Você está na página 1de 6

HISTÓRIA DA MÚSICA - CLASSICISMO AO SÉCULO XXI

Profa. Dra. Júlia Tygel

O PERÍODO CLÁSSICO:
MEADOS DO SÉCULO XVIII AO INÍCIO DO SÉCULO XIX

A Europa no século XVIII


No início do século XVIII, a Europa estava em uma razoável estabilidade, dividida entre
grandes estados centralizados: a França, que tinha o exército mais poderoso e também os maiores
gastos com a vida luxuosa do rei Luís XIV (r.1642-1715) e depois o rei Luís XV (r.1715-1774); a
Inglaterra, que tinha a maior força naval e a estava usando para tomar da França a Índia, o Canadá e
várias ilhas do Caribe; a Áustria, que havia conquistado a Hungria dos turcos e formara o Império
Áustro-Húngaro e cuja capital, Viena, estava se tornando a principal cidade musical da Europa.
Além disso, a Prússia tornou-se um reino em 1701, e formou um dos maiores exércitos europeus.
A população da Europa aumentou rapidamente a partir de 1750. Novos métodos na
agricultura aumentaram a produção e novas estradas facilitaram a comunicação. Nas cidades, a
partir de 1760 e até a primeira metade do século seguinte, ocorreu a chamada Primeira Revolução
Industrial, que emplacou novos processos de produção manufatureira e adotou a novidade do uso de
máquinas, aumentando vertiginosamente a produção. Cada vez mais pessoas do campo migravam
para as cidades, vivendo muitas vezes em más condições. Com o aumento da produção e do
comércio, a classe média tornou-se cada vez mais forte, enfraquecendo a aristocracia.
Nesse contexto de migração do campo
para a cidade, os pintores passaram a idealizar a
natureza, retratando uma espécie de ambiente
idílico do campo, como mostra o quadro ao lado.
Novas escolas foram fundadas,
provendo uma educação mais voltada à prática,
não só para as elites, mas também para a classe
média. Alguns governos instauraram a lei de
educação básica para todas as crianças, e em
1800 a metade da população do sexo masculino
francesa estava alfabetizada (as mulheres,
ensinadas em casa, estavam se aproximando
desse número). Assim, cada vez mais livros e
Quadro “Festa musical” de Antoine Watteau (ca.
jornais circulavam, estimulando a produção 1717-1718), que ilustra o estilo de pintura em voga no
crítica que impulsionaria o Iluminismo. início do século XVIII (Hanning, 2010:303)

O Iluminismo foi um movimento


intelectual e cultural que tinha como premissa o racionalismo: a ideia de que o mundo poderia ser
entendido a partir do pensamento lógico e da investigação experimental dos fenômenos naturais e da
própria natureza humana. A razão deveria ser usada tanto para gerar descobertas científicas quanto
para implementar melhorias na vida das pessoas em âmbito individual e social. Nessa época houve
um grande avanço no campo das ciências e da tecnologia, trazendo cada vez mais o foco de
interesse da época para o Homem e suas capacidades de compreensão do mundo e de si mesmo, e
enfraquecendo ainda mais o interesse pelas questões divinas e religiosas ou transcendentais.

1
Inicialmente, essa descrença na fé religiosa causou um certo negativismo, que foi rapidamente
substituído pela nova ideia “de que a Natureza e os instintos ou sentimentos naturais do homem
eram a fonte do verdadeiro conhecimento e da ação justa” (Grout & Palisca, 1988:475-476). Nesse
sentido, a humanidade passou a ser vista pelos iluministas como uma grande irmandade, o que
inspirou a ideia de igualdade de direitos e partilhamento de saberes entre todas as pessoas. Nas
palavras de Grout & Palisca (1988:477-478), pode-se dizer que “O século XVIII foi uma era
cosmopolita. As diferenças nacionais eram minimizadas, enquanto se sublinhava a natureza comum
de todos os homens. Eram numerosos os monarcas de origem estrangeira […]. A internacionalização
da vida e do pensamento no século XVIII refletiu-se também na música deste período.”
Os líderes intelectuais pioneiros do Iluminismo foram os filósofos Montesquieu
(1689-1755), Voltaire (1694-1778) e Rousseau (1712-1778) na França — este último influenciou o
movimento literário alemão Sturm und Drang (“tempestade e ímpeto”), que teve influências na
música, como veremos adiante — e Locke (1632-1704) e Humes (1711-1776) na Inglaterra. O
filósofo francês Diderot (1713-1784) compilou uma monumental Enciclopédia entre 1751-1765,
que reflete o interesse do período pelas ciências, classificação e disponibilização do conhecimento.
Em resposta às desigualdades sociais de sua época, os iluministas desenvolveram doutrinas
sobre direitos humanos — muitas das quais influenciaram as leis dos países modernos — criando as
bases para a Revolução Francesa (1788-1789), que reduziria os poderes monárquicos e
transformaria o país, depois, em uma república. Também a Maçonaria, fundada na Inglaterra no
início do século XVIII, espalhou-se rapidamente, pregando ideais humanitários e de irmandade e
atraindo artistas como o poeta Goethe e os compositores Haydn e Mozart.
O pano de fundo da Revolução Francesa era
a má política fiscal do rei Luís XVI, e as péssimas
condições de trabalho nas novas fábricas da
Revolução Industrial1. Uma revolta popular tomou a
Bastilha2 em 1789, e o rei foi forçado a aceitar uma
nova constituição e a eleição de líderes locais3 . Nesse
momento comandavam a Revolução os girondinos,
que propunham mudanças mais brandas. Mais
adiante, em 1792, quando a Prússia e a Áustria
atacaram a França e o rei buscou restaurar o antigo
regime, o grupo dos jacobinos, que propunha
reformas mais radicais, veio ao poder, declarou a
França uma república, e executou o rei na guilhotina.
Em 1799, Napoleão Bonaparte, então Quadro do século XX de Lewandowski que ilustra a tomada
da Bastilha em 14/07/1789.
um general do exército francês, tornou-se o primeiro (Hanning, 2010:310)

1 Não havia direitos trabalhistas (como férias, licença-maternidade, o abono de falta por questões médicas, o direito à
greve) nem regulamentação do trabalho. Muitos trabalhadores tinham jornadas de até 16 horas por dia, e o trabalho
infantil era comum. Apenas em meados do século XIX os movimentos sindicais ganhariam força e regulamentariam os
direitos trabalhistas.
2A Bastilha era um forte, símbolo da autoridade real, e onde eram guardadas armas e munições que interessavam aos
manifestantes para combater o exército real.
3 No movimento da Revolução Francesa, dois grupos antagonizavam-se: os girondinos, que representavam a alta
burguesia, o alto clero e a nobreza liberal, que propunham uma revolução mais branda; e os jacobinos, que
representavam a pequena burguesia e o povo (sans-cullote), e propunham mudanças mais radicais. A partir da
distribuição desses grupos na sessão onde se reuniam, cunharam-se os termos políticos direita (girondinos), esquerda
(jacobinos) e centro (sem posição definida entre os dois).

2
Conselheiro da República e, contrariando a lei, logo auto-nominou-se Imperador da França.
Napoleão invadiu territórios vizinhos, aumentando significativamente o território francês e
instaurando territórios de governos submissos na Espanha, Suíça, grande parte da Alemanha e Itália,
e invadindo também Portugal (o que fez com que a Família Real portuguesa, comandada por D.
João VI, fugisse para o Brasil, em 1808, trazendo a corte, nobres, empresários ricos e uma gama
variada de artistas que transformariam significativamente a cidade e a vida urbana no Rio de
Janeiro). A política de Napoleão de redução de impostos, implementação de leis e maior agilidade
no governo estavam de acordo com os ideais da Revolução Francesa, muito embora seu nepotismo
os contrariasse. Sua investida contra a Rússia levou seu exército à ruína em 1814, e logo um tratado
de paz foi assinado em Viena. Ele conseguiu contudo voltar ao poder, para no entanto perder sua
batalha final em Waterloo, em 1815, na atual Bélgica (então parte do Reino Unido).

As artes e a música na sociedade clássica


Com a expansão do ensino e o aumento da classe média, fortaleceu-se um mercado de artes
e conhecimentos voltados a esse público. Na música, isso representou uma crescente vontade dessas
pessoas de escutar e tocar música, impulsionando compositores e editores a investirem em um
público não mais restrito a especialistas e pessoas cultas, mas mais amplo e em grande medida leigo:
os músicos amadores compravam a música que eles podiam tocar e compreender. Com uma
distribuição de renda cada vez mais equilibrada, a patronagem das artes (mecenas que financiavam
seus artistas) começou a entrar em declínio. Ao mesmo tempo, cada vez mais concertos públicos
(com venda de ingressos) começaram a ser realizados para um público moderno, especialmente no
âmbito da música instrumental, que começou a concorrer com a ópera em termos de
popularidade. Com a grande demanda por música nova, os compositores trabalhavam em uma
velocidade incrível, e a composição de sonatas, sinfonias e concertos (especialmente para
pianoforte) passou a assegurar, mais que a ópera, a fama dos compositores.
Nesse contexto, a maior parte da produção para cravo e clavicórdio, grupos de
câmara e voz e teclas era destinada a amadores, para tocarem em suas casas para divertimento
privado (uma coleção para cravo de C. P. E. Bach publicada em 1779, por exemplo, intitula-se
sugestivamente Sonatas para Conhecedores e Amadores, visando atrair tanto o público
especializado quanto o leigo). Ao mesmo tempo, o interesse mais amplo pela música erudita
encorajou especialistas a cultivarem seu gosto por músicas de melhor qualidade. Publicações sobre
música também começaram a circular em meados do século XVIII, voltadas tanto ao público
amador como ao especializado: revistas sobre música, ensaios e críticas musicais, os primeiros
livros de história da música, além da publicação de tratados musicais recentes e antigos. Na
ópera, essa produção voltada à classe média acarretou uma maior produção de óperas buffas
(cômicas), que inclusive satirizavam as óperas sérias.
No Classicismo a literatura foi muito valorizada, e em especial a prosa e sua qualidade
retórica, influenciando outras formas de expressão artística. Referindo-se à música, por exemplo,
o próprio Rousseau afirmava que “cantar duas melodias ao mesmo tempo é como fazer dois
discursos ao mesmo tempo para ser mais convincente”, partilhando da opinião de vários críticos da
época de que a música barroca seria excessivamente complexa (Rousseau apud Grout & Palisca,
1988:480). Assim, acentuando uma tendência já iniciada no Barroco, cada vez mais os compositores
abdicavam do contraponto para construir uma textura de melodia com acompanhamento simples -
um ideal que agradava, inclusive, tanto os especialistas quando os leigos. Assim,

3
A música que seria considerada ideal em meados e na segunda metade do século
XVIII pode, portanto, ser descrita como se segue: a sua linguagem deveria ser universal, não
limitada pelas fronteiras nacionais; devia ser ao mesmo tempo nobre e agradável; devia ser
expressiva, mas dentro dos limites do decoro; e devia ser ‘natural’, ou seja, despojada de
complexidades técnicas inúteis e capaz de cativar imediatamente qualquer ouvinte de
sensibilidade mediana. (Grout & Palisca, 1988:480)

Do Barroco ao Classicismo
A transição do Barroco para o Classicismo foi gradual, sem que houvesse uma ruptura
entre os dois períodos. Assim, pode-se considerar que o período, em seu início, se sobrepõe ao final
do Barroco, abrangendo desde 1730 até 1815 aproximadamente. No início do século XVIII, muitos
estilos coexistiram, incluindo tendências do fim do Barroco e novas propostas do começo do
Classicismo (por exemplo, entre 1730-1740, J. S. Bach estava compondo sua Missa em Si menor
enquanto Pergolesi compunha a ópera La serva padrona, que é característica do Classicismo).
Consideramos realmente clássicos, no sentido maduro do estilo, os compositores do final do
Classicismo, como Haydn, Mozart e Beethoven em sua primeira fase.
“Se o objetivo das artes do Barroco era provocar as emoções, seu propósito no
Classicismo era construir uma visão ideal da vida e da natureza, em consonância com os ideais
de realismo, contenção, harmonia e ordem do Iluminismo” (Hanning, 2010:310). A cultura
greco-romana continuou a ser uma grande inspiração, especialmente no campo da arquitetura. A
grande diferença em relação ao Barroco é que, no Classicismo, o sentimentalismo gradativamente
passou a ser visto com criticismo, pois agora o interesse maior era pela busca pela verdade do
racionalismo. Essa dualidade do início do Classicismo é bem representada no romance Razão e
Sensibilidade, de Jane Austen (1775-1817), que retrata duas irmãs de classe média em idade para se
casarem, de personalidades diferentes: uma representando a razão, e a outra a sensibilidade4 . Na
música, o compositor que conseguiu unir essas duas tendências no Classicismo foi C. P. E. Bach,
filho de J. S. Bach, que abordaremos adiante. Sua obra incorpora elementos de dois importantes
estilos que floresceram no início do período Clássico, que também veremos adiante: o estilo sensível
ou Empfindsamkeit (“sentimentalismo” ou “sensibilidade” em alemão), e o estilo galante.

Características gerais do estilo clássico


No início do século XVIII, as artes já estavam de certa forma internacionalizadas, e havia
uma grande mobilidade internacional de compositores vindos de diversas regiões. O ideal buscado
passou a ser uma espécie de estilo universal, que era entendido, seguindo os ideais iluministas, como
uma síntese das melhores características dos estilos nacionais. Essa universalidade estava ligada à
busca, na música, de uma lógica similar àquela do discurso (retórica), que está presente em qualquer
língua. Alguns elementos caracterizam a produção clássica típica, principalmente:
• Melodia: o foco na melodia levou a uma sintaxe musical um tanto diferente das
sintaxes de períodos anteriores, baseadas na variação contínua dos motivos. J. S. Bach, por
exemplo, tipicamente anunciava o caráter de um movimento com um sujeito (tema) melódico-
rítmico inicial que continha o afeto básico a ser ali explorado, e repetia o motivo sequencialmente,
com uma estrutura de frase geralmente irregular e progressiva, com relativamente poucas
cadências. Agora, no novo estilo, efatizava-se a periodicidade, com pontos frequentes de repouso
interrompendo o fluxo melódico em segmentos regulares que se relacionam como partes de um

4 O livro inspirou um filme de mesmo nome (1995), dirigido por Ang Lee.

4
todo (como frases em um texto separadas por pontuações). As ideias musicais, mais que repetidas
persistentemente, eram agora articuladas através de frases distintas, tipicamente de dois ou quatro
compassos cada. Um tipo organização temática muito utilizada era o período, que consiste em
duas frases conectadas, a primeira com a ideia de pergunta e a segunda com a ideia de resposta
(geralmente com uma cadência ao final); as composições frequentemente eram formadas por dois
ou mais períodos em sucessão - ficando, assim, bastante unificadas. Outro tipo de organização
frásica muito usado era a sequência, na qual a um mesmo motivo é repetido sequencialmente de
forma incompleta, até que ele alcance sua completude temática e a música prossiga.
• Harmonia: a organização frásica da melodia é corroborada pela
harmonia, com cadências mais fortes e mais fracas, dependendo de sua função na condução
frásica (cadências mais fortes marcam pontos de maior interrupção do discurso frásico). Como
agora a harmonia marca as sessões das frases e não ocorre em uma continuidade sequencial, ela
tende a ser mais repetitiva do que ocorria no Barroco.
• Retórica musical: a união da melodia e da harmonia visa estabelecer um discurso
musical coeso, assim como um texto em prosa. A própria terminologia das frases musicais do
Classicismo, acima comentada, foi emprestada da retórica literária.
• Forma: a coerência na música do século XVIII era criada pela diferenciação dos
materiais musicais de acordo com sua função: cada segmento de música poderia ser facilmente
reconhecido como uma seção inicial, do meio ou do final de uma composição. Assim como um
orador usa inflexões, ênfases e pausas para marcar as partes de seu discurso, os compositores do
Classicismo também usavam elementos para caracterizar as diferentes partes de seu discurso
musical. Uma forma muito utilizada no Classicismo, que valoriza a coerência retórica, foi a
forma-sonata, que abordaremos adiante.
• Baixo d’Alberti: uma das propostas para compensar a menor variação harmônica foi o
acompanhamento cunhado pelo italiano Domenico Alberti (1710-1746), que consiste em arpejar
os acordes de acompanhamento em um padrão simples de notas curtas, como mostra o exemplo
abaixo. Esse padrão foi extensivamente usado pelos compositores clássicos, levando o nome de
seu inventor.

Domenico Alberti, VIII Sonate per cembalo, Op. 1 (Londres, 1748), Sonata III. Allegro ma non tanto.
(Hanning, 2010:315)

• Forma e conteúdo / contrastes emocionais: uma das mais fortes características do estilo
clássico vinha de uma nova visão sobre a psicologia humana. No século XVII, Descartes e outros
pensadores barrocos acreditavam que, quando as emoções eram estimuladas, a pessoa permanecia
no estado emocional provocado até que recebesse um outro estímulo. Com esse pensamento, os
compositores do Barroco procuravam manter um único estado de espírito em cada movimento, ou
no máximo colocar emoções diferentes em partes diferentes de uma mesma peça. A nova
compreensão sobre a psicologia no século XVIII levou ao entendimento de que as emoções se
transformam continuamente, em um fluxo. Assim, os compositores do novo período começaram a
juntar, em uma mesma seção, alusões a diferentes emoções ou estados de espírito.

5
Referências bibliográficas:
GROUT, Donald J. & PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva,
1988.
HANNING, Barbara. Concise History of Western Music – Fourth Edition: based on J. Peter
Burkholder, Donald J. Grout, and Claude V. Palisca A History of Western Music, Eight Edition. New
York: W. W. Norton & Company, 2010 (1st ed. 1998).

Você também pode gostar