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Frederic Jameson
Não há mais, como nos “anos de chumbo” da “Guerra Fria”, aquilo que era
chamado de “arte engajada”, pois naqueles dias ou o indivíduo se posicionava
contra ou a favor da ditadura, do capitalismo, do socialismo... Então, tomarei de
empréstimo a frase preferida do personagem Jorginho quando chegaram ao
presídio de Ilha Grande, em levas cada vez maiores, os presos “comuns”: “as
coisas mudaram por aqui”. A delinquência (Foucault, 1979) será utilizada mais
uma vez em favor das elites e contra as massas. A ironia se confirma no
“recrutamento” quase involuntário de pessoas transformadas em delinquentes
advindas justamente do seio do grupo que a “revolução socialista” deveria
libertar.
Outro aspecto diferenciado no trato das identidades pelo filme diz respeito à
questão de gênero. A exemplo da questão étnica, a esquerda dos “anos de
chumbo” é declaradamente machista como a sociedade brasileira àquela
época. Um tema a mais para a “auto-crítica” dos herdeiros dos movimentos que
combateram a ditadura em nosso país. As personagens femininas da trama
não parecem fugir aos estereótipos que se encontram também em parte
considerável das produções da literatura brasileira. Suas caracterizações
oscilam dicotomicamente entre a de namorada/esposa, mãe/avó, filha “santa” e
a “filha da p.”... O desagravo à classe média, no entanto, não termina por aí. A
filha da personagem Miguel é apaixonada por um traficante que comanda um
dos morros cariocas. O código de “ética” da Ilha Grande, ex-prisão política, não
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A tentativa de ser “fiel ao partido do livro” e filmá-lo “de dentro para fora da
favela” esbarra num obstáculo a tal representação: o narrador-fotógrafo e sua
fala/olho câmera que, não inocentemente, transpõe o foco da enunciação para
o campo da imprensa e do jornalismo policial, aliados ainda ao modo de narrar
do cinema hollywoodiano no tocante aos “filmes de ação”. Quanto à afirmação
que é um “filme sem cenários e sem técnicas de interpretação” parece haver
um deslize ao desconsiderar a inteligência do expectador, mesmo que a
história não tenha sido interpretada, exclusivamente, por atores profissionais. A
questão a sair sob o tapete da cordialidade deveria ser outra: onde encontrar
tantos atores “negros” (ou não-brancos) para atuarem naquela tão premiada
produção? Talvez assim, o argumento de “nos trazer ao menos a sensação do
que é viver a margem” passasse a fazer algum sentido...
1
http://cidadededeus.globo.com/diretor_01.htm , acesso em outubro de 2008.
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Lúcia Murat poderia ser lido apenas como um eco de nossa teimosa
cordialidade em não curar as feridas que permanecem como vivas cicatrizes,
tanto na memória quanto no cotidiano. A narrativa e a realidade que nos
assaltam fazem papel adverso: sacudir expectadores antes que a próxima
duna seja redesenhada pelos ventos e lançada sobre carros nas ruas de
alguma metrópole distante.
Referências bibliográficas
ASSIS, Machado de. O espelho. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1992.
DU BOIS, William E. B. The souls of black folk. Avon Books; New York, 1903.
SARTRE, Jean Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994.
Filmes:
MURAT, Lúcia (direção). Roteiro: LINS, Paulo. MURAT, Lúcia. Quase dois
irmãos. Brasil, 2004.