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Contemporânea

Contemporary Journal
3(5): 4279-4301, 2023
ISSN: 2447-0961

Artigo

O TRABALHO DO PSICÓLOGO NA URGÊNCIA E


EMERGÊNCIA HOSPITALAR: CONSIDERAÇÕES
PSICANALÍTICAS

THE PSYCHOLOGIST'S WORK IN HOSPITAL URGENCY


AND EMERGENCY: PSYCHOANALYTICAL
CONSIDERATIONS

DOI: 10.56083/RCV3N5-045
Recebimento do original: 25/04/2023
Aceitação para publicação: 25/05/2023

Maria Lourdlayne Santiago Leitão


Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC)
Instituição: Hospital Unimed Sul - Fortaleza
Endereço: Avenida Almirante Maximiliano da Fonseca, 44, CEP: 60811-020
E-mail: laynesantiago@hotmail.com

Darla Moreira Carneiro Leite


Doutoranda em Cuidados Clínicos de Enfermagem e Saúde pela Universidade Estadual do Ceará
(UECE)
Instituição: Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS), Hospital Dr. Carlos Alberto Studart Gomes,
Instituto Dr. José Frota
Endereço: Rua João Adolf Gurgel, 133, Cocó, CEP: 60190-180
E-mail: darlamoreiracl@gmail.com

Antonia Mardeijane Albuquerque Costa


Especialista em Urgência e Emergência pela Escola de Saúde Pública do Ceará (ESP) - CE
Instituição: Faculdade ViaSapiens (FVS)
Endereço: Av. Pref. Jaques Nunes, 1739, Lions Club, CEP: 62320-000.
E-mail: mardeijane@outlook.com

Tallys Newton Fernandes de Matos


Doutorando em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (UECE)
Instituição: Universidade Estadual do Ceará (UECE)
Endereço: Av. Dr. Silas Munguba, 1700, Itaperi, CEP: 60714-903
E-mail: tallysnfm@gmail.com

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RESUMO: O estudo propôs refletir sobre o atendimento clínico psicanalítico
no setor de urgência e emergência de um hospital. A metodologia utilizada
foi o estudo teórico-clínico, com noções da política, estratégia e tática da
psicanálise propostas por Lacan e expondo as construções de Jack Alain Miller
sobre a Teoria dos Ciclos e sobre os Efeitos Terapêuticos Rápidos em
Psicanálise. Destaca-se que as vinhetas clínicas foram retiradas do diário de
campo escrito ao longo da experiência no setor, propondo interlocução entre
a teoria e experiencias. A interlocução possibilitou a construção sobre o
trabalho do psicólogo nesse setor. Pode-se compreender que é possível uma
escuta e intervenção a partir do referencial teórico em um contexto de
urgência e emergência, mesmo com uma única sessão, porém com
orientação dos preceitos psicanalíticos.

PALAVRAS-CHAVE: Psicologia Hospitalar, Psicanálise, Urgência e


Emergência.

ABSTRACT: The study proposed to reflect on the psychoanalytic clinical care


in the urgency and emergency sector of a hospital. The methodology used
was the theoretical-clinical study, with notions of politics, strategy and tactics
of psychoanalysis proposed by Lacan and exposing the constructions of Jack
Alain Miller on the Theory of Cycles and on the Fast-Therapeutic Effects in
Psychoanalysis. It is noteworthy that the clinical vignettes were taken from
the field diary written throughout the experience in the sector, proposing an
interlocution between theory and experiences. The interlocution enabled the
construction of the psychologist's work in this sector. It can be understood
that it is possible to listen and intervene based on the theoretical framework
in a context of urgency and emergency, even with a single session, but
guided by psychoanalytic precepts.

KEYWORDS: Hospital Psychology, Psychoanalysis, Urgency and Emergency.

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1. Introdução

O interesse pelas questões que sustentam este trabalho surgiu a


partir da experiência clínico-institucional no atendimento a pacientes vítimas
de trauma e seus familiares, enquanto profissional de psicologia na equipe
multiprofissional do Programa de Residência em Urgência e Emergência. Esta
modalidade de pós-graduação lato sensu está voltada para uma estratégia
de ensino que agrega conhecimento teórico e experiência prática, buscando
qualificar os profissionais de saúde, principalmente em áreas prioritárias do
Sistema Único de Saúde – SUS.
Nisto, a Residência Multiprofissional teve como campo o setor de
urgência e emergência de um hospital de trauma localizado na cidade de
Fortaleza, no estado do Ceará. Diante da vivência, as interrogações
impulsionaram o desenvolvimento deste estudo durante o primeiro ano de
residência, em que a experiencia profissional aconteceu no setor do pronto-
socorro. Ressalta-se que, para este estudo, o termo “pronto-socorro” e
“emergência” são equivalentes, pois não interfere no sentido empregado.
De acordo com Brunhari e Moretto (2013), o pronto-socorro é um
espaço que recebe pessoas em situações com risco ou não iminente de morte
e que por isso não podem esperar. É preciso que tenham atendimento
imediato para suas urgências. Neste contexto, durante o período de vivencia
no pronto-socorro, foi atendido pacientes vítimas de traumas de alta
complexidade, como fraturas múltiplas, lesões vasculares e neurológicas
graves, queimaduras, tentativas de suicídio e intoxicações, dentre outras.
Além do atendimento ao paciente, também era ofertada uma escuta a seus
acompanhantes, que por muitas vezes, eram os próprios familiares dos
pacientes.
A experiência de se inserir em um ambiente onde o tempo cronológico
é a chave mestra para guiar a equipe de assistência em suas condutas, é ter
também saber este tempo atravessa o trabalho do psicólogo, pois ele faz

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parte da equipe de saúde. Ao longo dos meses atuando na emergência
compreendi que o trabalho do psicólogo muitas vezes pode se deter a um
único atendimento, seja porque o paciente teve alta hospitalar ou por
quaisquer outros motivos pertinentes à sua assistência. Percebe-se que o
paciente e sua família possuem muitos caminhos a seguir no hospital, como
ser transferido para outra enfermaria, ir ao centro cirúrgico, ser transferido
para outro hospital e por fim, ter alta hospitalar ou ir a óbito. É nesse tempo,
entre a sua chegada a emergência e a condução do seu caso clínico, que o
psicólogo tem a chance de realizar seu atendimento.
Dessa forma, a partir dos casos clínicos atendidos foi observado que
o psicólogo, na maioria das vezes, dispõe de um único atendimento com o
paciente e/ou a família no setor da emergência de um hospital. Diante disso
surge a questão-clínica: “Qual o trabalho possível do psicólogo diante de um
atendimento no cenário de emergência?”. Para responder este
questionamento, buscou-se suporte da teoria psicanalítica.
Pensar sobre a inserção do trabalho do psicólogo no hospital cujas
intervenções se sustentam pela abordagem psicanalítica no contexto do
pronto-socorro [PS] caminha na desconstrução da ideia de que ela não pode
ser utilizada neste espaço. Então, rompe-se com a afirmação de que a partir
da psicanálise “não se pode nada em um PS, por diversos motivos: não tem
tempo, as pessoas não falam coisa com coisa, elas estão com dor, a equipe
tem que ser rápida. Enfim, não há espaço” (BRUNHARI; MORETTO, 2013, p.
21).
Apesar das opiniões diante do trabalho da psicanálise nos hospitais e
principalmente, no pronto-socorro, encontramos em Freud seu desejo que a
clínica psicanalítica pudesse adentrar em vários contextos, acessar a grande
massa da população e ser reconhecida em outros campos de saber. No texto
de Freud (1856/1939), intitulado de “Caminhos para a terapia psicanalítica”,
escreve que a psicanálise, naquela época, estava restrita às camadas mais
altas da população, ou seja, ela estava ali para quem podia pagar e quem

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tinha disponibilidade de tempo para realizá-la. Aponta que naquele momento
“para as amplas camadas da população que sofrem muito profundamente
com as neuroses, por ora nada se pode fazer” (FREUD, 2019, p. 201).
Otimista em sua fala, ainda acrescenta que “agora, suponhamos que através
de alguma organização conseguíssemos multiplicar o nosso número, de
modo que fossemos suficientes para o tratamento das massas maiores de
pessoas” (FREUD, 2019, p. 201).
Logo, “Freud não poderia perder a chance de falar sobre o futuro da
Psicanálise no pós-guerra, especialmente no que tange à sua extensão para
camadas mais pobres da população, através dos serviços públicos de saúde”
(DANTO, 2005, p. 203). O pai da psicanálise ressalta a necessidade de
adequar a técnica psicanalítica para ser utilizada em outros espaços, porém,
destaca que o rigor da sua práxis deve ser mantido, estando “livre desta ou
daquela tendência” (FREUD, 2019, p. 202).
Nessa intenção, o lugar do psicanalista no hospital deve ser construído
e mantido por ele, tendo como sua função principal a escuta diferenciada ao
paciente, a partir da associação livre e da atenção flutuante. A primeira,
sugere que o sujeito fale livremente o que vier em sua mente; a segunda,
converge no fato de que a atenção flutuante “não valoriza a priori nenhum
dos elementos do discurso do sujeito, não se utilizando o analista, desse
modo, de seus pré-conceitos para ouvir” (ELIAS, 2008, p. 95). É necessário
pensar na teoria como algo a ser produzido e não aplicado, visando ampliar
o escopo teórico da Psicanálise.
Neste artigo, a partir da teoria psicanalítica e com a apresentação de
vinhetas de casos clínicos colhidos durante a experiência na emergência,
buscou-se discutir as questões que tratam do psicólogo no hospital que
orienta sua escuta clínica por meio da Psicanálise e, mais especificadamente,
o que é possível em um único atendimento no setor de urgência e
emergência do hospital que foi realizado este estudo.

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A relevância deste estudo converge em contribuir para a formação e
prática dos profissionais de saúde que compõem a equipe multidisciplinar,
buscando trazer questões sobre os aspectos subjetivos do sujeito inserido na
instituição hospitalar. Isto contribui teoricamente para o campo da
“Psicologia da Saúde” e da “Psicologia Hospitalar”. Por outro lado, há um
ganho para o paciente e familiares que se beneficiarão desse cuidado
multiprofissional.
Portanto, o objetivo deste artigo é refletir sobre o atendimento clínico
psicanalítico no setor de urgência e emergência de um hospital, enquanto
profissional de psicologia frente a oportunidade de realizar um único
atendimento ao paciente e/ou familiar.

2. Método

Este trabalho configura-se como teórico-clínico, em concordância com


Rinaldi e Alberti (2009) que afirmam que no campo da psicanálise sempre se
trabalha em função de um saber teórico que está relacionado com a prática
clínica, promovendo a discussão que no campo se produz saber e não
somente se aplica a teoria. Ora, se a produção do saber se dá na prática
clínica, então necessariamente toda pesquisa é clínica. Como consequência,
a clínica é o locus privilegiado da pesquisa em psicanálise (RINALDI;
ALBERTI, 2009).
No que diz respeito ao campo de trabalho que propiciou essa
temática, o hospital em que a residente vivenciou sua prática está em
funcionamento desde 1936, sendo o maior centro médico de urgência e
emergência de nível terciário da rede de saúde pública da Prefeitura de
Fortaleza. É referência no Norte e Nordeste no socorro às vítimas de traumas
de alta complexidade, como fraturas múltiplas, lesões vasculares e
neurológicas graves, queimaduras e intoxicações. Atualmente, o hospital

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disponibiliza 664 leitos e 20 Salas Cirúrgicas, além dos serviços de
Ressonância Magnética e Hemodinâmica.
De forma a atingir o objetivo que este trabalho propõe, cabe elencar
os passos que foram realizados até sua conclusão. Inicialmente, será
realizado uma revisão de literatura sobre temáticas que darão sustentação a
este trabalho. A teoria psicanalítica assume fonte fundamental para orientar
essa produção, trazendo questões que perpassam ao psicólogo no setor da
urgência e emergência. Assim, a proposta é avançar no que diz respeito à
clínica psicanalítica no hospital, buscando deixar claro de qual posição o
psicólogo ocupa esse lugar e como sua clínica se fundamenta e se sustenta
diante desse contexto. Além de ser explorada a perspectiva psicanalítica
lacaniana e seus comentadores, com a intenção de sedimentar mais essa
discussão, será apresentado sobre a Teoria do Ciclo e sobre os Efeitos
terapêuticos rápidos em psicanálise do psicanalista Jacques-Alain Miller.
Posteriormente, a proposta é apresentar vinhetas clínicas na
articulação da teoria com a prática. As vinhetas foram colhidas durante o
período que estive no setor de urgência e emergência, sendo o diário de
campo a ferramenta para descrever os atendimentos realizados com os
pacientes e/ou seus familiares/acompanhantes. Foram analisados os
encontros que ocorreram somente em um único atendimento clínico ao
paciente e/ou acompanhante.

3. Resultados e Discussão

3.1 O que Sustenta a Psicanálise no Hospital?

Inicialmente, trataremos do conceito de setting analítico. Este, nos


primórdios, era restrito a uma estrutura física e a execução de regras e ao
psicanalista lhe trazia a suposição que estava exercendo a psicanálise. Com

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o avanço da teoria e os estudos de Lacan, hoje se denomina setting analítico
qualquer lugar que obedeça a regra fundamental da associação livre por
parte do analisando e atenção flutuante por parte do analista. Dessa forma,
de acordo com Moretto (2019a), “não podemos estar tratando do setting
como um espaço real porque ele é virtual, ele é psíquico, ele é, na verdade,
um artifício, uma construção do psicanalista para que a análise se dê” (p.
59).
Advertido do que se trata o setting analítico, agora avançaremos no
que diz respeito à clínica psicanalítica no hospital. Os atendimentos do
psicólogo realizados a pacientes na instituição hospitalar e especificamente,
na unidade de urgência e emergência, não podem ser caracterizados como
uma análise tida como tradicional, no qual se pretende alcançar ao seu final
a formação de um analista. Porém, é possível operar um trabalho alcançando
como resultado um efeito analítico para o paciente (LEITE, 2014). Logo, o
que se propõe em um único atendimento é justamente essa aposta no efeito
que esse encontro pode causar ao sujeito. Efeitos que talvez nunca possam
ser do conhecimento do psicólogo que se fundamenta pela psicanálise. “Mas,
existe uma ordem que nos diz que precisamos conhecê-los? Ou precisamos
acreditar na abertura para o sujeito do inconsciente?”.
Para que essa abertura seja possível é importante que o psicólogo,
advertido da regra fundamental da psicanálise e diante do cenário de alcance
nas instituições, possa também estar apoiado nas noções de política,
estratégia e tática da psicanálise lacaniana. Cabendo à política a condição de
estar sob égide de uma ética psicanalítica; a estratégia fazendo a referência
à condição de uma relação que existente em transferência, e, por fim, a
tática que segue a liberdade de sua construção sempre única com o sujeito
do inconsciente.
Com base no texto “A direção do tratamento e os princípios de seu
poder”, Lacan (1998a) propõe que seria indispensável que os analistas

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realizassem o manejo na transferência apoiados nas noções de política,
estratégia e tática da psicanálise para a condução do tratamento.

“Quanto ao manejo da transferência, minha liberdade, [...] vê-se


alienada pelo desdobramento que nela sofre minha pessoa, e
ninguém ignora que é aí que se deve buscar o segredo da análise. O
que não impede que se creia estar progredindo nesta douta
afirmação: que a psicanálise deve ser estudada como uma situação a
dois. Decerto se introduzem nela condições que lhe restringem os
movimentos [...]” (p. 594).

Logo, diante de cada caso é que o psicólogo se posicionará quanto a


sua estratégia e tática. Por isso, não é possível a existência de um manual a
ser seguido, pois o que vai acontecer só aparece no contato entre analista e
analisante e por isso é sempre da ordem de uma construção inédita. A
linguagem em seu bojo comporta o sujeito do inconsciente, o qual advém à
sua maneira, e por isso é do campo da imprevisibilidade, no qual não cabe
intervenções previamente preparadas. O aspecto da tática é onde Lacan
coloca a interpretação que o analista faz, acrescentando que é aí que há
maior liberdade (PRADO et al., 2021).

“Logo, por mais que essa liberdade dê a impressão de perda do rigor,


na verdade, trata-se do oposto: a liberdade tática é correlata de uma
amplificação desse mesmo rigor, que amplia o peso da decisão do
analista quanto às suas intervenções. Ao mesmo tempo, o analista
fica mais livre na interpretação, de maneira a não criar padrões
imaginários que não se sustentariam na singularidade da clínica”
(ESTEVÃO; METZGER, 2015, p. 74).

Assim, pode-se pensar que a tática é pensada a cada sessão e


encontro com o analisante. Na unidade de urgência e emergência, mesmo
que se realizem somente um único atendimento com os pacientes, mas
aquele atendimento terá uma tática diferente, porque envolve o que é
realizado dentro do campo da transferência.
Seguindo para a noção de estratégia, Lacan (1998b) indica que “o
analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática” (p. 595). No

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âmbito da estratégia, “o psicanalista também é livre, embora em menor
medida, já que a estratégia implica o manejo da transferência, com vistas a
fazer surgir o inconsciente em suas manifestações” (ESTEVÃO; METZGER,
2015, p. 75). Sendo assim, “Lacan trata aqui do manejo da transferência, e,
justamente por isso, o analista aqui é menos livre, na medida em que não
pode prescindir de trabalhar com a transferência e com seus efeitos” (PRATO
et al., 2021, p. 23). Segundo Estevão e Metzger (2015), tanto a tática quanto
a estratégia estão subordinadas a política da psicanálise.

“Mas que política é essa? Uma política baseada na falta a ser. Lá,
onde o analista poderia comparecer com seu poder, ele tem que
faltar, o que não quer dizer paradoxalmente que não seja ele que
conduz o tratamento, mas que sua arma não é o poder e sim o
manejo de transferências e as interpretações” (SANTORO, 2006, p.
62).

Obedecer a política da psicanálise é também se guiar por sua ética.


Lacan retirou a psicanálise do âmbito das regras e a levou para o campo da
ética (MORETTO, 2019a). Ou seja, foi contra as regras da presença do divã
e da duração da sessão em 50 minutos para defender que o mais importante
era a regra fundamental da associação livre por parte do analisante e da
atenção flutuante por parte do analista.

“A ética da psicanálise, portanto, é a ética do bem dizer. E o que é o


bem dizer? Não se trata de dizer belo, com eloquência, e sim da
palavra que produz um efeito. Daí que a ética da psicanálise se refere
a interpretação. Não poderia ser de outra maneira, pois a ética da
psicanálise é a ética do desejo e o desejo é sua interpretação”
(Santoro, 2006, p. 63).

Até este ponto, foram trabalhados conceitos importantes e que são


base para a clínica psicanalítica, seja qual for o seu contexto. Em seguida,
avançaremos com a intenção de promover mais discussões sobre como a
práxis psicanalítica pode ter seus efeitos, mesmo que realizado em um único
encontro, nesse caso, realizados pelo psicólogo no contexto hospitalar de
urgência e emergência. Para subsidiar cada vez mais as questões que guiam

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este trabalho, ainda discutiremos sobre a teoria de Miller (2012) sobre sua
suposição acerca do início da análise, seus atendimentos terapêuticos
rápidos e sobre sua teoria do ciclo (MILLER, 2008).
Miller (2012) em seus estudos discorre sobre o início da análise,
propondo que ela seja dividida em três etapas. A primeira delas corresponde
a avaliação clínica, com o objetivo de escutar o relato do paciente e
possibilitar ao analista informações sobre a estrutura clínica do sujeito que
fala. Posteriormente, temos a localização subjetiva, que defende a
necessidade de questionar a posição do sujeito em relação aos seus próprios
dizeres. Ou seja, é necessário que o paciente localize sua implicação naquilo
de que se queixa. Já na terceira etapa, temos a introdução ao inconsciente,
que propõe o questionamento do sujeito a si mesmo. Além disso, descreve
que existe vínculos entre essas etapas, nomeando subjetivação o elo entre
a avaliação clínica e a localização subjetiva e retificação subjetiva o vínculo
que existe entre a localização subjetiva e a introdução ao inconsciente.

“Através da reformulação da demanda, da introdução do mal-


entendido, orienta o paciente em um caminho preciso para encontro
do inconsciente; leva-o no sentido de questionar o seu desejo e o que
quer dizer, e fazê-lo perceber que, em si mesmo, há sempre algo
incompreendido. Isso é um ato de direção do analista” (MILLER,
2012, p. 62).

É amparada na teoria dos ciclos de Miller (2008) e pelas práxis


psicanalíticas por ele ressaltada (MILLER, 2012), que este trabalho aposta
nessa abertura ao insconsciente, mesmo que seja realizado apenas um
atendimento. A intenção é propor que, nos atendimentos na unidade de
urgência e emergência, inicia-se o que chamamos de entrevistas
preliminares. Segundo Miller (2012), a saída das entrevistas preliminares
para análise não é demarcada pela quantidade, mas pela mudança da
posição do sujeito. Para isso, cita casos em que aconteceram efeitos dessas
entrevistas em três sessões e outros que tiveram 20 sessões de entrevistas

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preliminares. Com isso, é questionado: “se podem ocorrer em três sessões,
será que também não pode ocorrer em uma única sessão?”.

“As entrevistas preliminares não são apenas uma pesquisa para


descobrir onde está o sujeito, trata-se de efetuar uma mudança na
posição do sujeito, eventualmente transformando a pessoa que
entrou como sujeito, em alguém que se refere ao que diz mantendo
certa distância em relação ao dizer. É por isso que as entrevistas
preliminares constituem uma retificação subjetiva” (Miller, 2012, p.
62).

Miller (2008) com o objetivo de impulsionar ainda mais essas


questões, discute sobre o tratamento de curta duração, apresentando uma
teoria decorrente dos efeitos percebidos nos tratamentos analíticos que
possuiam tempo limitado. Para ele, a psicanálise deve se inserir na realidade
social vigente gerando efeitos do trabalho analítico. Ele aponta a
possibilidade de um trabalho analítico realizado em ciclos. Sobre a teoria dos
ciclos, explica que:

“São produzidos graças à pressão política que temos sofrido e que


nos forçou a fazer surgir de nossa prática toda uma dimensão que
não percebíamos até agora, da eficácia incrível da prática lacaniana.
Sou a favor de continuar, de buscar, de trabalhar, de explorar essa
dimensão de nossa prática e recopilar esses casos de tratamentos
breves, autênticos e completos à sua maneira [...]. Sente-se, em uma
análise, que há ciclos, é o momento em que o sujeito eventualmente
pensa em sair e depois é enganchado outra vez no trajeto,
eventualmente mais longo. Aqui temos ciclos iniciais completos.
Pode-se dizer que não é análise, que a análise não começou etc. É
que tendemos a pensar a análise como um processo infinito, porém
para Lacan uma análise é perfeitamente terminável, e essa é a prova,
é como uma análise em redução” (MILLER, 2008, p. 56-57).

Dessa forma, aponta que a análise seja uma abertura e fechamento


de ciclos, mas ao mesmo tempo, esses ciclos estão interligados. Ou seja, é
necessário que um ciclo se feche para proporcionar a abertura de um
próximo. Acrescenta que a conclusão de um ciclo pode ser realizada apenas
pelas condições de entrada em um novo ciclo (MILLER, 2008), afirmando
nestes termos: “parece-me muito interessante pensar em termos de ciclos

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porque se desidealizam as conclusões e, sobretudo, porque as diversificam”
(p. 83). Ainda, questiona se a análise não é sobre terminar e recomeçar por
diversas vezes e porque não dizer, abrindo e fechando ciclos.
É acreditando nessa teoria que o trabalho do analista em um único
atendimento adquire mais solidez. A aposta é que o analista, ao ofertar um
espaço de escuta, possa instaurar a possibilidade de que esses ciclos sejam
trabalhados, mesmo com a brevidade do tempo cronológico. Dessa forma,
essa proposta de intervenção do psicólogo na instituição hospitalar tem como
aposta realizar uma mudança na posição subjetiva do sujeito ou pelo menos,
uma abertura a novas possibilidades de pensar seu lugar de sujeito. Assim,
ciente dos preceitos fundamentais da psicanálise, que carrega consigo as
noções de política, estratégia e tática, conforme elaborados por Lacan, e
acreditando na potencialidade que as entrevistas preliminares podem ter, na
ótica de Miller, o analista deve acreditar na abertura de um novo ciclo que é
realizada pelo encontro com o analisante.

3.2 O Inconsciente está em todo lugar

É a partir do que foi exposto anteriormente que este trabalho progride


e propõe o diálogo entre os marcos teóricos psicanalíticos explicitados e as
vinhetas clínicas colhidas pela psicóloga residente na unidade de urgência e
emergência do hospital de trauma, na qual o encontro com o paciente
ocorreu uma única vez. Assim, serão realizadas ancoragens teóricas com o
objetivo de debater sobre as questões referentes à clínica psicanalítica no
pronto-socorro hospitalar.

3.3 Primeira vinheta: Ana, existem outras versões de si?

“Estava no plantão quando fui solicitada pela enfermeira da equipe


que atendia aos pacientes do corredor da emergência. Quando pergunto o

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que aconteceu, relata que tem uma paciente, que é uma boa pessoa, mas
que está chorando devido a situação em que se encontra. Questiono qual a
situação clínica e a enfermeira fala brevemente que se trata de uma queda
de moto e que a paciente precisa realizar uma cirurgia. Dirijo-me a paciente,
apresento-me como psicóloga e pergunto o que aconteceu. Ela logo começa
a chorar e me conta que é agente comunitária de saúde e que trabalha no
interior. Sofreu uma queda de moto e que agora aguarda uma cirurgia.
Porém, não consegue compreender por que não tem uma melhor assistência,
visto que ela menciona que vive “para ser agente de saúde 24 horas do seu
dia e que busca ser exemplo para todas as pessoas da sua cidade”. Durante
todo o atendimento, Ana constantemente reafirmava sua posição enquanto
agente de saúde. Queixava-se, pois, ao assumir essa posição, desistia de ser
Ana em outros lugares, que, pelo seu discurso, desejava, mas que terminava
abrindo mão pelo seu comprometimento quanto ao cargo que ocupava na
assistência da saúde de outras pessoas. Falava da sua vontade em sair,
brincar, dançar, namorar e o fato de abdicar de viver essas outras cenas para
não deixar cair sua imagem de agente de saúde. O discurso que chegava a
mim era da necessidade de manter-se firme somente em uma posição, isto
é, de agente de saúde, e que para haver espaço para outras, era necessário
abrir mão de ser uma servidora exemplar. Parecia-me que viver outras
cenas, assumindo outras posições, anularia a imagem que Ana queria passar
no seu trabalho”.
O hospital é um cenário que muitas vezes se manifesta algumas
questões nunca pensadas pelo sujeito. Ao se deparem com a cena hospitalar
e todas as especificidades deste contexto, o aparecimento daquilo que se
denomina urgência subjetiva pode emergir, tomando o sujeito de uma forma
que ele não consegue dá significado pela palavra.

“A apresentação clínica da urgência sempre traz o confronto do


sujeito com um excesso: ruptura aguda, queda do equilíbrio no qual
a vida se sustentava, irrupção do real que conduz o sujeito ao grito

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sem articulação significante. A situação de urgência subjetiva se
desencadeia diante da impossibilidade de um sujeito dar sentindo a
algo, algo que é o encontro com um real que não se deixa significar”
(BATISTA, 2011, p. 135)

Ao longo do atendimento, diante da fala de Ana foi percebido que a


ela vivia em função de ser agente de saúde 24 horas do seu dia. Quando
chegou ao hospital, acreditava que o fato de ser profissional de saúde e
devido sua dedicação ao trabalho lhe traria benefícios ou que seria colocada
como prioridade. Quando se deparou que era tratada igualmente como
outros pacientes, o significante sobre ser agente comunitária de saúde caiu,
causando-lhe angústia. Antes da internação hospitalar o que sustentava sua
devoção ao trabalho era o fato de se sentir importante pelo que realizava.
Desta forma, “pode-se afirmar que, se existe a desorganização que convoca
a urgência, é porque previamente algo ‘resistia bem’, existia uma
subjetividade relativamente organizada” (Batista, 2011, p. 135).

Diante dessa situação, o que é possível ao analista? Cabe ao psicólogo


hospitalar inquirir o paciente acerca daquilo que de fato o incomoda,
em outras palavras, “temos que admitir o conteúdo de urgência da
queixa, mas o trabalho é para que possa surgir uma demanda”
(MOURA, 2000, p. 8-9).

Ana continua narrando sobre as atividades que não fazia ou


momentos que não aproveitava porque não queria dá motivos para que a
população falasse, apesar de trazer consigo o desejo de experenciar
situações comuns à sua idade. Quando questionada quem era a Ana mulher,
a Ana amiga, a Ana filha, ficava em silêncio. Moura (2000) descreve que ao
intervir através de ações diretivas, muitas vezes necessárias em situações
de urgência, elas devem ser feitas de modo que sua ação produza como
efeito um sujeito.
Para finalizar o atendimento, faço o seguinte questionamento: “Por
que você se reduz a ser só agente de saúde, quando você pode ser muitas
coisas além disso?”. Comunico que ficaríamos por ali e que seguiria

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acompanhando-a. Ao voltar no dia seguinte, Ana tinha sido transferida para
outro hospital para realizar a cirurgia.
Mesmo que em um único atendimento, foi possível ofertar a Ana um
espaço de escuta e convidá-la para construir um relato sobre a sua história.
Isto implica dizer que “a urgência psíquica ocorre quando um sujeito atingiu
o limite e requer resolver algo aqui e agora” (MACÊDO et al., 2010, p. 3).
Será na introdução de uma pausa, de um espaço para que o sujeito fale, que
ofertaremos a escuta da sua subjetividade (SELDES, 2008). Diante da
escuta, na presença da psicóloga residente no contexto hospitalar, o que era
uma urgência generalizada agora se torna uma urgência subjetiva. Como
propõe Sotelo (2009), apostar na palavra é o primeiro passo para lidar com
as questões da urgência. Desse modo, “a urgência tomada como subjetiva
pelo acolhimento do psicanalista tem como direção situar para o sujeito uma
‘outra cena’, a do inconsciente” (BATISTA, 2011, p. 136).
Uma questão importante na clínica da urgência é a dimensão do
tempo lógico, conforme foi explicado por Lacan (1998c) em seu texto “O
tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”, no qual vai apresentar um
sofisma para ilustrar a relação da temporalidade subjetiva com a lógica.

“No sofisma, um diretor de presídio convoca três prisioneiros e propõe


a eles um teste em troca de sua liberdade: apresenta cinco discos,
sendo dois pretos e três brancos, e fixa um disco nas costas de cada
um dos três prisioneiros, sem que eles saibam qual a cor fixada em
si. O primeiro que identificasse a cor do disco que estava fixado em
suas cotas poderia sair pela porta, mas não lhe seria permitido
conversar nem chegar perto de espelhos durante o teste, e o
vencedor deveria explicar qual a lógica que o levou à conclusão da
cor do disco afixado em suas costas. Desse modo, eles teriam que
deduzir a cor do disco sem vê-la, baseando somente nos discos que
estavam fixados nas costas dos outros dois prisioneiros (BATISTA,
2011, p. 138).

Adiante,

“O diretor ainda esclarece que a conclusão de cada um deve regular-


se por motivos de lógica e, não somente, de verossimilhança. O
primeiro a formular a resposta deverá transpor determinada porta

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para que, em particular, coloque a sua resposta em julgamento. Após
algum tempo de observação, os três avançam em direção à porta,
com o propósito de fornecer a sua resposta de modo particular como
foi sugerido pelo diretor” (AZEVEDO, 2019, p. 85).

No sofisma apresentado, segundo Lacan (1998c), os prisioneiros só


conseguem a liberdade após a articulação com um pensamento lógico e para
que isso aconteça é necessário que atravessem três tempos lógicos. De
acordo com a resolução do sofisma, Lacan vai nomeando momentos em que
os três tempos se manifestam. Em um primeiro momento, na qual os
prisioneiros se olham, configura-se como o instante de ver. Posteriormente,
cada prisioneiro começa a buscar uma solução para a situação, sendo aqui o
tempo para compreender. Por fim, cada prisioneiro chega a sua certeza e
tem urgência para explicar sua lógica, surgindo o momento de concluir.
A partir do sofisma podemos pensar o atendimento com Ana. Quando
o significante de ser agente de saúde cai diante da situação que está
submetida, Ana parece estar imersa numa urgência por concluir algo sobre
si, já que aparentemente o que sustentava sua posição como agente de
saúde não foi atualizada diante na nova situação que vivenciava.
A oferta da escuta por parte da psicóloga residente possibilita a
abertura de um espaço que pode fazer o sujeito olhar para o que lhe afeta
e, a partir disso, dar um novo sentido ao que se passa consigo. Não é possível
ter certeza em qual tempo lógico o paciente encontra-se ou até mesmo se o
encontro com o analista vai necessariamente propiciar um avanço para o
tempo de compreender ou para o tempo de concluir. Pode ser que o encontro
entre analista e analisante se dê para entrada no instante de ver. Mas quem
sabe? Ninguém sabe. Porém, não saber não anula a aposta que algo foi
possível naquele momento.
Neste caso, o que permitiu a aposta da analista em trabalhar as
questões mencionadas pela paciente no seu único atendimento foi sua
estratégia enquanto o manejo da transferência no contexto hospitalar, até

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porque sem transferência o atendimento fundamento pela psicanálise não
existe. Deste modo, a psicanálise é uma experiência em transferência.
Quanto a sua tática, ela apenas foi construída a partir do material que era
exposto pela paciente em uma relação transferencial.
Percebe-se que Ana parecia fechada em um ciclo na qual sua posição
enquanto agente de saúde regia em todas as suas ações. Com a possibilidade
de ser atendida, o desejo foi levar Ana a se questionar os motivos em que
abria mão de viver outras experiências e por que isso necessariamente iria
derrubar a sua imagem profissional, como se fosse uma questão de causa e
efeito. O atendimento com Ana foi uma aposta na abertura de um novo ciclo
e abrir espaço para que ela buscasse suas outras posições.

3.4 Segunda vinheta: Maria e seu filho Salvador

“Horário de almoço quando a fonia do hospital chama pela psicologia


na emergência. Inicialmente, um estranhamento e uma suposição: algo de
muito ruim aconteceu para a fonia chamar. Os outros membros da equipe
multiprofissional já falavam sobre os boatos: “acho que foi uma criança”;
“tem uma criança na sala vermelha”; “parece que a mãe está desesperada”.
Mesmo que no momento, não estivesse sob minha responsabilidade aquele
setor, ofereci-me a ajudar a psicóloga que era responsável. Assim, descemos
juntas e já no elevador, continuávamos a ouvir “a mãe está gritando muito”;
“parece que foi choque elétrico”; “a criança morreu, será?”; “vamos lá ver”.
Nesse contexto, chegamos ao encontro não só da mãe, que chamaremos de
Maria, mas também de toda a família (pai, avós, tios). Junto a eles,
profissionais assistindo a cena de choro e desespero da família e,
principalmente, de Maria. Alguns profissionais chorando e outros oferecendo
copos e copos de água. Eu e a outra psicóloga fizemos uma divisão rápida
para saber com quem ficaria o suporte da mãe e do pai, inicialmente. Fiquei

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com a mãe e a outra psicóloga com o pai. Não tinha como darmos de conta
de todos os familiares, então fomos por partes”.
O óbito de pacientes no hospital é uma cena recorrente e que está
inserida no contexto de trabalho do psicólogo na urgência e emergência.
Diante dessas cenas é possível que o sujeito se apresente imerso na
angústia. Ou seja, sem conseguir colocar em palavras a situação que vive.
Segundo Lacan (2003), a angústia é a falta da falta. Explicando de outra
forma, Lacan propõe que somos sujeitos do inconsciente e estamos sempre
desejando algo que nos falta. Esta falta é o que nos move e impulsiona nossa
busca por preenchê-la. Estamos sempre buscando objetos desejantes e
mesmo quando alcançamos nos damos conta de que outra coisa falta. Na
angústia, propõe que foi encontrado um objeto, que o denomina de objeto a
que tampona o buraco daquilo que está em falta para o sujeito. Assim, se
não tem mais o que procurar, o sujeito entra na angústia, pois não há mais
nada naquele espaço para mover seu desejo.
O que pode ser pensado no atendimento realizado com Maria é que o
filho ocupava toda a sua causa do desejo, pois atribuía a ele toda a sua
mudança de vida e ao surgimento da sua posição materna. Com o seu
falecimento, o que advém é a angústia que é proveniente do encontro da
mãe com o seu objeto a, que a princípio não há como determiná-lo, mas se
aproxima falando dele. Então, “a angústia não se apresenta como um sinal
de uma falta, mas sim, como o excesso de algo que deveria permanecer
faltoso” (AZEVEDO, 2019, p. 60). Ou seja, a falta aparece preenchida.
Portanto, o que vemos nesses momentos de angústia é que “essa falta vem
a faltar, fazendo com que as articulações significantes se desfaçam na
angústia” (AZEVEDO, 2019, p. 62).
Então, “No que consiste o trabalho diante da angústia?”. A resposta a
esta questão é enunciada por Moretto (2019b), nestes termos: “é se oferecer
como escuta, como um Outro que possibilita a fala, dado que as formações

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simbólicas têm como função dar conta da angústia, ainda que não toda” (p.
103).
Diante da cena de óbito da criança, o ponto de partida para o fazer
psicológico no hospital é promover a criação de uma narrativa, que possa,
minimamente, dar conta daquilo que acaba de acontecer. Dito de outra
forma, buscar algum contorno da situação pela palavra. Assim, aproximei-
me de Maria e me sentei ao seu lado. Apresentei-me e fiquei em silêncio
enquanto ela chorava. Aos poucos, fui perguntando o que havia acontecido
e quem era aquela criança que havia acabado de falecer. Para além da
história de como ocorreu de fato o óbito, a mãe começa a narrar que aquele
filho significou para ela a sua mudança de vida. Ficava intercalando entre os
momentos de choro/desespero as narrativas sobre a história do filho. Além
de ofertar um espaço de escuta, também ofereci uma posição de testemunho
ao que está sendo falado.
Segundo Moretto (2019b), o que confere o caráter traumático a um
acontecimento não é o acontecimento em si, é a forma pela qual ele é
incluído – ou pior, excluído – no seu campo de relações. Ou seja, muitas
vezes, quem está ali ao redor não quer que o sujeito fale ou se recorde de
quem perdeu. Ao longo do atendimento a essa mãe, escutava muitas falas,
por exemplo: “você vai ter outro filho”; “Deus vai lhe fortalecer”, o que nos
indica uma precariedade na legitimação do sofrimento por parte daquele que
fala. Logo, a presença da psicóloga além de apostar na construção de uma
narrativa, colocando a palavra em cena para dá contorno ao acontecimento,
também assume uma posição de legitimar e testemunhar o sofrimento do
outro.
Mais uma vez, a tática foi utilizada de maneira singular e construída
em cena com o que era possível em meio a transferência com a mãe,
permitindo que ela pudesse iniciar algo de um contorno à morte do filho e
um processo de subjetivação desse início.

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4. Considerações Finais

Observa-se que nas duas vinhetas, ciclos foram abertos no contexto


hospitalar e que por meio da escuta e intervenção de cunho psicanalítico
esses ciclos caminharam para algum desfecho, evitando-se uma experiência
que poderia paralisar o sujeito diante da vida por falta de palavras que desse
conta do sofrimento.
Este artigo testemunha a trajetória de uma profissional de psicologia
no hospital, e mais especificamente, no setor de urgência e emergência de
um hospital de trauma. Foram a partir desses questionamentos que este
tema surgiu e fez laço história de si próprio com a clínica psicanalítica. A
grande questão partia do fato de realizar somente um atendimento aos
pacientes/familiares no setor de urgência e emergência e, devido a isso,
como poderia sustentar que esse único atendimento era realizado a partir da
clínica psicanalítica.
Logo, foi necessário pensar sobre algumas construções teóricas da
psicanálise e como podemos nos utilizar delas em outros espaços. Detalhou-
se alguns conceitos importantes que serviram de base para sustentar a
atuação do psicanalista no setor de urgência e emergência de um hospital.
Posteriormente, entendendo que a construção da clínica psicanalítica envolve
teoria e prática, foram selecionadas vinhetas clínicas de atendimentos
realizados uma única vez, com a intenção de trazer debates com a teoria
explanada.
Por fim, diante da discussão realizada é admissível afirmar que sim,
é possível ter uma escuta e intervenção a partir do referencial psicanalítico
em um contexto de urgência e emergência, mesmo com uma única sessão e
para isso a condição é que os preceitos essenciais psicanalíticos sejam
respeitados.

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