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Os registros de violência sexual

durante a pandemia de covid-19

E
ste é o terceiro ano consecutivo que o cia, humilhação e controle sobre o corpo de MARINA BOHNENBERGER
É MESTRANDA EM ANTROPOLOGIA
Fórum Brasileiro de Segurança Públi- outro indivíduo. SOCIAL (USP).
ca apresenta análise dos microdados O trauma vivenciado pelas vítimas dei-
de estupros. Para os dados de 2020, xa muitas sequelas na vida e na saúde dos SAMIRA BUENO
É DOUTORA EM ADMINISTRAÇÃO
analisamos 60.926 registros de violência atingidos, resultando em sérios efeitos nas PÚBLICA E GOVERNO PELA
FGV/EAESP E DIRETORA-EXECUTIVA
sexual no Brasil em 2020, sendo 16.047 de esferas física e/ou mental, no curto e longo DO FÓRUM BRASILEIRO DE
estupro e 44.879 de estupro de vulnerável, prazo. Vítimas de estupro podem sofrer le- SEGURANÇA PÚBLICA.

provenientes dos boletins de ocorrência la- sões nos órgãos genitais, contusões e fratu-
vrados pelas Polícias Civis. Os registros de ras, alterações gastrointestinais, infecções
microdados indicam número levemente su- do trato reprodutivo, gravidez indesejada e
perior aos informados pelos Estados nas ta- a contração de doenças sexualmente trans-
belas apresentadas anteriormente, onde os missíveis2. Em termos psicológicos o estupro
registros de vítimas no último ano somam pode resultar em diversos transtornos, tais
60.460 casos. como depressão, disfunção sexual, ansieda-
A violência sexual pode ser definida de, transtornos alimentares, uso de drogas
como qualquer ato ou contato sexual onde ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de
a vítima é usada para a gratificação sexual estresse pós-traumático3.
de seu agressor sem seu consentimento, por Apesar do número elevado de casos no
meio do “uso da força, intimidação, coerção, país, a pandemia parece ter contribuído
chantagem, suborno, manipulação, amea- para a redução dos registros de violência
ça” (Souza, Adesse, 2005, pg. 201) ou apro- sexual, o que não necessariamente signi-
veitamento de situação de vulnerabilidade. fica a redução da incidência. Isto porque
O estupro é uma modalidade da violência
sexual e um dos mais brutais atos de violên- 2. Vilella, Wilza V., Lago, Tânia Villela. Conquistas e
desafios no atendimento das mulheres que sofreram
violência sexual. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro,
1. Souza, Cecília Mello, Adesse, Leila. Violência sexual 23(2):471-475, fev, 2007
no Brasil: perspectivas e desafios, 2005 / organizadoras 3. Cerqueira, D., Coelho D. S. C. Estupro no Brasil: uma
Cecília de Mello e Souza, Leila Adesse. Brasília: Secretaria radiografia segundo os dados da saúde. Nota técnica, N.
Especial de Políticas para as Mulheres, 2005. 188p 11, Ipea, 2014.

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os crimes sexuais apresentam altíssima polícia6. É difícil saber, por ora, os impac-
subnotificação, e a falta de pesquisas peri- tos provocados pela pandemia de covid-19
ódicas de vitimização tornam ainda mais na vida de milhares de pessoas expostas à
difícil sua mensuração. Estudos que espe- violência sexual, o que inclui o acesso a ser-
culam as hipóteses sobre as razões de tal viços de saúde e à justiça, mas os dados dis-
fato tem ganhado espaço. Fala-se em as- poníveis indicam que houve queda expressi-
pectos como uma construção coletiva de va das notificações criminais nos primeiros
pactos que ocultam e silenciam estes cri- meses de isolamento social. Os registros,
mes, a assim chamada cultura do estupro, que se mantinham mais ou menos estáveis
somada ao compartilhamento de práticas com média superior a 4.500 registros men-
de masculinidade violentas que perpassam sais caem abruptamente a partir do final de
essas ações4. fevereiro. Em março a redução é de 12,6% e
Nos EUA, país que anualmente estima em abril chega a cair 21,7% em relação ao
a taxa de subnotificação de diferentes tipos mês anterior. No mês de abril são registra-
criminais, a pesquisa de 2019 do Departa- dos pouco mais de 3.200 casos de estupro e
mento de Justiça5, última disponível, indi- estupro de vulnerável, muito abaixo da mé-
ca que 33,9% das vítimas de estupro teriam dia verificada ao longo da série. A partir de
reportado o crime às autoridades policiais, maio, no entanto, os números voltam a cres-
um crescimento em relação a taxa de 2018, cer e retomam o patamar do ano anterior,
quando 24,9% das vítimas informaram a com média de 5 mil casos em agosto.

4. ENGEL, Cintia Liara. As atualizações e a persistência da


cultura do estupro no Brasil. Texto para discussão. Ipea, 6. No caso brasileiro, a última pesquisa nacional de
Rio de Janeiro, 2017. vitimização produzida pelo Ministério da Justiça estima
5. Criminal Victimization, 2019. Rachel E. Morgan, Ph.D., que cerca de 7,5% das vítimas de violência sexual tenham
and Jennifer L. Truman, Ph.D., BJS Statisticians. September notificado a polícia, mas a pesquisa já tem uma década e
2020, NCJ 255113. dificilmente reflete o quadro atual.

GRÁFICO 41
Registro de estupro e estupro de vulnerável no Brasil, por mês
Jan 2019 a Dez. 2020
6.000

4.000

4.000

3.000

2.000

1.000

0
jan/19

fev/19

mar/19

abr/19

mai/19

jun/19

jul/19

ago/19

set/19

out/19

nov/19

dez/19

jan/20

fev/20

mar/20

abr/20

mai/20

jun/20

jul/20

ago/20

set/20

out/20

nov/20

dez/20

Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Coordenadoria de Informações Estatísticas e Análises
Criminais - COINE/RN; Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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A análise nacional indica queda de 14,1% de 100 mil habitantes no país, variando de
dos registros de estupro e estupro de vulne- 3,5 por 100 mil na Paraíba até 68,9 crimes
rável em 2020, tendência que se verificou em por 100 mil em Mato Grosso do Sul. Os da-
24 UFs. Apenas os estados do Piauí (10%), dos informados pelo Estado da Paraíba, no
Rio Grande do Norte (2,4%) e Roraima in- entanto, parecem muito baixos, deixando
dicaram crescimento no período (19,1%). A dúvidas sobre sua confiabilidade (registro
taxa média de estupros foi de 28,6 por grupo de apenas 140 casos no último ano).

GRÁFICO 42
Taxas de estupro e estupro de vulnerável em 2020, por UF
80,0

68,9
66,9
70,0

60,0

52,0
50,8
49,8
48,1
47,0
44,4
50,0

35,8
35,9
37,9
39,2
40,0
28,6

27,4
27,3
25,7
23,8
24,0
23,3

24,1

30,0
20,5
21,2
19,9
19,7
19,2
15,7

20,0
33,9

10,0
3,5

0,0
Brasil

PB
RN
MA
CE
BA
AM
MG
AL
SP
SE
PE
DF
RJ
PI
RS
ES
AC
PA
GO
MT
SC
TO
AP
RO
PR
RR
MS
Fonte: Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social; Coordenadoria de Informações Estatísticas e Análises Criminais - COINE/RN; Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE); Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Seguindo a linha de anos anteriores, a vulnerável é tipificado penalmente. Há um de-


grande maioria dos crimes de estupro (73,7%) bate importante a ser considerado sobre essa
são cometidos contra pessoas vulneráveis. Se- questão quando falamos em estupros, pois,
gundo a Lei 12.015/2018, que tipificou o estu- como veremos mais adiante, são crimes cerce-
pro de vulnerável no Código Penal, estupro de ados por ambientes de coerção e intimidação,
vulnerável refere-se àquele contra toda pessoa seja da relação da vítima com o agressor ou
menor de 14 anos ou que seja incapaz de con- do momento da comunicação do fato às auto-
sentir sobre o ato, seja por conta de sua con- ridades policiais, quando a vergonha e o medo
dição (enfermidade ou deficiência, ainda con- podem ser obstáculos. Tal cenário suscita uma
forme a lei) ou por não possuir discernimento reflexão a respeito das condições de possibili-
para tanto. A noção de consentimento, fun- dade das vítimas de dizerem não a seus algo-
damental para o estabelecimento destas tipi- zes, de modo que o consentimento não pode
ficações penais, ainda enfrenta o risco de ser ser tomado como uma ação passiva7.
relativizada em relação à condição da vítima
no momento da violência: se ela estava alcoo- 7. LEITE, LIMA e CAMARGO. Coerção e consentimento no
crime de estupro: a valoração dos atos sexuais em um
lizada, descuidos em seu comportamento etc. campo de disputas. Caderno Espaço Feminino, Uberlândia,
É também sobre esta noção que o estupro de v.33, n.1, 2020.

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GRÁFICO 43 Em relação a faixa etária, a maioria das
Distribuição dos crimes de estupro vítimas de violência sexual são crianças na
e estupro de vulnerável
faixa de 10 a 13 anos (28,9%), seguidos de
Brasil (2020)
crianças de 5 a 9 anos (20,5%), adolescentes
de 14 a 17 anos (15%) e crianças de 0 a 4 anos
(11,3%).
26,3

73,7

Estupro Estupro de vulnerável

Fonte: Análise produzida a partir dos microdados dos registros


policiais e das Secretarias estaduais de Segurança Pública e/ou
Defesa Social. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

GRÁFICO 44
Vítimas de estupro e estupro de vulnerável, por faixa etária
Brasil (2020)
35

30 28,9

25
20,5
20
15,0
15
11,3
10
6,1
05 3,2 3,8 3,0 2,7 2,0 1,4 0,9 0,5 0,9
00
0a4 5a9 10 14 18 22 25 30 35 40 45 50 55 60 ou
a 13 a 17 a 21 a 24 a 29 a 34 a 39 a 44 a 49 a 54 a 59 mais

Fonte: Análise produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Secretarias estaduais de Segurança Pública e/ou
Defesa Social. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

O próximo gráfico evidencia ainda mais que a grande maioria dos estupros que che-
o recorte etário infantil das vítimas: 60,6% gam até as autoridades policiais no Brasil são
tinham no máximo 13 anos quando sofreram de crianças, o que representa um desafio extra
violência, perfil que vem se confirmando ano tanto em relação à responsabilização do au-
após ano. Isso significa dizer que os estupros tor, como em relação à proteção da vítima.

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GRÁFICO 45
Vítimas de estupro e estupro de vulnerável, por faixa etária
Brasil (2020)

70
60,6
60

50

40

30

20 15,0
13,1
10 5,6 5,6

00
0 a 13 14 a 17 18 a 29 30 a 39 40 e +

Fonte: Análise produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Secretarias estaduais de Segurança Pública e/ou
Defesa Social. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

Isto porque 85,2% dos autores eram co- A maioria das vítimas é do sexo femini-
nhecidos das vítimas, quase sempre (96,3%) no (86,9%), e o volume mais significativo de
do sexo masculino, muitas vezes parentes e vítimas do sexo masculino ocorre nos pri-
outras pessoas próximas que têm livre aces- meiros anos de infância. Entre as vítimas do
so às crianças e tornam qualquer denúncia sexo feminino os registros crescem até atin-
ainda mais difícil. Apenas 14,8% dos estu- gir o máximo entre meninas de 13 anos. Já
pros no Brasil foram de autoria de desco- entre as vítimas do sexo masculino a curva
nhecidos das vítimas. etária tem característica um pouco diferen-
te, com grande concentração de vítimas até
os 9 anos.
GRÁFICO 46
Estupros e estupros de vulnerável,
por relação entre vítima e autor GRÁFICO 47
Brasil (2020) Vítimas de estupro e estupro de
vulnerável, por sexo
14,8 Brasil (2020)

13,1

85,2

86,9
Conhecido Desconhecido

Fonte: Análise produzida a partir dos microdados dos registros


policiais e das Secretarias estaduais de Segurança Pública e/ou Feminino Masculino
Defesa Social. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.
Fonte: Análise produzida a partir dos microdados dos registros
policiais e das Secretarias estaduais de Segurança Pública e/ou
Defesa Social. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

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A subnotificação já característica parece Entretanto, é interessante nos perguntarmos
ser um problema ainda maior em relação a sobre a possibilidade da subnotificação ser
meninos, e alguns estudos sugerem que essa ainda maior em homens adultos, onde as ex-
característica está ligada aos imaginários de pectativas sociais sobre masculinidades pe-
virilidade e iniciação sexual da sociedade em sam ainda mais.
relação aos homens, e não como violência8.

8. ROSA, Cristiano e SOUZA, Jane. Violência/abuso sexual


contra meninos: masculinidades e silenciamentos em
debate. Pesquisa em Foco, São Luís, vol. 25, n. 2, p.144-167.
Jul./Dez. 2020.

GRÁFICO 48
Vítimas de estupro e estupro de vulnerável do gênero feminino, por idade
Brasil (2020)
12

10

08

06

04

02

00
0 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56 58

Fonte: Análise produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Secretarias estaduais de Segurança Pública e/ou
Defesa Social. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

GRÁFICO 49
Vítimas de estupro e estupro de vulnerável do gênero masculino, por idade
Brasil (2020)

08

07

06

05

04

03

02

01

00
0 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56 58

Fonte: Análise produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Secretarias estaduais de Segurança Pública e/ou
Defesa Social. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

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A análise do perfil racial das vítimas indi- pro e estupro de vulnerável são um dos pou-
ca que 50,7% são negras, 48,7% brancas, 0,3% cos delitos onde não se verifica grande dife-
amarelas e 0,3% indígenas. Os crimes de estu- rença na vitimização entre negros e brancos.

GRÁFICO 50
Vítimas de estupro e estupro de vulnerável, por raça/cor
Brasil (2020)
60

50,7
50 48,7

40

30

20

10

0,3 0,3
00
amarelo branco indigena negro

Fonte: Análise produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Secretarias estaduais de Segurança Pública
e/ou Defesa Social. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

A distribuição dos crimes de estupro e das vítimas são crianças, ocorrem em maior
estupro de vulnerável é diferente. Enquan- proporção de segunda à sexta-feira, quando
to os casos de estupro ocorrem majoritaria- mães e outros responsáveis provavelmente
mente aos sábados e domingos, os estupros saem para trabalhar e a criança fica mais
de vulnerável, categoria em que a maioria vulnerável.

GRÁFICO 51
Estupro e estupro de vulnerável, por dia da ocorrência
Brasil (2020)
20
17,8
18
15,6 16,0
16 15,1
14,2 13,6 14,0
14
13,9 14,7
13,3 13,1 13,5
12 12,8
12,3
10

08

06

04

02

00
Domingo Segunda-feira Terça-feira Quarta-feira Quinta-feira Sexta-feira Sábado

Estupro Estupro de vulnerável

Fonte: Análise produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Secretarias estaduais de Segurança Pública
e/ou Defesa Social. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

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Por fim, em relação ao período do dia, os os estupros de vulnerável acontecem com
casos de estupro acontecem principalmente mais frequência durante o dia, nos períodos
à noite e de madrugada (56,3%), enquanto da manhã e da tarde (61,3%).

GRÁFICO 52
Estupro e estupro de vulnerável, por horário da ocorrência
Brasil (2020)

40

35
33,7
31,8
30 27,6 26,5
23,7 24,5
25
20,0
20

15 12,1
10

05

00
Manhã Tarde Noite Madrugada

Estupro Estupro de vulnerável

Fonte: Análise produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Secretarias estaduais de Segurança Pública
e/ou Defesa Social. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

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