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Nossa tese central neste livro é de que existe em curso "uma reorganização
de paradigmas no campo da medicina moderna 1, com reflexos em níveis sociais,
políticos e institucionais diversos, a saber: nas políticas públicas, no financiamento
ao setor, nos atores que participam das decisões e que reagem a seus efeitos,
nas relações interinstitucionais, nas técnicas de cura, dentre outros. Nessa
reorganização, que ocorre no interior do movimento inédito da modernidade-
mundo, certas práticas médicas são abandonadas e outras são integradas,
passando-se a impressão legítima de que a medicina moderna se tornou uma
grande colcha de retalhos. Tal mudança de paradigmas na medicina tem como
referência a ruptura da medicina oficial, a partir de fortes tensões contraditórias
entre as duas principais tendências presentes, desde algumas décadas, no interior
do campo: uma das tendências é de desumanização/tecnicização; a outra, de
reumanização dos modelos médicos.
1
Quando usamos o termo medicina moderna estamos pensando em um conjunto de práticas médicas mais
abrangentes do que aquelas conhecidas como medicina oficial - uma concepção mais restrita que limita o
campo aos sistemas de cura regulamentados dos pontos de vista jurídico e administrativo (legislação civil,
regulamentações médicas, conhecimentos canonizados pelas faculdades de medicina etc.). Com a expressão
medicina moderna, referimo-nos, logo, a um quadro mais amplo que inclui a medicina oficial, mas também as
medicinas populares, as medicinas alternativas (psicanálise, homeopatia, acupuntura etc.) e outras que, de
um modo ou de outro, vêm sendo progressivamente incorporadas à cartografia médica moderna a partir das
mobilizações dos diferentes atores sociais e agências institucionais (firmas, Estados, Igrejas, profissionais,
pacientes etc.).
1
reinvenção das crenças científicas por meio das instituições sociais e culturais.
Para Kuhn, a Ciência não evolui numa lógica de progresso contínuo, indo das
técnicas primitivas àquelas avançadas, mas a partir do que, num certo momento,
aparece para a comunidade científica como a representação de uma Ciência
normal e legítima. Nessa perspectiva, a mudança de paradigmas na medicina
significa a perda do poder da "clínica moderna", de bases alopáticas, que foi
hegemônica nos dois últimos séculos. Esta quebra da hegemonia da "clínica
médica" não é acidental, mas responde à complexidade atual da fenomenologia
da doença e da necessidade imperativa de se resgatar a pluralidade de sistemas
de cura, como veremos ao longo do capítulo.
2
a) No plano epistemológico, eles lembram a insuficiência do paradigma
dominante, chamado vulgarmente de "positivista", que representa o corpo como
um mecanismo e os órgãos como peças, isto é, como sistemas com
determinações fixas (Paim & Almeida Filho, 2000: 24-27). Embora sublinhem a
limitação dessa abordagem, os autores não avançam muito, todavia, na análise do
que poderia ser um novo conhecimento científico que venha substituir essa visão
biológica e mecânica simplificadora do paradigma médico dominante. Referem-se,
é verdade, a Prigogine & Stengers, para lembrar a necessidade de uma "nova
aliança" que rearticule as bases metodológicas e conceituais da biologia. Mas não
propõem algo mais substantivo sobre o que isso poderia significar, em termos de
nova compreensão da doença e da cura, e melhor avaliação de seus reflexos nos
planos institucional e social. A5proposições sobre a "transição epistemológica"
limitam-se a referências genéricas sobre a teoria da complexidade, sobre a nova
física, sobre os-estudos científicos que enfatizam os micropadrões de desordem e
indeterminação, mas não avançam nada de específico sobre as mudanças em
curso no plano microssocial da medicina, em particular no plano das técnicas de
cura.
2
O surgimento do método anátomo-clínico entre os séculos XVIII e XIX é descrito por Foucault no seu
trabalho sobre o nascimento da clínica moderna. Essa instituição, diz Foucault, constituiu a primeira tentativa
para ordenar uma ciência estreitamente vinculada às decisões do olhar, mas não um olhar qualquer. Trata-se
3
deve observar duas condições para assegurar o sucesso de sua intervenção,
evitando que o processo de observação do sintoma seja contaminado por outros
fatores ligados ao "estado de espírito" do paciente. De uma parte, o médico deve
afastar-se do paciente para melhor observar a doença; de outra parte, a doença
deve ser separada do doente (visto como portador e não como co-criador da
patologia). Sob certo ângulo o trabalho do médico se aproximaria daquele do
engenheiro que acompanharia com olhos frios e calculistas o funcionamento da
máquina.
de um olhar que busca decodificar uma verdade da doença classificada a princípio por um modelo etiológico
fundado na observação dos sintomas físicos (tidos como a forma mais próxima do real da doença) e pelos
signos (o prognóstico, o que se vai passar) (Foucault, M. Naissance de Ia clinique. Paris: Puf, 2000).
3
Dizemos que não cabe oficialmente, porque na prática nem sempre os médicos seguem de forma rigorosa o
método anatomoclínico. Face a um número significativo de casos que demonstram, após uma bateria de
exames, não apresentar nenhuma significação médica previamente classificada, os médicos, para não
revelarem os limites do método, terminam prescrevendo em quantidades importantes medicamentos placebos
cujo efeito normalmente é apenas psicossomático.
4
dimensões psíquica e emocional - que são igualmente importantes para o
diagnóstico e o tratamento da patologia. A rejeição dos cidadãos à hegemonia de
um sistema de cura dominante como esse anatomoclínico tem então boas razões.
As experiências negativas dos pacientes no convívio com especialistas (expressas
na recepção distante e pouco calorosa, nos preços elevados das consultas, na
prescrição de medicamentos exagerados e às vezes equivocados e nos
diagnósticos errados) devem-se ao fato da simplificação do método. Esse sistema
oficial de cura restringe a expressão adequada do sofrimento do paciente,
sofrimento que deveria ser o principal sintoma a ser observado e sentido pelo
médico no campo interpessoal, formado pelo curador e pelo paciente. Tal campo
interpessoal é singular e único por colocar frente a frente dois sujeitos que
deveriam ser considerados como igualmente responsáveis pelo desenvolvimento
do tratamento a partir da ênfase proposta pela dinâmica do sofrimento.
5
insatisfatório do antigo paradigma explicariam a necessária transformação de
paradigmas, o que seria expresso, pelo menos na América Latina, pelo movimento
da "saúde coletiva". Tal movimento seria definido como um campo de
conhecimento interdisciplinar, cujas disciplinas básicas seriam a epidemiologia, o
planejamento/administração da saúde e as ciências sociais em saúde, o qual
valorizaria a dimensão subjetiva dos atores (usuários, trabalhadores do setor),
cujas vivências abririam novas perspectivas de reflexão e ação (ibid., op. cit.: 63-
66).
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Paradigma da dádiva e cura médica
7
de fixação das modalidades de um pensamento complexo do concreto, cuja
importância cresce à medida que os dois outros paradigmas das ciências sociais
(o holista e o individualista) se esgotam por excesso de abstração. A experiência
do sofrimento, por exemplo, na relação concreta da cura, prova que a medicina é
tipicamente uma expressão do social, que se revela, ao mesmo tempo, no plano
do simbólico e do material, do que oferece os bens de cura e do que devolve os
males da doença.
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Esse sistema, que será melhor estudado a seguir, inspirou os modelos de gestão da saúde mais conhecidos
no século XX:o da sociedade medicalizada, regido pela ação estatal, e o do modelo do capitalismo biotécnico
ou do capitalismo médico, regulado pelos interesses privados. A discussão desses modelos pelos paradigmas
dominantes nas ciências sociais - o holista e o individualista - é insuficiente. Diferentemente, por meio do
paradigma da dádiva, a discussão crítica e a compreensão das tendências de transformação e de recriação
completa dos modelos médicos atuais revelam a complexidade da prática médica nas suas manifestações
essencialmente ambivalentes, porque são ao mesmo tempo materiais e simbólicas, individuais e coletivas,
interpessoais e funcionais, mágicas e técnicas.
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procurou demonstrar existir também na sociedade lógicas não utilitaristas. No
sistema da dádiva, por exemplo, a circulação dos bens não se submete à
equivalência, mas ao paradoxo, escapa ao simplismo do interesse egoísta para se
abrir sobre a diversidade de razões para se produzir vínculos e solidariedades.
Para ele, a dádiva constitui um sistema de circulação de bens essencialmente
ambivalente, que implica os indivíduos numa relação tripartite de trocas que se
desdobra em três movimentos: o dar, o receber e o devolver. Por conseguinte, por
uma questão de justiça, pensando no caso da medicina, o paradigma do dom
médico deveria ser visto como um paradigma primeiro ou primordial, já que os
dois outros paradigmas usuais, o individualista – a cura é vista a partir do
interesse dos produtores de bens e serviços – e o holista - a cura é vista a partir
da regra burocrática impessoal que se fixa no interesse da organização hospitalar
estatal -, são apenas momentos do ciclo geral do dom, do simbolismo e da política
em ato 5.
5
Esclarece Alain Caillé que "Mercado, de uma parte, Estado de outra, individualismo e holismo, pois, apenas
são inteligíveis se considerados como formas especializadas e autonomizadas de uma realidade mais vasta e
englobante desse fato social total do qual a dádiva constitui a expressão por excelência". (Em francês:
Marché, d'une part, Etat, de I'autre, individualisme et holisme donc, ne sont intelligibles que consideres comme
dês formes spécialisées et autonomisées d'une réalité plus vaste et englobante, de cefait social total dont lê
don constitue I'expression par excellence) (Caillé, A. Anthropotogie du don: te tier paradigme. Paris: Desclée
dé Brouwer, 2000: 22). '
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Para nossos propósitos, basta entendermos a dádiva como sistema social e
cultural. Vejamos como funciona, pois, o ciclo da obrigação social que se faz por
prestações e contra prestações. Num primeiro momento, alguém toma livremente
a iniciativa de dar algo a alguém. Se o outro recebe essa dádiva
espontaneamente, num segundo momento, fica, porém, obrigado a devolver num
terceiro momento, de um modo qualquer, o bem recebido (sem que a devolução
guarde qualquer simetria com o bom dado pelo primeiro). A ação recebida é
devolvida de diversas maneiras: não apenas por uma retribuição material, mas,
sobretudo, por formas simbólicas (presentes, gestos, palavras etc.).
Diferentemente do sistema bipartite do mercado (dar-pagar), que funciona pela
equivalência (paga-se o equivalente para não se gerar obrigação mútua), na
dádiva o bem retribuído nunca tem valor igual àquele do bem inicialmente
recebido. Aqui, o valor importante não é o quantitativo, mas o qualitativo, e o que
fundamenta a devolução não é a equivalência, mas a assimetria. Um presente ou
uma hospitalidade nunca se paga em moeda de mesmo valor, tampouco é
retomada, necessariamente, no mesmo instante da ação (senão corre o risco de
ser interpretado como uma equivalência que leva à ruptura do vínculo da dádiva).
Mas esse presente ou hospitalidade pode ser retribuído num outro momento, por
meio de uma gentileza ou favor, fazendo circular a roda das práticas sociais.
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Jacques Godbout & Alain Caillé (1992) explicam, ainda, que o sistema da
dádiva é mais arcaico que os outros sistemas, como o do mercado e o do Estado.
Para esses autores, os dois outros sistemas, o da lógica mercantil-utilitarista ou da
lógica estatal-redistributivista, são derivações do sistema da dádiva: o sistema
mercantil surgiria da interrupção do dom no segundo momento (dar-pagar), e o
estatal-redistributivista (devolver-receber) do congelamento no terceiro momento
(ver figura 1). Por congelarem o ciclo de prestações num certo momento - o do
recebimento, no caso mercantil, o da obrigação da devolução, no caso estatal -
gerariam-se falsas imagens do homem como possuindo vocação egoísta, no
primeiro caso, ou vocação racional-burocrática, no segundo caso.
Alguns autores argumentam, por outro lado, que numa sociedade como a
moderna, dominada pelo interesse do dinheiro, o sistema da dádiva não teria mais
condições de sobreviver. Por mais instigantes que sejam, argumentos como esse
pecam por uma visão restritiva da dádiva - normalmente ela sendo confundida
com gratuidade - que não responde à complexidade de sua natureza sistêmica e
paradoxal. Como esclarece Mauss, o sistema da dádiva não é apenas gratuito
(embora, às vezes, ele o seja). Ele também é interessado (e às vezes não o é).
Por conseguinte, o fato de o dinheiro entrar em um certo momento da circulação
de bens não anula a validade do sistema, pelo contrário, sua dimensão
interessada prova que o sistema não é arbitrário (embora seja com freqüência
indeterminável). A questão que se coloca é saber se o dinheiro entra no circuito de
obrigações para suspender a circulação da dádiva ou para afirmar o valor dessa.
No primeiro caso, estaríamos presenciando a entrada da lógica do mercado nas
práticas sociais, manifestando o interesse de uma das partes de não continuar o
jogo interacional. No segundo caso, o dinheiro entra no circuito para afirmar o
desejo do ator de continuar a participar do jogo. Um exemplo muito típico dessa
segunda situação é oferecido pela psicanálise, na qual o dinheiro tem uma função
simbólica anterior a seu valor material. Ao final de cada sessão, o paciente paga
ao profissional para poder continuar na relação terapêutica. E o terapeuta aceita o
dinheiro não apenas para justificar seu diploma de nível superior, mas para
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comprometer o paciente no "sacrifício" representado pelo trabalho de cura. Há,
pois, uma dupla relação: de um lado, o cliente paga ao profissional pelos serviços
especializados, de outro, o paciente entrega ao terapeuta um bem de alto valor
simbólico para viver o sacrifício do morrer e viver nos braços e sob os olhos e
escuta atenta do curador.
Tal sentido simbólico básico dos bens circulantes nas práticas sociais foi
repetidamente enfatizado por Mauss nos Ensaios sobre a dádiva, texto que nos
permite compreender ser a sociedade constituída por um conjunto de prestações
totais, envolvendo os membros que dela fazem parte. Essas prestações não são
redutíveis a uma simples determinação objetiva, já que as relações dos homens
entre si nem são imediatas nem transparentes. Assim, a simbolização da vida e
das relações entre os humanos é vista como uma condição ao mesmo tempo
natural e cultural. Essa consideração sociológica do simbólico, como um
paradoxo, é enfatizada num outro texto, Rapports réels et pratiques de Ia
psychologie et de Ia sociologie, quando reafirma que um dos caracteres centrais
do fato social é o seu aspecto simbólico, e que "na maior parte das
representações coletivas não se trata de uma representação única de uma coisa
única, mas de uma representação escolhida arbitrariamente, ou mais ou menos
arbitrariamente, para significar outras e para comandar práticas" (Mauss, 1999c:
294-295).6 Existe, portanto, na simbolização uma polissemia congênita que
permite compreender que os atos humanos, por possuírem vários sentidos, são
essencialmente complexos 7.
6
"Dans Ia plupart des représentations collectives iI ne s'agit pas d'une représentation unique d'une chose
unique, mais d'une représentation choisie arbitrairement, ou plus ou moins arbitrairement, pour en signifier
d'autres e pour comander des pratiques" (Mauss, 1999c: 294-295).
7
Uma sensação, um olhar, uma palavra, diz o sociólogo Camile Tarot, é sempre original: "Le simple est une
iIIusion qui ferme à Ia réalité du symbolique" (Tarot, 1999: 617).
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dando "bens de cura" (atenção, segurança emocional, informações, cuidados,
técnicas); no segundo momento, o paciente recebe esses "bens"; no terceiro
momento ele retribui ao curador a ação entregando a este último os seus "males"
(as doenças) para serem transformados pelo ritual da cura. Ao entregar os
"males", o paciente pode, ou não (dependendo do tipo de dom médico em
circulação), acrescentar uma soma em dinheiro para assegurar a continuidade da
relação. Mas, nesse caso, a lógica econômica e utilitária está a serviço do dom e
não o contrário.
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No caso em tela, podemos dizer que a dádiva da cura não se encerra
necessariamente num único ciclo. Na verdade, trata-se de um circuito de troca de
bens que pode ensejar várias rodadas, como normalmente acontece por meio das
diversas consultas e sessões de trabalho. Na dádiva médica, na efetivação do
ciclo da reciprocidade (entre curador e doente), o objetivo último é a entrega ritual
pelo paciente do seu "mal" ao curador, o qual é visto como alguém
suficientemente preparado para acolher e transformar as causas do sofrimento,
retribuindo como prestação ao paciente um "bem" da cura. Não há como deixar de
se ver nessa relação algo de mágico que extrapola a simples instrumentalidade
racional. O paciente projeta-se no médico e deposita nesse a esperança da cura
de uma doença cuja sintomatologia é impregnada de medos, expectativas e
sonhos de saúde. Nessa representação tão comum na prática médica, o interesse
utilitário e a racionalidade instrumental ficam necessariamente em planos
secundários com relação aos dons simbólicos que circulam por palavras e
silêncios, por gestos e atos falhos, por olhares, cheiros, escutas e toques. .
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como conselheiro e amigo, além de médico, sendo estimado por uma clientela fiel:
os membros da família, os vizinhos e os amigos. Com o "clínico geral", a cura não
se efetiva apenas pelos remédios, mas, sobretudo pela conversa, pelo desabafo
do paciente e pela capacidade de escuta do médico. A cura passa também pelas
memórias do grupo e pelas festas onde o médico de família era recebido sempre
como um convidado muito especial. Fora do domínio da medicina oficial, a dádiva
médica moderna (entre estranhos/próximos) também é parte essencial de um
conjunto de sistemas de cura mais conhecido como terapias alternativas, sobre
cuja importância teremos tempo para discutir no quarto capítulo.
Numa direção estranha aos casos em que a dádiva médica funciona com
relativo sucesso na organização da cura como um fenômeno social total, expande-
se, atualmente, um novo ator social, o médico especialista, um profissional mais
preocupado em gerir a relação de cura a partir de um tempo utilitário do que de
um tempo de reciprocidade paradoxal (interessada mas igualmente
desinteressada). Para o especialista, tudo que diga respeito à vida pessoal do
paciente deve ser deixado de lado (ou na porta do consultório), para que não se
perca tempo com questões não previstas pelo manual adotado nas faculdades de
medicina, aquele do método anatomoclínico, que desconsidera o lugar do vínculo
social no tratamento. Tal método impõe um recorte metodológico abstrato sobre a
doença que não considera o ecossistema por se fundar num modelo etiológico
preestabelecido. Como se fosse possível eliminar da relação enfermo/médico o
sofrimento subjacente à objetivação somática e as influências do meio ambiente.
Contra este método, insurge-se, aliás, a epidemiologia que se recusa a dissociar a
doença da saúde.
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detectadas pelo paradigma dominante. O médico especialista sente-se pouco
concernido pela significação da dor do paciente, sendo o sofrimento reduzido a um
sinal a mais a ser observado na construção do diagnóstico. Não possuindo
preocupações diretas com o sofrimento do paciente, seu interesse maior é
otimizar a relação tempo útil x ganho econômico, o que implica objetividade e
distanciamento. Evitam-se, pois, conversas fora do assunto em pauta, de modo a
despachar o cliente o mais rápido possível (pois a presença do doente no gabinete
além do tempo previsto para a consulta significa em termos utilitários "perda de
tempo"). "Uma conivência reina no gabinete médico", diz a filósofa Odile MareeI.
"Uma escolha comum que consiste em não se perder tempo. De uma e outra
parte, tende-se a evacuar as palavras 'parasitas' e a fala do sintoma. Uma mesma
cegueira, uma mesma miopia são partilhadas pelos dois lados no gabinete do
médico" (MareeI, 2001: 493) 8. No caso do especialista, estamos, portanto, numa
situação de esvaziamento do humanismo em favor do tecnicismo. Esvazia-se o
dom médico em favor do mercado de doenças e medicamentos e a prática médica
é substituída por uma "engenharia de órgãos".
8
"Une connivence regne dans le cabinet médica!", diz a filósofa Odile MareeI. "Un choix commun qui consiste
à ne pas perdre du temps. De part et d'autre, on tend à évacuer les paroles parasites et à parler du symptôme.
Um même aveuglement, une même myopie se partagent des deux côtés du bureau du soignant"
(Mareei,2001: 493).
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médico-especialista, que procura desvincular seu interesse pessoal e utilitário dos
desafios políticos gerais da gestão do sofrimento social). O outro, de que a
legitimidade do conhecimento e o rigor científico passam necessariamente por
uma certa especialização técnica e disciplinar necessária para afirmar o projeto de
uma razão médica universal (tal crença é ilusória e tende a eliminar a dádiva
médica e a possibilidade de compreensão da medicina como uma pluralidade de
sistemas de cura).
Nem um nem outro desses dogmas respondem à questão original posta por
Mauss, a saber, que independentemente das classificações adotadas para a
compreensão da realidade em geral, e da realidade da doença e da cura em
particular, a sociedade aparece primeiramente como uma dinâmica simbólica e
ambivalente, e sua forma original é a de um círculo de doações, recebimentos e
devoluções de bens entre os homens e entre esses e a natureza. Assim, entre
paciente e curador, entre esses e a instituição médica, ou então, entre
conhecimento especializado e conhecimento genérico, existe originalmente uma
continuidade circular que liga todos os elementos numa única rede, sendo as
distâncias apenas recursos explicativos simplificados. Polissemia e ambivalência
são, portanto, aspectos constituintes das relações entre os indivíduos em
sociedade, e quaisquer classificações visando separar os diversos elementos
presentes sempre constituem um recorte parcial e limitado.
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Sobre o simbolismo na obra maussiana, Bruno Karsenti esclarece que "a noção de símbolo permite
ultrapassar o confronto de realidades hipostasiadas ultrajadamente pelas ciências sociais: não existe nesta
concepção nem indivíduo nem sociedade, mas somente um sistema de signos que, mediatizando as relações
que cada um mantém com cada um, constrói num mesmo movimento a socialização dos indivíduos e a
unificação dos mesmos em grupo" (Karsenti, 1994: 87). No original: "Ce que permet Ia notion de symbole,
c'est en somme de dépasser Ia confrontation des réalités hypostasiées outrageusement par les sciences
sociales: il n'y a pas dans cette conception ni individu ni société, mais seulement un systeme de signes qui,
médiatisant les relations qui chacun entretient avec chacun, construit dans un même movement Ia
socialisation des individus et leur unification en groupe".
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integrado por significações circulantes (gestos, risos, palavras, presentes,
sacrifícios etc.), a análise sociológica do campo médico não deve apenas
considerar os múltiplos signos/símbolos que articulam o paciente e a instituição
médica em uma única e mesma rede, mas, para isso, a análise crítica deve estar
aberta a uma compreensão complexa: a realidade da doença e da cura é, ao
mesmo tempo, objetiva e simbólica, e o entendimento dessa realidade exige uma
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grade de leitura que seja disciplinar, inter e pluridisciplinar . Como expressão
privilegiada da sociedade, a medicina (alguns dizem que ela é o termômetro
social) constitui-se numa rede de sentidos plurais, integrada por certos princípios
paradoxais (a obrigação e a espontaneidade, o interesse e o desinteresse) que
orientam a circulação tripartite do dar, do receber e do retribuir, perfazendo um
sistema único e total.
10
Num número especial organizado pelo Mauss para discutir as fronteiras disciplinares, Edgar Morin conclui
um ensaio sobre a transdisciplinaridade, numa linguagem que se aproxima muito daquela de Mauss. Diz ele:
"Mas não é apenas a idéia de inter e transdisciplinaridade que é importante. Nós devemos, com efeito,
ecologizar as disciplinas, isto é, levar em conta tudo que lhe é contextual, inclusive as condições culturais e
sociais. Nós precisamos ver o meio no qual elas nascem, colocam problemas, se esclerosam, se
metamorfoseiam" (Morin, 1997: 28).
11
Em francês: "Depuis son milieu, horizontalement, en fonction de I'ensemble des interrelations qui lient les
individus et les transforment en acteurs proprement sociaux" (Caillé.2000: 19).
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Para se evitar que essa complexidade institucional da medicina provoque
confusões analíticas desnecessárias, é importante que possamos trazê-Ia para um
pensamento concreto. Nessa perspectiva, o paradigma do dom/dádiva pode
ajudar-nos a melhor circunscrever o espaço da prática médica ao nos indicar que
a dádiva médica pode conhecer diferentes modalidades e que essas se
diferenciam entre si (dependendo do modo como as socialidades se organizam no
interior de uma constituição social). Inspirado em Mauss, Caillé propõe haver uma
tendência da sociedade moderna a provocar uma separação crescente entre dois
registros de socialidades que permanecem bastante imbricados em outras
sociedades mais tradicionais. O primeiro registro é o das socialidades primárias,
no qual as relações entre as pessoas são mais importantes que os papéis
funcionais que elas desenvolvem. Trata-se do registro da família, dos parentes,
dos amigos e dos vizinhos. No registro das socialidades secundárias, ao contrário,
a' funcionalidade dos atores sociais vale mais que suas personalidades, como se
observa nas práticas do mercado, do Estado e da Ciência. Nenhuma
administração governamental pode funcionar caso não exista o espírito do serviço
público, assim como uma pátria não sobrevive caso ninguém se disponha a morrer
por ela (Caillé, 2000: 86-87).
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baixo. Aquele que recebe a "graça", o dom vindo "de cima", dificilmente pode
devolver o bem recebido ao doador original. Em geral, nesses casos, o recebedor
tende a desenvolver algum tipo de ação de "fé", como o benevolato ou o
voluntariado, por exemplo, pelo qual ele pode passar adiante a dádiva recebida.
Na dádiva, a dívida não paga torna muitas vezes insuportável a vida do devedor.
Os antigos explicavam isso pelo fato de que o bem recebido não carrega apenas
um valor de uso, mas algo da alma do doador. Assim, para se desfazer dessa
dívida os indivíduos se sentiriam levados a viver o sacrifício da doação: mudando
estilos, refazendo valores e modos de ação. Numa versão não-religiosa, esse dom
é encontrado nas relações entre pais e filhos, nas quais os filhos devem retribuir o
bem de nascimento ao longo de toda sua vida, pela fidelidade e amorosidade.
Como os filhos não podem devolver o dom de vida recebido, têm de passar
adiante o bem, pelos seus filhos e netos, assegurando, assim, a reprodução da
espécie e da família.
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Considera-se, nesse tipo de reciprocidade, que o médico detém um poder de
informação sobre a doença que o paciente não possui. O terceiro caso da dádiva
médica é o da dádiva/partilha, que funciona horizontalmente, implicando direta e
conjuntamente o paciente e o curador na cura médica. Grande parte das
chamadas medicinas alternativas funciona pela dádiva-partilha12 (esse assunto
será tratado no terceiro capítulo).
12
Nas entrevistas que fizemos com os fundadores do movimento das terapias alternativas no Recife, à
pergunta sobre quem cura a doença, as respostas em geral enfatizavam a responsabilidade do paciente no
processo como fica ilustrado no depoimento seguinte: "Nós, terapeutas não curamos ninguém. É preciso
mudar o objetivo de vida da pessoa. Se você (o paciente) muda seu objetivo de vida, fica mais fácil se
restaurar" (terapeuta interdimensional).
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Medicina; técnica e magia
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O utilitarismo, segundo Alain Caillé, não representa um sistema filosófico particular ou um componente
entre outros de um imaginário dominante moderno que enfatiza o interesse econômico e a razão instrumental.
Ele se tornou o próprio imaginário moderno (Caillé, 1989:9).
22
do seu exterior (terapias alternativas, por exemplo), mas também do seu interior
(medicina psicossomática e epidemiologia).
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colocam uma série de discussões importantes, que vão desde o questionamento
do modelo tecnicista de saúde (que se refere sempre ao corpo como uma
máquina a ser desmontada) até o reconhecimento da relatividade histórica da
medicina (Já que essa muda de significação cultural à medida que a sociedade
onde ela existe também refaz seus sentidos históricos). No contexto de uma
modenidade-mundo que se abre para várias modernidades (Ortiz, 2000),
naturalmente as novas expressões simbólicas da medicina também são plurais,
recombinando a realidade por meio de diferentes sincretismos e hibridismos.
Nesse contexto de significações múltiplas, fatalmente a "clínica médica" que se
organizava através de instituições predominantemente nacionais (as associações,
as leis, as faculdades de medicina etc.) e do culto à cientificidade da alopatia,
consegue manter sua hegemonia. O próprio mercado se encarrega de desfazer o
que restava da ética médica (e do valor simbólico da bata branca) para impor a
lógica do calculador e do tecnologista de órgãos.
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Magia é um termo que exprime um conjunto de representações e crenças
fortemente marca das pela tradição da sociedade na qual ela foi criada ritualmente
e validada pelo uso comum. Para MareeI Mauss, a magia constitui uma classe
distinta de fenômenos sociais, compreendendo atores, atos e representações
ligados à tradição e que são eficazes porque o grupo social acredita neles (Mauss,
1999a: 10-11). A correlação entre os conhecimentos técnico e mágico resolve-se
pela necessidade prática de se responder à questão básica de saber se as
práticas de cura funcionam, ou não. Elas funcionam porque a técnica de cura se
fundamenta basicamente na possibilidade de se trocar dons de vida e de morte
entre médico e doente, o que é algo essencialmente mágico (porque sem a magia
a técnica médica se anula).
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Mauss, que existe inevitavelmente uma relação estreita entre técnica e magia,
sendo difícil conceber concretamente uma sem a outra. Nesse sentido, a medicina
moderna apenas tem" eficácia simbólica", porque o ato de cura aparece como
mágico para o doente, magia que se expressa na expectativa do paciente com
relação à sabedoria do curador e também ao efeito prático do medicamento
prescrito. Lévi-Strauss, num estudo sobre "o feiticeiro e a magia", lembra existir
uma certa psicologia no trabalho do feiticeiro, legitimada por três tipos de
experiências: aquela do próprio xamã, cuja vocação (independentemente de ser
falsa) produz efeitos psicossomáticos; a do doente, que pode ou não sentir uma
melhora; e a do publico, que também participa da cura e que dependendo do
desenrolar do processo pode provocar uma adesão coletiva, inaugurando um novo
ciclo (Lévi-Strauss, 1974: 205). Todo sistema simbólico é sistema de eficácia (Le
Breton, 1995: 57), e os limites objetivos da medicina são antes limites de sentidos.
Por isso, a relação entre técnica e magia continua sendo central na organização
do imaginário médico, sendo ilusórias as tentativas de se estabelecer uma
contradição radical entre ambos os termos (magia e técnica) em favor de um
reducionismo problemático da técnica à racionalidade instrumental.
26
Ao lado da magia inerente à confiança do paciente no médico, também
pode ser lembrado como momento mágico da medicalização aquele do uso do
"placebo", um medicamento às vezes aplicado em combinação com os
concentrados químicos ativos, às vezes sozinho. Trata-se, de fato, de um
medicamento mágico, pois sua eficácia prática é obtida basicamente pela
imaginação, pelo convencimento, pela persuasão, sendo utilizado de forma impura
em aproximadamente 45% das prescrições. Sua função prática na conservação
dos medicamentos é muito menor que sua função simbólica nos processos de
cura. Todos os médicos conhecem o efeito mágico do placebo e se servem dele,
pois sabem que ele funciona. Tal efeito é obtido quando se aplicam certas
substâncias como lactose (via oral) ou soro fisiológico (via parental) como se
fossem verdadeiros medicamentos; isto é, produtos testados pelos laboratórios. O
interessante é que ele funciona muito bem em várias enfermidades de natureza
mental, física ou emocional, como esquizofrenia, úlcera, depressões, dentre
outras. Esclarecem P. Lemoine & B. Lachaux que "praticamente todas as doenças
e todos os sintomas estudados podem reagir ao placebo, mesmo a diabete, a
angina no peito e o câncer" (Lemoine & Lachaux, 1992: I). As interpretações
psicanalíticas do efeito placebo terminam confirmando o fato de que suã eficácia é
simbólica. Para essas interpretações, a eficácia do placebo está situada na
dimensão mágica que contém toda prescrição, uma magia que obedeceria ao
triplo mecanismo do simbolismo, da transferência e da regressão: "O
medicamento (placebo) simboliza tanto a cura como o curador. O valor simbólico
do medicamento provém de que ele é ao mesmo tempo uma dádiva e um
substituto do médico" (ibid.: 5). Por conseguinte, a ênfase na racionalidade
instrumental e na objetividade científica não constitui uma prova convincente da
vitória da tecnociência biológica sobre as atividades mágicas dentro do próprio
campo. Ao contrário, a insistência sobre o valor absoluto e universal da
tecnociência alopática apenas denuncia o caráter da ideologia médico-utilitarista
dominante.
27
Até aqui, falamos de princípios científicos gerais para lembrar que nos
limites restritos do campo da Ciência muitos argumentos podem ser arrolados
contra a pretensão da biomedicina utilitarista em aparecer como a Ciência
verdadeira e universal. Se avançarmos nosso critério de dúvidas sobre a relação
entre medicina e religião, a discussão fica mais obscurecida. Descobriremos ser
muito significativo o número de médicos e cientistas que possuem credos
religiosos de várias latitudes ou que acreditam em superstições. Esse fato coloca
uma dúvida crucial: a de saber quando, na prática da cura, um médico que
professa certa religião está apenas exercendo sua profissão, ou até que ponto, ao
fazê-Io, não está ele sendo guiado por suas crenças e emoções. Não estará
fazendo uma espécie de cura espiritual, por exemplo, no momento em que toma
para si (e entrega a Deus) o destino de uma cirurgia difícil. Na verdade, os dois.
Para o especialista científico que é também um homem religioso, sua atividade
médica tende necessariamente a encobrir as duas faces do seu imaginário
(mesmo que ele o negue racionalmente). Inegavelmente, o médico tem de se
confrontar de algum modo com o sofrimento do outro ou, pelo menos, com as
ressonâncias que o mal do outro produz sobre suas lembranças pessoais,
familiares e sociais. Para amenizar a presença da dor, o profissional procura
símbolos que levem sua imaginação para um ambiente mais ameno: no
consultório, põe fotos de pessoas queridas ou objetos pessoais e, no ato cirúrgico,
procura conversar com os colegas ou mesmo com o paciente procurando
descontrair o ambiente.
28
normalidade, já que existem, também nessa área, aqueles que se mostram
insensíveis ao destino do doente (Já que estão apenas preocupados com seus
ganhos econômicos e materiais ou com seus prazeres utilitaristas). De fato, a
axiologia utilitarista contribui para diminuir a sensibilidade do profissional da
medicina quanto à dimensão do sofrimento do doente, já que o objetivo central é o
ganho econômico. Não se pode dizer, porém, que estes tipos sejam
predominantes no seio da profissão médica em geral.
29
pela capacidade do homem de gerir seu meio não somente físico, mas social, pois
o vivente não vive apenas entre leis, mas entre seres e acontecimentos que
diversificam essas leis (Canguilhem, 1966).
30
Refletindo sobre as dificuldades das ciências sociais de lidar com a
14
medicina , concluímos que a única saída para fazermos uma demonstração
convincente sobre a natureza das mudanças em curso é utilizarmos com fins
instrumentais a teoria dos sistemas, como o fez Edgar Morin. Explica esse autor
que a teoria dos sistemas e a cibernética se cruzam numa zona incerta comum.
Ao contrário da última, que, por se referir ao conceito de máquina, conserva na
sua abstração algo de concreto e empírico, a teoria dos sistemas é muito ampla e
abstrata, pois num certo sentido toda a realidade conhecida cabe nela, desde as
estrelas até a célula, o organismo e a sociedade; mas, como sistema de análise,
termina pecando por excesso de reducionismo. Apesar disso, ele vê algumas
virtudes no sistemismo: a) de introduzir no centro da teoria uma unidade complexa
que não se reduz à soma das partes constitutivas; b) de conceber a noção de
sistema nem como uma noção real nem como uma noção puramente formal, mas
como uma noção ambígua; c) de se situar a um nível transdisciplinar que permite,
ao mesmo tempo, conceber a unidade e a diversidade da Ciência "não somente
14
Essas dificuldades são muito antigas. Para Everardo Nunes, a rejeição ao biologismo empurrou a
sociologia para longe da medicina. Por outro lado, a própria medicina, diante das descobertas bacteriológicas,
abandonou o interesse pelas ciências sociais (Nunes, 1999: 120).
31
segundo a natureza do seu objeto (da Ciência), mas também segundo os tipos e
as complexidades dos fenômenos de associação e de organização" (Morin, 1991:
28-29). Atentos a esses riscos, consideramos que a adoção instrumental do
sistemismo pode facilitar-nos a apresentação da medicina como um sistema
complexo e aberto, como faremos a seguir.
32
significações instituintes. Aqui não estamos mais no campo das representações
expressamente visíveis, mas num outro, amorfo, incerto e indeterminado, que é
aquele das práticas vividas dos atores no seu cotidiano: um campo de práticas e
movimentos ambivalentes e espontâneos, de criação e destruição de técnicas e
crenças em torno da cura e que conhecem diversas expressões culturais e
sociais. Nesse segundo caso, o cotidiano da doença e da cura é uma caixa de
surpresas. Sempre aparece alguém a nos indicar um remédio caseiro mais
eficiente que o anterior, ou então a nos passar o endereço de um novo terapeuta
que nos inicia numa experiência jamais vivida antes. Abrindo essa caixa de
surpresas, sempre é feita uma nova amizade, uma nova descoberta do corpo e da
saúde.
33
Na figura 5, "Modelos e sistemas médicos", podemos visualizar esses dois planos
de organização da prática médica.
34
Na figura 6, "Modelos de gestão da saúde", procuramos enumerar os quatro
modelos mais conhecidos na modernidade médica: o da sociedade medicalizada,
que teve sucesso na Europa; o do capitalismo médico, concebido nos Estados
Unidos; o modelo misto, presente em países que adotam fórmulas intermediárias,
como é o caso do Brasil, e o modelo da medicina coletivizada, cuja implantação foi
tentada nos países burocrático-socialistas, como Cuba, países do Leste Europeu e
China (esse modelo continua a servir como referência utópica para as esquerdas
em regiões como a América Latina). Para alguns autores, a saúde coletiva deve
ser vista como um novo paradigma médico gerado nas tensões entre Estado e
sociedade (Paim & Almeida Filho, 2000: 69). Poderíamos concebê-Ia, então, como
uma solução alternativa surgida na América Latina a partir das experiências da
sociedade medicalizada e da medicina coletivizada.
35
De outro, a tendência humanista se inspira nos avanços de uma medicina
social presente no Estado do bem-estar (modelo da sociedade medicalizada) e
nos Estados burocrático-socialistas (modelo da medicina coletivizada). Entre uma
e outras tendências referenciais, as sociedades nacionais tendem a se organizar
em torno de modelos intermediários. Em se tratando de sistemas complexos e
abertos, devemos salientar que, no plano dos MGS, a transformação do
paradigma médico dominante não se realiza de modo uniforme. Diferentes
variações apresentam-se, dependendo de como cada sociedade se articula no
seu imaginário sócio-histórico, de um lado as tensões entre mercado, Estado,
sociedade civil, Ciência e política e, de outro, as tensões entre os diferentes
sistemas de cura médicos envolvidos.
36
Os sistemas populares são aqueles que se desenvolvem fora da medicina
oficial, tanto apoiando a reprodução dessa como se apropriando de inovações da
Ciência médica com fins de difusão de processos de cura no meio popular. Devem
aqui ser lembrados, no campo das medicinas populares, a vulgarização e o
consumo arbitrário de antibióticos que, por motivos diversos, caem na simpatia
popular. Mas não podem ser esquecidos os famosos chás e remédios caseiros,
transmitidos de geração em geração no espaço doméstico e familiar. Próximo a
esses estão os sistemas xamânicos, herdados de culturas tradicionais, que
participam do processo de constituição das sociedades nacionais, sendo
evidentes, por exemplo, no caso brasileiro, as tradições africanas e indígenas e
também aquelas européias (se pensarmos no caso do espiritismo kardecista).
Esses tipos de sistemas mágico-religiosos encontram inspiração, igualmente, no
novo sincretismo mundial gerado pela mundialização, que integra diferentes
tradições religiosas e místicas, ocidentais, orientais e ameríndias. Estão presentes
em novas seitas como o Santo Daime, que utilizam ritualisticamente a ayahuasca,
ou "oasca", na gíria popular brasileira, uma planta alucinógena dos antigos incas
peruanos, usada para operar certos processos de cura xamânica.
37
Nas últimas décadas, ganharam bastante prestígio os sistemas
bioenergéticos, que podem ser divididos entre os que possuem origem ocidental,
como é o caso das terapias reichianas - bastante divulgadas pelo discíptilo de
Reich, Alexander Lowen, fundador da terapia corporal conhecida como
bioenergética -, e aqueles outros subsistemas seculares, oriundos, sobretudo da
China, como a acupuntura, ou da Índia, como a ioga ou a massagem ayurvédica,
que já possuem ampla aceitação no imaginário médico ocidental. Ainda na n figura
7, verificamos que os formatos institucionais dominantes dependem do modo
como cada sociedade articula no seu imaginário sócio-histórico tensões
resultantes, de um lado, do mundo da técnica e, de outro, do mundo da magia. A
experiência vivida sempre está presente. Mas, dependendo da situação, ela é
organizada de modo mais formal e rotineiro (mundo da técnica), ou mais
espontâneo e improvisado (mundo da magia).
38
lado, as pesquisas biotécnicas de ponta (em vários hospitais estão sendo criados
com o apoio dos departamentos de bioengenharia das universidades para
administrar máquinas caras e de manutenção técnica difícil); de outro, os sistemas
biopsíquicos (os centros de saúde mental das faculdades e hospitais constituem
lugares de embates importantes entre as tendências biotécnicas e biopsíquicas).
Certamente as pressões entre estatização e mercantilização levam os diferentes
modelos a organizar seus sistemas de curas segundo as normas do interesse
econômico e/ou da organização burocrática.
Por outro lado, na parte inferior da figura 8, podemos ver que os sistemas
bioorgânicos tanto alimentam os sistemas populares como são alimentados por
eles. A relação dos sistemas bioorgânicos e dos sistemas xamânicos também está
presente pelas apropriações que a Ciência médica faz dos saberes xamânicos
tradicionais. Do ponto de vista analítico, é inegável o paradoxo entre, de um lado,
uma Ciência médica valorizadora, de uma racionalidade instrumental e laica e, de
outro, uma medicina religiosa, preservando os vínculos entre cura e magia.
39
vivida dos atores sociais com o sofrimento, a doença e a cura, e a formalização
dessa experiência em modelos técnicos. Sistemas complexos como o médico, por
serem abertos à comunicação com o meio ambiente, são muito instáveis,
reproduzindo-se em permanente desequilíbrio e sendo marcados por fortes
incertezas estruturais que repercutem na estabilidade do imaginário social como
um todo. Em condições normais, tais sistemas complexos reproduzem-se por
meio de um certo "dinamismo estabilizado", cuja inteligibilidade se constitui na
relação com o seu meio ambiente. "Este vínculo é absolutamente crucial nos
planos epistemológico, metodológico, teórico, empírico. Logicamente, o sistema
apenas pode ser compreendido se for incluído nele o meio ambiente, que é ao
mesmo tempo íntimo e estranho e faz parte do sistema embora lhe sendo exterior"
(Morin, 1991: 32).
40
o sistemismo saia de sua abstração para acolher a diversidade da realidade social
e histórica). No lado de cima da figura, vemos que o campo da medicina oficial
gira basicamente em tomo de dois MGS: o da medicina tecnoutilitarista (que
atende à população de renda mais alta) e o da medicina pública, o Sus, uma
adaptação brasileira do modelo da sociedade medicalizada (que responde pelo
atendimento da maioria da população).
41
A partir do campo oficial, a organização das práticas de cura passa, em
primeiro lugar, pelos sistemas bioorgânicos e pelas articulações desses com as
pesquisas biotécnicas, com os sistemas biopsíquicos e com os sistemas
bioenergéticos. Num segundo momento, os sistemas de cura bioorgânicos e
bioenergéticos comunicam-se com os sistemas populares e xamânicos e, por
intermédio desses, penetra no campo místico-religioso. Devemos notar que essa
descrição pode ser lida no sentido inverso, já que estamos falando de sistemas
complexos e abertos a múltiplas flutuações: de um lado, aquelas provocadas pelas
tensões entre tecnificação e humanização; de outro, aquelas entre técnica e
magia.
42
espontaneidade), criados no plano primário, ingressarem no plano das
socialidades secundárias (domínio das relações funcionais). Neste segundo plano,
existem três esferas de eficácias funcionais centrais: o Estado (objetivo da lei e da
regulamentação), o mercado (objetivo do preço e do lucro) e a Ciência (objetivo
das verdades racionais e impessoais) (Caillé, 2000b: 82), em torno das quais
acontece a dança dos modelos médicos. A essas esferas cremos ser importante
acrescentar, pela sua importância para a cura médica, a esfera da religião
(objetivo das verdades míticas). No nível das relações interpessoais, a dádiva de
cura é, sobretudo, caracterizada pela espontaneidade, criatividade e simpatia.
Mas, ao circular através das relações funcionais para estruturar os MGS, ela
integra fortemente a obrigação e o interesse, como podemos perceber nas
práticas dos clínicos gerais ou nos gabinetes de psicologia.
43
espaço importante para uma medicina interativa, inspirada na prestação
interpessoal, através, sobretudo, da chamada "clínico geral". No nosso entender,
foi essa ambigüidade da medicina moderna com relação ao status da dádiva
médica que criou as condições para a ruptura do paradigma médico entre as
tendências de tecnificação e humanização que iremos ver mais adiante. Ou seja, a
expansão da medicina de órgãos baseada numa ideologia tecnoutilitarista e
mercantilista gerou necessariamente uma reação inversa, tanto dentro como fora
do campo oficial.
Num primeiro momento, digamos do século 'XVI até os fins do século XVIII,
na Europa, a representação institucional da medicina ainda estava bastante
vinculada ao esforço de sistematização de uma biociência médica incipiente, no
interior da qual era inevitável a mistura da dinâmica científica com elementos
religiosos, revelando o quanto o biocartesianismo estava impregnado pela
metafísica. Apesar de o sistema bioorgânico ser então bastante simplista, a
Ciência constituía o grande vetor da inovação médica, pois nem o Estado
moderno tomava iniciativas de regularização institucional do sistema, nem o
capital especulativo despertara ainda interesse pelo mesmo.
44
base do futuro modelo médico estatista. Um desses desafios era a questão da
mortalidade das populações regularmente atingidas por epidemias. Os hospitais
eram lugares onde se entrava para morrer e, por isso mesmo, as perspectivas de
hospitalização eram bastante temidas pelas populações mais pobres. O
tratamento médico específico tinha pouca utilidade, ressaltando-se algumas
experiências bem-sucedidas no uso do mercúrio para a sífilis, do ferro contra a
anemia, de cinchona contra a malária e da inoculação contra a varíola. Mas as
medidas terapêuticas empregadas pelos médicos, tanto no campo da medicina
preventiva como curativa, tinham poucos efeitos práticos sobre as tendências de
mortalidade (Singer, Campos &Oliveira, 1978: 19), o que era motivo de transtorno
público, exigindo um posicionamento ativo do Estado.
45
médico e jornalista Julio Guérin, defensor de uma medicina associativista, propôs
a criação de um Ministério do Progresso ou da Saúde Pública (Nunes, 1999: 33).
Como resultado desse confronto de ações, podemos dizer que a Ciência ganhou
um importante aliado no trabalho de organização do sistema bioorgânico, que foi o
Estado moderno.
46
Pasteur & Kock no campo da pesquisa bacteriana, permitindo à Ciência médica
dominar as doenças infecto-contagiosas; outras foram a descoberta do raios-X e
as descobertas das etiologias da malária e da febre amarela. No século XX, o
esforço de sistematização dessa Ciência médica continuou a ser estimulado pelos
governos nacionais e por pioneiros do setor privado, permitindo as descobertas de
remédios contra a sífilis. Ressaltemos, também, as descobertas da insulina e da
vacina contra a poliomielite e, no Brasil, devem ser lembradas a revelação da
etiologia da doença de chagas e a invenção da abreugrafia (Singer, Campos &
Oliveira, 1978: 20).
47
ao mesmo tempo, como agente repressor de certas crenças populares sobre os
cuidados do corpo e como agente promotor de uma medicina pública e universal.
48
medicina liberal, que é o precursor do modelo contemporâneo do capitalismo
médico. Nas origens, esse modelo de gestão médico-mercantil baseava-se nos
seguros privados, como a do Blue Cross, administrada pela Associação
Americana de Hospitais, e a do Blue Shield, gerida pelas associações médicas
locais. Do mesmo modo, a ausência do Estado na organização do sistema de
seguro levou os empregadores, sob a pressão dos sindicatos, a cobrirem prêmios
maiores de seguro para empregados e dependentes.
A partir dos anos oitenta do século XX, esse modelo da medicina liberal
expandiu-se nas asas do neoliberalismo e da axiologia do interesse, provocando o
enfraquecimento dos discursos sociais da saúde. No final dos anos oitenta, nos
Estados Unidos, um relatório polêmico do Institute of Medicine, intitulado The
future of public health, anunciava a queda de prestígio e de influência das escolas
de saúde pública, esvaziadas por abordagens individualizadoras da saúde. O
enfraquecimento do Estado do bem-estar social e do modelo da sociedade
medicalizada, nessa década, favoreceu a expansão da lógica do mercado no
interior do campo médico, para além das fronteiras dos estados nacionais.
49
privatização dos serviços públicos e para a racionalização dos serviços médicos.
Os novos critérios de eficiência e eficácia, como os adotados pelo Banco Mundial,
baseados em políticas de ajuste macroeconômico, passaram a reger a
mercantilização do campo médico. Mas, como esses ajustes comprometem a
eqüidade num setor de concorrência bastante desigual e onde o cidadão tem
dificuldade de fazer escolhas racionais (poucos sabem o conteúdo dos
medicamentos à venda), então existem governos que reagem à privatização da
saúde pelos perigos que ela representa para a sobrevivência do sistema político.
Esse assunto será tratado com mais detalhes no capítulo seguinte.
50
ameaças para a reprodução de um modelo médico-mercantil, estreitamente
dependente dos interesses dos grandes laboratórios de medicamentos, das
indústrias de equipamentos e das empresas de seguros privados. Esses fatos
foram antecipados por Hésio Cordeiro, que enumerou alguns problemas derivados
das relações ambíguas entre medicina, pacientes e indústrias farmacêuticas. Para
ele, a lógica utilitarista na saúde, que ele identifica como "ideologia difusa das
sociedades industriais", fundamenta-se numa série de deturpações do que se
entendia como saúde pública e social. A medicalização passou a ser vista como
controle político e social, e a eficácia, entendida como precisão técnica do
diagnóstico e da intervenção (Cordeiro, 1980: 65). A crescente dependência dos
médicos com relação aos interesses das indústrias de medicamentos (que fazem
dos especialistas seus "representantes autorizados") seria mesmo imoral, dizia
esse autor, contribuindo para empobrecer ainda mais a relação do médico com o
paciente, pois, "longe de representar uma forma de intervenção técnica, o novo
medicamento substitui o diálogo do médico com o paciente, garante o prestígio
profissional e medicaliza os problemas vitais" (ibid.: 72).
51
Lembra o economista José Serra, Ministro da Saúde do Brasil no governo
Fernando Henrique Cardoso, que, ao contrário do que propôs a visão ultraliberal,
o mercado não tem por si só condição de nortear o conjunto das ações do país
nessa área. Considerando que 40% das famílias no Brasil detêm uma renda
modesta que chega até três salários mínimos por mês, deduz-se que esta parte da
população pouco interessa ao mercado de bens médicos. Portanto, não dispõem
de nenhum poder de compra a exercer no mercado. Daí continua ele, que no
Brasil tem de existir um modelo misto público/privado, pois "é preciso ter clareza a
respeito da impossibilidade de se transferir à lógica do mercado parcelas
crescentes de responsabilidade sobre a saúde" (Serra 2000: 28-32).
52
Por outro lado, o que designamos como sistema bioorgânico, hoje, não é a
mesma coisa que se entendia como tal há um século ou, então, há dois ou três
séculos atrás. A biomedicina moderna conheceu diversos recortes e mutações
que acompanharam o processo de instituição da modernidade médica. O primeiro
recorte situa-se entre o Renascimento e o fim do monopólio temporal da Igreja, na
Alta Idade Média. Digamos, o período situado entre os séculos XV e XVII, quando
a visão organicista dominante, modelada no aristotelicismo e no cristianismo, foi
substituída por uma outra, a visão do mundo como uma máquina, inspirada na
revolução científica que tem em Galileu, Descartes e Newton alguns de seus
expoentes. O segundo recorte verificou-se entre os séculos XVIII e XIX, com o
nascimento da clínica moderna, e o terceiro, com o processo de mercantilização
do corpo, na segunda metade do século XX. Vejamos mais detidamente essas
passagens.
15
Embora esta estratégia não tenha poupado da morte na fogueira um clérigo cientista como Giordano Bruno
e quase executado outro como Galileu fatos acontecidos nos momentos iniciais de passagem para a
modernidade, entre os séculos XVI e XVII.
53
a tradução metafórica do corpo como uma máquina, tradicionalizada com sucesso
por Descartes. De outro, impôs-se o positivismo nascente, promovendo a distância
normativa necessária entre Igreja e Ciência. A perda de legitimidade da Igreja
ocorreu paralelamente à valorização de um ideal de verdade científica
considerada um fim em si mesmo (descartando o controle direto da Igreja na
definição do bem e do mal). No entanto, por trás do olhar calculista cartesiano,
que ambicionava analisar cientificamente o corpo-objeto, continuava a se
esconder um outro olhar, o de Deus. Para esses cientistas pioneiros, a inteligência
última a justificar os sentidos do trabalho científico continuaria a possuir natureza
metafísica. Essa presença de Deus no imaginário da Ciência nascente explica,
pois, que as imbricações entre as duas instituições (Igreja e Ciência) eram mais
freqüentes do que se imagina. O surgimento da "clínica médica", nos séculos XVIII
e XIX, veio abalar, porém, essa "santa aliança", afim de permitir uma maior
publicização do debate sobre saúde e doença.
54
certos mamíferos, como o que era proposto pela tradição aristotélica. Sua
insistência nesse imperativo metodológico permitiu-lhe organizar um modelo de
observação do corpo fundado na nomenclatura e na iconografia (Canguilhem,
1990: 12-14). Esses trabalhos de dissecação ocorreram por uma operação
imaginária de valorização da estrutura anatomofisiológica humana como sendo o
único documento verídico sobre a "fábrica do corpo humano", isto é, a valorização
do homem como um ser diferente dos outros animais e merecedor de uma Ciência
capaz de desmontar esse corpo para revelar a totalidade do conjunto.
55
A biomedicina ocidental estabeleceu sua positividade disciplinar a partir
daquilo que foi definido pelo método cartesiano como sendo 109 verídico e não-
sujeito a ilusões. Para Descartes, a única percepção confiável, capaz de permitir a
objetividade científica necessária ao alcance da verdade, seria a visão. A
curiosidade científica inicial pelos mistérios do corpo/máquina levou então à
valorização do olhar, muito mais do que quaisquer outras sensações. De fato, para
esses precursores, as imagens consolam o indivíduo a respeito da sua
impossibilidade de apreender o mundo e de apreendê-Io sem um envolvimento
sensível maior. Fixando a confusão de acontecimentos pelo olhar, o homem
exorciza a angústia gerada pela perspectiva do caos e da desordem. As imagens,
diz Le Breton, introduzem um olhar de inteligibilidade onde parece reinar o
incoerente ou o invisível. "O adensamento que elas provocam sobre o fluxo do real
ou sobre os espaços vazios das coisas dispersam o conteúdo, mas permitem que
se comece a compreender as realidades e se aproximar delas desvendando sua
complexidade e textura" (Le Breton, 2000: 262). Trata-se, é claro, de uma
visibilidade que se conquista a partir de fora, de uma observação externa, mas foi
essa forma de se compreender que permitiu ao homem moderno construir um
certo tipo de ordem social e médica e uma certa tecnociência do visual.
56
como um todo ao sentido particular oferecido pelo "olhar observador" limitou
evidentemente a descrição desse corpo humano a um combinado funcional de
peles, músculos, nervos, sangue e ossos dispostos em formas de órgãos
separados, perdendo-se de vista que eles formam um conjunto interligado por
processos sutis: interligação do corpo físico com os corpos emocionais e
psicológicos (Martins, 1999a), interligação dos diversos organismos para além das
explicações fisiológicas e mecânicas, interligação dos processos biológicos e das
significações sociais, culturais e históricas.
57
institucionalizou-se logo nesse momento. Tal medicina legitimou-se publicamente
por meio do reforço de ruptura da Ciência e da magia, ou seja, entre, de um lado,
um certo conhecimento científico do corpo valorizador da razão instrumental e, de
outro, aqueles conhecimentos de curas populares e alternativos tidos como
mágicos e arbitrários (e, logo, não-científicos).
16
A prática médica é complexa, porque ela exige que a relação entre médico e doente funcione ao mesmo
tempo no registro das socialidades primárias (relações interpessoais) e das socialidades secundárias
(relações funcionais). Se um ou outro desses fatores predomina, o trabalho de cura é prejudicado. Um
excesso de aproximação ente o médico e o paciente podem prejudicar a busca de objetividade. No lado
contrário, um excesso de distancia também é desfavorável, pois o curador deixa de captar uma série de
sintomas somáticos e psíquicos que poderiam ser importantes para um diagnóstico satisfatório.
58
como se o objeto se apresentasse por si, de modo sensual, mesmo
independentemente do desejo de aparecer do sujeito. Tratava-se de instituir um
olhar clínico passivo, que ambicionava ir de corpo em corpo, e cujo trajeto se
situaria no espaço da manifestação sensível, pois para a "clínica nascente",
lembra Foucault, toda a verdade se situa no lado do objeto e de sua manifestação
sensível (ibid.: 121).
59
que, para ser mais abrangente, necessitaria ser completado por outras
percepções, como tais, por exemplo, a da escuta e a do sentir. Mas essa
estratégia restritiva de organização do saber médico, hipervalorizando a
tecnociência visual, não foi aleatória. A objetivação do saber médico serviu para
desvalorizar socialmente certos saberes médicos, populares e alternativos, que
não dispunham de um discurso cientificista bem elaborado. Apesar disso, essas
outras medicinas continuaram a se reproduzir à margem da medicina oficial em
estruturação, ao preencherem uma exigência primária da cura médica que o
método anatomoclínico não podia monopolizar: o do simbólico. Mesmo dentro do
campo da medicina oficial, essa opção neocartesiana por uma metodologia
reducionista aparentemente abrangente na sua eficácia técnica não foi suficiente
para eliminar a antiga tradição médica, que valorizava a relação interpessoal e os
rituais de cura, e que sobreviveu no interior da medicina moderna, ao longo do
século XX, na figura do que chamamos clínico-geral ou médico de bairro.
60
Essa classificação da enfermidade sugerida pela fisiologia à biomedicina
tornou-se, todavia, restritiva, à medida que o olhar observador e objetivista apenas
apreende a doença como fenômeno visível e verificável (sendo inútil para explicar
a patologia da alma, ou seja, aquelas doenças que têm origens emocionais e
psíquicas). A consideração sobre normalidade e anormalidade num esquema
analítico reducionista deixa evidentemente de lado uma série de patologias que
não podem ser visualizadas. Em psiquiatria, por exemplo, a noção de
personalidade torna difícil a distinção entre normal e patológico, e a passagem de
reações normais a formas mórbidas não deriva de uma análise precisa do
processo, pois essa passagem apenas permite, reconhece Foucault, uma
apreciação qualitativa que autoriza todas as confusões: "Do lado da patologia
mental, a realidade do doente não permite uma tal abstração e cada
individualidade mórbida deve ser compreendida através de práticas do meio
correspondente" (Foucault, 1997: 15). O mesmo pode ser dito de uma série de
outras doenças psicossomáticas, que apenas são compreensíveis por um método
que evidencie o ambiente circulante e, sobretudo, que conecte a sensibilidade do
curador com o sofrimento do doente. Essa condição é particularmente evidente
quando o método terapêutico deve ser acionado para o tratamento daquelas
enfermidades que a Unesco denomina de "doenças sociológicas" (estresse,
insônia, fadiga etc.).
61
fenomenológicos a aproximação clínica é uma condição necessária para que o
mal corporal apareça na sua plenitude por uma associação de recursos que
incluem a visão, mas, igualmente a escuta, a intuição, o cheiro, o tato e o gosto.
Esse método mais complexo é o meio necessário para que apareçam gestos e
palavras que apenas se comunicam simbolicamente entre si, porque o corpo
17
aparece como um sistema de equivalências e transposições intersensoriais ,
sistema necessário para fazer circular social e institucionalmente o dom da cura.
17
Na prática, não existem sistemas médicos de cura que preencham todos esses requisitos de uma
fenomenologia médica perceptiva. A psicanálise dá prioridade à escuta, as psicoterapias corporais ao
sentimento físico e emocional, as massagens terapêuticas ao toque físico, à aromaterapia, ao cheiro etc.
18
No original: "toute Ia lumiere s'est passé du côté du mince flambeau de I'oeil qui tourne maintenant autour
de volumes [...]" (Foucault, 2000: X). .
62
O saber fisiológico e empirista que se emancipou na passagem do século
XVIII para o século XIX marcou, porém, uma nova ruptura no trajeto da
secularização das instituições. A idéia de uma medicina científica superior às
demais práticas médicas justificou a entrada em cena do Estado e de uma
regulamentação mais estreita das práticas sociais e dos mecanismos de
adestramento psicossocial dos indivíduos. Houve, então, uma ampla
reorganização do poder instituinte em geral e do poder médico em particular, de
modo a viabilizar os novos dispositivos disciplinares necessários para a
organização da biomedicina como um sistema de curas de valor universal,
sancionado pelo Estado. Isso contribuiu para que o sistema bioorgânico fosse
largamente utilizado como base técnica para os principais modelos de gestão da
saúde que existiram entre os séculos XIX e XX, ou seja, o modelo mercantil
usufruiu da trilha aberta pela ação estatal no disciplinamento das práticas médicas
para afirmar sua própria trajetória.
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saúde dominantes, em vez de firmar de vez a hegemonia da lógica econômica no
interior do campo médico. Pois se, de um lado, o desenvolvimento da tecnociência
reforçou a ideologia da eficácia médica, de outro, o redirecionamento das
instituições médicas em favor dos interesses econômicos privados provocou uma
crise importante do campo médico como um todo, o qual se abriu em duas
direções opostas: uma atraída pela tecnificação e, a outra, pela reumanização das
práticas médicas.
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funciona por meio de uma rede de informações sofisticadas. De um lado, essa
rede aproxima os laboratórios de medicamentos, os médicos especialistas e as
farmácias que distribuem os produtos dos laboratórios no mercado; de outro, isola
os pacientes e os cidadãos, dificultando a tomada de consciência coletiva quanto
à exploração do capital na área da saúde.
Nessa perspectiva, existe algo que deve ser mais discutido sobre a
natureza e o sentido do discurso tecnicista da biomedicina cartesiana,
independentemente de seus comprometimentos com o capitalismo médico
especulativo. Ou seja, a captura da medicina oficial pelo capitalismo biotécnico
não foi casual, mas preparada pelo próprio utilitarismo da Ciência biomédica na
sua busca incessante de uma certa "economia da normalidade", inspirada não
pelo bem-estar do paciente, mas por interesses particulares dos médicos, dos
pesquisadores, das clínicas e do capital especulativo. Existe, pois, algo confuso
nos fundamentos paradigmáticos dessa Ciência biomédica, os quais precisam ser
trazidos à discussão para um melhor entendimento da crise da medicina oficial e
da emergência de uma nova medicina. Pois, é nos equívocos dessas significações
biocartesianas sobre a saúde e o corpo que emergem naturalmente outras
significações médicas, que estavam reprimidas, mas sempre presentes.
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de publicidade que chegam ao exagero de prometer um medicamento para cada
emoção (Topuz, 2000: 27).
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tal desperdício da experiência é fonte de uma nova gama de doenças que a
biomedicina moderna não pode resolver, pois extrapola o quadro das patologias
previstas pelo paradigma cartesiano. Grande parte das chamadas doenças
contemporâneas, como a depressão, por exemplo, resulta de um conjunto de
elementos que não são apenas de natureza orgânica ou fisiológica, remetendo
para as dimensões emocionais, afetivas, nutricionais, ambientais, psicológicas,
dentre outras. Sabe-se que diversas modalidades de cânceres e afecções
pulmonares resultam de distúrbios afetivos, e que a simples extirpação de um
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tumor não significa, necessariamente, que a doença não volte a reincidir .
Observamos, por conseguinte, o surgimento de um contexto anômico em que o
avanço do capital especulativo sobre as diferentes áreas da cadeia produtiva da
saúde gera crescente descrédito e desconfiança para o modelo médico oficial
como um todo (há uma desconfiança crescente com relação aos preços cobrados
nas consultas, à competência técnica dos profissionais, à legitimidade dos
remédios receitados, aos preços dos medicamentos nas farmácias etc.). Em si
mesmo, esse contexto anômico é uma fonte importante de novas doenças que
proliferam em prejuízo do ser humano, que deixa de ser a razão primeira e última
da cura médica.
19
Estudos com mulheres portadoras de câncer de mama demonstram que aquelas com tendência à
depressão apresentam um menor numero de células NK com propensão a desenvolver metástases com mais
rapidez (Balestieri, 2000: 125).
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um lado, os limites de uma medicina empírica subjugada a modelos etiológicos
objetivista, que o médico especialista apenas conhece superficialmente, e de
outro, o aumento de doenças que exigem cada vez mais dos médicos a habilidade
e competência para gerir crises existenciais, conflitos relacionais e sociais e
distúrbios psíquicos (para o enfrentamento dos quais eles não estão preparados
profissionalmente). Diz com razão Odile Marcel: "Na cena médica, invisíveis e
freqüentemente não-ditos, obscuros sofrimentos planam para fazer pesar este
teatro do todo-poderoso presente no método e na assepsia. Tomografias, lençóis
imaculados, burocracia da saúde. A indústria do especialista está mal colocada
para tratar sofrimentos de origem psicossocial que são levados para o consultório"
(MarceI, 2001: 502).
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gera progressiva desconfiança e incerteza entre os cidadãos deste planeta-
mundo, independentemente de se estar falando do norte ou do sul 20.
20
Embora modernidade e nação sejam configurações sociais que historicamente nasceram juntas, hoje
existe uma cisão entre ambas. Surge uma modernidade-mundo, diz Renato Ortiz, pela qual as múltiplas
modernidades não mais são versões historicizadas de uma mesma matriz. “[...] a elas se agrega uma
tendência integradora que desterritorializa certos itens para agrupá-Ios enquanto unidades mundializadas"
(Ortiz, R. O próximo e o distante: Japão e modernidade-mundo. São Paulo: Brasiliense, 2000: 182-183).
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esterilização nos hospitais, ou simplesmente faturas médicas impossíveis de ser
pagas pela grande maioria dos cidadãos consumidores dos mercados de bens
médicos. Esses exemplos oferecem em conjunto um quadro em preto e branco
dos cuidados médicos públicos e privados. Todos temos histórias arrepiantes a
contar sobre um parente, um amigo ou alguém de nossa convivência que
conheceu dificuldades no momento de enfrentar médicos, hospitais, farmácias e
seguradoras.
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