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Acta Farmacêutica Portuguesa

2022, vol. 11, n.1, pp.116-119

Fisioterapia e Farmacologia: Epistemologias

Luís Coelho1

ARTIGO OPINIÃO | OPINION ARTICLE

Discutir o modo como áreas diferencia- mosidade do fisio/psico/terapeuta pe-


das da Saúde se podem intersecionar rante a abordagem farmacológica, atida
é aventar a possibilidade de uma dis- como “impessoal” e “artificial”. Cursos
cussão, bem mais profícua, sobre mo- delongáveis daquelas profissões chegam
delos epistemológicos de intervenção a ocultar, completamente, a importância
clínica, não podendo, a determinada da farmacologia, podendo, aliás, con-
altura, evitar recapturar velhos confron- vidá-las à substituição da última, enca-
tos, cismas, e verdades, por vezes, difí- rada como “inútil”. Também é patente,
ceis de digerir. Claro está que o profis- já que falamos nos “cursos”, aspergirem
sional da sua área evitará confrontar o tais profissões nos seus prosélitos o cul-
seu próprio esquema interior, mas se a to dos métodos, dos Sistemas, das abor-
discussão e o confronto são urgentes, é dagens atidas como racionais e vistas,
precisamente para que não continuemos correntemente, como salvíficas no trato
a negar o obrigatório ponto de harmoni- do Sujeito multivariado. Ora, tal trato
zação epistemológica em Saúde. Mesmo geral é, na verdade, muitíssimo perigo-
que isso implique sacrificar determina- so, e este perigo é o de todos os dogmas
das certezas, labutando pelo conheci- que, bem vendo, são paralelos à existên-
mento das limitações pessoais e profis- cia humana e (ir)racional.
sionais, acervo fundamental duma ação Desde sempre, e a época pandémica tal
clínica ética e, até, “evidente”. exemplifica, que se vem dualizando um
O esquema básico é conhecido: profis- caminho (ir)racional que opõe (ir)racio-
sões de saúde como “Fisioterapia” ou nalistas a empiristas, idealistas a cienti-
“Psicologia Clínica”/”Psicoterapia” têm ficistas, dogmáticos a experimentalistas,
requerido um modelo epistemológico, e, como se já não fosse suficientemente
dito, “biopsicossocial”, a partir do qual caricatural tal dicotomização, cada elo
tenderam a descartar-se da proximidade se fortifica dogmaticamente, sacrifi-
com um paradigma mais precisamente cando-se ambos perante a necessária
“biomédico” ou “clínico” (na acepção de objetividade racional. Sabendo nós que
Foucault1), que considerariam demasi- a “patologia” evoca, necessariamente,
ado “localizacional”, “biomecânico”, diferentes vertentes, cada um obstará à
“analítico”, e limitado na compreensão que lhe parece mais irrelevante, e cons-
adequada dum “Ser” multivariado, in- tituirá a necessária luta, que, ademais, é
cluso de uma vertente “psicossocial” que uma luta pela auto-afirmação. Esta pele-
não pode ser descartada. A necessidade ja reforça, ainda mais, a componente
de “partição” é um pouco corporativista, subjetiva, placebetária, da terapêutica, e
não sendo de negligenciar alguma ani- o placebo envolve ambos os polos “tera-
1 Licenciado em Fisioterapia, Especialista em Reeducação Postural pela Escola Superior de Saúde do Alcoi-
tão, Lisboa, Portugal.

Autor para correspondência: Rua Actor Vale 10, r/c esq., 1900-025 Lisboa, coelholewis@hotmail.com

©Ordem dos Farmacêuticos, SRP ISSN: 2182-3340


Coelho, L.

peuta vs. paciente”. Mas estes polos re- que o terapeuta pode ceder ao dogma,
memoram, igualmente, a dicotomia que implicando o paciente no processo. Se
se estabelece entre o “agente” terapêu- existe equilibração postural, é de espe-
tico, quiçá, dogmático, e o “paciente” rar função indolor, diríamos, ainda, que
empírico, que acusa a “dor” na medida subsiste uma harmonização “terapeuta
do excesso do primeiro. Em outro arti- vs. paciente”. Mas se o dogma se espraia,
go2 referi que a polarização em causa era aumenta a polarização «terapeuta vs. pa-
excelentemente representada pelo tra- ciente», com cada um reagindo defensiv-
to fisioterapêutico das raquialgias, pelo amente. E a defesa encurta a “postura”
“estado de arte” da sua intervenção, (ir)racional. E cria o sofrimento empíri-
que, envolve, justamente, ambas as co. E este gera, ainda mais, defesa. Nova
componentes (ir)racional e empírica. defesa, novel postura, pode ser que o
Mas a coisa não se basta nisto, o corpo, ser se adapte empiricamente, reduzin-
a forma como o poderemos “constru- do o grau de sofrimento. Mas, para isso
ir”, é um exemplo perfeito da referida acontecer, é preciso que o sintoma seja
polarização, bem como da referida inter- dirimido, nada obsta, por exemplo, ao
venção. medicamento. Uma compensação psi-
Podemos imaginar que a linha do ráquis cogénica poderia ser, também, de azo a
dualizaria uma área posterior, forte- harmonizar a nova postura racional com
mente postural, constituída, grande- o “insofrimento” empírico. De algum
mente, por músculos de ação constante modo, concebemos, aqui, a possibilidade
e anti-gravítica, e que compõem uma dum novo equilíbrio “Razão descenden-
“cadeia muscular” com tendência para te vs. empirismo ascendente”, que, a
a tensão e o encurtamento, e uma área nível psicossocial, poderia gerar toda
anterior, fortemente “liberal”, focada uma nova “sociologia clínica”, subme-
no movimento3-5. A Estrutura posteri- tendo a novel Razão a um conjunto de
or assegura o funcionamento da anteri- “convertidos” ao novo equilíbrio. Isto,
or, mas o excesso de encurtamento da claro, não aconteceria, decerto, sem que
primeira pode fazer do movimento um uma outra parte do Sistema viesse a so-
processo disfuncional e doloroso. Claro frer empiricamente.
está que, aqui, já processamos a teoria A partir daqui, o nível de relativismo e
“racional”, segundo a qual a postura in- subjetividade poderá levar-nos muito
terfere na função e pode provocar a dor. longe, poderia modificar-se toda uma
A última é o referencial empírico da teo- “episteme” (Foucault), constituindo-se
ria. E esta é a própria cadeia muscular, o novel equilíbrio onde as terapêuticas, in-
plexo “subconsciente”, que fomentaria cluindo a medicação, teriam de ser adap-
o sintoma. Nela se incluem, também, tadas à nova realidade “racional”. Pode
as diferentes variáveis psicossociais, ser mero saudosismo, mas há a possi-
que, aliás, poderão encurtar e, conse- bilidade da nova dinâmica não compen-
quentemente, “doer”. Curiosamente, o sar de todo o esforço do Sistema. Claro
excesso terapêutico, o exceder do alon- está que o dogma quererá vender-se,
gamento, tem, precisamente, o mesmo mas nada nos garante que poderíamos
efeito: “dor”. Que o mesmo será dizer alcançar algo “melhor”. E se é para ob-

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ter algo neurologicamente comparável, tão, clínicos que preferem estabilizar a


talvez não compense trair a ordem pri- condição dolorosa com vertentes tera-
meva do corpo. O que nos (re)direciona pêuticas meramente anti-sintomáticas.
de volta para a Estrutura básica e para Mas, aqui, mais uma vez, caímos na pos-
o necessário respeito empírico da mes- sibilidade de proporcionar novas “liber-
ma. É preciso notar que apesar do dog- dades” ao corpo passíveis de complexi-
ma prescrever, bastas vezes, um objeto a ficar o quadro “causal”. Medicamentos
abarcar, este poderá não passar de uma analgésicos administrados sem um tra-
simples etapa do caminho. E o mesmo tamento adequado da causa do proble-
acontece com a trama psicossociológi- ma poderão promover novo sofrimento
ca, pelo que, de certa forma, uma inter- racional e, por consequência, empírico.
venção é, apenas, uma compensação. E Ora, o paradoxo não deixa de exprimir
isto é ainda mais real no que respeita ao o “estado de arte” de intervenção clíni-
contexto do que é multivariado. A com- ca de muitos profissionais em muitas
plexidade do “Ser” tem sido advogada condições. Assim, talvez o único modo
por muitos terapeutas para remeter às de dirimir a polarização vigente esteja na
limitações da farmacologia face às tera- necessária equilibração dos modelos: as
pias psicossociais, mas é exactamente o dores precisam dum trabalho “causal” e
nível de relativismo dessa complexidade de um outro, anti-sintomático, sem que
que constitui a fraqueza desses paradig- qualquer um deles seja excedido. A algia
mas. No campo do Holístico, cabe tudo filosófica tem, desde há muito, compa-
o que quisermos, e vários equilíbrios tibilizado Razão e empirismo, por vezes
poderão permutar-se. E como estamos dum modo desarmónico. A harmonia
sempre aquém da Verdade, até porque entre a cadeia racional e o movimento
esta é, de todo, inalcançável, toda a ação empírico permite, não obstante, fazer
é compensação, e a intervenção psi- crescer a linha raquidiana, pacificando o
cológica, mesmo a legítima, será, fun- “Ser” na despolarização Sujeito-Objeto,
damentalmente, um placebo. Não é por Terapeuta-paciente.
acaso que tantos psicólogos e psicotera- A harmonização entre holisticidade e
peutas concebem o placebo como inter- cientificidade é, de resto, o mote de
venção legítima. qualquer boa terapêutica, isto se preten-
Às tantas, compensação por compen- demos “estabilizar” o Ser, escusando o
sação, será, muitas vezes, preferível perigo da transformação desnecessária.
recorrer a algo que seja, apesar de tudo, Aliás, só há vera Razão se houver acor-
mais objetivo, algo que não nos afaste do com a empiricidade, o placebo é de-
muito da ordem empírica do corpo. E é monizado porque é “irrealista”, mas
aqui que se posicionam muitos fisiote- o seu carácter só se desvela na medida
rapeutas e clínicos. As compensações em que o preteritamente racional se re-
são, de qualquer forma, inextinguíveis, vela irracional. Claro está que, de certo
nada é completamente “resolvente”, a modo, tudo é racional e irracional ao
transformação é implacável e, peran- mesmo tempo, justamente porque tudo
te ela, há que adensar a objetividade, é compensação. Aqui, é o próprio “rela-
sob pena de cairmos no caos. Há, en- tivismo dogmático” (Popper6) que brota

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e pretende ver-se estabilizado pelo ri- da, acaba por ocorrer uma polarização
gor empírico, e dirá o dogma que este Terapeuta-paciente passível de banir os
fenece a possibilidade de transmutação, elementos do Sistema. Como se a nova
e o paradoxo não cessa, mas, como já vi- Razão fosse, de todo, estranha, familiar-
mos, a terapêutica medicamentosa está mente irracional.
envolvida, irmãmente, nos dois polos, Diante dos excessos compensatórios,
porque pode estabilizar, mas pode, tam- o prescritivismo farmacológico pode
bém, proporcionar a compensação trans- parecer securizante - também ele seria,
formadora. E assim como um terapeuta, quiçá, um placebo -, mas não deve, to-
ou um farmacêutico, poderá aliar polar- davia, perder-se a riqueza dialética, que
mente as diversas vertentes epistémicas, não é impossível para a Farmacologia,
isto não será em desprimor de se aliarem no fundo, o que se pede é o jogo com-
as diferentes áreas terapêuticas, conlui- pensatório da vida examinada, a dialéti-
ando esforços clínicos. ca constante, mas cerzida pelo equilíbrio
O terapeuta sabe, por exemplo, que (psicos)somático. Os excessos da
um alongamento primoroso pode re- própria ciência são de mote a produzir a
flectir-se numa dor neuropática, sabe necessidade placebetária, a tolerância, a
que pode acrescer-lhe o movimento, o flexibilidade, é o melhor remédio.
trabalho de força, mas sabe, tal-qual-
mente, que um medicamento poderá REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
minorar a dor e a inflamação, possibi- 1. Foucault M. Les mots et les choses.
litando mais função. A farmacoterapia Gallimard; 1966.
alia-se, reiterando-se essencial. Também 2. Coelho L. Raquialgias: Modelos fi-
o farmacêutico não esquece as variáveis sioterapêuticos e preventivos. Gazeta
psicogénicas, simplesmente as coloca Médica. 2020;7(3).
num plano paralelo. E este plano, exce- 3. Mézières F. La révolution en gym-
dendo-se, pode convidar ao abandono nastique orthopédique. Paris: Vuibert;
do mesmo fármaco que permite tolerar, 1949.
francas vezes, uma psicoterapia. Mais
4. Souchard Ph-E. Le champs clos. Paris:
difícil seria tolerar “ad infinitum” uma
Maloine; 1981.
terapia dolorosa, com a promessa da
salvação vindoura. Nem todo o sofri- 5. Coelho L. O anti-fitness ou o manifes-
mento se justifica. Não parece razoável to anti-desportivo. Introdução ao con-
estender indefinidamente uma terapêu- ceito de reeducação postural. Quinta do
tica sem o adequado suporte empírico. Conde: Contra-Margem; 2008.
Há transformações tão sofridas que se 6. Popper K. The open society and its
tornam incompatíveis com a vida “fun- enemies. Routledge & Kegan Paul, Ltd.;
cional”. Quando a mutação é exagera- 1945.

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