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Banca Examinadora:
Esta tesis aborda los temas del reconocimiento y cultura desde la figura del Reconocente (Er-
kennende) en la obra de Nietzsche. El objetivo principal es mostrar cómo, en Nietzsche, hay
una figura central, aunque no suficientemente explorada en la literatura, del Reconocente (Er-
kennende), que articula filosóficamente el reconocimiento y la experiencia en el contexto de la
cultura. Para alcanzar este objetivo, esta tesis se divide en tres capítulos. El primer capítulo trata
de una epistemología del reconocimiento, a partir de la división de grados de conocimiento en
Kant y la crítica de Schopenhauer a la epistemología kantiana, donde se evidencia cómo, en
Nietzsche, el saber cómo conocer y reconocer tiene una importancia relativa para la vida. El
reconocimiento es el conocimiento hecho vivo. El segundo capítulo trata de la figura del Reco-
nocente en la obra de Nietzsche, analizando pasajes de sus estudios sobre Demócrito, su Época
Trágica y, finalmente, sus obras de madurez. El tercer y último capítulo está dedicado a formu-
lar la tesis central del Reconocente como quien articula el saber y la vida y en qué medida actúa
como médico de la cultura.
This thesis addresses the topics of recognition and culture from the character of the Recognizer
(Erkennende) in the works of Nietzsche. The main goal is to put into evidence how, in Nietzsche,
there is a central character, although not sufficiently explored in the literature, of the Recognizer
(Erkennende)—who philosophically articulates recognizing and experience in culture. In order
to achieve this goal, the thesis is divided into three chapters. The first chapter deals with the
epistemology of recognizing, starting from the division of levels of knowledge in Kant and
passing through Schopenhauer's critique of Kantian epistemology, showing how knowledge as
knowing and recognizing has a vital importance in Nietzsche. Recognition is knowing made
alive. Second chapter deals with the figure of the Recognizer in Nietzsche's work, analyzing
passages from his early studies on Democritus, his Tragic Period and, finally, his mature works.
The third and final chapter is dedicated to formulating the central thesis on how the Recognizer
articulates knowledge and life and to what extent he acts as a physician of culture.
M: Morgenröthe (Aurora).
PZG: Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Época Trágica
dos Gregos)
WL: Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre Verdade e Mentira no
Sentido Extramoral).
Referência:
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe. Paris:
Institut des Textes et Manuscrits Modernes, 2009.
Sumário
Introdução ......................................................................................................................... 10
Conclusão ......................................................................................................................... 99
tante singular, nos mais variados aspectos. Contrapondo-se à maioria dos filósofos de sua época,
ele optou por uma linguagem mais poética e menos dissertativa. Com exceção de alguns textos
pontuais, não escreveu tratados sistemáticos, mas sim ensaios, aforismos e poemas. No lugar
pensamento. Em vez de silogismos, premissas e corolários, anunciou seu pensamento por in-
termédio de aforismos e frases por vezes enigmáticas, mas sempre atravessadas pela profundi-
A escolha dessa forma de expressar seus pensamentos não deve ser entendida como uma
falta de rigor metodológico. Com seu estilo Nietzsche buscava resguardar a profundidade e o
potencial de ressignificação do seu pensamento, para que assim pudesse continuar vivo e po-
tente. Ou seja, para que seu pensamento possa continuar fazendo sentido apesar do devir ine-
rente aos mundos humanos e, também, para que possa continuar profundo o suficiente para não
ou seita, num mero convite e respaldo à ordem tradicionalmente instituída. Dito isso, devemos
ter cuidado com as interpretações que simplificam o pensamento nietzschiano como meras ex-
pressões de devaneios e inspirações literárias sem uma clara intencionalidade filosófica ou rigor
metodológico — pois nem toda falta de clareza significa falta de profundidade, veracidade ou
comprometimento.
teóricos pelos quais muitos pensadores justificam uma disposição moral por conforto, superfi-
cialidade e familiaridade de rebanho. Nesse caso, uma forma mais profunda e potente de
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expressar e interpretar os pensamentos torna-se necessária. Para que o método tenha como fi-
pela boca de Zaratustra: "não quando a verdade é suja, mas quando é rasa, o Reconhecente [der
Erkennende] reluta em entrar nas suas águas" (NIETZSCHE, ASZ,1,13). Assim, reconhecer o
valor das ideias e verdades filosóficas a partir de suas próprias vivências e expressá-las de modo
que possam ser reconhecidas e interpretadas por outros viventes, também em suas vivências,
exige um rigor metodológico quase espartano. Apenas quando as águas teóricas são profundas
o suficiente para elevar o indivíduo para além do mediano, levando-o à sua própria estilística
único, um modo singular de reconhecer os saberes a partir de uma perspectiva própria, exige
mas hoje costuma ser reconhecida como uma das mais relevantes contribuições filosóficas do
século XIX, ecoando em quase todos os grandes filósofos do século seguinte. Desse modo,
ajuda também a compreender como o estilo singular de Nietzsche contribuiu para a relevância
e atualidade de seu pensamento, mesmo após mais de um século desde a sua produção. O pop
não poupou Nietzsche, mas a singularidade do seu estilo, o uso de metáforas e figuras, não
che é pop, mas continua dinamite. Não apenas por sua crítica aos valores ocidentais (fosse
apenas isso hoje ele seria irrelevante) mas, sobretudo, pela profundidade e potência de suas
metáforas e figuras e como elas ainda ajudam no diagnóstico de nosso tempo e no prognóstico
Para compor este estilo filosófico singular e relevante, Nietzsche elaborou uma série de
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mitológicas ou históricas, como Prometeu, Dionísio e, talvez a mais célebre das figuras nietzs-
Sobre essas personagens, o filósofo francês Gilles Deleuze (1925–1995) listou, em sua
obra intitulada Nietzsche (1965), algumas das principais: ele menciona a Águia (e a Serpente),
a Aranha (ou Tarântula), o Bobo (ou Macaco, Anão ou Demônio), dentre outras. Esse recurso
revela, segundo Deleuze (1965, p. 17), “(...) uma nova concepção da filosofia, uma nova ima-
Deleuze argumenta que essas personagens permitem que o filósofo dê um sentido mais
profundo e abrangente aos seus pensamentos. Ele ainda afirma que “Ao ideal do conhecimento,
e totaliza os fragmentos, sem atenuar nem suprimir sua pluralidade” (Idem, ibidem). Sendo a
interpretação e da avaliação. É no ritmo de uma leitura muito próxima a de Deleuze que esta
tese procura identificar, no conjunto das obras de Nietzsche, outra personagem, ainda pouco
explorada pela literatura, a saber: o Reconhecente (Erkennende). Desse modo, busca interpretar
a cultura e a filosofia; para que assim esta figura possa ser compreendida.
Deleuze segue salientando que, em Nietzsche, essa nova concepção da filosofia e essa
nova imagem do filósofo são incorporadas em sua estilística, já que “O aforismo, precisamente,
1
Para um estudo sobre as personagens históricas e sua incorporação em Nietzsche, cf. FERNANDES, 2003.
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arte de avaliar e a coisa a avaliar”. (Id., ibid.). Disso resulta que “O intérprete é fisiólogo ou
médico, aquele que considera os fenômenos como sintomas e fala por aforismos. O avaliador é
o artista, que considera e cria ‘perspectivas’, que fala pelo poema. O filósofo do futuro é o
artista e o médico — numa palavra, legislador.” (Id, ibid.), conclui Deleuze. Consonantemente,
defendemos que o Reconhecente é esse artista e médico que interpreta e avalia sua cultura, seus
mundos (assim interpretamos seu sentido), e, com isso, torna-se também seu legislador (assim
cente passa quase desapercebido para a maioria dos leitores de Nietzsche. Não raro, o termo
Erkennende é tomado como mera expressão casual. Porém, como se pretende mostrar ao longo
deste trabalho, o Erkennende, ou o Reconhecente (como se optou por traduzir aqui)2, representa
muito mais do que isso. Ele diz, antes, da perspectiva filosófica nietzschiana conformada em
mais uma de suas personagens, mais uma de suas figuras emblemáticas. Essa perspectiva, como
ver-se-á, diz respeito à articulação entre dois conceitos fundamentais, quais sejam: o
2
Sobre a tradução do termo Erkennende, um dos tradutores de Nietzsche, Paulo César de Souza, escreve em nota:
“’homens do conhecimento’: Erkennende, do verbo erkennen (...) Observe-se que não se trata de homens de co-
nhecimento, isto é, que o possuem; uma alternativa seria ‘cognoscente’, mas, embora se trate de um gerúndio
substantivado como o termo original, pertence a um registro mais elevado (mais erudito) do que este. As versões
consultadas oferecem: ‘que buscais o conhecimento’, hombres del conocimiento, uomini dela conoscenza, qui
cherchez la connaissance, disciples de la Connaissance, you lovers of knowledge, you enlightened men, you who
understand (...)” (NIETZSCHE, 2011, p. 321-322). Em outra nota, afirma: “(...) Erkenntnis corresponde a erken-
nen [conhecer, reconhecer, discernir, perceber] (...)” (NIETZSCHE, 1992, p.220) julgamos que o termo Erken-
nende pode ser melhor compreendido se delimitarmos conceitualmente Erkenntnis como uma síntese entre o saber
(wissen), o conhecer (kennen) e o reconhecer (erkennen), por isso, “homem do reconhecimento” seria mais ade-
quado por preservar essa relação que propomos entre Erkenntnis e erkennen, caso queira-se salvar a palavra “ho-
mem” na tradução. De fato, podemos encontrar trechos na obra nietzscheana onde ele utiliza a expressão “der
erkennende Mensch” (NF-1877 22[28]), ou ainda “Mann der Erkenntniss” (M§342) e “Der Mensch der Erkennt-
niss” (ASZ I§10), possivelmente esses usos (alguns com sentidos similares ao termo “der Erkennende”) motivou
a tradução por homem do conhecimento. No entanto, julgamos problemática a tradução do termo com a palavra
“homem”, diante da demanda nietzschiana para que o filósofo do futuro, o Erkennende, seja o percursor do além-
homem (Übermensch). Comentando essa tradução de Souza, Moura (2020, p. 184) pontua que “Apesar de não
termos nenhuma objeção em relação à essa opção, preferimos utilizar ‘conhecedor’ para manter a prática nietzs-
chiana de recorrer a um substantivo derivado de verbos como modo de caracterização de si mesmo”. No caso da
nossa tradução por Reconhecente, endossamos a posição de Moura, todavia, optamos por um termo que logre
distinguir claramente que não se trata de “conhecedor” ou “reconhecedor” no sentido comum. Por esse motivo,
sustentamos que o termo Reconhecente alcança o objetivo de destacar que se trata de uma figura nietzschiana e
não de mera nomenclatura.
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reconhecimento (erkennen) e a cultura (Kultur). Sobre esses conceitos, vale esclarecer um
Com o termo reconhecimento, não se indica aqui o uso da palavra no sentido corriqueiro,
mas sua aplicação conforme o vocabulário filosófico alemão — sobretudo aquele dos séculos
XVIII e XIX. Literalmente, o verbo erkennen pode ser definido como “(...) ver tão claramente
que se sabe para quem ou o quê se olha (...) identificar baseado em certas características (...)
ganhar clareza sobre alguém ou sobre algo; estimar de forma correta” (DUDEN, 2023). Nesse
sentido, o reconhecer se diferencia do conhecer (kennen) porque trata de “(...) notar [bemerken],
Por isso, dentre as traduções para o português, encontramos termos como “(...) distinguir-se (...)
(re)conhecer (...) diagnosticar (...)” (LANGENSCHEIDT, 2001, p. 780). Como ficará claro no
decorrer deste trabalho, o reconhecer está muito mais ligado à experiência e à vivência do que
à abstração teórica, própria do conhecer das ciências (Wissenschaften). Assim, ele se distingue
também do saber (wissen) — aquele conhecimento que pode ser acumulado e catalogado, cuja
ação não depende de um contexto específico. Nesse sentido, as máquinas e inteligências artifi-
ciais podem saber tanto quanto seres humanos — ou mais, desde que sejam capazes de acumular
e processar informações. Por outro lado, o reconhecer é o saber tornado vivo, pois ocorre sem-
pre durante uma vivência. Isso quer dizer: é um saber incorporado, uma carne que se fez verbo
— e, por isso, apenas viventes reconhecem. Há, portanto, um elemento sensível e intuitivo no
reconhecimento que não pode ser dissociado do corpo do vivente que reconhece, nem tampouco
plenamente comunicado a outro vivente. Por isso, aquilo que é reconhecido por um corpo não
Além disso, por cultura, entende-se não o conceito de educação ou formação (Bildung)
cultural, pertinente a uma “pedagogia” do cultivo moral (cf. ALVES, 2018; STONAJOV, 2012).
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Refere-se aqui à cultura (Kultur) enquanto fatos sociais — tanto no sentido de um sistema de
ideias e representações, quanto desde uma perspectiva mais refinada dos fatos sociais como
cultura é, portanto, alguém que interage e devolve aos mundos seu caráter de condição para a
Em certa medida, esse é o critério que embasa a noção de saúde de Nietzsche: a cultura
como unidade de sentido dos mundos incorporados é saudável quando afirma o corpo, quando
não distingue uma saúde essencialmente corporal de uma mental, pois já superou a dicotomia
corpo e espírito, cultura e natureza (cf. LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 41ss). Não é uma cultura
antinatural pois não renega a animalidade dos humanos, nem se restringe às sensações corporais
compartilhadas, já que nos mundos há muito de simbólico e “espiritual”. Para revelar a “glória
dos mundos”, no entanto, o Reconhecente oferece sua carne, torna-se cobaia e oferenda.
Para isso, leva-se em conta, como dito, que há algo das vivências que não pode ser
comunicado, já que a vivência é singular — e, caso fosse possível comunicá-las em sua inte-
gridade de sentido, elas poderiam ser transmitidas em sua totalidade de modo intersubjetivo (o
que não é possível, já que exige o corpo presente). Desse modo, aquele que alimenta um pathós
pelo conhecimento possui valor maior enquanto ser existente, pessoa encarnada, do que aquelas
mortas abstrações em papéis e máquinas de silício que possam, de algum modo, comunicar e
classificar os saberes. Sendo assim, essa pesquisa nos permite pensar uma vida acadêmica que
esteja para além da produção acadêmica e transmissão de saberes desencarnados; uma vida
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Não cabe nesta tese entrar em uma discussão pormenorizada das múltiplas definições de cultura postuladas nas
mais diversas áreas das Ciências Sociais e Humanidades. Por esse motivo, limita-se às referências anunciadas por
Maurice Merleau-Ponty (1908–1961) em seu estudo De Mauss a Lévi-Strauss (1963), onde o autor elenca as con-
tribuições de Émile Durkheim (1858–1917), Marcel Mauss (1872–1950) e Claude Lévi-Strauss (1908–2009). No
terceiro capítulo desta tese, expor-se-á uma definição de cultura própria ao pensamento de Nietzsche.
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política para além daquelas institucionais; uma vida estético-cultural para além da mercantili-
Com isso em mente, esta tese visa defender que o Reconhecente representa um tipo de
“filósofo ideal” para Nietzsche. Isso, porque ele não procura o conhecimento como um fim em
si mesmo, todavia, antes, conhece e reconhece para viver melhor e atuar sobre a cultura. Ao
contrário de ainda outra figura, do Sabido (Wissende) — que se apaixona e se vangloria por um
conhecimento racional que somente apazigua inquietações, mas o deixa inerte diante do mundo
mundos. Sendo assim, busca-se tornar claro como é possível articular reconhecimento e cultura
que advém de uma vivência possui condições de operar transformações na cultura e como, em
última instância, o Reconhecente é filósofo que promove essa articulação. Ou ainda, conforme
Ademais, interessa-nos aqui as intuições que o uso do termo Erkennende traz: a abertura
para outras formas de pensar, no lugar da rigidez das definições conceituais. Dentre as intuições,
as que mais nos interessam são aquelas que evolvem o sentido do ato de reconhecer, dentro do
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O reconhecimento em sua acepção social, como Anerkennung, tornou-se um conceito central nas últimas décadas
dentro da Filosofia Política, sobretudo a partir da obra “Kampf um Anerkennung” (Luta por Reconhecimento, 1992)
de Axel Honneth (1949), em suas últimas obras Honneth irá contrapor o conceito de Erkennen com o de Anerken-
nen, valorizando este último em detrimento do Erkennen, sobretudo em Verdinglichung - Eine anerkennungsthe-
oretische Studie (Reificação: Estudos de teoria do reconhecimento, 2005). Nessa obra, ao pensar a questão da
reificação, ele irá categorizar o Modus des Erkennens e o Modus des Anerkennens como duas condições existen-
ciais do ente humano, concluindo que o modo do Anerkenenn precede ao do Erkennen. A contraposição do reco-
nhecimento como Anerkennen e Erkennen, torna ainda mais relevante a definição do termo Erkennen em Nietzsche
para proporcionar outra perspectiva a este debate ético-político acerca do reconhecimento. Deste debate surge o
que ficou conhecido como “lutas por reconhecimento” que passou a ser capitaneadas por duas tendências: a assim
chamada positiva cujas referências clássicas além do Honneth é o Taylor (1931), cuja visão do reconhecimento
identitário de minoras é vista como algo positivo, defendendo a partir disso uma normatização institucional do
reconhecimento dessas minorias, dando origem aos debates identitários que moveram movimentos sociais e em-
basaram em grande medida as lutas políticas desde então; a outra vertente é representada por Judith Butler (1956),
entre outros, no Brasil defendida por Vladimir Safatle (1973), conhecida geralmente por reconhecimento negativo,
ou reconhecimento antipredicativo, que propõe que o reconhecimento quando normatizado torna-se instrumento
de sujeição dessas minorias a um poder reconhecedor. A esta vertente, que chamamos de reconhecimento
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Essa articulação depende, todavia, do diálogo entre duas áreas da filosofia que compõem
o pano de fundo da discussão desta tese, quais sejam: epistemologia (ou teoria do conhecimento)
porque é com uma revisão e uma crítica da epistemologia desenvolvida nos séculos anteriores
ademais, também sobre sua função na cultura; em segundo, porque a centralização das ciências
e do conhecimento na nossa cultura exige, sem dúvidas, uma reflexão filosófica urgente. Sem
isso, não é possível avançar muito no que tange especificamente aos problemas filosóficos de
nosso tempo.
Já a filosofia social e política entra na medida em que representa uma demanda filosófica
alteritário, buscamos outra perspectiva a partir desta pesquisa. Nossa pretensão é fundamentar este debate político
acerca do reconhecimento partindo do pensamento nietzschiano, ao invés do pensamento hegeliano, como faz
Honneth e, em maior ou menor medida, ambas as tendências. Assim, partindo de uma fundamentação epistemo-
lógica do Erkennen a partir da obra de Nietzsche, pretendemos valorizar as consequências ético-políticas da inter-
pretação do reconhecimento a partir de seu caráter alteritário, indiferente à aceitação e reconhecimento de uma
racionalidade estatal ou institucional para afirmar-se. Com isso, visamos uma alternativa ao reconhecimento iden-
titário, fundamentado a partir da noção hegeliana de Anerkennung e vinculado à noção de uma racionalidade que
busca abarcar em si a totalidade das diferenças. Dentro dessa corrente, formulou-se uma visão comumente deno-
minada de multiculturalismo com o intuito de repensar as noções de igualdade, diferença e tradição a partir de um
contexto de globalização. Embora a problemática multiculturalista tenha perdido força dentro da academia nos
últimos anos, sobretudo na Europa, ela adquiriu nova relevância a partir da ascensão de governos nacionalistas e
o surgimento de uma nova ordem mundial multipolar. Especialmente no que diz respeito à questão do reconheci-
mento de minorias dentro das democracias liberais ocidentais, uma problemática que também ganhou relevância
no Brasil. No âmbito do debate filosófico o tema se torna relevante a partir da necessidade em se pensar um ethos
humanista que não seja universalista e abarque em si diversos modos de ser humano, ou ainda, para que a crítica
à cultura de massa não se converta em tradicionalismo, nacionalismo ou provincianismo e, sobretudo, para que a
crítica aos identitarismos não se torne um pretexto para desumanizar e atentar contra a dignidade de grupos sociais
marginalizados ou invisibilizados. O reconhecimento quando identitário normatiza, quando alteritário potencializa.
O reconhecimento enquanto saber incorporado não pode ser normatizado nem reconhecido por uma instituciona-
lidade política ou acadêmica, pois é uma experiência, e assim, há algo de singular que não pode ser transmitido e
classificado. Incorporar o estranho (no contexto de uma política e epistemologia alteritária) é uma forma de trans-
formar o corpo em instrumento político e epistemológico. A valorização do caráter alteritário do reconhecimento
também aproxima esta tese da valorização ética da alteridade proposta por Emmanuel Levinas (1906-1995), desde
sua obra magna Totalidade e infinito (1961), mas, sobretudo, em seus últimos escritos, como Entre nós: ensaio
sobre a alteridade (1991).
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Em suma, a tese sobre o reconhecimento e a cultura a partir da figura do Reconhecente
em Nietzsche é, no final das contas, uma tese sobre os fundamentos epistemológicos desde os
quais se torna possível atuar filosoficamente sobre nossos mundos e culturas — e esse é nosso
alvo final. Desse modo, pensamos a epistemologia de um modo encarnado e resguardarmos seu
caráter de condição para a vida. Tanto do ponto de vista ético, o Reconhecente enquanto indi-
víduo singular que justifica e potencializa sua vida através da paixão pelo conhecimento; quanto
pelo ponto de vista político, o Reconhecente enquanto agente de transformação social atuando
através da ressignificação da cultura e dos mundos que o transpassa. Para que o conhecimento
Para Nietzsche, o filósofo ideal é aquele que percebe a dinâmica fluida e vital dos sabe-
res e da cultura, compreendendo que o valor histórico e teórico das representações abstratas
está intimamente ligado às vivências atuais. Assim sendo, a filosofia deve promover uma cul-
tura autêntica, que possa ser vivida e encarnada, a fim de evitar que ela se torne promotora de
uma cultura decorativa e desvinculada das vivências. Quando a meta da cultura é a formação
de indivíduos singulares, pautados por um ideal de grandeza e autossuperação, a sua meta torna-
se a mesma da filosofia.
Dessa forma, cabe ao filósofo reconhecer o papel que exerce perante a cultura, utili-
zando seus saberes para compreender as vivências autênticas de um povo e distinguir aquela
cultura que se limita ao passado e às abstrações teóricas daquela que é vivida no presente. Para
longo do tempo e como ela pode evoluir e se adaptar às novas vivências, evitando que ela perca
O filósofo, dessa maneira, não só reconhece a cultura passada, mas também busca criar
um novo futuro para ela, dotando-a de vitalidade. Para isso, o conhecimento e o saber são uti-
lizados como medicamentos pelo filósofo, com o intuito de harmonizar a cultura e a vida. É
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essencial que o saber e o conhecimento sejam reconhecidos e incorporados às vivências cultu-
rais, a fim de que possam promover uma cultura autêntica e singular, capaz de se adaptar às
nhecimento para compreendermos a sua potência alteritária, agindo como instrumento de ação
Para alcançar o objetivo proposto, esta tese apoia-se em uma metodologia de leitura e
— seja do cenário histórico-filosófico com o qual Nietzsche dialogava, seja levando em consi-
Além disso, optou-se aqui pelo cotejamento dos escritos de Nietzsche no idioma original,
criticadas por reducionismos terminológicos — não podem ser desconsideradas. Sempre que
Por fim, a tese aqui apresentada persegue o seguinte roteiro: o primeiro capítulo aborda
primeiro lugar, investigando o emprego do termo nos estudos de Nietzsche sobre Demócrito de
5
Optou-se pelo uso da Digitale Kritische Gesamtausgabe Werke und Briefe, disponível no site Nietzsche Source,
por ser a versão mais amplamente acessível aos leitores.
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Abdera (c. 450 a.C.) enquanto “Reconhecente Universal” (universale Erkennende); logo após,
verificando como Nietzsche situa Prometeu como Reconhecente, em seu chamado “Período
de maturidade.
dois temas mais importantes da tese, quais sejam: como o conhecer e reconhecer proporcionam
Portanto, esta tese pode ser considerada como um ponto de partida para outras pesquisas
acadêmicas que porventura envolvam essa figura ainda inexplorada nos estudos nietzschianos
que é o Erkennende — o filósofo como aquele que reconhece, não apenas aquele que sabe ou
outras pesquisas acerca do pensamento nietzschiano, esta tese também foi movida pela sede de
semente por novas terras, longe dos férteis vales nietzschianos. Essa possibilidade foi o que
adubou esta tese, nutriu suas raízes. Plantada nas dunas e falésias do litoral nordestino, irrigada
e colhida nas planícies alagadas amazônicas, esta tese também foi adubo e alimento para mu-
danças e andanças país afora, norte adentro, interior acima, em tempos pandêmicos e governos
transgênicos, foi sobretudo as lentes teóricas para reconhecer melhor os mundos que nosso Bra-
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1 A Epistemologia do Reconhecer em Nietzsche
O termo epistemologia pode ser amplamente definido como uma teoria ou um discurso
o que é conhecimento?; o que queremos dizer quando afirmamos que sabemos algo?; quais são
de crença?; entre outras (cf. WENNING, 2009, p. 3ss). Em sentido mais estrito, a epistemologia
deve sua nomenclatura às respostas dadas, não apenas, mas, principalmente, por René Descartes
(1596–1650) e por Thomas Hobbes (1588–1679) às demandas de seu tempo. Pelo menos essa
Conforme Rorty (1994, p. 137), no século XVII ainda não havia uma filosofia enquanto
disciplina acadêmica autônoma, nem uma divisão entre metafísica, epistemologia, ética e assim
por diante. Antes, os filósofos modernos “Lutavam (embora discretamente) para tornar o mundo
intelectual mais seguro para Copérnico e Galileu.” (Idem, ibidem). Rorty prossegue salientando
que tampouco havia diferença evidente entre filosofia e ciência e que “Não foi senão depois de
6
Para um estudo mais aprofundado da epistemologia na filosofia grega clássica, cf. GERSON, 2009.
21
Kant que uma distinção filosofia-ciência entrou em vigor.” (Id., ibid., p. 140). Ainda sobre isso,
noção de que o cerne da filosofia era a “teoria do conhecimento”, uma teoria distinta
das ciências porque era seu fundamento. Agora retraçamos essa noção pelo menos até
Essa consciência de que a epistemologia havia se tornado o centro das preocupações filosóficas
derivou dos esforços de Kant em elevar a ciência do nível empírico ao a priori. Também coube
sejam: a hipótese racionalista de que o conhecimento é adquirido por meio da razão e a hipótese
empirista de que ele advém, antes, das percepções sensíveis. Sobre isso, Kant sustenta que “Não
resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência (...) Se, porém, todo o
conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência.”
(KANT, 2001, p. 36). Ademais, ele propôs como primeira e mais importante tarefa da filosofia
a dissolução de perspectivas dogmáticas e relativistas, formulando, com isso, uma crítica acerca
do método das ciências (cf. Idem, ibidem, p. 23). É a partir de suas considerações, portanto, que
e os fundamentos da ciência.
Mais tarde, já a partir do século XIX, com a recepção da filosofia de Kant, emergiram
termos para nomear esse novo movimento, como “doutrina do conhecimento” (Erkenntnislehre)
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problemática epistemológica que orientaria praticamente todo pensamento filosófico do final
É com esse cenário em mente que este capítulo se dedica a apresentar a epistemologia
à Poética de Aristóteles de Estagira (384–322 a.C.) e sua diferenciação entre oída, gignósko e
anagnórisis quando analisa as ações dos personagens trágicos. Para ele, “o reconhecimento
ao conhecer [gnósis]” (ARISTÓTELES, 2008, p. 64). Aristóteles faz uso, na obra em questão,
do termo anagnórisis para designar o momento em que o herói reconhece a tragicidade de seu
destino. Por exemplo: Édipo “sabia-que” (oída) havia praticado um assassinato e desposado
uma mulher, “sabia-como” (gignósko) havia realizado isso, mas não “reconhecia” (anagnórisis)
o incesto e o parricídio presente nas suas ações. O momento de maior tensão na tragédia era
tomada de consciência por parte de uma personagem de dados essenciais de sua identidade,
assim como daqueles que o cercam, de modo a produzir uma mudança na compreensão que o
onde há um giro da fortuna dos personagens, uma mudança de perspectiva, momento auge da
catarse. Quando, por exemplo, em As Bacantes a personagem Agave retorna à Tebas e, então,
reconhece que a cabeça que carrega nas mãos não é de uma fera como acreditava, mas do seu
próprio filho, Penteu. A anagnórise ocorre até nas comédias, como nas obras de Menandro e
seus personagens que, sendo nobres, são criados na pobreza, mas, ao final, reconhecem a sua
identidade como membros da realeza. Na arte épica um clássico exemplo de anagnórise aparece
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nos cantos finais da Odisseia, no retorno de Ulisses à sua pátria, quando seu cão, sua velha ama,
seu filho, seu pai e, por último, sua esposa, passam a reconhecê-lo.
Portanto, sustentamos que a vocação filosófica passa por algum tipo de experiência de
anagnórisis. Alguma epifania que nos leva a reconhecer a realidade e os saberes por intermédio
o reconhecimento, dando a essas duas ações um caráter que ultrapassa o uso estético e estende-
se para a epistemologia e a ética. Os jônios exaltavam o papel do espanto como condição inicial
de uma investigação da natureza que permitisse o reconhecimento das forças e causas naturais
modo de conduta, uma estilística existencial. Não por acaso, Aristóteles afirma que os poetas e
os filósofos possuem o mesmo desejo pelo conhecimento, na medida em que amplifica nossa
capacidade em reconhecer o mundo que nos cerca. Para o Reconhecente, a apreensão e o saber
são meios, a finalidade é o reconhecimento de si e dos mundos que o transpassa para que assim
Levando em conta essa reflexão inicial, o objetivo central deste capítulo é, portanto,
demonstrar como, em Kant, a empreitada epistemológica realiza uma divisão das atividades do
conhecimento por graus de importância e, em seguida, como essa divisão kantiana é criticada,
primeiramente pelas considerações apresentadas por Schopenhauer em sua obra O Mundo como
Gaia Ciência (1882). Com esse objetivo, buscamos fundamentar conceitualmente o que é isto
24
filósofo ideal na busca pelo conhecimento e, no capítulo final, compreendermos a relação entre
Como já foi dito, com Kant, a problemática epistemológica passa a orientar a filosofia.
fundamentarão sua ulterior divisão dos graus do conhecimento. Ali, Kant propõe uma primeira
por meio dessas representações (durch diese Vorstellungen einen Gegenstand zu erkennen) (cf.
KANT, 1919, p. 106; 2001, p. 88). Segundo Kant, enquanto a primeira nos dá objetos, a segunda
os pensa e produz conceitos. Nesse sentido, para Kant, toda produção conceitual e propriamente
Contudo, como é possível observar nas Preleções sobre Lógica (1800), Kant aprofunda
essa primeira divisão e especifica que há graus do pensamento hierarquicamente distintos e que
Esse grau do conhecimento envolve os elementos presentes naquilo que Kant havia postulado
pelos objetos, denomina-se sensibilidade.” (Idem, 2001, p. 61). Isso quer dizer: o primeiro grau
termo latino percipere e cuja definição é “(...) representar algo por meio da consciência (...)
25
[sich mit Bewusstsein etwas vorstellen]” (Id., 1800, p. 96). Ou seja, para além da percepção
Depois, Kant posiciona o conhecer (kennen) — fazendo uso da expressão latina noscere
— definido enquanto “(...) conceber alguma coisa em comparação com outra, tanto em suas
semelhanças quanto em diferenças [etwas in der Vergleichung mit andern Dingen vorstellen
Logo após, Kant põe o reconhecer (erkennen) — para o qual utiliza a palavra latina
cognoscere e que é definido como “(...) conhecer algo com a consciência [mit Bewusstsein
etwas kennen]” (Id., ibid.), ou seja, introspectar o conhecer já previamente mencionado dentro
da consciência.
Conforme Pimenta (2013, pp. 293-294), esses quatro primeiros graus descritos por Kant
podem ser esquematizados com base em dois critérios: consciência e comparação. O primeiro
mas não comparação. O terceiro não dependeria da consciência, mas sim da comparação. O
Ainda sobre esse ponto, Kant oferece um exemplo dizendo que: “Os animais também
conhecem os objetos, mas não os reconhecem [Die Thiere kennen auch Gegenstände, aber sie
erkennen sie nicht]” (KANT, 1800, p. 96). Ou seja, só os seres humanos têm uma consciência
pela qual logram reunir o conhecimento adquirido e, a partir disso, reconhecer esses objetos.
Adiante, Kant situa os três graus do conhecimento superiores, quais sejam: o entender
priori.
26
Em suma, ao estabelecer os distintos graus do conhecimento, Kant posiciona o conhecer
(kennen) e o reconhecer (erkennen) em níveis muito mais baixos do que as outras atividades do
conhecimento. Será a partir desse ponto que Schopenhauer e Nietzsche formularão suas críticas
à epistemologia kantiana.
Para Schopenhauer, todo sistema filosófico deve ser fundamentado, em princípio, por
uma teoria do conhecimento — que, por sua vez, fundamentaria uma metafísica, seja ela da
natureza, do belo, ou ainda, dos costumes. É nesse sentido que Moreira (2004, p. 266) comenta:
no homem. Schopenhauer acredita pertencer a esse grupo, mas, apesar de toda sua
ele lida com o mesmo problema da busca do sentido metafísico do universo. O mundo
é enigma a ser decifrado. Para ele, Kant teria abandonado a tarefa própria da filosofia:
Daí seu esforço — no primeiro livro de O Mundo como Vontade e Representação (1819) —
em construir uma estrutura epistemológica que sirva de alicerce para sua metafísica imanente.
representações da vontade empírica tal como ela é percebida por um sujeito cognoscente —
Sendo assim, apenas a classe de objetos acessíveis pelas representações abstratas dos
objetos abstratos utilizados pela razão não vem dela mesma, mas da intuição, uma vez que não
há conceitos inatos e que nem tampouco a razão pode gerar conceitos abstratos que não estejam
representações de representações intuitivas — e quanto mais abstratas forem mais longe estarão
Kant, privilegia a intuição em detrimento da razão, subordinando essa àquela. Nesse sentido,
apropriamo-nos dessa valorização da intuição como elemento transgressor da razão dos mundos
estáticos e ideológicos.
Mas, para que a defesa de mundos e de culturas não desvirtue para o tradicionalismo
vivência do povo que a sustenta. Por isso, a intuição é elemento transgressor de racionalidades
que perduram apenas de modo abstrato na vivência de um povo, que não lhes pertencem mais,
pois a materialidade e a vivacidade do passado abstrato que um povo possui em comum só pode
a consciência abstrata e a concepção de uma razão transcendental alheia ao corpo que a sustenta.
28
Para ele, a razão não é autônoma, pois está submetida à vontade e, essa vontade, a um corpo.
Isso quer dizer que, em última instância, todos os esforços empreendidos por nossa consciência
abstrata derivam de um corpo que possui uma vontade pela qual a razão opera.
O filósofo de Frankfurt propôs, antes, uma filosofia imanentista. Com isso, na ausência
razão como consciência do mundo e consciência de si sofre um abalo com a prevalência de uma
vontade inconsciente proposta por Schopenhauer. Não há razão que seja autônoma da vontade
ao longo do devir histórico, o que não significa que a vontade se manifestará futuramente do
mesmo modo como foi antes. Nesse sentido, o mais relevante na crítica de Schopenhauer a
Kant não é tanto refutar a sua epistemologia, mas, antes, questionar a sua organização e os seus
onal. No entanto, visto que a razão reconduz perante o conhecimento sempre apenas
o que foi recebido de outro modo, ela não amplia propriamente dizendo o nosso co-
nhecer, mas meramente lhe confere outra forma. (SCHOPENHAUER, 1997, p. 104;
2001, p. 102)
acurada, ele não necessariamente elenca esse conhecimento como sendo superior às intuições.
Antes, como ele afirma, trata-se tão somente de uma forma diferente de conhecer. É a partir
29
1.3 O Conhecimento enquanto Conhecer e Reconhecer em Nietzsche
ele volta três casas no tabuleiro kantiano e coloca o reconhecer (erkennen) no grau mais elevado
como, ademais, levado adiante tais críticas em proporções muito mais radicais. Para Nietzsche,
as coisas não existem para serem conhecidas por um sujeito cognoscente. Antes, o sujeito é
Ele irá propor que a história da ciência — do socratismo às ciências modernas — não
pode estar restrita a uma sucessão de métodos para explicar e entender o mundo, nem tampouco
à desinteressada busca por esclarecimento. Para Nietzsche, a ciência não faz senão justificar,
manter e aprofundar uma determinada convicção moral, a saber, aquela que busca e valoriza a
segurança e o conforto e que teme e desqualifica tudo aquilo que é desconhecido e inaudito.
por uma inclinação natural. Antes, buscamos conhecimento por medo do desconhecido, isto é,
por ânsia de segurança e conforto. Em sua Gaia Ciência (1882) Nietzsche indaga:
O que deseja quando quer “conhecimento (Erkenntniss)”? Nada além disto: alguma
coisa estranha deve ser posta em conexão com algo conhecido habitual (Bekanntes).
E nós, filósofos, que pretendemos entender por conhecimento? Aquilo que é conhe-
(gewöhnt), de modo que não nos espantamos mais, nosso movimento quotidiano, uma
regra qualquer que nos rege, tudo que sabemos (wissen) nos é familiar; como?! Nossa
30
necessidade de alguma coisa conhecida reconhecer (Erkennen)? O desejo de descobrir,
entre todas as coisas estranhas, inabituais, incertas, alguma coisa que não nos inquiete
mais? Não seria o medo, enquanto instinto, que nos levaria a conhecer reconhecer
pp. 243-244)
Nietzsche se levanta contra essa disposição moral no ato de conhecer — fruto de uma ânsia por
conforto e comodidade. Para ele, o conhecimento, encarado dessa forma, coloca o ser humano
No final das contas, parece razoável admitir que é o fomento do desconhecido que co-
loca o filósofo em marcha — enquanto o habitual, conquanto confortável, deixa-o, antes, inerte,
duas ações: conhecer (kennen) e reconhecer (erkennen)8. Esta distinção, como vimos na citação
7
Vemos aqui um uso crítico da expressão Reconhecente. Nietzsche o coloca no plural [Erkennenden] e o associa,
nesta conotação crítica, àquele que reconhece apenas o habitual, como o fazem os idealistas ao olharem para os
mundos humanos para reconhecer neles uma ideia a qual já estão habituados. Esses são os Reconhecentes do
passado, não o Reconhecente como filósofo do futuro, que busca reconhecer o estranho, o inabitual. O reconheci-
mento que busca o habitual é identitário, pois enxerga apenas o familiar e tende ao imobilismo dos mundos, en-
xergando apenas aquilo que lhe é próprio. O reconhecimento que busca a distância, o estranho, inabitual, é alteri-
tário, pois ressignifica, é transmundador. O mundo consciente é aquele a qual mais estamos habituados, por isso,
o reconhecimento alteritário deve ressignificar também o “mundo interior”, a própria consciência, através da afir-
mação dos impulsos não conscientes e da afirmação daqueles a qual não estamos habituados. Em se tratando do
“mundo exterior” é preciso reconhecer nele algo que nos seja alheio, estranho, inabitual, o reconhecimento nesse
sentido possui um caráter de “trazer algo” para o mundo interior, uma disposição anti-narcisista de reconhecer o
que não se é, mas que se poderia ou deveria ser. O reconhecimento do inabitual como potencializador do poder-
ser, isto é, como ação que amplia nossas possibilidades existenciais.
8
. Enquanto o ato de conhecer é estático e acumulativo, o ato de reconhecer é sempre uma ação dinâmica e sintética.
Posso conhecer (kennen) o alfabeto, mas não reconhecer (erkennen) algumas letras no exame de vista. Se eu não
conhecesse o alfabeto latino de antemão, mesmo com a visão aguçada, não poderia reconhecer os caracteres mos-
trados. Essa é a distinção entre o ato de reconhecer e o de conhecer, o reconhecer pressupõe um saber prévio, o
conhecer não. Se fosse estudar Platão em grego, precisaria antes conhecer o alfabeto grego para reconhecer um
significado naquilo que leio. O conhecer acumula conhecimento, o reconhecer o respaldo ou ressignifica. A esco-
lha por valorizar, na busca por conhecimento, o ato de reconhecer [erkennen] e não o de conhecer [kennen] é
porque o reconhecimento exige familiaridade, exige que se esteja habituado, ao contrário do conhecer
31
acima, não fica clara nas traduções9. O reconhecer se diferencia do conhecer não apenas na
questão temporal — enquanto algo que reconheço na duração de uma vivência — mas, também,
no quesito epistemológico, ou seja, no que tange especificamente à maneira pela qual Nietzsche
Por exemplo, posso conhecer que fisguei um peixe, mas não reconhecer de qual peixe
se trata pela puxada da linha. Quando o arrasto para a beira do rio, reconheço se tratar de um
curimatã. Eu já conhecia o curimatã antes, isto é, já sabia seu formato, sua textura, mas, apenas
agora, enquanto o arrasto pela beira, reconheço que foi ele que fisguei, ou, dito de outro modo,
agora conheço e, finalmente, reconheço qual peixe fisguei. Por isso, há conhecimento quando
O mesmo vale para quando conheço uma doutrina ética e a reconheço nos julgamentos
que faço das minhas ações ou mesmo das ações de outras pessoas. Ou ainda, quando conheço
priori.
Intuição, conforme própria origem latina do termo, tem algo de “in” ou “intus”10, isto é,
um voltar-se para dentro que necessita de uma ação, ou olhar individual mais atento. Trata-se
9
Paulo César de Souza também irá traduzir, nesse aforismo, Erkennen e suas derivações indistintamente como
conhecido, cognoscível e reconhecido
10
Nas duas considerações mais aceitas para a sua origem latina como intus (dentro) e actionis (ação), ou in (em)
e tueri (ver). Quando o jovem Nietzsche usa o termo intuição (Anschauung ou Intuition) durante os anos de 1871
a 1873, não o faz do mesmo modo que Kant ou Schopenhauer. Em Kant, Anschauung adquire o sentido limitado
de percepção sensorial, sendo em Nietzsche uma das “faculdades” do intelecto, assim como a razão, que embora
esteja associada com a percepção sensorial no sentido de apreensão de uma experiência, não se limita apenas a
uma atividade meramente perceptiva no sentido psicofisiológico, mas também uma atividade do espírito que não
se deixa simplificar em meros processos materiais. Nesse ponto, Nietzsche e Schopenhauer alinham-se na crítica
à intuição como mera percepção dos sentidos proposta por Kant, afirmando que a intuição está além da sensibili-
dade. Para Schopenhauer, as representações intuitivas não se justificam apenas pela sensibilidade pois dependem
32
de algo mais ligado à ação do que à memória. Daí a ligação do “in” da intuição com o “re” do
reconhecimento, que ao mesmo tempo tem algo de reflexivo, mas também de imersão. Caso
não atentasse esteticamente contra nosso gosto, até poderíamos falar de um “inconhecimento”
ou “anticonhecimento”.
de uma intuição transcendental ou inteligível. Não é a intuição dos Românticos, nem uma graça
Trata-se, antes, de uma intuição imanente. E sendo uma intuição imanente, ela parte da
conhecimento intuitivo (cf. TEIXEIRA, 2001, p. 13). E sabendo que Nietzsche era um bom
da lei da causalidade que só pode ser dada pelo entendimento, sendo assim, a intuição é possibilitada conjunta-
mente pela sensibilidade e pelo entendimento. A intuição empírica fundamenta, assim, todo o conhecimento abs-
trato e conceitual advindo do uso da razão. Apesar de Jaco Guinsburg (cf. NIETZSCHE, 1992, p. 27) optar pelo
neologismo “introvisão” para traduzir Anschauung, preferimos traduzi-lo por intuição. Há algo de visão e de olhar
na intuição — no entanto, não é uma introvisão, um olhar para dentro; seria, antes, uma extrovisão, um olhar para
(anschauen) algo que está fora, um modo de relacionar-se com o mundo de modo contínuo, sem as ilusões espa-
ciais e temporais da razão.
11
A influência de Espinosa em Nietzsche passou, sobretudo, pela leitura dos seis volumes da História da Filosofia
Moderna (1854–1877) de Kuno Fischer (1824–1907). Para um estudo mais detalhado sobre esse assunto, cf. SOM-
MER, 2012.
33
Logo acima, estaria o conhecimento racional, que possui um caráter dedutivo, como é o
caso da física e matemática. Ele busca causas e finalidades e, é, portanto, mais objetivo do que
imaginativo. Ele procura as características que os objetos possuem em comum e é, assim, mais
potente por permitir conjecturas e uma maior ação humana sobre a natureza.
que estão além da mera finalidade e casualidade. Com ele, intuímos a própria noção de deus
como casualidade do existente e passamos a ver o mundo com os seus olhos. Por esse motivo,
entre o espírito do sujeito e do objeto, superando as limitações entre sujeito e objeto presentes
mais potente dentre eles, por seu intermédio podemos nos construir e ser de muitos modos. Já
que é chegando à intuição de que somos parte de deus, também nos enxergamos como criadores
Nietzsche valorizará a intuição como meio de apreensão dos fenômenos empíricos. Ele
encarará o saber científico como estritamente conceitual e, nesse sentido, derivado de intuições
esvaziadas de sentido, que por sua vez estão sujeitas ao tempo, espaço e causalidade. No entanto,
Nietzsche, ao contrário do seus antecessores, não irá defender a noção de verdade como relação
As verdades são fruto da linguagem, bem como a própria razão e, portanto, possuem,
em última instância, um caráter essencialmente ilusório e metafórico. Nietzsche vai ainda além
ao vincular a razão, assim como toda operação racional, ao âmbito da linguagem, transformando
o problema da verdade e dos limites da razão em um problema linguístico. Por esse motivo, a
34
dentro dos mundos que o sustentam e, ademais, a possibilidade transgressora da intuição e do
reconhecimento.
portanto, uma estrutura epistemológica transcendental nem categorias a priori, mas tão somente
artigos de fé ou erros fundamentais que foram se consolidando. Ele enumera seis deles, quais
sejam: (i) existem coisas duráveis; (ii) existem coisas iguais; (iii) existem coisas; (iv) uma coisa
é aquilo que parece; (v) nosso querer é livre; e, por fim, (vi) o que é bom para mim é bom em
si.
a priori, pois esses artigos de fé foram construídos e assimilados ao longo do devir histórico do
humano.
realidade e seus mundos, já somos condicionados pelos erros fundamentais que influenciam e
O intelecto gerou apenas erros durante vários séculos; alguns mostravam-se úteis à
maior felicidade por si e pela sua descendência. Existem muitos desses artigos de fé
fundo humanos (...) Apenas muito tardiamente se apresentaram pessoas que negaram
A verdade aparece, portanto, como a mais fraca forma de conhecimento. Essa fraqueza se dá
porque “A força do conhecimento, portanto, não reside em seu grau de verdade, mas em sua
35
antiguidade, seu grau de assimilação, seu caráter enquanto condição vital.” (Idem, ibidem).
Logo, quanto mais antiga uma verdade, mais incorporada por um povo em sua cultura, mais
critério, qual seja: não é a verdade que determina em qual nível um conhecimento encontra-se
— se mais alto e melhor, ou mais baixo e pior — mas, antes, a condição vital ou vivência que
o conhecimento proporciona.
mundo por meio de representações conceituais caracterizará aquilo que ele chamará de humano
teórico.
O teórico não é, todavia, algo estrutural ou a priori no humano, mas, antes, constituído
é aquele que conhece tendo como finalidade o mero saber em si. Contraposto ao Sabido está o
amante da sabedoria, outro é amante da vida. A distinção entre um e outro é, justamente, o tema
36
2 O Reconhecente na Obra Nietzschiana
irá o levar à formulação de ainda outra distinção, qual seja: entre “Reconhecente” (Erkennende)
e “Sabido” (Wissende).
sua obra. Em um de seus Fragmentos Póstumos, Nietzsche adverte “(...) contra a arrogância do
Sabido (...) [gegen den Hochmuth der Wissenden]” (NIETZSCHE, NF, 1875, 11, 50), atentando
para “(...) a impossibilidade de uma vida de sabedoria (...) [die Unmöglichkeit eines Lebens im
“Europeus super orgulhosos do século dezenove, vocês estão loucos! Seu saber [Wissen] não
aperfeiçoa a natureza, apenas mata sua espécie. Mede a sua altura como Sabido [Wissender]
pela profundidade de sua proficiência.” (Id., UB: 9). Ademais, ele ainda diz, sobre o Sabido,
que “Sua forma de andar, escalando enquanto um Sabido [Wissender], é sua sina. O solo recua
ao desconhecido para você; não há mais nenhum suporte para a sua vida, só teias de aranha que
se rompem a cada nova tentativa de capturar algo do conhecimento [Erkenntniss].” (Id. ibidem).
falará da relação entre Sabido e o orgulho arrogante. Nietzsche afirma: “Em todas as épocas
chama-se — com razão — o orgulho de ‘vício do Sabido’ (...) [das Laster des Wissenden]” (Id.,
MA: 26). Ou seja, em resumo, Nietzsche identifica o Sabido com uma posição pretenciosa,
37
Já o Reconhecente será, por outro lado, situado por Nietzsche como um modelo superior
ao Reconhecente (der erkennende Mensch) como aquele que busca o conhecimento, não como
uma finalidade, mas como uma escada para uma meta maior — “(...) apenas o Reconhecente
deveria olhar para além da escada; afinal, enquanto seres humanos plenos, não somos somente
conhecimento” (Id., NF, 1877: 22), diz ele. Com essa passagem, Nietzsche sugere uma postura
na qual se lida com o conhecimento, mas não se limita a ele. O Reconhecente compreende que
há mais no mundo que o conhecimento. Por essa razão, ele não investe ali toda sua humanidade
que, neste capítulo, dedicamo-nos a rastrear como o Reconhecente é pensado na obra nietzschi-
ana. Em primeiro lugar, explorando os estudos de Nietzsche sobre Demócrito de Abdera en-
seus estudos sobre Demócrito, que remontam ao período no qual ele era estudante em Leipzig,
por volta de 1869. Ao elencar a lista dos sábios gregos, Nietzsche se refere a Demócrito como
termo e por estar associado a Demócrito, julgamos importante compreender o contexto no qual
essa reflexão se manifestou, bem como o sentido no qual Demócrito foi assim entendido, como
Reconhecente Universal.
38
Nietzsche dedicou-se disciplinadamente aos estudos no período em que cursou Filologia
Clássica em Leipzig, entre 1865 e 1869. Esse foi um momento decisivo e determinante na sua
formação filosófica. Data desse período sua leitura de Kant, seu contato com Schopenhauer e
e da crise do Idealismo Alemão. Assim, Nietzsche assume duas posições que o acompanharão
a vinculação entre conhecimento e vida. Não por acaso, essas duas posições serão diretamente
Vale pontuar que, em um contexto no qual a Alemanha procurava firmar uma identidade
a busca por um retorno aos gregos por outra via que não fosse aquela eleita pelo Renascimento
e pelo Classicismo francês representava também a tentativa de encontrar uma identidade alemã
a ser gestada. A reação ao racionalismo imbuído nas narrativas sobres os gregos fazia com que
Nietzsche, de alguma forma, confluísse com a mentalidade romântica, apesar de suas críticas
nova geração — cujo movimento mais expressivo ficou conhecido sob a alcunha “Tempestade
e Ímpeto” — propunha um retorno à natureza por meio de uma restauração dos ideais gregos,
12
Sobre essas leituras, conforme comenta Power (2001, p. 118), Nietzsche teria afirmado em uma carta a Mus-
chake: “Kant, Schopenhauer e este livro de Lange — eu não preciso mais do que isso!”.
39
singular aos gregos, Nietzsche propõe o espírito científico de Demócrito e, posteriormente, a
Os últimos avanços nas ciências naturais permitiram um olhar mais acurado dos fenômenos
aos processos puramente mecânicos e materiais. Por isso, alguns materialistas defendiam uma
autonomia das ciências naturais diante das especulações filosóficas, principalmente porque elas
do conhecimento do que aquelas oferecidas pela filosofia. Se tais ciências podiam desvendar as
causas materiais do sentir e pensar, a especulação filosófica seria dispensável (sendo a matéria
material.
Nesse sentido, observa-se que Nietzsche não estudou Demócrito à toa, já que o espírito
de seu tempo exigia um anteparo à valorização exacerbada das ciências naturais. Demócrito foi,
então, lido como Reconhecente Universal — que facilita o trabalho das ciências naturais por
meio de uma cosmovisão abrangente e um olhar poético e ético sobre os fenômenos naturais.
Essa disposição convertia-o em modelo para a formação alemã e, ademais, como um antídoto
contra o avanço das ciências naturais nas universidades, que requeriam, a cada nova descoberta,
uma autonomia cada vez maior em relação aos outros ramos do saber. Assim, diante da postura
naturalista do idealismo de buscar a origem das ideias por intermédio de processos naturais, o
40
do objeto ao sujeito cognoscente. Com isso, as ciências naturais não poderiam estabelecer sua
metodologia desde estudos dos processos fisiológicos que possibilitam o pensar, já que estariam
confundindo o sujeito com o objeto. Ao entrar em contato com a crítica à postura filosófica dos
materialistas modernos, por meio do Neokantismo de Lange, é que Nietzsche inicia seus estu-
dos sobre a phýsis de Tales de Mileto (c. 624/623—548/546 a.C.), de Anaxágoras de Clazôme-
publicado em uma edição em homenagem ao seu orientador Friedrich Ritschl — que o indicara,
no mesmo ano de 1868, para a cátedra de Filologia Clássica na Universidade da Basiléia e que
também havia sido professor de Lange, em Bonn, no ano de 1848. Nesses estudos, Nietzsche
atenta para o pioneirismo do pensamento de Demócrito que, segundo ele, foi um predecessor
qual fala Nietzsche pode ser visto nos seguintes fragmentos de Demócrito: “(...) em realidade,
nada sabemos (...) ver-se-á bem que não se pode chegar a saber o que cada coisa realmente é
(...) Não aprendemos o que, na realidade, cada coisa é ou não é.” (BORHEIM, 2005, p. 107).
Além disso, para o jovem filólogo, já em Demócrito podemos encontrar uma vinculação das
categorias de espaço, tempo e causalidade como sendo as únicas verdades eternas e a única
permanência em meio ao devir. Nesse sentido, o abderita teria sido um precursor da crítica
metafísica idealista.
que defende o caráter de construção da realidade sem recorrer ao idealismo essencialista. Ele
postula um mundo sem metafísica, um mundo sem arché. A realidade material, para o abderita,
pode ser explicada através do choque, do movimento e impulso dos átomos e, nesse sentido,
41
Não se pode ignorar que, para Nietzsche, a cultura grega era grandiosa e digna de ser
um modelo. Isso porque a educação do grego era voltada para um cultivo da singularidade dos
indivíduos. Sua finalidade era arar a terra para a colheita de novos gênios. O retorno aos gregos
era um modo de fundamentar a Building alemã em uma paidéia grega, resgatando seus valores.
Para a cultura decorativa alemã se tornar uma cultura autêntica, com a mesma vivacidade que
os gregos a conceberam, era preciso uma formação que não fosse específica, nem reivindicasse
uma natureza histórica, tampouco aderisse à superficialidade. Desse modo, vemos nos estudos
de Nietzsche sobre Demócrito que, para ele, “(...) a maioria dos filólogos são trabalhadores a
serviço da ciência (...)” (NIETZSCHE, 2011, p. 242), isto é, meros operários especialistas em
uma diminuta área do saber, mas que no geral “(...) pertencem ao vulgo (...)” (Idem, ibidem) —
Sendo assim, era preciso “formar” um pensador completo, alheio às fronteiras impostas
ao conhecimento e que condiciona o saber ao devir de suas vivências. Tal modelo de indivíduo
Algum tempo mais tarde, enquanto cumpre o serviço militar, lotado como artilheiro no
exército prussiano, Nietzsche se encontra bem adaptado à rigidez da vida na caserna e direciona
seus estudos para as fontes de Demócrito, sobretudo Diógenes Laércio (180–240), Trasilo de
Atenas (?–406 a.C.) e, em especial, Caio Apuleio Diocles (?–104). Como isso, ele faz uma
meio do lógos. Encontramos no abderita uma explicação da phýsis que prescinde totalmente da
teologia e da teleologia, ou, como Nietzsche definirá, uma etiologia sem teologia. Além disso,
sua epistemologia não se desvincula da ética porque o conhecimento das causas é um modo de
42
Para o jovem estudante de Leipzig, “ (...) a sutileza de uma etiologia sem teleologia, um
estudo das causas sem a hipótese divina, é o ponto marcante no pensamento de Demócrito” (Id.,
ação. Nietzsche pontua que, “(...) para Demócrito, então, sua visão sobre as coisas adquiria um
valor ético; ele acreditava na felicidade dos homens, uma vez que seu método científico fosse
vivenciado.” (Id., ibid., p. 256). Apenas aquele que desconhece pode temer ou sofrer.
se lê que “O homem é infeliz simplesmente porque não conhece a natureza” (Id, ibid., p. 247).
Aquele que conhece as causas dos fenômenos deixa de admirar-se por eles. O conhecimento da
conhecimento científico que evita resultados que visem o espanto e admiração. Não por acaso
Nietzsche irá lembrar que “(...) o sistema de Demócrito era o preferido de Bacon.” (Id., ibid., p.
245). Sendo assim, toda admiração e espanto advém de um olhar apressado e fantástico sobre
a natureza, olhar esse que nos causa medo e sofrimento, gerando assim infelicidade. Logo, a
busca pelo conhecimento é também a busca por felicidade. Ou seja, o sistema filosófico de
Demócrito não visa tão somente explicar os fenômenos naturais, mas libertar os seres humanos
do temor dos deuses e da morte, libertando-os de entregar seu destino ao mero acaso.
(c. 490–415 a.C.), foge ao dualismo filósofo/sofista, ou ainda, filósofo/cientista. Seu objeto de
estudo não foi somente a phýsis dos jônios, tampouco o lógos dos sofistas, ou ainda, o éthos
43
mesma visão de mundo, em detrimento de epistemologias particulares que visam delimitar as
Sobre isso, concordamos com Campioni (2016) sobre dois aspectos do pensamento de
conhecimento. No entanto, propomos que, para Nietzsche, esses elementos também se faziam
Demócrito, Descartes e Nietzsche: a abrangência epistemológica. Isso quer dizer: um olhar mais
amplo e uma busca pelo conhecimento de maneira universal e que caracteriza o indivíduo que
por causa do materialismo atomista que absorveu de Leucipo de Abdera (c. V a.C.) e que foi
difundido posteriormente por Epicuro de Samos (341–270 a.C.) e Lucrécio Caro (94–50 a.C.).
Porém, não devemos ignorar que a parte mais preservada da sua obra é aquela que trata de
natural não condiz com a abrangência de seu pensamento, nem tampouco representa aquilo que
mais exerceu influência entre seus contemporâneos. Antes, o Demócrito naturalista surge pela
ênfase dada por filósofos posteriores, sobretudo Epicuro e Lucrécio. Até mesmo nas reflexões
materialista.
buscava um princípio que justificasse o devir. Propôs-se, então, que a descontinuidade e o vazio
não estariam no interior do ser, mas que se constituíam como uma realidade paralela, alheia ao
ser. Portanto, ao contrário dos eleatas, para a Escola de Abdera o “não-ser é”.
sua visão atomista dos fenômenos naturais e justificada pela busca por uma vida feliz associada
44
ao conhecimento, seria, para Nietzsche, o tronco por onde se sustentaram diversos pensadores
naturais por meio de causas materiais, não metafísicas, consolidando assim o legado da filosofia
Demócrito conseguiu oferecer uma unidade sistemática e poética aos diversos modos
de conhecimento sobre a phýsis disponíveis em seu tempo sem postular uma força sobrenatural
como explicação para a constituição material do mundo. É nesse sentido que interpretamos essa
afirmação de Nietzsche sobre Demócrito: “(...) o primeiro a alcançar o caráter científico, que
sem introduzir, nos momentos difíceis, um deus ex machina” (NIETZSCHE, 2011, p. 256). Em
fariseu da cultura pavoneia-se, com seus conhecimentos decorativos e ineficazes para a vida, o
fechados e imersos nos seus manuscritos. Em Demócrito há um chamado para o “grande livro
do mundo” — para usar uma imagem construída por Descartes — e a necessidade da paixão
que perambula, torna-se um imperativo tão epistemológico quanto ético, já que, no final das
contas, além de aprofundar o conhecimento sobre o mundo é uma maneira excelente de viver.
Demócrito remonta a uma tradição na qual podemos incluir também Tales e Anaxágoras
marcada por uma visão antropomórfica de mundo conforme os mitos homéricos. Demócrito
como escritor e viajante que atua na cultura e contra os mitos é o modelo de pensador universal
45
que Nietzsche irá valorizar, aquele que se debruça sobre tudo que é passível de conhecimento
— disposição oposta daquele que busca um conhecimento especializado, pensando sob viseiras.
todas as coisas indistintamente, nem tampouco conhecer a realidade em absoluto. Seu caráter
universal consiste em abarcar em seu sistema todos os domínios do conhecimento. Não se trata
de conhecer todas as coisas, mas de estar aberto à possibilidade de poder conhecer tudo aquilo
que potencializa a vontade de viver, independentemente das áreas do saber com as quais esse
Porém, esta abrangência não significa superficialidade — pelo contrário, ela precisa ser
densa o suficiente para sustentar em seu tronco todos os galhos das ciências experimentais,
sintetizadas em uma mesma visão de mundo. Demócrito seria, assim, uma espécie de arquétipo
dos naturalistas alemães do século XIX, cujo principal expoente é Alexander von Humboldt
certo naturalismo, porém, não um naturalismo que nos impele a viver de acordo com uma na-
tureza essencial, todavia, antes, o reconhecimento de que toda ação humana é natural e de que
não é possível transcender essa natureza. Ou seja, já estava ali a tese fundamental de que os
viajantes — o tipo de cientista que “recorre ao mundo” ao invés de refugiar-se tão somente em
Além do caráter volante de suas vidas, ambos possuíam em comum uma visão tão singular
quanto abrangente do universo e que perpassava por diversas áreas do conhecimento, propondo
46
Tal empreendimento exige uma vida dedicada ao conhecimento e, para tanto, o cultivo
de certo ócio. O “otium litteratum” que Nietzsche (ibid., p. 277) associa a Demócrito, significa
a serenidade alcançada pela busca do conhecimento, através de uma vida dedicada à atividade
de conhecer as causas que dão sentido ao mundo e em detrimento de uma vida dedicada ao
conforto e ao ganho econômico. Demócrito “pobre e desamparado” (cf. Id., ibid.) encontra a
eudaimonía no páthos pelo conhecimento, mesmo que o preço para isso seja viver “como um
mendigo” (cf. Id., ibid.). Nietzsche relembra que Cícero (106 a.C.–43) define, em seu De finibus
bonorum et malorum, a ética de Demócrito como uma tentativa de alcançar o bem-estar da alma
por meio do conhecimento do mundo. Nesse sentido, a investigação da natureza seria um modo
Além disso, Nietzsche (ibid.) ressalta que “Demócrito não é um criador de ideias, mas
sim um sistematizador”. Tendo algumas de suas ideias sido postuladas anteriormente por Leu-
cipo, Pitágoras e outros pensadores, sua genialidade consistia em sistematizar essas ideias em
causas e princípios gerais que se articulam em uma macrovisão do cosmos, prescindindo, assim,
contrário, utiliza-se instrumentalmente da razão para outros fins. Sua racionalidade se volta para
as causas materiais que dão sentido ao mundo como meio de combater explicações metafísicas
e religiosas. Por isso, sua visão de mundo atomista possui não só um elemento epistemológico,
mas sobretudo ético e estético. Dessa maneira, o Demócrito de Nietzsche encarna a disposição
47
O materialismo de Demócrito, de acordo com o jovem Nietzsche, teria sido deturpado
alquímico e mágico que não lhe eram inerentes. Demócrito, como se sabe, rivalizava com Platão
(428/427–348/347 a.C.), que instigou a queima de seus livros. Apesar disso, a sua influência
Sua ligação visceral com o mundo grego e sua visão materialista do mundo fez com que
fosse associado ao paganismo durante boa parte da era cristã. A maioria de seus escritos foram
consumidos pelo fogo da negligência, esquecidos, relegados a uma história paralela da filosofia,
que o então filólogo e catedrático Nietzsche ambiciona resgatar, dentro de um contexto maior
de valorização do pensamento dos filósofos pré-platônicos — apontando, com isso, uma via
justificando uma disposição mítica de criar além-mundos e postulados metafísicos como causas
dos efeitos naturais. O racionalismo encontra em Platão seu principal expoente, que propõe um
demiurgo como causa dos fenômenos naturais e postula uma racionalidade transcendente ao
mundo, entrando em uma disposição oposta àquela dos filósofos trágicos que o precederam e,
O riso de Demócrito difere-se do otimismo socrático. Enquanto este está voltado para
todo sofrimento se converte em comédia, como conclui Hipócrates em seu suposto encontro
com Demócrito: seu riso era sinal de saúde. Para Nietzsche, a vinculação de “Hipócrates como
discípulo de Demócrito ou de [seu discípulo] Metrodoro (...)” (cf. NIETZSCHE, 2011, p. 246)
48
condizentes com sua ética. Para Hipócrates, a medicina é uma técnica (techné) que buscaria
harmonizar phýsis e nómos (leis/normas). A cidade (pólis), assim como o indivíduo, adoece
quando ambas estão em desarmonia. O riso de Demócrito visa alertar os abderitas do mau uso
da razão, sobretudo em suas normas, seu exemplo de vida que condiciona o nómos em função
da phýsis é um remédio (phármakon) contra a falta de razão de seus conterrâneos. Daí a resposta
a Hipócrates (2011, pp. 52-23): “na verdade eu rio de uma só coisa relativa à humanidade, a
falta de razão que preenche o homem, ou em outras palavras, a vacuidade que há nas suas ações
corretas”. Desse modo, já em Demócrito, podemos encontrar o que, mais tarde, Nietzsche irá
a Prometeu.
Por ter o dom da clarividência, Prometeu é o deus que mais sabe. Entretanto, não reside
nisso seu orgulho, mas, antes, no reconhecimento do já sabido. Ele sabe que Zeus um dia cairá
e, por isso, regozija-se pelo reconhecimento de que os passos que o levarão à queda estão sendo
que possa reconhecer e vivenciar sua queda. É nisso que consiste seu riso orgulhoso ante a fúria
punitiva de Zeus.
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Felizmente, nos intervalos que a dor me concede, experimento felizes exaltações do
verdadeiro dia sagrado. Não sei o que possa ser a palavra “génio” se não for aplicável
a tal poeta. É maravilhosa a sua obra, e pareceu-me, ao lê-la, encontrar nela o meu Eu,
Interessa-nos pensar, nessa análise, a respeito dos limites do conhecimento e dos perigos
que sofre aquele que aspira ao titânico, à desmedida. Isso, seja na sua busca pelo conhecimento,
seja assumindo um papel altivo e ativo dentro de uma cultura instituída. Nisso consiste “(...) a
relação entre orgulho, prazer e reconhecimento. Já que Prometeu não pode mais sentir prazer
em saber, posto que em relação ao futuro ele tudo sabe, resta o prazer no reconhecer o já sabido.
tem efeito nocivo tanto para o fomentador como para o fomentado.” (Idem, DW: 2). O jovem
filólogo desenvolve aqui uma reflexão epistemológica sobre o apolíneo, afirmando que “(...) o
culto às imagens da cultura apolínea (...) tinha o seu fim sublime na exigência ética da medida,
que corre paralela à exigência da beleza” (id., ibid.). O imperativo ético e estético da “justa
desmedido também é um vício, uma hybris, para Apolo. A busca desenfreada pela verdade e
por tudo saber atenta contra a cultura apolínea, já que “(...) o fim mais íntimo de uma cultura
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voltada para a aparência e a medida pode ser somente o velamento da verdade (...)” (Id., ibid.),
o conhecimento aqui está sob as rédeas da medida e da beleza, não sendo assim um fim em si
mesmo, por isso, “(...) ao incansável investigador a seu serviço gritava-se como advertência,
assim como ao superpotente titã, µηδεν αγαν – nada em excesso (...)” (Id. Ibid.). Desse modo,
“(...) quem quer sair-se bem com sua sabedoria diante do deus deve, como Hesíodo, µετρον
εχειν σο ϕιης [ter a medida da sabedoria]” (Id. Ibid.), ou seja, deve reconhecer os limites do que
pode ser sabido e da busca pelo conhecimento, condicionando-a à uma finalidade que não esteja
nela mesmo. No entanto, “(...) a medida, colocada como exigência, só é possível onde a medida,
o limite é reconhecível (...)” (Id., ibid.), isto é, não é possível reconhecer nossos limites se nem
ao menos o conhecemos. Ora, “(...) para que se possa observar os próprios limites precisa-se
conhecê-los [kennen]: por isto a advertência apolínea γνϖ ϑι σεαυτον [conhece-te a ti mesmo]”
(Id., ibid.). O uso do verbo kennen é importante aqui, pois adiante é contraposto ao erkennen,
quando afirma: “O espelho, no entanto, no qual somente o grego apolíneo podia ver-se, isto é
reconhecer-se [erkennen], era o mundo dos deuses olímpicos” (Id., ibid.). Assim, podemos reler
a sentença apolínea da seguinte forma: conhece-te a ti mesmo para reconhecer teus limites.
reconhecia [erkannte] sua mais própria essência envolvida pela bela aparência do sonho (.,.)”
(Id., ibid.). O conhecimento nessa visão não é, porém, um fim em si mesmo, como será na
cultura socrática, mas um meio para o reconhecimento do belo, entendido como a justa medida,
o limite, a proporção.
Esse mundo olímpico que surge após a derrocada do mundo dos titãs era medido pela
beleza — “(...) o limite que o grego tinha que observar, era o da bela aparência (...)” (Id., ibid.)
— e por essa medida reconheciam a si, aos outros e aos deuses. Por esse critério também era
medido o conhecimento, cuja finalidade não era a de analisar os segredos do mundo, todavia,
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antes, de embelezá-lo. Prometeu, cujo destino coube ser abençoado e amaldiçoado com o dom
do conhecimento desmedido do futuro, foge à justa medida do mundo apolíneo, por isso serve
como seu contraponto, assim como Dioniso “(...) no qual a inteira desmedida da natureza se
revelava ao mesmo tempo em prazer, em sofrimento e em conhecimento (...)” (Id., ibid.). Sendo
assim, “(...) tudo o que até agora valia como limite, como determinação de medida, mostrou-se
aqui como uma aparência artificial: a ‘desmedida’ desvelava-se como verdade (...)” (Id., ibid.).
o estabelecimento de um novo parâmetro, um outro mundo, uma outra medida, onde o limite
desmedida e a afirmação da vontade contra todos os limites impostos é a nova meta, não importa
quais sofrimentos advenha. Por isso, há algo de trágico no Reconhecente, pois romper os limites
do conhecimento instituído é fugir do conforto e estar disposto a encarar a dor da perda dos
referenciais que nos dão conforto, pois os limites do muro geram certa segurança e estabilidade,
Aspirar grandes coisas para além da existência de um eremita, isto é, entre os indivíduos,
— tal como Zaratustra que desce da caverna — possui algo de sacrifício pessoal. Aquele que
amplia o reconhecimento de uma perspectiva pessoal para uma dimensão cultural e expressa
isso em obras, atrai a inimizade de muitos e corre o risco de ser incompreendido — novamente,
como Zaratustra, após expor o além-homem em praça pública. Prometeu, Dioniso e Zaratustra
seriam mais felizes se desprezassem os humanos. Assim, Prometeu “(...) na heroica impulsão
ele mesmo a única essência do mundo, padece ele em si a contradição primordial oculta nas
coisas, isto é, comete sacrilégio e sofre” (Id., GT; 1992, p. 69). Prometeu e Zaratustra são más-
caras dionisíacas, pois tal como o deus da embriaguez, eles buscam elevar os humanos, essa é
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a sua hybris, o contraponto desses personagens à medida apolínea, pois desconhecem os limites
que os separam dos demais humanos e, querendo, elevar-se, carregam os demais em seu dorso,
Essa repentina maré montante do dionisíaco toma então sobre o seu dorso as pequenas
vagas dos indivíduos, assim como o irmão de Prometeu, o titã Atlas, tomou sobre o
seu dorso a Terra. Esse afã titânico de ser como que o Atlas de todos os indivíduos e
carregá-los com a larga espádua cada vez mais alto e cada vez mais longe, é o que há
arrastar como maré os humanos consigo. Enquanto Apolo nos ensina a tranquilidade dos limites,
Nietzsche escreve:
Quem compreende esse cerne interior da lenda de Prometeu – quer dizer, a necessi-
dade de sacrilégio imposta ao indivíduo que aspira ao titânico – deverá também sentir
ao mesmo tempo o não-apolíneo dessa concepção pessimista; pois Apolo quer con-
comedimento, que tais linhas são as leis mais sagradas do mundo (Id., ibid. p.68)
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O conhecimento aqui não aspira o identitário e seus limites, mas sim a alteridade e suas possi-
bilidades, não busca o habitual, o natural, mas a transgressão da natureza “(...) pois como se
poderia forçar a natureza a entregar seus segredos, senão resistindo-lhe vitoriosamente, isto é,
através do inatural?” (Id., ibid., p. 65). O caminho que leva ao Reconhecente, à valorização da
despedaçado pelos Titãs, tornar-se de algum modo antinatural, ou uma natureza desmedida,
(...) o mito parece querer murmurar-nos ao ouvido que a sabedoria [Weisheit], e pre-
cisamente a sabedoria dionisíaca, é um horror antinatural, que aquele que por seu sa-
sábio [Weisen]; a sabedoria é um crime contra a natureza’: tais são as terríveis senten-
O humano possui uma natureza epimeteica, que é aquela determinada, que dividimos com os
animais — como Epimeteu, irmão de Prometeu, que foi o responsável na mitologia por formar
e dar todos os atributos aos animais, relacionado aqui, portanto, ao animalesco, no sentido do
natural, do humano como espécie animal — mas também algo de prometeico, alguma astúcia
que lhe permite transcender as determinações da nossa natureza. Sendo assim, ao possibilitar
aos humanos estabelecer uma cultura, Prometeu os presenteia com algo de não humano, não
animal, não natural, divino e titânico. Desse modo, “(...) o homem, alçando-se ao titânico,
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conquista por si a sua cultura e obriga os deuses a se aliarem a ele porque em sua autônoma
sabedoria [selbsteignen Weisheit], ele tem na mão a existência e os limites desta” (Id., ibid.).
mais limites divinos. Agora, os deuses possuem uma avaliação externa e autônoma para suas
ações. Agora também são eles julgados. Assim, “O mais maravilhoso, porém, nesse poema
crepúsculo dos deuses.” (Id., ibid.). O humano não é mais passivo diante dos deuses, o humano
dotado de cultura é o senhor de sua realidade, seu próprio deus — “À glória da passividade
contraponho agora a glória da atividade, que o Prometeu de Ésquilo ilumina” (Id., ibid.), diz
Nietzsche. Ao criar seus próprios limites e ter a capacidade de ultrapassá-los, o humano afirma
sua natureza trágica, ao mesmo tempo dionisíaca e apolínea. Ainda sobre isso, Nietzsche afirma:
síaca e apolínea, poderia ser do seguinte modo expressa em uma formulação concei-
tual: “Tudo o que existe é justo e injusto e em ambos os casos é igualmente justifi-
Nietzsche termina essa sessão de O Nascimento da Tragédia, onde trata em grande medida do
Prometeu esquiliano, com uma citação de Goethe: “Isso é o teu mundo! Isso se chama mundo!”.
Há aqui um apelo para um mundo humano, para além da moralidade divina e, por vezes, até
Essa acepção interessa-nos, pois, como já vimos, os humanos “são” apenas em mundos,
em mundos que são seus, mundos imanentes, esse é o caráter prometeico, vivemos em culturas,
o que nos torna em alguma medida inatural, algo que perpassa a nossa natureza epimeteica.
Esse mundo que é nosso e no qual vivemos – melhor, no qual somos - tem algo de desmedida,
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de hybris, de altivez em relação ao restante da natureza. O humano em seu mundo é orgulhoso,
pois em seu mundo é senhor de si, em seu mundo Zeus não reina. Ao criar os humanos e dar-
A Prometeu que tudo sabe, resta apenas reconhecer. Prometeu que sabe da derrocada de
Zeus, mas anseia pelo momento do reconhecimento da sua queda, do momento certo (kairós)
onde os tormentos que sofre recairão sobre o orgulhoso Zeus para denunciar seu orgulho vazio,
pois seu orgulho pelo cárcere de Prometeu é também a causa de sua queda. A Zeus cabe o
reconhecimento de que não está acima das moiras, o reconhecimento do seu destino, não mera
aceitação. Ao saber da fatalidade do seu destronamento e dos meios oferecidos por Prometeu
para evitá-lo, Zeus deveria — caso quisesse evitar sua queda — reconhecer a aliança firmada
com o Titã, desde a Titanomaquia, e a possibilidade de evitar seu destronamento, com a valiosa
ajuda da clarividência de Prometeu. Portanto, a Zeus não cabia mera aceitação determinista do
seu destino, cabia agir para superá-lo e, ao renegar seu destino e punir cruelmente Prometeu,
O orgulho de Zeus é vazio porque é soberbo. É soberbo porque seu orgulho é vaidoso e
age para provocar uma reação nos outros deuses, para demonstrar sua força após entronar-se.
Seu orgulho é vazio pois sua finalidade são os outros. Ou seja, não é orgulho, é soberba, vaidade.
Ao não reconhecer a vaidade presente no castigo contra seu aliado, na desmedida de seu senso
de justiça, Zeus age contra o que sabe de antemão, o ocaso de seu reinado, seu destronamento
por um filho seu. Prometeu entrega-se ao castigo que sabia de antemão, pois sabe também que
sua punição é prenúncio da queda de Zeus. Mesmo acorrentado nos rochedos — dilacerado
diariamente pela águia — pode consolar-se: “assim mostrarei aos orgulhosos quão vazio é seu
Renegar o destino é, assim como em Édipo, uma forma de aceitá-lo, fazê-lo cumprir, tal
como uma teia de aranha onde, quanto mais luta-se, mais enrosca-se. Reconhecer o destino que
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sabe de antemão depende do esforço em avaliar as ações presentes visando esse saber futuro.
Desse modo, o destino, a fatalidade, seria uma espécie de meta, um télos anteriormente dado,
uma destinação que não interfere no traçar do caminho. Afinal, se vamos chegar em nosso
destino, se há a fatalidade de uma destinação certa, ao menos podemos escolher nossos cami-
nhos, reconhecer o modo mais digno de percorrê-lo, estar presente no caminho e não na desti-
nação. Prometeu sabe seu destino, mas escolhe percorrer seu caminho de modo digno, a des-
peito dos pedidos de seus aliados para que não seja orgulhoso. Assim, responde a Hermes:
PROMETEU: Que discurso arrogante e soberbo! E como fica bem ao ministro dos
deuses! Novos senhores de um novo império, vós acreditais habitar palácios inacessí-
veis às desgraças... Pois bem! Por acaso não vi eu caírem dois tiranos? Verei a queda
do terceiro: será a mais rápida e a mais vergonhosa. Pensas porventura que me aco-
varde, e que me submeta a esses novos deuses? Longe disto estou, Hermes! Podes ir-
te embora! Volta sem tardança ao lugar de onde vieste: nada mais saberás por mim.
PROMETEU: Sabe que eu não consentiria em trocar minha miséria por tua escravidão.
Prefiro, sim! prefiro jazer acorrentado a este penedo, a ser o mensageiro e confidente
de teu pai. Eis aí como podemos ferir àqueles que nos maltratam (Idem, ibidem).
Como se vê, a via do orgulho e da não subordinação foi sua escolha, seu caminhar, não importa
quais destinos Zeus ou as moiras o reservem, seu caminhar será livre e altivo, mesmo que seu
caminho seja as correntes no rochedo ou abaixo dos seus escombros, pois como afirma ao final
da tragédia de Ésquilo: “faça ele o que fizer!... eu hei de viver!” (Id., ibid.). Vivendo e do seu
modo, reconhecendo seu modo de vida, seu orgulho é mais prudente que a soberba desmedida
Nesse sentido, não há orgulho em se mostrar rico para um pobre, mas é possível sentir
orgulho da sua pobreza diante de um rico. Ser pobre e, mesmo assim, sentir-se vencedor é
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transgredir a condição de inferioridade comumente atribuída aos pobres. Não há orgulho em
agir de acordo com uma convenção amplamente estabelecida. Não faz sentido orgulhar-se do
uso da burca dentro de países onde seu uso é comumente aceito, o orgulho nesses casos só faz
sentido pela comparação com outros países. No entanto é possível orgulhar-se da transgressão
do uso da burca ao vestir-se de modo diverso da maioria das pessoas de um determinado país,
como é possível também orgulhar-se do uso da burca em um contexto em que as maiorias das
mulheres no mundo não a usam e em determinado país se usa. O orgulho depende deste caráter
transgressor para efetivar-se, no sentido de ser diferente da ordem “natural” das coisas.
orgulho, portanto, não é um afeto meramente identitário, depende da comparação com uma
alteridade. Não há orgulho no que se é tão somente, mas na relação entre o que se é e como as
Afirmará Nietzsche (FW: 275): “(...) qual o emblema da liberdade alcançada? — Não
mais envergonhar-se de si mesmo”. A vergonha é uma forma velada de proibição, mais sútil do
que as normas. Assim apela o coro para Prometeu: “Zeus quer que abandones esse orgulho e
adotes uma decisão sensata, ó Prometeu. O que ele diz, afigura-se-nos razoável... Crê! Para o
sábio é uma vergonha perseverar no erro cometido” (ÉSQULO, 2005). Seu poder coibitivo não
depende da ação de uma vigilância externa, o próprio indivíduo é seu algoz. Onde a vergonha
atua a proibição legal não é necessária. O adversário envergonhado é sempre mais fraco. O
somos, temos orgulho próprio. A vaidade é a valorização da imagem que projetamos aos demais.
fingimos que não estamos fingindo. A tentativa de simular uma vaidade como orgulho. Quando
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criamos uma imagem acima do que somos e simulamos um orgulho de algo que não somos. O
orgulhoso, para não ser presunçoso, precisa do autoconhecimento para saber se o seu orgulho
se baseia em méritos próprios, ou se é tão somente uma projeção do que queria ser. O orgulhoso,
para não ser soberbo, precisa do reconhecimento dos seus méritos, do seu valor, isto é dado pela
grandeza da meta a qual se coloca. Zeus ao ter como meta apenas a manutenção do seu poder,
ignorando os presságios de Prometeu, o destino e a justiça das moiras, torna-se vaidoso, teimoso,
não orgulhoso, quer conservar-se, isto é, estagnar-se em seu trono. Ao fim, será destronado por
sua própria vaidade, travestida de orgulho e senso de justiça. Não há mérito em seu orgulho.
partir de Humano, Demasiado Humano. Embora não seja nomeado diretamente, no aforismo
34 dessa obra encontramos a questão central para a figura do Reconhecente a partir da relação
entre verdade, conhecimento e vida, iniciando-se com a seguinte pergunta: “Para tranquilizar.
— Mas nossa filosofia não se torna assim uma tragédia? A verdade não se torna hostil à vida,
ao que é melhor?” (NIETZSCHE, MA, 34), seguida por outro questionamento: “(...) é possível
perguntar: se os humanos são constituídos a partir dos mundos que os transpassam, mundos
cuja essência simbólica é a ilusão, o autoengano, a dissimulação, como ser consciente disso e,
mas como se arrumarão esses motivos com o senso da verdade?” (Id., ibid.: 107). A chave para
humano e, assim, de reinar absoluto sobre o próprio conhecimento, montar em seu dorso, guiá-
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lo de acordo com sua vontade, inventando seu próprio prazer e sua própria verdade, sendo uma
moralidade. Desse modo, os eventos humanos e naturais passam a ser equivalentes, já que em
relação aos eventos naturais não cabe culpa ou mérito, já que o devir é inocente, amoral, alheio
trágico que permite este pairar livre e destemido sobre as avaliações humanas. Não se trata de
um retorno à animalidade perdida, mas certa sabedoria inocente que aceita o caráter transitório
Não é à toa que o primeiro uso do termo “der Erkennende”, em uma obra publicada,
inocência”, onde afirma que: “A total irresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser é a
gota mais amarga que o Reconhecente [der Erkennende] tem que engolir” (Id., ibid.). Assim,
“(...) tal como ele se coloca diante das plantas, deve se colocar diante dos atos humanos e de
seus próprios atos” (Id., ibid.). Ou seja, “(...) neles pode admirar a força, a beleza, a plenitude,
mas não lhes pode achar nenhum mérito (...)”, já que “(...) o processo químico e a luta dos
elementos (...) possuem tanto mérito quanto os embates psíquicos e as crises em que somos
arrastados para lá e para cá por motivos diversos, até enfim nos decidirmos pelo mais forte”
(Id., ibid.). Bem como a umidade não possui nenhum mérito pela chuva, tampouco o calor solar
pelo aumento da umidade, as hierarquizações dos impulsos que levam a determinadas ações
não possuem nenhum mérito essencial, nem tampouco finalidade transcendente ou resultam
exclusivamente de um processo histórico. Esse seria o fundamento de uma moral imanente, isto
é, aquela que não atribui uma significação transcendente aos atos morais humanos, tampouco
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mérito transcendente para além de um encadeamento conjuntural, uma casualidade “natural”.
Natural aqui no sentido de imanência, não transcendente. Por essa razão, Nietzsche afirmará,
[der Erkennende] anda entre os homens como se estivesse entre animais” (Id., ASZ, 2, 3), não
no sentido de sentir-se superior aos demais humanos, mas, antes, no sentido de naturalizar as
suas ações, tal como ele se coloca diante das plantas, como vimos nesse aforismo 107.
de gênio associado ao Reconhecente com o “gênio sabido” [Der wissende Genius]. O gênio
reconhecedor “(...) tem mais prazer em criar do que o restante dos homens (...)” (Id., MA, 107),
já que “(...) no mesmo indivíduo se fundem o gênio de criar e de conhecer e o gênio moral.”
(Id., ibidem) e por isso sua atividade e prazer no conhecimento se volta para o presente, para os
humanos atuais, o que por vezes causa sofrimento pois “(...) ele não tem o direito de obrigar os
homens ao prazer. Seu pífaro soa, mas ninguém quer dançar” (Id., ibid.). Já “ (...) o gênio do
saber, como Kepler e Spinoza, em geral não é tão ávido, e não faz tamanho caso de seus sofri-
mentos e privações, na realidade maiores. Ele pode mais seguramente contar com a posteridade
e se despojar do presente” (Id., ibid.). Enquanto o gênio sabedor dirige seu saber à humanidade
nhecedor dedica “(...) os sentimentos extra e supra pessoais, dirigidos a um povo, à humanidade,
a toda uma cultura, à inteira existência sofredora: os quais adquirem seu valor graças à ligação
com conhecimentos particularmente difíceis e abstrusos” (Id., ibid., 157) e, por esse motivo,
não consegue ser indiferente na atualidade, seus sentimentos não podem esperar, pois aquele
que reconhece tem mais urgência em ser entendido do que aquele que sabe. No entanto, seu
conhecimento transgressor e as sensações e sentimentos que adquire dele não são facilmente
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A relação do Reconhecente com as sensações e os sentimentos também está presente no
aforismo 43 de Aurora (1881), onde Nietzsche defende um novo papel para o pensador, como
não mais sendo aquele que concebe abstrações para conduzir, mas sim, para seduzir, assim, faz
uma ligação entre as abstrações conceituais e o “mundo palpável”, aquele onde é possível vi-
venciar, isto é, o mundo dos sentidos, sensações e sentimentos. Por essa razão, o pensador en-
quanto Reconhecedor deve comprometer-se com abstrações conceituais na medida em que elas
possam seduzir nossa existência nos mundos que habitamos. Nietzsche escreve:
sorial, elevar-se à abstração — outrora isso foi realmente visto como elevação: já não
e coisas, jogar com tais seres invisíveis, inaudíveis, intangíveis, foi percebido como
uma vida em outro mundo superior, a partir do fundo desprezo pelo mundo palpável
aos sentidos, sedutor e mau. “Essas abstrações já não seduzem, mas podem nos con-
duzir!” — com isso lançávamo-nos como que para cima. (Id., M, 43)
O conhecimento não pode ser uma meta em si mesmo, assim como o conhecimento por si só
que nos move a reconhecer as coisas que existem, a buscar conhecer o existente. Assim, “(...)
não só os conhecimentos foram descobertos separadamente e aos poucos, mas também os meios
Para o pensador que somente busca o saber como finalidade última em si “(...) parecia
que a operação recém-descoberta ou o estado recém-experimentado não era um meio para todo
reconhecer [Erkennen], mas já conteúdo, meta e soma de tudo o que era digno de reconhecer”
(Id., ibid.). Desse modo, pensador abstrato, desvinculado desse sentido para o conhecimento
como meio de vida, perde o sentido do reconhecimento, pois busca apenas saber, só descobrir
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e, quando experimenta algo novo, o faz apenas conhecer, para acumular mais uma descoberta,
ao invés de converter tudo aquilo que sabe como meio de reconhecer o existente e assim amá-
lo. O amor ao existente passa a ser uma relação abusiva, de domínio, apropriação, ao invés de
Quando amamos algo por intermédio de uma finalidade, não o amamos de fato, mas o
tornamos apenas meio. Quando nos voltamos à existência apenas para conhecê-la, o próprio
existente torna-se um meio e já não conseguimos mais amá-lo enquanto existente em si mesmo,
mas como meio para acumular nossa vontade de conhecer, de criar novas descobertas e abstra-
ções. Assim, deixamos de reconhecer o existente enquanto existente e com isso deixamos de
existe — mas todos esses meios já contaram isoladamente como fins e fins últimos,
esse novo meio como fim último, assim busca-se apenas potencializar o conhecimento, poten-
cializar os meios para torná-lo mais eficaz, como os listados acima, com isso, perde-se o sentido
principal do conhecimento, que não é tornar-se mais potente, mas nos seduzir pelo existente.
mais sedutor, é melhor, uma existência não previsível e com perigos e sofrimentos também o é.
Por esse motivo, “(...) o segredo para colher da vida a maior fecundidade e a maior fruição é:
viver perigosamente!” (Id., FW: 324). O reconhecimento e a abstração não devem nos levar a
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uma vida mais tranquila, a uma busca por segurança e previsibilidade, mas sim, converter-se
Assim, o reconhecimento é entendido como meio necessário para sobreviver aos perigos
e inconstâncias de uma vida que valha a pena. Nesse sentido, devemos fazer como “(...) os
gregos, (que) numa vida exposta a grandes perigos e reviravoltas, buscaram na reflexão e no
mento [Erkennen], e dela nos recuperamos e nos tranquilizamos na vida” (Id., ibid.). A aventura
da existência não deve estar em nossa capacidade de conhecer e reconhecer o conhecido, mas
O que nos leva à singularidade e a uma vida que valha a pena ser vivida não é o conhe-
cimento, mas sim, certo orgulho em nos afirmar perante o existente, certa fé em nós mesmos,
como “(...) o meio de tornar-se o profeta e milagreiro de seu tempo continua hoje o mesmo de
sempre: viver à parte, com poucos, algumas ideias e muita presunção” (Id., ibid., 325). Dife-
a crença de que a humanidade não pode prosperar sem nós, porque evidentemente nós prospe-
ramos sem ela. Tão logo surja esta fé, outros terão fé em nós” (Id., ibid.). Assim, tendo fé em
a intensificação da sua própria vida como valor maior. Como vimos, há algo de sentimento por
uma cultura, pela humanidade, pelos outros, algo de sacrifício com a própria vida em prol da
da intensificação da vida. Como um músico que dedica sua vida à música para que outros pos-
sam ter o mesmo sentimento e prazer que ele tem na música, para torna-la mais intensa. Do
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mesmo modo, o Reconhecente faz do seu corpo um instrumento vivo para que os saberes e a
cultura possam tornarem-se vivas e, assim, possam também viver em outros corpos.
O saber é incorporado no Reconhecente, mas ele reconhece que nem todo conhecimento
está no saber que incorporou, que algo o escapa e, ao tornar-se instrumento dos saberes, incor-
porando-os, torna-se generoso com os demais, pois quanto mais conhece, quando mais incor-
pora, mais vai perdendo a fé em si mesmo, mais vai abrindo mão da sua singularidade para
converter-se em meio para a vitalidade de sua cultura. Sobre isso, Nietzsche toma como exem-
(...) ambos foram orgulhosos o bastante para inscrever esta divisa sobre as suas exis-
tências: vita impendere vero [consagrar a vida à verdade]. E ambos, também, como
devem ter sofrido em seu orgulho, por não conseguirem verum impendere vitae [con-
sagrar a verdade à vida]! — verum [verdade], como cada um deles a entendeu — por
suas vidas terem corrido junto a seu conhecimento, como um baixo caprichoso, que
não quer corresponder à melodia! — Mas o conhecimento estaria mal, se fosse atri-
buído a cada pensador apenas na medida em que assentasse no seu corpo! E os pen-
sadores estariam mal, se a sua vaidade fosse tão grande que eles tolerassem apenas
isso! Justamente aí se acha a mais bela virtude do grande pensador: a generosidade de,
muitas vezes com sublime escárnio e sorriso — fazer o sacrifício de si mesmo e sua
seu corpo elemento de incorporação dos saberes, como o místico que abre mão da sua vida para
incorporar espíritos, curar doentes, psicografar cartas e com o tempo torna-se cada vez menos
indivíduo e cada vez mais instrumento incorporador. No caso do Reconhecente, que não precisa
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de centros de cura e multidões em seu entorno, o sacrifício é silencioso, solitário e muitas vezes
Mais tarde, na Gaia ciência, Nietzsche aprofundará melhor essas questões. De fato, a
Gaia Ciência é a obra onde o Erkennende será mais citado. O próprio título já demonstra uma
relação com o saber, leve, alegre e apaixonante, que, como vimos, é característica fundamental
do Reconhecente e já estava esboçado nas reflexões sobre Demócrito, conhecido como o filó-
sofo que ri. Nessa obra Nietzsche se colocará como Reconhecente em primeira pessoa quando
afirma “(...) também eu, o ‘Reconhecente’ [Erkennende], danço a minha dança, que o Reco-
nhecente é um recurso para prolongar a dança terrestre e, assim, está entre os mestres-de-ceri-
mônia da existência (...)” (Id., FW, 54). O Reconhecente como “mestre-de-cerimônia da exis-
tência” é aquele que apresenta as coisas dignas de serem conhecidas conforme a música — isto
é, as demandas de seu tempo. Assim como a dança, seus conhecimentos exigem variação, afinal,
estátuas não dançam. “Os mestres-de-cerimônia da existência” são aqueles tipos que criam um
sentido único para o existente, apresentam a tragédia de existir, sem precisar incorrer na tenta-
Sendo os sentidos criados e ilusórios, podemos ter ainda “(...) a consciência de que so-
nho e tenho de prosseguir sonhando para não sucumbir” (Id., ibid.). Desse modo, “(...) a sublime
mente com isso, a duração do sonho” (Id., ibid.). Criar uma crença é atribuir um sentido e, mais
importante do que guiar nossas ações através de um saber ético universal, a priori, é criar uma
crença que dê um sentido ao agir ético coletivo, um sonho que se possa sonhar junto. Nietzsche
sustenta que
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Por mais importante que seja saber [wissen] os motivos que realmente guiaram a con-
duta humana até hoje, talvez a crença neste ou naquele motivo, isto é, o que a huma-
nidade presumiu e imaginou ser o autêntico motor do seu agir até agora, seja algo
a reconhecer para viver melhor, mas a viver para reconhecer mais, reconhecer melhor, acaba-
mos nos tornando meras máquinas reconhecedoras, como computadores de silício programados
para reconhecer. Como se um deus oculto, uma consciência transcendental, nos usasse como
meio para processar e reconhecer. Como se a intuição que guia o reconhecimento não fosse
nossa. Como se criássemos um pesadelo coletivo por meio do qual abdicamos de nossa vontade
para tornamos instrumento de uma intuição transcendental, universal, alheia às nossas vivências.
Como se fossemos máquinas que reconhecem apenas para abastecer o banco de dados de uma
um outro da vida e dos mundos e se refugiam lá, utilizando sua consciência e seu reconheci-
nunca houve sérias lutas; a negação e a dúvida eram consideradas loucura. Os pensa-
dores de exceção, tais como os eleatas, que apesar de tudo estabeleceram e se ativeram
aos opostos dos erros naturais, acreditavam ser possível também viver o que era
universal, como sendo Um e Tudo ao mesmo tempo, como uma faculdade sua para
aquele conhecimento invertido; eles criam que o seu conhecimento era igualmente o
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princípio da vida. Para poder afirmar tudo isso, no entanto, eles tiveram de se enganar
em função desse reconhecimento. No entanto, a verdade que eles se atribuem não pode ser
incorporada, uma vez que o corpo é palco dos impulsos, e, assim, está sempre mudando.
Como não conseguem vincular suas abstrações, sua intuição imutável em um corpo que
muda, passa a negar o corpo, a buscar uma verdade desincorporada, atribuindo ao corpo um
valor negativo, pois não reconhecem no corpo aquilo que sabe, pois sua verdade imutável não
cabe em um corpo que deseja, que se apaixona, que sente, pois tudo isso gera movimento. Ao
invés de julgar essa verdade, essa intuição imutável, como um erro, uma loucura, um engano,
atribui isso ao corpo, refugiando-se em uma alma transcendental. Desse modo, Nietzsche coloca
a questão: “(...) até que ponto a verdade pode ser incorporada? – eis a questão, eis o experimento”
O grau de valor de uma verdade, sua veracidade, enquanto sonho coletivo, uma crença,
um sentido comum, é a sua capacidade de ser incorporada — o que não é o caso das verdades
ainda, encarná-los, é mais perigoso, mais arriscado, por vezes mais cruel consigo mesmo. No
de justificar a existência, ter uma vida que valha a pena, digna de ser vivida novamente. Assim,
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Não, a vida não me desiludiu! A cada ano que passa eu a sinto mais verdadeira, mais
desejável e misteriosa — desde aquele dia em que veio a mim o grande libertador, o
pensamento de que a vida poderia ser uma experiência de quem busca conhecer um
uma fatalidade, uma trapaça! – E o conhecimento mesmo: para outros pode ser outra
coisa, um leito de repouso, por exemplo, ou a via para esse leito, ou uma distração, ou
um ócio — para mim ele é um mundo de perigos e vitórias, no qual também os senti-
mentos heroicos têm seus locais de dança e de jogos. “A vida como meio de conheci-
mento” – com este princípio no coração pode-se não apenas viver valentemente, mas
até viver e rir alegremente! E quem saberá rir e viver bem, se não entender primeira-
O que Nietzsche vislumbra aqui é uma ação que não se restringe ao embate de ideias.
Ele busca uma ação na qual os mundos instituídos possam ser incorporados e, uma vez tornados
dos corpos, nos espaços de convívio, no corpo acadêmico, na comunidade científica, nas mídias,
Assim, quando a epistemologia alteritária se torna política alteritária, o mundo das ideias
e das coisas, do futuro idealizado e da vida presente, podem se tornar corpos “(...) interiormente
inclinados a buscar, em todas as coisas, o que nelas deve ser superado.” (Id., ibid.) — como diz
o próprio Nietzsche.
devem colocar seus corpos nesse embate. Não para sacrificá-los em nome das ideias, mas para
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potencializar o corpo e a vida e desdobrarem novos meios de superação da condição humana
se contentar de viver ocultos nas florestas, como cervos amedrontados! Enfim o co-
nhecimento estenderá a mão para o que lhe é devido; — ele quererá dominar e possuir,
animal social, nossas vivências são compartilhadas — vivemos sempre convivendo. Até mesmo
O que Nietzsche sugere, nessa passagem, é que, enquanto minoria com coragem para
incorporar novas formas de existir, os Reconhecentes são salteadores. Seu modo de viver, ou
melhor, de conviver, é um saque ao instituído, às abstrações que já não são mais corpos.
Na vivência cultural, o Reconhecente conquista novos corpos para suas criações. São os
seus experimentos existenciais. Nesse sentido, a cultura em Nietzsche é uma unidade estilística
de um povo. E a unidade na forma de existir de um povo só pode ser alcançada quando reflete
suas vivências, pois ninguém precisa ser educado, ou civilizado, ou versado em conceituações
Quando o Reconhecente sonha um sonho que possa ser sonhado junto — e o sonho é
amplamente incorporado — ele sai da floresta como “cervos amedrontados” e passa a dominar,
replicando sua forma de existir. Na cultura, o Reconhecente faz a grande política do sonho, da
disputa por imaginários. Mas, sua dominação é também libertação quando devolve aos corpos
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abstrações que possam reconhecer, mundos e manifestações culturais que emanam do corpo em
convívio.
compartilhada, o Reconhecente também é possuído por sua cultura. Ele possui, mas também é
sua convivência, o Reconhecente é aquele que prenuncia “(...) a época em que levará heroísmo
para o conhecimento e travará guerras em nome dos pensamentos e das consequências deles”
(Id., ibid.). Ou seja, o embate não é apenas cultural e teórico — não está só no campo das
conceituações abstratas.
Quando as ideias são incorporadas, o embate é, antes, material, isto é, dá-se no âmbito
das vivências, da realidade instituída. Somente quando vence essa materialidade ôntica da rea-
lidade instituída, no atrito do convívio, o conhecimento pode ser valorizado já que, agora, pode
ser reconhecido.
Nietzsche chega ainda a propor uma “arquitetura dos Reconhecentes” (cf. Id., ibid.: 280)
para que as cidades possam ser projetadas para abrigar novas formas de existir — para que a
O que falta acima de tudo em nossas cidades: tranquilos e amplos, espaçosos lugares
para reflexão, lugares com longas e altas galerias para o tempo ruim ou demasiado
claro, aonde não chegue os barulhos dos carros e pregoeiros, e onde um refinado de-
coro proibisse até a um padre a reza em voz alta: construções e passeios que, no con-
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Desse modo, diz o Reconhecente: “(....) queremos ver nós mesmos traduzidos em pedra e planta,
queremos passear em nós mesmos, ao andar por essas galerias e jardins” (Id., ibid.). E, assim,
história. Também eles ecoam em si, tornam-se corpo novamente. O Reconhecente não aspira
apenas ser póstumo, mas também reviver em si culturas e indivíduos mortos, dando-lhe mais
uma vez uma vida e, com isso, através do atrito das vivências, reviver em vários outros.
um conhecimento que está no tempo, mas também fora dele, já que as culturas e os indivíduos
reencarnados podem retomar seu espírito em outros corpos. Com isso, não há Idades ou Eras
que se findam e são sucedidas por outras. Antes, elas podem coexistir, retornar, transmutar.
Desse modo, o Reconhecente considera o tempo como cíclico — indo além da noção
linear ou espiralada do tempo — uma vez que considera que todo passado pode se apresentar e
reapresentar em cada instante. O passado é também seu presente e o seu presente é também um
devir. Sendo assim, ele pode “ver com seus próprios olhos” e renascer “em milhares de seres”.
examinar nossas vivências do modo rigoroso como se faz uma experiência científica, hora a
hora, dia a dia! Queremos ser nossos experimentos e nossas cobaias.” (Id., ibid.: 249). Ou seja,
o Reconhecente não quer observar, descobrir, ou buscar os objetos. Ele quer ser o seu próprio
objeto de estudo, quer fazer em si — e não nos fenômenos ou acontecimentos históricos — suas
Nietzsche pontua que para quem “(...) conhece a paixão do Reconhecente (...)” (Id., ibid.)
e quer conhecer “(...) com suas próprias mãos (...)” (Id., ibid.), todas as glórias e os heróis do
passado podem ser vivenciados e todas as teorias podem ser encarnadas. Para Nietzsche, o
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reconhecimento e a experiência são aquilo que mais se valoriza no conhecimento. Assim, ele
Sua relação com o conhecimento se dá de modo muito mais profundo e intenso do que
ofício, desconhecem ou ignoram a experiência daquele que vivencia o conhecimento, que traz
consigo a paixão de quem quer conhecer, uma vez que, “(...) os que são lentos no conhecimento
acham que a lentidão é própria do conhecimento (...)” (Id., ibid.: 231) e, assim, encaram toda a
experiência ou vivência como algo alheio a eles, pois reconhecimento e experiência mostram
Com isso, elevando a atividade do conhecimento para além das noções de verdade ou
mesmo de transcendência, isto é, fazendo dela uma finalidade, o Reconhecente traz a essa ati-
vidade do conhecimento tudo o que era considerado alheio a ele: ação, paixão e vida.
Assim, o Reconhecente não se converte em um agente que empreende uma busca pelo
conhecimento para conseguir um tipo de crescimento pessoal, já que o “eu” que ele abriga é
também cultural — ou ainda, como diz Nietzsche (ibid.: 249), “(...) mediante muitos indivíduos,
gostaria de ver com seus próprios olhos e agarrar com suas próprias mãos (...)”. Nietzsche segue
dizendo:
O suspiro do Reconhecente. — “Oh, minha avidez! Nesta alma não existe abnegação
— mas sim um Eu que tudo ambiciona, que mediante muitos indivíduos gostaria de
ver com seus próprios olhos e agarrar com suas próprias mãos — um Eu que também
recupera todo o passado, que nada quer perder do que lhe poderia pertencer! Oh, essa
chama a minha avidez! Oh, que eu ainda renascesse em milhares de seres!” — Quem
não conhece por experiência este suspiro, também não conhece a paixão do Reconhe-
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Sendo o conhecimento o mais potente dos afetos e, como já vimos, sendo o reconhecimento
cimento quando esse reconhecimento intuitivo está atrelado não a um Eu pessoal, mas a um
“Eu” coletivo.
A ânsia por potencializar o conhecimento como meio vital leva o Reconhecente a ser
através de muitos seres e, assim adquirir uma existência coletiva. Não como mais uma ovelha
no rebanho, ou servo de um povo, mas como o primeiro modelo de um modo de existir que um
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3 Reconhecimento, Vivência e Cultura em Nietzsche
Como nem todo tipo de conhecimento gera ganho de autonomia individual e capacidade
duas instâncias: saber (kennen) e reconhecer (erkennen). Essa necessidade torna-se imperativa
diante do nosso objeto de estudo, qual seja, a figuração do Reconhecente (Erkennende) na obra
da pesquisa acadêmica torna-se imperiosa sobretudo por questões de tradução. Por exemplo,
trechos na obra nietzschiana onde ele utiliza a expressão “der erkennende Mensch” ou ainda
“Mann der Erkenntniss” e “Der Mensch der Erkenntniss” — e, possivelmente, esses usos com
sentidos similares ao termo “der Erkennende” motivaram essas traduções. Porém, reiteramos a
tradução dos termos com a palavra “homem”, diante da demanda nietzschiana em que o filósofo
do futuro, o Erkennende, seja o percursor do além-homem. Além disso, nas traduções, os termos
conhecimento. Nossa pesquisa visa contribuir na distinção desses termos para futuras traduções
detrimento do mero saber ou conhecer. Por isso, tomamos a via de nomear o filósofo enquanto
Reconhecente (Erkennende) — algo que julgamos não ter merecido a devida atenção dentro da
Reconhecente e sua relação com a vivência cultural e, por fim, a caracterização última da figura
75
3.1 O Reconhecente e a Vivência Cultural
A distinção entre apreensão, saber e reconhecer remonta aos termos kennen (saber como
sintético digamos que o saber é mais indutivo, empírico, analítico, “científico”, isto é, pertinente
como wissen seria um “saber-como”. Por fim, o reconhecer (erkennen) é sempre “reconhecer
novas possibilidades existenciais. Por isso, defendemos que Nietzsche nomeia o “filósofo ideal”
como Reconhecente (Erkennende). Seu principal atributo não é mais a busca do conhecimento
como saber-que ou saber-como, mas, sobretudo, uma busca por reconhecer naquilo já sabido
um valor que esteja associado à potencialização da vida, dos mundos, de todo o existente.
O Sabido enquanto filisteu do conhecimento enfeita-se com o saber. Sua cauda de saber
decorativo pesa, impede-o de correr mais rápido, priva-o de voar. No conhecimento, o Sabido
midiática, capitalização de palestras e cursos, cargos políticos, uma vaidosa fantasia erudita, a
exploração da fé alheia e o acúmulo de capital. Enfim, ele não incorpora aquilo que conhece.
Apenas veste-se com os saberes da estação ou do que é conveniente, quando não o utiliza como
casco de tartaruga para esconder-se dentro, na busca por algum conforto ou comodidade. Seu
conhecimento é acessório, é outro em relação a si. Por isso, seu guarda-roupa é diversificado e
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Já o Reconhecente incorpora aquilo que sabe em sua pele camaleônica e dissimulada.
Torna vivo o saber! Enquanto o pavão se mostra e a tartaruga se esconde, o camaleão dissimula.
da presa sem sermos reconhecidos e, assim, potencializamos nossa ação perante eles.
O conhecimento, sendo o mais potente dos afetos, torna-se menos potente ao converter-
que lhe é própria; assim como perde sua potência quando torna-se decorativo, já que a sua
Na ciência, impera o olhar conjectural, observa-se o entorno não para criar, mas para
prever. Conjecturas desinteressadas não nos interessam. A filosofia deve estar fora da ciência e
dos altares dos saberes porque deve avaliar, estabelecer uma meta, afirmar uma vontade. E
O Sabido apenas sabe, o Reconhecente quer! Embora seja importante assinalar que a
aqui à ciência que sabe que vivemos em uma galáxia, que sabe como ela se formou, mas que
não necessariamente reconhece nesse conhecimento algum valor maior do que mera apreensão
O apreensivo diria de modo prudente se lhe perguntassem sobre o que sabe acerca do
valor da existência: sei-que nada sei. Já o Sabido interpelaria de modo vaidoso: sei-como saber.
Por fim, o Reconhecente diria orgulhoso: reconheço algo naquilo que sei.
artistas, sacerdotes e filósofos. Mas, eles se relacionam de modo diverso com os saberes. Um
não avalia o saber, outro estabelece critérios de avaliação e outro avalia o saber. Apenas esse
último utiliza o saber como meio para avaliar, ao invés de colocar o saber como critério máximo
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de toda avaliação. Desse modo, por buscarem o conhecimento, são todos conhecedores, pois
que possível, a presunção ideológica do comum que diria sem refletir: sei que sei.
[Vereinzelung des Erkennens], através da divisão das ciências, é que reconhecimento [Erkennen]
e cultura [Kultur] podem permanecer alheios um ao outro” (NIETZSCHE, NF, 1872, 19, 172).
Quando os saberes estão desvinculados de um sentido cultural maior, mundos comuns, quando
não podem ser reconhecidos numa realidade sociocultural, tornam-se saberes desencarnados,
O filósofo seria, dentre aqueles que se dedicam à atividade do conhecimento, aquele que
encarna os saberes, reconhecendo-os em sua realidade cultural e nos mundos espectrais que o
Ele abarca o saber [Wissen] e levanta a questão do valor do conhecimento” (Id., ibid.).
dentre os problemas culturais um destaca-se, qual seja: a relação entre conhecimento e vida.
cultural, isto é: dos mundos que formam a realidade? Como conhecer a realidade reconhecendo
os mundos que habitamos? . Como articular uma comunidade científica internacional com uma
realidade local? Nietzsche diz, “este é um problema cultural: conhecimento e vida (Id., ibid.).
Problema esse a qual deve ocupar-se o filósofo, aqui entendido como aquele que reconhece e
sentem. Apenas quem reconhece e sente pode avaliar o conhecimento. O caráter reflexivo do
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Além disso, enquanto saberes podem ser armazenados e universalizados, reconhecimen-
tos dependem de um vivente lançado no devir do seu mundo. Nós podemos saber, mas apenas
alguém que vive pode reconhecer. No entanto, para alguém poder reconhecer é preciso antes
saber. Por isso, o reconhecimento possui um elemento genérico que é o saber, mas também algo
de singular que é o modo como dá unidade aos saberes genéricos através da singularidade de
um vivente, um indivíduo.
outra perspectiva, reconhecer o outro, normas sociais e condutas morais, até reconhecimentos
que ocorrem no mundo interno, nas sensações, nos pensamentos e, sobretudo, o reconhecimento
fábula, ele começa afirmando que: “(...) em algum remoto rincão do universo (…) houve uma
vez uma estrela na qual animais inteligentes inventaram o reconhecimento [Erkennen]” (Id.,
WL, 1). Ele acrescenta, em seguida, que “(...) não há nada tão desprezível e insignificante na
natureza que, com um pequeno sopro daquela força do reconhecimento [Kraft des Erkennens],
não inche imediatamente como um saco” (Id., ibid.). O reconhecimento dá sentido aos entes,
inflando-os. A mesma praia pode ser reconhecida como recurso turístico, um meio de transporte,
um local de trabalho, convivência, estudo ou lazer. Ao inflar o mundo com os sentidos que ele
mesmo atribui e reconhece, o ente humano se envaidece de sua posição na natureza, como se o
79
Desse modo, “(...) essa presunção associada ao reconhecer [Erkennen] e sentir, lança
uma névoa cegante sobre os olhos e os sentidos dos homens, engana-os quanto ao valor da
existência.” (Id., ibid.). Nietzsche adverte aqui para o perigo em avaliar o reconhecimento des-
vinculado da vida, “(...) ao trazer consigo a mais lisonjeira avaliação pelo próprio valor do
reconhecimento” (Id., ibid.), como se a capacidade de reconhecimento fosse a única meta dos
entes humanos.
O conhecimento que reconhece tende a ter seu valor pelo próprio ato de reconhecer, sem
vincular um valor ao que é reconhecido, busca apenas reconhecer para conhecer mais, sem uma
finalidade que o guie. Dessa forma, desvincula-se o reconhecimento da vida — o que torna o
que abandonar o solo em que vive o homem e ousar aventurar-se no desconhecido” (Id., NF
1875, 6, 48), e, em contrapartida, “(...) o impulso que quer a vida deve sempre tentar o caminho
para um lugar mais ou menos seguro, em que possa se apoiar” (Id., ibid.). No entanto, essa luta
entre o impulso da vida e do reconhecimento pode fortalecer ambos, já que “(...) essa luta entre
a vida e o reconhecimento será tanto maior, quanto mais singular for a luta sob o mesmo jugo,
tornando mais poderoso os dois impulsos” (Id., ibid.). Isso acontece quando a potência de vida
encontra guarida no desejo de aventurar-se e tornar-se sempre outro, estranho ao que já foi, “(...)
isto é, quanto mais plena e florescente for a vida, e, por outro lado, quanto mais insaciável for
o reconhecimento, mais cobiçosamente eles se lançam em toda sorte de aventuras” (Id., ibid.).
Quando passamos a reconhecer o estranho, o inabitual, o alheio, temos uma potência de vida,
80
ético-política, da distinção entre conhecimento e reconhecimento, assim como da valorização
o Reconhecente encarna saberes não tradicionais, que busca um novo meio para filosofar que
não coloque a razão e a busca do verdadeiro como valor epistemológico supremo; assim tam-
bém aproxima-se de pessoas e culturas singulares, não hegemônicas, pois não encara a cultura
como uma construção racional tampouco acredita em uma estrutura cultural a priori, verdadeira.
Dessa forma, não apenas procura encarnar personagens e saberes mortos, mas também busca
entre os viventes que interage novas formas de pensar, agir, sentir, viver. Também busca ideias
e pensamentos em corpos que interage, não apenas em livros que lê. Assim, o reconhecimento
da alteridade, na história e nas vivências atuais, nos liberta das amarras do conhecido, do con-
do filósofo na cultura (Kultur) e na formação cultural (Bildung). Assim como a relação entre
filosofia, ciência, arte, povo e cultura. Nesses aforismos, podemos encontrar “O filósofo como
médico da cultura” (NIETZSCHE, NF: 1872, 23, 15) — onde Nietzsche planejou reunir essas
passagens em uma publicação com esse título. Ali, ele quer “(...) saber (wissen) como a filosofia,
que não é inimiga, comporta-se em relação a uma cultura (Kultur) existente ou emergente: aqui
O Reconhecente como médico da cultura busca estabelecer uma relação entre filosofia,
cultura e saúde. Procura-se, assim, em outras culturas, outras vivências e outros períodos
81
históricos — disposições afirmativas perante a vida e os instintos. E, desse modo, restaurar o
caráter autêntico da cultura, vinculado às vivências atuais, pois uma cultura que busca unidade
em teorizações eruditas e tradições históricas é uma cultura decorativa. Quando uma cultura
instituída, um sonho compartilhado, toma como ideal mundos que não podem ser encarnados,
Tal como o câncer que se recusa a morrer e passa a existir apenas para replicar-se, pre-
judicando a saúde do corpo, são as tradições culturais e filosóficas no corpo social que, uma
vez desvinculada das vivências culturais, já tendo cumprido seu papel vital, recusa-se a romper
sua membrana e morrer como as demais células, cujos elementos uma vez dissolvidos no corpo
deveriam formar novas células. Tanto o câncer quanto a abstração simbólica desencarnada que
busca apenas replicar-se atentam contra o ciclo da vida e sua dinâmica alteritária, ao tentarem
manter uma estrutura ineficaz e não adaptada às necessidades atuais apenas pela necessidade
corpos e as culturas.
Uma cultura baseada em abstrações racionais nos separa dos mundos que nos transpas-
sam no atrito social, pois reconhecer tais mundo exige uma vivência intuitiva. A cultura não
pode ser construída por conceitos, por isso a filosofia não pode parir culturas. Diante disso, qual
papel cabe ao filósofo na cultura e educação? O mesmo que o do artista, o de criador de novas
perspectivas, com a diferença que sua matéria-prima é a articulação dos saberes e o olhar gene-
alógico.
Todavia, Nietzsche vai além de uma mera crítica cultural. Em algumas passagens, ele
se refere a uma “essência da cultura” ou, mais de uma vez, a uma “metafísica da cultura”. O
que torna as reflexões de Nietzsche sobre o tema mais do que uma mera crítica cultural é a sua
preocupação por um “futuro da cultura”, a necessidade de sua restauração, seu vigor. Mais do
que criticar, ele aponta um horizonte possível, inspirado por valores culturais associados aos
82
gregos. Buscando através da história cultural grega um antídoto contra a cultura moderna, mais
especificamente a cultura de massa e, com isso, poder vislumbrar um futuro para a cultura que
A cultura grega, para Nietzsche, tinha como finalidade justificar a falta de sentido da
existência através da produção de grandes individualidades. Assim, havia uma harmonia entre
uma vontade pessoal que buscava ser reconhecida e valorizada tornando-se singular e uma von-
tade coletiva que era constantemente ressignificada através da perspectiva de indivíduos singu-
vida exclusivamente a ele, mas fazendo dele um meio para a intensificação de sua própria vida.
Nesse sentido a busca pelo conhecimento serve para “levar para casa algo”. Esse algo é, na
verdade, a potencialização das suas vivências. Tendo agido em si, usando o conhecimento para
saúde, o Reconhecente está apto a agir como médico da cultura, receitando aos demais o que
de uma nova formação (Bildung) que possibilite novas naturezas, isto é, novas formas de existir.
instintos que os consolidam. Seu bisturi é o método genealógico. O método genealógico permite
como o saber atende demandas históricas, interesses específicos, disposições morais. No estudo
dos saberes, o Reconhecente busca, com o método genealógico, demonstrar como os saberes e
valores são frutos da disputa entre instintos e como foram sendo consolidados na cultura para
privilegiar disposições morais específicas ao longo da história, assim, tirando deles o seu caráter
essencialista e natural. Valores e saberes são construções simbólicas que foram sendo afirmadas
83
ou negadas ao longo do processo histórico; sendo assim, se as demandas que as consolidaram
ao longo do tempo mudarem, elas devem ser revogadas e novos valores e saberes construídos
para atenderem uma nova demanda. Por isso, o Reconhecente não é o teórico da cultura, mas o
seu médico, pois suas prescrições são válidas em determinados contextos, além de serem frutos
de demandas particulares.
Eles são saudáveis quando harmonizam os instintos, quando os discursos servem para
único — como o racional — ou quando tentam engessar uma realidade tida como ideal, não
O olhar ideológico tenta, tal qual o olhar da Medusa, petrificar o mundo e eternizar no
tempo uma realidade particular. Seja argumentando que tal realidade tem fundamento natural,
uma origem essencial, seja pela caracterização de uma realidade autônoma em relação aos seus
agentes. E, assim, poderia permanecer a mesma apesar da mudança dos indivíduos. Os discur-
sos são vários, mas a finalidade é a mesma: petrificar o mundo. Os ideólogos e a Medusa sofrem
da mesma maldição: petrificam tudo aquilo que olham ou sobre o qual teorizam — no sentido
invenção humana, não como algo baseado em uma origem. Toda invenção instaura o novo,
revoga o anteriormente estabelecido. Aquele que busca o conhecimento não busca nas coisas
uma origem anteriormente dada, mas uma nova interpretação delas, uma nova criação, ou uma
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perspectiva diferente. Há no ato de conhecer uma relação de dominação, uma relação de poder.
Quem conhece busca se apropriar do conhecido. O que move o sujeito ao conhecimento são
seus instintos. Logo, não há uma identidade no sujeito cognoscente, mas uma constante disputa
de cada verdadeira cultura. Os meios de defesa e cura de uma cultura, a sua relação com o gênio
do povo” (Id., ibid., 1872, 19, 33). Nessa visão, a cultura se materializa em entidade orgânica,
no povo que age pelos impulsos, dando um “(...) controle unitário dos instintos desse povo”
Logo, a cultura possui um caráter vital, define a própria vitalidade orgânica de um povo.
Daí a importância do médico da cultura — que Nietzsche associará nos primeiros escritos à
imagem do “gênio do povo”. O gênio é um médico e maestro que atua na cultura em busca da
plena harmonia dos impulsos. É ele quem cria novas interpretações da realidade e as insere no
âmbito da cultura — uma imagem também associada aos “grandes da história”. Para Nietzsche,
“(...) o gênio tem a força de transformar o mundo com um novo véu de ilusões” (Id., ibid. 1872,
são fundamentais para a vitalidade cultural. Por isso, a “Filosofia não é para o povo (...)”, mas
pode se converter em “(...) ferramenta de uma cultura” (Id., ibid., 1872, 23, 45).
A instrumentalidade da filosofia para uma cultura é seu caráter alterador, por isso ela
“(...) não é a base de uma cultura” (Id., ibid.). Se fosse, seria elemento identitário, fundador.
Assim, a filosofia precisaria estar excluída da cultura para garantir suas possibilidades.
Ao contrário do Sabido que tem uma relação de servidão com o povo e que, em sua
contra “(....) a influência bárbara dos saberes [Wissens]” (Id., ibid., 1872, 19, 51). Ao reconhecer
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o caráter de condição para a afirmação da vida nos saberes, o Reconhecente promove uma “(...)
domesticação dos saberes (...)” (Id., ibid.), já que “o saber absoluto leva ao pessimismo” (Id.,
ibid.), sendo preciso uma intermediação entre os saberes e as vivências que dão um caráter
autêntico à cultura, em detrimento daquilo que Nietzsche nomeia como cultura decorativa, que
não é cultura pois torna-se tão somente um saber sobre a cultura, uma vez que esse saber não é
incorporado na vivência de um povo. Desse modo, afirma: “O que quer o insaciável instinto de
meio de cultura” (Id., ibid., 1872, 19, 64). Não tendo a filosofia como a fundamentação de uma
cultura como finalidade, ela converte-se em um meio de intermediação entre os saberes e sua
incorporação nas vivências culturais. Além disso, ao buscar novas possibilidades existenciais,
novos rearranjos nos impulsos, converte-se em referência para os demais e, assim, age como
O contexto histórico da unificação alemã de 1871 teve uma grande influência no pensa-
mento filosófico alemão, levantando questões fundamentais sobre a relação entre Estado, cul-
tura e sociedade. Nietzsche viu na força e unidade do Estado prussiano fatores que acentuaram
entendida em sua acepção mais ampla, próxima do significado de civilização. Em suas Consi-
na cultura e nas instituições de ensino. Ele argumenta que a cultura nacional promovida pelo
Estado bismarckiano perdeu sua autenticidade, tornando-se uma ferramenta para angariar car-
gos na esfera estatal. Quando o único fator de unidade de uma cultura é a promoção estatal, ou
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a abstração conceitual, ela torna-se decorativa, quando essa unidade é alcançada por intermédio
Compreender esse contexto histórico nos ajuda a pensar o papel da cultura na sociedade
contemporânea e sua relação com o Estado e a formação dos indivíduos. A questão central é a
independentemente de sua utilidade para o poder estatal e econômico e qual o papel da educação
diante disso.
Nietzsche defendeu que a formação alemã deveria ser repensada nos moldes da cultura
pólis grega não era a guia da cultura (Kultur), tampouco emitia diretrizes educacionais ou le-
gislava sobre a formação entendida como Paidéia. Sendo assim, ele criticou as ideias coletivis-
tas que exaltavam os valores gregários e de rebanho, culminando na defesa da lealdade ao Es-
tado e numa crença de supremacia cultural, promovida pelo Estado, que não se refletia nas
A cultura passa então a ter uma relação servil com o Estado e as forças econômicas, com
criativa e transformadora da cultura, buscando uma cultura autêntica e não instrumental, que
não esteja a serviço do poder estatal e econômico, nem se esvazie em eruditismo. Somente
Para Nietzsche “(...) a cultura depende da forma como ‘o grande’ é definido.” (NIETZS-
CHE, NF, 1872, 19, 51) e, enquanto para os gregos a grandeza era encarnada no presente, para
Império, e no otimismo de que um dia ele pudesse ser restaurado. A grandeza residia em um
Reich que existia no passado e numa promessa futura. Ele criticou a cultura alemã por não ter
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conseguido desenvolver o sentimento de união entre as demandas do Estado e da cultura alemã,
pois a cultura que pregava uma Alemanha grande, patrocinada pelo Estado, não era a mesma
que se voltava ao cultivo de grandes personalidades devido à sua formação jornalística e frag-
mesmo, isto é, da sua própria estilística existencial. Sendo assim, conclui: “(...) o alemão não
tem nenhuma cultura porque, em razão de sua educação, não pode absolutamente ter cultura.”
Nietzsche, como médico da cultura, via a valorização da cultura grega como um antídoto
para esse diagnóstico, pois ela tinha como meta a formação do gênio que eleva a cultura para
além da massa, do comum, do institucionalmente útil. Ele propôs que a formação deveria ter
como meta o desenvolvimento de uma estilística existencial, uma unidade de estilo, para que
Assim, ele aproximou ética e estética ao propor uma estilística existencial como meta
para os mundos humanos e as culturas que os abrigam. O ideal de vida plena não seria mais
aquele do virtuoso, ou o santo, tampouco o erudito, mas sim, aquele que singularmente conse-
guiu conceber um estilo próprio e viver uma vida bela. A vida em si não é bela, pois a beleza é
um valor humano, mas isso não significa que a vida não possa ser vivida com beleza.
como fenômeno estético, isto é, como domínio da arte sobre a vida. Assim como a arte, a cultura
também possui um caráter ilusório. Ao contrário do saber que procura desvelar o mundo, a arte
e a cultura procuram velá-lo. Assim, a cultura começa como uma miríade de coisas sendo ve-
ladas. Por meio da cultura os humanos atribuem desejos e significados aos entes tornando a
existência mais sedutora. Nietzsche argumenta que, ao realizar atividades com significados in-
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Do contrário, encarnariam a sabedoria de Sileno para o qual o mais preferível para os
humanos seria “(...) não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor (...) é logo
morrer” (NIETZSCHE, 1992, p. 36). Sendo os humanos entes sociais, sua existência dá-se ape-
nas entre mundos, entre culturas, mantê-los cooperando de forma harmônica é um modo de
mantê-los em existência.
A autossuperação do ente humano depende desse véu do qual fala Nietzsche — “(...)
viver em uma esfera pura e nobre e isolar as irritações mais comuns” (NIETZSCHE, FW, 19,
50), diz ele. Sendo a cultura uma instância intersubjetiva, uma síntese de indivíduos singulares,
ela não possui uma existência em si, desencarnada dos corpos que a sustentam. Antes, possui
Todas as sociedades humanas produzem cultura, mas não a fazem da mesma forma. O
saber sobre a cultura que busca desvelar essas estruturas culturais a priori está condenado, para
Nietzsche, ao fracasso. Assim como a arte é teorizada a partir do seu tempo, a cultura também
o é e assim como não faz sentido atribuir parâmetros estéticos universais, também não faz a
vontade de viver. A vida é esvaziada de ânimo quando encarada como mero acaso, sem uma
finalidade ou origem teológica — assim como quando encaramos o cosmos como algo imerso
no devir e destinado a sucumbir pela entropia. Quando o vivente humano, uma vez dotado de
existência, precisou de antídotos contra o pessimismo advindo dessa falta de sentido. Ele criou,
também criar ilusões coletivas para que essa vida social possa fazer sentido. Sendo esse ente
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humano o único a reconhecer sua finitude, ele precisou de ilusões para que pudesse coordenar
esforços e viver em comunhão com outros entes humanos, mesmo sendo capaz de reconhecer
essas ilusões como tais. Vivendo ele sempre junto, entre outros entes humanos, sua vontade de
viver está atrelada a uma vontade coletiva, pois reconhece que a morte de uma coletividade
pode implicar em sua própria morte. Desse modo, “(...) a vontade ávida sempre encontra um
meio, através de uma ilusão distendida sobre as coisas, de prender à vida as suas criaturas, e de
obrigá-las a prosseguir vivendo.” (Idem, ibidem). Portanto, as ilusões são estratégias de sobre-
— assim como naturezas mais intuitivas e sensíveis — “(...) o fardo e o peso da existência que,
através de estimulantes escolhidos, são enganadas por si mesmas. Desses estimulantes compõe-
se tudo o que chamamos cultura” (Id., ibid.). As ilusões são estimulantes na medida em que nos
estimulam a permanecer vivos e potencializam nossa vontade de viver. Nietzsche diz que “O
saber absoluto leva ao pessimismo” (Id., ibid., 19, 51), ao contrário do que prega o otimismo
teórico socrático ao provocar o desencantamento das ilusões necessárias à vida. Nesse caso,
Nietzsche afirma que, ao longo da história antiga, três estimulantes culturais ajudaram
através do conhecimento (como foi o caso da cultura socrática ou alexandrina); a ilusão de que
podemos embelezar o mundo através da arte (como foi o caso da cultura helênica antes de
Sócrates); e a ilusão de que podemos buscar uma vida eterna (como é o caso da cultura indiana).
presente em nome da promessa de um futuro melhor, seja pregando uma vida eterna depois da
terrena, seja prometendo fazer da vida terrena um paraíso construído pelo saber, como é o caso
90
E agora não vamos ocultar de nós mesmos o que se acha oculto no regaço dessa cultura
socrática! O otimismo que se presume sem limites! Agora é mister não assustar-se, se
O deus ex machina era um recurso estilístico, presente sobretudo nas obras de Eurípedes, onde
o desfecho e o sentido final de uma trama eram dados por um deus que descia ao palco por um
guindaste. Do mesmo modo, a ilusão de que o saber pode corrigir os males da existência nos
leva a viver em função do acúmulo do saber, mesmo que a consequência disso seja a negação
da vida presente, tendo em vista a promessa de que uma cultura universal do saber futuramente
construirá uma existência terrena sem sofrimentos. Como se o saber fosse esse deus ex machina
Assim, o otimismo socrático substituiu a visão trágica do mundo dos gregos, seja através
do otimismo teórico de Sócrates ou do otimismo estético de Eurípedes. Não mais uma ilusão
estética dos mitos e dos pensadores trágicos justificava a existência para os gregos, mas sim, a
ilusão teórica de que o saber pode redimir os males do mundo justificava a existência grega.
Como se o mal fosse fruto da ignorância, ao invés de uma criação moral. Eis, para Nietzsche,
Sendo as ilusões uma necessidade vital, o modo como nos autoiludimos também é. Cada
impulso pede por uma determinada ilusão para potencializar-se. No caso dos gregos, a exaltação
ibid.) levou-os a valorizar as ilusões teóricas que sustentam a “cultura socrática”. O problema
é que a ilusão que essa cultura criou acerca do saber foi um fator desagregador da própria cultura
91
grega, uma vez que o saber, e sua tendência em compartimentar a existência, atentou contra a
unidade da vontade helênica, presente no Período Trágico — e, com isso, o filósofo teórico, ao
contrário do trágico, também atentou contra a vitalidade da sua cultura. Para Nietzsche, “(...) o
Mas agora, desde Platão, ele encontra-se no exílio e conspira contra a pátria” (Id., PZG,
2). Do mesmo modo, a cultura moderna, ao encarnar a cultura como um saber sobre a cultura,
atenta contra a unidade dos impulsos e, consequentemente, torna-se uma cultura enfraquecida,
isto é, decorativa. A unidade cultural deve ser buscada nas vivências culturais, não no saber
seitas e que as seitas por eles fundadas sejam todas instituições de oposição contra a civilização
[Kultur] helênica e contra a unidade de estilo até então existente (...)” (Id., ibid.), a partir disso,
esses filósofos “(...) buscam, à sua maneira, uma redenção — mas só para pessoas individuais
ou, quanto muito, para grupos próximos de amigos e de discípulos (...)”. Sendo o filósofo um
instrumento da sua cultura, seu grau de valor é definido não a partir da descoberta de alguma
verdade, ou a concepção de algum sistema filosófico, mas sim, a partir do modo como consegue
Portanto, em seu período trágico e intempestivo, Nietzsche possui como “(...) objetivo
determinar a teleologia do filósofo em meio à cultura [Kultur].” (Id., ibid.). Sendo o filósofo
ideal o médico de sua cultura, como vimos, ele deve diagnosticar a desarmonia entre os impul-
sos para estimar um prognóstico de uma relação mais saudável entre eles, isto é, para harmo-
nizá-los.
Para tanto, é necessário domar os impulsos, papel que cabe ao filósofo, ao artista ou ao
asceta, a depender do tipo de ilusão escolhida para dominar esses impulsos. A cultura é o
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instrumento pelo qual determinado povo, de modo unitário, domina os seus impulsos através
de ilusões. Desse modo, “(...) a cultura de um povo se manifesta na dominação unitária dos
impulsos deste povo (...)” (Id., NF, 19, 41), quando “(...) o Ágape domina o Eros” e os impulsos
Logo, quanto mais unitária for a cultura de um povo, mais poder terá para arregimentar
a vontade de seus indivíduos em prol de uma mesma meta. O filósofo e o artista seriam, portanto,
Agora, se o filósofo é instrumento da cultura, e essa, por sua vez, é instrumento da von-
tade de um povo, então, nos gregos, essa dominação unitária, para Nietzsche, atingiu o seu ápice.
Havia no pensamento dos filósofos pré-platônicos uma tentativa de traduzir a vontade helênica
e perigos, em uma arte trágica, também era traduzida em ideias e conceitos através desses filó-
sofos. Desse modo, afirma “(...) em todos os impulsos próprios dos gregos aparece uma domi-
nação unitária: podemos denominá-la a vontade helênica” (Id., ibid.). Em última instância, en-
tão, o filósofo é o instrumento da vontade de um povo e o modo como potencializa essa vontade
O filósofo encarna a vontade coletiva para expressá-la em pensamentos e, assim, torná-la cons-
ciente de si. Uma vez consciente de si no imaginário social essa vontade pode ser expressa em
outras manifestações culturais e, assim, tornar-se cada vez mais forte e unitária. O conheci-
[Erkentnisstrieb]. a arte domina o impulso das formas e o êxtase” (Id., ibid.). Por isso, “(...) é
impossível construir, como provado, uma cultura [Kultur] por meio do saber [Wissen]” (Id.,
ibid., 105), ]”, já que o “ (...) impulso do conhecimento [ (...) é anticultural. A filosofia procura
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domesticá-lo; é um meio da cultura” (Id., ibid., 64). Ou seja, a filosofia é um meio — a cultura
é a finalidade.
Para Nietzsche, “(...) este saber sobre a cultura [Bildung] é injetado ou inoculado, como
um saber histórico, no jovem; ou seja, sua cabeça é preenchida com uma quantidade descomu-
nal de conceitos extraídos do conhecimento maximamente mediato das épocas e dos povos do
passado, não da intuição imediata da vida.” (NIETZSCHE, 2003, p. 96). A formação (Bildung)
entendida desse modo é inimiga da cultura (Kultur) entendida como unidade estilística.
ao fornecer um significado à vida. Uma vez que uma rede de significados é tecida, um mundo
comum é erigido, os entes humanos podem reunir forças para a autossuperação, isto é, a expan-
são dos limites da sua vontade de poder. Vontade de poder é vontade de potencialidade, de
poder ser mais. Quando a educação visa formar jovens versados em conhecimentos velhos,
saberes desencarnados e tradições vinculadas a interesses estatais, está privando esses jovens
sua vitalidade e torna-se fraca, decorativa, caótica, sem uma unidade na vontade coletiva.
dade vivida. Em contrapartida, a cultura genuína emerge das vivências culturais e não pode ser
entendida isoladamente. A educação que afasta o ente humano da “intuição imediata” da vida
torna a cultura decorativa e deve ser substituída por uma educação que visa formar humanos
singulares e livres, capazes de criar cultura a partir da vida que vivem. A meta da Bildung deve
mação e que, para ele, o objetivo da educação era a singularização do ente humano. Segundo o
autor, “(...) a formação [como Bildung] deve, acima de tudo, despertar o humano para a vida,
incitá-lo a superar-se" (BLONDEL, 2006, p. 38). Para Blondel, a formação (Bildung) deve ser
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orientada para a autoformação do corpo, já que no corpo reside nossa singularidade. Para ele, a
cultura é o campo onde o corpo é formado e a Bildung é instrumento dessa formação. A forma-
ção produz corpos que irão conviver e sofrerem a influência de outros corpos no atrito social,
Nietzsche constata que o modelo de educação em seu tempo era fragmentada e superfi-
cial, pois se concentrava apenas na preparação dos alunos para o mercado de trabalho e as
tradições patrocinadas pelo Estado, já que eram conhecimentos exigidos no serviço público.
Esse modelo falhou em fornecer uma formação integral do ser humano, comprometida com sua
autossuperação, que era o ideal buscado por Nietzsche, inspirado pela cultura grega. Ele tam-
bém criticou a cultura jornalística da época, baseada em opiniões massificadas e que desvalori-
verdadeiros educadores foram substituídos por dóceis “filisteus da formação” que ostentavam
um eruditismo esnobe, além de um servilismo estatal, e que se tornaram, em sua maioria, edu-
cadores nas instituições de ensino alemãs, tornando impossível exigir que sejam agentes de
grandeza não se fez carne nas instituições de ensino alemãs. A grandeza do Estado prussiano
incomodar o Estado. Mas, geralmente, o que vemos são professores de Filosofia como meros e
dóceis servidores públicos que transmitem um saber de modo erudito e fragmentário sem ne-
Assim, pode-se afirmar que quando a educação é usada pelo Estado para atender às suas
necessidades políticas e a cultura não se opõe, ela se torna um braço facilitador do Estado na
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a cultura se opõem aos interesses políticos do Estado, há autonomia e ascensão cultural, permi-
tindo uma formação integral que visa ao desenvolvimento do indivíduo em todas as suas di-
mensões.
Segundo Nietzsche, é essencial que cada indivíduo confronte o caos interior e o organize
deve buscar no caos dos saberes e acontecimentos históricos aquilo que dialogue com as neces-
sidades autênticas da cultura, ditadas pela força de vontade dos indivíduos que a sustenta. So-
mente assim é possível compreender que a cultura, embora seja um fenômeno estético, não se
uma phýsis nova e aprimorada, sem dentro e sem fora, sem dissimulação e convenção, como
uma unanimidade entre vida, pensamento, aparência e querer” (NIETZSCHE, 2003, p. 97).
Assim, para Nietzsche, o caráter autêntico da cultura grega consistia em encará-la como uma
natureza (phýsis) em comum, a qual ninguém precisasse ser ensinado ou versado para sentir-se
parte, enquanto a cultura romana era mera convenção decorativa que ocultava as vivências sin-
Desse modo, continua Nietzsche (ibid.) “(...) toda ampliação da veracidade também
deve ser um fomento preparatório da verdadeira cultura”. O valor da veracidade, dessa forma,
não está em descobrir um conhecimento transcendental, mas sim em manter uma relação au-
têntica entre as abstrações teóricas e as experiências concretas da vida, ou seja, aquilo que pode
ser reconhecido. Para Nietzsche, o valor da veracidade não está na relação entre um mundo
vivências materiais. Quando o mundo racional, cultural, político e epistemológico pode ser re-
conhecido na vida, quando pode ser encarnado, ele pode ter um alto valor de veracidade e ser
96
estimado pelo Reconhecente. Mesmo que, afirma Nietzsche (ibid.): “(...) esta veracidade possa
por mais que ela mesma possa proporcionar a queda de toda uma cultura decorativa [dekorati-
ven Cultur]”. Dessa forma, a racionalidade moderna pode ser utilizada para servir à vida hu-
Wotling (1995) enfatiza a importância que Nietzsche atribui à cultura como expressão
da vontade de poder, já que é por meio dela que podemos criar novos valores e perspectivas,
permitindo-nos transcender as limitações atuais e alcançar novas metas. Ele argumenta que a
cultura era a principal ferramenta utilizada pelo Estado para manter a sua hegemonia, discutindo
a visão de Nietzsche sobre cultura e Estado através da ótica do poder e da dominação. Dessa
forma, para Nietzsche, a Educação deveria ser uma forma de resistência contra a cultura imposta
pelo Estado e uma maneira de libertar o indivíduo para a autodeterminação e a criação de novos
valores. Segundo Wotling, “(...) a cultura é o campo onde se joga o destino da humanidade, e a
atividade cultural é a manifestação mais elevada da vontade de poder(...) " (WOTLING, 2015,
p. 61). Se a vontade de poder do indivíduo é manifesta através de seu corpo, a vontade de poder
É por intermédio da cultura que podemos criar novos valores e perspectivas, permitindo-
nos transcender as limitações da vida e alcançar metas cada vez mais grandiosas. Não é a vida
humana que é condicionada pela cultura é a cultura que é condicionada pela vida humana. Do
mesmo modo que o conhecimento deve ser uma expressão da vontade de poder e deve ser
jetiva, a razão não deve ser vista como um meio para alcançar um conhecimento transcendente,
mas sim como uma ferramenta que utilizamos em conjunto com nossa experiência sensorial e
intuitiva para entender o mundo ao nosso redor e, assim, potencializar nossa ação sobre ele. É
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através do nosso corpo e das sensações que experimentamos que nos construímos como indiví-
Essa mudança de perspectiva pode ser aplicada também no âmbito ético-político. Não
devemos utilizar as instituições sociais e seus dispositivos de controle para impor um objetivo
superior ao corpo social, como se o Estado tivesse o dever de apontar uma meta (télos) a ser
alcançada pela cultura. Ao contrário, essas instituições devem ser utilizadas como meio para
viabilizar novos sonhos compartilhados, novas configurações sociais e novos modos de existir
Desse modo, o Estado não é mais visto como um fim em si mesmo, mas sim como um
meio para alcançar metas grandiosas e significativas, que reflitam as aspirações e impulsos
presentes no corpo social. O reconhecimento da cultura pelo Estado deve se dá do mesmo modo
como acontece no reconhecimento da cultura pelo indivíduo. Isto é, da mesma forma que o
indivíduo se constrói a partir dos mundos que os transpassam e assim se reconhece; o Estado
também deve ser moldado a partir das culturas que o transpassa e reconhecer-se a partir dessa
perspectiva. Não é a racionalidade hegeliana que deve guiar o Estado, mas as culturas que ele
Devemos nos reconhecer em nossos sonhos, mundos e culturas. Se uma cultura autên-
tica se encarnar em racionalidade estatal, teríamos um Estado que reconhece a cultura encarnada
antes de dizer o que ela deve ser, convertendo-se em incubadora de mundos, culturas e pers-
pectivas singulares. Para que todos os sonhos possíveis possam ser sonhados — inclusive, o de
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Conclusão
Sócrates no caráter abstrato, identitário e imutável do mundo, bem como a ilusão de que a razão
pode corrigir os males do mundo, é o código base pelo qual a cultura moderna foi erigida, por
isso ela ainda pode ser nomeada como cultura socrática. O filósofo alemão sustenta que a crença
em uma verdade fora da esfera humana, fundamentada em um mundo inteligível que se opõe
aos mundos humanos, é uma ilusão socrática que fundamenta a cultura decorativa moderna.
apontar desvios lógicos em seus procedimentos. Em vez disso, sua crítica se concentra na ilusão
socrática de que a razão pode corrigir os males do mundo por meio da associação moral entre
a razão, o bem e a virtude. Essa crença é prejudicial porque o otimismo teórico advindo dele
arquétipo do ser humano teórico e racional, que representa o enfraquecimento dos impulsos e
uma decadência do corpo. Para ele, Sócrates foi guiado por preconceitos morais e abstrações
que disfarçavam seu desprezo pela vida, seu pensamento emana como sintoma de um corpo
O humano abstrato e teórico não é isento de ilusões, a despeito de sua luta contra a
mentira e seu culto à verdade, há nele “(...) uma profunda representação ilusória, que veio ao
mundo pela primeira vez na pessoa de Sócrates.” (NIETZSCHE, 2006, p. 93) e que inaugura
“(...) uma forma de existência antes dele inaudita, o tipo do homem teórico” (Idem, ibid., p. 92).
O humano que Sócrates inaugura precisa erigir para si um mundo abstrato, imutável, ideal, para
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que a existência possa ser suportável, na abstração encontra conforto e comodidade, otimismo
Agora é dada a ele uma meta, corrigir o mundo através da razão, isto é, avaliar o mundo
por parâmetros abstratos, para tanto, precisa suprimir suas sensações, pois estas o mostram um
mundo imerso no devir. Sendo seu mundo abstrato o único verdadeiro, todo o resto lhe é indi-
ferente, hostil, inclusive seu corpo. A necessidade de um mundo ordenado e estático o leva a
crer nas abstrações que cria, nesse sentido, seus conceitos não diferem dos mitos dos sacerdotes.
As novas escolas socráticas que surgem mais tarde, como o estoicismo, logo convertem-se em
templos onde a razão é a divindade suprema que rege o panteão conceitual por meio do qual
guiam suas ações. Não mais a fé, nem tampouco o sacrifício aos deuses e suas liturgias, agora
Os mundos demasiados humanos são tecidos por ilusões sustentadas por valores. Não
conceituais que refletem as valorações dos impulsos e instintos de um povo, uma cultura, uma
língua. O mundo é local, não há mundo universal porque cada mundo é erguido em um contexto
singular. Mesmo que o “lugar” por onde esse mundo seja constituído, seja um espaço virtual.
Não há uma única interpretação do mundo que abarque todos os povos, mesmo no mundo glo-
balizado, mesmo na cultura de massa. Não há o mundo porque não há uma identidade mundial,
Com Sócrates e a cultura socrática que se expande a partir dele, transmutado em cristi-
contra todos os outros mundos. Tudo o que escapa ao mundo socrático é ilusão, erro, engano,
combater os outros mundos passa a ser uma questão moral, uma forma de corrigir os mundos
100
tentativa de instaurar um único mundo calcado em abstrações alheias às particularidades dos
Compreender o humano teórico é uma forma de compreender o mundo identitário que ele sus-
tenta e expande e, assim, resistir ao esvaziamento dos mundos em nome de um único mundo
o mundo estático do homem teórico é o câncer que ameaça o equilíbrio e a mobilidade dos
mundos.
e de redes sociais são a corrente sanguínea por onde se espalham e alcançam mundos intocados,
com muitos filósofos que buscam uma compreensão transcendental da humanidade. Assim,
concentra-se na história e cultura europeias, cuja genealogia remonta aos gregos, como base
para sua análise. Não se trata de uma abordagem sobre a humanidade empírica europeia de um
ponto de visto antropológico, ou seja, não se trata de investigar uma raça europeia, ou um san-
Nietzsche inverte a ordem: agora é uma cultura que molda uma humanidade empírica
em particular, não mais uma humanidade universal que molda diferentes culturas particulares.
A genealogia precede a antropologia, isto é, para conhecer uma humanidade do ponto de vista
aquela humanidade ao longo da história. O objeto de estudo parte de um particular, uma cultura,
para outro particular, uma humanidade. Temos com isso a morte da humanidade transcendental.
Cada humano agora deve ser compreendido em seu mundo (não no mundo). Uma cultura é
101
instaurada por mundos que unifica e dá sentido aos entes, como veremos adiante. A cultura é
síntese de mundos que perduram, formam uma tradição. Há uma Terra, mas inúmeros mundos
missa que Schopenhauer se utiliza para dar início à sua obra magna. O sujeito cognoscente não
pode representar o mundo em sua totalidade, tomá-lo integralmente como objeto, isto o escapa,
portanto, enquanto uma representação particular minha, o mundo assim representado é sempre
mundo é minha representação, eu sou representação do meu mundo. Pois, se concordamos que
“(...) o que existe para o conhecimento, portanto o mundo inteiro, é tão-somente objeto em
relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa palavra, representação (...)” (Idem, ibidem),
mundo que o antecede. O problema dessa premissa, sem o complemento necessário, é intuir um
sujeito já pronto, cuja capacidade de cognição e interpretação não seja condicionada por um
mundo já dado. O mundo não é objeto em relação a um sujeito, tampouco o sujeito é um objeto
moldado passivamente por um mundo, como sugeriria uma abordagem materialista, mundo e
sujeito são interdependentes, ambos se constituem em uma dinâmica cuja relação su-
jeito/mundo não pode ser apartada. Pois se é certo que não há mundo sem a interpretação de
E o que é, no final das contas, mundo? O mundo é uma trama de sentidos: seja o cha-
mado mundo efetivo, seja o mundo aparente, o mundo das partículas subatômicas, dos grandes
conglomerados de galáxias, o mundo diverso das culturas locais e a aridez do mundo globali-
zado, o mundo dos conceitos, das teorias, da literatura, todos eles são compostos pelo mesmo
102
substrato de sentidos. Sendo todos os mundos compostos por uma teia de sentidos, a principal
diferença entre um mundo efetivo e o aparente, entre o mundo da física quântica e das análises
culturais, é o valor que damos a eles. O que se costuma chamar de mundo “verdadeiro” é o
acaba se tornando assim uma questão de valor. Assim, torna-se também uma questão moral,
pois a valorização de um mundo tido como verdadeiro e efetivo é consequência de uma dispo-
sição moral para o conforto. Indivíduos que buscam o conforto tendem a ser dóceis, indivíduos
dóceis e amedrontados pelo devir são manipulados com maior facilidade, o que torna a questão
também política, pois narrativas ideológicas que engessam o mundo favorecem dispositivos de
controle populacional.
ológica de um mundo estático e concluído, no qual o mundo das vivências é apenas uma cópia
imperfeita. Essa busca por uma base sólida diante da impermanência do mundo gerou a de-
manda pela criação de um mundo verdadeiro e imutável, sustentado pela ilusão de um plano
existência de frente. No entanto, essa concepção negligenciou o fato de que o mundo inteligível
é construído pela linguagem e que os conceitos que o sustentam são baseados em convenções
metafóricas, cujo significado é sempre contingente e não necessário. Para manter a ilusão de
imutabilidade dos conceitos, um grande esforço intelectual foi empreendido para dar-lhes uma
Para lidar com a contradição entre essa concepção idealista e imutável de mundo e a
percepção de um mundo em constante mudança, o mundo das vivências foi denunciado como
falso e ilusório, para que a ilusão de um mundo inteligível pudesse continuar a ser sustentada.
Em seguida, buscou-se ancorar esse mundo abstrato em uma realidade material e efetiva,
103
identificando regularidades universais e imutáveis presentes na natureza, ignorando o caráter
relações causais. No entanto, nenhum mundo é eterno, fechado ou concluído, sempre há algo
faltante nele, as potencialidades do mundo, os mundos possíveis. Isto garante que mundos pos-
O mundo não se limita a um ambiente, uma região, um lugar ou um espaço ôntico. Meu
vizinho pescador vive em um mundo completamente diferente do meu, mesmo estando a pou-
cas dezenas de metros de distância. E, até dentro da mesma casa, em diferentes cômodos, há
mesma cama. Os ambientes podem condicionar os mundos, como acontece em uma comuni-
dade ribeirinha nas margens de um rio isolado, em um setor específico de uma penitenciária ou
universidade, mas não os determinam. O mundo é uma rede intrincada de sentidos que extrapola
o ambiente e até mesmo as coisas que o compõem. As coisas só existem dentro de um mundo
que lhes confira sentido, já que a existência delas é sempre relativa a um mundo já dado. O
também ontológica, além de epistemológica, moral e política. Pois tudo sempre é, sempre existe,
dentro de um mundo. Não há “ser” fora de um mundo, pois fora dos mundos nenhuma coisa é.
Daí que somos sempre no mundo, assim como os entes que nos rodeiam. Também não haveria
mundo sem um vivente capaz de estabelecer sentidos entre os entes, daí a relação indissolúvel
entre nós e nossos mundos. Na relação prática entre o vivente e seu mundo as coisas adquirem
diferentes, pois viventes diferentes em mundos diversos, podem atribuir sentidos distintos à
mesma coisa; ou seja, essa mesma coisa, em cada mundo experienciado, existe de modo dife-
rente, posto que possui sentidos diferentes. A coisa galáxia, como a conhecemos, só passou a
104
existir quando foi percebida por potentes telescópios e ainda hoje não existe para algumas co-
munidades isoladas; a coisa vírus só passou a existir depois do advento dos microscópios, e
ainda não existe para negacionistas fanáticos; já a coisa espelho possuía valores diferentes para
os povos originários das Américas e os europeus que o fabricava, assim como a mesma coisa
pau-brasil. A existência, o valor, e o uso das coisas são determinadas pelos mundos em que elas
transitam, o mesmo espelho pode servir para ajudar a transformar o próprio corpo em obra de
A mesma garrafa pet é uma coisa para quem bebe e a joga no rio, é outra para o pescador
de traíra que com ela faz uma boia, seria outra se a encontrasse e a levasse como lixo. Todos
nós vivemos na mesma região, dividimos a mesma língua e vários aspectos culturais, mas a
mesma coisa, cujo nome “garrafa” também dividimos, experienciada em diferentes mundos,
existe de modo diverso, como recipiente descartável, boia ou lixo. Isso nos leva a questão: cada
vivente é um mundo? Sendo cada mundo aquilo que Nietzsche nomeia perspectiva, a resposta
não poderia ser outra, sim. Mas essa questão nos leva a outra: cada vivente não cria seu mundo,
sua perspectiva, seu arcabouço de sentidos do “nada”, não extrai apenas de si o sentido que dá
às coisas, logo, parece haver mundos que nos transpassam, sentidos que nos atravessam, a isso
chamamos cultura. Se cada indivíduo é um instaurador de mundo numa esfera micro, cada cul-
Desse modo, vertemos a oposição entre mundo real e mundo aparente à oposição entre
mundo pessoal e interpessoal, indivíduo e cultura, não para fazer um mero jogo dicotômico,
mas para compreender a relação entre esses mundos. Como veremos adiante, numa epistemo-
logia alteritária nos importa o “entre”, não a mera dicotomia. Nesse sentido, cabe-nos indagar
até que ponto o mundo de um vivente interfere em sua cultura, ou até mesmo em várias culturas,
como é o caso de Nietzsche e Platão; e até que ponto a cultura de um vivente, ou suas influências
culturais, moldam sua perspectiva, seu mundo, seu modo de existir, pois Platão seria outro na
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Índia e Nietzsche na Pérsia. Se é verdade que a cultura, esse mundo interpessoal, esse todo
conjuntural, molda o modo de um vivente existir, também o é que esse vivente, ao atribuir um
sentido singular a esse mundo que o extrapola o modifica, dissimula-o. Dissimulando-o o cor-
rompe em alguma medida e essa corrupção pode ser replicada, adquirir capilaridade, e hackear
Mas, há uma crise política alimentada por uma visão política institucional, consolidada
desde quando Nietzsche escreve até hoje em dia. Essa visão concebe a política como uma ati-
vidade racional, uma ação esclarecedora, com resquícios do Iluminismo contratualista, na qual
a vida comum se estrutura por intermédio de uma ordem racional, intermediada pelo discurso.
Nessa visão, as instâncias políticas instituídas devem ser sólidas e perenes, guiadas por princí-
pios racionais que negam afetos, como meio de preservar a ordem social.
que manifesta uma “vontade geral” racionalmente convencionada por indivíduos autônomos.
Como as instituições ainda são compostas por indivíduos, por viventes, e, não raro eles não
conseguem incorporar em suas ações individuais essa vontade coletiva, as instituições passam
por sucessivas crises, e, tendem, a serem desacreditadas, pois o ideal prometido não consegue
Só que o mundo como síntese de sentidos atribuídos pelos viventes que são atravessados
por ele é um modo de encarar o tecido social, sentimento comunitário ou inconsciente coletivo
como algo fundamentado, não em uma intencionalidade racional ou télos qualquer, mas sim
enquanto uma apreensão intuitiva advinda da convivência, isto é, uma vivência compartilhada
com outros humanos e seus vários mundos. Pelo caráter intuitivo, possui algo de mais originário
do que o simbólico, um sentido que se sente antes ainda que se possa expressar em palavras,
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uma vontade que ainda não se esvaziou em conceitos. O reconhecimento dos mundos que nos
transpassam, para além de uma questão epistemológica, tem algo de estético, pois lida com
humanos são-no-mundo, assim como o reconhecimento dos mundos tem algo de ação ético-
política pois lida com o sentimento de pertencimento e comunhão e, assim, torna-se ferramenta
para outras dinâmicas e estratégias que busquem uma atuação política que supere aquela já
instituída, que atue no sentimento comunitário e nos afetos compartilhados, diretamente nas
interações. Com isso, busca-se o que há para além da política instituída, da utopia carcomida,
e, assim, resguarda a própria potencialidade das ações e dos anseios políticos, pois a interação,
organizações e liturgias quase religiosas e seus membros fanáticos. Nossa meta diante disso é
nhecimento que não busque ser acolhido, regulamentado por um poder instituído. Poderes ins-
tituídos se fortalecem quando regulamentam a diferença, pois é uma forma de devorá-las, trazê-
las a um código de sentidos que regem seu mundo desencarnado. O reconhecimento que pro-
pomos com Nietzsche busca devolver indivíduos aos mundos autênticos, aqueles em que con-
vivem e potencializam seus afetos, e, com isso, a possibilidade de reinventar, recriar seus mun-
dos, revogar àqueles que não podem ser incorporados, reviver mundos perdidos.
Como afirma Nietzsche: “Presenteai-me primeiro com a vida e então, a partir disso, terei
prazer em criar-vos uma cultura! Assim grita cada indivíduo singular desta primeira geração e
todos estes indivíduos reconhecerão uns aos outros em meio a este grito. Quem lhes presenteará
com esta vida?” (NIETZSCHE, UB, 2). Nesse sentido, o Reconhecente não apenas transgrede,
mas cria a partir de suas vivências, nos mundos que habita, novos rearranjos culturais, novos
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sonhos que possam ser compartilhados. Quanto mais e melhor puder incorporar mundos, mais
potente sua ação será. Para além da política institucional uma política da potencialidade.
A ação política fundamentada nessa visão não é tão somente racional, nem mesmo por
intermédio de uma razão comunicativa aos moldes de Jürgen Habermas, mas, antes, uma ação
ser sonhado junto e com uma sensibilidade onírica que possa ser intuída e reconhecida pelos
humanos em seus mundos. Assim, deixa-se de valorizar como agente político privilegiado o
intuição daquele que interage, aquele cuja ação se dá “entre”, na convivência que não pode ser
ras de convivência, como elemento facilitador para que os mundos possam transitar, além de
vida precisa do conhecimento. As ideias precisam dos corpos, mais do que os corpos precisam
das ideias.
In-corpo/oremos.
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