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O Psicólogo no Hospital: Entre o Discurso Médico e Religioso.

Residente: Lucas Pacheco dos Reis Verani (Urgência e Emergência).

Atualmente, sabemos que trata-se de uma tarefa impossível passar pela história dos
hospitais sem adentrarmos no domínio da religiosidade e da fé. As primeiras instituições
para acolhimento de doentes que se tem notícia datam do século II, em Roma, com templos
de abrigos e recuperação de combatentes militares (Ornellas, 1998). Por mais que diversos
outros templos e santuários relacionados a prevenção de doenças e epidemias existissem
desde a antiguidade, como o templo de Asclépio dedicado ao deus da cura, somente no
aparecimento dessas instituições de abrigo aos combatentes e, mais tarde, os hospitais
cristãos, podem ser eventos mais aproximativos da ideia de hospital moderno como casa do
saber médico (Ornellas, 1998). A partir do ano 325, com o Concílio de Nicéia, foi reafirmado
o compromisso de que a Igreja seria uma das pontas de expansão de Hospitais, criados nas
dioceses locais, em legado com os ditados das sete tarefas de caridade cristã (Ornellas,
1998). Por alguns séculos em diante, portanto, a instituição hospitalar manteve-se sob os
preceitos da caridade cristã, confluindo em atividades que, em partes, eram muito mais de
assistência de moradia e isolamento do que, de fato, curativas. Em tese, a função “curativa”
do hospital foi aparecer muito mais tarde, como aponta Foucault (1989). Até antes do século
XVII, o campo profissional de atuação da medicina corria paralelo ao ambiente hospitalar. O
hospital até a entrada do médico, segundo o autor francês, tinha como foco a assistência
material e espiritual ao pobre em vias de óbito, “a quem se deve dar os últimos cuidados e o
último sacramento” (Foucault, 1989). Vê-se, aí, como o hospital, de um modo geral, pôde
cumprir as suas funções na medida em que também oferecia um amparo aos momentos
críticos em que ele acolhia. A medicina somente foi chamada para participar da organização
deste espaço na medida em que ele não mais oferecia garantia de controle e exclusão como
em outros tempos, diante de uma conjuntura científica e racional operante com as
formulações dos Estados modernos. Nesse sentido que o médico entra em cena, mas para,
primeiramente, para
“retirar os efeitos nocivos da desordem que ele [hospital] acarretava. E
desordem aqui significa doenças que ele podia suscitar nas pessoas
internadas e espalhar na cidade em que estava situado, como também
desordem econômico-social de que ele era foco perpétuo” (Foucault, 1989).

Sob o ímpeto do mercantilismo e da reorganização do mundo do trabalho, um dos


primeiros focos de intervenção se deu, portanto, nos hospitais marítimos, devido ao intenso
fluxo de mercadorias advindas das colônias. O foco das mudanças em hospitais marítimos e
militares não se deu por qualquer motivo: além (ou por conta) dos ditames do
desenvolvimento econômico e fluxo de mercadorias, o avanço tecnológico nesses campos
da vida social fez com que a força de trabalho aplicada ficasse cada vez mais especializada
e, portanto, custosa. Nesse sentido, o Estado necessitava, cada vez mais, ampliar a
assistência sanitária em instituições especiais.
Foucault aponta que as transformações não puderam ser dadas sem um
componente essencial político chamado de disciplina, sendo ela: “antes de tudo, análise do
espaço. E a individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço
individualizado, classificatório, combinatório” (Foucault, 1989). É necessário, portanto,
operacionalizar, como em um espaço fabril, funções, gestos, fluxos e vigilância para que
uma máxima eficácia possa aparecer em consonância com os fins da instituição. Assim,
então, podemos compreender a entrada progressiva de diferentes profissões no espaço
hospitalar, na medida em que elas constituíram campos de intervenção cada vez mais
específicos e eficientes. Nesse sentido que podemos compreender a entrada, também, da
psicologia.
Segundo Azevedo e Crepaldi (2016), a psicologia no hospital solidificou-se no
tratamento de pacientes militares vítimas da Segunda Guerra, visando identificar aspectos
físicos e psicológicos decorrentes do adoecimento e elaborar estratégias de tratamento para
minimizar os efeitos de tais quadros e da institucionalização em si. Esses profissionais, em
um primeiro momento, encontravam-se reunidos sobre a categoria de “Psicologia da Saúde”
que abrangia o trabalho clínico e institucional para outros estabelecimentos além dos
hospitalares. A Psicologia da Saúde, segundo Moretto (2019), tinha como objetivo a
promoção e manutenção da saúde, das pessoas ou das populações, como na formulação
de políticas públicas. No Brasil, a entrada da psicologia nos hospitais se deu, entre outros
fatores, sob impulso da idéia de integralidade, reforçada por um entendimento amplo de
saúde como “biopsicossocial”. Moretto (2019) aponta que, a partir desse momento, diversos
autores debateram qual a especificidade do trabalho do psicólogo da saúde nas instituições
em relação ao trabalho clínico, em muito desenvolvido a partir de uma perspectiva individual,
do um a um. Por mais que não haja resposta unívoca sobre esse ponto, a autora defende
que o método clínico é uma pedra angular do trabalho psicológico nas instituições, mas não
deve se valer por si só, com uma transposição dura para o campo da saúde coletiva
(Moretto, 2019). É necessário, portanto, que haja uma avaliação institucional, a fim de
posicionar quais os tipos de demandas, públicos e objetivos que o ambiente em questão
exige do psicólogo ou psicanalista. A discussão e análise da demanda tornam-se uma das
principais questões no ambiente hospitalar na medida em que ele é, em tese, casa do
discurso ou, para lembrar Clavreul (1983), da ordem médica. Ordem essa que funciona na
medida em que o sujeito - dividido - é escamoteado, pois sua expressão constitui um
problema na medida em que o discurso médico necessita reduzir a gama de sinais e
sentidos do doente em uma única linguagem diagnóstica. O ato médico, portanto, se faz
sobre um dever-ser, enquanto o psicanalista trabalha sobre o seu avesso, sob uma ética do
sujeito (Moretto, 2019). Assim, sem uma visão crítica da instituição e de seus deveres, o
profissional de psicologia ou psicanalista pode perder de vista a especificidade de sua
clínica e cair, muito provavelmente, em mais uma das atuações subordinadas ao saber
médico. O psicólogo - agora, sob a visão da clínica psicanalítica - necessita reconhecer que
seu discurso se sustenta na medida em que é mantido como “extraterritorial” pelo saber
médico, pois ele é demandado pelo próprio fracasso que esse saber encontra em seu dia a
dia no hospital (Moretto, 2019).
Se, em algum momento, o hospital foi casa da salvação espiritual e, hoje,
encontra-se sob a política da salvação “física”, com a ordem médica, a clínica psicanalítica
vem instaurar um terceiro discurso, uma terceira ordem possível para o sofrimento humano
perpassado pelas questões de saúde. É um discurso diferente, pois, em contraposição aos
outros dois - o religioso e o médico -, a psicanálise não aponta para a salvação ou para o
silenciamento, mas para o sujeito do Inconsciente em sua singularidade radical, que oferece
uma resposta impossível de ser pré determinada por algum sentido externo (Moretto, 2019;
David, 2003). Pois, para concluir, se há algo que o ensino de Freud nos coloca é que, em
grande parte, os sujeitos não sofrem exatamente por estarem desajustados da dinâmica
social, mas, sim, por, justamente, estarem adaptados demais a ela. Essa é a razão pela qual
a clínica psicanalítica pode oferecer uma saída ao sofrimento nas instituições hospitalares.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FOUCAULT, M. Microfísica do poder 8. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

AZEVÊDO, Adriano Valério dos Santos e CREPALDI, Maria Aparecida A Psicologia no


hospital geral: aspectos históricos, conceituais e práticos. Estudos de Psicologia (Campinas)
[online]. 2016, v. 33, n. 04 [Acessado 16 Outubro 2022] , pp. 573-585. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/1982-02752016000400002>. ISSN 1982-0275.
https://doi.org/10.1590/1982-02752016000400002.

CLAVREUL, J., 1983. A Ordem Médica São Paulo: Brasiliense.

DAVID, S. N. Freud e a religião. Rio de Janeiro, Zahar. 2003


MORETTO, M. L. T. O que pode um analista no hospital? (3a ed.). São Paulo: Casa do
Psicólogo. 2019

ORNELLAS, Cleuza Panisset Os hospitais: lugar de doentes e de outros personagens


menos referenciados. Revista Brasileira de Enfermagem [online]. 1998, v. 51, n. 2 [Acessado
17 Outubro 2022] , pp. 253-262. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0034-71671998000200007>. Epub 04 Nov 2014. ISSN 1984-0446.
https://doi.org/10.1590/S0034-71671998000200007.

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