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Sociedade, dádiva e paradigmas médicos

Sociedade e transição paradigmática

Nossa tese central neste livro é de que existe em curso "uma reorganização
de paradigmas no campo da medicina moderna 1, com reflexos em níveis sociais,
políticos e institucionais diversos, a saber: nas políticas públicas, no financiamento
ao setor, nos atores que participam das decisões e que reagem a seus efeitos,
nas relações interinstitucionais, nas técnicas de cura, dentre outros. Nessa
reorganização, que ocorre no interior do movimento inédito da modernidade-
mundo, certas práticas médicas são abandonadas e outras são integradas,
passando-se a impressão legítima de que a medicina moderna se tornou uma
grande colcha de retalhos. Tal mudança de paradigmas na medicina tem como
referência a ruptura da medicina oficial, a partir de fortes tensões contraditórias
entre as duas principais tendências presentes, desde algumas décadas, no interior
do campo: uma das tendências é de desumanização/tecnicização; a outra, de
reumanização dos modelos médicos.

O conceito de paradigma remete necessariamente à célebre obra de


Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (1975), na qual ele sugere
que, num sentido forte, o termo paradigma dominante traduz uma visão de mundo
particular do campo científico: um conjunto de generalizações simbólicas
revelando a cultura própria de uma dada comunidade científica a qual se
expressaria por metáforas, figuras e analogias. Esse conceito de paradigma
vincula a idéia de Ciência àquela de sociedade e, em particular, ao modo de

1
Quando usamos o termo medicina moderna estamos pensando em um conjunto de práticas médicas mais
abrangentes do que aquelas conhecidas como medicina oficial - uma concepção mais restrita que limita o
campo aos sistemas de cura regulamentados dos pontos de vista jurídico e administrativo (legislação civil,
regulamentações médicas, conhecimentos canonizados pelas faculdades de medicina etc.). Com a expressão
medicina moderna, referimo-nos, logo, a um quadro mais amplo que inclui a medicina oficial, mas também as
medicinas populares, as medicinas alternativas (psicanálise, homeopatia, acupuntura etc.) e outras que, de
um modo ou de outro, vêm sendo progressivamente incorporadas à cartografia médica moderna a partir das
mobilizações dos diferentes atores sociais e agências institucionais (firmas, Estados, Igrejas, profissionais,
pacientes etc.).

1
reinvenção das crenças científicas por meio das instituições sociais e culturais.
Para Kuhn, a Ciência não evolui numa lógica de progresso contínuo, indo das
técnicas primitivas àquelas avançadas, mas a partir do que, num certo momento,
aparece para a comunidade científica como a representação de uma Ciência
normal e legítima. Nessa perspectiva, a mudança de paradigmas na medicina
significa a perda do poder da "clínica moderna", de bases alopáticas, que foi
hegemônica nos dois últimos séculos. Esta quebra da hegemonia da "clínica
médica" não é acidental, mas responde à complexidade atual da fenomenologia
da doença e da necessidade imperativa de se resgatar a pluralidade de sistemas
de cura, como veremos ao longo do capítulo.

Seguindo esta linha de reflexão, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos


propõe que a passagem para o terceiro milênio é marcada por uma "transição
paradigmática". A causa principal dessa mudança de paradigmas seria o colapso
da possibilidade de emancipação da modernidade pela gradual transformação das
energias emancipatórias em energias regulatórias. Para ele, tal transição
apresenta duas dimensões: a epistemológica e a societal. No plano
epistemológico, ele enfatiza a importância de uma teoria crítica que se inspire na
experiência para fundar "um conhecimento prudente para uma vida decente". Na
dimensão societal, ele antevê a passagem de uma sociedade patriarcalista,
autoritária, desigual e individualista para uma outra na qual "o objetivo da vida não
pode deixar de ser a familiaridade com a vida" (Santos, 2000: 16-17).

Num livro bastante instigante, A crise da saúde pública: e a utopia da saúde


coletiva, dois estudiosos da saúde, lairnilson Paim & Naomar de Almeida Filho
(2000), retomam a tese da "transição paradigmática", sugerida por Boaventura de
Sousa Santos, para aventar que ela também vem sendo observada no campo da
saúde pública. Eles resgatam as duas dimensões sugeridas pelo sociólogo
português, a epistemológica e a societal, para desenvolver a seguinte
argumentação:

2
a) No plano epistemológico, eles lembram a insuficiência do paradigma
dominante, chamado vulgarmente de "positivista", que representa o corpo como
um mecanismo e os órgãos como peças, isto é, como sistemas com
determinações fixas (Paim & Almeida Filho, 2000: 24-27). Embora sublinhem a
limitação dessa abordagem, os autores não avançam muito, todavia, na análise do
que poderia ser um novo conhecimento científico que venha substituir essa visão
biológica e mecânica simplificadora do paradigma médico dominante. Referem-se,
é verdade, a Prigogine & Stengers, para lembrar a necessidade de uma "nova
aliança" que rearticule as bases metodológicas e conceituais da biologia. Mas não
propõem algo mais substantivo sobre o que isso poderia significar, em termos de
nova compreensão da doença e da cura, e melhor avaliação de seus reflexos nos
planos institucional e social. A5proposições sobre a "transição epistemológica"
limitam-se a referências genéricas sobre a teoria da complexidade, sobre a nova
física, sobre os-estudos científicos que enfatizam os micropadrões de desordem e
indeterminação, mas não avançam nada de específico sobre as mudanças em
curso no plano microssocial da medicina, em particular no plano das técnicas de
cura.

Uma apreciação mais cuidadosa desse plano microssocial demonstra, por


sua vez, estarem ocorrendo no seu interior questionamentos importantes nascidos
de experiências negativas dos pacientes com relação a uma medicina oficial que
vem sendo submetida a crescente tecnificação e especialização, há algumas
décadas, e que, ultimamente, vem sendo contaminada por uma axiologiado
interesse que sinaliza de forma preocupante certas tendências privatistas na
saúde e no campo médico. Tais reações, nascidas das "experiências vividas" dos
pacientes nos consultórios, clínicas e hospitais, impõem-se crescentemente contra
um modelo anátomo-clínico que se funda sobre o princípio da separação radical e
arbitrária entre, de um lado, o médico e o paciente, de outro, o doente e a doença
2
. Pelo método anátomo-clínico, base de uma Ciência médica positivista, o médico

2
O surgimento do método anátomo-clínico entre os séculos XVIII e XIX é descrito por Foucault no seu
trabalho sobre o nascimento da clínica moderna. Essa instituição, diz Foucault, constituiu a primeira tentativa
para ordenar uma ciência estreitamente vinculada às decisões do olhar, mas não um olhar qualquer. Trata-se

3
deve observar duas condições para assegurar o sucesso de sua intervenção,
evitando que o processo de observação do sintoma seja contaminado por outros
fatores ligados ao "estado de espírito" do paciente. De uma parte, o médico deve
afastar-se do paciente para melhor observar a doença; de outra parte, a doença
deve ser separada do doente (visto como portador e não como co-criador da
patologia). Sob certo ângulo o trabalho do médico se aproximaria daquele do
engenheiro que acompanharia com olhos frios e calculistas o funcionamento da
máquina.

Segundo professam os cânones médicos dominantes, fatores ligados ao


doente (problemas familiares ou no trabalho, dificuldades econômicas etc.) não
devem, absolutamente, contaminar as etapas de diagnóstico e prognóstico. É uma
crença fundamental do método anátomoclínico de que apenas o sintoma físico
seja considerado, sendo ele a forma visível e a transcrição mais imediata da
doença. Apenas a partir dele, O diz Foucault (2000: 94), enuncia-se a verdade da
patologia e seu enquadramento num modelo etiológico, cujas fases foram
anteriormente classificadas. Assim, por exemplo, dependendo do tipo de
respiração observado, pode-se concluir, a partir do método anatomoclínico, pela
presença de um problema pulmonar ou cardíaco. Não cabe ao médico
diagnosticar, por exemplo, pelo menos oficialmente, que tal dificuldade de
respiração pode estar relacionada, por exemplo, a uma tensão emocional gerada
no contexto familiar ou no trabalho 3.

Ao buscar reduzir o sintoma a uma expressão visível e de ordem física,


essa biomedicina moderna deixa de lado muitos outros sintomas - alguns visíveis
do ponto de vista social e cultural, outros invisíveis, como aqueles referentes às

de um olhar que busca decodificar uma verdade da doença classificada a princípio por um modelo etiológico
fundado na observação dos sintomas físicos (tidos como a forma mais próxima do real da doença) e pelos
signos (o prognóstico, o que se vai passar) (Foucault, M. Naissance de Ia clinique. Paris: Puf, 2000).
3
Dizemos que não cabe oficialmente, porque na prática nem sempre os médicos seguem de forma rigorosa o
método anatomoclínico. Face a um número significativo de casos que demonstram, após uma bateria de
exames, não apresentar nenhuma significação médica previamente classificada, os médicos, para não
revelarem os limites do método, terminam prescrevendo em quantidades importantes medicamentos placebos
cujo efeito normalmente é apenas psicossomático.

4
dimensões psíquica e emocional - que são igualmente importantes para o
diagnóstico e o tratamento da patologia. A rejeição dos cidadãos à hegemonia de
um sistema de cura dominante como esse anatomoclínico tem então boas razões.
As experiências negativas dos pacientes no convívio com especialistas (expressas
na recepção distante e pouco calorosa, nos preços elevados das consultas, na
prescrição de medicamentos exagerados e às vezes equivocados e nos
diagnósticos errados) devem-se ao fato da simplificação do método. Esse sistema
oficial de cura restringe a expressão adequada do sofrimento do paciente,
sofrimento que deveria ser o principal sintoma a ser observado e sentido pelo
médico no campo interpessoal, formado pelo curador e pelo paciente. Tal campo
interpessoal é singular e único por colocar frente a frente dois sujeitos que
deveriam ser considerados como igualmente responsáveis pelo desenvolvimento
do tratamento a partir da ênfase proposta pela dinâmica do sofrimento.

A limitação do modelo biomédico dominante contribui, por conseguinte,


para interromper o processo interativo da cura, impedindo que o sofrimento se
exprima adequadamente no plano simbólico (das palavras, dos gestos, dos rituais,
dos cuidados) e que a dádiva médica possa funcionar eficazmente na circulação
dos "bens de cura" (atenção, confiança, palavras, técnicas, remédios) dados pelo
curador em troca dos "males" (doenças) devolvidos pelo paciente ao primeiro.

b) Paim & Almeida Filho também analisam a "transição paradigmática" pelo


outro plano sugerido por Boaventura de Sousa Santos, o societal. As reflexões
aqui parecem ser bem mais consistentes, lembrando eles com justa razão que
repensar a saúde a partir da política e do social constitui uma tarefa imprescindível
para a crítica teórica ao paradigma dominante. A crescente tecnificação da prática
médica, o enfraquecimento do discurso social sobre a saúde e as falências do
Estado do bem-estar e do modelo de seguridade social são tendências que
apenas prosperaram, acreditam eles, à medida que se disseminou uma visão
restritiva da saúde como fenômeno social e coletivo (Paim & Almeida Filho, op.
cit.: 15). Os resultados medíocres do neoliberalismo na questão social e o caráter

5
insatisfatório do antigo paradigma explicariam a necessária transformação de
paradigmas, o que seria expresso, pelo menos na América Latina, pelo movimento
da "saúde coletiva". Tal movimento seria definido como um campo de
conhecimento interdisciplinar, cujas disciplinas básicas seriam a epidemiologia, o
planejamento/administração da saúde e as ciências sociais em saúde, o qual
valorizaria a dimensão subjetiva dos atores (usuários, trabalhadores do setor),
cujas vivências abririam novas perspectivas de reflexão e ação (ibid., op. cit.: 63-
66).

Enfim, os esforços dos autores na defesa de uma utopia da saúde coletiva


parecem-nos importantes e oportunos, mas ainda são insuficientes. A crítica
teórica desenvolvida por eles é restritiva, pois aponta a necessidade de se
repensar basicamente a dinâmica política e institucional dos modelos de gestão da
saúde, enfatizando a prioridade das ações democratizantes (em nível da política e
do poder, das práticas comportamentais, das técnicas organizacionais e dos
instrumentos de intervenção) num contexto tanto de crise do Estado do bem-estar
como de reconhecida limitação, em termos sociais, da medicina neoliberal (ibid.,
op. cit.: 69-70). Mas essas reflexões não tocam num aspecto central da discussão
sobre as transições dos paradigmas na saúde e na medicina, o qual diz respeito
às mudanças nos sistemas médicos de cura, cuja importância será bem mais
discutida adiante. Isto significa que, ao lado de mudanças nos processos de
gestão (plano macrossocial), existem igualmente transformações nos processos
de cura (plano microssocial), que são importantes para a compreensão das
transformações atuais da medicina. Por se prenderem ao plano macrossocial, os
autores parecem ter perdido de vista os aspectos interativos da doença e da cura
no plano microssocial.

Para avançarmos no debate, propomos, então, a análise das mudanças no


campo médico, a partir do paradigma da dádiva, um paradigma próprio das
ciências Sociais,que tem em Marcel Mauss, um dos fundadores da escola
sociológica francesa, o seu primeiro sistematizador.

6
Paradigma da dádiva e cura médica

O paradigma da dádiva/dom propõe que a sociedade se constitui a partir de


uma regra social primeira, a obrigação de dar-receber-retribuir, e que a
constituição do "vínculo social" é mais importante que a produção de "bens", como
registrou Mauss no célebre Ensaios sobre a dádiva, de 1924. De acordo com essa
perspectiva, a relação social ou a prática médica não se produz primeiramente
pelo interesse individual (paradigma individualista) ou pela obrigação da totalidade
(paradigma holista), mas pela dádiva, um terceiro paradigma propriamente
relacional, esclarece Alain Caillé, um dos principais defensores das teses de
Mauss (Caillé, 2000: 13). Os dois outros paradigmas dominantes até o momento
nas ciências sociais são unilaterais, lembra esse autor, por enfatizarem aspectos
parciais da realidade: o interesse, um, e a obrigação, outro. Mas nem a obrigação
sugerida pela idéia de totalidade preexiste aos indivíduos, nem aquela de livre
interesse subjacente à de indivíduo preexiste à de sociedade. Essa reflexão é
válida para se pensar a medicina, isto é, do mesmo modo que sociedade e
indivíduo, o campo médico e seus atores formam um sistema ambivalente
formado por curadores e doentes. Eles se engendram incessantemente por meio
de um continuum de inter-relaçães e de interdependências entre os planos micro,
macro e mesossocial, de um lado, entre modelos de gestão, e, de outro, sistemas
de cura, engendramento que não pode ser esclarecido por um pensamento
simplificado, insensível para explicar a multideterminação e o paradoxo ali
presente.

A dádiva é, por natureza, um movimento ambivalente que permite


ultrapassar a antítese entre o eu e o outro, entre a obrigação e a liberdade, entre o
mágico e o técnico. Na dádiva participam a obrigação e o interesse, mas também
a espontaneidade, a liberdade, a amizade, a criatividade. Nessa perspectiva
relacional, a sociedade é um fenômeno social total porque ela se faz
primeiramente pela circulação de dons que são símbolos básicos na constituição
dos vínculos sociais. E a apreciação das trocas de dádivas implica a necessidade

7
de fixação das modalidades de um pensamento complexo do concreto, cuja
importância cresce à medida que os dois outros paradigmas das ciências sociais
(o holista e o individualista) se esgotam por excesso de abstração. A experiência
do sofrimento, por exemplo, na relação concreta da cura, prova que a medicina é
tipicamente uma expressão do social, que se revela, ao mesmo tempo, no plano
do simbólico e do material, do que oferece os bens de cura e do que devolve os
males da doença.

De fato, a idéia da medicina como um fenômeno social total, ancorado


primeiramente na circulação de dons entre sujeitos (troca de sofrimentos por bens
de cura), permite entender-se que as mudanças em curso, tanto no plano
institucional como nos modelos de gestão da saúde, são precedidas por
transformações nas práticas concretas de cura da doença. A idéia de totalidade
permite compreender igualmente que, se existem modificações institucionais e
regulatórias dos modelos de gestão da saúde dominantes (nível macro), é porque
está acontecendo no núcleo do imaginário da medicina, no interior da prática de
cura (nível micro), uma reação difusa mas significativa dos cidadãos contra a
tendência tecnicista e hiperespecializada do sistema de cura biomédico
hegemônico 4.

O paradigma da dádiva, ao pôr em evidência o fato de que a ação social


obedece a uma pluralidade de lógicas de ação, explica por que essa crise não
pode ser apreendida por interpretações sociológicas unilaterais como, por
exemplo, aquelas que põem ênfase unicamente na racionalidade e no cálculo dos
atores individuais. Contra o utilitarismo prático e econômico que reduz a relação
social a um jogo de equivalências binárias e interessadas (dar e pagar), Mauss

4
Esse sistema, que será melhor estudado a seguir, inspirou os modelos de gestão da saúde mais conhecidos
no século XX:o da sociedade medicalizada, regido pela ação estatal, e o do modelo do capitalismo biotécnico
ou do capitalismo médico, regulado pelos interesses privados. A discussão desses modelos pelos paradigmas
dominantes nas ciências sociais - o holista e o individualista - é insuficiente. Diferentemente, por meio do
paradigma da dádiva, a discussão crítica e a compreensão das tendências de transformação e de recriação
completa dos modelos médicos atuais revelam a complexidade da prática médica nas suas manifestações
essencialmente ambivalentes, porque são ao mesmo tempo materiais e simbólicas, individuais e coletivas,
interpessoais e funcionais, mágicas e técnicas.

8
procurou demonstrar existir também na sociedade lógicas não utilitaristas. No
sistema da dádiva, por exemplo, a circulação dos bens não se submete à
equivalência, mas ao paradoxo, escapa ao simplismo do interesse egoísta para se
abrir sobre a diversidade de razões para se produzir vínculos e solidariedades.
Para ele, a dádiva constitui um sistema de circulação de bens essencialmente
ambivalente, que implica os indivíduos numa relação tripartite de trocas que se
desdobra em três movimentos: o dar, o receber e o devolver. Por conseguinte, por
uma questão de justiça, pensando no caso da medicina, o paradigma do dom
médico deveria ser visto como um paradigma primeiro ou primordial, já que os
dois outros paradigmas usuais, o individualista – a cura é vista a partir do
interesse dos produtores de bens e serviços – e o holista - a cura é vista a partir
da regra burocrática impessoal que se fixa no interesse da organização hospitalar
estatal -, são apenas momentos do ciclo geral do dom, do simbolismo e da política
em ato 5.

Para se compreender o dom médico é importante se observar, inicialmente,


o sistema da dádiva que pode ser apreciado na figura 1: "Paradigma da dádiva:
circulação básica", exposta a seguir. Desde logo deve ser assinalado que a dádiva
não forma apenas um sistema social, mas também um sistema socioecológico
presente nas interações do homem com a natureza. Nesta perspectiva, a dádiva
não se reduz a uma invenção simples da cultura humana, mas constitui uma
lógica complexa de funcionamento dos sistemas vivos. Saliente-se, todavia, que
na constituição dos vínculos sociais ela se abre para uma pluralidade simbólica
original, o que permitiria pensar o sistema social da dádiva como possuindo uma
dupla natureza (como referente da comunicação dos sistemas vivos e como
referente da organização das socialidades humanas).

5
Esclarece Alain Caillé que "Mercado, de uma parte, Estado de outra, individualismo e holismo, pois, apenas
são inteligíveis se considerados como formas especializadas e autonomizadas de uma realidade mais vasta e
englobante desse fato social total do qual a dádiva constitui a expressão por excelência". (Em francês:
Marché, d'une part, Etat, de I'autre, individualisme et holisme donc, ne sont intelligibles que consideres comme
dês formes spécialisées et autonomisées d'une réalité plus vaste et englobante, de cefait social total dont lê
don constitue I'expression par excellence) (Caillé, A. Anthropotogie du don: te tier paradigme. Paris: Desclée
dé Brouwer, 2000: 22). '

9
Para nossos propósitos, basta entendermos a dádiva como sistema social e
cultural. Vejamos como funciona, pois, o ciclo da obrigação social que se faz por
prestações e contra prestações. Num primeiro momento, alguém toma livremente
a iniciativa de dar algo a alguém. Se o outro recebe essa dádiva
espontaneamente, num segundo momento, fica, porém, obrigado a devolver num
terceiro momento, de um modo qualquer, o bem recebido (sem que a devolução
guarde qualquer simetria com o bom dado pelo primeiro). A ação recebida é
devolvida de diversas maneiras: não apenas por uma retribuição material, mas,
sobretudo, por formas simbólicas (presentes, gestos, palavras etc.).
Diferentemente do sistema bipartite do mercado (dar-pagar), que funciona pela
equivalência (paga-se o equivalente para não se gerar obrigação mútua), na
dádiva o bem retribuído nunca tem valor igual àquele do bem inicialmente
recebido. Aqui, o valor importante não é o quantitativo, mas o qualitativo, e o que
fundamenta a devolução não é a equivalência, mas a assimetria. Um presente ou
uma hospitalidade nunca se paga em moeda de mesmo valor, tampouco é
retomada, necessariamente, no mesmo instante da ação (senão corre o risco de
ser interpretado como uma equivalência que leva à ruptura do vínculo da dádiva).
Mas esse presente ou hospitalidade pode ser retribuído num outro momento, por
meio de uma gentileza ou favor, fazendo circular a roda das práticas sociais.

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Jacques Godbout & Alain Caillé (1992) explicam, ainda, que o sistema da
dádiva é mais arcaico que os outros sistemas, como o do mercado e o do Estado.
Para esses autores, os dois outros sistemas, o da lógica mercantil-utilitarista ou da
lógica estatal-redistributivista, são derivações do sistema da dádiva: o sistema
mercantil surgiria da interrupção do dom no segundo momento (dar-pagar), e o
estatal-redistributivista (devolver-receber) do congelamento no terceiro momento
(ver figura 1). Por congelarem o ciclo de prestações num certo momento - o do
recebimento, no caso mercantil, o da obrigação da devolução, no caso estatal -
gerariam-se falsas imagens do homem como possuindo vocação egoísta, no
primeiro caso, ou vocação racional-burocrática, no segundo caso.

Alguns autores argumentam, por outro lado, que numa sociedade como a
moderna, dominada pelo interesse do dinheiro, o sistema da dádiva não teria mais
condições de sobreviver. Por mais instigantes que sejam, argumentos como esse
pecam por uma visão restritiva da dádiva - normalmente ela sendo confundida
com gratuidade - que não responde à complexidade de sua natureza sistêmica e
paradoxal. Como esclarece Mauss, o sistema da dádiva não é apenas gratuito
(embora, às vezes, ele o seja). Ele também é interessado (e às vezes não o é).
Por conseguinte, o fato de o dinheiro entrar em um certo momento da circulação
de bens não anula a validade do sistema, pelo contrário, sua dimensão
interessada prova que o sistema não é arbitrário (embora seja com freqüência
indeterminável). A questão que se coloca é saber se o dinheiro entra no circuito de
obrigações para suspender a circulação da dádiva ou para afirmar o valor dessa.
No primeiro caso, estaríamos presenciando a entrada da lógica do mercado nas
práticas sociais, manifestando o interesse de uma das partes de não continuar o
jogo interacional. No segundo caso, o dinheiro entra no circuito para afirmar o
desejo do ator de continuar a participar do jogo. Um exemplo muito típico dessa
segunda situação é oferecido pela psicanálise, na qual o dinheiro tem uma função
simbólica anterior a seu valor material. Ao final de cada sessão, o paciente paga
ao profissional para poder continuar na relação terapêutica. E o terapeuta aceita o
dinheiro não apenas para justificar seu diploma de nível superior, mas para

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comprometer o paciente no "sacrifício" representado pelo trabalho de cura. Há,
pois, uma dupla relação: de um lado, o cliente paga ao profissional pelos serviços
especializados, de outro, o paciente entrega ao terapeuta um bem de alto valor
simbólico para viver o sacrifício do morrer e viver nos braços e sob os olhos e
escuta atenta do curador.

Tal sentido simbólico básico dos bens circulantes nas práticas sociais foi
repetidamente enfatizado por Mauss nos Ensaios sobre a dádiva, texto que nos
permite compreender ser a sociedade constituída por um conjunto de prestações
totais, envolvendo os membros que dela fazem parte. Essas prestações não são
redutíveis a uma simples determinação objetiva, já que as relações dos homens
entre si nem são imediatas nem transparentes. Assim, a simbolização da vida e
das relações entre os humanos é vista como uma condição ao mesmo tempo
natural e cultural. Essa consideração sociológica do simbólico, como um
paradoxo, é enfatizada num outro texto, Rapports réels et pratiques de Ia
psychologie et de Ia sociologie, quando reafirma que um dos caracteres centrais
do fato social é o seu aspecto simbólico, e que "na maior parte das
representações coletivas não se trata de uma representação única de uma coisa
única, mas de uma representação escolhida arbitrariamente, ou mais ou menos
arbitrariamente, para significar outras e para comandar práticas" (Mauss, 1999c:
294-295).6 Existe, portanto, na simbolização uma polissemia congênita que
permite compreender que os atos humanos, por possuírem vários sentidos, são
essencialmente complexos 7.

Na dádiva médica, é evidente a presença de bens simbólicos e materiais


circulando entre curador e paciente. Se pensarmos na aplicação desse modelo na
prática médica (figura 2), vemos que no primeiro momento o curador aparece

6
"Dans Ia plupart des représentations collectives iI ne s'agit pas d'une représentation unique d'une chose
unique, mais d'une représentation choisie arbitrairement, ou plus ou moins arbitrairement, pour en signifier
d'autres e pour comander des pratiques" (Mauss, 1999c: 294-295).

7
Uma sensação, um olhar, uma palavra, diz o sociólogo Camile Tarot, é sempre original: "Le simple est une
iIIusion qui ferme à Ia réalité du symbolique" (Tarot, 1999: 617).

12
dando "bens de cura" (atenção, segurança emocional, informações, cuidados,
técnicas); no segundo momento, o paciente recebe esses "bens"; no terceiro
momento ele retribui ao curador a ação entregando a este último os seus "males"
(as doenças) para serem transformados pelo ritual da cura. Ao entregar os
"males", o paciente pode, ou não (dependendo do tipo de dom médico em
circulação), acrescentar uma soma em dinheiro para assegurar a continuidade da
relação. Mas, nesse caso, a lógica econômica e utilitária está a serviço do dom e
não o contrário.

Deve-se também esclarecer que o dom não se interrompe necessariamente


com a retribuição do "bem" (ou do "mal") devolvido pelo doente ao curador. A
interrupção pode acontecer com o fim da relação médica após a primeira consulta.
Pode também se verificar a continuidade do processo de medicação através de
várias sessões. O importante a registrar é que toda ação social é regida por um
sentido simbólico que define sua amplitude e intensidade. Ela pode ser
interrompida abruptamente quando a lógica do mercado ou a lógica burocrática
impõem o fim da relação em nome do interesse econômico (a mercantilização da
prática social) ou da razão administrativa (a burocratização da prática social). Mas,
em geral, mesmo nos planos do mercado e da burocracia, o sistema do dom tende
a se infiltrar favorecendo a criação de parcerias, alianças, afinidades e simpatias.

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No caso em tela, podemos dizer que a dádiva da cura não se encerra
necessariamente num único ciclo. Na verdade, trata-se de um circuito de troca de
bens que pode ensejar várias rodadas, como normalmente acontece por meio das
diversas consultas e sessões de trabalho. Na dádiva médica, na efetivação do
ciclo da reciprocidade (entre curador e doente), o objetivo último é a entrega ritual
pelo paciente do seu "mal" ao curador, o qual é visto como alguém
suficientemente preparado para acolher e transformar as causas do sofrimento,
retribuindo como prestação ao paciente um "bem" da cura. Não há como deixar de
se ver nessa relação algo de mágico que extrapola a simples instrumentalidade
racional. O paciente projeta-se no médico e deposita nesse a esperança da cura
de uma doença cuja sintomatologia é impregnada de medos, expectativas e
sonhos de saúde. Nessa representação tão comum na prática médica, o interesse
utilitário e a racionalidade instrumental ficam necessariamente em planos
secundários com relação aos dons simbólicos que circulam por palavras e
silêncios, por gestos e atos falhos, por olhares, cheiros, escutas e toques. .

Não é necessário buscar nas sociedades indígenas da Amazônia ou nos


terreiros de candomblé exemplos dessa magia da cura. Dentro da própria
medicina oficial, podemos reconhecer esse tipo de curador na figura do que no
Brasil chamamos de "clínico geral", e na França "géneraliste", ou "médico de
família". Trata-se de um personagem familiar na vida cotidiana, tido normalmente

14
como conselheiro e amigo, além de médico, sendo estimado por uma clientela fiel:
os membros da família, os vizinhos e os amigos. Com o "clínico geral", a cura não
se efetiva apenas pelos remédios, mas, sobretudo pela conversa, pelo desabafo
do paciente e pela capacidade de escuta do médico. A cura passa também pelas
memórias do grupo e pelas festas onde o médico de família era recebido sempre
como um convidado muito especial. Fora do domínio da medicina oficial, a dádiva
médica moderna (entre estranhos/próximos) também é parte essencial de um
conjunto de sistemas de cura mais conhecido como terapias alternativas, sobre
cuja importância teremos tempo para discutir no quarto capítulo.

Numa direção estranha aos casos em que a dádiva médica funciona com
relativo sucesso na organização da cura como um fenômeno social total, expande-
se, atualmente, um novo ator social, o médico especialista, um profissional mais
preocupado em gerir a relação de cura a partir de um tempo utilitário do que de
um tempo de reciprocidade paradoxal (interessada mas igualmente
desinteressada). Para o especialista, tudo que diga respeito à vida pessoal do
paciente deve ser deixado de lado (ou na porta do consultório), para que não se
perca tempo com questões não previstas pelo manual adotado nas faculdades de
medicina, aquele do método anatomoclínico, que desconsidera o lugar do vínculo
social no tratamento. Tal método impõe um recorte metodológico abstrato sobre a
doença que não considera o ecossistema por se fundar num modelo etiológico
preestabelecido. Como se fosse possível eliminar da relação enfermo/médico o
sofrimento subjacente à objetivação somática e as influências do meio ambiente.
Contra este método, insurge-se, aliás, a epidemiologia que se recusa a dissociar a
doença da saúde.

O consultório do especialista tende, inevitavelmente, a se transformar num


ambiente frio, suspeito e de mal-estar no qual o tempo do cliente não vale nada
enquanto o do especialista vale tudo. A tecnicização da cura elimina a palavra e o
gesto necessário para a simbolização do sofrimento, gerando, por conseguinte,
um ambiente de desumanização propício a novas doenças que não podem ser

15
detectadas pelo paradigma dominante. O médico especialista sente-se pouco
concernido pela significação da dor do paciente, sendo o sofrimento reduzido a um
sinal a mais a ser observado na construção do diagnóstico. Não possuindo
preocupações diretas com o sofrimento do paciente, seu interesse maior é
otimizar a relação tempo útil x ganho econômico, o que implica objetividade e
distanciamento. Evitam-se, pois, conversas fora do assunto em pauta, de modo a
despachar o cliente o mais rápido possível (pois a presença do doente no gabinete
além do tempo previsto para a consulta significa em termos utilitários "perda de
tempo"). "Uma conivência reina no gabinete médico", diz a filósofa Odile MareeI.
"Uma escolha comum que consiste em não se perder tempo. De uma e outra
parte, tende-se a evacuar as palavras 'parasitas' e a fala do sintoma. Uma mesma
cegueira, uma mesma miopia são partilhadas pelos dois lados no gabinete do
médico" (MareeI, 2001: 493) 8. No caso do especialista, estamos, portanto, numa
situação de esvaziamento do humanismo em favor do tecnicismo. Esvazia-se o
dom médico em favor do mercado de doenças e medicamentos e a prática médica
é substituída por uma "engenharia de órgãos".

A admissão da idéia da sociedade como um fato social total fundado numa


circularidade simbólica inevitável, mas aberta a diversas possibilidades de
compreensão, permite nos afastarmos do imperativo da especialização para
resgatar o movimento geral da vida. No caso em estudo, a dádiva médica serve
para questionar certos dogmas correntes nas ciências sociais sobre a relação
sociedade e medicina, de modo a restabelecer o primado da interação social
sobre a tecnologia no processo de cura, reforçando a luta já clássica dos
epidemiólogos. O inevitável resgate de um humanismo crítico se apresenta pela
quebra de dogmas básicos para a Ciência, em geral, e para a medicina
especializada, em particular. Um deles é que a separação entre indivíduo e
sociedade constituiria um paradoxo objetivista insolúvel (como se observa no

8
"Une connivence regne dans le cabinet médica!", diz a filósofa Odile MareeI. "Un choix commun qui consiste
à ne pas perdre du temps. De part et d'autre, on tend à évacuer les paroles parasites et à parler du symptôme.
Um même aveuglement, une même myopie se partagent des deux côtés du bureau du soignant"
(Mareei,2001: 493).

16
médico-especialista, que procura desvincular seu interesse pessoal e utilitário dos
desafios políticos gerais da gestão do sofrimento social). O outro, de que a
legitimidade do conhecimento e o rigor científico passam necessariamente por
uma certa especialização técnica e disciplinar necessária para afirmar o projeto de
uma razão médica universal (tal crença é ilusória e tende a eliminar a dádiva
médica e a possibilidade de compreensão da medicina como uma pluralidade de
sistemas de cura).

Nem um nem outro desses dogmas respondem à questão original posta por
Mauss, a saber, que independentemente das classificações adotadas para a
compreensão da realidade em geral, e da realidade da doença e da cura em
particular, a sociedade aparece primeiramente como uma dinâmica simbólica e
ambivalente, e sua forma original é a de um círculo de doações, recebimentos e
devoluções de bens entre os homens e entre esses e a natureza. Assim, entre
paciente e curador, entre esses e a instituição médica, ou então, entre
conhecimento especializado e conhecimento genérico, existe originalmente uma
continuidade circular que liga todos os elementos numa única rede, sendo as
distâncias apenas recursos explicativos simplificados. Polissemia e ambivalência
são, portanto, aspectos constituintes das relações entre os indivíduos em
sociedade, e quaisquer classificações visando separar os diversos elementos
presentes sempre constituem um recorte parcial e limitado.

A sociologia de Mauss, ao dar ênfase à idéia de uma totalidade que não é


mera representação objetivista (como se verifica em Durkheim), mas simbólica 9,
desfaz esses dogmas dualistas e separatistas. Sendo a sociedade um todo

9
Sobre o simbolismo na obra maussiana, Bruno Karsenti esclarece que "a noção de símbolo permite
ultrapassar o confronto de realidades hipostasiadas ultrajadamente pelas ciências sociais: não existe nesta
concepção nem indivíduo nem sociedade, mas somente um sistema de signos que, mediatizando as relações
que cada um mantém com cada um, constrói num mesmo movimento a socialização dos indivíduos e a
unificação dos mesmos em grupo" (Karsenti, 1994: 87). No original: "Ce que permet Ia notion de symbole,
c'est en somme de dépasser Ia confrontation des réalités hypostasiées outrageusement par les sciences
sociales: il n'y a pas dans cette conception ni individu ni société, mais seulement un systeme de signes qui,
médiatisant les relations qui chacun entretient avec chacun, construit dans un même movement Ia
socialisation des individus et leur unification en groupe".

17
integrado por significações circulantes (gestos, risos, palavras, presentes,
sacrifícios etc.), a análise sociológica do campo médico não deve apenas
considerar os múltiplos signos/símbolos que articulam o paciente e a instituição
médica em uma única e mesma rede, mas, para isso, a análise crítica deve estar
aberta a uma compreensão complexa: a realidade da doença e da cura é, ao
mesmo tempo, objetiva e simbólica, e o entendimento dessa realidade exige uma
10
grade de leitura que seja disciplinar, inter e pluridisciplinar . Como expressão
privilegiada da sociedade, a medicina (alguns dizem que ela é o termômetro
social) constitui-se numa rede de sentidos plurais, integrada por certos princípios
paradoxais (a obrigação e a espontaneidade, o interesse e o desinteresse) que
orientam a circulação tripartite do dar, do receber e do retribuir, perfazendo um
sistema único e total.

Certos autores vêem essa idéia da sociedade como uma totalidade


simbólica à prova da distância tomada por Marcel Mauss com relação às crenças
objetivistas de Emile Durkheim. Essa perspectiva da totalidade, explica Alain
Caillé, implica dizer que a criação do vínculo social ocorre no interior das práticas
sociais: "Desde seu meio, horizontalmente, em função do conjunto de inter-
relações que ligam os indivíduos e os transformam em atores propriamente
11
sociais" (Caillé, 2000: 19) . A validade da cura obedece, então, a uma certa
simbolização do sofrimento que passa pelos vínculos criados entre o curador e o
doente. A figura do médico como curador é central nesse processo, e sua
presença física, independentemente do que ele pense sobre isso, introduz uma
subjetividade que é necessária à cura. Caso o paciente não confie no profissional,
muito provavelmente o tratamento tem grandes possibilidades de insucesso.

10
Num número especial organizado pelo Mauss para discutir as fronteiras disciplinares, Edgar Morin conclui
um ensaio sobre a transdisciplinaridade, numa linguagem que se aproxima muito daquela de Mauss. Diz ele:
"Mas não é apenas a idéia de inter e transdisciplinaridade que é importante. Nós devemos, com efeito,
ecologizar as disciplinas, isto é, levar em conta tudo que lhe é contextual, inclusive as condições culturais e
sociais. Nós precisamos ver o meio no qual elas nascem, colocam problemas, se esclerosam, se
metamorfoseiam" (Morin, 1997: 28).
11
Em francês: "Depuis son milieu, horizontalement, en fonction de I'ensemble des interrelations qui lient les
individus et les transforment en acteurs proprement sociaux" (Caillé.2000: 19).

18
Para se evitar que essa complexidade institucional da medicina provoque
confusões analíticas desnecessárias, é importante que possamos trazê-Ia para um
pensamento concreto. Nessa perspectiva, o paradigma do dom/dádiva pode
ajudar-nos a melhor circunscrever o espaço da prática médica ao nos indicar que
a dádiva médica pode conhecer diferentes modalidades e que essas se
diferenciam entre si (dependendo do modo como as socialidades se organizam no
interior de uma constituição social). Inspirado em Mauss, Caillé propõe haver uma
tendência da sociedade moderna a provocar uma separação crescente entre dois
registros de socialidades que permanecem bastante imbricados em outras
sociedades mais tradicionais. O primeiro registro é o das socialidades primárias,
no qual as relações entre as pessoas são mais importantes que os papéis
funcionais que elas desenvolvem. Trata-se do registro da família, dos parentes,
dos amigos e dos vizinhos. No registro das socialidades secundárias, ao contrário,
a' funcionalidade dos atores sociais vale mais que suas personalidades, como se
observa nas práticas do mercado, do Estado e da Ciência. Nenhuma
administração governamental pode funcionar caso não exista o espírito do serviço
público, assim como uma pátria não sobrevive caso ninguém se disponha a morrer
por ela (Caillé, 2000: 86-87).

O mesmo se pode dizer do serviço médico. Os hospitais e as clínicas


médicas não podem funcionar eficazmente caso não haja algum tipo de
solidariedade entre médicos, enfermeiras, funcionários e familiares em torno do
sofrimento do doente, espelhando em cada personagem envolvido a proximidade
inexorável da morte e da finitude. Apesar de o dom funcionar mais claramente nas
socialidades primárias, isso não significa que não esteja presente nas socialidades
secundárias. Aliás, a dádiva médica funciona, em geral, nos dois registros.

Na figura 3: "Dom de cura e socialidades primárias/secundárias", vemos


como esses dois registros, o primário e o secundário, se superpõem. O sistema do
dom atravessa as instâncias a partir de diferentes pontos. No caso do dom
mágico-religioso, ele apresenta um sentido essencialmente vertical, de cima para

19
baixo. Aquele que recebe a "graça", o dom vindo "de cima", dificilmente pode
devolver o bem recebido ao doador original. Em geral, nesses casos, o recebedor
tende a desenvolver algum tipo de ação de "fé", como o benevolato ou o
voluntariado, por exemplo, pelo qual ele pode passar adiante a dádiva recebida.
Na dádiva, a dívida não paga torna muitas vezes insuportável a vida do devedor.
Os antigos explicavam isso pelo fato de que o bem recebido não carrega apenas
um valor de uso, mas algo da alma do doador. Assim, para se desfazer dessa
dívida os indivíduos se sentiriam levados a viver o sacrifício da doação: mudando
estilos, refazendo valores e modos de ação. Numa versão não-religiosa, esse dom
é encontrado nas relações entre pais e filhos, nas quais os filhos devem retribuir o
bem de nascimento ao longo de toda sua vida, pela fidelidade e amorosidade.
Como os filhos não podem devolver o dom de vida recebido, têm de passar
adiante o bem, pelos seus filhos e netos, assegurando, assim, a reprodução da
espécie e da família.

Quando a dádiva apresenta um caráter mais científico, como no caso da


dádiva médica clássica, legitimado nos dogmas científicos, a relação assume a
forma diagonal, sendo o bem recebido de algum modo devolvido ao doador (o
curador) por meio de presentes ou mesmo dinheiro (que simbolicamente passa a
ser um dom). Mas as posições dos sujeitos da ação são diferentes por natureza.

20
Considera-se, nesse tipo de reciprocidade, que o médico detém um poder de
informação sobre a doença que o paciente não possui. O terceiro caso da dádiva
médica é o da dádiva/partilha, que funciona horizontalmente, implicando direta e
conjuntamente o paciente e o curador na cura médica. Grande parte das
chamadas medicinas alternativas funciona pela dádiva-partilha12 (esse assunto
será tratado no terceiro capítulo).

Ainda deve ser lembrado o caso da medicina especializada, que elimina a


dádiva médica. Nesse caso, a prática de cura limita-se às relações funcionais
próprias das socialidades secundárias. Por ter um caráter mercantil e utilitário
acentuado, o sistema limita a interação entre curador e paciente à repetição de
certos procedimentos formais e tecnológicos que inibem a interpessoalidade - a
relação sujeito/ sujeito - em favor da funcionalidade - relação sujeito/objeto.

A diferenciação entre esses dois registros de socialidades é importante para


que possamos avançar na distinção entre modelos de gestão da saúde (MGS) e
sistemas médicos de cura (SMC), a qual está no centro da transição dos
paradigmas médicos. Como veremos adiante, os MGS situam-se
preferencialmente no plano das socialidades secundárias, enquanto os SMC estão
dispostos, sobretudo, no plano das socialidades primárias e secundariamente das
socialidades secundárias de caráter científico (pois a pesquisa científica segue,
classicamente, um trajeto próximo das ações espontâneas de cura).

Enfim, a discussão a partir do paradigma da dádiva permite-nos aprofundar


a compreensão da relação entre medicina e magia, pois o simbólico impõe uma
série de significações que a objetividade causal e racional não pode explicar.

12
Nas entrevistas que fizemos com os fundadores do movimento das terapias alternativas no Recife, à
pergunta sobre quem cura a doença, as respostas em geral enfatizavam a responsabilidade do paciente no
processo como fica ilustrado no depoimento seguinte: "Nós, terapeutas não curamos ninguém. É preciso
mudar o objetivo de vida da pessoa. Se você (o paciente) muda seu objetivo de vida, fica mais fácil se
restaurar" (terapeuta interdimensional).

21
Medicina; técnica e magia

O paradigma da dádiva/dom aparece como um sistema teórico estratégico


para ajudar na arrumação desse conjunto diversificado de informações que
constitui o imaginário da medicina moderna e, sobretudo, para esclarecer a crise
do modelo médico dominante e os desdobramentos que essa crise oferece para a
compreensão da "transição de paradigmas".

Para começar, devemos assinalar que é muito limitada a representação da


medicina como um sistema de conhecimentos de cura universais e permanentes,
unificado pela modernidade por meio do progresso técnico. Assim colocada, ela
constitui uma armadilha que apenas serve como justificativa ideológica, adiando a
13
crítica severa a ser feita ao modelo médico utilitarista dominante, crítica que é
condição preliminar para a reorganização dos saberes médicos.

Essa aparente uniformidade conceitual e histórica da medicina oficial é


ilusória, pois esconde certos aspectos decisivos: um deles, o de que a biomedicina
moderna, por não ser a mesma desde sua origem, não é uniforme, tendo
conhecido diferentes mutações ao longo dos séculos. Na verdade, sua versão
utilitarista atual constitui uma ruptura importante com o caráter humanista
dominante no século XIX (por ocasião da regulamentação do trabalho social e da
instituição da clínica hospitalar). O outro aspecto diz respeito ao fato de que o mal-
estar social, afetivo e existencial dos cidadãos, com relação à generalização da
lógica utilitarista no interior da instituição médica hoje, tem promovido o
aparecimento e/ou revitalização de uma pluralidade de outras "medicinas" que
estão contribuindo para a reorganização do campo médico como um todo. Essas
"medicinas" põem em xeque a hegemonia da biomedicina cartesiana não apenas

13
O utilitarismo, segundo Alain Caillé, não representa um sistema filosófico particular ou um componente
entre outros de um imaginário dominante moderno que enfatiza o interesse econômico e a razão instrumental.
Ele se tornou o próprio imaginário moderno (Caillé, 1989:9).

22
do seu exterior (terapias alternativas, por exemplo), mas também do seu interior
(medicina psicossomática e epidemiologia).

Assim, o esforço de um certo exercício crítico com relação à medicina


dominante leva à constatação de que não existe a medicina como um sistema
único, mas várias medicinas como respostas culturais dadas por cada sociedade,
em determinado momento, aos significados específicos das relações do homem
com as representações sociais de sua finitude (o mal, a doença, a morte). Para
Philippe Adam e Claudine Herzlich, a medicina e a saúde definem-se em função
"das exigências e expectativas ligadas a nosso meio ambiente, a nossas inserções
e a nossas relações familiares e profissionais, por exemplo, e constituem, no
sentido próprio, estados sociais" (Adam & Herzlich, 1994: 7). Nesse sentido, antes
de ser um conjunto de técnicas, a medicina aparece como um jogo de crenças e
rituais coletivos criados por cada sociedade para resolver o dilema fundamental da
existência humana: o da vida/morte (num certo instante de criação das instituições
coletivas). Aprofundando essa perspectiva, Byron Good sustenta ser a medicina,
primeiramente, uma forma simbólica e não um conhecimento produzido a partir de
um espelhamento técnico da natureza (biológica), como acreditaram os
doutrinadores da biomedicina durante muito tempo. Como forma simbólica, ela é
um princípio de formação da realidade como o são a ciência, a religião e a arte,
servindo para revelar o mundo da experiência no momento mesmo de realização
da ação. Fórmulas simbólicas como a medicina "confirmam a idéia de que
devemos prestar atenção aos processos generativos, às práticas formativas pelas
quais são formuladas a doença e outras dimensões da realidade médica" (Good,
1998: 157).

Enfim, a essas compreensões da medicina como fenômeno social aberto a


uma pluralidade de sentidos soma-se àquela sugerida por Mauss sobre o fato
social total, no interior do qual as práticas de cura constituem não uma atividade
econômica à parte, mas um ritual de passagem e de negociação entre os deuses
e os homens, entre a vida e a morte. Os sentidos plurais das práticas médicas

23
colocam uma série de discussões importantes, que vão desde o questionamento
do modelo tecnicista de saúde (que se refere sempre ao corpo como uma
máquina a ser desmontada) até o reconhecimento da relatividade histórica da
medicina (Já que essa muda de significação cultural à medida que a sociedade
onde ela existe também refaz seus sentidos históricos). No contexto de uma
modenidade-mundo que se abre para várias modernidades (Ortiz, 2000),
naturalmente as novas expressões simbólicas da medicina também são plurais,
recombinando a realidade por meio de diferentes sincretismos e hibridismos.
Nesse contexto de significações múltiplas, fatalmente a "clínica médica" que se
organizava através de instituições predominantemente nacionais (as associações,
as leis, as faculdades de medicina etc.) e do culto à cientificidade da alopatia,
consegue manter sua hegemonia. O próprio mercado se encarrega de desfazer o
que restava da ética médica (e do valor simbólico da bata branca) para impor a
lógica do calculador e do tecnologista de órgãos.

Não custa lembrar que a medicina é um produto da sociedade e da cultura


e que para aparecer como instituição necessita possuir um sentido simbólico
subjacente, pois, sem ele, a institucionalização funcional está fadada a perecer
(Castoriadis, 1975). Sendo porém, o simbólico, aquilo que reúne o que estava
separado, ele se identifica, para alguns, com a própria dádiva, ou seja, com o
sentido humano de tomar uma primeira atitude de dar algo a alguém para se
inventar o vínculo social (Caillé, 1998: 131-132); ou seja, na perspectiva da teoria
da dádiva, entende-se que o sentido primeiro da prática médica passa por uma
doação de vida do curado r ao doente, resgatando desse último o seu "mal", o
presente envenenado pela morte. Supõe-se que o mistério da doença possa ser
revelado pelo curador que para isso disporia de técnicas, além de habilidades para
ser solidário com a dor dos outros, enfim, seria capaz de gerar o dom de cura.
Nesse sentido, os processos e instrumentos do tratamento são sempre, de alguns
modos, rituais (tradicionais ou modernos, não importa!) que resgatam a magia do
dom da vida pelas mãos "mágicas" do curador.

24
Magia é um termo que exprime um conjunto de representações e crenças
fortemente marca das pela tradição da sociedade na qual ela foi criada ritualmente
e validada pelo uso comum. Para MareeI Mauss, a magia constitui uma classe
distinta de fenômenos sociais, compreendendo atores, atos e representações
ligados à tradição e que são eficazes porque o grupo social acredita neles (Mauss,
1999a: 10-11). A correlação entre os conhecimentos técnico e mágico resolve-se
pela necessidade prática de se responder à questão básica de saber se as
práticas de cura funcionam, ou não. Elas funcionam porque a técnica de cura se
fundamenta basicamente na possibilidade de se trocar dons de vida e de morte
entre médico e doente, o que é algo essencialmente mágico (porque sem a magia
a técnica médica se anula).

Nessa perspectiva, devemos concluir que tanto o movimento de


generalização do utilitarismo tecnicista na prática médica, como a recusa do papel
do humanismo mágico na cura, traduzem tendências preocupantes. Significam, no
mínimo, que a dimensão simbólica da medicina moderna está sendo esvaziada
em favor do pragmatismo utilitarista. Contra essa tendência declinante do caráter
mágico da cura, a sociedade reage tentando resgatar, mediante outras saídas e
sem maiores preocupações racionalistas, o sentido simbólico, humanístico e total
da cura médica. Podemos concluir, assim, que a redução da magia a uma
irracionalidade científica (operação central na construção da hegemonia da clínica
médica nos dois últimos séculos) contribui para uma manipulação ideológica da
sociedade e do doente, visando justificar a pretensa perpetuidade da medicina
biotécnica. A redução da dimensão mágica e ritualística da medicina a um
problema técnico relacionado a funções e disfunções orgânicas contribuiu, pois,
para que os aspectos éticos da manipulação do corpo e do sofrimento fossem
esvaziados em favor de uma moral utilitarista e pragmática, o que se tornou
evidente na última década do século XX.

Mas, deixando de lado a ambição da medicina oficial de se constituir num


modelo científico permanente, precisamos reconhecer, seguindo a sugestão de

25
Mauss, que existe inevitavelmente uma relação estreita entre técnica e magia,
sendo difícil conceber concretamente uma sem a outra. Nesse sentido, a medicina
moderna apenas tem" eficácia simbólica", porque o ato de cura aparece como
mágico para o doente, magia que se expressa na expectativa do paciente com
relação à sabedoria do curador e também ao efeito prático do medicamento
prescrito. Lévi-Strauss, num estudo sobre "o feiticeiro e a magia", lembra existir
uma certa psicologia no trabalho do feiticeiro, legitimada por três tipos de
experiências: aquela do próprio xamã, cuja vocação (independentemente de ser
falsa) produz efeitos psicossomáticos; a do doente, que pode ou não sentir uma
melhora; e a do publico, que também participa da cura e que dependendo do
desenrolar do processo pode provocar uma adesão coletiva, inaugurando um novo
ciclo (Lévi-Strauss, 1974: 205). Todo sistema simbólico é sistema de eficácia (Le
Breton, 1995: 57), e os limites objetivos da medicina são antes limites de sentidos.
Por isso, a relação entre técnica e magia continua sendo central na organização
do imaginário médico, sendo ilusórias as tentativas de se estabelecer uma
contradição radical entre ambos os termos (magia e técnica) em favor de um
reducionismo problemático da técnica à racionalidade instrumental.

Essa ambivalência entre técnica e magia não desaparece com a medicina


contemporânea de base alopática. Centremo-nos no exemplo infalível da
prescrição do medicamento, momento em que, acredita-se, a ciência biomédica
afirma todo o seu valor positivo no combate técnico à doença. Ao analisar o
processo de medicalização, o observador constata, contudo, que a cura não é tão
técnica como busca demonstrar o discurso oficial. Ao contrário, existe entre as
partes envolvidas um componente mágico muito importante, o da confiança do
doente na competência do profissional e na capacidade deste de eliminar o "mal".
Ora, tal confiança não se obtém pelos diplomas e pelas tecnologias de ponta, mas
pelo voto que o doente faz para o médico, voto que é simbólico e que remete a
uma atitude de fé.

26
Ao lado da magia inerente à confiança do paciente no médico, também
pode ser lembrado como momento mágico da medicalização aquele do uso do
"placebo", um medicamento às vezes aplicado em combinação com os
concentrados químicos ativos, às vezes sozinho. Trata-se, de fato, de um
medicamento mágico, pois sua eficácia prática é obtida basicamente pela
imaginação, pelo convencimento, pela persuasão, sendo utilizado de forma impura
em aproximadamente 45% das prescrições. Sua função prática na conservação
dos medicamentos é muito menor que sua função simbólica nos processos de
cura. Todos os médicos conhecem o efeito mágico do placebo e se servem dele,
pois sabem que ele funciona. Tal efeito é obtido quando se aplicam certas
substâncias como lactose (via oral) ou soro fisiológico (via parental) como se
fossem verdadeiros medicamentos; isto é, produtos testados pelos laboratórios. O
interessante é que ele funciona muito bem em várias enfermidades de natureza
mental, física ou emocional, como esquizofrenia, úlcera, depressões, dentre
outras. Esclarecem P. Lemoine & B. Lachaux que "praticamente todas as doenças
e todos os sintomas estudados podem reagir ao placebo, mesmo a diabete, a
angina no peito e o câncer" (Lemoine & Lachaux, 1992: I). As interpretações
psicanalíticas do efeito placebo terminam confirmando o fato de que suã eficácia é
simbólica. Para essas interpretações, a eficácia do placebo está situada na
dimensão mágica que contém toda prescrição, uma magia que obedeceria ao
triplo mecanismo do simbolismo, da transferência e da regressão: "O
medicamento (placebo) simboliza tanto a cura como o curador. O valor simbólico
do medicamento provém de que ele é ao mesmo tempo uma dádiva e um
substituto do médico" (ibid.: 5). Por conseguinte, a ênfase na racionalidade
instrumental e na objetividade científica não constitui uma prova convincente da
vitória da tecnociência biológica sobre as atividades mágicas dentro do próprio
campo. Ao contrário, a insistência sobre o valor absoluto e universal da
tecnociência alopática apenas denuncia o caráter da ideologia médico-utilitarista
dominante.

27
Até aqui, falamos de princípios científicos gerais para lembrar que nos
limites restritos do campo da Ciência muitos argumentos podem ser arrolados
contra a pretensão da biomedicina utilitarista em aparecer como a Ciência
verdadeira e universal. Se avançarmos nosso critério de dúvidas sobre a relação
entre medicina e religião, a discussão fica mais obscurecida. Descobriremos ser
muito significativo o número de médicos e cientistas que possuem credos
religiosos de várias latitudes ou que acreditam em superstições. Esse fato coloca
uma dúvida crucial: a de saber quando, na prática da cura, um médico que
professa certa religião está apenas exercendo sua profissão, ou até que ponto, ao
fazê-Io, não está ele sendo guiado por suas crenças e emoções. Não estará
fazendo uma espécie de cura espiritual, por exemplo, no momento em que toma
para si (e entrega a Deus) o destino de uma cirurgia difícil. Na verdade, os dois.
Para o especialista científico que é também um homem religioso, sua atividade
médica tende necessariamente a encobrir as duas faces do seu imaginário
(mesmo que ele o negue racionalmente). Inegavelmente, o médico tem de se
confrontar de algum modo com o sofrimento do outro ou, pelo menos, com as
ressonâncias que o mal do outro produz sobre suas lembranças pessoais,
familiares e sociais. Para amenizar a presença da dor, o profissional procura
símbolos que levem sua imaginação para um ambiente mais ameno: no
consultório, põe fotos de pessoas queridas ou objetos pessoais e, no ato cirúrgico,
procura conversar com os colegas ou mesmo com o paciente procurando
descontrair o ambiente.

Em geral, o exercício da medicina, sobretudo quando o médico é obrigado a


acompanhar o doente por um longo período, leva freqüentemente a criar um clima
afetivo profundo entre ele e o doente (o que conduz invariavelmente o profissional
a desfazer a neutralidade instrumental proposta pelo discurso acadêmico oficial).
Queremos dizer, pois, que a prática de cura, quando fundada sobre um
compromisso ético do médico com o paciente, leva-o em muitas ocasiões a
questionar a dimensão pragmática da medicina especializada, resgatando outros
sentidos da cura inspirados na experiência vivida. Dissemos em condições de

28
normalidade, já que existem, também nessa área, aqueles que se mostram
insensíveis ao destino do doente (Já que estão apenas preocupados com seus
ganhos econômicos e materiais ou com seus prazeres utilitaristas). De fato, a
axiologia utilitarista contribui para diminuir a sensibilidade do profissional da
medicina quanto à dimensão do sofrimento do doente, já que o objetivo central é o
ganho econômico. Não se pode dizer, porém, que estes tipos sejam
predominantes no seio da profissão médica em geral.

Modelos médicos na modernidade: questões conceituais

A compreensão da complexidade das mudanças paradigmáticas no campo


médico, já o dissemos no início do capítulo, é dificultada em grande parte pelas
resistências a se ver a medicina como um fenômeno social total, no sentido
maussiano do termo. A idéia de totalidade fundamenta-se, em primeiro lugar, no
reconhecimento de que tudo é simbólico na prática médica e tudo tem alguma
importância para identificar a doença e os caminhos da cura. A começar pelo
sofrimento, cuja simbolização deveria constituir o sintoma mais importante a ser
observado pelo curador, já que na dor se condensam radicalmente os sinais da
debilidade orgânica e dos limites psicoemocionais.

A medicina é também um fato total quando se abre a uma compreensão


inter e pluridisciplinar, pois seu reconhecimento como instituição depende de um
imaginário mais amplo, envolvendo saúde, educação, sanitarismo, meio ambiente
e habitação. Na figura 4, "Imaginário médico-social moderno", vemos que o tema é
muito complexo e se presta às traduções as mais diversas. A simples enunciação
da palavra medicina já coloca de imediato uma outra correlata, a de saúde, sendo
essa associação o fundamento da medicina preventiva ecossocial e sistêmica
proposta pela epidemiologia. Embora sejam termos bem próximos, medicina e
saúde não devem, porém, ser confundidos, para o bem da crítica a ser feita à
medicina tecnoinstrumental, pelas razões que serão expostas a seguir. Para
Georges Canguilhem, a saúde é mais ampla que a medicina, definindo-se aquela

29
pela capacidade do homem de gerir seu meio não somente físico, mas social, pois
o vivente não vive apenas entre leis, mas entre seres e acontecimentos que
diversificam essas leis (Canguilhem, 1966).

Desse modo, como verificamos na figura 4 ao falarmos de saúde, referimo-


nos a um imaginário mais amplo, que extrapola a medicina como instituição para
considerar igualmente a educação, o sanitarismo, o meio ambiente, a habitação e
o saneamento, apenas para nos limitarmos a um grupo mais evidenciado no
debate.

Mesmo quando desejamos restringir a reflexão sobre a medicina a uma


dimensão mais restrita, a da gestão política médica e de organização de sistemas
de cura, imediatamente somos obrigados a considerar outros elementos que
participam da organização da prática médica, como são os casos da religião, do
mercado, da Ciência, do Estado e da arte. Além do mais, como os campos da
saúde e da medicina constituem um sistema complexo e aberto, os modos como
esse conjunto de instituições se articula em cada sociedade nacional depende da
resolução das ambivalências históricas mais gerais entre a modernidade-mundo e
a tradição nacional/regional/local, ou, então, num outro plano, entre a sociedade e
o indivíduo. Todas essas instituições são, por conseguinte, elementos dinâmicos
em interação no íntimo de um imaginário social mais amplo, que se define não por
separações, mas por continuidades e ultrapassagens entre, de um lado, o
indivíduo e a sociedade e, de outro, a modernidade e a tradição.

30
Refletindo sobre as dificuldades das ciências sociais de lidar com a
14
medicina , concluímos que a única saída para fazermos uma demonstração
convincente sobre a natureza das mudanças em curso é utilizarmos com fins
instrumentais a teoria dos sistemas, como o fez Edgar Morin. Explica esse autor
que a teoria dos sistemas e a cibernética se cruzam numa zona incerta comum.
Ao contrário da última, que, por se referir ao conceito de máquina, conserva na
sua abstração algo de concreto e empírico, a teoria dos sistemas é muito ampla e
abstrata, pois num certo sentido toda a realidade conhecida cabe nela, desde as
estrelas até a célula, o organismo e a sociedade; mas, como sistema de análise,
termina pecando por excesso de reducionismo. Apesar disso, ele vê algumas
virtudes no sistemismo: a) de introduzir no centro da teoria uma unidade complexa
que não se reduz à soma das partes constitutivas; b) de conceber a noção de
sistema nem como uma noção real nem como uma noção puramente formal, mas
como uma noção ambígua; c) de se situar a um nível transdisciplinar que permite,
ao mesmo tempo, conceber a unidade e a diversidade da Ciência "não somente

14
Essas dificuldades são muito antigas. Para Everardo Nunes, a rejeição ao biologismo empurrou a
sociologia para longe da medicina. Por outro lado, a própria medicina, diante das descobertas bacteriológicas,
abandonou o interesse pelas ciências sociais (Nunes, 1999: 120).

31
segundo a natureza do seu objeto (da Ciência), mas também segundo os tipos e
as complexidades dos fenômenos de associação e de organização" (Morin, 1991:
28-29). Atentos a esses riscos, consideramos que a adoção instrumental do
sistemismo pode facilitar-nos a apresentação da medicina como um sistema
complexo e aberto, como faremos a seguir.

Há, nesse sentido, para começar, no interior da própria medicina, uma


pluralidade de noções e conceitos que são usados correntemente pelos cidadãos
e que terminam sendo objeto de desentendimentos, como por exemplo, os termos
seguintes: biomedicina, medicina oficial, medicina moderna, medicina coletiva,
medicina paralela, terapia alternativa, medicina popular, medicina xamânica,
medicina quântica, dentre vários outros. Em torno da expressão medicina
circulam, pois, noções muitas vezes bastante diferentes, o que complica a
compreensão do fenômeno. Porém, para que a diferenciação desses dois níveis
de abstração do campo médico (o da gestão da saúde e o das técnicas de cura)
possa ser efetuada, exige-se do pesquisador ou do leitor interessado, uma
compreensão preliminar das diferenças entre duas séries de representações: uma
delas é a representação da medicina como um conjunto de crenças, normas,
regras e valores estabelecidos socialmente; a outra é a da medicina como um
conjunto de ações ambivalentes, livres e obrigadas, interessadas e
desinteressadas, que estão sendo recriadas a cada momento seguindo diferentes
especificidades sociológicas.

Assim, ao falarmos de medicina podemos nos referir unicamente a certas


significações instituídas, como, por exemplo, o conjunto de elementos implicados
na formulação dos modelos de saúde vigentes (organizações públicas e privadas
envolvidas, regulamentações jurídicas e profissionais, crenças teóricas etc.).
Essas significações instituídas são bem conhecidas: o Ministério da Saúde, os
hospitais públicos e privados, os médicos famosos de cada cidade, os
medicamentos de laboratórios mais difundidos pelos meios de comunicação etc.
No lado contrário, podemos igualmente referir-nos à medicina como as

32
significações instituintes. Aqui não estamos mais no campo das representações
expressamente visíveis, mas num outro, amorfo, incerto e indeterminado, que é
aquele das práticas vividas dos atores no seu cotidiano: um campo de práticas e
movimentos ambivalentes e espontâneos, de criação e destruição de técnicas e
crenças em torno da cura e que conhecem diversas expressões culturais e
sociais. Nesse segundo caso, o cotidiano da doença e da cura é uma caixa de
surpresas. Sempre aparece alguém a nos indicar um remédio caseiro mais
eficiente que o anterior, ou então a nos passar o endereço de um novo terapeuta
que nos inicia numa experiência jamais vivida antes. Abrindo essa caixa de
surpresas, sempre é feita uma nova amizade, uma nova descoberta do corpo e da
saúde.

Em suma, ao falarmos de medicina, referimo-nos a várias coisas ao mesmo


tempo. De um lado, o símbolo médico remete-nos tanto para os modelos e
políticas de saúde mais gerais como de técnicas de cura mais restritas (que não
se confundem com os modelos de saúde, mas que são partes integrantes dos
mesmos). De outro, o símbolo médico sugere-nos dois outros entendimentos:
assim, podemos referir-nos tanto àquela medicina oficial, reconhecida
publicamente e sancionada por legislações, como àquela outra medicina, informal
e dinâmica, que vivemos no nosso cotidiano, cujo formato é impreciso, justamente
porque ela é refeita a cada momento. Longe, porém, de estarmos vivendo um
impasse sociológico face a um fenômeno tão complexo, o desafio que se nos
apresenta é de aceitarmos tanto a complexidade teórica desse fenômeno como o
fato de que sua discussão exige a compreensão da medicina como um fato total,
ao mesmo tempo material e simbólico.

Para fins instrumentais e com o objetivo de diluir tais dificuldades


conceituais, consideramos oportuno introduzir dois conceitos teóricos que são
centrais na organização do paradigma médico dominante: o modelo de gestão da
saúde (MGS) e o sistema médico de cura (SMC).

33
Na figura 5, "Modelos e sistemas médicos", podemos visualizar esses dois planos
de organização da prática médica.

MGS é uma sigla que designa certos sistemas complexos de gestão da


saúde situados entre os planos macro e mesossociais, aqueles do mundo
formalizado onde predominam as socialidades secundárias. Trata-se de um nível
de abstração necessário para focalizarmos as operações de sistematização e
difusão das novas crenças científicas, a organização da legislação médica e do
ensino profissional, a estruturação das políticas públicas e das estratégias dos
atores sociais e agentes econômicos, políticos e culturais. Por outro lado, a sigla
SMC refere-se a sistemas complexos de cura na medicina, situados entre os
planos micro e macrossociais, aqueles do mundo vivido onde predominam as
socialidades primárias e as práticas de dádiva propriamente ditas. Um MGS pode
ser constituído de vários SMC, do mesmo modo que um único sistema médico de
cura pode influir sobre a organização de diferentes modelos de gestão da saúde,
como é o caso do modelo biomédico que analisaremos adiante.

34
Na figura 6, "Modelos de gestão da saúde", procuramos enumerar os quatro
modelos mais conhecidos na modernidade médica: o da sociedade medicalizada,
que teve sucesso na Europa; o do capitalismo médico, concebido nos Estados
Unidos; o modelo misto, presente em países que adotam fórmulas intermediárias,
como é o caso do Brasil, e o modelo da medicina coletivizada, cuja implantação foi
tentada nos países burocrático-socialistas, como Cuba, países do Leste Europeu e
China (esse modelo continua a servir como referência utópica para as esquerdas
em regiões como a América Latina). Para alguns autores, a saúde coletiva deve
ser vista como um novo paradigma médico gerado nas tensões entre Estado e
sociedade (Paim & Almeida Filho, 2000: 69). Poderíamos concebê-Ia, então, como
uma solução alternativa surgida na América Latina a partir das experiências da
sociedade medicalizada e da medicina coletivizada.

Na figura 6 podemos ainda observar que a crise da medicina moderna, no


presente momento, se abre para o surgimento de novos modelos utópicos: de um
lado, os modelos tecnoutilitaristas; de outro, aqueles humanistas. Trata-se, é
verdade, de tendências, mas que se fundam em heranças históricas concretas
resultantes do racha da medicina oficial. Assim, de um lado, a tendência ao
tecnoutilitarismo inspira-se na apropriação da tecnologia de órgãos pelo
capitalismo médico e pelos avanços da medicina privada sobre a medicina
pública.

35
De outro, a tendência humanista se inspira nos avanços de uma medicina
social presente no Estado do bem-estar (modelo da sociedade medicalizada) e
nos Estados burocrático-socialistas (modelo da medicina coletivizada). Entre uma
e outras tendências referenciais, as sociedades nacionais tendem a se organizar
em torno de modelos intermediários. Em se tratando de sistemas complexos e
abertos, devemos salientar que, no plano dos MGS, a transformação do
paradigma médico dominante não se realiza de modo uniforme. Diferentes
variações apresentam-se, dependendo de como cada sociedade se articula no
seu imaginário sócio-histórico, de um lado as tensões entre mercado, Estado,
sociedade civil, Ciência e política e, de outro, as tensões entre os diferentes
sistemas de cura médicos envolvidos.

Na figura 7, "Sistemas médicos de cura", estão classificados os principais


sistemas instalados ou em instalação nesse momento da transformação da
medicina moderna, a saber, os sistemas bioorgânicos, cuja versão mais conhecida
é o alopático, que é a base do método anatomoclínico adotado pela medicina
oficial; mas não podemos esquecera outra versão conhecida da medicina
bioorgânica, a homeopatia, que se estrutura na mesma época da alopatia, embora
se mantendo institucionalmente numa posição secundária. Um segundo conjunto
é o dos sistemas biopsíquicos, que ganharam destaque primeiramente com a
hipnose e com a psiquiatria e, depois, com a psicanálise de Freud, entre os
séculos XIX e XX. Neste último século, o desenvolvimento das novas psicologias,
criadas pelos discípulos de Freud (Reich, Jung, Adler, Lacan, dentre outros) ou
por pesquisadores/terapeutas inspirados por ele, deram impulso importante a
esses sistemas de cura, permitindo sua vulgarização social.

36
Os sistemas populares são aqueles que se desenvolvem fora da medicina
oficial, tanto apoiando a reprodução dessa como se apropriando de inovações da
Ciência médica com fins de difusão de processos de cura no meio popular. Devem
aqui ser lembrados, no campo das medicinas populares, a vulgarização e o
consumo arbitrário de antibióticos que, por motivos diversos, caem na simpatia
popular. Mas não podem ser esquecidos os famosos chás e remédios caseiros,
transmitidos de geração em geração no espaço doméstico e familiar. Próximo a
esses estão os sistemas xamânicos, herdados de culturas tradicionais, que
participam do processo de constituição das sociedades nacionais, sendo
evidentes, por exemplo, no caso brasileiro, as tradições africanas e indígenas e
também aquelas européias (se pensarmos no caso do espiritismo kardecista).
Esses tipos de sistemas mágico-religiosos encontram inspiração, igualmente, no
novo sincretismo mundial gerado pela mundialização, que integra diferentes
tradições religiosas e místicas, ocidentais, orientais e ameríndias. Estão presentes
em novas seitas como o Santo Daime, que utilizam ritualisticamente a ayahuasca,
ou "oasca", na gíria popular brasileira, uma planta alucinógena dos antigos incas
peruanos, usada para operar certos processos de cura xamânica.

37
Nas últimas décadas, ganharam bastante prestígio os sistemas
bioenergéticos, que podem ser divididos entre os que possuem origem ocidental,
como é o caso das terapias reichianas - bastante divulgadas pelo discíptilo de
Reich, Alexander Lowen, fundador da terapia corporal conhecida como
bioenergética -, e aqueles outros subsistemas seculares, oriundos, sobretudo da
China, como a acupuntura, ou da Índia, como a ioga ou a massagem ayurvédica,
que já possuem ampla aceitação no imaginário médico ocidental. Ainda na n figura
7, verificamos que os formatos institucionais dominantes dependem do modo
como cada sociedade articula no seu imaginário sócio-histórico tensões
resultantes, de um lado, do mundo da técnica e, de outro, do mundo da magia. A
experiência vivida sempre está presente. Mas, dependendo da situação, ela é
organizada de modo mais formal e rotineiro (mundo da técnica), ou mais
espontâneo e improvisado (mundo da magia).

Continuando a análise da figura 7, é possível observarmos que, no


momento atual das mudanças dos paradigmas médicos, esses sistemas de cura
tendem a ser reorganizados dentro de novos modelos de gestão, em função das
tendências opostas representadas pelas pesquisas biotécnicas de ponta e pelas
vivências mágicas e alucinatórias. A primeira tendência aponta para uma
crescente tecnificação dos modelos médicos dominantes, sendo a experiência
vivida congelada em certos procedimentos formais próximos do que poderíamos
designar uma engenharia de órgãos. A segunda tendência reforça a dimensão
mágica das práticas médicas, sendo a experiência vivida, progressivamente
atraída pelos rituais místicos e pelo valor da relação interpessoal entre curador e
doente.

Na figura 8, "Medicina moderna: modelos dominantes", podemos observar


como interagem os modelos de gestão da saúde (MGS) e os sistemas médicos de
cura (SMC). Observamos que os três modelos dominantes já apresentados - o do
capitalismo biotécnico, o da sociedade medicalizada e os mistos referem-se
diretamente ao SMC bioorgânico, os quais se abrem para outros sistemas. De um

38
lado, as pesquisas biotécnicas de ponta (em vários hospitais estão sendo criados
com o apoio dos departamentos de bioengenharia das universidades para
administrar máquinas caras e de manutenção técnica difícil); de outro, os sistemas
biopsíquicos (os centros de saúde mental das faculdades e hospitais constituem
lugares de embates importantes entre as tendências biotécnicas e biopsíquicas).
Certamente as pressões entre estatização e mercantilização levam os diferentes
modelos a organizar seus sistemas de curas segundo as normas do interesse
econômico e/ou da organização burocrática.

Por outro lado, na parte inferior da figura 8, podemos ver que os sistemas
bioorgânicos tanto alimentam os sistemas populares como são alimentados por
eles. A relação dos sistemas bioorgânicos e dos sistemas xamânicos também está
presente pelas apropriações que a Ciência médica faz dos saberes xamânicos
tradicionais. Do ponto de vista analítico, é inegável o paradoxo entre, de um lado,
uma Ciência médica valorizadora, de uma racionalidade instrumental e laica e, de
outro, uma medicina religiosa, preservando os vínculos entre cura e magia.

Seguindo as reflexões de Edgar Morin sobre os sistemas complexos (Morin,


1991), diríamos que a medicina é um macrossistema que apresenta uma
característica auto-ecossistêmica particular, característica evidenciada tanto no
nível das articulações interinstitucionais - da medicina com outros sistemas - como
ao nível da autoprodução interna. Aqui, trata-se da articulação entre a experiência

39
vivida dos atores sociais com o sofrimento, a doença e a cura, e a formalização
dessa experiência em modelos técnicos. Sistemas complexos como o médico, por
serem abertos à comunicação com o meio ambiente, são muito instáveis,
reproduzindo-se em permanente desequilíbrio e sendo marcados por fortes
incertezas estruturais que repercutem na estabilidade do imaginário social como
um todo. Em condições normais, tais sistemas complexos reproduzem-se por
meio de um certo "dinamismo estabilizado", cuja inteligibilidade se constitui na
relação com o seu meio ambiente. "Este vínculo é absolutamente crucial nos
planos epistemológico, metodológico, teórico, empírico. Logicamente, o sistema
apenas pode ser compreendido se for incluído nele o meio ambiente, que é ao
mesmo tempo íntimo e estranho e faz parte do sistema embora lhe sendo exterior"
(Morin, 1991: 32).

No contexto da crise da medicina, porém, esse dinamismo do sistema


médico conhece forte instabilidade devido a duas séries de fatores. Um deles tem
a ver com a mundialização que vem obrigando aos diferentes MGS e SMC
nacionais trocarem informações entre si, o que vem a promover reajustes
importantes que têm ressonância simultaneamente nos planos local, nacional e
mundial. Embora a mundialização médica deva ser vista como um processo total,
não devemos perder de vista que essa totalidade é obrigada a ser retraduzida em
diferentes níveis nacionais e locais. Parafraseando Renato Ortiz (1994: 31),
diríamos que a mundialização médica apenas ocorre como um fenômeno social
total à proporção que ela "enraíza-se nas práticas dos homens". O outro fator é o
peso adquirido pelo modelo do capitalismo médico no interior da medicina oficial, o
que será analisado oportunamente.

Para termos uma idéia mais precisa de como as tensões históricas e


sociológicas influenciam o modo concreto de funcionamento dos modelos
médicos, consideremos o caso do Brasil. Na figura 9, "Modelo médico misto:
Brasil"I verificamos que a discussão do imaginário da medicina exige que se
coloquem frente a frente os campos da Ciência e da religião (obrigando, pois, que

40
o sistemismo saia de sua abstração para acolher a diversidade da realidade social
e histórica). No lado de cima da figura, vemos que o campo da medicina oficial
gira basicamente em tomo de dois MGS: o da medicina tecnoutilitarista (que
atende à população de renda mais alta) e o da medicina pública, o Sus, uma
adaptação brasileira do modelo da sociedade medicalizada (que responde pelo
atendimento da maioria da população).

No lado contrário - o do campo religioso -, as práticas de cura estendem-se


pela rica variação de cultos de inspirações diversas, sendo os mais conhecidos
aqueles de inspiração afro-brasileira, indígena e cristã. Cada um desses, por sua
vez, abre-se para diferentes possibilidades, como é o caso dos cultos cristãos que
estão presentes em tradições religiosas bastante distintas, como, por exemplo, as
pentecostais e kardecistas. Com a modernidade-mundo e com os novos
sincretismos mundiais, as opções de sistemas de cura mágicos também se
multiplicam no interior da sociedade brasileira. Por outro lado, analisando
verticalmente a figura 9, vemos que os dois campos, o médico-científico e o
religioso-mágico, comunicam-se por meio de um continuum formado por diversos
sistemas médicos de cura (SMC).

41
A partir do campo oficial, a organização das práticas de cura passa, em
primeiro lugar, pelos sistemas bioorgânicos e pelas articulações desses com as
pesquisas biotécnicas, com os sistemas biopsíquicos e com os sistemas
bioenergéticos. Num segundo momento, os sistemas de cura bioorgânicos e
bioenergéticos comunicam-se com os sistemas populares e xamânicos e, por
intermédio desses, penetra no campo místico-religioso. Devemos notar que essa
descrição pode ser lida no sentido inverso, já que estamos falando de sistemas
complexos e abertos a múltiplas flutuações: de um lado, aquelas provocadas pelas
tensões entre tecnificação e humanização; de outro, aquelas entre técnica e
magia.

O percurso da medicina oficial moderna

Vamos considerar as possibilidades que o paradigma da dádiva oferece


como uma teoria pluridimensional da ação (Caillé, 1998), para compreendermos o
que se passa, neste momento, com a medicina moderna como um todo, e com o
sistema bioorgânico, que legitima o discurso de verdade da medicina dominante,
em particular. No nosso entender, esse paradigma permite uma análise mais
dinâmica de como os modelos de gestão da saúde (MGS) se constituem a partir
de uma certa combinação dos sistemas médicos de cura (SMC), em diferentes
contextos históricos e sociológicos, dentro da modernidade ocidental e mundial.
Considerando que os SMC refletem lógicas diferentes de ação médica, então é
compreensível que haja articulações variadas dessas lógicas em termos da
constituição de alguns modelos médicos mais gerais.

Nos termos do paradigma da dádiva, já vimos, a cura legitima-se,


sobretudo, no plano das socialidades primárias (domínio das relações
interpessoais), do microssocial, onde circulam as dádivas: os bens simbólicos
fundamentais para a cura. Mas, para a apreciação da construção dos MGS
(modelos de gestão da saúde), no plano macrossocial, devemos considerar como
os elementos incondicionais da dádiva (interesse x desinteresse e obrigação x

42
espontaneidade), criados no plano primário, ingressarem no plano das
socialidades secundárias (domínio das relações funcionais). Neste segundo plano,
existem três esferas de eficácias funcionais centrais: o Estado (objetivo da lei e da
regulamentação), o mercado (objetivo do preço e do lucro) e a Ciência (objetivo
das verdades racionais e impessoais) (Caillé, 2000b: 82), em torno das quais
acontece a dança dos modelos médicos. A essas esferas cremos ser importante
acrescentar, pela sua importância para a cura médica, a esfera da religião
(objetivo das verdades míticas). No nível das relações interpessoais, a dádiva de
cura é, sobretudo, caracterizada pela espontaneidade, criatividade e simpatia.
Mas, ao circular através das relações funcionais para estruturar os MGS, ela
integra fortemente a obrigação e o interesse, como podemos perceber nas
práticas dos clínicos gerais ou nos gabinetes de psicologia.

Cada modelo médico integra, em princípio, todos os elementos paradoxos


da ação social (espontaneidade x obrigação e interesse x desinteresse),
misturando a dádiva a informações socioprofissionais. Cada um desses elementos
do paradoxo, tomado individualmente, tende a exercer, porém, uma 'pressão
específica no movimento de institucionalização sócio-histórica. Assim, se o valor
dominante é o interesse, certamente o sistema de cura recebe clara influência do
mercado de bens e serviços, influindo no modelo médico, como é o caso atual do
capitalismo biotécnico. Se o valor dominante for a obrigação, percebemos a
emergência de um modelo com acentuado traço estatista e igualitarista. Se esse
valor for a dádiva, observamos a ênfase na experiência vivida dos atores
envolvidos como na medicina popular e nas terapias alternativas.

Considerando, porém, a necessidade de limitar essa exposição aos


modelos médicos modernos, já apresentados, aparece claramente o sistema de
cura bioorgânico como sendo legitimador de modelos médicos que se inspiram
seja na Ciência, seja no mercado, seja no Estado. No interior desse sistema
bioorgânico, a dádiva médica sempre teve um status ambíguo: enquanto não se
radicalizou a tendência expansiva da engenharia de órgãos, preservou-se um

43
espaço importante para uma medicina interativa, inspirada na prestação
interpessoal, através, sobretudo, da chamada "clínico geral". No nosso entender,
foi essa ambigüidade da medicina moderna com relação ao status da dádiva
médica que criou as condições para a ruptura do paradigma médico entre as
tendências de tecnificação e humanização que iremos ver mais adiante. Ou seja, a
expansão da medicina de órgãos baseada numa ideologia tecnoutilitarista e
mercantilista gerou necessariamente uma reação inversa, tanto dentro como fora
do campo oficial.

Nessa perspectiva de uma teoria múltipla e relacional da ação, observamos


que o desenvolvimento da medicina oficial moderna resultou das articulações dos
condicionantes ambivalentes da dádiva (interesse x desinteresse, espontaneidade
x obrigação) em torno da organização de alguns modelos de gestão da saúde, já
apresentados na figura 6. O surgimento dos modelos médicos modernos que se
legitimam na separação e articulação das esferas da Ciência, do Estado e do
mercado e na marginalização progressiva da esfera da religião, ocorre a partir da
sistematização do SMC bioorgânico em torno do imaginário da alopatia.

Num primeiro momento, digamos do século 'XVI até os fins do século XVIII,
na Europa, a representação institucional da medicina ainda estava bastante
vinculada ao esforço de sistematização de uma biociência médica incipiente, no
interior da qual era inevitável a mistura da dinâmica científica com elementos
religiosos, revelando o quanto o biocartesianismo estava impregnado pela
metafísica. Apesar de o sistema bioorgânico ser então bastante simplista, a
Ciência constituía o grande vetor da inovação médica, pois nem o Estado
moderno tomava iniciativas de regularização institucional do sistema, nem o
capital especulativo despertara ainda interesse pelo mesmo.

No século XIX, porém, as migrações campo-cidade e o crescimento dos


centros urbanos na Europa colocaram na pauta política, desafios para a
organização do que, na época, veio a ser mais conhecido como "política pública",

44
base do futuro modelo médico estatista. Um desses desafios era a questão da
mortalidade das populações regularmente atingidas por epidemias. Os hospitais
eram lugares onde se entrava para morrer e, por isso mesmo, as perspectivas de
hospitalização eram bastante temidas pelas populações mais pobres. O
tratamento médico específico tinha pouca utilidade, ressaltando-se algumas
experiências bem-sucedidas no uso do mercúrio para a sífilis, do ferro contra a
anemia, de cinchona contra a malária e da inoculação contra a varíola. Mas as
medidas terapêuticas empregadas pelos médicos, tanto no campo da medicina
preventiva como curativa, tinham poucos efeitos práticos sobre as tendências de
mortalidade (Singer, Campos &Oliveira, 1978: 19), o que era motivo de transtorno
público, exigindo um posicionamento ativo do Estado.

Sob a influência do debate político e da ação estatal, visando regulamentar


os procedimentos das práticas de cura e combate às epidemias e contágios, a
instituição médica conheceu uma importante reorganização tecnocultural expressa
pela normatização e disciplinamento das práticas médicas. Na segunda metade do
século XVIII, observou-se pioneiramente, na Inglaterra, um movimento de
fundação de hospitais e dispensários, abrindo-se o caminho para o movimento
importante de reforma das instituições sociais, preparando-se o nascimento da
clínica moderna. A imagem do hospital como o lugar onde o pobre ia morrer se
transformou no lugar onde o enfermo ia curar-se. A racionalização técnica e
administrativa dos hospitais foi reforçada com a expansão da medicina
universitária, contribuindo para o movimento de institucionalização da medicina
moderna. Na primeira metade do século XIX, deu-se a reforma do "Poor Law" que,
com as "workhouses", eram destinados a abrigar os desvalidos - enfermos,
inválidos, doentes mentais, velhos - e os desempregados. Iniciativas oficiais foram
tomadas para organizar dados estatísticos sobre as condições de vida, orientando
a pesquisa sobre a epidemiologia (Singer, Campos & Oliveira, op. cit.: 23). Esse
conjunto de iniciativas nos domínios do Estado e da Ciência contribuiu para
institucionalizar a política (polícia) médica, o movimento do sanitarismo e a
medicina social. Foi nesse contexto que, na França, em meados do século XIX, o

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médico e jornalista Julio Guérin, defensor de uma medicina associativista, propôs
a criação de um Ministério do Progresso ou da Saúde Pública (Nunes, 1999: 33).
Como resultado desse confronto de ações, podemos dizer que a Ciência ganhou
um importante aliado no trabalho de organização do sistema bioorgânico, que foi o
Estado moderno.

A lógica médico-científica tradicional, influenciada pela metafísica, teve de


abrir espaço, aos poucos, para uma lógica regulamentatória estatal mais
pragmática, que, por sua vez, influiu decisivamente sobre os rumos da pesquisa
biomédica, fornecendo as bases para a criação de um modelo complexo de
gestão da saúde. Desse modo, desde a segunda metade do século XIX, os rumos
da medicina oficial foram largamente influenciados, de um lado, pela ação estatal
e, de outro, pela pesquisa científica e acadêmica. O sistema de cura biomédico
cartesiano foi beneficiado pelo positivismo biológico (que recebeu grande impulso
com o avanço das pesquisas bacteriológicas) e pela introdução de métodos
assépticos e anti-sépticos, reduzindo enormemente o número de mortos nos
hospitais e contribuindo para mudar substancialmente a imagem desses. Essa
valorização de um saber médico sistematizado sobre a experiência popular foi
decisiva para o desenvolvimento da clínica médica vista como instrumento de
interesse público. Tal valorização foi estimulada, de uma parte, pelas inovações
tecnológicas, como o surgimento de novos medicamentos e técnicas; de outra
parte, pela ação ativa do Estado na regulamentação da saúde pública. Esses
fatores e mais outros, como a formação de associações médicas, contribuíram
para que, no século XX, a medicina moderna fosse oficializada como uma
instituição laica e difusora de um conhecimento estritamente técnico da doença.

O disciplinamento progressivo da instituição médica, entre os séculos XIX e


XX, repercutiu sobre o campo-médico-científico como um todo. Assim, inovações
importantes surgiram na época, devendo ser lembradas, na segunda metade do
século XIX, uma série de descobertas que vieram reforçar o lugar do sistema de
cura biomédico de inspiração cartesiana. Uma delas foi aquela conduzida por

46
Pasteur & Kock no campo da pesquisa bacteriana, permitindo à Ciência médica
dominar as doenças infecto-contagiosas; outras foram a descoberta do raios-X e
as descobertas das etiologias da malária e da febre amarela. No século XX, o
esforço de sistematização dessa Ciência médica continuou a ser estimulado pelos
governos nacionais e por pioneiros do setor privado, permitindo as descobertas de
remédios contra a sífilis. Ressaltemos, também, as descobertas da insulina e da
vacina contra a poliomielite e, no Brasil, devem ser lembradas a revelação da
etiologia da doença de chagas e a invenção da abreugrafia (Singer, Campos &
Oliveira, 1978: 20).

A regulamentação jurídica do campo médico e a sistematização da


pesquisa biomédica contribuíram para o aparecimento de uma medicina social,
que inspirou a organização de um importante modelo de gestão da saúde, o da
sociedade medicalizada. Esse modelo foi consagrado, no século XX, pelo
casamento da tecnociência médica com a política estatal de proteção social
(Adam & Herzlich, 1994: 36). A institucionalização de um modelo de medicina
pública, apoiado por um sistema de cura eficaz e inspirado no biocartesianismo,
não foi tarefa fácil, pois sua instituição ultrapassava o campo estritamente técnico
para implicar ações em outros níveis, como o do sanitarismo, da habitação, todos
em conjunto tendo implicações políticas diretas na organização da cidadania. Até
os inícios do século XX, grande parte das doenças, sobretudo no meio popular,
eram tratadas por curandeiros locais e pela tradição do sistema de cura
doméstico. As resistências populares à quebra dessas tradições privadas de cura
a partir das novas políticas de saúde eram evidentemente significativas. Por
ocasião do combate à febre amarela, no Rio de Janeiro, em 1903, surgiu um
movimento contrário a essa política sanitária, acusando a "higiene oficial" de
despótica. A cidadania da época acusava o Estado de querer arrancar os filhos
das mães para lançá-Ios em horríveis hospitais, de devassar a propriedade alheia
com interdições, desinfecções e outras medidas, de derrubar casas em bairros
pobres, dentre algumas denúncias (Singer, Campos & Oliveira, op. cit.: 26). Contra
essas resistências à estruturação de uma sociedade medicalizada, agiu o Estado,

47
ao mesmo tempo, como agente repressor de certas crenças populares sobre os
cuidados do corpo e como agente promotor de uma medicina pública e universal.

Um momento importante para a institucionalização de um modelo de


medicina pública, inspirada nas inovações técnicas e disciplinares oferecidas pelo
biocartesianismo, foi aquele da regulamentação universitária da profissão médica
com o monopólio da atividade, sendo dada ao médico "regular", "oficial",
"científico" ou "alopata". Uma outra inovação significativa, voltada para a
institucionalização de um modelo de sociedade medicalizada, entre os séculos XIX
e XX, foi a criação do seguro de saúde compulsório, sendo a Alemanha o primeiro
país a adotar essa medida em 1876, iniciativa seguida por vários outros países.

Nesse instante, paralelamente à formalização do poder biomédico, as


atividades dos curadores populares e alternativos passaram a ser colocadas sob
suspeita de charlatanismo. Mediante tal estigmatização maliciosa, procurava-se
jogar para debaixo do tapete um fato óbvio: que os sistemas mágicos funcionam
bem para os males de origem psíquica ou psicossomática, nos quais a medicina
convencional muitas vezes falha. Mas o problema era de outra ordem. A
hegemonia do sistema de cura biomédico no interior da medicina moderna era
uma condição essencial para a estruturação dos novos modelos de gestão da
saúde: primeiro o estatal, depois o mercantil. Assim, era fundamental combater as
medicinas populares e alternativas para impor, na organização da modernidade
médica, um modelo de Ciência que confirmasse a busca mais ampla de uma
racionalidade técnica e científica universal no campo médico.

Enquanto os países europeus adotavam o modelo de gestão da sociedade


medicalizada, os Estados Unidos preferiram não estimular o papel do Estado na
organização do seguro de saúde nacional, criando um outro modelo de gestão
(embora o sistema de cura, o biomédico, fosse o mesmo para ambos os MGS). A
importância da cultura filantrópica, associada ao elevado poder de compra (e de
contribuição) do trabalhador norte-americano, estimulou a expansão do modelo da

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medicina liberal, que é o precursor do modelo contemporâneo do capitalismo
médico. Nas origens, esse modelo de gestão médico-mercantil baseava-se nos
seguros privados, como a do Blue Cross, administrada pela Associação
Americana de Hospitais, e a do Blue Shield, gerida pelas associações médicas
locais. Do mesmo modo, a ausência do Estado na organização do sistema de
seguro levou os empregadores, sob a pressão dos sindicatos, a cobrirem prêmios
maiores de seguro para empregados e dependentes.

A partir dos anos oitenta do século XX, esse modelo da medicina liberal
expandiu-se nas asas do neoliberalismo e da axiologia do interesse, provocando o
enfraquecimento dos discursos sociais da saúde. No final dos anos oitenta, nos
Estados Unidos, um relatório polêmico do Institute of Medicine, intitulado The
future of public health, anunciava a queda de prestígio e de influência das escolas
de saúde pública, esvaziadas por abordagens individualizadoras da saúde. O
enfraquecimento do Estado do bem-estar social e do modelo da sociedade
medicalizada, nessa década, favoreceu a expansão da lógica do mercado no
interior do campo médico, para além das fronteiras dos estados nacionais.

A América Latina e outras regiões menos desenvolvidas do globo ficaram


divididas entre a adoção do modelo da sociedade medicalizada e a adoção do
modelo da medicina tecnoutilitarista norte-americano. Num primeiro momento,
entre os anos cinqüenta e oitenta, de hegemonia do Estado desenvolvimentista,
esses países inspiraram-se acentuadamente no modelo europeu estatizante da
saúde. No Brasil, por exemplo, antes da reforma constitucional de 1988 que criou
o Sus (Sistema Unificado de Saúde), o modelo de gestão até então adotado era
bastante ambíguo. Nele, as contribuições de empregados e empregadores eram
geridas pelo Estado, que assegurava precariamente o funcionamento do modelo
de gestão, tanto no plano do governo federal como dos estaduais.

Num segundo momento, a partir dos anos oitenta, a crise do Estado


desenvolvimentista facilitou a emergência de fortes pressões voltadas para a

49
privatização dos serviços públicos e para a racionalização dos serviços médicos.
Os novos critérios de eficiência e eficácia, como os adotados pelo Banco Mundial,
baseados em políticas de ajuste macroeconômico, passaram a reger a
mercantilização do campo médico. Mas, como esses ajustes comprometem a
eqüidade num setor de concorrência bastante desigual e onde o cidadão tem
dificuldade de fazer escolhas racionais (poucos sabem o conteúdo dos
medicamentos à venda), então existem governos que reagem à privatização da
saúde pelos perigos que ela representa para a sobrevivência do sistema político.
Esse assunto será tratado com mais detalhes no capítulo seguinte.

Na prática, países como o Brasil, submetidos a limitações econômicas e a


grandes desigualdades sociais, foram obrigados a adotar modelos mistos (ver
figura 9: "Modelo médico misto: Brasil"). Desse modo, a criação do Sus (que é
uma adaptação do modelo da sociedade medicalizada para uma sociedade na
qual o número de pobres é a grande maioria) foi seguida, paralelamente, por uma
série de ações visando estimular a medicina mercantil privada. Nos anos noventa,
o governo brasileiro continuou estimulando a implantação conjunta dos dois
modelos de gestão clássicos. Para os membros do governo, como o economista
José Serra, o modelo misto é inevitável (Serra, 2000: 28-29). Para estudiosos do
assunto, como o geógrafo Jan Bitoun, esse sistema termina favorecendo os
setores empresariais e aqueles outros que têm acesso privilegiado aos recursos
públicos para a saúde. Seria indispensável, diz ele, "inverter as prioridades", mas
tal inversão, avisa, é um "processo incipiente e que não interessa aos setores
empresariais, prestadores de serviços caros financiados pelo SUS" (Bitoun, 2000).

Na prática, os modelos mistos da América Latina e de outros países de


desenvolvimento intermediário conhecem uma pressão forte por parte dos grupos
privados, interessados em reforçar a presença do modelo de capitalismo
biotécnico e especulativo. Os ideólogos desse modelo procuram igualmente
satanizar as medicinas populares e alternativas. Mesmo disciplinas humanistas
como a psicanálise, que já têm um amplo reconhecimento, são vistas como

50
ameaças para a reprodução de um modelo médico-mercantil, estreitamente
dependente dos interesses dos grandes laboratórios de medicamentos, das
indústrias de equipamentos e das empresas de seguros privados. Esses fatos
foram antecipados por Hésio Cordeiro, que enumerou alguns problemas derivados
das relações ambíguas entre medicina, pacientes e indústrias farmacêuticas. Para
ele, a lógica utilitarista na saúde, que ele identifica como "ideologia difusa das
sociedades industriais", fundamenta-se numa série de deturpações do que se
entendia como saúde pública e social. A medicalização passou a ser vista como
controle político e social, e a eficácia, entendida como precisão técnica do
diagnóstico e da intervenção (Cordeiro, 1980: 65). A crescente dependência dos
médicos com relação aos interesses das indústrias de medicamentos (que fazem
dos especialistas seus "representantes autorizados") seria mesmo imoral, dizia
esse autor, contribuindo para empobrecer ainda mais a relação do médico com o
paciente, pois, "longe de representar uma forma de intervenção técnica, o novo
medicamento substitui o diálogo do médico com o paciente, garante o prestígio
profissional e medicaliza os problemas vitais" (ibid.: 72).

De outra parte, devemos ressaltar os esforços dos setores mais à


esquerda, preocupados com a generalização do utilitarismo econômico na prática
médica e com a insuficiência de experiências como a do Sus, na cobertura dos
serviços de saúde para os mais pobres. O dilema para a região latino-americana e
para o Brasil, na época atual, pode ser sintetizado pelo seguinte depoimento de
alguns especialistas: "Enquanto a estratégia da atenção primária à saúde se
difunde a partir da Conferência de Alma-Ata, os centros hegemônicos da
economia mundial revalorizam o mercado como mecanismo privilegiado para a
alocação de recursos e questionam a responsabilidade estatal na provisão de
bens e serviços para o atendimento de necessidades sociais, inclusive saúde"
(Paim & Almeida Filho, op. cit.: 12). De fato, ao contrário do modelo da sociedade
medicalizada, que significou uma solução razoável para a questão da saúde
social, o modelo da medicina tecnoutilitarista contribuiu para a ampliação do
número de excluídos dos sistemas de seguro social e de cuidados médicos.

51
Lembra o economista José Serra, Ministro da Saúde do Brasil no governo
Fernando Henrique Cardoso, que, ao contrário do que propôs a visão ultraliberal,
o mercado não tem por si só condição de nortear o conjunto das ações do país
nessa área. Considerando que 40% das famílias no Brasil detêm uma renda
modesta que chega até três salários mínimos por mês, deduz-se que esta parte da
população pouco interessa ao mercado de bens médicos. Portanto, não dispõem
de nenhum poder de compra a exercer no mercado. Daí continua ele, que no
Brasil tem de existir um modelo misto público/privado, pois "é preciso ter clareza a
respeito da impossibilidade de se transferir à lógica do mercado parcelas
crescentes de responsabilidade sobre a saúde" (Serra 2000: 28-32).

A seguir, vamos procurar centrar nossa atenção num SMC particular, o


sistema bioorgânico, que constituiu o pilar da medicina oficial em nível mundial,
nos séculos XIX e XX. Sublinhemos que a crise de legitimidade dos MGS
dominantes ocorreu no momento em que o sistema bioorgânico perdeu sua
hegemonia. O crescente questionamento dos indivíduos sobre a eficácia
contemporânea deste sistema de cura dominante influiu, recentemente, sobre a
revalorização de outros sistemas de cura cujas existências tinham sido abafadas
pela medicina hegemônica.

O sistema de cura bioorgânico: ascensão e declínio

O sistema de cura bioorgânico não constitui um SMC universal e


racionalmente superior a outros sistemas existentes. Trata-se, certamente, como
veremos, de um sistema original e complexo, por resultar de uma operação ampla
entre religião, técnica, Ciência e mercado, tendo servido para legitimar a expansão
dos modelos de gestão dominantes (o estatista e o privatista, sobretudo). Mas os
limites da medicina bioorgânica são dados pelos rumos da medicina clínica que,
desde o século XIX, caminhou no sentido de promover a separação radical entre
técnica e magia, entre Ciência e religião, entre mercado e dom.

52
Por outro lado, o que designamos como sistema bioorgânico, hoje, não é a
mesma coisa que se entendia como tal há um século ou, então, há dois ou três
séculos atrás. A biomedicina moderna conheceu diversos recortes e mutações
que acompanharam o processo de instituição da modernidade médica. O primeiro
recorte situa-se entre o Renascimento e o fim do monopólio temporal da Igreja, na
Alta Idade Média. Digamos, o período situado entre os séculos XV e XVII, quando
a visão organicista dominante, modelada no aristotelicismo e no cristianismo, foi
substituída por uma outra, a visão do mundo como uma máquina, inspirada na
revolução científica que tem em Galileu, Descartes e Newton alguns de seus
expoentes. O segundo recorte verificou-se entre os séculos XVIII e XIX, com o
nascimento da clínica moderna, e o terceiro, com o processo de mercantilização
do corpo, na segunda metade do século XX. Vejamos mais detidamente essas
passagens.

Momento da biociência nascente: separação da alma e do corpo

Para se diferenciarem dos bruxos e alquimistas tradicionais, os primeiros


cientistas modernos necessitaram elaborar um discurso que os legitimasse, ao
15
mesmo tempo, como homens de fé e de Ciência . Os estudiosos reconhecem
que a publicação de De revolutionibus orbium coelestium, de Copérnico, que
estudou medicina em Bolonha e Pádua, foi decisiva para romper com certo
imaginário de um mundo antropocêntrico, ocupado por sol e estrelas girando em
torno da terra.

No contexto do novo imaginário histórico renascentista e pós-renascentista,


a metáfora cientificista do mundo/máquina impôs-se progressivamente sobre as
crenças religiosas, exercendo um fascínio importante para viabilizar certas
reformas epistemológicas e filosóficas. De um lado, o enigma cientificista, a saber:

15
Embora esta estratégia não tenha poupado da morte na fogueira um clérigo cientista como Giordano Bruno
e quase executado outro como Galileu fatos acontecidos nos momentos iniciais de passagem para a
modernidade, entre os séculos XVI e XVII.

53
a tradução metafórica do corpo como uma máquina, tradicionalizada com sucesso
por Descartes. De outro, impôs-se o positivismo nascente, promovendo a distância
normativa necessária entre Igreja e Ciência. A perda de legitimidade da Igreja
ocorreu paralelamente à valorização de um ideal de verdade científica
considerada um fim em si mesmo (descartando o controle direto da Igreja na
definição do bem e do mal). No entanto, por trás do olhar calculista cartesiano,
que ambicionava analisar cientificamente o corpo-objeto, continuava a se
esconder um outro olhar, o de Deus. Para esses cientistas pioneiros, a inteligência
última a justificar os sentidos do trabalho científico continuaria a possuir natureza
metafísica. Essa presença de Deus no imaginário da Ciência nascente explica,
pois, que as imbricações entre as duas instituições (Igreja e Ciência) eram mais
freqüentes do que se imagina. O surgimento da "clínica médica", nos séculos XVIII
e XIX, veio abalar, porém, essa "santa aliança", afim de permitir uma maior
publicização do debate sobre saúde e doença.

Na organização do sistema biomédico clássico, alguns personagens


merecem ser citados. Um deles foi Para celsus, médico e místico da Basiléia, do
século XVI. Ele salientou as possibilidades curativas das matérias inorgânicas e
introduziu na farmacopéia da época, baseada então em produtos vegetais e
animais, uma série de novos elementos como o chumbo, o enxofre, o ferro, o
arsênico, o sulfato de cobre e o potássio (Balestieri, 2000). Sob o impacto dessas
inovações médicas, a representação do corpo humano também se modificou,
ficando ela mais densa, mais substantiva, mais terra que céu.

Na construção de um saber anatômico sobre o corpo, preparando essa


primeira etapa do processo de secularização cultural do Ocidente e de
organização do imaginário bioorgânico, dois homens exerceram importante papel:
Leonardo da Vinci (1452-1519) e Vésale (1514-1564), sendo o último considerado
o grande precursor dos estudos sobre o corpo humano a partir das dissecações
de cadáveres. Na sua célebre obra De humani corporis fabrica, insistia que o
homem fosse estudado a partir de dissecações do corpo humano e não a partir de

54
certos mamíferos, como o que era proposto pela tradição aristotélica. Sua
insistência nesse imperativo metodológico permitiu-lhe organizar um modelo de
observação do corpo fundado na nomenclatura e na iconografia (Canguilhem,
1990: 12-14). Esses trabalhos de dissecação ocorreram por uma operação
imaginária de valorização da estrutura anatomofisiológica humana como sendo o
único documento verídico sobre a "fábrica do corpo humano", isto é, a valorização
do homem como um ser diferente dos outros animais e merecedor de uma Ciência
capaz de desmontar esse corpo para revelar a totalidade do conjunto.

Desde então, o corpo tornou-se um importante fator de individuação,


operando uma mutação ontológica importante nas representações dominantes da
vida social. O corpo tornou-se a fronteira entre um homem e outro, uma peça
acessória do indivíduo (Le Breton, 1990: 46). Na organização imaginária do
mundo, se o planeta terra deixava de ser o centro do cosmos, o homem
continuava sendo, mais do que nunca, o centro do planeta.

Podemos dizer, então, que Vésale, fundador de um pensamento anatômico


na Itália renascentista, e René Descartes, - na França, são os principais
responsáveis pelo surgimento, entre os séculos XVI e XVIII, de uma
representação autônoma do corpo. Responsáveis, igualmente, pelo aparecimento
de um indivíduo moderno submetido ao que David Le Breton diz ser um tríplice
recorte: o homem moderno é cortado dele mesmo (distinção entre homem e
corpo, entre alma e corpo), é cortado dos outros homens (passagem de uma
estrutura social do tipo comunitário para outra do tipo individualista) e cortado do
universo (os saberes da carne não mais se referem a uma homologia homem-
universo, reduzindo-se a um saber específico sobre o corpo) (Le Breton, 2000:
186). Essa série de cortes permitiu à biomedicina moderna ocidental aparecer no
imaginário social como uma Ciência empírica e objetivista. Essa representação,
porém, deu-se basicamente às custas de uma descontextualização da doença e
também, lembra Laplantine, pela autonomia do biomédico com relação ao social e,
em particular, ao mágico-religioso (Laplantine, 1989: 61).

55
A biomedicina ocidental estabeleceu sua positividade disciplinar a partir
daquilo que foi definido pelo método cartesiano como sendo 109 verídico e não-
sujeito a ilusões. Para Descartes, a única percepção confiável, capaz de permitir a
objetividade científica necessária ao alcance da verdade, seria a visão. A
curiosidade científica inicial pelos mistérios do corpo/máquina levou então à
valorização do olhar, muito mais do que quaisquer outras sensações. De fato, para
esses precursores, as imagens consolam o indivíduo a respeito da sua
impossibilidade de apreender o mundo e de apreendê-Io sem um envolvimento
sensível maior. Fixando a confusão de acontecimentos pelo olhar, o homem
exorciza a angústia gerada pela perspectiva do caos e da desordem. As imagens,
diz Le Breton, introduzem um olhar de inteligibilidade onde parece reinar o
incoerente ou o invisível. "O adensamento que elas provocam sobre o fluxo do real
ou sobre os espaços vazios das coisas dispersam o conteúdo, mas permitem que
se comece a compreender as realidades e se aproximar delas desvendando sua
complexidade e textura" (Le Breton, 2000: 262). Trata-se, é claro, de uma
visibilidade que se conquista a partir de fora, de uma observação externa, mas foi
essa forma de se compreender que permitiu ao homem moderno construir um
certo tipo de ordem social e médica e uma certa tecnociência do visual.

A biomedicina cartesiana afirmou-se, inicialmente, por essa mesma


operação realizada no plano institucional, visando substituir a Igreja pela Ciência
na produção do discurso secular sobre a verdade. A preocupação meta física de
Descartes era com a presença de um espírito capaz de penetrar, pela observação,
o corpo sensível, fazendo enfim a experiência do conhecimento. A tradução
metafórica do corpo como uma máquina existente fora do espírito humano e capaz
de ser manipulado por um "olhar" calculista e classificador induziu, certamente, um
tipo particular de desenvolvimento científico. Estimulou, no Ocidente, a
organização de um conjunto de técnicas médicas que não é universal,
ressaltemos, mas que constitui o resultado de um modo de compreensão da
doença e da cura e, por conseguinte, do desenvolvimento de um modelo
nomenclatural e etiológico particular. Mas a redução do fenômeno da percepção

56
como um todo ao sentido particular oferecido pelo "olhar observador" limitou
evidentemente a descrição desse corpo humano a um combinado funcional de
peles, músculos, nervos, sangue e ossos dispostos em formas de órgãos
separados, perdendo-se de vista que eles formam um conjunto interligado por
processos sutis: interligação do corpo físico com os corpos emocionais e
psicológicos (Martins, 1999a), interligação dos diversos organismos para além das
explicações fisiológicas e mecânicas, interligação dos processos biológicos e das
significações sociais, culturais e históricas.

Momento da clínica médica: a objetivação do corpo

Um outro momento importante para a afirmação do sistema bioorgânico foi


aquele do surgimento da "clínica médica", entre os séculos XVIII e XIX, permitindo
sistematizar os saberes anatômicos, fisiológicos e práticos constituídos nos
séculos anteriores. As mutações conhecidas pelo saber médico nesse período
mais recente ambicionavam afastar as influências metafísicas (que estavam
presentes no ideal cartesiano do espírito, tido como expressão de Deus) e reforçar
o olhar laico e científico. É justo dizer que uma nova etapa da secularização
cultural moderna aconteceu naquele momento de afirmação de uma Ciência
médica ocidental.

Segundo Michel Foucault, teria emergido naquele momento um olhar


empírico que abandonou a razão metafísica para pôr ênfase sobre o objeto: "O
sólido, o obscuro, a densidade das coisas fechadas sobre si mesmas, possuem
poderes de verdade inspirados não à luz, mas à lentidão do olhar que percorrem
as coisas, as contorna e pouco a pouco as penetra trazendo para elas nada mais
que sua própria claridade" (Foucault, 2000: IX-X). Para esse autor, o discurso
racional deixou, então, de ser justificado pela ação de um espírito inquiridor para
ser organizado a partir da espessura do objeto, que se constituiria, doravante, na
fonte do saber e no limite da experiência (em particular da experiência clínica). A
medicina empirista emergente, também conhecida como medicina positivista,

57
institucionalizou-se logo nesse momento. Tal medicina legitimou-se publicamente
por meio do reforço de ruptura da Ciência e da magia, ou seja, entre, de um lado,
um certo conhecimento científico do corpo valorizador da razão instrumental e, de
outro, aqueles conhecimentos de curas populares e alternativos tidos como
mágicos e arbitrários (e, logo, não-científicos).

A idéia de doença como uma anormalidade exterior ao corpo, como um


fenômeno irregular que poderia ser separado e extirpado mediante procedimentos
mecânicos, foi consagrada ao longo dos dois últimos séculos. A distância entre
médico e paciente foi reforçada e eleita como fundamental para a análise e o
combate científico da doença. Ocorre que a busca de um certo distanciamento
metodológico entre médico e paciente, em nome da eficiência instrumental, não se
realizou sem custos. Ela reforçou, no plano da medicina, uma barreira
metodológica emocional e afetiva; entre o curador e o paciente, realizada em
nome da verdade científica e, mais particularmente, do método anatomoclínico.
Assim, o "nascimento da clínica" (ibid.: 117), ao significar uma ampliação das
tendências separatistas entre o curador e o doente, aparece como um
acontecimento fundamental para o reconhecimento institucional e jurídico do saber
médico biocartesiano, mesmo que essa aplicação tenha sido feita em detrimento
da complexidade da prática médica 16.

De fato, esse pensamento empirista do século XIX terminou reforçando o


aspecto central da biomedicina cartesiana, aquele da dualidade metodológica
entre espírito e corpo. A novidade introduzida pelo empirismo foi, sobretudo,
aquela do abandono da hipótese de um espírito inteligente a observar o objeto de
seu exterior. Por conseguinte, para preencher tal lacuna, o empirismo buscou
valorizar um olhar clínico submetido ao imperativo objetal do "dizer o que se vê",

16
A prática médica é complexa, porque ela exige que a relação entre médico e doente funcione ao mesmo
tempo no registro das socialidades primárias (relações interpessoais) e das socialidades secundárias
(relações funcionais). Se um ou outro desses fatores predomina, o trabalho de cura é prejudicado. Um
excesso de aproximação ente o médico e o paciente podem prejudicar a busca de objetividade. No lado
contrário, um excesso de distancia também é desfavorável, pois o curador deixa de captar uma série de
sintomas somáticos e psíquicos que poderiam ser importantes para um diagnóstico satisfatório.

58
como se o objeto se apresentasse por si, de modo sensual, mesmo
independentemente do desejo de aparecer do sujeito. Tratava-se de instituir um
olhar clínico passivo, que ambicionava ir de corpo em corpo, e cujo trajeto se
situaria no espaço da manifestação sensível, pois para a "clínica nascente",
lembra Foucault, toda a verdade se situa no lado do objeto e de sua manifestação
sensível (ibid.: 121).

Privilegiando uma compreensão positiva, visual e instrumental da realidade


corporal sem espaços para um entendimento fenomenológico mais complexo da
percepção como um fato total que valorizasse a presença de um espírito
inquiridor, a biomedicina alcançou, assim, no nascimento da clínica moderna, o
status de dogma científico. A "clínica médica" edificou-se como um espaço
estratégico, permitindo estabelecer a hegemonia da medicina ocidental por meio
de várias operações: reclassificação do espaço corporal, reorganização dos
elementos constituintes do fenômeno patológico, definição da série linear de
fenômenos mórbidos, dentre outros. Segundo Foucault, as formas da
racionalidade médica moderna são cravadas sobre uma percepção que oferece
como face-primeira da verdade, as coisas conforme elas se apresentam
materialmente à primeira vista: como cores, como duração, como aderência: "O
sólido, o obscuro, a densidade das coisas fechadas sobre si mesmas, possuem
poderes de verdade inspirados não à luz, mas à lentidão do olhar que percorre as
coisas, as contorna e pouco a pouco as penetra trazendo para elas nada mais que
sua própria claridade" (ibid.: IX). Essa racionalidade médica estabeleceu, por
conseguinte, um sistema de classificação e de normalização da doença, inspirada
por um modo de percepção visual e objetivista do corpo que o apresenta como
uma unidade à parte e independente de qualquer sentido ou inteligência preliminar
instituinte (como foi proposto por Descartes).

Porém, diga-se de passagem, tal objetivação do olhar técnico, consagrado


pelo sistema de cura dominante, o bioorgânico, a partir do século XIX, constitui
apenas um modo limitado de apreensão da realidade da doença e da cura, modo

59
que, para ser mais abrangente, necessitaria ser completado por outras
percepções, como tais, por exemplo, a da escuta e a do sentir. Mas essa
estratégia restritiva de organização do saber médico, hipervalorizando a
tecnociência visual, não foi aleatória. A objetivação do saber médico serviu para
desvalorizar socialmente certos saberes médicos, populares e alternativos, que
não dispunham de um discurso cientificista bem elaborado. Apesar disso, essas
outras medicinas continuaram a se reproduzir à margem da medicina oficial em
estruturação, ao preencherem uma exigência primária da cura médica que o
método anatomoclínico não podia monopolizar: o do simbólico. Mesmo dentro do
campo da medicina oficial, essa opção neocartesiana por uma metodologia
reducionista aparentemente abrangente na sua eficácia técnica não foi suficiente
para eliminar a antiga tradição médica, que valorizava a relação interpessoal e os
rituais de cura, e que sobreviveu no interior da medicina moderna, ao longo do
século XX, na figura do que chamamos clínico-geral ou médico de bairro.

O novo sistema de classificação da medicina biocartesiana,


institucionalizado entre os séculos XVIII e XIX e largamente divulgado como
verdade científica no século XX, projetou o corpo como um objeto mecânico auto-
apresentável e não referido a um sujeito que o antecipasse e lhe desse sentido,
reproduzindo, por conseguinte, a proposta cartesiana original do relógio. Surgiu
uma medicina pragmática, valorizando um corpo sem sujeito e normalizada por
um olhar objetivista e aparentemente neutro. Tal corpo, cujas partes poderiam ser
estudadas separadamente exigiu, por conseguinte, da Ciência biomédica uma
progressiva divisão técnica e disciplinar. Nessa operação de construção de um
paradigma científico empirista e objetivista, a idéia de doença conheceu uma
redefinição semântica. A nova Ciência biomédica inspirou-se naquilo que a
positividade do olhar médico define como normal e/ou anormal no funcionamento
orgânico, para reconstruir a doença não como um processo relacionado com a
saúde e o meio ambiente, mas como um agente inimigo estranho ao corpo
humano.

60
Essa classificação da enfermidade sugerida pela fisiologia à biomedicina
tornou-se, todavia, restritiva, à medida que o olhar observador e objetivista apenas
apreende a doença como fenômeno visível e verificável (sendo inútil para explicar
a patologia da alma, ou seja, aquelas doenças que têm origens emocionais e
psíquicas). A consideração sobre normalidade e anormalidade num esquema
analítico reducionista deixa evidentemente de lado uma série de patologias que
não podem ser visualizadas. Em psiquiatria, por exemplo, a noção de
personalidade torna difícil a distinção entre normal e patológico, e a passagem de
reações normais a formas mórbidas não deriva de uma análise precisa do
processo, pois essa passagem apenas permite, reconhece Foucault, uma
apreciação qualitativa que autoriza todas as confusões: "Do lado da patologia
mental, a realidade do doente não permite uma tal abstração e cada
individualidade mórbida deve ser compreendida através de práticas do meio
correspondente" (Foucault, 1997: 15). O mesmo pode ser dito de uma série de
outras doenças psicossomáticas, que apenas são compreensíveis por um método
que evidencie o ambiente circulante e, sobretudo, que conecte a sensibilidade do
curador com o sofrimento do doente. Essa condição é particularmente evidente
quando o método terapêutico deve ser acionado para o tratamento daquelas
enfermidades que a Unesco denomina de "doenças sociológicas" (estresse,
insônia, fadiga etc.).

Mas a discussão sobre um esquema corporal unificado por um "sentir total",


que viabilize métodos de cura circulares implicados com as sensibilidades mútuas
do paciente e do médico, apenas pode aparecer enquanto tal a partir da crítica
profunda do dualismo metodológico e das limitações geradas pela separação
arbitrária entre, de um lado, aquilo que foi eleito como verdade científica (isto é, a
tecnovisão biomédica) e, de outro, as funções perceptivas ilusórias.
Diferentemente do método objetivista, fundado sobre a observação à distância do
corpo doente, o método do "sentir total"r presente em sistemas de cura de bases
fenomenológicas (medicina clínica, psicoterapias corporais medicinas xamânicas
etc.) propõe a aproximação entre curador e doente. Para os terapeutas

61
fenomenológicos a aproximação clínica é uma condição necessária para que o
mal corporal apareça na sua plenitude por uma associação de recursos que
incluem a visão, mas, igualmente a escuta, a intuição, o cheiro, o tato e o gosto.
Esse método mais complexo é o meio necessário para que apareçam gestos e
palavras que apenas se comunicam simbolicamente entre si, porque o corpo
17
aparece como um sistema de equivalências e transposições intersensoriais ,
sistema necessário para fazer circular social e institucionalmente o dom da cura.

Analisando-se, contudo, a expansão do sistema bioorgânico ao longo do


século XX devemos reconhecer a dificuldade de se sustentar a hipótese
foucaultiana de que o objetivismo científico, próprio do momento do nascimento da
clínica médica, marcaria a submissão do espírito racional inquiridor à evidência do
objeto e que, por conseguinte, a luz (da razão)teria se passado "para o lado da
chama delgada do olho que circula agora em tomo de volumes [...] (Foucault,
18
2000: X) . Certamente essa afirmação é válida quando se tem em vista a crítica
racionalista ao cultivo de uma imagem transcendental do sujeito que inspirava
Descartes na sua época. Mas, mesmo aí, corre-se o risco de ficar prisioneiro do
pensamento metafísico sem se atentar que essa representação do espírito/sujeito
era a metáfora adequada para a organização de um poder temporal que se
secularizava nos limites possíveis de um imaginário médico-religioso, que foi
dominante até o século XIX. Descartes é, na verdade, o símbolo de uma ruptura
epistemológica a favor da reorganização do poder temporal da modernidade,
significando perda do poder relativo da Igreja em .benefício da Ciência. Por
conseguinte, este empirismo que se emancipa nos fins do século XVIII, através do
nascimento da clínica, termina sendo apenas a radicalização de uma tendência
epistemológica presente em Descartes.

17
Na prática, não existem sistemas médicos de cura que preencham todos esses requisitos de uma
fenomenologia médica perceptiva. A psicanálise dá prioridade à escuta, as psicoterapias corporais ao
sentimento físico e emocional, as massagens terapêuticas ao toque físico, à aromaterapia, ao cheiro etc.
18
No original: "toute Ia lumiere s'est passé du côté du mince flambeau de I'oeil qui tourne maintenant autour
de volumes [...]" (Foucault, 2000: X). .

62
O saber fisiológico e empirista que se emancipou na passagem do século
XVIII para o século XIX marcou, porém, uma nova ruptura no trajeto da
secularização das instituições. A idéia de uma medicina científica superior às
demais práticas médicas justificou a entrada em cena do Estado e de uma
regulamentação mais estreita das práticas sociais e dos mecanismos de
adestramento psicossocial dos indivíduos. Houve, então, uma ampla
reorganização do poder instituinte em geral e do poder médico em particular, de
modo a viabilizar os novos dispositivos disciplinares necessários para a
organização da biomedicina como um sistema de curas de valor universal,
sancionado pelo Estado. Isso contribuiu para que o sistema bioorgânico fosse
largamente utilizado como base técnica para os principais modelos de gestão da
saúde que existiram entre os séculos XIX e XX, ou seja, o modelo mercantil
usufruiu da trilha aberta pela ação estatal no disciplinamento das práticas médicas
para afirmar sua própria trajetória.

A associação da Ciência com o Estado foi um passo importante para elevar


o sistema de cura bioorgânico à condição de fundamento técnico e científico dos
modelos de gestão da saúde surgidos entre os séculos XIX e XX. É importante
assinalarmos que a clínica biocartesiana, apoiada num dispositivo disciplinar
bastante sólido (legislação específica, estruturas hospitalares, universidades,
recursos públicos etc.), fundou uma ideologia da eficiência médica e científica
nesses dois séculos, responsável pela enunciação da aparente superioridade do
sistema de cura bioorgânico sobre os demais sistemas de cura. Essa
superioridade seria justificada por se apoiar numa razão instrumental e tecnológica
livre dos condicionantes mágicos da medicina tradicional.

Esse dispositivo ideológico da medicina oficial manteve-se relativamente


intacto até que um novo arranjo institucional foi obtido com a entrada no campo
médico do capitalismo médico especulativo, a partir da segunda metade do século
XX. A luta pela subordinação das instâncias científicas e estatais à lógica
econômica ampliou, porém, o caráter ambivalente dos modelos de gestão da

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saúde dominantes, em vez de firmar de vez a hegemonia da lógica econômica no
interior do campo médico. Pois se, de um lado, o desenvolvimento da tecnociência
reforçou a ideologia da eficácia médica, de outro, o redirecionamento das
instituições médicas em favor dos interesses econômicos privados provocou uma
crise importante do campo médico como um todo, o qual se abriu em duas
direções opostas: uma atraída pela tecnificação e, a outra, pela reumanização das
práticas médicas.

Momento de degradação do sistema bioorgânico: a mercantilização do corpo

No século XX, na luta pelo monopólio do campo médico, a medicina oficial


reforçou a perspectiva de uma Ciência médica empirista e bioorganicista. A visão
limitada e fragmentada do corpo e da doença da biomedicina cartesiana foi
agravada pelas tendências à desumanização das práticas médicas e pelo
crescente distanciamento entre curador e paciente. Pode-se também falar da
submissão do ritual da cura médica por uma engenharia médica apenas
preocupada em planificar a gestão do corpo mecânico. A tentativa de tudo reduzir
a um problema fisiológico e biológico poderia ser apenas mais uma teoria
simplificadora. Mas, ao se associar a pesquisas e descobertas de laboratórios
técnicos movidos pela - lógica utilitarista, esse reducionismo metodológico
contribuiu para uma certa desvirtuação do sistema de cura bioorgânico e pela
revalorização da metáfora mecânica e utilitarista clássica.

No campo restrito da cura médica, percebemos que o sucesso relativo da


lógica tecno-utilitarista resultou de uma operação constituída de duas fases: numa
delas, houve um corte na circulação da dádiva de cura, isto é, na relação
interpessoal, direta e imediata, entre médico e paciente, favorecendo 'a'
autonomização da lógica mercantil e tecnicista dentro do campo médico. Graças a
essa ruptura, que ampliou a separação entre médico (cada vez mais
especializado) e paciente (cada vez mais reduzido a mero cliente-consumidor), o
capital mercantil pôde estabelecer as bases de uma medicina tecnoutilitarista, que

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funciona por meio de uma rede de informações sofisticadas. De um lado, essa
rede aproxima os laboratórios de medicamentos, os médicos especialistas e as
farmácias que distribuem os produtos dos laboratórios no mercado; de outro, isola
os pacientes e os cidadãos, dificultando a tomada de consciência coletiva quanto
à exploração do capital na área da saúde.

Nessa perspectiva, existe algo que deve ser mais discutido sobre a
natureza e o sentido do discurso tecnicista da biomedicina cartesiana,
independentemente de seus comprometimentos com o capitalismo médico
especulativo. Ou seja, a captura da medicina oficial pelo capitalismo biotécnico
não foi casual, mas preparada pelo próprio utilitarismo da Ciência biomédica na
sua busca incessante de uma certa "economia da normalidade", inspirada não
pelo bem-estar do paciente, mas por interesses particulares dos médicos, dos
pesquisadores, das clínicas e do capital especulativo. Existe, pois, algo confuso
nos fundamentos paradigmáticos dessa Ciência biomédica, os quais precisam ser
trazidos à discussão para um melhor entendimento da crise da medicina oficial e
da emergência de uma nova medicina. Pois, é nos equívocos dessas significações
biocartesianas sobre a saúde e o corpo que emergem naturalmente outras
significações médicas, que estavam reprimidas, mas sempre presentes.

A competição atual entre centros de pesquisas financiados por laboratórios


privados na luta pelo mérito da descoberta da cadeia do genoma humano, tem
algo de assustador para os que crêem numa medicina a serviço do homem. Pela
tendência tecnicista comprometida pela nova engenharia de órgãos, a medicina
reduz-se à pesquisa científica especulativa que serve à produção desenfreada de
novos medicamentos. Muitos dos quais, aliás, não são devidamente testados,
porque o objetivo último de suas fabricações é o lucro dos investidores e não mais
a gestão da dor e do sofrimento do ser humano. Segundo o depoimento de um
médico da saúde pública na França, não apenas a colocação no mercado de
medicamentos inúteis é problemática, mas igualmente os métodos de promoção e

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de publicidade que chegam ao exagero de prometer um medicamento para cada
emoção (Topuz, 2000: 27).

Com a cooptação da biomedicina pelo capital médico, essas dificuldades


ultrapassam o plano da representação da política da vida para conhecer um
processo mórbido de perversão das práticas médicas, o qual se vem acelerando
nas duas últimas décadas. Perversão que se revela tanto na indiferença do olhar
clínico com relação ao destino do outro como, também, na redução pelo olhar
médico do outro a um mero recurso de enriquecimento material. A degradação da
medicina oficial implica o desaparecimento progressivo tanto da ética médica
como da confiança (que era gerada na continuidade das relações interpessoais e
que sobrevivia na medicina oficial por meio dos médicos generalistas ou clínicos
gerais), isto é, a submissão do imperativo cartesiano à lógica mercantil
especulativa significa o desaparecimento da ética médica e, por conseguinte, a
banalização do corpo humano transformado em mercadoria. A biomedicina
cartesiana perde, assim, pela tecnificação dissociada do social, parte de sua
visibilidade institucional e moral, abandonando, por conseguinte, a função
ritualística original de cura da medicina em favor de uma atividade incessante de
pesquisa e lucro. O capitalismo médico especulativo promove (do mesmo modo
que impede) a produção em série de medicamentos, de equipamentos e técnicas,
com o único objetivo de estimular a acumulação econômica e a especulação
financeira. Mas, ao abandonar sua função original, a medicina moderna como um
todo perde sua credibilidade, abrindo o caminho para a "transição paradigmática"
no campo médico.

A apropriação progressiva do sistema de cura biomédico cartesiano pela


medicina tecnoutilitarista não constitui um fato isolado na dominação atual do
capitalismo financeiro sobre a vida cotidiana. Ela está articulada a um processo
mais geral de desperdícios de experiências, que Boaventura de Sousa Santos
identifica como a razão central do colapso do contrato social moderno e da
proliferação de um certo fascismo societal (Santos, 2000: 20). No campo médico,

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tal desperdício da experiência é fonte de uma nova gama de doenças que a
biomedicina moderna não pode resolver, pois extrapola o quadro das patologias
previstas pelo paradigma cartesiano. Grande parte das chamadas doenças
contemporâneas, como a depressão, por exemplo, resulta de um conjunto de
elementos que não são apenas de natureza orgânica ou fisiológica, remetendo
para as dimensões emocionais, afetivas, nutricionais, ambientais, psicológicas,
dentre outras. Sabe-se que diversas modalidades de cânceres e afecções
pulmonares resultam de distúrbios afetivos, e que a simples extirpação de um
19
tumor não significa, necessariamente, que a doença não volte a reincidir .
Observamos, por conseguinte, o surgimento de um contexto anômico em que o
avanço do capital especulativo sobre as diferentes áreas da cadeia produtiva da
saúde gera crescente descrédito e desconfiança para o modelo médico oficial
como um todo (há uma desconfiança crescente com relação aos preços cobrados
nas consultas, à competência técnica dos profissionais, à legitimidade dos
remédios receitados, aos preços dos medicamentos nas farmácias etc.). Em si
mesmo, esse contexto anômico é uma fonte importante de novas doenças que
proliferam em prejuízo do ser humano, que deixa de ser a razão primeira e última
da cura médica.

O esforço de supressão da palavra social sobre o sofrimento e a dor em


benefício da valorização de um saber técnico e mecânico, objetivista e
interessado, que reduz órgãos e doenças a mercadorias, revela esta dissociação
esquizofrênica entre o saber médico e as demandas reais dos doentes para lidar
com a simbolização do sofrimento e da finitude do corpo. Mas o reducionismo
metodológico da biomedicina cartesiana, operado pelo capitalismo biotécnico
nessa última modernidade, não se apresenta sem conseqüências. Estabelece-se,
por meio dele, uma contradição evidente no interior da medicina oficial entre os
sistemas de cura dominantes e suas eficácias técnicas decrescentes. Entre, de

19
Estudos com mulheres portadoras de câncer de mama demonstram que aquelas com tendência à
depressão apresentam um menor numero de células NK com propensão a desenvolver metástases com mais
rapidez (Balestieri, 2000: 125).

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um lado, os limites de uma medicina empírica subjugada a modelos etiológicos
objetivista, que o médico especialista apenas conhece superficialmente, e de
outro, o aumento de doenças que exigem cada vez mais dos médicos a habilidade
e competência para gerir crises existenciais, conflitos relacionais e sociais e
distúrbios psíquicos (para o enfrentamento dos quais eles não estão preparados
profissionalmente). Diz com razão Odile Marcel: "Na cena médica, invisíveis e
freqüentemente não-ditos, obscuros sofrimentos planam para fazer pesar este
teatro do todo-poderoso presente no método e na assepsia. Tomografias, lençóis
imaculados, burocracia da saúde. A indústria do especialista está mal colocada
para tratar sofrimentos de origem psicossocial que são levados para o consultório"
(MarceI, 2001: 502).

De fato, se a clínica médica se tinha legitimado inicialmente a partir de um


olhar clínico e calculista debruçado sobre o objeto e valorizado pela tecnociência
visual, temos de concluir que esse discurso perdeu muito de sua aura ideológica e
convencimento social. A redução da doença a um mal de origem biológica e
fisiológica a ser fisicamente extirpado (a metáfora da guerra biológica é apropriada
para descrever essa lógica redutiva), sem a consideração das condições
sistêmicas, sociais e ecológicas do doente, reafirmando no seio da
contemporaneidade as deturpações conhecidas tradicionalmente pela medicina
moderna. De fato, os fatos cotidianos mais recentes demonstram existir um mal-
estar social bastante acentuado com relação aos rumos da medicina moderna que
as inovações técnicas no campo da Ciência médica biocartesiana não bastam
para resolver, pois as fontes desse mal-estar não podem ser eliminadas com o
mero reconhecimento da importância científica dessas inovações por parte dos
pacientes e da opinião pública, embora tal reconhecimento seja, sem dúvida, do
maior interesse dos produtores de bens e serviços médicos. O descontentamento
social está a exigir, portanto, um debate amplo sobre a natureza da medicina
moderna e sobre os rumos que ela vem tomando ultimamente numa direção que

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gera progressiva desconfiança e incerteza entre os cidadãos deste planeta-
mundo, independentemente de se estar falando do norte ou do sul 20.

No contexto da mudança de paradigmas na medicina moderna,


percebemos que a dádiva médica aparece como um aspecto importante para
fazer avançar essa discussão. Ao se pretender eliminar a relação interpessoal
entre médico e paciente (relação que o sistema oficial assegurava por intermédio
da figura do clínico-geral) para firmar o espaço da tecnologia médica e da
medicina especializada, o capitalismo médico provoca um crescente mal-estar nos
cidadãos (medo, desconfiança, raiva), que os leva a buscar outros sistemas
médicos. O retorno da dádiva médica é uma resposta da sociedade à crise do
campo médico, valorizando-se sistemas de cura fundados na experiência direta do
curador e na capacidade desse último de acolher o doente dentro de uma relação
interpessoal e mutuamente significante. O surgimento de uma importante
demanda por novos cuidados médicos que revalorizam o caráter humano das
antigas práticas médicas está, assim, no presente momento, no centro da
emergência de uma reação humanista importante dentro do campo médico.

Pacientes ou candidatos a doentes, que somos todos nós, estamos com as


antenas ligadas em busca de saídas para nossa sobrevivência, pois a medicina
oficial que aí está levanta mais suspeitas que certezas sobre a existência de uma
ética médica inspirando as práticas de cura. Pelo contrário, cresce na opinião
pública o temor de que nossas vidas estão valendo muito pouco no contexto de
uma medicina que se preocupa mais com a manipulação de órgãos e com a
produção de medicamentos e equipamentos com a finalidade de ganho
econômico do que com o ser humano. No dia-a-dia, estamos fartos de narrativas
sobre a má medicina: diagnósticos mal feitos, erros cirúrgicos, problemas de

20
Embora modernidade e nação sejam configurações sociais que historicamente nasceram juntas, hoje
existe uma cisão entre ambas. Surge uma modernidade-mundo, diz Renato Ortiz, pela qual as múltiplas
modernidades não mais são versões historicizadas de uma mesma matriz. “[...] a elas se agrega uma
tendência integradora que desterritorializa certos itens para agrupá-Ios enquanto unidades mundializadas"
(Ortiz, R. O próximo e o distante: Japão e modernidade-mundo. São Paulo: Brasiliense, 2000: 182-183).

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esterilização nos hospitais, ou simplesmente faturas médicas impossíveis de ser
pagas pela grande maioria dos cidadãos consumidores dos mercados de bens
médicos. Esses exemplos oferecem em conjunto um quadro em preto e branco
dos cuidados médicos públicos e privados. Todos temos histórias arrepiantes a
contar sobre um parente, um amigo ou alguém de nossa convivência que
conheceu dificuldades no momento de enfrentar médicos, hospitais, farmácias e
seguradoras.

Esse é o clima que incentiva o avanço de uma sociologia da medicina nos


termos em que estamos tentando estruturar este livro. Nos capítulos seguintes,
teremos a oportunidade de aprofundar a discussão sobre o sentido ambivalente da
medicina moderna no momento presente e na fratura entre as tendências
tecnicizantes e reumanizantes.

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