanto, a verdade que eles se atribuem não pode ser

incorporada, uma vez que o corpo é palco dos impulsos, e, assim, está sempre mudando.

Como não conseguem vincular suas abstrações, sua intuição imutável em um corpo que

muda, passa a negar o corpo, a buscar uma verdade desincorporada, atribuindo ao corpo um

valor negativo, pois não reconhecem no corpo aquilo que sabe, pois sua verdade imutável não

cabe em um corpo que deseja, que se apaixona, que sente, pois tudo isso gera movimento. Ao

invés de julgar essa verdade, essa intuição imutável, como um erro, uma loucura, um engano,

atribui isso ao corpo, refugiando-se em uma alma transcendental. Desse modo, Nietzsche coloca

a questão: “(...) até que ponto a verdade pode ser incorporada? – eis a questão, eis o experimento”

(Id., ibid.: 110)

O grau de valor de uma verdade, sua veracidade, enquanto sonho coletivo, uma crença,

um sentido comum, é a sua capacidade de ser incorporada — o que não é o caso das verdades

defendidas por esses pensadores de exceção.

Afirmar os impulsos ao reconhecer, isto é, reconhecer os saberes a partir do corpo, ou

ainda, encarná-los, é mais perigoso, mais arriscado, por vezes mais cruel consigo mesmo. No

entanto, fazer-se de experimento para os saberes, reconhecê-los incorporados em si, é um modo

de justificar a existência, ter uma vida que valha a pena, digna de ser vivida novamente. Assim,

Nietzsche vincula reconhecimento e vivência, ponderando que

68
Não, a vida não me desiludiu! A cada ano que passa eu a sinto mais verdadeira, mais

desejável e misteriosa — desde aquele dia em que veio a mim o grande libertador, o

pensamento de que a vida poderia ser uma experiência de quem busca conhecer um

experimento dos Reconhecedores [Experiment des Erkennenden] — e não um dever,

uma fatalidade, uma trapaça! – E o conhecimento mesmo: para outros pode ser outra

coisa, um leito de repouso, por exemplo, ou a via para esse leito, ou uma distração, ou

um ócio — para mim ele é um mundo de perigos e vitórias, no qual também os senti-

mentos heroicos têm seus locais de dança e de jogos. “A vida como meio de conheci-

mento” – com este princípio no coração pode-se não apenas viver valentemente, mas

até viver e rir alegremente! E quem saberá rir e viver bem, se não entender primeira-

mente da guerra e da vitória? (Id., ibid., 324).

O conhecimento como meio para a afirmação da vida, da potencialização do sentir-se vivo e

em permanente construção: essa incorporação de conhecimentos é o que permite ao corpo do

Reconhecente a flexibilidade para transitar entre mundos e entre culturas.

O que Nietzsche vislumbra aqui é uma ação que não se restringe ao embate de ideias.

Ele busca uma ação na qual os mundos instituídos possam ser incorporados e, uma vez tornados

corpos, promovam um embate, antes, na própria realidade instituída — isso é, na materialidade

dos corpos, nos espaços de convívio, no corpo acadêmico, na comunidade científica, nas mídias,

nas representações políticas e também nas manifestações culturais.

Assim, quando a epistemologia alteritária se torna política alteritária, o mundo das ideias

e das coisas, do futuro idealizado e da vida presente, podem se tornar corpos “(...) interiormente

inclinados a buscar, em todas as coisas, o que nelas deve ser superado.” (Id., ibid.) — como diz

o próprio Nietzsche.

Para isso, os incorporadores de ideias — como podemos definir os Erkennenden —

devem colocar seus corpos nesse embate. Não para sacrificá-los em nome das ideias, mas para

servirem de instrumentos de experimentação para novas possibilidades existências, isso é, para

69
potencializar o corpo e a vida e desdobrarem novos meios de superação da condição humana

— o que, em Nietzsche, equivale a novos além-homens, novas humanidades. É nesse sentido

que Nietzsche aconselha:

Sejam salteadores e conquistadores enquanto não puderem ser governantes e possui-

dores, vocês, Reconhecentes [Erkennenden]. Logo passará o tempo em que podiam

se contentar de viver ocultos nas florestas, como cervos amedrontados! Enfim o co-

nhecimento estenderá a mão para o que lhe é devido; — ele quererá dominar e possuir,

e você justamente com ele! (Id., ibid.)

Dominar um conhecimento, possuí-lo, é incorporá-lo, reconhecê-lo em nossas vivências. Como

animal social, nossas vivências são compartilhadas — vivemos sempre convivendo. Até mesmo

o ermitão na floresta, na distância, convive, ao estabelecer o limite do seu isolamento. Algumas

verdades exigem solidão para serem incorporadas.

O que Nietzsche sugere, nessa passagem, é que, enquanto minoria com coragem para

incorporar novas formas de existir, os Reconhecentes são salteadores. Seu modo de viver, ou

melhor, de conviver, é um saque ao instituído, às abstrações que já não são mais corpos.

Na vivência cultural, o Reconhecente conquista novos corpos para suas criações. São os

seus experimentos existenciais. Nesse sentido, a cultura em Nietzsche é uma unidade estilística

de um povo. E a unidade na forma de existir de um povo só pode ser alcançada quando reflete

suas vivências, pois ninguém precisa ser educado, ou civilizado, ou versado em conceituações

abstratas, para reconhecer uma forma de existir em comum.

Quando o Reconhecente sonha um sonho que possa ser sonhado junto — e o sonho é

amplamente incorporado — ele sai da floresta como “cervos amedrontados” e passa a dominar,

replicando sua forma de existir. Na cultura, o Reconhecente faz a grande política do sonho, da

disputa por imaginários. Mas, sua dominação é também libertação quando devolve aos corpos

70
abstrações que possam reconhecer, mundos e manifestações culturais que emanam do corpo em

convívio.

Colocando seu corpo como um instrumento de experimentação de uma nova vivência

compartilhada, o Reconhecente também é possuído por sua cultura. Ele possui, mas também é

possuído; domina, mas também é dominado.

Assim, encarnando aquilo que conhece e, adiante, reconhecendo e afirmando isso em

sua convivência, o Reconhecente é aquele que prenuncia “(...) a época em que levará heroísmo

para o conhecimento e travará guerras em nome dos pensamentos e das consequências deles”

(Id., ibid.). Ou seja, o embate não é apenas cultural e teórico — não está só no campo das

conceituações abstratas.

Quando as ideias são incorporadas, o embate é, antes, material, isto é, dá-se no âmbito

das vivências, da realidade instituída. Somente quando vence essa materialidade ôntica da rea-

lidade instituída, no atrito do convívio, o conhecimento pode ser valorizado já que, agora, pode

ser reconhecido.

Nietzsche chega ainda a propor uma “arquitetura dos Reconhecentes” (cf. Id., ibid.: 280)

para que as cidades possam ser projetadas para abrigar novas formas de existir — para que a

materialidade do planejamento urbano passa propiciar locais de convivência que sejam um

pouco mais propícios à reflexão e à meditação. Sobre isso, ele escreve:

O que falta acima de tudo em nossas cidades: tranquilos e amplos, espaçosos lugares

para reflexão, lugares com longas e altas galerias para o tempo ruim ou demasiado

claro, aonde não chegue os barulhos dos carros e pregoeiros, e onde um refinado de-

coro proibisse até a um padre a reza em voz alta: construções e passeios que, no con-

junto, exprimissem o que há de sublime no meditar e no pôr-se de lado. (Id., ibid.)

71
Desse modo, diz o Reconhecente: “(....) queremos ver nós mesmos traduzidos em pedra e planta,

queremos passear em nós mesmos, ao andar por essas galerias e jardins” (Id., ibid.). E, assim,

os Reconhecentes podem sair de seu isolamento e se reconhecerem em suas cidades. Quando

seu verbo se fez carne, cultura e cidades.

Esse “Eu” do Reconhecente é o que “recupera todo passado” incorpora os grandes da

história. Também eles ecoam em si, tornam-se corpo novamente. O Reconhecente não aspira

apenas ser póstumo, mas também reviver em si culturas e indivíduos mortos, dando-lhe mais

uma vez uma vida e, com isso, através do atrito das vivências, reviver em vários outros.

Assim, o Reconhecente foge de relações causais entre momentos históricos, concebendo

um conhecimento que está no tempo, mas também fora dele, já que as culturas e os indivíduos

reencarnados podem retomar seu espírito em outros corpos. Com isso, não há Idades ou Eras

que se findam e são sucedidas por outras. Antes, elas podem coexistir, retornar, transmutar.

Desse modo, o Reconhecente considera o tempo como cíclico — indo além da noção

linear ou espiralada do tempo — uma vez que considera que todo passado pode se apresentar e

reapresentar em cada instante. O passado é também seu presente e o seu presente é também um

devir. Sendo assim, ele pode “ver com seus próprios olhos” e renascer “em milhares de seres”.

Como porta-voz do Reconhecente, Nietzsche conclama: “Nós, os sequiosos de razão, queremos

examinar nossas vivências do modo rigoroso como se faz uma experiência científica, hora a

hora, dia a dia! Queremos ser nossos experimentos e nossas cobaias.” (Id., ibid.: 249). Ou seja,

o Reconhecente não quer observar, descobrir, ou buscar os objetos. Ele quer ser o seu próprio

objeto de estudo, quer fazer em si — e não nos fenômenos ou acontecimentos históricos — suas

experimentações, seu laboratório, suas observações, descobertas e buscas.

Nietzsche pontua que para quem “(...) conhece a paixão do Reconhecente (...)” (Id., ibid.)

e quer conhecer “(...) com suas próprias mãos (...)” (Id., ibid.), todas as glórias e os heróis do

passado podem ser vivenciados e todas as teorias podem ser encarnadas. Para Nietzsche, o

72
reconhecimento e a experiência são aquilo que mais se valoriza no conhecimento. Assim, ele

vivencia o ato de conhecer, tornando vivo o conhecimento.

Sua relação com o conhecimento se dá de modo muito mais profundo e intenso do que

o ensino e o estudo dedicados nas academias. Ou ainda, do que o entendimento filosófico ou a

investigação científica. Os que se dedicam ao conhecimento como um tédio, um ócio, ou um

ofício, desconhecem ou ignoram a experiência daquele que vivencia o conhecimento, que traz

consigo a paixão de quem quer conhecer, uma vez que, “(...) os que são lentos no conhecimento

acham que a lentidão é própria do conhecimento (...)” (Id., ibid.: 231) e, assim, encaram toda a

experiência ou vivência como algo alheio a eles, pois reconhecimento e experiência mostram

um conhecimento em devir, enquanto o ser humano teórico busca um conhecimento estático.

Com isso, elevando a atividade do conhecimento para além das noções de verdade ou

mesmo de transcendência, isto é, fazendo dela uma finalidade, o Reconhecente traz a essa ati-

vidade do conhecimento tudo o que era considerado alheio a ele: ação, paixão e vida.

Assim, o Reconhecente não se converte em um agente que empreende uma busca pelo

conhecimento para conseguir um tipo de crescimento pessoal, já que o “eu” que ele abriga é

também cultural — ou ainda, como diz Nietzsche (ibid.: 249), “(...) mediante muitos indivíduos,

gostaria de ver com seus próprios olhos e agarrar com suas próprias mãos (...)”. Nietzsche segue

dizendo:

O suspiro do Reconhecente. — “Oh, minha avidez! Nesta alma não existe abnegação

— mas sim um Eu que tudo ambiciona, que mediante muitos indivíduos gostaria de

ver com seus próprios olhos e agarrar com suas próprias mãos — um Eu que também

recupera todo o passado, que nada quer perder do que lhe poderia pertencer! Oh, essa

chama a minha avidez! Oh, que eu ainda renascesse em milhares de seres!” — Quem

não conhece por experiência este suspiro, também não conhece a paixão do Reconhe-

cente. (Id., ibid.)

73
Sendo o conhecimento o mais potente dos afetos e, como já vimos, sendo o reconhecimento

intuitivo o grau mais potente do conhecimento, atingimos o ápice da potencialidade do conhe-

cimento quando esse reconhecimento intuitivo está atrelado não a um Eu pessoal, mas a um

“Eu” coletivo.

A ânsia por potencializar o conhecimento como meio vital leva o Reconhecente a ser

através de muitos seres e, assim adquirir uma existência coletiva. Não como mais uma ovelha

no rebanho, ou servo de um povo, mas como o primeiro modelo de um modo de existir que um

dia servirá de modelo e inspiração para muitos.

74
3 Reconhecimento, Vivência e Cultura em Nietzsche

Como nem todo tipo de conhecimento gera ganho de autonomia individual e capacidade

de transformação social, surge-nos a necessidade em delimitar a atividade do conhecimento em

duas instâncias: saber (kennen) e reconhecer (erkennen). Essa necessidade torna-se imperativa

diante do nosso objeto de estudo, qual seja, a figuração do Reconhecente (Erkennende) na obra

de Nietzsche — e sua distinção do Sabido (Wissende). A necessidade dessa distinção no âmbito

da pesquisa acadêmica torna-se imperiosa sobretudo por questões de tradução. Por exemplo,

Paulo César de Souza e J. Guinsburg unificam os dois termos (Erkennende e Wissende) na

mesma tradução problemática de “homem do conhecimento”. Realmente, podemos encontrar

trechos na obra nietzschiana onde ele utiliza a expressão “der erkennende Mensch” ou ainda

“Mann der Erkenntniss” e “Der Mensch der Erkenntniss” — e, possivelmente, esses usos com

sentidos similares ao termo “der Erkennende” motivaram essas traduções. Porém, reiteramos a

necessidade em distinguir as duas figuras, no mesmo sentido em que julgamos problemática a

tradução dos termos com a palavra “homem”, diante da demanda nietzschiana em que o filósofo

do futuro, o Erkennende, seja o percursor do além-homem. Além disso, nas traduções, os termos

Erkenntniss, Wissen, kennen e erkennen, costumam ser indistintamente traduzidos enquanto

conhecimento. Nossa pesquisa visa contribuir na distinção desses termos para futuras traduções

e análises, assim como atentar para a valorização que Nietzsche dá ao reconhecimento — em

detrimento do mero saber ou conhecer. Por isso, tomamos a via de nomear o filósofo enquanto

Reconhecente (Erkennende) — algo que julgamos não ter merecido a devida atenção dentro da

pesquisa em Nietzsche. Portanto, ao longo deste último capítulo, exploramos a problemática do

Reconhecente e sua relação com a vivência cultural e, por fim, a caracterização última da figura

do Reconhecente enquanto médico da cultura.

75
3.1 O Reconhecente e a Vivência Cultural

A distinção entre apreensão, saber e reconhecer remonta aos termos kennen (saber como

apreensão), wissen (saber como compreensão) e erkennen (reconhecer o já sabido). De modo

sintético digamos que o saber é mais indutivo, empírico, analítico, “científico”, isto é, pertinente

à ciência (Wissenschaft). O saber enquanto kennen assume o sentido de “saber-que”. Já o saber

como wissen seria um “saber-como”. Por fim, o reconhecer (erkennen) é sempre “reconhecer

algo” já sabido a partir de algo que nos afeta no presente.

O reconhecer associa-se, portanto, à rememoração e articulação dos saberes. Ele é mais

sintético, experimental, genealógico, “filosófico”. Além disso, o reconhecimento da alteridade

se torna instrumento de ação contra assujeitamentos epistemológicos e ideológicos, garantindo

novas possibilidades existenciais. Por isso, defendemos que Nietzsche nomeia o “filósofo ideal”

como Reconhecente (Erkennende). Seu principal atributo não é mais a busca do conhecimento

como saber-que ou saber-como, mas, sobretudo, uma busca por reconhecer naquilo já sabido

um valor que esteja associado à potencialização da vida, dos mundos, de todo o existente.

O Sabido enquanto filisteu do conhecimento enfeita-se com o saber. Sua cauda de saber

decorativo pesa, impede-o de correr mais rápido, priva-o de voar. No conhecimento, o Sabido

encontra uma possibilidade de ascensão profissional, um passaporte para concursos, exposição

midiática, capitalização de palestras e cursos, cargos políticos, uma vaidosa fantasia erudita, a

exploração da fé alheia e o acúmulo de capital. Enfim, ele não incorpora aquilo que conhece.

Apenas veste-se com os saberes da estação ou do que é conveniente, quando não o utiliza como

casco de tartaruga para esconder-se dentro, na busca por algum conforto ou comodidade. Seu

conhecimento é acessório, é outro em relação a si. Por isso, seu guarda-roupa é diversificado e

amplo e sua carapaça é dura e pesada.

76
Já o Reconhecente incorpora aquilo que sabe em sua pele camaleônica e dissimulada.

Torna vivo o saber! Enquanto o pavão se mostra e a tartaruga se esconde, o camaleão dissimula.

Quando reconhecemos nosso entorno, dissimulamos melhor. Olhamos no olho do predador e

da presa sem sermos reconhecidos e, assim, potencializamos nossa ação perante eles.

O conhecimento, sendo o mais potente dos afetos, torna-se menos potente ao converter-

se em uma busca por conforto e segurança, pois é privado da capacidade de autotransformação

que lhe é própria; assim como perde sua potência quando torna-se decorativo, já que a sua

potencialidade resume-se a mera adequação e conformidade. O conhecimento é potente quando

altera, transgrede, cria.

Na ciência, impera o olhar conjectural, observa-se o entorno não para criar, mas para

prever. Conjecturas desinteressadas não nos interessam. A filosofia deve estar fora da ciência e

dos altares dos saberes porque deve avaliar, estabelecer uma meta, afirmar uma vontade. E

nenhuma vontade é desinteressada!

O Sabido apenas sabe, o Reconhecente quer! Embora seja importante assinalar que a

história da filosofia esteja repleta de sabidos e a da ciência de reconhecedores. Referimo-nos

aqui à ciência que sabe que vivemos em uma galáxia, que sabe como ela se formou, mas que

não necessariamente reconhece nesse conhecimento algum valor maior do que mera apreensão

e compreensão, cuja ação é o mero conjecturar.

O apreensivo diria de modo prudente se lhe perguntassem sobre o que sabe acerca do

valor da existência: sei-que nada sei. Já o Sabido interpelaria de modo vaidoso: sei-como saber.

Por fim, o Reconhecente diria orgulhoso: reconheço algo naquilo que sei.

Todos são “conhecedores”: apreensivos, sabidos e reconhecedores. Todos são cientistas,

artistas, sacerdotes e filósofos. Mas, eles se relacionam de modo diverso com os saberes. Um

não avalia o saber, outro estabelece critérios de avaliação e outro avalia o saber. Apenas esse

último utiliza o saber como meio para avaliar, ao invés de colocar o saber como critério máximo

77
de toda avaliação. Desse modo, por buscarem o conhecimento, são todos conhecedores, pois

reconhecem a própria ignorância — condição primeira de todo conhecer — evitando, sempre

que possível, a presunção ideológica do comum que diria sem refletir: sei que sei.

Conforme diz Nietzsche, “(...) apenas por intermédio da separação do reconhecimento

[Vereinzelung des Erkennens], através da divisão das ciências, é que reconhecimento [Erkennen]

e cultura [Kultur] podem permanecer alheios um ao outro” (NIETZSCHE, NF, 1872, 19, 172).

Quando os saberes estão desvinculados de um sentido cultural maior, mundos comuns, quando

não podem ser reconhecidos numa realidade sociocultural, tornam-se saberes desencarnados,

perdem seu caráter de condição para a vida.

O filósofo seria, dentre aqueles que se dedicam à atividade do conhecimento, aquele que

encarna os saberes, reconhecendo-os em sua realidade cultural e nos mundos espectrais que o

transpassam. Sendo assim, “(...) no filósofo, o reconhecimento vincula-se novamente à cultura.

Ele abarca o saber [Wissen] e levanta a questão do valor do conhecimento” (Id., ibid.).

O problema da cultura é, portanto, um problema epistemológico de primeira ordem e,

dentre os problemas culturais um destaca-se, qual seja: a relação entre conhecimento e vida.

Como aprimorar o conhecimento sobre a realidade sem desvincular-se de uma vivência

cultural, isto é: dos mundos que formam a realidade? Como conhecer a realidade reconhecendo

os mundos que habitamos? . Como articular uma comunidade científica internacional com uma

realidade local? Nietzsche diz, “este é um problema cultural: conhecimento e vida (Id., ibid.).

Problema esse a qual deve ocupar-se o filósofo, aqui entendido como aquele que reconhece e

sente (Reconhe-sente) os saberes no devir de suas vivências. Apenas viventes reconhecem e

sentem. Apenas quem reconhece e sente pode avaliar o conhecimento. O caráter reflexivo do

reconhecimento se dá pela reverberação dos saberes na duração de uma vivência. Enquanto o

conhecimento como saber se dá no tempo enquanto extensão, análise de casos passados ou

conjecturas futuras, o conhecimento como reconhecer se dá na duração de uma vivência.

78
Além disso, enquanto saberes podem ser armazenados e universalizados, reconhecimen-

tos dependem de um vivente lançado no devir do seu mundo. Nós podemos saber, mas apenas

alguém que vive pode reconhecer. No entanto, para alguém poder reconhecer é preciso antes

saber. Por isso, o reconhecimento possui um elemento genérico que é o saber, mas também algo

de singular que é o modo como dá unidade aos saberes genéricos através da singularidade de

um vivente, um indivíduo.

O reconhecimento é o saber tornado vida. Quando o saber passa da espécie ao indivíduo.

Alguns primatas adotaram como estratégia evolutiva a potencialização da capacidade cognitiva

do reconhecimento. Com isso, os indivíduos ganham mais autonomia, possibilitando desde o

reconhecimento dos hábitos de suas caças, materiais, ferramentas, capacidade de se colocar em

outra perspectiva, reconhecer o outro, normas sociais e condutas morais, até reconhecimentos

que ocorrem no mundo interno, nas sensações, nos pensamentos e, sobretudo, o reconhecimento

de si no mundo. Somos o primata onde essa estratégia adotou o seu ápice.

Na obra póstuma intitulada Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral, Nietzsche

irá atentar para o perigo da valorização do reconhecimento desvinculado da vida. Em tom de

fábula, ele começa afirmando que: “(...) em algum remoto rincão do universo (…) houve uma

vez uma estrela na qual animais inteligentes inventaram o reconhecimento [Erkennen]” (Id.,

WL, 1). Ele acrescenta, em seguida, que “(...) não há nada tão desprezível e insignificante na

natureza que, com um pequeno sopro daquela força do reconhecimento [Kraft des Erkennens],

não inche imediatamente como um saco” (Id., ibid.). O reconhecimento dá sentido aos entes,

inflando-os. A mesma praia pode ser reconhecida como recurso turístico, um meio de transporte,

um local de trabalho, convivência, estudo ou lazer. Ao inflar o mundo com os sentidos que ele

mesmo atribui e reconhece, o ente humano se envaidece de sua posição na natureza, como se o

universo girasse em seu entorno.

79
Desse modo, “(...) essa presunção associada ao reconhecer [Erkennen] e sentir, lança

uma névoa cegante sobre os olhos e os sentidos dos homens, engana-os quanto ao valor da

existência.” (Id., ibid.). Nietzsche adverte aqui para o perigo em avaliar o reconhecimento des-

vinculado da vida, “(...) ao trazer consigo a mais lisonjeira avaliação pelo próprio valor do

reconhecimento” (Id., ibid.), como se a capacidade de reconhecimento fosse a única meta dos

entes humanos.

O conhecimento que reconhece tende a ter seu valor pelo próprio ato de reconhecer, sem

vincular um valor ao que é reconhecido, busca apenas reconhecer para conhecer mais, sem uma

finalidade que o guie. Dessa forma, desvincula-se o reconhecimento da vida — o que torna o

reconhecimento um instrumento decorativo para o acúmulo de saber, mera erudição desvincu-

lada da vida, ou ainda, instrumento para ascensão profissional.

Em um Fragmento Póstumo de 1875, Nietzsche identifica uma tensão constante entre

os impulsos do reconhecimento e da vida, já que “O impulso de quem deseja reconhecer tem

que abandonar o solo em que vive o homem e ousar aventurar-se no desconhecido” (Id., NF

1875, 6, 48), e, em contrapartida, “(...) o impulso que quer a vida deve sempre tentar o caminho

para um lugar mais ou menos seguro, em que possa se apoiar” (Id., ibid.). No entanto, essa luta

entre o impulso da vida e do reconhecimento pode fortalecer ambos, já que “(...) essa luta entre

a vida e o reconhecimento será tanto maior, quanto mais singular for a luta sob o mesmo jugo,

tornando mais poderoso os dois impulsos” (Id., ibid.). Isso acontece quando a potência de vida

encontra guarida no desejo de aventurar-se e tornar-se sempre outro, estranho ao que já foi, “(...)

isto é, quanto mais plena e florescente for a vida, e, por outro lado, quanto mais insaciável for

o reconhecimento, mais cobiçosamente eles se lançam em toda sorte de aventuras” (Id., ibid.).

Quando passamos a reconhecer o estranho, o inabitual, o alheio, temos uma potência de vida,

pois ampliamos nossas possibilidades existenciais. Daí a importância, em uma perspectiva

80
ético-política, da distinção entre conhecimento e reconhecimento, assim como da valorização

do reconhecimento do desconhecido, do não habitual.

Quando pensamos o reconhecimento dentro de uma perspectiva social, encontramos a

mesma valorização da alteridade presente na perspectiva epistemológica. Do mesmo modo que

o Reconhecente encarna saberes não tradicionais, que busca um novo meio para filosofar que

não coloque a razão e a busca do verdadeiro como valor epistemológico supremo; assim tam-

bém aproxima-se de pessoas e culturas singulares, não hegemônicas, pois não encara a cultura

como uma construção racional tampouco acredita em uma estrutura cultural a priori, verdadeira.

Dessa forma, não apenas procura encarnar personagens e saberes mortos, mas também busca

entre os viventes que interage novas formas de pensar, agir, sentir, viver. Também busca ideias

e pensamentos em corpos que interage, não apenas em livros que lê. Assim, o reconhecimento

da alteridade, na história e nas vivências atuais, nos liberta das amarras do conhecido, do con-

forto do familiar, nos levando a experimentar novas perspectivas e possibilidades existenciais.

3.2 O Reconhecente como Médico da Cultura

Em alguns Fragmentos Póstumos de 1872 e 1873, Nietzsche se dedica a pensar o papel

do filósofo na cultura (Kultur) e na formação cultural (Bildung). Assim como a relação entre

filosofia, ciência, arte, povo e cultura. Nesses aforismos, podemos encontrar “O filósofo como

médico da cultura” (NIETZSCHE, NF: 1872, 23, 15) — onde Nietzsche planejou reunir essas

passagens em uma publicação com esse título. Ali, ele quer “(...) saber (wissen) como a filosofia,

que não é inimiga, comporta-se em relação a uma cultura (Kultur) existente ou emergente: aqui

o filósofo é o curandeiro da cultura” — diz Nietzsche (Ibidem).

O Reconhecente como médico da cultura busca estabelecer uma relação entre filosofia,

cultura e saúde. Procura-se, assim, em outras culturas, outras vivências e outros períodos

81
históricos — disposições afirmativas perante a vida e os instintos. E, desse modo, restaurar o

caráter autêntico da cultura, vinculado às vivências atuais, pois uma cultura que busca unidade

em teorizações eruditas e tradições históricas é uma cultura decorativa. Quando uma cultura

instituída, um sonho compartilhado, toma como ideal mundos que não podem ser encarnados,

os corpos adoecem, pois são privados de sua potencialidade.

Tal como o câncer que se recusa a morrer e passa a existir apenas para replicar-se, pre-

judicando a saúde do corpo, são as tradições culturais e filosóficas no corpo social que, uma

vez desvinculada das vivências culturais, já tendo cumprido seu papel vital, recusa-se a romper

sua membrana e morrer como as demais células, cujos elementos uma vez dissolvidos no corpo

deveriam formar novas células. Tanto o câncer quanto a abstração simbólica desencarnada que

busca apenas replicar-se atentam contra o ciclo da vida e sua dinâmica alteritária, ao tentarem

manter uma estrutura ineficaz e não adaptada às necessidades atuais apenas pela necessidade

de autorreplicação. Quando o valor da identidade é sobrepujado ao da alteridade adoecem os

corpos e as culturas.

Uma cultura baseada em abstrações racionais nos separa dos mundos que nos transpas-

sam no atrito social, pois reconhecer tais mundo exige uma vivência intuitiva. A cultura não

pode ser construída por conceitos, por isso a filosofia não pode parir culturas. Diante disso, qual

papel cabe ao filósofo na cultura e educação? O mesmo que o do artista, o de criador de novas

perspectivas, com a diferença que sua matéria-prima é a articulação dos saberes e o olhar gene-

alógico.

Todavia, Nietzsche vai além de uma mera crítica cultural. Em algumas passagens, ele

se refere a uma “essência da cultura” ou, mais de uma vez, a uma “metafísica da cultura”. O

que torna as reflexões de Nietzsche sobre o tema mais do que uma mera crítica cultural é a sua

preocupação por um “futuro da cultura”, a necessidade de sua restauração, seu vigor. Mais do

que criticar, ele aponta um horizonte possível, inspirado por valores culturais associados aos

82
gregos. Buscando através da história cultural grega um antídoto contra a cultura moderna, mais

especificamente a cultura de massa e, com isso, poder vislumbrar um futuro para a cultura que

não passe apenas pela padronização e pela lógica de consumo.

A cultura grega, para Nietzsche, tinha como finalidade justificar a falta de sentido da

existência através da produção de grandes individualidades. Assim, havia uma harmonia entre

uma vontade pessoal que buscava ser reconhecida e valorizada tornando-se singular e uma von-

tade coletiva que era constantemente ressignificada através da perspectiva de indivíduos singu-

lares. O conhecimento para os filósofos trágicos, pré-platônicos, era um instrumento para a

singularidade, para a construção de grandes individualidades.

Trata-se de uma autonomia do indivíduo perante o conhecimento — não dedicando sua

vida exclusivamente a ele, mas fazendo dele um meio para a intensificação de sua própria vida.

Nesse sentido a busca pelo conhecimento serve para “levar para casa algo”. Esse algo é, na

verdade, a potencialização das suas vivências. Tendo agido em si, usando o conhecimento para

controlar harmonicamente seus impulsos, experimentando com isso um ganho de vitalidade, de

saúde, o Reconhecente está apto a agir como médico da cultura, receitando aos demais o que

experimentou em si mesmo. Assim, luta contra as instituições e valores estabelecidos, em busca

de uma nova formação (Bildung) que possibilite novas naturezas, isto é, novas formas de existir.

Sua metodologia é a dissecação dos saberes estabelecidos como meio de denunciar os

instintos que os consolidam. Seu bisturi é o método genealógico. O método genealógico permite

articular o saber com as práticas políticas e as manifestações de poder. O intuito é demonstrar

como o saber atende demandas históricas, interesses específicos, disposições morais. No estudo

dos saberes, o Reconhecente busca, com o método genealógico, demonstrar como os saberes e

valores são frutos da disputa entre instintos e como foram sendo consolidados na cultura para

privilegiar disposições morais específicas ao longo da história, assim, tirando deles o seu caráter

essencialista e natural. Valores e saberes são construções simbólicas que foram sendo afirmadas

83
ou negadas ao longo do processo histórico; sendo assim, se as demandas que as consolidaram

ao longo do tempo mudarem, elas devem ser revogadas e novos valores e saberes construídos

para atenderem uma nova demanda. Por isso, o Reconhecente não é o teórico da cultura, mas o

seu médico, pois suas prescrições são válidas em determinados contextos, além de serem frutos

de demandas particulares.

Ao invés de avaliar os conhecimentos sob o paradigma da falsidade ou veracidade de

suas proposições, o Reconhecente deve, na visão nietzschiana, avaliá-los sob o paradigma da

intensificação ou negação da vida, isto é, se são saudáveis ou decadentes.

Eles são saudáveis quando harmonizam os instintos, quando os discursos servem para

desconstruir o estabelecimento de disposições morais decadentes. Eles intensificam a vida, pois

proporcionam um ganho de vitalidade, de vontade de poder.

São decadentes quando tentam tiranizar o espírito através da exaltação de um instinto

único — como o racional — ou quando tentam engessar uma realidade tida como ideal, não

importando o contexto. Em outras palavras: quando é ideológica.

O olhar ideológico tenta, tal qual o olhar da Medusa, petrificar o mundo e eternizar no

tempo uma realidade particular. Seja argumentando que tal realidade tem fundamento natural,

uma origem essencial, seja pela caracterização de uma realidade autônoma em relação aos seus

agentes. E, assim, poderia permanecer a mesma apesar da mudança dos indivíduos. Os discur-

sos são vários, mas a finalidade é a mesma: petrificar o mundo. Os ideólogos e a Medusa sofrem

da mesma maldição: petrificam tudo aquilo que olham ou sobre o qual teorizam — no sentido

grego do termo “teoria”, isto é, olhar, observar ou contemplar.

O Reconhecente (Erkennende) para Nietzsche é quem encara o conhecimento como uma

invenção humana, não como algo baseado em uma origem. Toda invenção instaura o novo,

revoga o anteriormente estabelecido. Aquele que busca o conhecimento não busca nas coisas

uma origem anteriormente dada, mas uma nova interpretação delas, uma nova criação, ou uma

84
perspectiva diferente. Há no ato de conhecer uma relação de dominação, uma relação de poder.

Quem conhece busca se apropriar do conhecido. O que move o sujeito ao conhecimento são

seus instintos. Logo, não há uma identidade no sujeito cognoscente, mas uma constante disputa

de instintos. Ele é o resultado da luta entre forças internas

Nietzsche concebe como tarefa: “(...) compreender a coerência interna e a necessidade

de cada verdadeira cultura. Os meios de defesa e cura de uma cultura, a sua relação com o gênio

do povo” (Id., ibid., 1872, 19, 33). Nessa visão, a cultura se materializa em entidade orgânica,

no povo que age pelos impulsos, dando um “(...) controle unitário dos instintos desse povo”

(Id., ibid., 1872, 19, 31).

Logo, a cultura possui um caráter vital, define a própria vitalidade orgânica de um povo.

Daí a importância do médico da cultura — que Nietzsche associará nos primeiros escritos à

imagem do “gênio do povo”. O gênio é um médico e maestro que atua na cultura em busca da

plena harmonia dos impulsos. É ele quem cria novas interpretações da realidade e as insere no

âmbito da cultura — uma imagem também associada aos “grandes da história”. Para Nietzsche,

“(...) o gênio tem a força de transformar o mundo com um novo véu de ilusões” (Id., ibid. 1872,

6, 13), dando novas interpretações e novos sentidos aos mundos, transmudando-os.

Ao construir e ressignificar mundos, os filósofos tornam-se elementos alteradores que

são fundamentais para a vitalidade cultural. Por isso, a “Filosofia não é para o povo (...)”, mas

pode se converter em “(...) ferramenta de uma cultura” (Id., ibid., 1872, 23, 45).

A instrumentalidade da filosofia para uma cultura é seu caráter alterador, por isso ela

“(...) não é a base de uma cultura” (Id., ibid.). Se fosse, seria elemento identitário, fundador.

Assim, a filosofia precisaria estar excluída da cultura para garantir suas possibilidades.

Ao contrário do Sabido que tem uma relação de servidão com o povo e que, em sua

arrogância, busca fundamentar a cultura através do saber, o Reconhecente protege a cultura

contra “(....) a influência bárbara dos saberes [Wissens]” (Id., ibid., 1872, 19, 51). Ao reconhecer

85
o caráter de condição para a afirmação da vida nos saberes, o Reconhecente promove uma “(...)

domesticação dos saberes (...)” (Id., ibid.), já que “o saber absoluto leva ao pessimismo” (Id.,

ibid.), sendo preciso uma intermediação entre os saberes e as vivências que dão um caráter

autêntico à cultura, em detrimento daquilo que Nietzsche nomeia como cultura decorativa, que

não é cultura pois torna-se tão somente um saber sobre a cultura, uma vez que esse saber não é

incorporado na vivência de um povo. Desse modo, afirma: “O que quer o insaciável instinto de

conhecimento? — Em qualquer caso, ele é anticultural. A filosofia procura domesticá-lo; é um

meio de cultura” (Id., ibid., 1872, 19, 64). Não tendo a filosofia como a fundamentação de uma

cultura como finalidade, ela converte-se em um meio de intermediação entre os saberes e sua

incorporação nas vivências culturais. Além disso, ao buscar novas possibilidades existenciais,

novos rearranjos nos impulsos, converte-se em referência para os demais e, assim, age como

médico de si e dos outros.

3.3 Cultura Autêntica e Cultura Decorativa

O contexto histórico da unificação alemã de 1871 teve uma grande influência no pensa-

mento filosófico alemão, levantando questões fundamentais sobre a relação entre Estado, cul-

tura e sociedade. Nietzsche viu na força e unidade do Estado prussiano fatores que acentuaram

a fraqueza e a fragmentação da cultura alemã.

Para Nietzsche, o fortalecimento do Estado frequentemente enfraquece a cultura — aqui

entendida em sua acepção mais ampla, próxima do significado de civilização. Em suas Consi-

derações Intempestivas (1873 e 1876), Nietzsche critica a influência da racionalidade moderna

na cultura e nas instituições de ensino. Ele argumenta que a cultura nacional promovida pelo

Estado bismarckiano perdeu sua autenticidade, tornando-se uma ferramenta para angariar car-

gos na esfera estatal. Quando o único fator de unidade de uma cultura é a promoção estatal, ou

86
a abstração conceitual, ela torna-se decorativa, quando essa unidade é alcançada por intermédio

das vivências culturais, torna-se autêntica.

Compreender esse contexto histórico nos ajuda a pensar o papel da cultura na sociedade

contemporânea e sua relação com o Estado e a formação dos indivíduos. A questão central é a

possibilidade ou não de resgatar o caráter autêntico da cultura, pensando e vivendo a cultura

independentemente de sua utilidade para o poder estatal e econômico e qual o papel da educação

diante disso.

Nietzsche defendeu que a formação alemã deveria ser repensada nos moldes da cultura

grega, através da autonomia da educação e da cultura em relação ao Estado. Desse modo, a

pólis grega não era a guia da cultura (Kultur), tampouco emitia diretrizes educacionais ou le-

gislava sobre a formação entendida como Paidéia. Sendo assim, ele criticou as ideias coletivis-

tas que exaltavam os valores gregários e de rebanho, culminando na defesa da lealdade ao Es-

tado e numa crença de supremacia cultural, promovida pelo Estado, que não se refletia nas

vivências dos alemães e nos próprios funcionários públicos.

A cultura passa então a ter uma relação servil com o Estado e as forças econômicas, com

a universalização da educação visando fins instrumentais. Desse modo, torna-se fundamental

um compromisso com a formação e a vivência cultural para reconhecer e valorizar a potência

criativa e transformadora da cultura, buscando uma cultura autêntica e não instrumental, que

não esteja a serviço do poder estatal e econômico, nem se esvazie em eruditismo. Somente

assim poderemos resgatar a potencialidade da cultura na vida humana.

Para Nietzsche “(...) a cultura depende da forma como ‘o grande’ é definido.” (NIETZS-

CHE, NF, 1872, 19, 51) e, enquanto para os gregos a grandeza era encarnada no presente, para

os alemães recém-unificados residia na nostalgia de um passado glorioso, que remonta ao Sacro

Império, e no otimismo de que um dia ele pudesse ser restaurado. A grandeza residia em um

Reich que existia no passado e numa promessa futura. Ele criticou a cultura alemã por não ter

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conseguido desenvolver o sentimento de união entre as demandas do Estado e da cultura alemã,

pois a cultura que pregava uma Alemanha grande, patrocinada pelo Estado, não era a mesma

que se voltava ao cultivo de grandes personalidades devido à sua formação jornalística e frag-

mentária. Essa formação caótica e superficial afastavam os educandos do caminho para si

mesmo, isto é, da sua própria estilística existencial. Sendo assim, conclui: “(...) o alemão não

tem nenhuma cultura porque, em razão de sua educação, não pode absolutamente ter cultura.”

(NIETZSCHE, 2003, p. 97).

Nietzsche, como médico da cultura, via a valorização da cultura grega como um antídoto

para esse diagnóstico, pois ela tinha como meta a formação do gênio que eleva a cultura para

além da massa, do comum, do institucionalmente útil. Ele propôs que a formação deveria ter

como meta o desenvolvimento de uma estilística existencial, uma unidade de estilo, para que

os indivíduos possam se elevar acima do rebanho e afirmar sua vontade.

Assim, ele aproximou ética e estética ao propor uma estilística existencial como meta

para os mundos humanos e as culturas que os abrigam. O ideal de vida plena não seria mais

aquele do virtuoso, ou o santo, tampouco o erudito, mas sim, aquele que singularmente conse-

guiu conceber um estilo próprio e viver uma vida bela. A vida em si não é bela, pois a beleza é

um valor humano, mas isso não significa que a vida não possa ser vivida com beleza.

Em seu “Período trágico” e “intempestivo” (1871–1876), Nietzsche entende a cultura

como fenômeno estético, isto é, como domínio da arte sobre a vida. Assim como a arte, a cultura

também possui um caráter ilusório. Ao contrário do saber que procura desvelar o mundo, a arte

e a cultura procuram velá-lo. Assim, a cultura começa como uma miríade de coisas sendo ve-

ladas. Por meio da cultura os humanos atribuem desejos e significados aos entes tornando a

existência mais sedutora. Nietzsche argumenta que, ao realizar atividades com significados in-

tersubjetivos, em prol da grandeza comum, as pessoas criam laços e constroem narrativas, o

que, por sua vez, as incentiva a continuar vivendo e cooperando.

88
Do contrário, encarnariam a sabedoria de Sileno para o qual o mais preferível para os

humanos seria “(...) não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor (...) é logo

morrer” (NIETZSCHE, 1992, p. 36). Sendo os humanos entes sociais, sua existência dá-se ape-

nas entre mundos, entre culturas, mantê-los cooperando de forma harmônica é um modo de

mantê-los em existência.

A autossuperação do ente humano depende desse véu do qual fala Nietzsche — “(...)

viver em uma esfera pura e nobre e isolar as irritações mais comuns” (NIETZSCHE, FW, 19,

50), diz ele. Sendo a cultura uma instância intersubjetiva, uma síntese de indivíduos singulares,

ela não possui uma existência em si, desencarnada dos corpos que a sustentam. Antes, possui

um caráter ilusório e simbólico, além de relativo e conjuntural.

Todas as sociedades humanas produzem cultura, mas não a fazem da mesma forma. O

saber sobre a cultura que busca desvelar essas estruturas culturais a priori está condenado, para

Nietzsche, ao fracasso. Assim como a arte é teorizada a partir do seu tempo, a cultura também

o é e assim como não faz sentido atribuir parâmetros estéticos universais, também não faz a

tentativa de estabelecer parâmetros culturais universais.

A falta de um sentido transcendente para a existência e a vida atenta contra a própria

vontade de viver. A vida é esvaziada de ânimo quando encarada como mero acaso, sem uma

finalidade ou origem teológica — assim como quando encaramos o cosmos como algo imerso

no devir e destinado a sucumbir pela entropia. Quando o vivente humano, uma vez dotado de

uma capacidade exacerbada de reconhecimento, passou a reconhecer certa falta de sentido da

existência, precisou de antídotos contra o pessimismo advindo dessa falta de sentido. Ele criou,

então, ilusões úteis acerca do sentido da existência e as reconheceu como verdadeiras.

Quando indivíduos reconhecem a falta de sentido da existência, as demandas coletivas

tornam-se também esvaziadas de sentido. Como precisamos viver em rebanhos, precisamos

também criar ilusões coletivas para que essa vida social possa fazer sentido. Sendo esse ente

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humano o único a reconhecer sua finitude, ele precisou de ilusões para que pudesse coordenar

esforços e viver em comunhão com outros entes humanos, mesmo sendo capaz de reconhecer

essas ilusões como tais. Vivendo ele sempre junto, entre outros entes humanos, sua vontade de

viver está atrelada a uma vontade coletiva, pois reconhece que a morte de uma coletividade

pode implicar em sua própria morte. Desse modo, “(...) a vontade ávida sempre encontra um

meio, através de uma ilusão distendida sobre as coisas, de prender à vida as suas criaturas, e de

obrigá-las a prosseguir vivendo.” (Idem, ibidem). Portanto, as ilusões são estratégias de sobre-

vivência vitais para que o ente humano siga existindo.

Ao reconhecer a falta de um sentido transcendente ao existente, o Reconhecente sente

— assim como naturezas mais intuitivas e sensíveis — “(...) o fardo e o peso da existência que,

através de estimulantes escolhidos, são enganadas por si mesmas. Desses estimulantes compõe-

se tudo o que chamamos cultura” (Id., ibid.). As ilusões são estimulantes na medida em que nos

estimulam a permanecer vivos e potencializam nossa vontade de viver. Nietzsche diz que “O

saber absoluto leva ao pessimismo” (Id., ibid., 19, 51), ao contrário do que prega o otimismo

teórico socrático ao provocar o desencantamento das ilusões necessárias à vida. Nesse caso,

“(...) a arte é o remédio (...)” (Id., ibid.).

Nietzsche afirma que, ao longo da história antiga, três estimulantes culturais ajudaram

os humanos a permanecerem coesos e cooperando: a ilusão de que podemos curar o mundo

através do conhecimento (como foi o caso da cultura socrática ou alexandrina); a ilusão de que

podemos embelezar o mundo através da arte (como foi o caso da cultura helênica antes de

Sócrates); e a ilusão de que podemos buscar uma vida eterna (como é o caso da cultura indiana).

A cultura indiana e a socrática possuem em comum ilusões que se empenham na vida

presente em nome da promessa de um futuro melhor, seja pregando uma vida eterna depois da

terrena, seja prometendo fazer da vida terrena um paraíso construído pelo saber, como é o caso

da cultura socrática. Nisso consiste seu otimismo. Nietzsche diz:

90
E agora não vamos ocultar de nós mesmos o que se acha oculto no regaço dessa cultura

socrática! O otimismo que se presume sem limites! Agora é mister não assustar-se, se

os frutos desse otimismo amadurecem (...), se a crença na felicidade terrena de todos,

se a crença na possibilidade de tal cultura universal do saber converte-se paulatina-

mente na ameaçadora exigência de semelhante felicidade terrena alexandrina, no con-

junto de um deus ex machina euripidiano. (Id., ibid.)

O deus ex machina era um recurso estilístico, presente sobretudo nas obras de Eurípedes, onde

o desfecho e o sentido final de uma trama eram dados por um deus que descia ao palco por um

guindaste. Do mesmo modo, a ilusão de que o saber pode corrigir os males da existência nos

leva a viver em função do acúmulo do saber, mesmo que a consequência disso seja a negação

da vida presente, tendo em vista a promessa de que uma cultura universal do saber futuramente

construirá uma existência terrena sem sofrimentos. Como se o saber fosse esse deus ex machina

que ao final dará sentido a uma existência desprovida de sentido.

Assim, o otimismo socrático substituiu a visão trágica do mundo dos gregos, seja através

do otimismo teórico de Sócrates ou do otimismo estético de Eurípedes. Não mais uma ilusão

estética dos mitos e dos pensadores trágicos justificava a existência para os gregos, mas sim, a

ilusão teórica de que o saber pode redimir os males do mundo justificava a existência grega.

Como se o mal fosse fruto da ignorância, ao invés de uma criação moral. Eis, para Nietzsche,

o início da sua decadência, tanto filosófica quanto artística.

Sendo as ilusões uma necessidade vital, o modo como nos autoiludimos também é. Cada

impulso pede por uma determinada ilusão para potencializar-se. No caso dos gregos, a exaltação

do “impulso do saber” (Wissenstrieb) ou “impulso do conhecimento” (Erkentnisstrieb) (cf. Id.,

ibid.) levou-os a valorizar as ilusões teóricas que sustentam a “cultura socrática”. O problema

é que a ilusão que essa cultura criou acerca do saber foi um fator desagregador da própria cultura

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grega, uma vez que o saber, e sua tendência em compartimentar a existência, atentou contra a

unidade da vontade helênica, presente no Período Trágico — e, com isso, o filósofo teórico, ao

contrário do trágico, também atentou contra a vitalidade da sua cultura. Para Nietzsche, “(...) o

filósofo protege e defende a sua pátria.

Mas agora, desde Platão, ele encontra-se no exílio e conspira contra a pátria” (Id., PZG,

2). Do mesmo modo, a cultura moderna, ao encarnar a cultura como um saber sobre a cultura,

atenta contra a unidade dos impulsos e, consequentemente, torna-se uma cultura enfraquecida,

isto é, decorativa. A unidade cultural deve ser buscada nas vivências culturais, não no saber

sobre essas vivências.

Como diz Nietzsche, após Platão, “(...) os filósofos convertem-se em ‘fundadores de

seitas e que as seitas por eles fundadas sejam todas instituições de oposição contra a civilização

[Kultur] helênica e contra a unidade de estilo até então existente (...)” (Id., ibid.), a partir disso,

esses filósofos “(...) buscam, à sua maneira, uma redenção — mas só para pessoas individuais

ou, quanto muito, para grupos próximos de amigos e de discípulos (...)”. Sendo o filósofo um

instrumento da sua cultura, seu grau de valor é definido não a partir da descoberta de alguma

verdade, ou a concepção de algum sistema filosófico, mas sim, a partir do modo como consegue

captar, nas vivências culturais, a vontade de um povo, tornando-a consciente e potencializando-

a através dos saberes.

Portanto, em seu período trágico e intempestivo, Nietzsche possui como “(...) objetivo

determinar a teleologia do filósofo em meio à cultura [Kultur].” (Id., ibid.). Sendo o filósofo

ideal o médico de sua cultura, como vimos, ele deve diagnosticar a desarmonia entre os impul-

sos para estimar um prognóstico de uma relação mais saudável entre eles, isto é, para harmo-

nizá-los.

Para tanto, é necessário domar os impulsos, papel que cabe ao filósofo, ao artista ou ao

asceta, a depender do tipo de ilusão escolhida para dominar esses impulsos. A cultura é o

92
instrumento pelo qual determinado povo, de modo unitário, domina os seus impulsos através

de ilusões. Desse modo, “(...) a cultura de um povo se manifesta na dominação unitária dos

impulsos deste povo (...)” (Id., NF, 19, 41), quando “(...) o Ágape domina o Eros” e os impulsos

culturais — coletivos — dominam os impulsos individuais e isolados.

Logo, quanto mais unitária for a cultura de um povo, mais poder terá para arregimentar

a vontade de seus indivíduos em prol de uma mesma meta. O filósofo e o artista seriam, portanto,

instrumentos de unificação cultural, convergindo as vontades individuais de um povo de modo

unitário para a mesma meta.

Agora, se o filósofo é instrumento da cultura, e essa, por sua vez, é instrumento da von-

tade de um povo, então, nos gregos, essa dominação unitária, para Nietzsche, atingiu o seu ápice.

Havia no pensamento dos filósofos pré-platônicos uma tentativa de traduzir a vontade helênica

em conceitos e pensamentos. A mesma vontade que se manifestava em uma vida de conquistas

e perigos, em uma arte trágica, também era traduzida em ideias e conceitos através desses filó-

sofos. Desse modo, afirma “(...) em todos os impulsos próprios dos gregos aparece uma domi-

nação unitária: podemos denominá-la a vontade helênica” (Id., ibid.). Em última instância, en-

tão, o filósofo é o instrumento da vontade de um povo e o modo como potencializa essa vontade

— dando-lhe unidade — é dominando o saber e sua tendência em isolar, desagregar, desiludir.

O filósofo encarna a vontade coletiva para expressá-la em pensamentos e, assim, torná-la cons-

ciente de si. Uma vez consciente de si no imaginário social essa vontade pode ser expressa em

outras manifestações culturais e, assim, tornar-se cada vez mais forte e unitária. O conheci-

mento serve ao filósofo na medida em que serve a essa meta.

Assim, como pontua Nietzsche, “(...) a filosofia domina o impulso do conhecimento

[Erkentnisstrieb]. a arte domina o impulso das formas e o êxtase” (Id., ibid.). Por isso, “(...) é

impossível construir, como provado, uma cultura [Kultur] por meio do saber [Wissen]” (Id.,

ibid., 105), ]”, já que o “ (...) impulso do conhecimento [ (...) é anticultural. A filosofia procura

93
domesticá-lo; é um meio da cultura” (Id., ibid., 64). Ou seja, a filosofia é um meio — a cultura

é a finalidade.

Para Nietzsche, “(...) este saber sobre a cultura [Bildung] é injetado ou inoculado, como

um saber histórico, no jovem; ou seja, sua cabeça é preenchida com uma quantidade descomu-

nal de conceitos extraídos do conhecimento maximamente mediato das épocas e dos povos do

passado, não da intuição imediata da vida.” (NIETZSCHE, 2003, p. 96). A formação (Bildung)

entendida desse modo é inimiga da cultura (Kultur) entendida como unidade estilística.

Na perspectiva nietzschiana, a cultura assume um papel crucial na existência humana

ao fornecer um significado à vida. Uma vez que uma rede de significados é tecida, um mundo

comum é erigido, os entes humanos podem reunir forças para a autossuperação, isto é, a expan-

são dos limites da sua vontade de poder. Vontade de poder é vontade de potencialidade, de

poder ser mais. Quando a educação visa formar jovens versados em conhecimentos velhos,

saberes desencarnados e tradições vinculadas a interesses estatais, está privando esses jovens

da capacidade de autossuperação e potencialização da sua vontade de poder. A cultura perde

sua vitalidade e torna-se fraca, decorativa, caótica, sem uma unidade na vontade coletiva.

Para Nietzsche, a educação alemã era excessivamente teórica e desvinculada da reali-

dade vivida. Em contrapartida, a cultura genuína emerge das vivências culturais e não pode ser

entendida isoladamente. A educação que afasta o ente humano da “intuição imediata” da vida

torna a cultura decorativa e deve ser substituída por uma educação que visa formar humanos

singulares e livres, capazes de criar cultura a partir da vida que vivem. A meta da Bildung deve

ser a formação de singularidades, para que a potencialidade da cultura seja resguardada.

Blondel (2006) afirma que Nietzsche considerava a educação um processo de autofor-

mação e que, para ele, o objetivo da educação era a singularização do ente humano. Segundo o

autor, “(...) a formação [como Bildung] deve, acima de tudo, despertar o humano para a vida,

incitá-lo a superar-se" (BLONDEL, 2006, p. 38). Para Blondel, a formação (Bildung) deve ser

94
orientada para a autoformação do corpo, já que no corpo reside nossa singularidade. Para ele, a

cultura é o campo onde o corpo é formado e a Bildung é instrumento dessa formação. A forma-

ção produz corpos que irão conviver e sofrerem a influência de outros corpos no atrito social,

onde a convivência irá conformá-los.

Nietzsche constata que o modelo de educação em seu tempo era fragmentada e superfi-

cial, pois se concentrava apenas na preparação dos alunos para o mercado de trabalho e as

tradições patrocinadas pelo Estado, já que eram conhecimentos exigidos no serviço público.

Esse modelo falhou em fornecer uma formação integral do ser humano, comprometida com sua

autossuperação, que era o ideal buscado por Nietzsche, inspirado pela cultura grega. Ele tam-

bém criticou a cultura jornalística da época, baseada em opiniões massificadas e que desvalori-

zava os valores clássicos de autossuperação em nome do culto à igualdade. Como resultado, os

verdadeiros educadores foram substituídos por dóceis “filisteus da formação” que ostentavam

um eruditismo esnobe, além de um servilismo estatal, e que se tornaram, em sua maioria, edu-

cadores nas instituições de ensino alemãs, tornando impossível exigir que sejam agentes de

transformação social e promotores da singularidade dos seus educandos. A meta cultural de

grandeza não se fez carne nas instituições de ensino alemãs. A grandeza do Estado prussiano

acentuou a pequenez da cultura alemã.

Os filósofos e educadores para Nietzsche precisam voltar a serem perigosos, voltar a

incomodar o Estado. Mas, geralmente, o que vemos são professores de Filosofia como meros e

dóceis servidores públicos que transmitem um saber de modo erudito e fragmentário sem ne-

nhuma meta mais abrangente do que a satisfação pessoal e a promoção profissional.

Assim, pode-se afirmar que quando a educação é usada pelo Estado para atender às suas

necessidades políticas e a cultura não se opõe, ela se torna um braço facilitador do Estado na

formação de indivíduos adaptados ao mercado, que satisfazem as demandas do sistema, sem

considerar as necessidades do indivíduo. No entanto, segundo Nietzsche, quando a educação e

95
a cultura se opõem aos interesses políticos do Estado, há autonomia e ascensão cultural, permi-

tindo uma formação integral que visa ao desenvolvimento do indivíduo em todas as suas di-

mensões.

Segundo Nietzsche, é essencial que cada indivíduo confronte o caos interior e o organize

de forma a se concentrar em suas próprias necessidades autênticas. Assim também a formação

deve buscar no caos dos saberes e acontecimentos históricos aquilo que dialogue com as neces-

sidades autênticas da cultura, ditadas pela força de vontade dos indivíduos que a sustenta. So-

mente assim é possível compreender que a cultura, embora seja um fenômeno estético, não se

resume a mero elemento decorativo.

Ao final de sua Segunda Consideração Intempestiva (1874) Nietzsche irá valorizar o

“(...) conceito grego de cultura — em contraposição ao romano — o conceito de cultura como

uma phýsis nova e aprimorada, sem dentro e sem fora, sem dissimulação e convenção, como

uma unanimidade entre vida, pensamento, aparência e querer” (NIETZSCHE, 2003, p. 97).

Assim, para Nietzsche, o caráter autêntico da cultura grega consistia em encará-la como uma

natureza (phýsis) em comum, a qual ninguém precisasse ser ensinado ou versado para sentir-se

parte, enquanto a cultura romana era mera convenção decorativa que ocultava as vivências sin-

gulares em nome da valorização do cidadão romano homogêneo e dócil ao Império.

Desse modo, continua Nietzsche (ibid.) “(...) toda ampliação da veracidade também

deve ser um fomento preparatório da verdadeira cultura”. O valor da veracidade, dessa forma,

não está em descobrir um conhecimento transcendental, mas sim em manter uma relação au-

têntica entre as abstrações teóricas e as experiências concretas da vida, ou seja, aquilo que pode

ser reconhecido. Para Nietzsche, o valor da veracidade não está na relação entre um mundo

verdadeiro e um mundo aparente, mas sim na correspondência entre as abstrações teóricas e as

vivências materiais. Quando o mundo racional, cultural, político e epistemológico pode ser re-

conhecido na vida, quando pode ser encarnado, ele pode ter um alto valor de veracidade e ser

96
estimado pelo Reconhecente. Mesmo que, afirma Nietzsche (ibid.): “(...) esta veracidade possa

ocasionalmente prejudicar seriamente a formação [Bildung] que agora é justamente estimada,

por mais que ela mesma possa proporcionar a queda de toda uma cultura decorativa [dekorati-

ven Cultur]”. Dessa forma, a racionalidade moderna pode ser utilizada para servir à vida hu-

mana, ao invés de converter o humano moderno em seu servo.

Wotling (1995) enfatiza a importância que Nietzsche atribui à cultura como expressão

da vontade de poder, já que é por meio dela que podemos criar novos valores e perspectivas,

permitindo-nos transcender as limitações atuais e alcançar novas metas. Ele argumenta que a

cultura era a principal ferramenta utilizada pelo Estado para manter a sua hegemonia, discutindo

a visão de Nietzsche sobre cultura e Estado através da ótica do poder e da dominação. Dessa

forma, para Nietzsche, a Educação deveria ser uma forma de resistência contra a cultura imposta

pelo Estado e uma maneira de libertar o indivíduo para a autodeterminação e a criação de novos

valores. Segundo Wotling, “(...) a cultura é o campo onde se joga o destino da humanidade, e a

atividade cultural é a manifestação mais elevada da vontade de poder(...) " (WOTLING, 2015,

p. 61). Se a vontade de poder do indivíduo é manifesta através de seu corpo, a vontade de poder

da humanidade manifesta-se através da sua cultura.

É por intermédio da cultura que podemos criar novos valores e perspectivas, permitindo-

nos transcender as limitações da vida e alcançar metas cada vez mais grandiosas. Não é a vida

humana que é condicionada pela cultura é a cultura que é condicionada pela vida humana. Do

mesmo modo que o conhecimento deve ser uma expressão da vontade de poder e deve ser

condicionado pela vida humana e não o seu contrário.

Partindo do pressuposto nietzschiano de que a verdade é uma construção humana e sub-

jetiva, a razão não deve ser vista como um meio para alcançar um conhecimento transcendente,

mas sim como uma ferramenta que utilizamos em conjunto com nossa experiência sensorial e

intuitiva para entender o mundo ao nosso redor e, assim, potencializar nossa ação sobre ele. É

97
através do nosso corpo e das sensações que experimentamos que nos construímos como indiví-

duos em relação ao mundo, não através de uma racionalidade esclarecedora.

Essa mudança de perspectiva pode ser aplicada também no âmbito ético-político. Não

devemos utilizar as instituições sociais e seus dispositivos de controle para impor um objetivo

superior ao corpo social, como se o Estado tivesse o dever de apontar uma meta (télos) a ser

alcançada pela cultura. Ao contrário, essas instituições devem ser utilizadas como meio para

viabilizar novos sonhos compartilhados, novas configurações sociais e novos modos de existir

em comunhão, essa deve ser sua meta.

Desse modo, o Estado não é mais visto como um fim em si mesmo, mas sim como um

meio para alcançar metas grandiosas e significativas, que reflitam as aspirações e impulsos

presentes no corpo social. O reconhecimento da cultura pelo Estado deve se dá do mesmo modo

como acontece no reconhecimento da cultura pelo indivíduo. Isto é, da mesma forma que o

indivíduo se constrói a partir dos mundos que os transpassam e assim se reconhece; o Estado

também deve ser moldado a partir das culturas que o transpassa e reconhecer-se a partir dessa

perspectiva. Não é a racionalidade hegeliana que deve guiar o Estado, mas as culturas que ele

cultiva, os sonhos que gesta.

Devemos nos reconhecer em nossos sonhos, mundos e culturas. Se uma cultura autên-

tica se encarnar em racionalidade estatal, teríamos um Estado que reconhece a cultura encarnada

antes de dizer o que ela deve ser, convertendo-se em incubadora de mundos, culturas e pers-

pectivas singulares. Para que todos os sonhos possíveis possam ser sonhados — inclusive, o de

mundos sem Estado.

98
Conclusão

Segundo Nietzsche, a tradição filosófica, que engloba o cristianismo e o cientificismo,

é em grande parte um desdobramento histórico do socratismo. Ele argumenta que a ênfase de

Sócrates no caráter abstrato, identitário e imutável do mundo, bem como a ilusão de que a razão

pode corrigir os males do mundo, é o código base pelo qual a cultura moderna foi erigida, por

isso ela ainda pode ser nomeada como cultura socrática. O filósofo alemão sustenta que a crença

em uma verdade fora da esfera humana, fundamentada em um mundo inteligível que se opõe

aos mundos humanos, é uma ilusão socrática que fundamenta a cultura decorativa moderna.

Ao criticar o socratismo, Nietzsche não se preocupa em refutar conceitualmente ou

apontar desvios lógicos em seus procedimentos. Em vez disso, sua crítica se concentra na ilusão

socrática de que a razão pode corrigir os males do mundo por meio da associação moral entre

a razão, o bem e a virtude. Essa crença é prejudicial porque o otimismo teórico advindo dele

desvaloriza os mundos humanos em detrimento de mundos teóricos abstratos.

Posteriormente, em suas obras, Nietzsche amplia sua crítica ao socratismo, enqua-

drando-o como um sintoma fisiológico da decadência humana. Sócrates é retratado como um

arquétipo do ser humano teórico e racional, que representa o enfraquecimento dos impulsos e

uma decadência do corpo. Para ele, Sócrates foi guiado por preconceitos morais e abstrações

que disfarçavam seu desprezo pela vida, seu pensamento emana como sintoma de um corpo

doente, ou seja, um corpo que nega a si mesmo.

O humano abstrato e teórico não é isento de ilusões, a despeito de sua luta contra a

mentira e seu culto à verdade, há nele “(...) uma profunda representação ilusória, que veio ao

mundo pela primeira vez na pessoa de Sócrates.” (NIETZSCHE, 2006, p. 93) e que inaugura

“(...) uma forma de existência antes dele inaudita, o tipo do homem teórico” (Idem, ibid., p. 92).

O humano que Sócrates inaugura precisa erigir para si um mundo abstrato, imutável, ideal, para

99
que a existência possa ser suportável, na abstração encontra conforto e comodidade, otimismo

e um sentido para a vida.

Agora é dada a ele uma meta, corrigir o mundo através da razão, isto é, avaliar o mundo

por parâmetros abstratos, para tanto, precisa suprimir suas sensações, pois estas o mostram um

mundo imerso no devir. Sendo seu mundo abstrato o único verdadeiro, todo o resto lhe é indi-

ferente, hostil, inclusive seu corpo. A necessidade de um mundo ordenado e estático o leva a

crer nas abstrações que cria, nesse sentido, seus conceitos não diferem dos mitos dos sacerdotes.

As novas escolas socráticas que surgem mais tarde, como o estoicismo, logo convertem-se em

templos onde a razão é a divindade suprema que rege o panteão conceitual por meio do qual

guiam suas ações. Não mais a fé, nem tampouco o sacrifício aos deuses e suas liturgias, agora

a razão os guia, a ela oferecem-se em sacrifício, por ela vivem e morrem.

Os mundos demasiados humanos são tecidos por ilusões sustentadas por valores. Não

há o mundo e sua interpretação, fenômeno e coisa em si, vontade e representação. Quando

despimos os mundos de sua materialidade efetiva, sobram apenas interpretações imagéticas e

conceituais que refletem as valorações dos impulsos e instintos de um povo, uma cultura, uma

língua. O mundo é local, não há mundo universal porque cada mundo é erguido em um contexto

singular. Mesmo que o “lugar” por onde esse mundo seja constituído, seja um espaço virtual.

Não há uma única interpretação do mundo que abarque todos os povos, mesmo no mundo glo-

balizado, mesmo na cultura de massa. Não há o mundo porque não há uma identidade mundial,

já que não há uma identidade nos humanos, consequentemente, em seus mundos.

Com Sócrates e a cultura socrática que se expande a partir dele, transmutado em cristi-

anismo e cientificismo, passa a haver um suposto mundo verdadeiro em permanente guerra

contra todos os outros mundos. Tudo o que escapa ao mundo socrático é ilusão, erro, engano,

combater os outros mundos passa a ser uma questão moral, uma forma de corrigir os mundos

aparentes. Escolas filosóficas, igrejas cristãs e universidades humanistas reverberam essa

100
tentativa de instaurar um único mundo calcado em abstrações alheias às particularidades dos

mundos humanos, seja em um plano inteligível, um paraíso perdido ou um progresso científico.

Compreender o humano teórico é uma forma de compreender o mundo identitário que ele sus-

tenta e expande e, assim, resistir ao esvaziamento dos mundos em nome de um único mundo

abstrato, inteligível e imutável. Se a possibilidade da alteridade é o nosso parâmetro de saúde,

o mundo estático do homem teórico é o câncer que ameaça o equilíbrio e a mobilidade dos

mundos.

Os mundos identitários multiplicam-se desordenadamente, afetando a diversidade e a

vitalidade de uma cultura. O processo de globalização e os grandes conglomerados midiáticos

e de redes sociais são a corrente sanguínea por onde se espalham e alcançam mundos intocados,

infectando-os com sua monocultura.

A filosofia de Friedrich Nietzsche é caracterizada pela abordagem genealógica da cul-

tura para compreender a moralidade e a epistemologia de um tipo de humano. Em contraste

com muitos filósofos que buscam uma compreensão transcendental da humanidade. Assim,

concentra-se na história e cultura europeias, cuja genealogia remonta aos gregos, como base

para sua análise. Não se trata de uma abordagem sobre a humanidade empírica europeia de um

ponto de visto antropológico, ou seja, não se trata de investigar uma raça europeia, ou um san-

gue europeu, mas da cultura.

Nietzsche inverte a ordem: agora é uma cultura que molda uma humanidade empírica

em particular, não mais uma humanidade universal que molda diferentes culturas particulares.

A genealogia precede a antropologia, isto é, para conhecer uma humanidade do ponto de vista

antropológico é preciso antes conhecer historicamente como os valores culturais moldaram

aquela humanidade ao longo da história. O objeto de estudo parte de um particular, uma cultura,

para outro particular, uma humanidade. Temos com isso a morte da humanidade transcendental.

Cada humano agora deve ser compreendido em seu mundo (não no mundo). Uma cultura é

101
instaurada por mundos que unifica e dá sentido aos entes, como veremos adiante. A cultura é

síntese de mundos que perduram, formam uma tradição. Há uma Terra, mas inúmeros mundos

de onde brotam inúmeras culturas e delas inúmeros humanos.

"O mundo é minha representação" (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43) é a famosa pre-

missa que Schopenhauer se utiliza para dar início à sua obra magna. O sujeito cognoscente não

pode representar o mundo em sua totalidade, tomá-lo integralmente como objeto, isto o escapa,

pode apenas conceber representações particulares do mundo, a abertura do mundo se dá por

intermédio dessas representações particulares. Só posso conceber o mundo em sua totalidade,

portanto, enquanto uma representação particular minha, o mundo assim representado é sempre

o meu mundo. Nesse sentido, concordamos com Schopenhauer, mas acrescentaríamos: o

mundo é minha representação, eu sou representação do meu mundo. Pois, se concordamos que

“(...) o que existe para o conhecimento, portanto o mundo inteiro, é tão-somente objeto em

relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa palavra, representação (...)” (Idem, ibidem),

também concordamos que o ato de representar só é possível por um sujeito imerso em um

mundo que o antecede. O problema dessa premissa, sem o complemento necessário, é intuir um

sujeito já pronto, cuja capacidade de cognição e interpretação não seja condicionada por um

mundo já dado. O mundo não é objeto em relação a um sujeito, tampouco o sujeito é um objeto

moldado passivamente por um mundo, como sugeriria uma abordagem materialista, mundo e

sujeito são interdependentes, ambos se constituem em uma dinâmica cuja relação su-

jeito/mundo não pode ser apartada. Pois se é certo que não há mundo sem a interpretação de

um sujeito, também o é que não há sujeito que se constitui apartado do mundo.

E o que é, no final das contas, mundo? O mundo é uma trama de sentidos: seja o cha-

mado mundo efetivo, seja o mundo aparente, o mundo das partículas subatômicas, dos grandes

conglomerados de galáxias, o mundo diverso das culturas locais e a aridez do mundo globali-

zado, o mundo dos conceitos, das teorias, da literatura, todos eles são compostos pelo mesmo

102
substrato de sentidos. Sendo todos os mundos compostos por uma teia de sentidos, a principal

diferença entre um mundo efetivo e o aparente, entre o mundo da física quântica e das análises

culturais, é o valor que damos a eles. O que se costuma chamar de mundo “verdadeiro” é o

mundo que se valoriza em detrimento de um “aparente”, a questão da realidade dos mundos

acaba se tornando assim uma questão de valor. Assim, torna-se também uma questão moral,

pois a valorização de um mundo tido como verdadeiro e efetivo é consequência de uma dispo-

sição moral para o conforto. Indivíduos que buscam o conforto tendem a ser dóceis, indivíduos

dóceis e amedrontados pelo devir são manipulados com maior facilidade, o que torna a questão

também política, pois narrativas ideológicas que engessam o mundo favorecem dispositivos de

controle populacional.

Durante a história da filosofia e no imaginário coletivo, foi valorizada a construção ide-

ológica de um mundo estático e concluído, no qual o mundo das vivências é apenas uma cópia

imperfeita. Essa busca por uma base sólida diante da impermanência do mundo gerou a de-

manda pela criação de um mundo verdadeiro e imutável, sustentado pela ilusão de um plano

inteligível ou uma mentalidade transcendental. Desse modo se é poupado de encarar o devir da

existência de frente. No entanto, essa concepção negligenciou o fato de que o mundo inteligível

é construído pela linguagem e que os conceitos que o sustentam são baseados em convenções

metafóricas, cujo significado é sempre contingente e não necessário. Para manter a ilusão de

imutabilidade dos conceitos, um grande esforço intelectual foi empreendido para dar-lhes uma

aparente identidade universal, tornando-os meramente decorativos e incapazes de transmitir um

significado reconhecível no mundo das experiências.

Para lidar com a contradição entre essa concepção idealista e imutável de mundo e a

percepção de um mundo em constante mudança, o mundo das vivências foi denunciado como

falso e ilusório, para que a ilusão de um mundo inteligível pudesse continuar a ser sustentada.

Em seguida, buscou-se ancorar esse mundo abstrato em uma realidade material e efetiva,

103
identificando regularidades universais e imutáveis presentes na natureza, ignorando o caráter

antropomórfico e o lapso temporal humano que aparentemente confere rigidez e estabilidade às

relações causais. No entanto, nenhum mundo é eterno, fechado ou concluído, sempre há algo

faltante nele, as potencialidades do mundo, os mundos possíveis. Isto garante que mundos pos-

sam ser transmundados na medida em que são construídos e revogados.

O mundo não se limita a um ambiente, uma região, um lugar ou um espaço ôntico. Meu

vizinho pescador vive em um mundo completamente diferente do meu, mesmo estando a pou-

cas dezenas de metros de distância. E, até dentro da mesma casa, em diferentes cômodos, há

mundos completamente distintos, às vezes até mesmo no mesmo quarto ou compartilhando a

mesma cama. Os ambientes podem condicionar os mundos, como acontece em uma comuni-

dade ribeirinha nas margens de um rio isolado, em um setor específico de uma penitenciária ou

universidade, mas não os determinam. O mundo é uma rede intrincada de sentidos que extrapola

o ambiente e até mesmo as coisas que o compõem. As coisas só existem dentro de um mundo

que lhes confira sentido, já que a existência delas é sempre relativa a um mundo já dado. O

sentido das coisas é constituído dentro de uma experiência de mundo.

Como bem observa Heidegger, com o conceito de ser-no-mundo, a questão do mundo é

também ontológica, além de epistemológica, moral e política. Pois tudo sempre é, sempre existe,

dentro de um mundo. Não há “ser” fora de um mundo, pois fora dos mundos nenhuma coisa é.

Daí que somos sempre no mundo, assim como os entes que nos rodeiam. Também não haveria

mundo sem um vivente capaz de estabelecer sentidos entre os entes, daí a relação indissolúvel

entre nós e nossos mundos. Na relação prática entre o vivente e seu mundo as coisas adquirem

um sentido, portanto, as coisas não existem do mesmo modo se experienciadas em mundos

diferentes, pois viventes diferentes em mundos diversos, podem atribuir sentidos distintos à

mesma coisa; ou seja, essa mesma coisa, em cada mundo experienciado, existe de modo dife-

rente, posto que possui sentidos diferentes. A coisa galáxia, como a conhecemos, só passou a

104
existir quando foi percebida por potentes telescópios e ainda hoje não existe para algumas co-

munidades isoladas; a coisa vírus só passou a existir depois do advento dos microscópios, e

ainda não existe para negacionistas fanáticos; já a coisa espelho possuía valores diferentes para

os povos originários das Américas e os europeus que o fabricava, assim como a mesma coisa

pau-brasil. A existência, o valor, e o uso das coisas são determinadas pelos mundos em que elas

transitam, o mesmo espelho pode servir para ajudar a transformar o próprio corpo em obra de

arte, ou para perscrutar pequenos seres ou grandes aglomerados de galáxia.

A mesma garrafa pet é uma coisa para quem bebe e a joga no rio, é outra para o pescador

de traíra que com ela faz uma boia, seria outra se a encontrasse e a levasse como lixo. Todos

nós vivemos na mesma região, dividimos a mesma língua e vários aspectos culturais, mas a

mesma coisa, cujo nome “garrafa” também dividimos, experienciada em diferentes mundos,

existe de modo diverso, como recipiente descartável, boia ou lixo. Isso nos leva a questão: cada

vivente é um mundo? Sendo cada mundo aquilo que Nietzsche nomeia perspectiva, a resposta

não poderia ser outra, sim. Mas essa questão nos leva a outra: cada vivente não cria seu mundo,

sua perspectiva, seu arcabouço de sentidos do “nada”, não extrai apenas de si o sentido que dá

às coisas, logo, parece haver mundos que nos transpassam, sentidos que nos atravessam, a isso

chamamos cultura. Se cada indivíduo é um instaurador de mundo numa esfera micro, cada cul-

tura instaura um mundo no sentido macro.

Desse modo, vertemos a oposição entre mundo real e mundo aparente à oposição entre

mundo pessoal e interpessoal, indivíduo e cultura, não para fazer um mero jogo dicotômico,

mas para compreender a relação entre esses mundos. Como veremos adiante, numa epistemo-

logia alteritária nos importa o “entre”, não a mera dicotomia. Nesse sentido, cabe-nos indagar

até que ponto o mundo de um vivente interfere em sua cultura, ou até mesmo em várias culturas,

como é o caso de Nietzsche e Platão; e até que ponto a cultura de um vivente, ou suas influências

culturais, moldam sua perspectiva, seu mundo, seu modo de existir, pois Platão seria outro na

105
Índia e Nietzsche na Pérsia. Se é verdade que a cultura, esse mundo interpessoal, esse todo

conjuntural, molda o modo de um vivente existir, também o é que esse vivente, ao atribuir um

sentido singular a esse mundo que o extrapola o modifica, dissimula-o. Dissimulando-o o cor-

rompe em alguma medida e essa corrupção pode ser replicada, adquirir capilaridade, e hackear

o código-fonte do todo estrutural da cultura a qual pertence. A valorização da potência dessa

transmutação, ou melhor, transmundação, é o principal ponto em comum entre essa tese e o

projeto nietzschiano de transvaloração dos valores.

Mas, há uma crise política alimentada por uma visão política institucional, consolidada

desde quando Nietzsche escreve até hoje em dia. Essa visão concebe a política como uma ati-

vidade racional, uma ação esclarecedora, com resquícios do Iluminismo contratualista, na qual

a vida comum se estrutura por intermédio de uma ordem racional, intermediada pelo discurso.

Nessa visão, as instâncias políticas instituídas devem ser sólidas e perenes, guiadas por princí-

pios racionais que negam afetos, como meio de preservar a ordem social.

Dessa forma, a institucionalização é valorizada, até mesmo como ação libertadora, já

que manifesta uma “vontade geral” racionalmente convencionada por indivíduos autônomos.

Como as instituições ainda são compostas por indivíduos, por viventes, e, não raro eles não

conseguem incorporar em suas ações individuais essa vontade coletiva, as instituições passam

por sucessivas crises, e, tendem, a serem desacreditadas, pois o ideal prometido não consegue

ser incorporado, um paraíso que nunca se faz terra.

Só que o mundo como síntese de sentidos atribuídos pelos viventes que são atravessados

por ele é um modo de encarar o tecido social, sentimento comunitário ou inconsciente coletivo

como algo fundamentado, não em uma intencionalidade racional ou télos qualquer, mas sim

enquanto uma apreensão intuitiva advinda da convivência, isto é, uma vivência compartilhada

com outros humanos e seus vários mundos. Pelo caráter intuitivo, possui algo de mais originário

do que o simbólico, um sentido que se sente antes ainda que se possa expressar em palavras,

106
uma vontade que ainda não se esvaziou em conceitos. O reconhecimento dos mundos que nos

transpassam, para além de uma questão epistemológica, tem algo de estético, pois lida com

sentimentos e sensações compartilhadas, mas também algo de ontológico, pois as coisas e os

humanos são-no-mundo, assim como o reconhecimento dos mundos tem algo de ação ético-

política pois lida com o sentimento de pertencimento e comunhão e, assim, torna-se ferramenta

para outras dinâmicas e estratégias que busquem uma atuação política que supere aquela já

instituída, que atue no sentimento comunitário e nos afetos compartilhados, diretamente nas

interações. Com isso, busca-se o que há para além da política instituída, da utopia carcomida,

e, assim, resguarda a própria potencialidade das ações e dos anseios políticos, pois a interação,

a convivência, é o atrito que dá novas formas às velhas abstrações.

A política institucional, assim desencarnada, tende a promover além-mundos em suas

organizações e liturgias quase religiosas e seus membros fanáticos. Nossa meta diante disso é

tentar pensar o reconhecimento para além do reconhecimento institucional — isto é, um reco-

nhecimento que não busque ser acolhido, regulamentado por um poder instituído. Poderes ins-

tituídos se fortalecem quando regulamentam a diferença, pois é uma forma de devorá-las, trazê-

las a um código de sentidos que regem seu mundo desencarnado. O reconhecimento que pro-

pomos com Nietzsche busca devolver indivíduos aos mundos autênticos, aqueles em que con-

vivem e potencializam seus afetos, e, com isso, a possibilidade de reinventar, recriar seus mun-

dos, revogar àqueles que não podem ser incorporados, reviver mundos perdidos.

Como afirma Nietzsche: “Presenteai-me primeiro com a vida e então, a partir disso, terei

prazer em criar-vos uma cultura! Assim grita cada indivíduo singular desta primeira geração e

todos estes indivíduos reconhecerão uns aos outros em meio a este grito. Quem lhes presenteará

com esta vida?” (NIETZSCHE, UB, 2). Nesse sentido, o Reconhecente não apenas transgrede,

mas cria a partir de suas vivências, nos mundos que habita, novos rearranjos culturais, novos

107
sonhos que possam ser compartilhados. Quanto mais e melhor puder incorporar mundos, mais

potente sua ação será. Para além da política institucional uma política da potencialidade.

A ação política fundamentada nessa visão não é tão somente racional, nem mesmo por

intermédio de uma razão comunicativa aos moldes de Jürgen Habermas, mas, antes, uma ação

estético-política-cultural, pois lida com os sonhos, com a possibilidade de um sonho individual

ser sonhado junto e com uma sensibilidade onírica que possa ser intuída e reconhecida pelos

humanos em seus mundos. Assim, deixa-se de valorizar como agente político privilegiado o

teórico e suas análises desencarnadas, ou o déspota esclarecido, valorizando a sensibilidade e

intuição daquele que interage, aquele cuja ação se dá “entre”, na convivência que não pode ser

institucionalizada. As instituições nos servem na medida em que potencializam espaços e esfe-

ras de convivência, como elemento facilitador para que os mundos possam transitar, além de

elemento garantidor da potencialidade dos mundos na esfera pública.

Dito isso, deixamos como conclusão uma epistemologia e política da alteridade — um

reconhecimento da alteridade dos mundos, da potência individual de transmundação, e de um

conhecimento enquanto ação de saber e reconhecer. A potencialização da vida é a meta do

reconhecimento, da cultura e do Reconhecente. O conhecimento precisa da vida, mais do que a

vida precisa do conhecimento. As ideias precisam dos corpos, mais do que os corpos precisam

das ideias.

In-corpo/oremos.

108
Referências

ALVES, Alexandre. “A Tradição Alemã do Cultivo de si (Bildung) e sua Significação Histórica”

Educação & Realidade (2018).

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