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CORTIÇOS

UMA OPERAÇÃO DE GUERRA'

Era o dia 26 de janeiro de 1893, por volta das seis horas da


tarde, quando muita gente começou a se aglomerar diante da esta-
lagem da rua Barão de São Félix, n2 154. Tratava-se da entrada
principal do Cabeça de Porco, o mais célebre cortiço carioca do
período; um grande portal, em arcada; ornamentado com afigura
de uma cabeça de porco, tinha atrás de si um corredor central e
duas longas alas com mais de uma centena de casinhas. Além des-
sa rua principal, havia algumas ramificações com mais moradias e
várias coche iras. Há controvérsia quanto ao número de habitantes
da estalagem: dizia-se que, em tempos áureos, o conjunto havia
sido ocupado por cerca de 4 mil pessoas; naquela noite de janeiro,
com toda uma ala do cortiço interditada havia cerca de um ano
pela Inspetoria Geral de Higiene, a Gazeta de Notícias calculava
em quatrocentos o número de moradores. Outros jornais da época,
porém, afirmavam que 2 mil pessoas ainda habitavam o local,"
Seja como for, o que se anunciava na ocasião era um verda-
deiro combate. Três dias antes os proprietários do cortiço haviam
recebido uma intimação da Intendência Municipal para que provi-
denciassem o despejo dos moradores, seguido da demolição ime-
diata de todas as casinhas. A intimação não fora obedecida, e o
prefeito Barata Ribeiro prometia dar cabo do cortiço à força. Às
sete horas e trinta minutos da noite, uma tropa do primeiro bata-
lhão de infantaria, comandada pelo tenente Santiago, invadiu a
estalagem, proibindo o ingresso e a saída de qualquer pessoa. Pi-

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quetes de cavalaria policial se posicionaram nas ruas transversais sabidamente moradores. Várias famílias se recusavam a sair, se
à Barão de São Félix, e outro grupo de policiais subiu o morro que retirando quando os escombros começavam a chover sobre suas
havia nos fundos da estalagem, fechando o cerco pela retaguarda. cabeças. Mulheres e homens que saíam daqueles quartos "estreitos
Os jornais do dia seguinte se deleitaram em publicar a impres- e infectos" iam às autoridades implorar que "os deixassemperma-
. sionante lista de autoridades presentes à "decepação" do Cabeça de necer ali por mais 24 horas". Os apelos foram inúteis, e os morado-
Porco - como dizia o Jornal do Brazil. O prefeito Barata Ribeiro e re~ se empenharam então em salvar suas camas, cadeiras e outros
o chefe de polícia da Capital Federal assumiram pessoalmente o objetos de uso. De acordo com a Gazeta, porém, "muitos móveis
comando das operações; e uma numerosa equipe se fez presente não foram a tempo retirados e ficaram sob o entulho". Os traba-
para auxiliá-los: o dr. Emídio Ribeiro, engenheiro municipal, o dr. lhos de demolição prosseguiram pela madrugada, sempre acompa-
Artur Pacheco, médico municipal, o dr. Frederico Froes, secretário nhados pelo prefeito Barata. Na manhã seguinte, já não mais exis-
da Inspetoria Geral de Higiene, que compareceu acompanhado pelo ~ tia a célebre estalagem Cabeça de Porco.
delegado da Inspetoria no distrito, e mais o fiscal da freguesia, guardas , O destino dos moradores despejados é ignorado, mas Lilian
fiscais, oficiais do exército, da armada, da brigada policial, e alguns Fessler Vaz, autora do melhor e mais completo estudo sobre a his-
intendentes (equivalentes aos atuais vereadores). tória dos cortiços do Rio, levantou recentemente uma hipótese bas-
~ Consumado o cerco policial à estalagem, e posicionados os tante plausível. QJ2ref~ito B2!ata, nU!fl~~~~tp.(.U:9mRa.!!t~ge
técnicos e autoridades, surgiram mais de cem trabalhadores da In- ~enerosid~_ ... ,)n!IDsiQJJ~~JaçyLty:,.ig~l!t~Qºr~qlli;!Jla,bitªy~ aill1~e
tendência Municipal, adequadamente armados com picaretas e .!:~~ilJ!Q,,",ª_Jirª-<!ª~,Qª~._r.Wl9~ir~ ..~_Jwdia1}1_ ser_,ªlKQ.veitadas~
machados. Os empresários Carlos Sampaio e Vieira Souto, tam- 2~~~~.~~!!.s!!2:!Yões.De posse do mater~~ª" erg@LI.!~.JJl~!lgs
bém presentes ao evento, providenciaram o comparecimento de E.asÍJ:!!lasprecá,ܪ_s>-a1guns",mºra..dQf..es. ..de.Yen:Uer.J)ubidQ_Q_.mQg~
outros quarenta operários da Empresa de Melhoramentos do Bra- .que e){:J.~tial,áJJJes.m():.,pm:::detrá:s:dª:es:ta1agem.JlmJ:r~çho..d.Q..gi!o
sil, para auxiliarem no trabalho de destruição. Finalmente, um gru- mQrro,j.áp-~~çiª ª!é..QEY..lli!dQ_Q.Q!~窧.eJ2t~,,-~~p"~IQ meI)52~~~_1as
po de bombeiros, com suas competentes mangueiras, se apresen- ,m:QRrietªfÍ,ªs..do ,,.Çab~.ça.4eY.m:G,(LpO.ssuí;UQ!~~Jlf!..911~las encostas,
tou para irrigar os terrenos e as casas, aplacando assim as densas 'lliiiti~a;; ·~;§.~li~!~ ~:êAt~i,~!.ii$Úl~~S~gÚrrcll!f!fu~~··'p2.lios-?p6
nuvens de poeira que começavam a se levantar. mais tarc!~~!1l1ª97 •.JºiJllstamente.J!~s.§.~.lQ~~L9~~~~~.f<.>~'!Jll e~~a-
O Cabeça de Porco - assim como os cortiços do centro do

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belecer
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com a
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devida
...••'....,...- ~_-' .'_._.._., __ 'o ._;":, .. :•.
autorização
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chefes
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militares,
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os solda-
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Rio em geral - era tido pelas autoridades da época como um @"§'J~gressosda campanhade Canlld()s. Qlyg<I,Tl?ª~SOU então a ser
"valhacouto de desordeiros". Diante de tamanho aparato repressi- chamad(;de-;z-ii;~rro da F~Té~'jX'Jestruição do Cabeça de Porco
vo, todavia, não parece ter havido nenhuma resistência mais séria ;n-cllcou'o-útiéi~-d~~fi~~d~~ uma -~;~, pois dramatizou, como ®
por parte dos moradores à ocupação da estalagem. De qualquer nhum outro evento, o processo em alldamento de erradicação dos
forma, segundo o relato da Gazeta de Notícias, ocorreram algumas ~ços cariocas. Nos dias que se seguiram, o prefeito da Capital
surpresas. Os esforços se concentraram primeiramente na ala es- Federal foi calorosamente aclamado pela imprensa - ao varrer d
querda da estalagem, a que estaria-supostamente desabitada havia mapa aquela "sujeira", ele havia prestado à cidade "serviço
cerca de um ano. Os trabalhadores começavam a destelhar as casas inolvidáveis". Çom efeito, trata-se de algo inesquecível: nem bem
quando saíram de algumas delas crianças e mulheres carregando ê..eanunciava o fim da era dQs cortiços, e a cidade do Rio já entrava'
móveis, colchões e tudo o mais que conseguiam retirar a tempo. _no século das favelas.
Terminada a demolição da ala esquerda, os trabalhadores passa- As repercussões da destruição do famoso cortiço na grand
ram a se ocupar da ala direita, em cujas casinhas ainda havia imprensa do período foram um espetáculo à parte. Na Revista

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lllustroda, o evento foi saudado com um humor asqueroso: o leitor renascer. Ou seja, o Jornal do Brazil parecia temer que o Cabeça de
lili servido de um prato com uma enorme cabeça de porco, de olhos Porco pudesse ressurgir. Na mitologia, a derrota da hidra foi um dos
entreabertos e fisionomia lacrimejante, e sobre a qual se achava trabalhos de Hércules. A moral da história do JB é que Barata Ribei-
li 111 , barata devidamente cascuda e repugnante. A reputação do ro, homem pequeno e magricela, devia ser um Hércules dos "novos
cortiço demolido e a atividade do inseto na cabeça do porco eram tempos", e sua missão era purificar a cidade, livrando-a definitiva-
t '!> .rita em versinhos: mente daquele "mundo de imundície".
Era de ferro a cabeça, Esta narrativa da destruição do mais famoso cortiço carioca
De tal poder infinito do século XIX e suas repercussões nos abrem um leque bastante
Que, se bem nos pareça, amplo de perguntas/É dificil entender o porquê de o Cabeça de
Devia ser de granito. Porco ter sido demolido de forma tão abrupta e violenta, e sem que
providência alguma fosse tomada para acomodar as centenas de
No seu bojo secular moradores envolvidos/Se nos detivermos apenas nos lances do
De forças devastadoras, espetáculo em si, é impossível perceber o sentido de tamanha de-
Viviam sempre a bailar monstração de força, de capacidade de intimidação e, mais funda-
Punhos e metralhadoras mental ainda, não se encontra a explicação para tanto ódio de clas-
se. Os atos de Barata Ribeiro não surpreendem muito, pois esta foi
Por isso viveu tranqüila
o

uma personagem que, valendo-se do apadrinhamento do todo-po-


Dos poderes temerosos,
Como um'lol,iàic,io'ae filã'--'--' - -- ... ' deroso Floriano Peixoto, agiu freqüentemente como um déspota
durante o período no qual esteve à frente da administração da cida-
Humilhando poderosos. _~_ ~.~ .:...._...
de. Mas e a aclamação da imprensa, com suas metáforas de guerra
Mais eis que um dia a barata, e de masculinidade, e seu regozijo na eliminação de um "outro"
-Deu-lhe -natelha almoçá-Ia; oo..o.. '0' •• 0_'
tão unanimemente indesejado?
E assim foi, sem patarata, O que mais impressiona no episódio do Cabeça de Porco é sua
Roendo, até devorá-Ia! 4 torturante contemporaneidade. Intervenções violentas das autorida-
des constituídas no cotidiano dos habitaniê'S da cidade ~. todãSàs
HIII
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icral, as notícias sobre o episódio louvavam a decisão e a
do prefeito com alusões à mitologia greco-romana. Em es-
ªLep;ª~Q~.$~olJQ..{u1Iii.wjy,çi~á~º-"~Qj~··~;]i!gê:;S:()J!l~:p~s
centros urbanos brasileiros. Mas absolutamente não foi sempre as-
lilu ollpúri'O bastante comum na imprensa do período, a Gazeta ~~,. e;;~ 'tr~diçã~'f;T~lgum dia inventada, ela também tem a sua
1IIlIIrdiglll'!\vao prefeito em Perseu, e o Cabeça de Porco em Cabeça
história. O episódio da destmjção do Cabeça de porco se tran~-
di' Medusu: a sim, ficamos informados de que a ação do Barata foi
mou num dos marcos iniciais, num dos mitos de ori em smo, de
I li 1'lIllljosa quanto a do filho de Júpiter, que viajou até as proximi-
orma e conceber a g~Q~ .diferenças sociais na cida-
iludi' dos infernos para dar cabo de um monstro de cabeça enorme e de. Vamos 10cãIízar aqui dois pontos fundamentais dessa forma de
I l\ll'k,j,tl d serpentes, temido pelos próprios imortais. Já no Jornal
lidar com a diversidade urbana. O primeiro é a construção da noção
'/tI ttmztl, havia receio de que a estalagem fosse como "uma hidra de que "classes pobres" e "classes perigosas" - para usar a termi-
1i 1i de que nos fala a mitologia". A hidra era uma serpente de nologia do século XIX - são duas expressões que denotam, que des-
I1l1lttiplllS.abeças, cujo hálito venenoso matava todos os que dela se crevem basicamente a mesma "realidade". O segundo refere-se ao
'I"OX muvurn. Se cortadas, essas cabeças tinham a propriedade de surgimento da idéia de que uma cidade pode ser apenas "administra-

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:]1 da", isto é, gerida de acordo com critérios unicamente técnicos ou publicado em 1840, sobre "as classes perigosas da população na
científicos: trata-se da crença de que haveria uma racionalidade grandes cidades". 6
extrinseca às desigualdades sociais urbanas, e que deveria nortear O objetivo declarado de Frégier era produzir uma descrição
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;E
então a condução não-política, "competente", "eficiente",das polí- detalhada de todos os tipos de "malfeitores" que agiam nas ruas de
).;

.
1

!
ticas públicas. Essas duas crenças, combinadas, têm contribuído
muito, em nossa história, para a inibição do exercício da cidadania,
Pans. Frégier chega efetivamente a recuperar muito do mundo das
prostitutas, dos ladrões e dos espertalhões de todo tipo que pare-
quando não para o genocídio mesmo de cidadãos. ciam infestar a velha Paris; o fato, porém, é que, apesar de seu
empenho e cuidado na análise das estatísticas, ele não foi capaz de
resolver um problema decisivo: seu estudo sobre os "malfeitores"
~SSES POllI?Es., CLASSES PERIGOSAS acabou resultando numa ampla descrição das condições de vida ,\
d~s pobres parisienses e~ ~eral, e ele ~alhou na tentativa de deter- II
A expressão "classes perigosas" parece ter surgido na primei- minar com qualquer precisao a fronteira entre as "classes perigo- ~
ra metade do século XIX. A escritora inglesa Mary Carpenter, por sas" e as "classes pobres". \
exemplo, em estudo da década de 1840 sobre criminal idade e "in- Pois é exatamente onde Frégier empaca, onde ele não conse-
fância culpada" - o termo do século XIX para os nossos "meninos gue extrair idéias claras e distintas de seus dados, que os nossos
de rua"~/, utiliza a expressão claramente no sentido de um gmpo. deputados irão encontrar inspiração para o seu filosofar sobre a
sociaHgrmado à margem da ~ociedªd~ civil. Para Mary Carpenter, questão do trabalho, da ociosidade e da criminalidade na socieda-
as cl'!§:ses petigos~ eram ~ollstituídas peJas pesso~ que já hcu- de brasileira-A'corntssãoparlamentar encarregada de analisar o
ves-sem passado pela 12risão. ou as que, mesmo não tendo siGO pre- projeto de lei sobre arepressão.à.ociosidade vai buscar os funda-
~s, haviam o tado o~ obt mentos teóricos de sua guerra santa contra os vadios - tratava-se
a a rática de furtos e não do trabalh . Em suma, a expres- de uma questão de "salvação nacional" - citando Frégier:
são é utilizada aqui de forma bastante restrita-referindo-se apenas
, As classes pobres e viciosas, diz um criminalista notável, sempre
aos indivíduos que já haviam abertamente escolhido Ul}1aestraté-
foram e hão de ser sempre a mais abundante causa de todas as sortes
gia de sobrevivência que os colocava à margem da Ie.V
de malfeitores: são elas que se designam mais propriamente sob o
Vamos encontrar o conceito de classes perigosas como um
título de - classes perigosas -; pois quando mesmo o vício não é
dos eixos de um importante debate parlamentar ocorrido na Câ- acompanhado pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza no mesmo
mara dos Deputados do Império do Brasil nos meses que se se- indivíduo constitui um justo motivo de terror para a sociedade. O
guiram à lei de abolição da escravidão, em maio de 1888. Preo- perigo social cresce e toma-se de mais a mais ameaçador, à medida
cupados com as conseqüências da abolição para a organização que o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, o que é pior, pela
do trabalho, o que estava em pauta na ocasião era um projeto de ociosidade."
lei sobre a repressão à ociosidade. Nossos parlamentares, ávidos
leitores de compêndios europeus, irão utilizar como fonte nessa O trecho acima é uma babel de idéias - produzida por Frégier
questão alguns autores franceses, cuja definição de classes peri- e alegremente encampada pela nossa comissão parlamentar. Note-
gosas parecia vir mais ao encontro de suas preocupações. Eles se, inicialmente, que já estamos muito distantes da definição res-
recorrem com freqüência, por exemplo, a M. A. Frégier, um alto trita e bastante precisa de "classes perigosas" proposta por Mary
funcionário da polícia de Paris que, baseando-se na análise de Carpenter. De fato, a expressão ganha aqui uma abrangência inau-
inquéritos e estatísticas policiais, escreveu um livro influente, dita. O primeiro enigma a decifrar é se os nobres deputados, ao

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111 I 11111111 I íórrnula "classes pobres e viciosas", pensavam que as idéias vagas, surgidas do nada e da confusão mental, fazem história
1'1111 I I "pohr 's" c "viciosas" significavam a mesma coisa; neste e, como não podia deixar de ser, fazem uma história da pior qualida-
I I li, lodll I) pobres seriam viciosos. Caso esses termos não apa- de. Assim é que a noção de que a pobreza de um indivíduo era fato
I ~1111 101110 sin nimo , ficaríamos coma possibilidade de termos suficiente para torná-lo um malfeitor em potencial teve enormes
"""11 •• pllhl S honestos, trabalhadores - e pobres viciosos- conseqüências para a história subseqüente de nosso país. Este é, por
IIljtll'h 1\'" 'J'iHI11 membros potenciais das classes perigosas. exemplo, um dos fundamentos teóricos da estratégia de atuação. da
() d hlll li parlamentares não respondem à questão com ela- polícia nas grandes cidades brasileiras desde pelo menos as primei-
I 11. 111' ~ possrvcl perceber uma tendência: para os nobres depu- ras décadas do século xx. A polícia age a partir do pressuposto da
111 111 • t prln iipul virtude do bom cidadão é o gosto pelo trabalho, suspeição generalizada, da premissa de que todo cidadão é suspeito
I levu 11' - 'ssariamente ao hábito da poupança, que, por sua de algUma coisa até prova em contrário ~?.iJ~gj.COlalguns cidadãõs
I. I 'V 'rl' m conforto para o cidadão. Desta forma, o indiví- são mais suspeitos~_o que outros. O romancista Lima Barreto, c~
dtlll l\tll 11 o xmscgue acumular, que vive na pobreza, toma-se sua argúcia habitual, já descrevia a estratégia com precisão em Ce-
IIU d I11111Il'1I1 , suspeito de não ser um bom trabalhador. Finalmen- mitério dos vivos, texto publicado em 1921:
I. 1111I0 o maior vício possível em um ser humano é o não-
A polícia, não sei como e por que, adquiriu a mania das generaliza-
1111111I1110, 10 .iosidade, segue-se que aos pobres falta a virtude so-
ções, e as mais infantis. Suspeita de todo o sujeito estrangeiro com
,I 111' S 'n .ial; em cidadãos nos quais não abunda a virtude,
nome arrevesado, assim os russos, polacos, romaicos são para ela for-
1111 \I víci s, e logo, dada a expressão "classes pobres e vi-
çosamente cáftens; todo o cidadão de cor há de ser por força um ma-
II I • , V 'mos que as palavras~'pnbr.es:~e_~viciosas~' .significam a landro; e todos os loucos hão de ser por força furiosos e só transportá-
IIU 111 I 'oisa r ra os parlamentares. veis em carros blindados."
111111 v 'Z ometida essa abstração:õue-ssa-imprecísâo, na ori-
'111 do ru -i cínio - abstração ou imprecisão porque os depu- A suspeita de' que os',~ê.t!;,;;·geiros; fossem cáftens parece algo
IlIdo ohviumcnte nãopodíam. en.contrardados_de realidade.que circunscrito ao período his·tónco no qual Lima Barreto estáinse-
11111I1 uuentusscrn a asserçãode que todo trabalhador honesto ne-
rido, e a referência ao suplício dos loucos pode ser uma reminis-
11 i 111\ li!' escaparia à pobreza-. ' o resto se segue como que
cência pessoal do romancista, já que ele próprio andou sendo

I I"
I

uumhuenl ': s pobres carregam vícios, os vícios produzem os conduzido ao hospício mais ou menos nessa época. Mas e a sus-
111111h'IIUI CS, os malfeitores são perigosos à sociedade; juntando os
peita de que "todo cidadão de cor" fosse necessariamente "um
I1 11111 da .adeia, temos a noção de que os pobres são, por defi-
malandro"?
111\ 11,11 -ri ioso . Por conseguinte, conclui decididamente a comis- N a verdade, o contexto histórico em que se deu a adoção do
li, li 11'1 .lu rsc pobres [...] são [as] que se designam mais propria- ~o,n~eit~d~_"classes perigosas" no Brasil fez com que, desde o
1111'111 - sol o título de - classes perigosas -". Por um lado, a inicio, ~g~seJQJJm.ssem os.?_~eitos preferenciais. Na dis-
IlIIltiHH. o parlamentar foi competente e chegou às suas conclusões cussão sobre a repressão à ociosidade em 1888, a pri~l dificul-
li 111 ló 'ica; por outro lado,ela tirou conclusões a respeito de coisa dade dos deputados era imaginar como seria possível garantir a
1\ nhuma, pois, como vimos, seu raciocínio se desenvolveu a par- organização do mundo do trabalho sem o recurso às políticas de
111 d lima abstração, de um vazio; do nada.
domínio características do cativeiro. Na escravidão, em última aná-
Mas felizmente já se foram os tempos em que os historiadores lise, a responsabilidade de manter o produtor direto atrelado à pro-
11 (I ucr ditavam na possibilidade de as idéias também fazerem his- dução cabia a cada proprietário/senhor individualmente. Este or-
11'11 11. E infelizmente os historiadores hoje já descobriram que até ganizava as relações de trabalho em sua unidade produtiva através

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que fatalmente se prevê como conseqüência da libertação de uma
de uma combinação entre coerção explícita e medidas de proteção massa enorme de escravos, atirada no meio da sociedade civilizada,
e "recompensas" patemalistas - uma combinação sempre arris- escravos sem estímulos para o bem, sem educação, sem os sentimen-
cada, aprendida no próprio exercício cotidiano da dominação. Com tos nobres que só pode adquirir uma população livre...9
a desagregação da escravidão, e a conseqüente falência das práti-
cas tradicionais, como garantir que os negros, agora libertos, se De início, o deputado afirma algo que sugerimos há PO\)co:
sujeitassem a trabalhar para a continuidade da acumulação de ri- o "Estado" passa a iêr o "dever inipérioS"õW"aeagir màis dêçldiJã.-
quezas de seus senhores/patrões? métftê=na'pôffircaãe~ãõsfiàbãTIiãdÕres:Em segui-
~ '~~_.' •..•• "_.- ••-.~ •.,-..:o" • -==--~
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..•,"'-~:.;.,'.._-~-,..,... __; __1",::',$ iA< _t. _ - .•• -. i!:!St: .41:E>

Nesse momento de incerteza em relacão ao que poderia 3COg.> "dà, 'encontramos novamente uma certa confusão de idéias~
tecer,;pruneira myenção que permjtiu pensar a ~ganiz:il~ãe à~ ~tên~~->~~~~~Ii~~~é!~:~t~~I2~~~··~~~.:~~~~~';:~1~i~~-
relações de trabalho em novos termos foi a "teoria" da su 1frov~~ao.~ o "f.ã.t9:"Q~Q,JJ~~~.PQSS;P.J.<!2.Lg~~~~~.,2,U~
$eneraJjza~~ - que é, de fat~\!~~ia . €SS~ "classes- :~cio~" ---:-,rios~~.,dep!!~<!g9 mostra-se inQ<fE!so,,":e!i.m~i!~ment~,aJd-
',.....perigosas". Já qu~ f1~o era mais possívelrr.!..~ter a pwdlJ~ãel'OT
' .... bui os tais vícios do~n$grº~.a "s<:!\!ant!go estado": as cOIldiçõ~L.

~
I ~ ~ meio da propn§a~~do..trabalhaàO~!t~~'
.~<.~;n~ su~~~f,§.~ogenetªlji;;(j;~àam~Rt~ a inveft~ão~e.üiDa-
)e vida ~'o ~ativeiro seriam ..as responsáveis pel~ suposto
. de'sprepãi'o aô-Sex:éscrãvospàfá'aVí4~e,ffi]li.~J;ãaafLôgóadüiri- ~

l v estrategta de remessa$? contmua forjlggs hmJtes da UIlUJade~ .. '. 'te, todavia, e aindanâmeft:i!i~f~as~; oR~laIIlent<lrargum~º~'!-.9º~ .
~ dutiva,Se não era maig..\k~ ..' '. . .... '. â1ef-dê··r3:ae"híâii:r'nãÓiio.deria.mesmo..ter-abolido..os..YÍGiGS=<d0S
'V ..

~ trabalh2z~d!!.l"'estava ªmp!lta&Jb.e,,ª~~.ilillidade,.de nãfi-,,€StaF l~bertos, pois u~~'ici~ão pode trll1l;sf2.rmm:.~.QJme.~tá na namre-


\:'
\.l
regularment;--néMluele
".ê"~~~...--=--,..-_..,...~.....
o.:-'.r:...•• ,...~.~.
lugar. D~i,~p9..(,~.sooulo;"cle"a

-za~: N~':Stlfçasth~Q;;deRiitiilii1\.m.udQ.Y,.,ÇI;Jrªlllimtede.çOQY~sa' os
. questão da manutenção da "ordem" ser =.ercebIda comp al.gQ..~ ~deitos" dos negros não se explicam a partir de Um determina-
~êilcêméãé~~~~~.~ si);;
e instjuli&:gS;S espçcíficas (Jõ'iatü' socIãr= a
~ contrõTé-~ J20lícib :~~ei.r.~L~~i~~d~1.S~!1M:~S!~,Jrabalh@~
etc. Nenhum desses elementos éifáva'no ceme da ..2.ljtiça~Àe4io.-:
extrínseco à
~~-~_~_'~~
~~:Y.r<r~Q;;~Qi~!P...Ji.~...§it!lltrn numcampo
a' "natur~b hJstóriã'
II1§}l!\l-ª!ll:-.seaqui, s~mdú-
'fM,.;_~ ..•...

.vida,- as famigeradas· teorias racistas, ue se tomariam mais i -


~~ '
=-
_' ._-.;:-._.:.4-~~ • . ~~ ~ ;r
..••.• .~~_ •._.....•'-,...
•...~~._. ~....;..... __.~

mio dos tra a .a ores na escravidão;na v~9,ªºe,.até,.1'&;7..1~o fluentes nas déca as segyintes;...e.a.·COllseqüência.disso éque-es
exrstia~sequeraIgum regiSffõgêFãid~ado:. "defeitos" dos negros podem
_._-~--- ser pensados_---_.'---~-"~~'
~---,.-----. como insupe.!.áv~!~, •.....•.•.
-·'·Q§~~~JAWW'IID1.eitõsw~nÇj;Wrohém.4ec:v.ido ~anõd:.:se·-ete-s;-ãSslni, membros potencialmente permanentes
àquilo que os ex-senhores e atuais patrões imaginavam ser o caráter --" -----_._---~_ ..... ..
~ãSs-es-~-ºs~s. - .
'

~tvri:h.io"S"'"e'gtessos do catIveiro. Ao discursar em apoio ao $om estã l;eve análise do surgimento da noção de classes
projeto de repressãõ à oCiosidade, ~ deputado Mac-Dowell resu- "perigosas, já entendem~ em parte como foi possível ao poder_
miu bem a opinião dominante entre os parlamentares a respeito . públi~ agir com tanta violência ~ra o Cabeça de Pgrcol agld.e-
dos libertos: le antro õe suspeitt)"s-:"'KêfestrUlção do cortiço carioca mais famo-
-
~-~'"'_. -:----- - - - -_.' .

Há o dever imperioso por parte do Estado de reprimir e opor um ~ ..d.a~ nãQfÓl,Jimª~ iS~~J.~ slm um..e.vento nQJll.Q..ç~
dique a todos os vícios que o liberto trouxe de seu antigo estado, e sistemático perségmção;~s;e de
tipo de moradiaLo .gJle..Yi!YLa~
que não podia o efeito miraculoso de uma lei fazer desaparecer, por- ~nsifc:ãri~o. õe~aeii~Tõlli~ri2s ..ll1e~~~,~~~~~a d~l-ª'1Qhmas
que a lei não pode de um momento para outro transformar o que está ~~.?~g~9: à,!~i,~le,.riaS~<?_~2.~Ilt,~".?~s_'p~~~!~~S,,~,cl~P:\SlW;-
na natureza. $~".I.~.pu.bli~anas. E .ép.n~çJsp ª.QJ)lenº~_wxnç.~-ºlJilJ_!J~o...u.tro
[...] [A] lei produzirá os desejados efeitos compelindo-se a popu-
lação ociosa ao trabalho honesto, minorando-se o efeito desastroso !?;i.~?~~r~: a~_::~~~!!.~~0~nt~~2.s~0!1~çg.~p.í?~~,~~co~~::~~o:,,!~i_s. 1

25
24
II I~ " oram ~im ort~.s.~!Hírio_g:UJ!!ª ..,Q.p...§Jl.~'s·.da Os males resultantes de uma tal prática são notórios, ninguém
('011' .outra a escravidão nas última's~~lé~c9,Àas-dQ.séculoXI.)(, Em ignorando que essas casas, além de serem o valhacouto de escravos

J 111111 I pnlüv~as, a aeé~ãop~~íii~acl~_exeui~~:, ~;~~;~;p::~: fugidos e malfeitores, e mesmo de ratoneiros livres, tomam-se ver-

l;';,
~:'::,'~:~~;~~~ª::~~~
l)o!H docwnent~s que_relacion~.e~nos
dadeiras espeluncas, onde predominam o vício, e a imoralidade bai-
xo (sic) de mil formas diferentes.
Urgente seria, pois, reprimir severamente semelhante abuso, proi-
bindo-se alugar, ou sublocar qualquer casa, ou parte dela a escravos,
ainda mesmo munidos de autorização dos senhores para esse fim....1I
nlll'lIl vislumbrar a dimensão do problema na visão dos senhores e
\I pl' 'r>O~lO . Em 5 de maio de 1869, a coluna de "publicações a Em suma, segundo a autoridade policial, o problema do
IlI'dldo" do Jornal do Commercio trazia uma carta dirigida ao che- controle social na cidade se agravava pelo fato de os próprios
I di' pol] ia da Corte: . senhores freqüentemente autorizarem que seus cativos vives-
I' dint a S.Ex. mandar dar busca em vários cortiços da Corte, que sem "sobre si". Na verdade, oQ.~LRermi§~ªº-.~lmIa ~iY~r.§()b.Ie
st transformando em asilo de escravos fugidos, em detrimento
O ~"er~.<l~.~~J>.e}~_q,~.~_ o~~~~r_a.Y.2sd~_Ç9.!t~e eII!.P..enhavambas-
ti H US P ssuidores pata jogos e outros atos imorais e prejudiciais. tal}t~,Yiy~lon.g~_Q~.~a~a.d.~ ..senhor e!~~!D:~·~.aI1,~i~-;-d~'adqui-
N 'rfl um grande serviço que prestará S.Ex. aos possuidores de escra- Ti! maior .autoI!9.l!li.al1:ls~iyt<ia4esprodutivas, e '~epresenúlva
VII , IlIC com esperança recorrem ao zelo e justiça de S.Ex.1O ainda apossibiljdadedeIevar umavida p~aticamen.i~_indiferen-
çável em relação à população liYI~ dacidade. Para os senhores,
NI) undo docl1ll!entQ~_habitaçº-e..§. populares -=-.11palavra "cor-
este tipo de arraQ,jo er~uita..LY~S -vant<ijQSo, pois pe~itT~
1 ,o" 1\ o .onst do texto, apesar de ser óbvia a alusão a este tipo
--ª!:@nc~LiQI!]ais mais elevaQ.QS..ao.s...cªt.ivos~ .ª-1.énuie_de.sub.rigá'-
dI' III000udia - também aparecetrr'tmnrresermtferijos 'de escravos
~s_dJ~.Sp_esas COIll.iL5.US1.entQ_dos_llegroS. Para os escravos: à
IlIgtdo., Mas há aqui outro aspecto talvez ainda mais desestru-
maior autonomia de moyimento.tinha ainda a vantagem adicio-
1111 u 1111 da es ravidão 1lTbill1,ª~b proli(exaçào. dos c.Qrtiç()~na ci<ia-
nal de fa~ilit-ªfjº.rnadas e;XJras_º.<;uraballi~Lçºm.2.,_qQjeti~e
I do Rio $0 deu a partir das décadas de 1850 e 186"0, e esteve
ameªlhª~_diI1heir02!:![I_cjenJ~p~~X9:_~9PEa.r:sua liberdad~·ã;~-~e-
1I 1111 10 all~o do fluxo de imigrantes portugueses e ao crescr:=--- nhores.12 .' .. " -----_.- •• __ . __ .--

111 I l uu
número de alforrias obtidas pelos escravos. Além disso,
--crfãt~,porém, é que a multiplicação de situações nas quais
I' 11 (~(I mmunto do documento que se segue, tomava-se cada vez
os escravos obtinham autorização para "viver sobre si" acabou a
111 I 1'011111111 qu os cativos conseguissem autorização de seus se-
longo prazo, se tomando mais um impoitã:í1te' elemento desagre-
11111111' pnru que vivessem "sobre si", como se dizia na época. Ago-
gador da instituição da escravidão na Corte. Não é difícil enten-
I I I 11 pI'úpri chefe de polícia da Corte quem endereça uma cor-
d.er a razão disso. Tradicionalmente, a escravidão sempre havia
li' pOlld n 'ia aos vereadores da Câmara Municipal:
SIdo considerada como uma relação de sujeição e dependência
, \\('relllria d Polícia da Corte, 19 de março de 1860 pessoal; o escravo ficava sob a "sujeição dominical" do senhor,
que também era o único a deter a prerrogativa de decidir a respei-
'IIIIION, Snrs,
to d~ eventual concessão de alforria ao cativo. Tal concepção de
":x illt nesta cidade um grande número de casas alugadas direta- dommação tinha necessariamente como um de seus elementos a
IIH'nl 'l1 scravos, ou a pessoas livres, que parcialmente as sublocam p.roximidade espacial do trabalhador em relação a seu proprietá-
I tI l'I'l\VOS. no. Por isso, quando se generalizou, na cidade, a prática de os

26 27
?r.
-escravos viverem longe dos senhores, este fato introduziu certa ser um ótimo esconderijo, caso houvesse a opção pela fuga. Em
ambigüidade na definição "ortodoxa", por assim dizer, de cati- suma, o que estou querendo sugerir é que o tempo dos cortiços no
veiro. Rio foi também o tempo da intensificação das lutas dos negros
Os escravos não deixaram de perceber que havia aí uma bre- pela liberdade, -e isto provavelmente teve a ver com a histeria do
cha. Em 1865, por exemplo, a escrava Júlia entrou na justiça com poder público contra tais habitações e seus moradores;1
° intuito de obter a liberdade à sua senhora. Entre os vários moti-
vos que arrolou para mostrar que fazia jus à alforria, a negra argu-
mentou, com a devida apresentação de testemunhas, que morava o SURGIMENTO DA IDEOLOGIA DA HIGIENE
havia sete ou oito anos em cortiço no Catete, retirava seu sustento
"de lavar roupas de alguns fregueses" e, além disso, que seus co- ./.~s classes pobres não passaram a ser vistas como classes pe-
nhecidos consideravam-na como pessoa livre. Neste caso específi- rigosas apenas porque poderiam oferecer problemas para a organi->
co, a escrava perdeu a ação judicial, mas há outros exemplos em zação do trabalho e a manutenção dakrdem pública. Os pobres
que alegações semelhantes parecem ter contribuído para que ofereciam também perigo de contágiovPor um lado, o próprio pe-
alforrias fossem concedidas na justiça, à revelia da vontade senho- rigo social representado pelos pobres aparecia no imaginário polí-
rial." tico brasileiro de frns do século XIX através da metáfora da doença
Tudo isso, obviamente, faz sentido: se o cativeiro se defrne côntagiosa: s classes perigosas continuariam a se reproduzir en-
como uma relação de sujeição e dependência pessoal, é razoável ~uan o as crianças pobres permanecessem expostas aos vícios de
supor que uma pessoa que tenha autonomia de decisão quanto à seus pais. Assim, na própria discussão sobre a repressão à ociosi-
moradia-e-aos-seus-meios de-sustento-não esteja S09 o domínio de dade, que temos citado, a estratégia de combate ao problema é
nenhum senhor. Toma-se claro, então, _que escravos vivendo "so- geralmente apresentada como consistindo em duas etapas: mais
bre si" contribuíssem~paraã-fáiêncIa- de significados sociais essen- imediatamente, cabia reprimir os supostos hábitos de não-trabalho

I
j!
, ciais à continuidade ~a ins~i~ição da escravidão. Os negros pressio-
; -~----navam- para.conseguir -o-direito de-morar-fera da casa dos-senhores,
pois percebiam tal conquista como um passo, ao menos simbólico,
no caminho da liberdade.
dos adultos; a mais longo prazo, era necessário cuidar 9.~edl!'?~çãs>_
dos menores.
Por outro lado, os pobres passaram a representar peri
contágio no sentido literal mesmo. Os intelectuais- édico
e

Neste contexto, a importância das habitações coletivas nas grassavam nessa época como .!!!i~~rr.!~na putrefação, ou como
últimas décadas da escravidão começa a se evidenciar: para escra- economistas em tempo de inflação: analisavam a "realidade", fa-
vos, assim como para libertos e negros livres em geral, as alterna- ziam seus diagnósticos, prescreviam a cura, e estavam sempre ina-
tivas viáveis de moradia na Corte, no período, eram cada vez mais balavelmente convencidos de que só a sua receita poderia salvar o
os cortiços e as casas de cômodos. São vários os exemplos de es- paciente. E houve então o diagnóstico de que os hábitos de mora-
cravos que moravam em cortiços, ou que tinham suas amásias dia dos pobres eram nocivos à sociedade, e isto porque as habita-
morando em cortiços; além disso, encontram-se famílias de ex- ções coletivas seriam focos de irradiacão de epidemias, além de,
escravos que conseguiam se reunir e passar a morar juntos em ha- naturalmente, terrenos férteis para a propagação de vícios de todos
bitações coletivas após a liberdade. Com freqüência, era nestas os tipos.
habitações que os escravos iam encontrar auxílios e solidariedades Ao que parece, os administradores da Corte começaram a notar
diversas para realizar o sonho de comprar a alforria a seus senho- a existência de cortiços na cidade nos primeiros anos da década de
res; e, é claro, misturar-se à população variada de um cortiço podia 1850. Uma epidemia de febre amarela, em 1850, e outra de cólera,

28 29
111I H • l lcvurum bastante as taxas de mortalidade e colocaram cortiços, de autoria do fiscal da freguesia de Santa Rita, foi apre-
1111 01dl'llI do dia a que tão da salubridade pública, em geral, e das sentado aos vereadores." Na introdução ao projeto, o fiscalargu-
I IIIHII,' 11 hi i I icas das habitações coletivas, em particular. Foi mentava que "o preço elevadíssimo das casas nesta Capital deu
I I IId I 1111o 1\ Junta Central de Higiene, órgão. do governo impe- lugar à fundação de moradas, conhecidas pelo nome muito signifi-
II11 IH'irro tudo de zelar pelas questões de saúde pública, e a Câ- cativo de cortiços, onde em pequenos quartos habita uma grande
1111111 Municipal d Corte passou a discutir medidas destinadas a população das classes menos abastadas, como é sabido". O au-
u- 1111111 '111ma exi tência das habitações coletivas. mento nos preços dos aluguéis para as "classes menos abastadas"
1<,111,''I .rnbro de 1853, a comissão de posturas da Câmara ana- estava certamente ligado às transformações na demografia urbana
1I 111111111 pl'(~;'lo de "Regulamento dos Estalajadeiros", que lhe fora do Rio no período, já referidas anteriormente: o crescimento do
I m' 1111 nhudo pela Secretaria de Polícia." É lógico que a preocupa- fluxo imigratório de portugueses, o aumento do número de alforrias
\ li ti I uuloridades policiais era "prevenir que pessoas suspeitas de escravos, e a prática cada vez mais comum de permitir que os
1111(0111 1(1-il abrigo nas casas a que ele [o regulamento] se refere, cativos residissem "sobre si".
111I IIlIdll 1\ ivitar desordens, e outros crimes que por ventura pos- Aqui, novamente, os cort!.ços são vistos tanto como um pro-
11111'11'0111 ,tido ". Os vereadores da comissão de posturas julga- blema para o c2.11y~le social dos pobres~u~~o como ~ma amea-
111111 \I PlOj to de "urgente utilidade pública", e ainda acharam por çãpãia as ~d!s:õel'J!igi~niças da cidade. O fiscal de Santa Rita
li 111,'I li' -10 de algumas disposições "em relação à salubridade óeclaiãVã-se-p;eocupado em garantir a "facilidade da existência
(llIhl " r". () artigo primeiro definia como estalajadeiro "o indivíduo dos pobres", e propunha uma série de medidas visando a impedir
'1" ti 11 I zasalho ou pousada por dinheiro, qualquer que seja a deno- que os cortiços se tornassem "focos de .vícios" ou de transgres-
111IU'\' o du asa em que a dei""'=""::- estalagem.hospedaria, cortiço ou sões "da moralidade dos costumes", assim como "asilos perma-
hllll'l, 1~J1lr' s medidas destinadas-a-facilitar a vigilância da polícia, nentes de infecções deletérias da saúde pública". As medidas pro-
hnviu i obri atoriedade de o estalajadeiro possuir um livro de con- postas obrigavam os proprietários a efetuarem "todos os reparos
tI"I" de »urada e saída de hóspedes ou moradores, e no qual estes ,e melhoramentos que forem exigidos pelo Dr. Delegado da Junta
tur] 1111 cuidadosamentéidéntificádos. Os subdelegados deveriam de Higiene Pública da freguesia respectiva", proibiam a existência
li",' 11' [ücntemente as habitações coletivas, certificando-se de que de "casinhas colocadas nos lugares onde há animais e carroças"
I I 11li. ' .ncontravam vadios, estrangeiros em situação irregular e - só carroceiros sem família poderiam residir nas cocheiras -,
1'1 . li IN"susp itas", ou que causassem "desconfianças" e "receios" determinavam o calçamento e a iluminação dos pátios, e a colo-
1111111 .atcgoria tão abrangente e ambígua que era potencialmente cação de pilastra com água. Havia ainda a exigência de lugares
111I 'onlrn quaisquer dos moradores de tais habitações. Quanto às apropriados para as latrinas. A Câmara Municipal forneceria os
I cuuliv 's de higiene, os estalajadeiros eram obrigados a conservar vasilhames para a condução das "matérias fecais e águas servi-
! -
1111.'lisa' no "melhor asseio possível", conduzindo "o lixo, as águas das", ficando tambérri encarregada de remover tais "matérias"
II;IIN,' utras matérias imundas" para os locais onde era permitido todos os dias às cinco horas da manhã; os "fundos" para essas
IIIk-SP 'Jo. Ficava proibido o depósito de lixo e "matérias fecais" em
I operações seriam "solicitados do governo". Finalmente, todos os
I'lIvas feitas no quintal, ou em qualquer outra parte da casa. Os fis- cortiços deveriam ter um portão de ferro, que se fecharia ao to-
lais das freguesias deviam zelar pela obediência ao regulamento. j que de recolher; a partir dessa hora,um dos habitantes passaria a
Ape ar da opinião favorável da comissão de posturas, o regu- servir de porteiro, ficando com a obrigação de abrir a porta para
111111 .nto não parece ter sido adotado pela Câmara Municipal. Em os outros moradores e de comunicar as eventuais irregularidades
I osto de 1855, um projeto de posturas a respeito unicamente de ao inspetor de quarteirão.

I
30 ! 31
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J
..
Pelas sugestões do fiscal de Santa Rita, não há que duvidar de chegamos ao segundo ponto do documento: a Secretaria de Políci I
suas palavras ao afirmar que sua intenção era melhorar as condi- sugeria a formulação de uma política destinada a promov r I li

ções de vida nos cortiços existentes, fazendo com que "esses luga- edificação de habitações cômodas para o povo". Eram prop sto
res" deixassem de ser "focos de enfermidades". "A pobreza que ali incentivos aos construtores, incluindo um "adiantamento pecuniárlo
se asila", obtendo assim mais proteção e comodidade, "conservará por prazo razoável" e a "concessão de isenção de impostos". Gil
sua saúde". Nenhuma das sugestões mencionadas, porém, foi aco- quanto medidas definitivas não fossem tomadas nesse sentido, .
lhida pela Câmara Municipal, que se contentou em adotar apenas diante da gravidade da situação, o oficio sugeria que a própria ' •
o item nove do documento do fiscal: "Não será permitida a cons- mara Municipal bancasse a iniciativa de construir habitações, "qu •
trução de novos cortiços sem licença da Câmara, e nessas constru- seriam alugadas aos artistas e pessoas pobres por quantia módica",
ções serão guardadas todas as condições higiênicas e não serão O Ministério do Império encaminhou o documento em quest o 1\
habitáveis sem aprovação da Junta de Higiene Pública" .16 Câmara Municipal, e parece que lá ele não suscitou nenhum efeito
Os vereadores, então, pareciam se preocupar apenas com as prático.
condições higiênicas das habitações coletivas do futuro. Outras É possível discemir com clareza o eixo fundamental de todn
vozes, todavia, concordavam com o fiscal de Santa Rita na opinião essa primeira década de discussão sobre os cortiços: era necessário
de que algo precisava ser feito quanto aos cortiços existentes. Em melhorar as condições higiênicas das habitações coletivas existen-
oficio enviado pela Secretaria de Polícia da Corte ao Ministério tes. Tratava-se, primordialmente, de uma preocupação com a qua-
dos Negócios do Império, em março de 1860, eram novamente os lidade da habitação popular, de legislar no sentido de obrigar s
preços "de tal modo exagerados" dos "alugueres de casas" que proprietários a construir residências que zelassem minimament
'-explIcavani'ósurginieritoe a proliferação dos cortiços."? O doeu- pela saúde dos moradores - deveria haver coleta regular de lixo,
mento.da.Secretaria-de-Polícia, porém, avançava a discussão em latrinas limpas e em número suficiente, calçamento, janelas am-
pelo menos duas direções. Em primeiro lugar, há aqui a idéia de plas etc. A maneira de encarar o problema, todavia, iria mudar
que as condições de vida nos cortiços não se revelavam mais letais radicalmente. nas décadas seguintes: na forntuJ?s..ão ..deMauríci
-.------.----.-----...-aijenas-quandó'cfã"ocórrêricíii"de "fetires" ou epidemias na Corte; de Abreu, a ênfase deixaria de ser prioritariamente eformalss con-
na verdade, era a "tísica", isto é, a tuberculose, que ameaçava "tor- dições da moradia.le passaria a ser o espaçolo local da habitaçãoj'"
nar-se moléstia endêmica do país". Em outras palavras, o que pro- A mudança já se anunciava em outro projeto bastante deta-
vava que as condições de saúde pública estavam se deteriorando lhado para a adoção de posturas referentes a cortiços, apresentad
não era apenas a ocorrência eventual de epidemias de febre amare- à Câmara Municipal da Corte pelo dr. José Pereira Rego, em feve-
la, varíola, cólera etc., mas a mortandade crescente e constante reiro de 1866.19 Na ocasião, Rego era vereador e estava havia pou-
pela tísica, uma doença que o saber médico da época já associava co exercendo o cargo de presidente da Junta Central de Higiene,
diretamente às condições de miséria em que vivia a população. função que desempenharia por quase duas décadas. Seu projeto
Ou seja, o documento da Sec~etaria de Polícia er~ capaz de estabelecia que "é absolutamente vedado construir novos cortiços"
colocar o problema dãsa6de pública num contexto mais amplo 'de em toda uma extensa .área compreendendo boa parte das fregu -
deterioração dascondições de vida. dos pobresêin geral. Até esse sias centrais da cidade, "ainda mesmo dentro dos quintais ou chá-
momento não par~~ia possível pensar' .aquestãodas habitações caras; assim como reconstruir aqueles, que já existem". A Câmara
coletivassegundo ps paI"~etros estritamente técnicos da Higiene; não adotou de imediato as sugestões do vereador e higienista; o
ao-contrário, este era um problema social, aser solucionado a par- fatº-'-.contudo, é gue ..Í(ld~a disclls!ião~QIIlOJias..habita-
tir de decisões políticas claras dos govemantes da cidade. Assim, ções populares se modificaria nos anos seguintes.
--.-- __ ••• • -- -_.....,.~_ ••• _._. ~ __ ~ __ •• _-- __ 0'

32 33
primeiro fruto da nova maneira de pensar a questão surgiu os 'políticos e govemantes nas últimas décadas do século XIX. Em
COIII li po tura de 5 de dezembro de 1873: "Não serão mais permi- primeiro lugar, está presente a idéia de que existe um "caminho da
tld 111 as construções chamadas 'cortiços', entre as praças deD.Pedro civilização", isto é, um modelo .de "aperfeiçoamento moral e ma-
II ( nze de Junho, e todo o espaço da cidade entre as ruas do terial" que teria validade para qualquer "povo'Lsendo dever dos
Rin .huclo e do Livramento"." Em setembro de 1876, outra postu- govemantes zelar para que tal caminho fosse mais rapidamente
"li re forçaria a proibição, esclarecendo que a interdiçãoãxconstru- . percorrido pela sociedade sob seu domínio. Emsegundo lugar, há
. o dc cortiços val~a mesmo quando os pro?rietários i~'sussem a afirmação de que um dos requisitos para que uma nação atinja a
'Jl1 'h má-los "casinhas ou com nomes eqUlvalentes":2fÉstavam "grandeza" e a "prosperidade" dos "países mais cultos" seria a so-
N' 11 ndrando os instrumentos legais para li guerra de extermínio lllyão dos problemas de higiene pública. .
contra os cortiços ou -:- o que dá quase no mesmo - para a políti- /j .O resultado dessas duas operações mentais é o processo de
'U de expulsão das "classes pobres"/ "classes perigosas" das área# /' configuração dos pressupostos da Higiene como uma ideologia:
. rurais da cidade. ou seja, como um conjunto de princípios que, estando destinados a
Mas antes de passarmos às batalhas, cabe extrair outra lição conduzir o país ao "verdadeiro", à "civilização", implicam a
lmp rtante do projeto de posturas de Pereira Rego. A introdução despolitização da realidade histórica, a legitimização apriorística
'S .rita pelo autor, em que se justificaa preocupação com a prolife- das decisões quanto às políticas públicas a serem aplicadas no meio
ração dos cortiços, explícita de forma bastante didática algumas urbano. Esses princípios gerais se traduzem em técnicas específi-
id (ias que se tomariam em breve o senso comum dos administra- cas, e somente a submissão da política à técnica poderia colocar o
d res da cidade:-- ---- - ----------.- Brasil no "carnil)ho da civilização". Em suma, tomava-se possível
imaginar que haveria uma forma "científica" - isto é, "neutra",
o aperfeiçoamento e progresso da higiene pública em qualquerpaís~-'-'--"'-'''- supostamente acima dos interesses particulares e dos conflitos so-
simboliza o aperfeiçoamento moral e material do povo, que o habita; ciais em geral- de gestão dos problemas da cidade e das diferen-
é o espelho, onde se refletem as conquistas, que tem ele alcançado ças _sociajs nela existentes/ I
no caminho da civilização." -_.~._---_. --------.-~---.---~_.--.-.--------- .--.-.----.--..-"." ----
Tal ordem de idéias iria saturar o ambiente intelectual do
Tão verdadeiro é o princípio, que enunciamos, que em todos os país nas décadas seguintes, e emprestar suporte ideológico para a
países mais cultos os homens, que estão à frente da administração
ação "saneadora" dos engenheiros e médicos que passariam a se
pública, procuram, na órbita de suas atribuições, melhorar o estado
encastelar e acumular poder na administração pública, especial- .
da higiene pública debaixo de todas as relações, como um elemento
mente após o golpe militar republicano de 1889. Mas insistir na
de grandeza e prosperidade desses países ...
importância de conceitos como "civilização", "ordem", "progres-
Entre nós, porém, força é confessar que as municipal idades [...]
têm-se esquecido um pouco dos melhoramentos materiais do Muni-
so", e outros afins - os correlatos como "limpeza" e "beleza", e
cípio e do bem-estar, que deles pode resultar a seus concidadãos,
os invertidos tais como "tempos coloniais", "desordem", "imun-
tanto que sobre alguns pontos essenciais e indispensáveis ao estado dície" etc. - não nos leva muito além da transparência dos dis-
higiênico, parece que ainda nos conservamos muito próximos aos cursos, da observação da forma como eles se estruturam e daqui-
tempos coloniais." lo que eles procuram afirm<;r.na sua própria literalidade, e através
da repetição ad nauseam.yõ que se declara, literalmente, é o de-
o discurso do vereador e higienista, partindo da oposição en- sejo de fazer a civilização européia nos trópicos; o que se procu- .?t
tre "civilizaçã~ . " ostula dois princípios es- ra, na prática, é fazer política deslegitimando o lugar da política
enciais para ~ompreensão de um imaginán em' gestação entre na história. . ~
-----~-~
34 35
AS BATALHAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA da Freguesia dando ordens ou consentindo que seus agentes andem
perseguindo e maltratando os míseros tavemeiros e quitandeiros, e
A afirmação da Higiene como a ideologia das transformações que quando encontra quem lhe ponha embaraços, venha abrigar-se
urbanas da virada do século esteve longe de ser um processo linear sob o manto da proteção da Illma. Câmara.
e sem conflitos. Pelo contrário, a leitura dos documentos produzi-
À primeira vista, parece tolice relatar essas picuinhas entre
dos pelos ftrncionários e autoridades da cidade do Rio no período
ftrncionários subalternos. Mas, como já dizia Shakespeare, "There
revela o debate intenso que agitava os bastidores da administração is history in ali men's lives" [Há história na vida de todos os ho-
pública, sendo que a questão das habitações coletivas, e especial- mens]. Pois é, e então tais picuinhas nos ensinam alguma coisa.
mente os cortiços ou estalagens, esteve sempre no centro das con- Q)Em primeiro lugar, as autoridades policiais utilizam uma retórica
trovérsias. Apesar do emaranhado de versões conflitantes , ou tal- semelhante à dos higienistas, e clamam por ação contra a suposta
vez por isso mesmo, é possível identificar algumas tendências e imundície de um cortiço e o despejo irregular de lixo. Esse tipo de
reconstruir as alianças e confrontos que marcavam o vaivém si- procedimento se acentuará a partir da década de 1870; na verdade,
nuoso da burocracia da época. higienistas e autoridades policiais estarão quase sempre do mesmo
Em 5 de maio de 1864, o chefe de polícia da Corte oficiou à lado da trincheira em se tratando de cortiços. Em segundo lugar, o
Câmara Municipal reclamando providências sobre problemas que QJ fiscal da freguesia deixa claro o seu partido ao acusar o subdelegado
estariam ocorrendo na freguesia de Santa Rita. O subdelegado lo- de perseguição aos "míseros tavemeiros e quitandeiros". E aqui há
cal o informara da existência de um cortiço "muito imundo", sem outra tendência: fiscais e proprietários estarão freqüentemente do
n~~.r~ç!Ql!C?.~~2~,_~~l!llU?:,_ eainda por cima fiscalizado por mesmo lado contra as incursões de higienistas e policiais, se bem
um escravo do proprietário." Além disso, o subdelegado reclama- que esta é uma aliança precária e pontual. A Câmara Municie,al
va de dois terrenO"s-que-nã6~stavanrcefcados, permitindo o despe- estará no centro do fogo cruzado - o cargo de prefeito só passará
jo de lixo por parte dos moradores da vizinhança e a pousada de aexlstiT-emfinsde-i892-=-~-;gü~ntando as pressões dos diferentes
_.__
.._~'gl~f~Hot:~~~!!L!lojje~.e~çuras~'.Nada disso, porém, dera realmen- grupos de interesse e tendo, em última análise, a responsabilidade
te motivo ao ofício: a questão era que o subdelegado e o fiscal da de traçar as políticas públicas a serem adotadas em relação às habi-
.freguesia haviam entrado em rota de colisão, e isto supostamente tações coletivas. .'
porque '0 agente municipal nada fizera para solucionar os proble-
mas apontados pela autoridade policial.
O fiscal de Santa Rita rebateu a acusação com veemência.
I
./
Personagens em ~esta seguirmos as linhas principais do
enredo. Para destrinchar a papelada da administração municipal, é
preciso ter em mente o ritual necessário para a obtenção de licença
Quanto às irregularidades no cortiço, ele achava "admirável" que para a construção de cortiços. Corno vimos, o edital de agosto de
o subdelegado ignorasse as obrigações da polícia no assunto; se- 1855 exigia a perroissão da Câmara para tais edificações, sendo
ainda necessário que a Junta Central de Higiene considerasse ha-
gundoele, cabia ao fiscal zelar pela limpeza de tais prédios, e esta,
garantia, se achava em "estado regular". Quanto aos terrenos, eles
I bitável o prédio planejado. Para exemplificar os procedimentos de
eram objeto de uma pendência judicial, logo não havia de quem praxe, temos o caso de José Antônio Mello, dono de uma cocheira
exigir o cercamento. Finalmente, um contundente contra-ataque:
I na rua de Santa Luzia, freguesia de São José, e que, em novembr
de 1871, solicitou à Câmara permissão "para fazer quartos, nos
É de sentir que no cartório do Subdelegado se forjem reclamações e fundos da dii:a cocheira".24 Na Câmara acharam que a licença po-
se inventem histórias para comprometer-se a alguém, que mais direi- dia ser concedida, obedecidas as posturas e, "no caso de ser para
tos tem para queixar-se de uma autoridade que s.econstituiu Fiscal
fazer cortiços", respeitado o edital de 1855. Precisava ser consul-

36 37
·1
I

I til t 1'111 O, <l Junta


Central de Higiene. Os higienistas concorda- de-prédios, tendo um segundo pavimento acaçapado como o primei-
I 1111 \'0111 LI nc ssão, desde que os animais existentes no local ro e ao qual se ascende dificilmente por escadas íngremes, circunda-
111 ,1111 dul] retirados, "porque de outra forma não há espaço para a
do também por varandinhas de gosto esquisito e contextura ruinosa.
Isto que aí fica resumido é o "cortiço"."
'1111 11 \1(,:. o de tais cortiços, além de ficarem eles em más condi-

\11 lIi ri ni 'as". A Câmara autorizou em definitivo, mantida a Por um lado, a descrição de Backheuser é preciosa porque
I' I illdu feita pela Junta Central de Higiene. Todo o procedimen- nos informa acerca da divisão do espaço interno das casinhas de
lu dut 011 lOUCO mais de um mês. estalagem e do uso que os' moradores faziam de uma área tão
A p 'sal' da aparência meramente protocolar, há tutano nessa reduzida; temos, assim, acesso a alguns costumes e conc~P.ÇQ,es
IIt lúri I. P'\I'a Mello, o solicitante, a intenção era "fazer quartos"; o populares sobre a moradia no per!.Q9.Q.Por outro lado, constata-
1 '11101 dll .ârnara apenas levantava a hipótese "de ser para fazer se-que Backheuser tinha pouco a oferec~ possibilitar uma
I 011 h;OS"; os higienistas não tinham dúvidas de que se tratava de diferenciação objetiva entre:êSt~,êçQí!iÇ~a verdade, os
'"11 11111,'<0 d cortiços. Afinal, o que determinava que uma dada cortiços eram as "estalagens ;ntígãS", malconservadas e onde as
1111111 1\', () .olctiva fosse identificada como um cortiço? Como já
condições higiênicas eram precárias. As descrições parecem su-
1111\ 11011 l.ilian Fessler Vaz, esta era uma questão dificil para os
gerir que a presença de um segundo pavimento era mais comum
, 111111 11I por n os, e uma boa parte das controvérsias entre higienis-
nas estalagens antigas ou cortiços; o próprio autor, porém, con- .
111• poll .iais, proprietários, fiscais etc. girava em tomo da defini- c1ui em seguida que "na 'estalagem' e no 'cortiço' o facies é
\ 1\ pl'l' 'isa de sa palavra."

!Iv -rurdo Backheuser, autor de um trabalho clássico sobre as


I . igual"." O que se extrai do texto de Backheuser éque o elemento J íl
-'.:1' -_._._,--- -. ·decisiv.b.·na identificação de uma habitação coletiva co~o um ~~
11 1111111,' l'S populares do Rio na virada do século, tentou explicar a _, . .._""...cortiço era mesmo o julgamento do observador: nos cortiços as .
dlh'Il'lI~tI mtre estalagem e cortiço. O texto de Backheuser foi pu-
alcovas eram mais quentes, baixas e escuras; não havia separa-
hl i 1110 P 'Ia primeira vez em 1905. Era o tempo do bota-abaixo do
ção adequada entre as famílias, sendo a vida "mais promíscua".
li' li' to P ereira Passos, e a campanha contra os cortiços, portanto, já- __ o •••• -- -'Todõs esses elementos sãoobviamente subjetivos - isto é, su-
1 1111 1 ilcunçado grande parte de seus objetivos. Backheuser defme
jeitos a avaliações radicalmente distintas dependendo dos inte-
I 1IIIIHlIII ' m um leve toque de humor, e outro de preconceito:
resses ou do ponto de vista de cada observador-,o que faz com
1't1qllt:nflscasinhas de porta e janela, alinhadas, contornando o pátio, que Backheuser explicite o caráter fortemente ideológico de toda
\I hubitações separadas, tendo a sua sala da frente ornada de regis- a discussão: "há 'cortiços' onde se penetra com o lenço ao nariz
110 li' santos e anúncios de cores gritantes, sala onde se recebem e de onde se sai cheio de náuseas"."
L ittlS, onde se come, onde se engoma, onde se costura, onde se Há sem dúvida semelhanças relevantes entre os conceitos
III1t1dizdos vizinhos, tendo também a sua alcova quente e entaipada,
I parada da sala por um tabique de madeira, tendo mais um outro
de ~ "€os
e de perig~': ambos supostamente des-
crevem "realidades" a respeito dos hábitos das mesmas pessoas
qu trt inho escuro e quente onde o fogão ajuda a consumir o oxigênio,
ÇIlV ncnando o ambiente. Dorme-se em todos os aposentos."
- as'~sSe-sp~-, e se caracterizam muito mais pela
fluidez, pel;am6Igüfdade, do que por qualquer esforço conse-
1':111 icguida, a definição de cortiço: qüente de precisão de concei1Qs. Esta ambigüidade, obviamen-
te, é carregada de significados: como se trata de conceitos alta-
As 'slalagens antigas têm um aspecto mais primitivo, mais grotesco,
lIIais mal acabado. São ligeiras construções de madeira, que o tempo mente estigmatizantes, a imprecisão aumenta infinitamente a
'ons lidou pelos consertos clandestinos, atravaricadas nos fundos possibilidade da suspeição, ampliando assim a esfera de inter-

38 39
venção das autoridades públicas e comprimindo, por conseguin- estava devidamente licenciada pela própria Câmara, o projeto apro-
te, a cidadania. vado estava sendo seguido à risca, e que, portanto, nada havia a
Enfim, "cortiço" foi o termo que as autoridades sanitárias pas- fazer a respeito.
saram a utilizar quando desejavam estigmatizar em definitivo de- Neste caso, não se sabe de onde partiu a denúncia sobre a
terminada habitação coletiva. Backheuser escreveu seu texto num construção supostamente irregular; ficamos apenas com o fato de
momento em que tal estratégia já havia triunfado e produzido re- que aquilo que o denunciante chamava de cortiço não coincidia
sultados importantes; se voltarmos para a década de 1870, recupe- com o que o fiscal da freguesia e a própria Câmara entendiam por
ramos ainda o calor da luta. Os critérios para a identificação dos tal. A julgar pelas histórias em que esse tipo de dado está disponí-
diferentes tipos de habitação coletiva eram então ainda mais inde- vel, a denúncia podia partir de um vizinho, da imprensa, da autori-
finidos, pastosos mesmo, se acomodando aos interesses de ocasião dade policial, ou da própria Junta Central de Higiene. Qualquer
das partes em confronto. Cubículos originados de subdivisões in- que fosse a origem da informação, Qi.fiscais de fr~g!!~iiã:::geral-
ternas num casarão eram cortiços? Quartos construídos no fundo mente se empenhavam em desmenti-Ia, defendendo assim a lisura
do quintal de uma residência, ou de uma fábrica ou oficina, eram de sua atuação no cargo.
cortiços? Chefes de família que alugavam cômodos em suas casas, Eles tinham também suas queixas em relação à atuação da
às vezes até o sótão e o porão, seriam corticeiros obrigados a pagar Junta de Higiene. O fiscal da freguesia do Espírito Santo escreveu
impostos à municipalidade? Numa cidade em crescimento acele- para os vereadores em novembro de 1875, respondendo a reclama-
rado e com déficit crônico de moradias, todos esses expedientes ções dos higienistas: "que na Freguesia a meu cargo, não me cons-
foram bastante utilizados. Parecia haver algum acordo apenas em ta que se edifiquem da noite para o dia cortiços em lugares insalu-
tomo do que era habitação cõlefiva,~éõmõ definia, porexemplo, a bres, muito menos sem licença". O problema na área eram "as valas
postura de 15 de setembro de 1892~..:~São-todas..as que abrigarem públicas" que corriam "por dentro de terrenos particulares", impe-
sob a mesma cobertura, ou dentro da mesma propriedade, terreno dindo que os proprietários melhorassem as condições higiênicas
etc., indivíduos de famílias diversas, constituindo unidades sociais de seus prédios. Na versão do fiscal, inúmeras reclamações já ha-
iiidépérideriiés "-:>0-- - - ------ - -. --- ---- --- ---.-- -- - - --- - --- viam sido feitas à Junta para que se tomassem providências "para
r:ill..SBum _~epermanece dificil defrnir de forma inequívoca o acabar com semelhante abuso, prejudicial à salubridade pública".
que.era um-ºo~ o fato é que as controvérsias em tomo de tal Concluía dizendo que se devia solicitar do governo imperial pro-
definição emcada caso específico nos abrem uma enorme janela vidências para que os habitantes da área "gozem do beneficio do
_.~
para a:_(jbservãç~
....
ejiitefpretàç~
"--. -~
do processo histórico do perío-
do. O debate assumiu cáráfér mais decisivo após o edital de de-
es goto". 33
Há duas maneiras de abordar a estratégia de defesa escolhida
zembro de 1873, proibindo expressamente a construção de corti- pelo fiscal de Espírito Santo. Por um lado, o fiscal se mostra esper-
ços numa extensa área do centro da cidade." Em novembro de to ao se utilizar das armas forjadas pelos próprios higienistas: não
1874, por exemplo, o fiscal da freguesia de Sacramento foi chama- exigindo do governo providências quanto às valas abertas existen-
do a se explicar sobre uma denúncia de que se estava construindo tes no local, a própria Junta se tomava culpável por negligência
um cortiço na rua Espírito Santo, canto da do Senado." O fiscal em assunto de salubridade pública. Assim, a higiene nas moradias
respondeu à Câmara Municipal que "no lugar indicado não se está particulares ficava prejudicada pela deficiência na prestação de
construindo cortiço algum, a menos que se queira assim chamar a serviços pelo poder público. Por outro lado, a opção de defesa do
quatorze acomodações em primeiro e segundo pavimento que se fiscal implicava uma concordância tácita com o pressuposto de
estão acabando de construir ...". O fiscal informava ainda que a obra atuação dos sanitaristas: a questão da saúde pública consistia es-

40 41

.1
I t-u .iulrn nt no controle da higiene das habitações - particular- seus inquilinos. Por isso, fica com a palavra o higienista-mor do
111('111' as da "classes pobres"/ "classes perigosas". O problema é período, José Pereira Rego, presidente da Junta de Higiene, já en-
qru- '!lHepressuposto significava deixar de considerar outros as- tão o barão do Lavradio. No caso em questão, ele estava indignado
111' -tos relevantes para a saúde da população, como a nutrição, as com a possível concessão de licença para a construção de uma
\ \IIIdiç( de salubridade e segurança nos locais.de trabalho, a ex- habitação coletiva na rua do Resende. Segundo o barão, tratava-se
I('IIH() da jornada de trabalho etc." Paradoxalmente, a esperteza de autorizar o surgimento de outro cortiço em área onde eles já
do IiH'ai revela o estreitamento de sua ~ãJ:gerii.ª~mãnobra;para estavam previamente proibidos. O oficio, dirigido ao presidente
Ni' Ii vrur dos higienistas naquele momento, ele se enredo~-devez da Câmara Municipal, éde 11 de fevereiro de 1876:
I~\,1 (cias da ideologia da Higiene. -- . ----------
ue essa ideologia lançava raízes cada vez mais profundas em ...cabe à Junta declarar a VExa. que nada tem que ver com a referida
setores da sociedade, torna-se patente pela atuação dos ór-
dj.l,lIm; licença, visto como as obras já estão em andamento, talvez com con-
I' 11,' da imprensa a partir da década de 1870. Na realidade, vários sentimento da autoridade fiscal respectiva; e por esta ocasião ponde-
ra a mesma Junta a VExa. que, sendo comum o fato de ter a Junta de
pIO' .dim ntos da Junta Central de Higiene contra supostos cortiços
pronunciar-se sobre concessão de licenças para obras que já se acham
i' detonavam a partir de denúncias dos jornais da época. Em agosto
concluídas, ou quase concluídas, sem ser ouvido o seu parecer, me-
di' IH76, a Junta oficiou à Câmara informando que "tendo a Impren-
lhor seria dispensá-Ia de um trabalho inútil e de responsabilidade
1 11 'Nles últimos dias denunciado a construção de um grande corti-
que não lhe pode nunca competir.
\ o IIOSfundos de um terreno à rua da Guarda Velha", providenciou- Agora permita V.Exa. que, não se distinguindo as intituladas
t' uma vistoria no local. Os sanitaristas reconheceram que a tal
casinhas dos ..cubículos.componentes de um.cortiço senão na pe-
i 011, trução era melhor que a dos "cortiços comuns", mas resolveram quena diferença de alturas, a Junta continue a sustentar a opinião já
i (1I1! I·má-la assim mesmo "não só por sua grande aglomeração, como por muitas vezes externadã:de-ilãõ-se-consenfirnoiilterior da Cida-
pi'lII falta de ventilação". O fiscal da freguesia de São José explicou de tais edificações, aumentando assim as causas da insalubridade
qu ' lIS ca inhas haviam sido construídas pelo proprietário de uma p_eJ~agt()IIl~rªt;:.ã~depopulação .~11!.~()l1aslimitadas.como aconte-
I'Ihri 'U de cervejas, sendo "aliás bem construídas e arejadas". O fis- ce no lugar de que se trata, onde já numerosos são os cortiços exis-
(111 1 .ubou lavrando o auto de infração por construção de cortiços tentes.i."
1111 (ar 'U proibida, "não obstante parecer-me que a essa edificação
11 (I H' P dia aplicar o nome de cortiço, porque, verdadeiramente
No primeiro parágrafo do oficio, o barão se queixa de que a
/1/10 se I ha bem definido o ,que seja cortiço" (grifo meu)."
Junta só era chamada a opinar sobre fatos consumados; ou seja, o
O 'pisódio demonstra como os higienistas estavam conseguin- edital de 1855 valia formalmente, mas na prática a construção de
do uliados importantes em sua estratégia pela melhoria das condi- habitações coletivas era freqüentemente autorizada antes de a Jun-
~ i'S d salubridade pública da Corte - uma estratégia que se re- ta ser devidamente consultada. De passagem, o chefe dos higienis-
umia ada vez mais numa condenação tout court da própria tas insinua que essa situação se explicava pela conivência dosfis-
111\'.' mça de habitações populares, e obviamente de seus morado- cais de freguesia. No segundo parágrafo, o barão se refere ao fato
I ' • IlUS áreas centrais da cidade. Não quero ser acusado, todavia, de os proprietários procurarem driblar a postura que proibia a cons-
dI' purcialidade contra a distinta classe dos doutores médicos higie- truçãode cortiços em áreas centrais com o subterfúgio de apelidar
IIhHIIS, mesmo porque não é dificil imaginar que algum grau de tais edificações de casinhas.
vcnulidade podia existir em vereadores, fiscais da municipalidade, Pois bem, é praticamente certo que o·barão tinha razão em
I corticciros sempre dispostos a cobrar aluguéis escorchantes de ambos os pontos. A leitura dos documentos da Câmara passa ela-

42 43
ramente a idéia de que não havia muito controle em relaçãÇl ao Antônio desqualifica a opinião do fiscal da freguesia a respeito de
surgimento ~ halJltaçõe~_º-QJ.s;tiv-as- elas brotavam por toda supostos cortiços na rua do Lavradio: "a questão é puramente hi-
parte-em função de uma enorme demanda, e não havia como re- giênica, e nada tem a ver com o Fiscal.i."." Em outras palavras, o
verter fatos consumados sem provimento de acomodações alter- fiscal discordava porque desconhecia os preceitos da ciência da
nativas para os moradores. Também é verdade que nos anos 1870 Higiene, e o doutor ainda fazia o favor de perdoá-I o por sua igno-
nerihum proprietário se mostrava ingênuo a ponto de solicitar li- rância.
cença para a construção de cortiços: todos iriam edificar "quar- Era inegável o crescent4~de sedução da ideologia da
tos", "pequenas casas", ou "casinhas". Neste último ponto, a pró- Higiene sobre alguns setores da sociedade da época. Mas também
pria Câmara deu razão ao barão do Lavradio ainda naquele ano eram significativos os obstáculos impostos à sua difusão pelos
de 1876, através da confirmação da postura de proibição aos cor- mecanismos institucionais da velha monarquia. Em 18 de dezem-
tiços no centro mesmo quando seus proprietários os chamassem bro de 1879, o ministério do Império expediu um aviso mandando
"casinhas ou com nomes equivalentes"." A verdade, porém, é que as comissões sanitárias "intimem para que sejam fechados os
que o barão continuaria a se defrontar com agentes municipais cortiços- ou estalagens, quer os que ameacem ruina, quer os que,
contrários a essa abrangência cada vez maior do conceito de cor- pela permanência têm-se tomado nocivos à saúde pública"." A
tiço. No caso em questão, por exemplo, um engenheiro munici- medida representou mais uma vitória dos -higienista~ que agora
pal escreveu um parecer detalhado a favor da concessão de licen- pareciam contar com o apoio mais decidido do próprio governo X.
ça para as casinhas da rua do Resende. Elas seriam perfeitamente central para a sua atuação. Mas acontece que o aviso em questão
habitáveis com pequenas modificações nas dimensões das jane- fez ranger a velha máguina institucional em defesa do pacto liberal
las e cóm o"aúiiienfodonúmero de latrinas. o engenheiro arre- de respeito à-proprie~de privada. Assim, o que se viu em seguida
matava que "é esta.minha.opiaião .fundada na necessidade da foi uma luta intensa: Ias comissões sanitárias ordenavam o fecha-
existência de casinhas para a pobreza, que sem dúvida, não pode- mento de cortiços;~ários proprietários desobedeciam, exigindo que
rá morar em casa de alto preço ... ".38 as comissões lhes apontassem os problemas com suas proprieda-
-------"Iódós essés pêqiiériósacontecimentos da rotina administrati- des,~ recorrendo' à Câmara Munici~al para a obtenção de ÍÍcençã:
va acabam definindo os contornos mais amplos da atuação dos para os melhoramentos necessários; as autoridades policiais saíam
higienistas. Conforme jáficara claro no projeto de posturas de José às ruas para fazer cumprir as ordens de fechamento, mas às vezes
Pereira Rego, er@-;ds sanitaristas erigiam as condiçõe:l_ de encontravam os corticeiros munidos de mandados judiciais que
higiene pública como o e~.1()---º-efinidor ºº-_Wl:1 de civilização garantiam seus direitos de propriedade. Houve cortiços efetiva-
deum povo. Mãis ainda, haveria critérios objetivos, "científicos", mente fechados, pelo menos provisoriamente, para desinfecção e
que- poãenam nortear as medidas da administração pública nessa reparos."
área. O problema aqui são as implicações políticas claras - e ine- A lição dessa história, todavia, é que o pacto liberal de defesa )'1
vitáveis? - dessa crença na possibilidade de gestão científica da da propriedad:,J?riva4a colocava limites claros às pretensões dos
sociedade: nenhum "outro" político tinha as qualificações neces- higienistas. Pelo menos durante a vigência da monarquia, perma-
sárias para interferir na condução dos negócios públicos porque _I
neceu sempre difícil adotar medidas mais duras contra os cortiços.
não detinha o saber técnico-científico pertinente. Os higienistas se ! No caso do Cabeça de Porco, por exemplo, segundo o relato da
fechavam numa lógica ferrenha, totalmente baseada em procedi- Gazeta de Notícias por ocasião da demolição, tentativas anteriores
mentos autoconfirmadores. É típica, por exemplo, a serenidade de destruí-Io haviam esbarrado exatamente emmedidas judiciais.F
olímpica com a qual o presidente da comissão sanitária de Santo IEm suma, os higienistas imaginavam que sua Ciência pairasse aci-

44 45
I11U do homens e para além da moral eda política; por enquanto, das determinações do inspetor, assim como providenciar "sobre
10 luvia, ainda não haviam conseguido transformar as instituições o alojamento dos moradores das habitações condenadas" - uma
I1l1m .maranhado de casuísmos. Isto só seria possível com o ad- boa intenção que permaneceu letra .morta. Urna comissão
V nt das primeiras administrações republicanas, e com a ajuda constituída por funcionários da Inspetoria de Higiene - dois
d \ .isiva de novos aliados.) delegados e um ajudante - deveria proceder às "diligências mais
rigorosas" com o intuito de indicar os cortiços que precisavam
fechar para a realização de melhoramentos.
SA IlER, PODER ... É verdade que o aviso também determinava que providências
extremas como o fechamento só se aplicassem a habitações coleti-
Alguns antecedentes da demolição do Cabeça de Porco escla- vas cujas condições fossem "tão mas" que se tomava "impossível,
a pectos importantes a respeito da administração da Capital
I' , ' '111
pelo menos em prazos relativamente curtos; fazerem-se modifica-
11 d sra! nos primeiros anos do regime republicano. Na verdade, é a ções ou melhoramentos compatíveis com a natureza das respecti-
pnrl ir Ia ascensão de Floriano Peixoto à presidência, em novem- vas edificações e local em que estiverem situadas". O fato, porém,
hro ti' I 91, que ocorre um recrudescimento das autoridades pú- é que o regulamento sanitário concentrava poderes demais nas mãos
Ili 'a~ contra os cortiços." Ao que parece, os higienistas haviam dos doutores da Inspetoria de Higiene, e estes, devidamente incen-
uin ido o auge de sua influência política.
tivados pelo ministro, não se fariam de rogados. Além disso, é cer-
N a história pode começar em 26 de janeiro de 1892, exa-
to que os critérios utilizados pelos cientistas da Higiene na avalia-
IIIIll 'nt um ano antes da demolição do Cabeça de Porco." Nessa
ção das .condições sanitárias dos cortiços tinham poucas chances
dntu, o ministério do Interior expediu um aviso à Inspetoria Geral
de agradar a propri~t~~~_.~_.Íl}_q~Wp..os_a.meaçados de despejo. O
dl' IIi aicnc determinando providências a respeito dos cortiços, es-
mais complicado da situação é que os cidadãos que se consideras-
• l" "v irdadeiros antros disseminados pela cidade e que constituem
sem lesados não tinham a quem apelar; como logo veremos, as
outros tanto focos de infecção". O aviso lembrava inicialmente o
__~__
decisões.daInspetoria-a respeito de' cortiços -eram irrecorríveis.
que li 'tira e tipuJado no artigo 83 do regulamento-sanitário de 18
dl' [un ir de 1890: Segundo a interpretação de alguns dos burocratas que acompanha-
riam os acontecimentos dos meses seguintes, nem o ministro do
quando, a juízo do Inspetor Geral de Higiene, os cortiços ou estala- Interior - a quem a Inspetoria de Higiene estava subordinada -
K 11I-1 ns o puderem, por suas más condições sanitárias, continuar a poderia revogar uma ordem de fechamento de estalagem determi-
s rvir sem perigo para a saúde pública, a autoridade sanitária, além nada pelos ~uláP.i2§:
dn irn] ição das multas que no caso couberem, intimará logo os Como seria de esperar, os problemas começaram logo a sur-
prupri tários ou sublocadores para que os fechem dentro de 48 ho-
gir. Em março, a Inspetoria de Higiene ordenou o fechamento da
IIIS, só podendo ser reabertos depois de feitos os melhoramentos ne-
, 'ssários. estalagem da rua da Conceição, n2 95. O arrendatário do prédio
respondeu que não podia cumprir a ordem porque os moradores se
1';111 outras palavras, o regulamento sanitário parecia permitir que recusavam a deixar o local. Consultado sobre o impasse, o minis-
\I 11. P
'lor de Higiene determinasse o fechamento de qualquer tro do Interior ordenou que a autoridade policial agisse para "tor-
\'01 li \'0 da cidade num prazo de 48 horas, sem a necessidade de nar efetiva semelhante providência". E o ministro fez ainda mais:
Itil didus anteriores para prevenir proprietários e inquilinos. O instruiu o inspetor geral de Higiene a recorrer diretamente à polí-
11 iso informava. ainda que o governo estava disposto a lançar ciasempreque ocorresse uma situação semelhante; ou seja, o higie-
111 o "d ' meios coercitivos mais enérgicos" para o cumprimento nista ficava dispensado até da autorização do ministério quando

l
46 47
desejasse recorrer à .força. Paralelamente, o chefe de polícia da " do de forma intempestiva, exigindo a interdição em casos onde os
Capital Federal era avisado de que deveria acudir prontamente às melhoramentos eram possíveis, e desrespeitando assim o direito
solicitações da Inspetoria. de propriedade. Em terceiro lugar, o regulamento sanitário em vi-
A situação se complicou nos meses seguintes, com o aumen- gor condenava o proprietário sem lhe dar o direito de defesa'-, mes-
to dos protestos dos proprietários, a inquietação dos inquilinos e mo as vistorias, nos poucos casos em que eram concedidas, se rea-
os desentendimentos entre os diferentes órgãos da própria admi- lizavam em tais condições que o corticeiro geralmente não tinha
nistração pública. Em maio, José Gonçalves, proprietário da esta- nenhuma chance de reverter o quadro. O documento da Sociedade
lagem à rua do General Pedra, n2 63, recorreu diretamente ao mi- deixou de mencionar uma situação que também parece ter sido
nistro do Interior contra a ordem de fechamento que havia recebido. comum: feita a vistoria, o proprietário recebia uma lista dos repa-
No documento que enviou ao ministro, o corticeiro fez um breve ros que precisava fazer em seu cortiço; acontece, todavia, que a
histórico de suas agruras. Em princípios de abril, o inspetor geral Intendência Municipal resolvia indeferir o pedido de licença para
ordenara o fechamento "dando-lhe um prazo pequeno". José Gon- a realização das obras. Neste caso, o dono do cortiço ficava sem
çalvesrequereu uma vistoria na esperança de provar que sua esta- saída, à mercê da Inspetoria de Higiene. Finalmente, os proprietá-
G lagem estava em ~ondições, e declarou-se disposto a executar rios acenavam com o potencial de rebeldia de seus aliados de oca-
"todos os melhoramentos" que lhe fossem exigidos. O higienista sião - os inquilinos: "Os fechamentos em breve prazo que a Ins-
enviou então uma comissão composta de um ajudante, dois dele- petoria costuma ordenar poderão trazer sérias perturbações à ordem
gados e um engenheiro do ministério do Interior. O engenheiro pública, porque o desespero nem sempre mede conseqüências e os
teria declarado, diante das várias pessoas presentes, que a estala- __~~~Er-.i~táriose arrendatários de prédios nem sempre têm meios para
gem "tinha uma grande área e estava em boas condições", e que acalmar os ímpetos de seus inquilinos".
posteriormente indicaria ao proprietário os melhoramentos neces- . ---+Diante-da-eonfusão reinante e da veemência dos protestos,
sários. Qual não foi a surpresa de José Gonçalves, porém; quando, Implantou-se a discórdia nas próprias hostes governamentais. Um
em 30 de abril, recebeu intimação para fechar a ala direita da esta- _ __. __<i~s__ ~.Ul:?~r~~_doE1iniS!~ri() do Interior resolveu tentar alguma
---'-1--- .
lagem. As lamúrias do proprietário se encerravam com uma nota I
coisa contra a prepotência da Inspetoria de .. ene. Sua primeira
de pesar pelos inquilinos: o cortiço possuía 89 casinhas, "e VExa. tentativa neste sentido foi, no mínimo canhestra ncarregado de
compreende em que condições ficava a população ali residente, no elaborar pareceres sobre as várias reclamações enviadas pelos pro-
caso de ser cumprida a ordem do Snr, Inspetor, quando não há para prietários, o burocrata descobriu, com certo espanto, que o regula-
onde mudá-Ia". mento sanitário em vigor não permitia mesmo recurso das deci-
Os casos desse tipo se repetiam com freqüência, o que acabou I sões da repartição de Higiene sequer ao ministro ao qual ela estava
provocando a manifestação da Sociedade União dos Proprietários subordinada. Portanto, os protestos enviados pelos donos de corti-
e Arrendatários de Prédios, "núcleo a que pertencem quase todos
os proprietários e arrendatários desta Capital". Os corticeiros re-
clamavam que eram inexeqüíveis "as ordens continuadas" da Ins-
1!
ços ao ministro não podiam surtir nenhum efeito. O relator do pa-
recer evocou então o regulamento sanitário vigente nos últimos
anos do Império. Tal regulamento, de fevereiro de 1886, determi-
petoria de Higiene para fechamento de estalagens. Em primeiro nava que aqueles que se considerassem lesados pelas decisões da
lugar, porque não havia para onde remover os moradores, e não repartição de Higiene - na época, ainda Junta Central de Higiene
era correto sujeitar "grande número de famílias ao vexame e às -podiam impetrar recurso ao ministro. Aparentemente impressio-
inconveniências de verem transferidos seus lares para a praça pú- nado com a sensatez elementar desse dispositivo do regulamento
blica". Em segundo lugar, os funcionários da Higiene estavam agin- sanitário vigente anteriormente, o relator achou que ele não fora

48 49
I 1"udw, do d janeiro de 1890 "talvez por descuido". O buro-
110 Ribeiro descreveu com ~otal :~lJj~tivi~~e"~ sl!.~yról?ria subi~ivi-
I 1 til 11 \I 11'IIIIIVlI,no entanto, que, apesar do "esquecimento", tal dade sobre os cortiços, seus proprietários e, principalmente,seus
1II 1111 II VI) '( 111Li '1 uava em vigor, pois seria um absurdo imaginar o mõfa:âores:--~----'"
111111"11 1), ÂN uutoridades superiores do ministério consideraram
Falando das habitações, é forçoso atender para estas sentinas sociais
111 11111'10 () pur .cr, e concluíram que "não há que deferir sobre a
a que a linguagem do povo apelidou cortiço.
1111111 1\ 1(\pl":-; .ntação".
Todos sabem o que é o cortiço.
FIl\llllIlItO isso, o pessoal da Inspetoria de Higiene adquiria
Gerou-os a avareza calculista e fria dos ambiciosos vulgares,
111111 \110111' triun fali ta. Um dos ajudantes da Inspetoria, que acom-
para os quais a moeda é sempre moeda, e o cortiço é a mina aurífera
I'""h" I dt, P .rto os procedimentos em relação aos cortiços, foi e inesgotável a saciar os sentimentos vorazes destes corpos sem
I li iH 11 ,dn pma comentar a chusma de protestos que caía sobre o coração!
111 11 I '\1 o do Interior. E o homem resolveu espicaçar os adversá- Alimenta-os a lubricidade do vício, que se ostenta impudo-
I o ('\lltNi k-rou "facílima" a tarefa de responder aos argumentos norosa (sic), ferindo os olhos e os ouvidos da sociedade séria que
1111 I 1IIIlvl'Im José Gonçalves e outros semelhantes, debochou das deles se aproxima, e a miséria andrajosa e repugnante, que faz da
11 I 11111 I~' ':-; da ociedade União dos Proprietários quanto à falta ociosidade um trono, e por um contraste filho das circunstâncias
di I I 1"IíON na atuação da Inspetoria, e fulminou impiedosamente peculiares à vida das grandes cidades, ao lado [... ] do vício e do
., 11111 1Il'l utn d ministério do Interior: lodaçal impuro do aviltamento moral, está também o leito do tra-
balhador honesto, que respira à noite a atmosfera deletéria deste
IIINtn li I .itura do parágrafo v, do artigo 83 do Regulamento Sanitá-
esterquilínio de fezes!
1 11 puru .hegar-se à evidência de que não cabe, na espécie, recurso . -Nocortlço acha-se de "tudo: o mendigo que atravessa as ruas como
p 11'11 S.Exa. o Snr. Ministro do juízo ou resolução do Inspetor Geral um monturo-ambulante.-ameretriz impudica, que se compraz em
11l' IIi 'iene, o qual somente por não dispor de elementos de força
degradar corpo e alma, os tipos de todos os vícios e até [...] o repre-
p 11'11 tornar efetivo o fechamento de prédios [...], dada a resistência, sentante do trabalho [ -r- ]
1 'OI'I'C ao Governo o qual providencia para que os prédios sejam
""Cói:ripfeehde::sedesdelogo o papel que representam na insalubri-
1'1 '1IfIdos [ ... ] Enquanto vigorarem as disposições regulamentares alu- dade da cidade estas habitações, quando nos le~brarmos que além
dldus, outra não pode ser a sua interpretação. de todas as funções orgânicas dos seres que o povoam, no cortiço
quilo que o burocrata do ministério do Interior considerava um lava-se, engoma-se, cozinha-se, criam-se aves, etc.
1111 ",'do ra exatamente o que valia; naquele momento, a Inspeto-
Só vemos um conselho a dar a respeito dos cortiços: a demoli-
I I de l ligiene parecia o quarto poder da República.
ção de todos eles (grifo meu), de modo que não fique nenhum para
atestar aos vindouros e ao estrangeiro, onde existiam as nossas
Foi neste contexto, em abril de 1892, que um higienista as-
sentinas sociais, e a sua substituição por casas em boas condições
l'l\lld 'U à presidência da Intendência Municipal, e posteriormente,
higiênicas."
l'lll d 'zembro do mesmo ano, foi nomeado para a prefeitura da
( 'npital Federal." Cândido Barata Ribeiro, médico baiano, 49 anos,
professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, havia obti- Toma-se evidente, portanto, que ao ordenar a demolição do
do o título de doutor, em 1877, com uma teseintitulada Quais as Cabeça de Porco, entre outros cortiços, Barata Ribeiro estava ape-
medidas sanitárias que devem ser aconselhadas para impedir o nas colocando em prática a sua opinião histórica a respeito desse
drsenvolvimento e propagação dafebre amarela na cidade do Rio tipo de habitação popular. Mais ainda, e mantendo-se coerente com
di' Janeiro? Como se tratava de um trabalho "científico", Barata a sua própria formação na área de saúde pública, ele pregava a

50 51
substituição dos cortiços "por casas em boas condições higiêni- ços públicos- no caso, concessões para a operação de linhas de
cas". Para realizar tal projeto, não era suficiente aos higienistas bonde; paralelamente, outros grupos empresariais, ou até os mes-
galgarem as posições na administração pública; era preciso sedu- mos, adquirem terras pouco valorizadas na periferia da cidade; fi-
zir e buscar a aliança de setores empresariais." nalmente, concluídas as linhas de bonde e feito o loteamento dos
terrenos, os investidores conseguem uma remuneração astronômi-
ca para o seu capital. O sucesso da operação é às vezes garantido
...ELUCRO pela presença desses empresários na Câmara, como vereadores elei-
tos - e, portanto, encarregados de votar as diretrizes da política
O discurso dos higienistas contra as habitações coletivas inte- de expansão urbana. Tudo muito dentro dos conformes, e qualquer
ressou sobremaneira a grupos empresariais atentos às oportunida- semelhança com processos de crescimento mais recentes de cida-
des de investimentos abertas com a expansão eas transformações des brasileiras não terá sido mera coincidência. 50
da malha urbana da Corte. Haveria no processo um enorme poten- Houve nos anos 1880 algumas tentativas de incentivar em-
cial para a especulação na construção de moradias e no provimen- presários da construção civil a erguer moradias baratas para operá-
to da infra-estrutura indispensável à ocupação de novas áreas da rios. A maior parte das tentativas foi malograda, apesar dos vários
cidade..--Ã...J3restigiosaCiência dos higienistas parecia legitimar as privilégios concedidos pelo governo aos investidores. Um dos pou-
retensõeS'aõs empresários ao insistir na necessidade de uma tera- cos contratantes que chegou a construir as casas para operários, o
pia radical no centro da cida e, e ao énfàiizar sempre que ª-ºes~ engenheiro e empresário Arthur Sauer, dono da Companhia de Sa-
_truição das moradias consideradas insalubres e a diminuição da neamento do Rio de Janeiro, justificava assim o seu interesse no
aglomeração de pessoas naquela área eramos dois motes eSsen= investimento:
ciais de tal terapia.48 - ---

O crescimento da cidade para novas áreas tomou-se factível a


r Os cortiços e estalagens da Corte, infeccionados como se acham por
t suas péssimas condições sanitárias são os focos principais donde
partir dos anos 1870 devido à expansão das linhas de bonde. Pou-
co a pouco, fazendas e chácaras nos subúrbios foram sendocom-v" :-- -~ -_o o -.- _. - •• - • - .- • - surgem as epidemias e-nascem afecções mórbidas em ameaça cons-
pradas e loteadas, numa conjunção de interesses entre empresários
I tante aos moradores próximos, razão pela qual foram condenados e é
da área de transportes e agentes do capital imobiliário. Às vezes,
í reconhecida a imprescindível necessidade de, quanto antes, serem
I tais habitações substituídas por outras, construídas segundo as re-
um mesmo empresário atuava nas duas áreas de investimento. uni
_,;1 gras higiênicas e de aluguel muito módico para residência de prole-
exemplo bastante citado na historiografia é o do barão de
tários, operários e empregados subalternos...sl
Drummond, um nome cuja memória está comumente associada ao
surgimento do jogo do bicho. Drummond era sócio da Cia. Ferro
Carril de Vila Isabel e proprietário de lotes no bairro do mesmo
nome."
O início da ocupação de Copacabana, já nos anos 1890, foi
I
li
!I
Vemos aqui, portanto, que o empresário se apropria do dis-
cursõdã Higiene pãi-a justlÍlé;ar=slla opção de Investimento. O
interesSãnte na pássagem é queü"princlpaI In~onverueille dos
cortiços estaria na "ameaça constante aos moradores próximos";
outro fruto da associação bonde/loteamento, envolvendo ainda o isto é,. a utilidade do projeto não se assentaria na melhoria das
interesse de vereadores que eram também empresários nesses ra- condições de vida das classes populares em si, mas sim na~anta-
mos de atividade. Desenha-se assim um padrão de expansão urba- ~m de tomá-Ias menos perigosas para a classe dominante. No-
na que quiçá se repetiu em outras cidades brasileiras: primeiro, vamente, "classes perigosas" em mais de um sentido: logo adian-
alguns empresários conseguem o monopólio na exploração de servi- te, no mesmo documento, Arthur Sauer descreverá os cortiços

52 53
,.

111I110 ·'f()(.'OH de moléstias e de todos os vícios", caracterizando- prolongar a rua dos Cajueiros, a rua do dr. João Ricardo e ainda
II I. 1111 tunto como um problema de higiene quanto de controle abrir um túnel no morro do Livramento. É desnecessário dizer
11 11. que a realização da obra dependia da destruição completa do
Arthur Sauer conseguiu cumprir parte do contrato e sua com- Cabeça de Porco. De acordo com Lilian Fessler Vaz, Carlos
1'111111 II chcc u a construir cinco vilas operárias, abrigando uma Sampaio solicitara ainda as concessões de praxe em tais contra-
popllll~' () superior a 3 mil pessoas. Vieira Souto, contudo, outro tos: direito de desapropriação de prédios eterrenos, cessão gra-
10111 -ruplud com uma concessão, fracassou na empreitada. Já no tuita de terrenos públicos, privilégio para a exploração de uma
dlll'llllll'lltO de solicitação do contrato, o empresário apontava a linha de carris nas ruas adjacentes e no túnel, e mais direito de
11111I'011' n 'ia dos proprietários de cortiço como a principal dificul- cobrança de pedágio por trinta anos. 53
d!ll! ' d(lN invc tidores: Em 26 de janeiro de 1893, exatamente o dia da operação de
1'01 ((LI' intuitivo que tais proprietários, estabelecendo os aluguéis guerra contra o Cabeça de Porco, duas proprietárias da estalagem
11111110 muis baixos do que poderiam fazê-Ios os construtores dos encaminharam uma representação ao prefeito Barata Ribeiro pro-
IIIIVOS prédios, dotados de todas as condições de higiene e de con- testando "por perdas e danos contra qualquer ato de violência que
1111to d vida, formariam numa concorrência impossível de susten- se pretenda praticar em espoliação de sua propriedade". Vejam o
1 li, 'li novo ficariam senhores exclusivos do seu campo de torpe que diz esse documento:
I li' ulação."
Só depois de um célebre contrato feito pela Intendência com o Dr.
undo Rob rt Pechman e Luiz Queiroz Ribeiro, estudiosos Carlos Sampaio, para o prolongamento das ruas João Ricardo e.Ca- _
\
I! I lnnuu ' do capital imobiliário no período, as alegações de jueiros, com a obrigação de indenizar as Suplicantes e outros proprie-
I-
Vi ÍI I Souto podem.ser contestadas devido ao descompasso entre tários, contrato que devia ser transferido ao Banco Evolucionista, e
t de mandar este Banco uma comissão ,orçar o valor das desapropria-
I "IIOI'Ill' procura e a pequena oferta de moradias.' Para esses
1111111 "', Vicira Souto não declarou o verdadeiro interesse dos ções a fazer, é que, por singular coincidência começaram as Supli-
cantes e os outros proprietários a ser incÓniõdaaos~s4 ---- -------
''l'IIP Iulistas" na investida contra as habitações coletivas: mui-
111 \'01 tiço/) ocupavam terrenos bem localizados, há muito inte- Em suma, na versão do~prie~o cerco e a destruição
I 1110. II malha urbana, e portanto verdadeiras minas potenciais [mal da estalagem estariam diretamente ligados aos investimentos
li IIIV stimento. planejados por Carlos Sampaio, Vieira Souto, e sua Empresa de
() I 'it r talvez se recorde que Vieira Souto era um dos no- Melhoramentos. Mais ainda, as proprietárias insinuavam que a
1\1 ('onstantes da longa lista de notáveis presentes à demolição demolição do cortiço iria diminuir o valor das desapropriações a
Ih I ( , lI> 'ça de Porco. O caro leitor não se terá esquecido tampouco serem pagas - pelo menos é isto o que se pode razoavelmente
'I'" Vi iira outo lá estava ao lado de Carlos Sampaio, e que am- ;
deduzir da referência ao trabalho da comissão que teria ~gr-
lIu contribulram com o esforço de demolição providenciando a çamento das desapropriações necessárias. Na versão da prefei~
~
1"' (,nça de quarenta operários da Empresa de Melhoramentos a estalagem deveria ser destruí da porque havia sido co~strüídã-Sem
do Brasil, companhia da qual eram diretores. Tratava-se, sem
lu klu, de interesse pela coisa pública e preocupação com a higie-
1\ 11 I habitações. Talvez fosse ainda mais do que isso. Em 1891,
I licença da Câmara e contra expressa recomendação de uma porta-
ria governamental de 28 de agosto de 1840. Além disso, obvia-
mente, haveria o estado "ruinoso" dos prédios e a imundície su-
11 ( \11I1-1 'lho de Intendência Municipal havia fechado um contrato I postamente característica do cortiço e sempre condenada pela
I 11111 o mgenheiro Garlos Sampaio, que ficava encarregado de
I Inspetoria - antiga Junta - de Higiene."

54 55
I
I
Ambas as versões valem pelo que são: conjuntos de arrazoa- à~;~ detrimento da tuberculose - uma doença
dos produzidos num momento de conflito aberto. De qualquer for- que, como já foi mencionado, os próprios médicos associavam à
t ma, as versões explicitam para além de qualquer dúvida que higie- nutrição e às condições de trabalho e de vida em geral da popula-
li nistas e agentes imobiliários estavam unidos pelas reformas urbanas ção. Durante todos esses anos de ÇLiseaguda de saúde pública na
Ij e contra os corticeiros. Se eu fosse um autor dado a grandiloqüências cidade do Rio (entre aproximadamente 1850 e 1920), a tubercu-
teórico-estilísticas, teria escrito que acabamos de reconstruir, em lose matou muito mais do que quaisquer das outras doenças epi-
parte, o processo histórico de formação da aliança entre a Ciência dêmicas. A {ÍÍoercuI08e;>porém, parecia atacar indiferentemente
e o Capital, aliança que seria essencial às transformações urbanas brancos e negros, nacionais e estrangeiros e, desculpa suprema,
"radicais" - no sentido da hostilidade em relação às "classes po- era doença extremamente grave até mesmo em Paris, o que nos
bres" e à cultura popular em geral - do início do século xx no eximia de qualquer culpa por abrigar a peste." A febre amarela
Rio. Mas eu não sou um autor grandiloqüente, e logo não fica es- significava basicamente o oposto: além de não acometer Paris e
crito aquilo que escrevi, apesar de tê-lo provado. deflagrar o Rio anualmente, era um verdadeiro flagelo principal-
mente para os imigrantes. Rui Barbosa descreveu assim as carac-
terísticas da febre amarela:
EPÍLOGO
É um mal, de que só a raça negra logra imunidade, raro desmentida
apenas no curso das mais violentas epidemias, e em cujo obituário,
Antes de terminar este capítulo, preciso antecipar-me a um nos centros onde avultava a imigração européia, a contribuição das
possível mal-entendido. Ao contrário de várias personagens pre-. colônias estrangeiras subia a 92 por cento sobre o total de mortos.
sentes nesta minha história, eu não tenho a mania da suspeição Conservadora do elemento africano, exterminadora do elemento eu-
generalizada. Isto é, eu realmente não acho que todos·'o-ç-·-·'-'··'··-· ropeu, a praga amarela, negreira e xenófoba, atacava a existência da
reformadores da cidade na virada do século eram movidos apenas nação na sua medula, na seiva regeneratriz do bom sangue africano,
por considerações maquiavélicas e.interesseiras ..Vários deles, .tal-.. com que a corrente imigratória nos vem depurar as veias da
vez os mais importantes dentre eles, certamente agiam movidos . mestiçagem primitiva, e nos dava, aos olhos do mundo civilizado, os
por convicções íntimas, e alguns deles conseguiram vitórias signi- ares de um matadouro da raça branca. 57
ficativas contra flagelos humanos reais e que precisavam ser con- Se o leitor está impressionado com a virulência do racismo
trolados - como, por exemplo, e para não deixar de mencionar o estampado nesse parágrafo de Rui Barbosa, saiba que a tentativa
caso mais óbvio, a campanha bem-sucedida liderada por Oswaldo de entender a possibilidade histórica de semelhante aberração foi
Cruz contra a febre amarela. oque me moveu na pesquisa sobre febre amarela que originou o
Mas constatar alguns dos resultados atingidos não significa segundo capítulo do presente volume. No momento, e como ain-
fechar os olhos para o fato de que, muitas vezes, tais resultados da se trata de concluir este capítulo, basta observar que o concei-
foram obtidos a preços sociais excessivamente elevados, e que, to dCêFvITiz~constante na passagem implicava o ideal de
apesar de o discurso cientificista da Higiene pretender pairar aci- embraiiqüêêiiiiento, o "depurar as veias da mestiçagem primiti-
ma dos homens e para além da moral, tratou-se sempre de tomar va", e isto significava adotar medidas para viabilizar a entrada
decisões políticas claras quanto ao direcionamento dos benefí- maciça de imigrantes europeus no país. Uma das medidas neces-
cios a serem al~ançados através das iniciativa~ das ~dminis.tra- sárias seria a melhoria das condições de salubridade pública, com
ções pública~E claro, por exemplo, que havia motivos, diga- ênfase no combate a doenças que, como a febre amarela, amea-
mos, nada óbvios ou "neutros", na opção em priorizar o combate çavam principalmente os imigrante~esse sentido, a moderna

56 57
pl Itlcn da "gestão científica" da cidade escolhia cuidadosamente cortiços e favelas cariocas na virada do século, deixam dúvidas de
l
1'1'" h 'n ficiários - isto é, tomava suas decisões políticas - e que a política de erradicação dos cortiços - realizada com deter-
1'lItl'lIdia qu o saneamento e as transformações urbanas não pre- minação e truculência, pois que "científica" - possa ter resultado
I II um t r grandes compromissos com a melhoria das condi- em qualquer melhoria significativa nas condições de moradia e
'! I'H I vida de uma massa enorme de pessoas - os negros, es-
I
salubridade da população pobre do Rio.
I' ,'IISp 'it s preferenciais, membros por excelência das "classes
111 I j 'ONIlS/'"
() mais trágico em toda essa história é que a alegação de
I
"" vntif 'idade", de neutralidade nas decisões administrativas, traz
I IIIpr{ m seu cerne a violência contra a cidadania. Se os admi-

11 trudor ,os governantes, são eles próprios governados por im-


P"I "ivos ditos "científicos" - sejam esses imperativos uma cria-
11 das m ntes férteis de higienistas, naquela época, ou de
I
!

"IIIIIOlllista , mais recentemente-, não há o que negociar com os


I ti \11 os, ssa massa de ignorantes portadores de todos os vícios
11\1 110 "ulados pelo vírus da "cultura inflacionária".
Mas s mpre houve quem conseguisse ver a política nas cre-
ti IIduis da "ciência". O trecho abaixo, por exemplo, consta de um
11111111'1'\) d f vereiro de 1905 do jornal Emancipação, "órgão da
I• ,das Arte Gráficas e do proletariado em geral". O articulista
ti cutin pr ci amente as causas da Revolta da Vacina, que, como
IIhl !IInH, foi o maior movimento de protesto popular contra os
1111 todos utilizados.pelos órgãos de saúde pública no período. Se-
IIl1do () uutor, o governo estava .
ujoilundo o operário aos processos da experiência científica em nome
1111 pr sunçosa sabedoria oficial, muito zelosa pela saúde pública,
'lu uido se trata de epidemias que proporcionam altas transações com
tlN dinh iros públicos, e tão indiferente aos males que mais nos afli- I
H 11\, quando pedimos proteção para o nosso trabalho, constantemente
li, sultad pelo capitalismo ganancioso e desumano, corno está acon-

u-c ndo agora com as obras do porto, da avenida e da prefeitura,


(.111.1 O trabalhador percebe um ordenado que mal lhe chega para um
I
pcda 'o de charque, intoxicado e mortífero." .

Trabalhadores sujeitos "aos processos da experiência científica


I 111 11011I' da presunçosa sabedoria oficial"? Sim, e não apenas em
11104, I \ fato, as fotografias constantes no caderno de ilustrações, de

58 59

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