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QUIXOTES DA SAÚDE

RESSONÂNCIAS ENTRE A MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE


E A MEDICINA SOCIAL

Trabalho de conclusão do Internato em Medicina de Família e


Comunidade, Saúde Coletiva e Saúde mental

Autor: Paulo Tomaz Feliciano da Silva


Graduando em: Medicina (12º período)
Email: paulotomazz@gmail.com
Instituição de Ensino: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Local de estágio: Clínica da Família Victor Valla, Manguinhos (RJ)
QUIXOTES DA SAÚDE: RESSONÂNCIAS ENTRE A MEDICINA DE FAMILIA E
COMUNIDADE E A MEDICINA SOCIAL

APRESENTAÇÃO
O presente trabalho de conclusão em Medicina da Familia e Comunidade/Saúde
Coletiva/Saúde Mental, encerra tanto uma rodada do internato quanto uma graduação em
medicina. A rodada compreende estágio na Clínica da Família Victor Valla, no Caps II
Magal (RJ) e no Consultório na Rua Cap 3.1 (RJ).
Aqui o autor buscará pensar a Medicina de Família e Comunidade(MFC) brasileira
como um campo privilegiado para se problematizar questoes candentes e atuais da
medicina e da sociedade como um todo.
Este trabalho é fruto do encontro, pelo autor, através da medicina, de realidades
conflitantes e urgentes. Tem por objetivo levantar argumentos e questionamentos
relevantes a respeito de questões candentes e pertinentes à medicina, à politica, à guerra
de classes, ao papel da universidade e do conhecimento científico, culminando na
reflexão sobre uma própria visão da medicina, da ciência e da sociedade, bem como os
limites das suas instituições ditas democráticas. Se propõe uma discussão atual sobre
problemas atuais, buscando trazer ao leitor um debate atualizado e de alto nível,
possibilitando ao leitor receber instrumental teórico de qualidade, e não meros
reducionismos e simplificações, que são, antes de tudo, uma ofensa à inteligência de toda
comunidade acadêmica e profissional, implicadas nas questões abordadas, além de toda
sociedade brasileira(que financia, sem saber, duvidosas pesquisas). Lança mão de
estudos de história, geografia e filosofia, é fruto de uma pesquisa motivada, de
experiências múltiplas de vida que se somam e se conflitam, e de uma trama de ideias e
deveris que são tão pessoais quanto coletivos. O trabalho é científico. E toda ciência é
datada, histórica, construída em rede. A análise será feita à luz das contribuições de
Foucault, que além de ter deixado uma herança valiosa de vasto estudo teórico com
diagnósticos cirurgicos do nosso tempo, deixa também os frutos de múltiplas reformas
psiquiátricas, no Brasil e no mundo, tendo a obra desse autor muito impactado a vida de
milhões de pessoas, sejam elas conscientes disso ou não. O diálogo será feito com
autores brasileiros.
Utilizando-se de vasto referencial teórico, baseado sobretudo no trabalho de
Foucault e de autores brasileiros, o desenvolvimento se dará através do cruzamento de
alguns conceitos-chaves: “territorio”, “medicina social”, “medicina liberal”, “medicina
baseada em evidencias”, entre visões e concepçoes diferentes para cada autor.

MÉTODO
“Loucura, sim, mas tem seu método!” HAMLET

Será utilizado o método dedutivo. Pretende-se, a partir de uma análise histórica,


política, científica, da experiência pessoal e de uma leitura teórica (análise bibliográfica),
fazer conclusões a respeito dos temas abordados.
Para tanto, o autor irá analisar as condições de implementação da ESF, programa
que estrutura a atuação do profissional de MFC, da conceituação teórica às práticas de
implementação e funcionamento dos serviços, através de revisão bibliográfica de autores
brasileiros. Em seguida o conceito de Medicina Social de Foucault será introduzido, e
através dele o autor irá buscar instrumental para guiar as análises, bem como fazer
questionamentos e propor respostas. Então o conceito de territorio será trabalhado, e
servirá de norte para apronfundar a discussão. Em seguida, será analisado o conceito de
medicina liberal. Por último, será colocado em quetionamento a Medicina Baseada em
Evidências(MBE).

INTRODUÇÃO: QUIXOTES DA SAÚDE


Quero começar apresentando uma espécie de mito de criação. Um mito que virá a
se tornar um arquétipo do homem moderno, segundo a literatura universal: Dom Quixote
e o herói das causas impossíveis. As relações com algumas narrativas apresentadas ao
longo do trabalho, sobretudo quando irei tratar das aventuras do médico moderno,
burgues, liberal, com o nascimento da clínica (FOUCAULT, 1980), não são meras
coincidências.
Segundo Lukács, em a Teoria do Romance (1933), o quixotismo faz referência a
um “indivíduo em conflito com a sociedade(...) Em solidão em um mundo decadente(...)
fechado em um universo de certezas absolutas. Assim, todas as suas ações estão
voltadas para a realização de um projeto de vida incompatível com a realidade,
provocando sua ruptura com o mundo”.
Não foi coincidência, também, que o autor desse trabalho teve conhecimento e
contato, em 2017 enquanto estagiava num Caps AD, com um programa de pesquisa e
extensão e de conscientização, abstencionista, promovido pelo IPPMG-UFRJ, financiada
pelo governo, chamado Quixotes da Saúde. Afinal, “Fumar faz mal para você, fumar faz
mal ao planeta!”.

AGRADECIMENTO
Faço desse trabalho um espaço de singelo agradecimento ao psicólogo Claudio
Francisco, a quem pude acompanhar no CAPs AD Raul Seixas seu compromisso em
levar um cuidado pautado por uma ciência verdadeiramente ética e responsável, ao
cidadão mais necessitado. São profissionais como Claudio, que não desistem em colocar
a VIDA frente às engrenagens institucionais rígidas, viventes e sobreviventes das
trincheiras pela saúde, na linha de frente da luta, sob plena desvalorização, que me fazem
acreditar no SUS e no tal “profissional da saúde”.

“Toda violência é fruto da desigualdade social”


“O Inconsciente é a Política”
“Nenhum saber é suficiente por si só”

Obrigado CLAUDIO FRANCISCO.


QUIXOTES DA SAÚDE: RESSONÂNCIAS ENTRE A MEDICINA DE FAMILIA E
COMUNIDADE E A MEDICINA SOCIAL

A MEDICINA DE FAMILIA E COMUNIDADE


Segundo Anderson e companheiros, a Medicina de Família e Comunidade “adquiriu
relevância na constituição dos novos paradigmas na área da saúde e, conseqüentemente,
nos campos da formação de recursos humanos e da pesquisa. Isto porque seus princípios
e práticas são centrados na pessoa (e não na doença), na relação médico-paciente, na
interlocução com o indivíduo contextualizado. Entende que o processo saúde-
adoecimento é um fenômeno complexo, relacionado à inter-ação de fatores de ordem
biológica, psicológica e sócio-ambiental.”(ANDERSON,GUSSO,CASTRO FILHO).
Segundo o paradigma ciêntífico do sujeito bio-psico-social, a saúde seria “o
resultado de um processo de produção social que expressa a qualidade de vida como
uma condição de existência dos homens no seu viver cotidiano, um viver 'desimpedido',
um modo de 'andar a vida' prazeroso, seja individual, seja coletivamente” (PEREIRA,
BARROS, AUGUSTO).
Ainda segundo Anderson, “essa especialidade possui uma epistemologia bem
definida. Ela não é onisciente ou se define em torno de problemas banais ou de fácil
resolução”. atentando para o fato que a MCF não pode ser “novidade no Brasil ou no
mundo. Também não significa o simples retorno do 'médico de família' antigo ” já que
seria provida de uma “disciplina específica ou mesmo dos avanços modernos da
ciência”(ANDERSON,GUSSO,CASTRO FILHO).
A tentativa de uma diferenciação entre o Médico de Família e o Médico clínico geral
parece ser estratégico para desnudar os verdadeiros discursos que atravessam ambas as
categorias, possibilitando avaliar com clareza quais as linhas reais de roptura e
continuidade entre ambas.
A MFC enquanto especialidade médica é criada no Brasil em 2001, mas já atuava
sob o nome de Medicina Geral Comunitária desde a decada de 70. Na origem, a
especialidade remonta ao Médico Geral (general practitioner) da Inglaterra pós-2º guerra,
que àquela época se preocupava em “alcançar os pacientes precocemente no ambiente
domiciliar, provendo cuidados contínuos, incluindo a prevenção das doenças, fossem elas
de natureza mental ou física”(CAMPOS). Foi com o a mudança trazida pelo modelo
Flexner no ensino médico, uma espécie de radicalização da medicina neoliberal, tendo
culminado na hiperespecialização da medicina, que o campo dos Médicos Gerais
somaram-se ao movimento da Medicina Comunitária. O “enfoque da medicina comunitária
se fez, sobretudo, na ação social – destinada, principalmente, aos grupos marginalizados”
(AGUIAR), ou, “em seu contexto epidemiológico e social.” (CAMPOS). É nesse contexto
que o médico geral comunitário (médico familiar, nos EUA), começa a organizar-se num
movimento em torno de uma visão conflitante daquela que eles consideraram medicina de
hiperspecialização e da medicina de alta tecnologia. A classe médica percebe que a
maneira como as sociedades se organizam e interferem na medicina através da política
interfere, drásticamente, na organização e na construção da própria medicina, bem como
modifica as relações de poder e relações econômicas dentro desse grande mercado: a
medicina. Em 1970, 80% dos médicos nos EUA eram de especialistas. A partir da década
de 70, o termo médico geral começa a ser substituído por médico de família, que começa
a firmar sua identidade enquanto especialidade médica. Nos anos que se seguiram, viu
investida de esforços para fortalece-la no mundo todo: “todos os países deveriam produzir
generalistas nos quais o povo possa ter completa confiança e isto não poderia ser
alcançado sem que a qualidade e a duração do treinamento sejam comparadas com
outros clínicos” (CAMPOS).
Com a Conferência de ALMA ATA (1978), a Atenção Primária em Sáude – APS, foi
definida como campo de atuação da MCF, segundo a qual deve, “partindo de um primeiro
e fácil acesso, cuidar de forma longitudinal, integral e coordenada da saúde das pessoas,
considerando seu contexto familiar e comunitário.”(ANDERSON,GUSSO,CASTRO
FILHO, 2005).
A APS foi “definida como um conjunto de ações, de caráter individual ou coletivo,
situadas no primeiro nível de atenção dos sistemas de saúde, voltadas para a promoção
da saúde, a prevenção de agravos, o tratamento e a reabilitação (BRASIL,1999)”.
Aqui estão reunidos os princípios, conceitos e recomendações internacionais
formalizadas pela Organização Mundial dos Médicos de Família (WONCA, 2002):
– Atuar, prioritariamente, no âmbito da Atenção Primaria à Saúde, a partir de uma
abordagem biopsicossocial do processo saúde-adoecimento.
– Desenvolver ações integradas de promoção, proteção, recuperação da saúde
no nível individual e coletivo.
– Priorizar a prática médica centrada na pessoa, na relação médico-paciente,
com foco na família e orientada para comunidade, privilegiando o primeiro
contato, o vínculo, a continuidade e a integralidade do cuidado na atenção à
saúde.
– Coordenar os cuidados de saúde prestados a determinado indivíduo, família e
comunidade, referenciando, sempre que necessário, para outros especialistas
ou outros níveis e setores do sistema, mas sem perda do vínculo.
– Atender, com elevado grau de qualidade e resolutividade, no âmbito da Atenção
Primária à Saúde, cerca de 85% dos problemas de saúde relativos a uma
população específica, sem diferenciação de sexo ou faixa etária.
– Desenvolver, planejar, executar e avaliar, integrada à equipe de saúde,
programas integrais de atenção, objetivando dar respostas adequadas às
necessidades de saúde de uma população adscrita, tendo por base
metodologias apropriadas de investigação, com ênfase na utilização do método
epidemiológico.
– Estimular a resiliência, a participação e a autonomia dos indivíduos, das
famílias e da comunidade.
– Desenvolver novas tecnologias em atenção primária à saúde.
– Desenvolver habilidades no campo da metodologia pedagógica e a capacidade
de auto aprendizagem.

Outro movimento que se somou à MFC, com a trajetória da reforma sanitária


brasileira, é o da Saúde Coletiva, iniciada, segundo Nunes, em 1980:
“Fundamentando-se na interdisciplinaridade como possibilitadora de um
conhecimento ampliado de saúde e na multiprofissionalidade como forma de enfrentar a
diversidade interna ao saber/fazer das práticas sanitárias. A saúde coletiva – constituída
nos limites do biológico e do social – continua a ter pela frente a tarefa de investigar,
compreender e interpretar os determinantes da produção social das doenças e da
organização social dos serviços de saúde(...). A saúde coletiva, ao introduzir as ciências
humanas no campo da saúde, reestrutura as coordenadas deste campo, trazendo para
seu interior as dimensões simbólica, ética e política” (NUNES apud MENEGHEL).

MEDICINA SOCIAL: INSTRUMENTO DE DENÚNCIA OU DE DOMINAÇÂO?


Em “Medicina Social: Um instrumento para denúncia”, Stela Nazareth Meneghel
afirma “cabe à epidemiologia reforçar o desnudamento das inequidades e acentuar a
importância do retorno ao papel político social da medicina wirchowiana, papel de apontar
e denunciar as injustiças que acontecem em relação à saúde.”(MENEGHEL).
Segundo Wirchow, ao definir Medicina Social, “a ciência médica é intrínseca e
essencialmente uma ciência social”, que “as condições econômicas e sociais exercem um
efeito importante sobre a saúde e a doença e que tais relações devem submeter-se à
pesquisa científica” e que “o próprio termo saúde pública expressa seu caráter político e
sua prática deve conduzir necessariamente à intervenção na vida política e social para
identificar e eliminar os obstáculos que prejudicam a saúde da população” (ROSEN,
1980). Wirchow assume uma postura biomédica ao postular sua Medicina Social, quando
separa em entidades indepententes as categorias da Saúde, doença e sociedade. O
espaço social seria uma dimensão da vida que deveria ser estudada, compreendida e
controlada, a fim de não interferir indevidamente na dimensão da saúde. Enquanto a
medicina social estudaria o espaço social, a medicina tradicional se ocuparia de atualizar
o sistema de classificações, ou o quadro de doenças, bem como a Industria Farmaceutica
continuaria a prover de eficientes soluções farmacológicas. O espaço social, e o homem
enquanto sujeito biológico, poderiam ser colocados como objeto da pesquisa científica,
sem qualquer prejuizo nos seus procedimentos: “foi esta reorganização formal e em
profundidade, que criou a possibilidade de uma experiência clínica. Finalmente,
pronunciar sobre o indivíduo um discurso de estrutura científica”(FOCAULT, 1980). Daí, a
Medicina Social postulada por Wirchow ser nada mais do que a atualização de si mesma,
a repetição daquilo que Foucault bem demonstrou.
Segundo Foucault, a medicina social “regula-se mais, em compensação, pela
normalidade do que pela saúde; é em relação a um tipo de funcionamento ou de estrutura
orgânica que ela forma seus conceitos e prescreve suas intervenções; e o conhecimento
fisiológico, outrora saber marginal para o médico, e puramente teórico, vai se instalar no
âmago de toda reflexão médica” (FOUCAULT, 1980). A organização interna desse ser
organizado faz-se na bipolaridade médica do normal e do patológico.
É nesse corpo biológico reificado que, “antes de tudo, investiu a sociedade
capitalista. O corpo é uma realidade bio−política. A medicina é uma estratégia
bio−politica”(FOUCAULT, 1979). Assim, o corpo foi “investido política e socialmente como
força de trabalho”(FOUCAULT, 1979).
A medicina social seria então essa estretégia biopolítica de socialização das
massas como força de trabalho, iniciada no séc. XVIII, tomando forma nos séc. XIX e XX,
mantendo-se até os dias de hoje.
Um dos fatores essencias nesse processo foi a “normalização da prática e do saber
médicos: Procura−se deixar às universidades e sobretudo à própria corporação dos
médicos o encargo de decidir em que consistirá a formação médica e como serão
atribuídos os diplomas. Aparece a idéia de uma normalização do ensino médico e,
sobretudo, de um controle, pelo Estado, dos programas de ensino e da atribuição dos
diplomas.”(FOUCAULT, 1979). Isso garantiu que a medicina social neoliberal seria o único
modelo aceitável e vigente nas sociedades capitalistas modernas.
Com os anseios da Medicina Social, “se colocou o problema da unificação do poder
urbano. Sentiu−se necessidade, ao menos nas grandes cidades, de constituir a cidade
como unidade, de organizar o corpo urbano de modo coerente, homogêneo, dependendo
de um poder único e bem regulamentado.”(FOUCAULT, 1979). O médico deverá “distribuir
conselhos de vida equilibrados, mas a reger as relações física e morais do indivíduo e da
sociedade em que vive”, distribuirá o conhecimento do “homem não doente e uma
definição do homem modelo”. (FOUCAULT, 1980)
O burgues liberal viu, na medicina social e na biopolítica, uma oportunidade única:
“a luta contra a doença deve começar por uma guerra contra os maus governos”. Daí o
valor da liberdade liberal, toma importância na Medicina Social. Quem, se não os
médicos, poderiam lutar contra as “misérias humanas que não tem outra origem senão a
tirania e a escravidão?”(FOUCAULT, 1980). Pois ainda, “a melhor maneira de evitar que a
doença se propague ainda é difundir a medicina”.
Surge um mito imerso em contradição importante: “mito de uma profissão médica
nacionalizada, organizada, investida ao nivel da saude e do corpo”, onde haveria um
“desaparecimento total da doença em uma sociedade sem disturbios e sem paixões,
restituída à sua saúde de origem”(FOUCAULT, 1980), contraditoriamente onde não
haveriam necessidades de médicos, é que se faz sua utopia máxima.
É segundo esses mitos e preceitos que se fundam a Medicina Social e a prática
clínica, e, acima de tudo, sob uma estrutura político social e economica especifica. No
entanto, tanto os fundamentos da atividade clínica, que reúne a totalidade da experiência
médica liberal (FOUCAULT, 1980), quanto as estruturas da sociedade de classes, se
preservaram quase que silenciosos ao aos olhos da sociedade e da ciência.
Foucault se mostra bastante duro nas críticas à Medicina Social, destrinchando
uma forma de medicina social que classificou como a mais sucedida, e justamente aquela
que mais influenciou na medicina e nos sistemas de saúde atuais: o sistema Inglês.
Segundo Foucault, ele seria “essencialmente um controle da saúde e do corpo das
classes mais pobres para torná−las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes
mais ricas.” O sistema inglês “possibilitou, por um lado, ligar três coisas: assistência
médica ao pobre, controle de saúde da força de trabalho e esquadrinhamento geral da
saúde pública, permitindo às classes mais ricas se protegerem dos perigos gerais”.
Foi, ainda, inovador e original, pois “permitiu a realização de três sistemas médicos
superpostos e coexistentes; uma medicina assistencial destinada aos mais pobres, uma
medicina administrativa encarregada de problemas gerais como a vacinação, as
epidemias, etc., e uma medicina privada que beneficiava quem tinha meios para pagá−la.
Meneghal afirma que “não basta apenas denunciar a existência das desigualdades,
é necessário demonstrar objetivamente sua existência e procurar meios de dirimi-las”. De
fato, dentro os preceitos da Medicina de Família e Comunidade, da atenção primária em
saúde e da Saúde Coletiva, tecnologias e saberes que formam a Episteme da Medicina
Social, nenhum aprofundamento em questões de ordem estrutural da medicina capitalista
vigente pode ser observado nessa pesquisa. Do contrário, continua-se a apostar no
horizonte da conciliação de classes, onde a harmonia absoluta do espaço social se
deverá ao perfeito funcionamente das instituições burguesas e da estratégia biopolítca
neoliberal. A despeito disso, João Werner Falk, então Presidente da Sociedade Brasileira
de Medicina de Familia e Comunidade, estabele em 2004 as metas da MFC para o futuro:
“Buscar o desenvolvimento da MFC e da APS no Brasil, de forma consciente, crftica e
autõnoma, prestando, assim, sua parcela de colaboração para a melhoria das condições
de vida e saude da população brasileira”. Daí, apenas uma verdade histórica podemos
tirar: a depender da MFC, as estruturas sociais da sociedade brasileira permanecerão
exatamente as mesmas.
A MFC, atarefada com questões técnicas e operacionais – ela precisa atender
cerca de 85% dos problemas em saúde, absorta na trama da burocratização da vida pelas
instituições burguesas(universidades, judiciário, Estado, etc), assombrada por um sistema
de valores onde a verdade última é ditada pelo mercado(Neoliberalismo), não se
preocupou ainda em reorganizar em profundidade os cohecimentos médicos, nem na
possibilidade de um discurso próprio sobre a doença. Sendo essencial frizar que não se
tratam de incorporar paradigmas como meras receitas, caso de quando a MFC, a APS e a
SC tratam do paradigma bio-psico-social, mas da “reestruturação, em um contexto
histórico preciso, definir as estruturas insitucionais e científicas que lhe são próprias”
(FOUCAULT, 1980). Afinal, “não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a
materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos indivíduos” (FOUCAULT
1979).
Como contraponto, cito um exemplo de como a MFC não é totalmente infamiliar a
esse procedimento corruptor(um exemplo positivo). O que seria a adoção pela Atenção
Primária em Sáude das tecnologias de entrevista psiquiátrica baseada em valores, se não
um aceno para uma inlfexão e ruptura histórica da epistemologia científica, a Reforma
Psiquiátrica? “A Prática Baseada em Valores (PBV) é a base teórica e de habilidades para
as tomadas de decisões efetivas no cuidado em saúde, no qual diferentes (e, portanto,
potencialmente conflitantes) valores estão em jogo”(FULFORD, 2004). Significa, na
prática clínica, integrar o paciente nas decisões (FULFORD, 2008), e na prática teorico-
epistemológica, negar em certa medida aquela gama de diagnósticos psiquiátricos, que
impõem-se como verdades absolutas; são colocados, aqui, em absoluto segundo plano.

A “QUESTÃO” DO TERRITÓRIO
A implantação da ESF no contexto do APS rouxe um fato novo, refrescante: a
“utilização de conceitos e ferramentas inerentes à geografia no sentido de planejar a
territorialidade de políticas públicas, de equipamentos e ações”(PEREIRA, BARCELOS).
Para o geógrafo Rogério Haesbart, a concepção de território que prevalece é a de
Milton Santos, em que o uso do espaço define o território (HAESBART, 2011). Citando
Silva, Faria e Bartolozzi citam algumas das contribuições de Milton Santos à área da
saúde: “através da categoria espaço geográfico, a Epidemiologia pôde superar uma visão
não histórica do processo biológico e ao mesmo tempo entender os fatores econômicos,
sociais, políticos e culturais responsáveis pela produção das doenças endêmicas e
epidêmicas.”, onde “o conceito de espaço geográfico incorpora os determinantes naturais
e sociais numa visão de totalidade, que muitas vezes falta à análise epidemiológica”
(FARIA; BORTOLOZZI).
Os autores FARIA e BORTOLOZZI tratam logo de ligar a questão do territorio
diretamente à “questão de ética e da capitalização/mercadorização do setor saúde”.
Segundo eles, citando Milton Santos, “A geografia do acesso ou a geografia da exclu são
social pode revelar claramente a distância entre a teoria e a prática, processo que aponta
também para o distanciamento entre a universidade e a sociedade”. Para Pereira e
Barcelos, nas concepções de território utilizadas pela escola de Milton Santos e
defendidas por Haesbart, o conceito de território “está diretamente relacionado com
relações de poder”(PEREIRA, BARCELOS).
A abertura aos conceitos de geografia bem como a possibilidade de se investir
atenção e ação sobre eles pode ser vista na concepção dos movimentos da atenção
primária:
– MFC: Priorizar a prática médica centrada na pessoa, na relação médico-
paciente, com foco na família e orientada para comunidade (WONCA, 2002)
– MFC: Reconhecerá que também tem uma responsabilidade profissional para
com a comunidade (LEUWENHORST GROUP, 1977)
– APS: A saúde começa nas casas, nas escolas, nas fábricas (WORLD HEALTH
ORGANIZATION, 1981).
– Saúde Coletiva: investigar, compreender e interpretar os determinantes da
produção social das doenças e da organização social dos serviços de saúde
(NUNES)
É, portanto, “nesse sentido que a categoria território se mostra pertinente, tanto no
que tange ao alcance social dos bens produzidos pela sociedade moderna, quanto para a
investigação das realidades sociais mais deploráveis. Se de um lado o território - cenário
das relações sociais -, pode ser essencial para investigar a apropriação/dominação do
espaço e sua relação com a saúde, de outro, torna-se importante para o planejamento de
ações que permitam diminuir os impactos dessa apropriação na vida das pessoas”
(FARIA; BORTOLOZZI).
A minha tese é que para além de possibilitar um “planejamento territorial urbano
que pode tanto evitar a produção de doenças”(FARIA; BORTOLOZZI), a concepção de
trabalho em território pode abalar as próprias bases da Medicina Social.
É no diálogo das correlações de forças que o poder biopolítico se exerce, é nas
instituições burguesas que ele se ronava e se perpetua. A possibilidade de fazer emergir
as demandas de uma força oprimida, que no jogo de poderes seria fatalmente silenciada,
que está a possibilidade de inromper com a Medicina Social neoliberal, voltada nos seus
últimos fins para as demandas do mercado.
O campo de atuação em território é talvez o leito ideal onde a atividade profissional
médica(a clínica) pode exercer-se política e éticamente de forma plena, campo de
problematização das bases fundantes da medicina social, ou seja, as correlações de
forças presentes na estrutura da sociedade e que se impoe aos espaços, transformando-
os em territorios.
No entanto, segundo Pereira, no “caso do PSF, percebe-se a preocupação em
operacionalizar o conceito de território, sem, no entanto, uma discussão sobre os seus
múltiplos sentidos. Esta lacuna pode ser constatada pela pequena participação de
geógrafos em todos os níveis desse programa.”(PEREIRA, BARCELOS). Concluem que
“a delimitação de áreas e microáreas de atuação, essencial para a implantação e
avaliação do programa é, em geral, realizada com base apenas no quantitativo de
população, sem considerar a dinâmica social e política, inerente aos territórios.”
(PEREIRA, BARCELOS).
À nivel de comparação e reflexão, enquanto os planejadores da ESF limitaram-se a
se atentar a dados demograficos, reduziram o territorio a seu aspecto jurídio-politico, os
medicos burgueses presentes ao nascimento da clinica, na difusão da Medicina Social
liberal, utilizaram-se de “cuidadosos sumários sobre a região, as habitações, as pessoas,
as paixões dominantes, o vestuário, a constituição atmosférica, as produções do solo, o
tempo de sua maturidade perfeita e de sua colheita, assim como a educação física e
moral dos habitantes da região” (FOUCAULT, 1980).
Os resultados do autor confirmam minha hipótese de que a MFC brasileira pouco
está se estruturando no sentido de enfrentar as verdadeiras bases da desigualdades e
injustiças brasileiras. Como exemplo vou explorar dois casos ocorridos muito próximos e
durante a experiência vivida pelo autor enquanto aluno estagiário da Clínica da Família
Victor Valla, no ano de 2019, responsável pelo território da comunidade de Manguinhos
(RJ). Gerida por ambas instituições de maior prestígio acadêmico no Rio de Janeiro,
Fiocruz e UFRJ, a clínica é considerada amplamente modelo a ser seguido.
Os dados são do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Só
em novembro desse ano, foram registrados pelo menos 9 disparos na comunidade de
Manguinhos, ao menos 2 mortes.
Irei reunir aqui a reação oficial dada pelas Instuições referidas, em defesa da
população, da comunidade e dos serviços de saúde nele presentes, em especial a Clínica
da Família Victor Valla e o Caps II Magal, ambos atravessados em suas concepções pelo
conceito de território: Não há nenhuma.
A Fiocruz, instituição lider em pesquisa em Saúde Publica e Medicina Social,
orgulhosa de ocupar prestigio na história e na esquerda, de tradição marxista gramsciana,
não proferiu quaisquer palavras sobre o assunto. Não me refiro à atividades individuais de
seus pesquisadores, pois, ainda que fossem fartas denúncias nesse sentido, não
significaria o essencial: o discurso dominante das instituições burguesas que exercem o
poder biopolítico.
Infelizmente, a vida de pessoas pobres e negras é, também para nossas
instituições de ensino e pesquisa mais prestigiadas, algo de pouco valor. E quem a
valoriza, é o mercado. A explicação mais científica para isso é traduzida pelo sociólogo
Jessé Souza. Para Jessé, a burguesia brasileira jamais colocou em evidencia o principal
problema formador da nossa sociedade, a escravidão. Por causa de tal, ainda hoje os
pobres e negros são tidos como menos importantes em relação aos brancos e,
majoritarimante, mais ricos. A Fiocruz, assim como as instituições de ensino superior do
Brasil, herdaram essa idiologia e estrutura social burguesa, pois jamais se
problematizaram como tal.
Apenas para somar alguns números e motivos, até o mês de outubro foram
registradas 1.546 mortes por políciais, o maior numero de uma série histórica desde 1998.
O segundo exemplo é o caso da Agente Comunitária de Saúde Rosilaine, também
profissional da CF Victor Valla. Em julho de 2019, um juiz chocou o Brasil ao dar uma
decisão, na briga judicial pela guarda do filho da Acs, a favor do Pai, resultando na perda
da guarda pela Rosilaine. Os motivos arguidos pelo juiz seriam que “nos dias que correm,
é mais seguro residir fora do município do Rio de Janeiro”. O caso, apesar de ser um
imensurável absurdo, não é fato isolado, e reprenta mais um caso de exercício da
biopolítica burguesa, no caso, através da justiça fascista.
Em uma das manifestações, em Manguinhos, no meio do caminho entre a
comunidade, a CF Victor Valla e a Fiocruz(RJ), em que o autor esteve presente, foi
possível contar em algumas 3 dezenas o total de participantes, e alguns 5 a 10 presentes
das referidas instituições. Esse fato se soma às inesgotáveis evidências do que significa,
de fato, dizer que uma instituição é burguesa e liberal, na medida em que promove o
controle de uma determinada classe, e utiliza de um sistema de valoração onde a verdade
é determinada pelo mercado.
Para Vera Marques, pesquisadora da ENSP, “essa sentença me parece marcada
pela crença na superioridade de uma classe social sobre outra, assim como é também
sexista”.
É através da dimensão de relações e disposições desveladas pelo território, que
todas essas problematizações, aqui levadas ao limite em dois exemplos, passam a fazer
sentido dentro da própria concepção de saúde. É através do território que podemos,
mesmo que não tenhamos força de imediato para fazer abalar, transitar e operar no nível
fundamental da estratégia biopolítica.
Para finalizar, continuo com Pereira “desta forma, novamente são consideradas as
características e as territorialidades locais que possam ser impulsionadoras ou não do
PSF. Essas territorialidades locais são consideradas na prática do programa?” (PEREIRA)
Em "a mudança de moradores de um domicílio causa ruídos no sistema de
informação e dificulta o acompanhamento da população.” (PEREIRA), mesmo o autor
parece reduzir o conceito do território à sua dimensão operaionail, admnistrativa e de
gestão. Mortificam-se, assim, todas as urgencias e demandas reais de cada território
(como o enfrentamento das desigualdades e das injustiças sociais).
É tempo, na verdade é para ontem, de aqueles que estejam comprometidos com
um trabalho ético e responsável ofereçam apenas aquilo que a população precisa, de
maneira irrestrita. Não há mais como pensar a Clinica Victor Valla sem considerar o seu
entorno, as caracteristicas dessa comunidade, os problemas que sofre com a violencia e
o abondono do Estado. É preciso que os profissionais envolvidos na gestão, na
admnistração, nos técnicos, é preciso que outras instituições da sociedade que apoiam de
alguma maneira a saúde, como as escolas, as universdades, a mídia, as entidades, os
sindicatos, é preciso que todos apenas permitam pensar uma Clinica Victor Valla em
função da realidade do seu território. É preciso que a população, acima de tudo, não
permita alternativa outra.
A área da Medicina onde as dimensões político e social mais se impõe como
fundadores básicos, não só do objeto estudado por essa ciência, como da própria ciência
enquanto instituição formada por sujeitos, é evidentemente a Psiquiatria e a Saúde
Mental.
Um campo especifico dentro da saude mental pode ser destacado: o relacionado a
saúde dos usuários de álcool e outras drogas. A mudança do paradigma Abstencionista
para o da Redução de Danos impactou tanto na assistência aos usuários(acolhendo uma
gama de usuários até então excluidos do modelo Abstencionista), quanto no próprio
processo saúde-doença, possibilitando novas formas de experimentar a vida e formas de
viver, além de continuamente transformar o próprio SABER médico e científico.
Os problemas oriundos dessa transformação ocorrido no final do sec. xx dentro dos
processos de Reformas, são descritos, dentro dos próprios autores da Reforma, como
originados na hesitosa implementação do projeto Reformista. Tendo ele sido, na prática,
jamais implementado de forma sustentável, culminando na atual completa indecisão sobre
a sobrevivencia de politicas em Redução De Danos. O saldo da Reforma, sendo assim,
não teria atingido um valor satisfatório. Ademais, os resultados e frutos colhidos das
políticas de Redução de Danos são amplamente conhecidos e sustentados mundo afora.
Uma gama de exemplos extremamente práticos e consolidados sobre as
vantagens de se perseguir esse caminho onde realidades impostas por diferentes
territórios, conjunturas e saber locais, são incorporadas ao saber técnico, estão dentro da
Saúde Mental, mais especificamente dentro das propostas reformistas. Cito Hotel da
Loucura, idealizado por Vitor Pordeus, no Engenho de Dentro (RJ); a Tenda Paulo Freire,
idealizada pela Vera Dantas, no Ceará; dentre outros.

A MEDICINA LIBERAL
É fato que os autores da área da saúde no geral tendem a uma instrumentalização
de conceitos assimilados de outroas áreas. Já foram abordados dois exemplos, o
conceitos de “medicina social” e “território”. Apresento aqui o último: a medicina liberal.
Segundo Rômulo Maciel Filho e Célia Regina Pierantoni em “O médico e o
mercado de trabalho em saúde no Brasil”, os “baixos salarios aliados à
desregulamentação tem gerado uma tendência que à primeira vista poderia ser
confundida como um retorno à medicina liberal, revelada pela proliferação de consultórios
médicos conveniados com os sdeguros-saúde, mas que na realidade significa a tentativa
de recompor a renda perdida, e que se dá quase sempre associada à inserção em um ou
vários empregos, em geral públicos”(MACIEL FILHO; PIERANTONI).
Já segundo Genival Veloso de França, membro da Junta Diretiva da Sociedade
Ibero-americana de Direito Médico, o “ideal seria, na concepção de alguns, o exercício de
uma medicina amplamente liberal”, e chama atenção para o fato que “atender em
consultório particular não faz deste exercício uma profissão liberal”, já que “submeter-se,
por exemplo, às regras rígidas dos convênios, mesmo em consultório, não faz de nossa
profissão uma atividade estritamente liberal”(FRANÇA).
Aqui é possível notar com clareza a redução do sentido da palavra liberal à
profissional autônomo, sem qualquer consideração político-social-econômica. Quando,
segundo Foucault, no processo de formação da Medicina Social no sec XVIII, a Medicina
liberal burguesa que emergia dos novos Estados modernos, na segunda fase do
Capitalismo (capitalismo industrial), é marcada primordialmente por uma estatização total
do exercicio da profissão: “Vê−se, por conseguinte, que não se passou de uma medicina
individual a uma medicina pouco a pouco e cada vez mais estatizada, socializada. O que
se encontra antes da grande medicina clínica, do século XIX, é uma medicina estatizada
ao máximo. Os outros modelos de medicina social, dos séculos XVIII e XIX, são
atenuações desse modelo profundamente estatal e administrativo já apresentado na
Alemanha.”(FOUCAULT, 1980).
O termo liberal remete, aos médicos em geral, a uma “liberdade privada irrestrita”.
A liberdade presente nos fundamentos da lógica do liberalismo tem entretanto relação
com a liberdade de uma população e de indivíduos prontos a serem socializados como
força de trabalho no capitalismo.
O liberalismo, conforme nos sugere Foucault, “deve ser entendido então como um
tipo de racionalidade política que se opõe à ideia do liberalismo como doutrina, isto é,
como um sistema de ideias em que a liberdade seria o centro, ou como um ideal político,
ou, ainda, como uma forma de ideologia definida enquanto pensamento dominante: o
liberalismo deve ser visto, ao contrário, como o exercício máximo de um tipo de
racionalidade” (BONNAFOUS-BOUCHER appud DANNER).
Que racionalidade política? No regime de verdade liberal, quem dita a verdade é o
mercado. Segundo Foucault, na “solução liberal”, o mercado é o que importa. Trata-se de
uma uma arte de governar (razão de Estado) que se transforma, pela economia política,
em governo da população, cujo pano de fundo é o liberalismo e cujo regime de verdade é
o mercado.”(ARAÚJO).
Concluo que, como demonstrado, a estratégia biopolítica da medicina permanece a
da medicina social liberal. Cito, como evidência de como ela na verdade já se atualizou no
regime neoliberal, a Medicina Baseada em Evidências(MBE)

A MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS


Por último, quero analisar esse recente fenômeno dentro da grande área
biomédica. A MBE pode ser, talvez, entendida como uma radicalização do liberalismo,
numa transição neoliberal ou mesmo anarcocapistalista. Segundo Foucault, o
neoliberalismo “consistia em saber como “se pode regular o exercício global do poder com
base nos princípios de uma economia de mercado” (FOUCAULT appud DANNER). Ainda
segundo Foucault, a transição anarco-capitalista se dá quando o mercado for capaz de
constituir uma economia que é a verdadeira “ciência do comportamento humano.”:
“[A teoria do capital humano] permite reintroduzir esses fenômenos [a educação, a
criação dos filhos, a saúde etc.], não como puros e simples efeitos de mecanismos
econômicos que ultrapassarão os indivíduos e que, de certa forma, os atarão a uma
máquina imensa na qual eles não serão os amos; ela permite analisar todos esses
comportamentos em termos de empresa individual, de empresa de si mesmo com
investimentos e retornos.” (FOUCAULT, 2008)
Sobre a MBE, Camargo e Teixeira aponta: “no final do século XX a MBE passou a
reinar soberana nas decisões médicas. Nos melhores centros médicos, e na maioria das
disciplinas médicas, o "achismo", a opinião doutrinária, e a autoridade doutoral caíram em
desuso e os hard facts substituíram os palpites.”(CAMARGO,TEIXEIRA).
Segundo o autor, “ensaios clínicos estão voltados para o teste de drogas e são
patrocinados pela indústria farmacêutica. Isso cria uma MBE fortemente apoiada no uso
de drogas. São raros os ensaios clínicos sobre medidas diagnosticas ou sobre a etiologia
de doenças. Mais que isso, os ensaios preferem drogas de grande mercado, e de
mercado de primeiro mundo, como se pode concluir pelo grande número de ensaios
recentemente terminados, ou ainda em várias fases de andamento, dedicados à
hipertensão (252), ao diabetes (259), às doenças cardíacas em geral (1053), e ao câncer
(2258). Em contraste, para a malária, principal doença do terceiro mundo, existe um único
pequeno ensaio em andamento patrocinado pelo National Institute of Allergy and
Infectious Diseases (NIAID)”.
O autor compara as condições de aplicabilidade da MBE entre a região do sudeste,
aportada de recursos, com a de regiões remotas, onde há escassez: “mesmo assumindo
que os médicos dessas regiões tivessem pleno acesso à MBE, aplicá-la poderia ser
simplesmente impossível. Para as regiões subdesenvolvidas talvez as próprias perguntas
dos ensaios clínicos devam ser diferentes.”
França nos atenta para “os riscos existentes na “sacralização” deste novo
paradigma assistencial e pedagógico na sua forma de alcançar a verdade absoluta,
principalmente considerando-se algumas dificuldades na aquisição de publicações de alto
nível e no fato de a medicina clínica ser uma arte e não ciência exata”, argumenta que “os
quadros clínicos mais complexos não dispõem de elementos suficientes para decisão
mais convincente”(FRANÇA). Segundo ele, “se fizermos uma leitura mais atenta no
atualmente publicado em revistas de alto nível e grande circulação - como New England
Journal of Medicine, JAMA e British Medical Journal, entre outras - veremos que nos
trabalhos por elas apresentados não existe nenhum critério para fundamentar
“evidência””(FRANÇA).
O autor conclui que os riscos dessa novo paradigma residem no fato de ” levar as
pessoas a acreditarem existir mais evidências do que a medicina realmente tem”, além de
fazer, devido a atuação da indústria farmacêutica e de medicina de alta tecnologia,
profissionais acreditarem nas evidências não por seu valor científico, mas por serem
fomentadas por “centros alegadamente avançados”.
Ricahrd Horton, editor-chefe do The Lancet, disse em 2015: “O caso contra a
ciência é direto: grande parte da literatura científica, talvez a metade, pode simplesmente
ser falsa.”. Para Marcia Angell, ex-editora chefe do NEJM, “simplesmente não é mais
possível acreditar em grande parte da pesquisa clínica que é publicada, ou confiar no
julgamento de médicos confiáveis ou diretrizes médicas autorizadas. Não tenho nenhum
prazer nessa conclusão a qual cheguei lenta e relutantemente ao longo de minhas duas
décadas como Editora.”.
Segundo Dennis M. Black, Michael P. Kelly, Harry K. Genant et al, em artigo de
revisão publicado pela NEJM, conclui que as fraturas de fêmur causadas pela lucrativa
droga bifosfonato são “muito raras”. Nos conflitos de interesse, apenas 3 dos autores são
também empregados da indústria farmacêutica, empresa que produz o medicamento.
Segundo Sampaio, “Concluiu-se que os bifosfonatos demonstram, a partir de seus
mecanismos de ação, potencial para influenciar no processo de reparo de periodontites
apicais, e que mais estudos são necessários a fim de estabelecer uma relação causa-
efeito entre o uso de bifosfonatos e o processo de reparo de lesões ósseas.”(SAMPAIO).
A medicina científica de qualidade sempre foi e sempre será, baseada em
evidências (científicas), e a ela podemos refeir como medicina baseada em resultados,
essencial à prática clínica. França atenta para ao fato que a transição de uma medicina
baseada em Resultados para outro paradigma, ou ordem, tem a ver com os interesses
por trás do abandono de preceitos que ainda são úteis ou que ainda funcionam: trata-se,
enfim, de uma radicalização no lucros da economia médica. Representa, assim, a
transição de um modelo liberal para um modelo neoliberal no seu limite, ou mesmo
anarco-capitalista.
Como exemplo final, quero citar experiência vivida pelo autor na CF Victor Valla. A
utilização do Escore de Centor para o diagnóstico e terapêutica de amigdalite bacterianas.
Para beneficiar-se dos valores de sensibilidade e especificidade do teste, é necessário,
segundo o escore, dispor de um teste rápido de identifição do estreptococo. Quando
ausente a possibilidade de realizar o teste, o Escore perde seu sentido, na medida que
deixa de garantir seu resultado. O que acaba acontecendo, na prática, é o
hiperdiagnóstico de amigdalite bacteriana, que requer tatamento com antibioticoterapia,
em detrimento das virais, que podem ser conduzidas apenas com sintomáticos. Na
prática, o escore de Centor pode tornar-se um teatro clínico que tem por operador, no
fundo, um médico apavorado diante de uma profusão imensurável de informações
desconexas e esmagadoras, onde o que reina são as atitudes que asseguram ao direito
privado do médico segurança e conforto.
A MBE esqueceu, dentre tantas evidências, apresentar a principal: de que seu
projeto de sociedade, de estado, econonomico, científico, biomédico, neoliberal, é o que
trará FELICIDADE a uma parcela tão grande de excluídos do próprio sistema capitalista
que sustentam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quero desejar, antes do fim,
pra mim e os meus amigos,
muito amor e tudo mais;
que fiquem sempre jovens
e tenham as mãos limpas
e aprendam o delírio com coisas reais.
(Antes do fim, BELCHIOR)

Tendo em vista os limites teórico e práticos da MFC, aqui destrinchados, bem como
da medicina social como um todo, e de todas tecnologias biopolíticas, faz-se urgente uma
virada epistemológica carreada, antes de tudo, por um debate aprofundado e de
qualidade sobre os temas mais relevantes à sociedade brasileira.
É preciso lançar-se no dificultoso movimento da busca por unir teoria e prática,
ação e contexto, história e presente. A atitude básica é a de respeito a inteligência geral,
através da empatia (colocar-se no lugar do outro), e a de refutar tudo aquilo que nos
empobrece e nos simplifica, enquanto sujeitos holísticos e totais.
Num artigo da Lancet ("The weight of evidence"), Sergio Enrill traz uma espécie de
crônica/relato de caso: “primeiro paciente é um jovem hipertenso, que ele trata de acordo
com a boa MBE com beta-bloqueadores e diuréticos e que ameaça abandonar o
tratamento por causa da diminuição da libido e da impotência. O que fazer com este ou
com o próximo paciente que tem uma doença cujo tratamento é definido por três bem
feitos ensaios clínicos, mas que ele descobre que sua idade, sexo e raça o excluem do
estudo?” Então Enrill termina termina a crônica com um paciente que, de acordo com a
MBE, já deveria estar morta há algum tempo.
Aqui é pertinente questionar: Quais as vantagens e desvantagens de tratar uma
Hipertensão apenas como sendo uma entidade única universal, recusando-se por
completo a explorar as diferentes possibilidades que surgem quando consideramos o
território e as diferentes circunstâncias para pensarmos o binomio saúde/doença? E se
fosse possível, a despeito de qualquer avanço tecnológico que se imponha, pensar a
saúde não como ausência de doenças, mas como um viver “prazeroso, desimpedido”?. É
como se a Medicina, mantendo-se científica, sofresse uma virada holistica, no sentido que
não abondonaria seu carater científico, mas passaria a incluir outras éticas na sua
formação epistemológica. Seria esse um processo legítimo de transição de paradigmas
do modelo biomédico para o modelo bio-psico-social? Pode uma sociedade oferecer para
si outra coisa que não uma medicina de controle dos corpos, voltados para a produção, e
não para a um viver simples, de tudo desinteressado..?
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