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Introdução
Capítulo 4:
Conclusão
1
Capítulo I
2
saberes – míticos, oraculares e etnofarmacológicos – são, ao mesmo tempo, o meio de
interpretar, mas também de intervir nos domínios da vida, o observador precisa, antes,
infletialterar o seu modo de percebê-las. Ao contrário disto, incorreríamos no risco
imiscuí-las em paradigmas que tendem a anular as agências que estão sendo
continuamente produzidas na tecitura do social. É neste sentido que o estudo aqui deve
focar nos modos pelos quais especialistas religiosos, consulentes-clientes e adeptos em
potencial estabelecem relações a partir de situações-problema que são apresentadas seja
como uma “doença”, seja como infortúnio, etc.
2
Ibidem.
3
Para o antropólogo Ordep Serra (2002, p. 73) trata-se de um “sistema etnocientífico”, calcado na
etnobotânica dos terreiros.
3
O conceito de epistemologia está atrelado à ciência moderna e etimologicamente
remete à idéia geral de “discurso racional (logos) da ciência (episteme)” (CASTAÑON,
2007, p. 6). Se remontarmos até a Grécia antiga, notaremos que episteme se refere a
“conhecimento seguro, conhecimento estabelecido” (ibid.). Conforme notara Castañon,
o termo epistemologia, que até o século XX, estava vinculado à teoria do conhecimento,
passou a ser usado de maneira mais restrita, para designar as formas sistemáticas de
estudo da ciência moderna, dentre as quais, os seus métodos, aplicações possíveis, etc.
No entanto, a palavra epistemologia também passou a ser utilizada para se referir ao
“estudo geral dos saberes”, sobretudo entre filósofos sob influência francesa. Para esta
corrente, a epistemologia está voltada ao estudo dos “saberes”, sejam eles especulativos
ou científicos e abrange o estudo dos métodos, da história, das formas de estruturação
do conhecimento sistemático que pode ser teológico ou filosófico, por exemplo.
Castañon destaca que estudar epistemologia é o mesmo que investigar o que torna um
tipo de conhecimento um caminho seguro para se acercar da realidade. Ainda para ele,
estudar epistemologia implica em se voltar para as diferenças entre os tipos de
conhecimento existentes – filosóficos, práticos, religiosos ou científicos. Ao assim
atualizar o conceito de epistemologia, o autor contribui para ampliar o espaço de
debates em torno das formas de construção histórica e situada do conhecimento,
conforme os distintos domínios da atuação humana.
4
algumas epistemologias da saúde e do corpo vêm ganhando contornos mais nítidos na
configuração social e cultural recente das religiões afro-baianas, paripassu a outros
desenvolvimentos correlatos no contexto religioso latino-americano. Em parte, a
redefinição desta configuração, resulta das transformações graduais no campo político,
sobretudo a partir das lutas empreendidas pelos movimentos sociais, protagonizadas por
ativistas, artistas e intelectuais, muitos dos quais vinculados às religiões afro-brasileiras.
Às lutas anti-racistas somaram-se iniciativas de fortalecimento interno das comunidades
identificadas com a herança cultural africana, com o fomento das ações de resgate dos
saberes e fazeres a ela associados. Entre os conhecimentos e práticas que vêem sendo
alvo de políticas públicas, pedagógicas, linguísticas, sociais, culturais, estão aquelas que
se referem aos saberes e fazeres tradicionais vinculados à religiosidade afro-brasileira.
A antropologia e a sociologia vêm contribuindo para recolocar o debate sobre a
produção do conhecimento em outros termos. Em parte, esta atualização se faz na
medida em que enfatizam as dimensões do poder e da dominação que estão atreladas à
produção do discurso científico moderno, afirmando-o como espaço legitimado da
produção de saberes (SANTOS, 2009, p. 10).
. Em parte, esta atualização se faz na medida em que enfatizam as dimensões do poder e
da dominação que estão atreladas à produção do discurso científico moderno,
afirmando-o como espaço legitimado da produção de saberes. Não obstante a ciência
tenha logrado expandir a sua influência, principalmente por meio da aplicação científica
em tecnologia e através de métodos e técnicas aplicadas à administração, não há como
reduzir a noção de epistemologia ao conjunto de práticas científicas disseminadas a
partir do Ocidente durante a modernidade.
Não estamos falando aqui apenas da oposição que usualmente se faz entre
conhecimento científico e senso comum, mas sim de uma articulação política bastante
complexa e disseminada em práticas institucionais que tendem, em seu conjunto, a alijar
diversas formas de saberes ou a tratáa-las como conhecimentos sem validade, posto que
não podem ser submetidos às mesmas provas que os experimentos científicos 5. Quanto a
religiões que lhes precedem. No entanto, as articulações e engajamentos políticos promovidos pelas
políticas de reconhecimento, ainda na segunda metade do século XX, abrem espaço para que os
conhecimentos etno-médicos possam ser reivindicados como válidos e visibilizados. Neste
movimento, transformações significativas estão sendo operadas no interior do campo afro-
brasileiro, mas também através das articulações deste com outros campos de saber, como a arte, a
literatura, o direito, a filosofia e a antropologia, dentre outros.
5
Tambiah (1985, p. 73), observa como Evans-Pritchard (1937), ao se debruçar sobre “a base analógica
dos ritos mágicos”, pela perspectiva dos atores, acabou por concluir pela ineficácia empírica e não-
cientificidade da utilização de medicamentos. Para o último, a lógica do uso dos recursos
5
isto, cabe mencionar Latour (1994, p. 91), ao defender a aplicação do princípio da
simetria na antropologia, defende que o erro e a verdade sejam tratadas da mesma
forma. De acordo com o último autor citado, este seria um modo de abordar a técnica e
a ciência, indo além da sociologia do conhecimento ao superar a oposição clássica entre
“natureza” e “cultura”. Ainda sobre o mesmo assunto, retomando o que Michel Callon
chamara de “princípio de simetria generalizada”, o antropólogo precisa se situar em um
ponto médio, de onde consiga observar, concomitantemente, a atribuição de
propriedades humanas e não humanas (LATOUR, 2012, p. 102). Por este princípio, a
antropologia contestaria a crença naquilo que diferencia o Ocidente dos “outros”,
superando o relativismo cultural e o nosso distanciamento da natureza, processo este
que engendrou a própria noção de cultura (ibidem.). Portanto, defende o autor, as
comparações devem partir, antes, da análise das naturezas-culturas. Assim, a noção
unitária da natureza é ultrapassada, tanto em abordagens universalistas quanto no
relativistas, ao compreenderem as naturezas-culturas como semelhantes porque
constituem, de modo indissociável, “seres humanos, divinos e não humanos”. A
pergunta mais importante até aqui é o que mobilizamos para construir o coletivo, de que
naturezas-culturas nós partimos, dos ancestrais, da alimentação ritual, da geomancia ou,
em uma visão ocidental, da zoologia, da biologia etc.?
6
. O que se alterou no quadro de distribuição do capital político e simbólico,
possibilitando que práticas religiosas, sociais e culturais de grupos historicamente
subalternizados pelo colonialismo, tenham conquistado o direito de se fazer representar
e afirmar sua identidade? Responder a esta questão é fundamental para que possamos
compreender de que modo epistemes antes invisibilizadas pelo colonialismo se tornaram
visíveis e verdadeiros objetos de poder, a partir dos quais especialistas religiosos,
devotos e leigos dinamizam processos transformativos, da pessoa, mas também da
comunidade em sentido amplo, e construtivos, porquanto possibilitam o encadeamento e
a conexão entre agentes situados em espaços-tempo diferentes. Esta nova articulação
dos objetos de poder afro-brasileiros vem sendo tecidas na long dureé histórica e não
pode se circunscrever às práticas religiosas afro-brasileiras contemporâneas, o que se
revela na importância conferida aos ancestrais, ou seja, àqueles que contribuíram para
sedimentar e fazer progredir no tempo histórico o sentimento de preservação dos
saberes tradicionais africanos e outros propriamente afro-brasileiros ou afro-americanos
(SILVA et al., p. 6). Feitos memoráveis do tempo e das distintas filosofias que se
entrecruzam no encantamento de objetos, como as “ngomas6” (tambores) e demais
artefatos rituais do terreiro, ativam uma teia de significados que vem sendo tecida a
partir dos encontros de distintos atores, nas malhas das ações transculturais.
6
Para os povos Kongo de Angola, na República Democrática do Congo e entre os falantes do kikongo e
do kishawali da costa ocidental africana, as danças e os tambores são chamados de ngoma. Nos terreiros
da nação angola, são chamados de ngomas os três atabaques sacralizados, conhecidos como rum, rumpi, e
lê. Para os povos Bantu, em geral, a dança e a música constituem elementos indissociáveis da educação
corporal, da comunicação intra e inter-religiosa, além de ser forma de expressão e transmissão de
conhecimentos através da performance (FOURSHEY; GONZALEZ, 2019, p. 156).
7
Assim como reinvindicado pelos índios do Nordeste brasileiro, outras formas de
conhecimento voltados à atuação terapêutica se fazem presentes entre grupos religiosos,
dentre os quais os candomblés. As curas atribuídas a um tipo de intervenção espiritual,
aparentemente inexplicáveis do ponto de vista lógico, constituem um dos “bens
espirituais” mais bem cuidados pelo povo-de-santo. Trata-se de um autêntico acervo,
vivo e pulsante, que se espraia em um conjunto de práticas religiosas voltadas aos
cuidados com o corpo, em suas dimensões materiais e espirituais.
1.2 – Breve panorama do debate sobre cura e terapias religiosas nas Ciências
Sociais
8
ao modo de organização social. Assim, as investigações antropológicas vêm enfatizando
as dimensões simbólicas da doença e da cura nos contextos religiosos, como elas
produzem relações de poder, modulações de forças e performances rituais.
Neste sentido, Good (1977) teria notado como o estudo de Fabrega (1974)
contribuiu significativamente para o surgimento de uma vertente promissora de pesquisa
voltada ao exame da “rede semântica ou simbólica” em torno de doenças específicas.
Esta proposta é interessante porque demonstra, a partir de casos particulares, como se
desenvolvem e se vinculam “redes culturalmente constituídas”, através das quais se
estabelecem significados para os processos de ordem fisiológica e psicológica e a
experiência pessoal da doença, de um lado, e os relacionamentos, sensibilidades e
situações contextuais da cultura, de outro10 (ibid., p. 663). Conforme as idéias
apresentadas logo acima, a existência de aparatos técnico-semânticos11, tal como
denotados em linguagens heteróclitas e, de certo modo, compartilhadas por praticantes
religiosos identificados com certos princípios cosmológicos, são condição necessária
para a eficácia dos processos de cura em âmbito religioso.
8
Rabelo (2005, p. 128) esclarece que o termo illness se refere “à doença como realidade subjetiva, é o
entendimento, e, é claro, sentimento dos sujeitos que estão em aflição”. Já disease é a doença como
realidade objetiva, quando há um funcionamento biológico considerado mórbido.
9
Ibidem.
10
Ibidem.
11
Aparatos técnico-semânticos se referem às distintas associações que envolvem o emprego de técnicas
associadas à gestão dos significados e conteúdos que, em situações de terapia de base religiosa,
mobilizem os atores envolvidos, no sentido de um engajamento para a superação de experiências de
aflição.
9
significados são produzidos e compartilhados. Assim, as redes semânticas constituem os
terrenos férteis dos quais emergem prescrições e soluções terapêuticas, e, também, onde
são moduladas as sensibilidades daqueles(as) que estão envolvidos direta e
indiretamente com os processos de cura religiosa. Podemos inferir que os pacientes das
terapias religiosas estão sendo continuamente afetados pelo simbolismo da rede
semântica da qual co-participam ou na qual estão imersos. Deduz-se que os artífices
religiosos que estão à frente também foram afetados por disposições simbólicas, capazes
de, ao mesmo tempo, mobilizá-los corporal e espiritualmente, para um tipo de atuação
voltado ao reestabelecimento do equilíbrio entre as dimensões pessoais e sociais dos
indivíduos em estado de aflição.
12
Ibidem.
13
Ibidem, pp. 663 -64
10
olharnovo ponto de vista da sobre a doença e da cura recoloca a questão sob como um
ponto de vistainextrincavelmente semânticao, ou seja, de uma perspectiva não
dicotômica dos conceitos êmicos e éticos, tais quais são elaborados pelas comunidades,
pelos pacientes e profissionais14 (ibid., p. 663). São estas conceituações produzidas
cotidianamente pelos sujeitos nas interações sociais que forjam o contexto de
significação e mediação dos efeitos psicológicos e fisiológicos envolvidos nos processos
de cura. É profícua a abordagem apresentada, por congregar programas de pesquisa
interdisciplinares, para aos quais importem tanto questões biológicas quanto sociais.
Conforme foi muito bem destacado por Rabelo (2005, p. 128), a antropologia médica
norte-americana protagonizou uma reconciliação e a retomada do reestabelecimento de
um diálogo entre a antropologia e o campo biomédico. A perspectiva analítica
desenvolvida por Kleinman, em particular, oferece novos insumos para o
desenvolvimento de uma antropologia culturalista, de base comparativa, evidentemente
influenciada pelos estudos de Clifford Geertz, mas também um caminho de pesquisa
para os profissionais de saúde que tenham interesse em engajar-se no diálogo com
outros sistemas e contextos médicos.
14
Ibidem.
15
Ibidem.
11
Segundo o argumento de Commaroff, em sociedades em rápida transformação a
cura expõe como as categorias simbólicas existentes subsumem a experiência
caótica, assim como a percepção da expansão sociocultural pode contribuir para a
modificação semântica e contextual destas mesmas categorias. Em sua investigação
sobre o sistema terapêutico Ratshidi, a autora analisa como as categorias simbólicas
compartilhadas e as percepções indígenas de ordem e desordem configuram uma
realidade segundo a qual a aflição deriva de um deslocamento do self em relação ao seu
contexto, social e cósmico16 (ibid., p. 637)..
16
Ibidem.
12
para a elaboração de corpos de conhecimento substanciais sobre elementos fitoterápicos
de plantas e raízes, suas formas de cultivo e respectivos usos terapêuticos. Estes saberes,
extensamente compartilhados pelos sujeitos em uma rede semântica, configuram
campos de observação, experimentação e produção de efeitos de reestabelecimento da
saúde física e espiritual. Por este motivo, cabe reconhecer igualmente que há algo além
do simbolismo na tessitura dessas epistémes da saúde. Disto, infere-se que para além da
eficácia simbólica presumida pelo estruturalismo levi-straussiano17, coexistem sistemas
e práticas médicas que operam noa nível do plano sensível, promovendo alterações
significativas dos estados físicos e emocionais destes pacientes. Ainda que símbolos
estejam sendo mobilizados durante os processos de cura, não são acionados senão como
recurso à transformação dos estados caóticos ou periclitantes dos indivíduos. Nos
símbolos estão condensados os significados compartilhados por um certo universo
sociocultural, referências a partir das quais se procede à leitura situacional e à escolha
dos procedimentos a serem adotados em cada caso específico.
17
Ibidem.
13
acontecendo. (Entrevista com a Yalorixá Bárbara – Ilê Axé Oyá Gerê
– 26/09/2022).
É importante notar como os sintomas, como referido pela yalorixá acima, podem
ser interpretados a partir de um ponto de vista estritamente religioso, mas não
configuram, necessariamente, nenhum estado que possa ser considerado mórbido,
segundo a biomedicina. De todo modo, o conceito de doença e saúde parecem ganhar
conotações um tanto distintas daquelas que se subsumiriam às abordagens clínicas.
Outras formas de compreensão sobre doença e saúde se apresentam e precisamos estar
atentos como tanto práticas quanto categorias de pensamento são mobilizadas nos
processos terapêuticos em curso.
18
Ibidem.
14
configuram uma cosmologia. É no ato da advinhação tshidi que, tanto o processo de
cura quanto os atos que definem o papel do curandeiro ganham forma. Ao assim
proceder, o oficiante do oráculo opera a redução do estado caótico, através de metáforas
causais. Para Commaroff, a adivinhação constitui um locus elaborado para “a gestão
criativa do significado na experiência cotidiana” (ibid.,p. 646).
19
Ibidem.
15
conceito de experiência-próxima na antropologia ou, ainda, Turner e Bruner (1986) que
cunham a expressão “antropologia da experiência”, dentre outros, acabam por
reconhecer a condição existencial da corporeidade, na qual tanto a cultura quanto o self
são sedimentados. Esta perspectiva enfatiza a dimensão da experiência nos processos
formativos da pessoa bem como dos processos dinâmicos de transformação social e
cultural, na medida em que as ações e as categorias do pensamento vinculados a aportes
ou matrizes culturais estão sendo constantemente atualizadas nas interações cotidianas.
20
Ibidem, p. 242.
21
Ibidem.
22
Op. cit., p. 243.
23
Ibidem.
16
Este posicionamento enseja um olhar sobre a “tensão metodológica correspondente
entre abordagens semióticas e fenomenológicas” que, segundo Csordas, percorre os
“três corpos” de Hugues e Lock24 (ibid., p.243).
Segundo Csordas25, (ibid., 243) ainda argumenta que tanto Bourdieu quanto
Merleau-Ponty enfatizam as noções de percepção e prática. Primeiro, Merleau-Ponty
observou “a construção de objetos perceptivos”, notando como a percepção se inicia no
corpo, para se tornar objeto apenas mediante o pensamento reflexivo. Ainda para ele,
não seria possível distinguir entre sujeito e objeto, já que “estamos no mundo”.
Bourdieu, por seu turno, frisou sobre “o corpo socialmente informado como base da
vida coletiva”26 (ibid., p. 244). No seu arcabouço analítico, a noção de percepção está
em sintonia com aquela apresentada por Merleau-Ponty, mas ela é melhor desenvolvida
a partir da noção de habitus, como uma espécie de regência não-consciente das práticas.
Esta forma de compreender o problema faz com que ele não se reduza às microanálises
individuais, podendo a corporeidade ser pensada à luz das coletividades sociais. Pela
acepção bourdieusiana, o habitus corresponde às aquisições dos esquemas geradores
capazes de engendrar pensamentos e ações nàas condições particulares em que são
constituídas27 (ibid., p. 258).
24
Ibidem.
25
Ibidem.
26
Ibidem.
27
Ibidem, p. 258.
28
Ibidem, p. 244.
29
Ibidem.
17
Em outras palavras, a natureza do espaço está sendoé continuamente redefinida
em face dos ajustes esquemáticos proporcionados pelo habitus. Se depreende desta
inferência que, em um mundo constituído por esquemas geradores distintos, a natureza
do espaço social esteja sendoseja atualizadao em face das tensões e negociações em
torno das múltiplas formas de estar e se apresentar no mundo. Desta maneira, Csordas
define os “modos somáticos de atenção” como “formas culturalmente elaboradas de
atentar para e com o corpo em ambientes que incluem a presença corpórea de outros30”
(ibid., p. 244).
30
Ibidem.
31
Ibidem.
32
Ibidem, p. 249.
33
Ibidem, p. 249.
18
Neste ponto da sua análise, Csordas retorna ao cerne do argumento de Merleau-
Ponty, em específico à maneira pela qual “a síntese perceptual do objeto é realizada
pelo sujeito, que é o corpo como dobra de percepção e prática34” (ibid. 255). Esta
ambiguidade entre sujeito e objeto, que atravessa diversas tradições científicas
modernas, contaminou as nossas formas de diferenciar a mente do corpo, assim como
entre o self e o alter. Por isto, Csordas reitera o seu posicionamento de descontinuar
qualquer interpretação metodológica que insista no dualismo, mesmo aquelas que foram
atraídas pela concepção de um tipo de “conhecimento incorporado”, tal qual se
depreende da obra de Pierre Bourdieu. Neste arranjo metodológico, a experiência
incorporada é tomada como ponto de partida, para se perguntar como o corpo “se volta
para”, performando objetos que só podem ser constituídos através da intersubjetividade,
ao invés da clássica distinção entre sujeito e objeto. Csordas frisa como o ponto de vista
de Merleau-Ponty implode o dualismo sujeito-objeto e recoloca a questão de como a
atenção, bem como outros processos reflexivos, produzem objetos culturais35 (ibid.).
34
Ibidem, p. 255.
35
Ibidem.
36
Ibidem.
37
Ibidem.
19
se distingue da co-presença3839, já que sentimentos, emoções ou mesmo disposições
corpóreas, são apreendidas no plano da imediaticidade interativa. Esta forma de notar as
disposições contextuais da ação é apreendida pré-objetivamente, já que são
compartilhadas nas interações e práticas cotidianas (ibid., p. 255).
Certo, tá ótimo, mas falta finalizar o tópico com algo que expresse a relevância
desta discussão para o seu objeto.
20
cerimoniais, rituais, comportamentais, e outros, relativos à vinculação específica entre o
indivíduo e o seu orixá regente, proporcionam um rol de recursos simbólico-imagéticos,
cosmológico-interpretativos, a partir dos quais ele pode proceder à leitura da sua
condição no mundo, da sua trajetória de inserção na vida religiosa, na vida social mais
ampla. A vinculação ao seu orixá regente, assim como aos demais que compõem o
conjunto de orixás, caboclos quando são admitidos pela respectiva tradição religiosa,
exus, marca uma forma de inserção no universo mítico e simbólico da religiosidade.
Desta posição única na estrutura religiosa correspondem obrigações e expectativas
quanto ao cumprimento das mesmas, bem como com relação à participação nos ritos
internos. A participação reiterada nos ritos ordinários da vida religiosa rende ao neófito
experiências sinérgicas com “forças” de ordem espiritual senão de todo novas,
certamente marcadas por uma frequência maior na comutação energética entre os planos
material e imaterial da existência, assim como pelo estabelecimento mais ou menos
regular das relações de mutualidade e reciprocidade entre seres humanos e as
divindades.
21
Desta maneira, questões de saúde coletiva podem ser tomadas como objeto de
ações programáticas de alguns terreiros ou mesmo destes em parceria com órgãos
públicos, canais midiáticos e representações constituídas no âmbito da sociedade
civil, a exemplo da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. Por outro
lado, é possível visualizar nas práticas religiosas realizadas fora dos terreiros, algumas
das quais se imbricam com outras manifestações religiosas como a “Lavagem do
Bonfim”, e nas relações interpessoais com pessoas não pertencentes ao Candomblé,
maneiras de comunicar, comutar significados e estabelecer espaços de diálogo com
outras dimensões do mundo. Este é um dos atributos da estruturação cósmica
depreendida dos elementos míticos que dão forma à figura de Exu, grosso modo, como
um trickster capaz de promover a inter-comunicação entre distintas dimensões do
cosmos, bem como pelo seu trabalho de mediação, tradução e circulação das vontades
dos deuses, aspirações e necessidades humanas. Podemos ver aqui uma verdadeira
“ecologia de práticas”, conforme a acepção de Stengers (ANO2018, p. 443), pela
qual um campo relacional é ativado, produzindo um novo arranjo apto a manter a
diferença. Do ponto de vista estritamente cosmológico, Exu não apenas encarnaria as
diferenças intransponíveis da natureza, mas ao mesmo tempo a possibilidade e
necessidade de comunicação e transformação mais ou menos constante de distintos
seres40, dotados de vontade e da potência de agir sobre algo – a coletividade, a pessoa ou
sobre um contexto específico. Neste sentido, a ecologia das práticas religiosas afro-
brasileira reverbera em seu campo semântico as necessidades, humanas e não-humanas,
de estabilização, transformação e produção de potências. Do vasto campo relacional que
se depreende das práticas religiosas cotidianas comparece o imperativo ético de
movimentar “axé” (Nagôs) ou “ngunzo” (Angola) que estão entre as dimensões
materiais da existência e aquelas que estão no domínio do invisível, do inefável. Seja
pela manipulação deliberada de forças, seja pela tradução da vontade dos deuses, as
práticas terapêuticas de base religiosa atuam, primeiro, em face do reconhecimento de
40
Òkòtó é uma palavra utilizada para designar, ora “o significado dinâmico do triângulo e do cone”, ora
para projetar a imagem de um caracol, esta tomada como um símbolo próprio do culto de Exu. Segundo
interpretação de Juana E. dos Santos (2002, p. 133), o Òkòtó seria “a história ossificada do
desenvolvimento do caracol e reflete a regra segundo a qual se deu o processo de crescimento”. Trata-se
de um conceito que sintetiza um processo de crescimento contínuo e proporcional ou, ainda, a evolução
do ritmo regular. É do Àgbà Esú ou do “pé de Òkòtó” que parte e se expandem as múltiplas unidades que
compartilham da sua natureza. Desta forma, o termo Òkòtó se refere à unicidade da natureza de Exú,
embora estes sejam numerosos, bem como a dinamicidade implícita ao seu modo de expansão e
multiplicação, “em espiral” (ibid.).
22
“forças41” dispostas na natureza, no sentido mais amplo do termo. Em face disto, os
recursos ou a “tecnologia do poder” de que se valem os especialistas religiosos, os
clientes e os membros orgânicos das casas, condizem com o sistema cultural
propriamente dito, no qual e pelo qual são dinamizados signos e símbolos, materiais e
imateriais que encarnam e estendem múltiplos significados da natureza, humana e não
humana. Nesta rede semântica, para retomar a expressão de Fabregas, a força da
palavra pronunciada com fé movimenta energia, assim como a apropriada manipulação
de objetos, a observância à sistemática dos rituais, garantindo ao mesmo tempo o
movimento contínuo de renovação e fortalecimento energético, mas também a
restituição mútua entre as dimensões sensíveis da existência, entre as dimensões
humanas e não-humanas. As práticas de saúde afro-brasileiras situam-se, portanto, neste
espaço intersticial entre as práticas de cuidado dinamizadas internamente e aquelas que
estão voltadas para o atendimento de clientes ocasionais ou regulares, que podem vir a
ser iniciados ou não.
23
mesmos signos e símbolos estão sendo mobilizados nas experiências mais comuns da
vida religiosa, não apenas para ativar múltiplos engajamentos, mas também para
reafirmá-los ou promover novos arranjos interpretativos sobre a vida, a doença em si e o
adoecimento como um processo. Desta forma, infere-se que as experiências individuais
de aflição, distúrbios e outros males, quando submetidos ao escrutínio de um
especialista religioso do candomblé, são absorvidos pela cosmologia afro-brasileira e
reinterpretados à luz desta. Ao mesmo tempo que esta leitura opera na e para a
possibilidade de reconstrução do self, em sintonia com as orientações das entidades
conforme se pronunciam no jogo de búzios, ela enseja atos criativos, por assim dizer,
que conectam a dimensão religiosa às outras dimensões da vida – econômico-financeira,
afetiva, profissional, enfim, das relações inter-pessoais etc.
Uma primeira técnica do corpo pode ser identificada aqui, sobretudo no que se
refere ao impulso dado à modulação do comportamento do consulente, o qual, ao
procurar a leitura do jogo de búzios, espera encontrar respostas para questões
específicas e, portanto, de como este(a) deve reorientar as suas ações no presente e no
futuro de modo a evitar situações indesejáveis ou contornar um problema atual, a
exemplo dos adoecimentos que passam à condição de objeto da atuação mágico-
religiosa. A primeira técnica do corpo aqui elencada, portanto, consiste no ajuste
sinérgico entre a perspectiva do consulente, o qual anseia por respostas, e a leitura
operada através de elementos cosmológicos. Ao que deveríamos nos perguntar quais
implicações subjetivas são desencadeadas e do que lhe sucede, em termos das múltiplas
releituras de mundo que são operadas tanto para o consulente quanto para o especialista
religioso. O jogo de búzios, visto como um evento significativo do ponto de vista
religioso, é interessante para pensar como se estabelecem novos “nós”, em uma vasta
rede semântica, na qual especialistas (pais e mães de santo, dentre outros detentores de
cargos), membros orgânicos e leigos aspirantes estabelecem trocas constantes das quais
costumam resultar as principais atualizações, cosmológicas, sociais, políticas e
culturais. Para além de uma mera “leitura situacional” do indivíduo, através do jogo de
búzios se operam conexões cosmológicas e epistemológicas atualizadoras e de
acionamento dos agentes aptos, espirituais e humanos, a lidar com aquela configuração
específica de vida em que se encontra o consulente.
24
atualização de todo o conjunto. A incerteza é tomada então como o mote da pesquisa
acerca das implicações destas novas conexões ou associações que compõe o mundo
social. Logo, nos sentiríamos motivados a nos perguntar quais são os traços das
associações deixados pelos atores permitem rastrear não o que está estabelecido, mas o
que efetivamente está sendo feito pelos atores. Mais que isto, Latour (2012) enseja
investigar os entrelaçamentos que são estabelecidos entre os atores e as coisas, vistas
como dotadas de actância. Este olhar menos antropocêntrico sobre o humano constitui o
ponto de partida para compreender como ações podem representar nós, cujas conexões
podem ser rastreadas pelos sociólogos. Ao cliente-leigo, assim como para o adepto já
iniciado, o jogo de búzios pode ser este espaço-tempo em que se operam distintas
releituras de mundo, além de uma conexão de abertura à possibilidade de transformação
significativa das condições de estar no mundo.
25
simbólicas, linguísticas e cognitivas, que são criadas a partir dos encontros
transculturais proporcionados por este tipo específico de associação.
Desta maneira, Latour42 (ibidem., p. 21), traz à tona não o que o termo social
evoca como homogêneo, mas sim ao que ele se refere como heterogeneidade, ou das
sínteses que são produzidas pelas associações entre elementos distintos, políticos,
culturais, econômicos, religiosos. Por esta forma de abordar o problema, o social passa a
ser identificado e qualificado a partir das conexões produzidas entre campos de atuação
mais ou menos autônomos, mas em comutação e produção sinérgica uns com os outros.
A teoria ator-rede evoca, assim, o que está sendo definido a partir das fronteiras, sua
multiplicidade de possíveis associações e novas sínteses criativas. A sociologia das
associações diverge das abordagens clássicas sobre o social, do que ele chamara de
“sociologia default”, ao partir não do que está estabelecido, do já existente, mas sim ao
seguir os traços dos percursos que conduzem à formação dos grupos e aos seus
refazimentos contínuos.
26
invés de simplesmente enquadrá-los em um determinado contexto social, pode suscitar
novas abordagens sobre as ações refletidas dos sujeitos nos contextos sociais em que se
inserem. Esta é apenas uma das situações em que certas conexões entre o candomblé e o
“mundo externo” tendem a se estabelecer. Isto na medida em que o primeiro enseja a
criação de intersecções dialógicas e canais multivocais, a partir dos quais curiosos,
clientes ocasionais e regulares podem vir a integrar a sua membresia.
43
Ibidem, p. 16.
27
estopim para o estabelecimento de fronteiras, mas pode ser o objeto a partir do qual os
sujeitos constroem novos aportes interpretativos e de ação social.
44
Ibidem., p. 22.
28
enfatizando os seus atributos políticos. Neste sentido, a feitiçaria se presentifica tal qual
um “idioma cultural” em estreita relação com os sistemas coloniais. Ao invés de
promover uma espécie de defesa da tradição ele opera como um “modo de produção
de novas formas de consciência” e de demonstrar a insatisfação com a cultura e as
instituições modernas45 (ibidem.). Ademais, a feitiçaria propõe novas formas de lidar
com as deformidades da modernidade, convertendo-se na “nova magia”, apta a lidar
com as reconfigurações do poder.
A autora citada acima enfatiza a forma pela qual o Obeah foi estigmatizado e
como a ilegitimidade moral é resultado da moralização negativa promovida pelo
discurso colonial. Este estigma persistiu em Santa Lúcia e, atualmente, ainda se pode ser
constatado na visão negativa dos não praticantes do Obeah a respeito deste. No entanto,
além das designações exteriores à prática religiosa, é possível entrever a reconstrução
contínua de um pensamento ético, tal qual se depreende da ética ordinária, ou seja, das
perspectivas dos trabalhadores espirituais e curandeiros identificados com o Obeah.
Meudec, citando Michael Lambeck, nota como a ética é inseparável da condição
humana e, portanto, está presente em todo discurso e ação 46 (ibid., p, 21). Nos estudos
dedicados à economia política da feitiçaria nota-se, segundo Meudec, uma propensão a
minimizar os seus aspectos morais, salientando-se, ao invés disto, os seus atributos
políticos. Jean e Jonh Comaroff, através da categoria de “economia oculta”, se referem
às práticas voltadas à mobilização de recursos mágicos visando fins materiais
específicos ou mesmo a produção de riquezas por meios miraculosos. Em contextos
africanos, é possível notar como, tanto a noção de feitiçaria quanto a noção de oculto,
comportam elementos reativos e avaliativos sobre a modernidade e o capitalismo, sobre
as alterações no modo de distribuir a riqueza e sobre o neoliberalismo. A gestão interna
destas categorias, neste tempo histórico, corresponde ao desenvolvimento de
contradiscursos da modernidade e de seus motes político-sociais, colocando-se nesta
arena como movimentos de resistência e reação às tentativas de subalternização e
redução epistêmica.
45
Ibidem.
46
Ibidem, p. 21.
29
ética dos estudos de bruxaria”47 e que, a seu ver, pode ser observada a partir da
apreciação cuidadosa da economia moral. Quanto a isto, ela ainda chama a atenção para
o fato de que a noção de economia moral no Caribe é utilizada para se referir aos
valores morais associados aos modos das trocas econômicas no contexto ritual48
(ibidem.). Na Dominica, por exemplo, o modo de representar as trocas denota
hierarquias de classe, além das desigualdades sócio-econômicas, configurando, assim,
um conjunto moralmente constituído49 (Mantz apud Meudec). Conforme analisado por
Maarit Forde, a “esfera ritual de troca”, embora tenha experimentado os efeitos do
capitalismo em suas dimensões morais e rituais, no contexto de Trinidad e Tobago
seriam melhor compreendidas se observadas sob o prisma da reciprocidade
generalizada50 (Forde apud Meudec, ANO, p. 23). Em Porto Rico, a economia moral da
bruxaria possibilitou processos de adaptação e reprodução do que ela chamou de uma
“colônia moderna”, na qual os valores capitalistas foram integrados à economia moral
da bruxaria, inviabilizando chamar estas práticas de contra-hegemônicas, sendo mais
pertinente atribuir aos seus praticantes a denominação de “empreendedores
espirituais”51. (ibidem.)
30
consequência da disseminação dos ideais iluministas nas esferas de poder das religiões
ocidentais que, deliberadamente, passaram a interpretar práticas identificadas com a
feitiçaria, com a bruxaria ou com a magia negra como potencialmente prejudiciais e,
portanto, não religiosas. Deste modo, práticas de procedência africana, por admitirem a
idéia de manipulação de forças sobrenaturais, além de outras práticas consideradas
supersticiosas, foram alvo de ações políticas que se reverteram em forte estigmatização
e criminalização.
31
corpo, sobre a doença e o adoecimento. O tipo de racionalização em que estava fundada
esta lógica de ação, pressupunha que a regulação a ser promovida pelos profissionais
médicos promoveria, dentre outros efeitos, a alteração da percepção geral sobre a
doença e suas causas, assim como o monopólio sobre o diagnóstico, em torno dos
procedimentos terapêuticos e outras práticas relacionadas às “artes de curar”. Contudo,
dada a escassez de profissionais médicos nas colônias, as chamadas “artes de cura”
eram exercidas, a maior parte das vezes, por profissionais leigos, dentre os quais negros
escravizados ou forros e indígenas.
53
Ibidem.
32
civilizatórios que punham em funcionamento uma série de ações visando a eliminação
da alteridade, em termos epistêmicos, sociais, culturais e políticos. Um certo modelo
social e cultural, inspirado em parte da Europa, foivem sendo imposto aos habitantes da
colônia e, com ele, hierarquias produzidas a partir da distribuição assimétrica de poder
no tabuleiro colonial. Nesta arena, as diferenças ajudaram a produzir os meios de
operacionalizar o poder, ou melhor, a diferença foi tomada como alvo da empresa
colonial moderna, combatida e tornada objeto de ações deliberadas de docilização, por
meio da catequese, mas também da criminalização e perseguição às práticas religiosas
não cristãs.
Na perspectiva foulcautiana sobre o corpo, este deve ser visto não como um
objeto em si, mas sob a ótica da articulação entre “poder, docilização dos corpos e
constituição de um campo de ação (RABELO, 2005 transformação da experiência,
ANO, p. 135). São ações com incidência sobre outras ações que moldam e tornam
concreto o poder, possibilitando o seu exercício justamente no domínio de constituição
das subjetividades e de suas actâncias. O poder se revela aí de distintos modos, ora
incitando os corpos, ora induzindo-os. Aduz-se, assim, que as novas tecnologias do
poder, desenvolvidas no bojo dos processos de modernização e burocratização dos
aparatos do Estado, têm por objetivo adestrar os corpos, tornando-os vetores e parte
ativa do próprio exercício do poder-saber. Além disto, elas tornam factível a existência
de mecanismos de controle e modulação dos afetos e sensibilidades.
33
No bojo das transformações experenciadas pelas populações subalternizadas,
historicamente estigmatizadas, é possível identificar uma série de tensões em relação
aos modelos civilizatórios impostos. As reações vão desde a absorção de valores
ocidentais europeus às práticas religiosas afro-americanas e ameríndias até à rejeição
daqueles e o estabelecimento de fronteiras epistêmicas e identitárias, menos porosas,
entre os últimos. No Caribe, conforme sugerido por Paton (2009, p. 4), a construção
colonial do Obeah, através das políticas formuladas pelo Império britânico, plasmou a
imagem do atraso e do primitivo, associada à população do Caribe. Esta foi a
justificativa colonizadora para a negação da cidadania e de direitos aos seus residentes 54
(ibid.). Na Jamaica, o Obeah foi criminalizado em 1760, por meio do Act to Remedy the
Evils Arising from Irregular Assemblies of Slaves. Tanto este ato quanto outros
semelhantes publicados durante a escravidão, o Obeah foi caracterizado por “fingir ter
comunicação com o diabo” ou “assumir a arte da feitiçaria”55 (ibid.).
54
Ibidem.
55
Ibidem.
34
essencialmente terapêutica e oracular, sendo que
“calunduzeiro” podia ser utilizado como sinônimo de curador
ou adivinho”.
56
Ibidem., p. 116.
35
povos oriundos da África Ocidental quanto da África Central. Além disto, fica patente
como distintas ontologias sociais do continente africano foram transplantadas para o
continente americano, em cujos contextos, regionais e locais, deram surgimento a novos
modos de organização social e religiosa.
“(...) a dita doença lhe chamam na sua terra calundus e que esta se
pega de umas pessoas a outras [...] e que só a havia de curar e ter
remédio mandando tocar alguns instrumentos e fazendo [algumas
coisas] mais”, entre as quais estariam as esfregas e uso externo de pó,
visando ao exorcismo da doença57 (MOTT apud Parés, 2006, p. 122)..
36
ordinárias. Isto ocorreu na medida em que a figura do curador-adivinho, a atender de
modo individualizado, vai pouco a pouco perdendo espaço, ante a consolidação e
expansão das “roças”, tanto em áreas urbanas quanto em áreas rurais. Contudo,
precisamos avaliar qual foi a principal implicação desta modificação estruturante do
universo afro-brasileiro entre os séculos XIX e XX.
37
Além do importante papel desempenhado pela musicalidade, destacam-se os
saberes e fazeres associados às ervas. Este domínio é regido, segundo os mitos, por
Ossaim, o qual tem a primazia sobre os euês (folhas) (Bastide, 2001, p. 176). Enquanto
Exu e Ifá compartilham atribuições específicas do processo advinhatório, a Ossaim cabe
agir através do axé das folhas, não havendo, portanto, confusão entre os dois domínios.
Eles são complementares. Por isto, Bastide59 (ibid.) recorda como, na África, os
advinhos comumente dispunham de um auxiliar responsável pela coleta das ervas
demandadas. Acontece que, segundo ele “para que o Ifá seja feito, é preciso ao mesmo
tempo fazer o Exu e o Ossaim privativos de cada um” 60 (ibid.). Se o domínio de Ossaim
está na agência sobre as folhas, o de Exu está na abertura de caminhos, nas conexões
que aproximam dimensões apartadas, tornando factível a intersecção e a interação de
distintos “compartimentos do real”61 (ibid.).
Neste sentido, quero propor aqui uma reflexão sobre como estas verdadeiras
operações cosmológicas foram continuamente “refeitas” ao longo da história moderna,
ensejando novas “composições”, cujos efeitos se desdobram também nas ações
interventivas de saúde. Tais composições vêm agregando novos significados no
decorrer dos últimos séculos e ajudando a construir comunidades que se tornaram
famílias (de santo), algumas das quais extensas e com ramificações em outros Estados e
até fora do país. De certo, ao enveredar no estudo das conexões que podem nos levar a
uma compreensão mais acertada sobre conjuntos de práticas de assistência à saúde, nos
defrontaremos com algumas das antinomias (Bauman) da modernidade. Isto porque ao
propor um modelo interpretativo que não exclui a priori a validação da eficácia aos
modelos médicos alternativos, reconhecemos não só a existência de aparatos técnicos
distintos daqueles consagrados pela ciência ocidental moderna e referendados por uma
espécie de chancela tácita da maioria, mas também desnaturalizamos o seu monopólio
explicativo causal e procedimental sobre as formas de agir no e sobre o mundo.
59
Ibidem.
60
Ibidem.
61
Ibidem.
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39
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Ratshidi of Southern Africa. In: American Anthopological Association; University of
Chicago, 1980.
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