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Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito

Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba


V. 8 - Nº 03 - Ano 2019
ISSN | 2179-7137 | http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index

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MULHERES ENCARCERADAS: DIFICULDADES VIVENCIADAS
ANTES, DURANTE E APÓS A PRISÃO
Tatiana Cavalcanti de Albuquerque Leal1
Anielle Oliveira Monteiro2

Resumo: Reiteradas estatísticas revelam vivenciadas antes, durante e após o


um perfil bastante comum da população cárcere para mulheres já em livramento
carcerária feminina: mulheres jovens, condicional. Trata-se de uma análise
solteiras, não brancas, com baixa documental de pareceres psicossociais
escolaridade e que cometeram crimes de mulheres realizados entre junho de
relacionados ao tráfico de drogas. Muitas 2013 e junho de 2014 na Vara de
vieram de contextos de violência prévios Execuções Penais do Fórum Criminal de
e a prisão se encaixa como mais um elo João Pessoa/PB. Foram encontrados 12
na cadeia de violências vivida. Este ciclo pareceres, analisados por meio da técnica
da violência se inicia na família e nas de análise de conteúdo de Bardin. As
instituições para crianças e adolescentes, dificuldades vividas antes do cárcere
continua no casamento, desdobra-se na foram categorizadas como “Abandono
ação tradicional das polícias e finaliza na parental”, “Trabalho precoce”, “Doenças
penitenciária. Isto porque a múltipla crônicas na infância/adolescência”,
penalização na prisão ultrapassa a pena “Abuso sexual”, “Relacionamentos
de reclusão, abarcando castigos abusivos” e “Aliciamento ao crime por
corporais, ambientes insalubres, figuras masculinas”. Durante o cárcere,
exposição às drogas, contágio de várias as dificuldades encontradas foram
doenças e abandono familiar. Assim, o “Solidão” e “Estratégias de resistência”.
objetivo deste artigo foi conhecer quais Depois da prisão, os problemas foram
foram as maiores dificuldades classificados em “Saúde comprometida”

1
Mestra e doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba. Graduada em
Psicologia e graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Atua principalmente
nas áreas de Direitos Humanos, Psicologia Social e Psicologia Jurídica
2
Mestra em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas pela Universidade Federal da
Paraíba e doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Graduada em
Direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Atua principalmente nas temáticas de Direitos
Humanos, Gênero e Diversidade
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e “Dificuldade financeira ou de inserção imprisonment, including corporal
no mercado de trabalho”. O conjunto dos punishment, unhealthy environments,
resultados revelou, de fato, histórias exposure to drugs, contagion of various
atravessadas por vulnerabilidades sociais diseases and family abandonment. Thus,
e um ciclo de violências que pode the aim of this article was to know which
começar com o abandono pelos pais na were the greatest difficulties experienced
infância, passando por abusos diversos, before, during and after jail for women
aliciamento ao crime por homens already on probation. It’s a documentary
próximos e penalizações adicionais no analysis of psychosocial documents of
cárcere, e terminar com a condição women carried out between June 2013
socioeconômica precária e exclusão do and June 2014 in the Court of Criminal
mercado de trabalho depois da prisão. Executions of the Criminal Forum of
João Pessoa/PB. Twelve documents
Palavras-chave: Mulheres. Cárcere. were found, analyzed using the
Dificuldades. Trajetórias de vida. technique of content analysis by Bardin.
The difficulties experienced before the
Abstract: Repeated statistics reveal a imprisonment were categorized as
fairly common profile of the female "Parental Abandonment," "Early Work,"
prison population: young, single, non- "Childhood/Adolescence Chronic
white, low-schooling women, who have Illness," "Sexual Abuse," "Abusive
committed drug-related crimes. Many Relationships," and "Enticement to
have come from previous contexts of Crime by Male Figures." In jail, the
violence and the prison fits as another difficulties encountered were "Solitude"
link in this chain of violence and "Strategies of resistance". After their
experienced. This cycle of violence release, the problems were classified in
begins in the family and institutions for "Health problems" and "Difficulty in
children and adolescents, continues in financial or labor market insertion". The
marriage, unfolds in the traditional set of results revealed, in fact, histories
action of the police and ends in prison. crossed by social vulnerabilities and a
That is because the multiple penalization cycle of violence that can begin with the
in prison exceeds the penalty of abandonment by the parents in the
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childhood, going through diverse abuses, Apesar da (pouca) adaptação dos
being enticed to crime by close men and presídios para encarcerá-las, a
suffering additional penalties in jail, and quantidade de mulheres presas no Brasil
ending with precarious socioeconomic é muito inferior à quantidade de homens
conditions and exclusion from the labor presos. Os dados do último relatório do
market after imprisonment. Infopen (Santos, 2017), referente a
levantamento de 2016, revelam que
Keywords: Women. Prison. havia 689.947 pessoas privadas de
Difficulties. Life trajectories. liberdade no sistema prisional no país
neste ano, sendo 41.987 mulheres (6%) e
648.860 homens (94%).
Diferentes interpretações destes
Introdução quantitativos surgem a fim de explicar a
menor incidência da criminalidade
O atual modelo prisional não foi feminina. Uma das mais populares,
desenvolvido para aprisionar mulheres inclusive no inconsciente coletivo, é a
(Buglione, 2007). Isso é facilmente biológica, perpetuada, por exemplo, por
percebido ao notar-se que, para atendê- Lombroso e Ferreiro (2004). Fausto
las e, sobretudo, para adaptar-se às suas (2001) contesta os estudos que apontam
especificidades, atualizações fatores biológicos das mulheres como
arquitetônicas – como a criação de determinantes para a menor incidência
creches – precisaram ser feitas nos delas no crime, defendendo que a sua
presídios. Este fator, inclusive, revela presença na criminalidade é, também,
como esta instituição reforça o padrão uma consequência da redução da
cultural de que a tarefa de cuidar da prole desigualdade entre os sexos, ao menos
é quase que exclusivamente feminina, no âmbito da sociedade ocidental, que
uma vez que, até então, não foi vai gerar maior presença da mulher tanto
verificada a existência de creches em no trabalho fora de casa como em
penitenciárias masculinas (Cortina, diversos campos, inclusive o da
2015). criminalidade.
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Não obstante estas tentativas de criminosos (Carvalho et al., 2006; Huang
explicações para a maior incidência de et al., 2012). A maioria das detentas,
criminalidade entre os homens do que neste contexto, vem de camadas
entre as mulheres, é importante ressaltar socioeconomicamente empobrecidas da
que houve um aumento de 656% na taxa população, tomando-se em consideração
de encarceramento de mulheres no Brasil o baixo grau de escolaridade, as
entre 2000 e 2016, enquanto que, neste vulnerabilidades relatadas e suas
mesmo período, a população carcerária ocupações antes de serem presas:
masculina cresceu 293% (Instituto ajudante de feirante, auxiliar de serviços
Igarapé, 2019). gerais, domésticas e faxineiras (Frinhani
Naturalmente, a maioria das e Souza, 2005).
mulheres que são privadas de liberdade Apesar da constatação, é
atendem a um perfil bastante específico. necessário não relacionar, diretamente,
Reiterados dados de pesquisas vão criminalidade com classe
revelando uma descrição comum da socioeconômica baixa, o que somente
população carcerária feminina: mulheres reforça o estigma de violenta e perigosa
jovens (com média de idade de 30 anos), imposto a ela. Fato é que a população
solteiras, não brancas, com baixa carcerária não é uma amostra
escolaridade e com histórico de ruptura representativa do conjunto total de
de vínculos familiares (Carvalho et al., infratores (Frinhani e Souza, 2005). O
2006; Cerneka, 2009; Shamai e Kochal, sistema penal age de maneira seletiva,
2008). elegendo a clientela prisional por meio
De modo geral, a realidade social de critérios definidos cultural e
das pessoas que estão aprisionadas é economicamente, de acordo com sua
normalmente perpassada por um função de controle social penal (Cortina,
histórico de educação deficitária, 2015), o que pode ser percebido quando
infração juvenil, uso de drogas e verifica-se a grande desproporção
envolvimento com o tráfico. Para as existente entre a programação legal do
mulheres, especificamente, sobressaem- sistema penal, constituída de inúmeros
se também histórias prévias de violência, tipos penais, e a capacidade operacional
de abandono e de cooptação por homens das agências de controle penal para
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perseguir e punir os agentes que No caso das mulheres, como
cometem as condutas definidas como evidenciam os dados do Infopen (Santos,
crime, a qual é muito inferior ao universo 2017), a seletividade penal recai mais
de crimes praticados (Zaffaroni, 1991). expressivamente sobre o crime de tráfico
De fato, apenas três crimes de drogas. Enquanto que os crimes
(roubo, furto e tráfico de drogas), juntos, ligados ao tráfico representam 26% dos
são a causa de 65% dos aprisionamentos registros dos homens privados de
no Brasil (Santos, 2017). Há uma liberdade, entre as mulheres tal
infinidade de outros tipos penais que percentual atinge 62% dos crimes
foram praticados, mas que não se juntam tentados ou consumados. É por tráfico de
a esta estatística. Ou seja, elegem-se drogas que a maioria das mulheres vai
alguns crimes como prioritários e presa no Brasil.
merecedores do cárcere, os quais, não A participação e presença da
coincidentemente, estão normalmente mulher no tráfico ainda suscita certa
ligados a um perfil específico de pessoas estranheza. Existe, segundo Assis e
(Cortina, 2015). Constantino (2001), um imaginário
Baratta (2002) afirma que isso social construído em torno da
ocorre por que as malhas do sistema criminalidade feminina que é acolhido
penal são entrelaçadas de maneira inclusive por juízes, delegados,
bastante rigorosa quando se trata de carcereiros, advogados e demais
crimes que atentam contra os interesses autoridades do sistema jurídico-penal.
das classes dominantes, como os crimes De acordo com esta concepção, de forma
contra o patrimônio, e, em bastante lombrosiana, as mulheres
contraposição, de forma frouxa quando seriam fortemente influenciadas por
se refere a outro tipo de criminalidade, estados fisiológicos e seus crimes
cuja clientela é, em regra, isenta de seriam, em sua maioria, cometidos
punição. Sob esta perspectiva, a prisão dentro do espaço privado. As mulheres
não seria uma instituição falida, mas sim se envolveriam mais em crimes
extremamente funcional na tarefa de cometidos sob violenta emoção.
selecionar e encarcerar a população que Ainda conforme essa
se encontra na marginalidade social. perspectiva, quando as mulheres
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cometem crimes de outra natureza, como formal. Considerando que tal crime é
a participação no tráfico de drogas, esses muito lucrativo em comparação com a
só poderiam estar atrelados a uma remuneração ofertada pelas ocupações
posição subalterna da mulher, justificada lícitas destinadas a pessoas com baixa
como uma extensão natural de suas escolaridade, além de permitir a boa
relações afetivas. Isto apenas não se parte das mulheres trabalhar em casa, o
aplicaria quando se tratando de lésbicas tráfico de drogas apresenta-se como
ou prostitutas, que são identificadas alternativa viável para que elas possam
como mais parecidas com os homens, aliar o trabalho com o cuidado dos filhos.
mais “masculinizadas” e habituadas à Apesar de tais considerações
rua e à delinquência (Assis e sobre um protagonismo feminino na
Constantino, 2001). atividade, merece destaque o papel de
Apesar de existir um aliciamento figuras masculinas nas práticas
ou forte influência de companheiros e criminosas pelas quais as mulheres estão
demais figuras masculinas para presas. Frinhani e Souza (2005)
envolver-se com o tráfico de drogas, a mostraram que, em suas entrevistas com
crescente participação feminina na mulheres presas, de uma forma ou de
atividade não se explica apenas por este outra, as entrevistadas se referiam a
fator (Barcinski, 2009). Para algumas algum homem como sendo o
mulheres, o envolvimento com tal crime responsável, quer direta ou
foi deliberadamente assumido, um ato de indiretamente, pelo seu ingresso na
escolha pessoal, com frequência para criminalidade ou mesmo pela prisão.
obter reconhecimento e status social. Muitas das mulheres que são
Dados coletados na pesquisa de aprisionadas vieram de um contexto de
Cortina (2015), feita com mulheres em violências dentro de uma realidade
situação de prisão, evidenciaram que os bastante comum que inclui, além de
motivos por elas mais relatados para agressões físicas, sexuais e psicológicas,
escolherem o envolvimento com a também perdas violentas de parentes
traficância ilegal são as dificuldades em próximos e/ou de parceiros conjugais
sustentar os filhos e filhas e a falta de (Guedes, 2006). Ocorre que, no sistema
inserção no mercado de trabalho lícito e penitenciário, a violência social continua
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a ser refletida por meio dos presídios cumprimento de mais uma etapa de um
superlotados, celas pouco arejadas e com ciclo de violências sofridas, presenciadas
insalubridade, precária assistência e praticadas na vivência das mulheres
médica, educacional, social e jurídica, (Soares e Silva, 2002).
etc. (Soares et al., 2014). Nas prisões, há uma múltipla
Neste sentido, Soares e Ilgenfritz penalização imposta aos detentos e
(2002) afirmam que a prisão, tanto pela detentas. Além da própria privação da
privação de liberdade em si quanto pelos liberdade, ocorrem também castigos
abusos que ocorrem em seu interior, corporais, a exposição às drogas e ao
parece ser só mais um elo na cadeia de contágio de várias enfermidades (Souza
múltiplas violências que compõem a et al., 1998). Também, como
trajetória de uma parte da população penalizações adicionais, é frequente que
feminina. Esse ciclo da violência, que recebam menos visitas que os homens, o
tem início na família e nas instituições que gera um sentimento de abandono e
para crianças e adolescentes, continua no solidão (Carvalho et al., 2006; Cerneka,
casamento, desdobra-se na ação 2009). Por isso, muitas relatam valorizar
tradicional das polícias e finaliza na mais o convívio com a família depois de
penitenciária, para tornar a ser iniciado, presas (Guedes, 2006). Enquanto a
provavelmente, na vida delas quando média de visitas por mulher presa foi de
saírem da prisão. 5,9 no intervalo de um semestre no ano
Embora quantitativamente bem de 2016, a de homens foi de 7,8 (Instituto
menos numéricas nas prisões, existem Igarapé, 2019).
evidências de que a experiência na prisão É importante salientar que a
produza danos diferentes e, inclusive, ausência de privacidade e os modos
mais significativos nas mulheres do que próprios do sistema carcerário leva os
nos homens, em especial por conta da agentes públicos e a sociedade a tratar os
própria estrutura familiar e da posição da familiares da mesma forma com que
mulher na sociedade e no mercado de tratam aqueles que de fato cumprem a
trabalho. O aprisionamento representa a pena. É neste sentido que se insere a
quebra de vínculos familiares e pessoais, invasiva e inadequada revista aos
a deterioração da identidade feminina e o familiares nas visitações, de modo que,
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assim, estes também cumpririam uma relações afetivas filiais, maternais ou
espécie de pena, além de a revista não fraternais entre as mulheres presas
garantir óbice efetivo àquilo que se quer (Barcinski, 2012).
evitar (Fiorelli e Mangini, 2017). O Segundo Gonçalves e Madrid
vexame da revista é um obstáculo às (2010), a religião também tem exercido
visitações e contribui para a solidão na um papel importante na prisão. Em um
prisão. cotidiano de privação de liberdade,
Neste contexto, a violência marcado pela violência, as atividades
incorpórea representada pelas práticas religiosas vêm a oferecer uma
disciplinadoras da instituição prisão atua oportunidade de ressignificação da
no sentido de tentar anular as vontades e trajetória de quem está preso ou presa.
os desejos pessoais (Fonseca, 2006). Em Guimarães et al (2006: 54) lembram que
resposta, no dia-a-dia, percebem-se a religião de fato evidencia uma
práticas sociais que as mulheres “possível transformação ocorrida com o
produzem como um modo de resistência preso, podendo servir como redutor da
ao controle de seus corpos, desejos, penalidade e obtenção de benefícios
subjetividade, e como modo de produzir jurídicos para o apenado, embora possa
vida e inventar saúde (Soares et al, significar a passagem de um tipo de
2014). controle social para outro”.
As estratégias de resistência e Uma das estratégias de
visibilização no cárcere, para as resistência utilizadas é também o estudo
mulheres privadas de liberdade, vão dentro do cárcere, que é, ao mesmo
desde a forma com que as apenadas tempo, uma estratégia de “tratamento”
procuram se maquiar e arrumar o cabelo, prevista para a delinquência. O ensino
o que atenua a despersonalização e dentro do sistema prisional,
uniformização promovida pela especialmente o profissionalizante,
instituição prisional (Cunha, 1994; como diz Baratta (1999), tem
1996), até aspectos relacionados às destinações específicas para a população
formas de se relacionarem entre si feminina carcerária, tendo a finalidade
estabelecidas dentro da prisão, onde de reproduzir e assegurar, no caso das
ocorre uma espécie de reedição de mulheres proletárias, a sua dupla
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subordinação, tanto nas relações de as oportunidades de emprego para elas já
gênero como nas relações de produção, e poderiam ser escassas antes do
a manutenção de sua classe encarceramento, depois são ainda mais.
socioeconômica. Contudo, a busca pela Poucas conseguem o “perdão social” e
educação surge como uma porta para direito de voltar a participar da sociedade
possibilidades futuras para aquelas civil (Rosendo et al., 2018).
mulheres presas. Embora, no Brasil, haja uma
Pensar nos projetos futuros pós- produção significativa de pesquisas na
cárcere também é uma forma de resistir. área da criminalidade feminina, elas se
Geralmente, quando tentam vislumbrar referenciam, em geral, à vida pregressa
planos de vida futuros, as detentas das mulheres encarceradas e o cotidiano
desejam recomeçar a vida e iniciar ou prisional, enquanto que detalhes da vida
retomar atividades como cuidar dos após o cárcere são mais escassos. Neste
filhos, estudar, afastar-se do mundo das sentido, o presente artigo teve como
drogas e trabalhar, mesmo tendo ciência objetivo conhecer quais foram as
de que terão dificuldades em encontrar maiores dificuldades vivenciadas antes,
um trabalho devido ao estigma de ex- durante e após o cárcere para mulheres
presidiárias (Guedes, 2006). egressas do sistema prisional, mas ainda
Uma vez em liberdade, a pessoa em livramento condicional.
que foi privada de liberdade se depara
com uma série de dificuldades na Método
inserção no mercado de trabalho devido
ao estigma e ao preconceito por tal Esta pesquisa se trata de uma
condição, e pouca ou nenhuma análise documental das entrevistas
perspectiva de emprego lhe é dada. A psicossociais completas de mulheres em
situação se agrava ainda mais para as livramento condicional, constantes do
mulheres. O estigma por elas enfrentado conjunto dos autos processuais das
é maior, pois teriam fugido mais do que mesmas, realizadas entre junho de 2013
os homens aos padrões impostos e junho de 2014 na Vara de Execuções
socialmente, como servir ao marido e aos Penais do Fórum Criminal da cidade de
filhos e atender ao papel de “do lar”. Se João Pessoa/PB.
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Neste intervalo de um ano, foram com um título genérico) unidades de
encontrados pareceres psicossociais de texto (como frases) que têm algo em
12 mulheres em livramento condicional. comum segundo o critério usado (neste
Nestes pareceres, havia breves histórias caso, o semântico). O processo de
de vida e considerações sobre a vida categorização torna-se, de tal modo, uma
atual das entrevistadas, então em representação simplificada do todo
livramento condicional, o que tinha bruto.
como fim monitorar a liberdade das
mesmas. Resultados
Neste sentido, a presente
pesquisa se aproximaria também da Os pareceres coletados revelaram
técnica de histórias de vida, que que a média de idade das mulheres da
apresenta as experiências e as definições amostra foi de 41,5 anos (DP=11,6), com
vividas por uma pessoa, um grupo, uma idades variando de 27 a 69 anos. A
organização, como esta pessoa, esta maioria delas cumpriu pena por
organização ou este grupo interpretam condenação a crimes relacionados a
sua experiência (Denzin, 2017). tráfico de drogas (41,7%) ou homicídio
Bourdieu (1973, apud Minayo, 2004) (33,3%), e, em menor quantidade, roubo
nos lembra ainda que a história do (16,7%) e perigo de contágio de moléstia
indivíduo é sempre uma certa grave (8,3%). Seis mulheres (50%)
especificação da história coletiva de seu tinham ensino fundamental incompleto,
grupo e sua classe. cinco tinham ensino médio completo
O conjunto das entrevistas foi (41,7%) e uma delas tinha ensino
analisado com base na técnica de análise superior e pós-graduações (8,3%).
de conteúdo categorial temática de Das doze mulheres da amostra,
Bardin (2011), e os dados descritivos da cinco (41,7%) tinham realizado algum
amostra foram calculados por meio do curso técnico ou de capacitação
software SPSS – Statistical Package for profissional enquanto estiveram presas.
Social Sciences, em sua versão 23. Na Os cursos eram nas áreas de artesanato,
categorização de Bardin (2011), reúnem- corte e costura, culinária e informática.
se em categorias (rubricas ou classes No que diz respeito ao estado
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ocupacional após o cárcere, quando em amostra de documentos usada que se
livramento condicional, três liberadas queria abarcar: antes, durante e pós-
(25%) estavam desempregadas, duas cárcere. A técnica utilizada foi a de
estavam aposentadas (16,7%) e as análise categorial temática de Bardin
demais sete (58,2%) estavam (2011), a partir da presença ou ausência
trabalhando, formal ou informalmente. do tema que se analisava dentro dos
Por meio da análise de conteúdo textos e do critério semântico.
realizada nos pareceres, foram feitas Na Tabela 1, visualiza-se a
categorizações para cada um dos relação das categorias temáticas criadas.
períodos da vida das mulheres da

Categorias N P
Antes
Abandono parental 5 41,6%
Trabalho precoce 3 25%
Doenças crônicas na infância/adolescência 2 16,6%
Abuso sexual 2 16,6%
Relacionamentos abusivos 3 25%
Aliciamento ao crime por figuras masculinas 3 25%
Durante
Solidão 3 25%
Estratégias de resistência 5 41,6%
Depois
Saúde comprometida 5 41,6%
Dificuldade financeira ou de inserção no mercado de trabalho 4 33,3%
Tabela 1- Detalhamento das categorias antes, durante e depois do cárcere, resultantes
da análise de conteúdo categorial temática.

Uma vez apresentadas as a apresentação dos discursos escolhidos


categorias criadas, será feita uma como mais representativos/ilustrativos
descrição de seus conteúdos, bem como delas.
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aceitou e teve com ela uma relação
Antes do cárcere maternal”.
A classe “Trabalho precoce”, por
As referências a vivências ou sua vez, agrupou todos os trechos dos
dificuldades anteriormente ao cárcere pareceres em que havia menção a
encontradas nos registros foram maioria. trabalhos ou atividades laborais
Foi incluído como vivências antes da realizadas na infância e/ou adolescência,
prisão tudo o que foi registrado no sendo que todos foram trabalhos
parecer de cada egressa e que dizia domésticos (dois de babá e um de
respeito a adversidades no período empregada doméstica). São
anterior ao cárcere, cobrindo um representativos desta categoria, assim, as
espectro que vai de informações da passagens: “Aos catorze anos de idade,
infância até dados sobre a vida fugiu de casa para seguir a profissão da
imediatamente antes do aprisionamento. mãe [empregada doméstica]” (Parecer
A categoria “Abandono parental” D) e “(...) desde os 10 anos começou a
foi a mais recorrente (5 de 12 mulheres trabalhar como babá, o que a impedia de
relataram a criação sem um dos pais ou vivenciar sua infância plenamente, como
ambos) deste grupo e traz as experiências brincar e ir à escola” (Parecer J).
de abandono pelo pai ou pela mãe A categoria “Doenças crônicas
(embora somente um caso tenha sido de na infância/adolescência” surgiu para
abandono materno) sofridas na infância acomodar os relatos sobre enfermidades
ou adolescência. Por exemplo, tem-se o desse caráter quando aquela mulher era
parecer I, que relata “(...) Foi criada pela criança ou adolescente, tendo sido um
mãe e por diferentes padrastos (...) seu caso de epilepsia e outro caso de asma.
pai biológico nunca exerceu papel de pai, Diz o parecer G “(...) a partir dos 14 anos,
não se importando muito com ela e as foi diagnosticada com epilepsia, quando
irmãs” e o parecer K: “(...) Só conheceu passou a apresentar algumas convulsões
a mãe aos 15 anos, tendo sido criada pelo e a fazer uso de medicamentos
pai e por uma madrasta que era um pouco anticonvulsivantes (...)” e o parecer E
agressiva (...) a mãe biológica nunca a “(...) desenvolveu asma aos 4 anos de
idade, doença que, segundo a
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entrevistada, marcou toda a sua vida de seu convívio familiar. É importante
negativamente (...)”. salientar que, do total de cinco crimes
Em “Abuso sexual”, por sua vez, relacionados ao tráfico de drogas, em
foram colocados os trechos dos três, ou seja, 60%, as mulheres foram a
pareceres em que havia relatos desta eles aliciadas pelos seus companheiros
forma de abuso, sendo um abuso ou parentes – em dois casos pelos
praticado pelo padrasto e o outro não companheiros e em um caso pelo irmão.
declarada a autoria. Neste sentido, o Podem ser usados para
parecer E: “Possui cinco filhos, sendo representar o tema desta categoria os
um deles fruto de um estupro” e o trechos do parecer G, que traz “(...)
parecer I: “(...) chegou a ser abusada por Entende que o amor pelo irmão motivou-
um de seus padrastos quando tinha 11 a a fazer o favor que ele a pedira, que foi
anos”. o roubo” e do parecer B, no qual
Já na categoria encontra-se “(...) Hoje viúva de um
“Relacionamentos abusivos”, foram esposo que foi dito responsável por
colocados os trechos que expressavam a envolvê-la com o tráfico (...) disse ter
vivência em relacionamentos afetivos feito isso para defendê-lo e livrá-lo de
com maridos ou companheiros abusivos. mais uma acusação, pois ele já tinha
Ilustram o teor desta categoria o relato muitas e já havia sido preso”.
presente no parecer H: “(...) O ciúme, o
desprezo e as agressões sofridas Durante o cárcere
perpetradas pelo ex-marido, a quem
cometeu homicídio” e no parecer J: (...) No que concerne ao tempo no
separou-se porque o companheiro bebia cárcere, foram incluídos nestas classes os
muito e queria agredi-la”. relatos que aludiam à vida e ao dia-a-dia
Por fim, na categoria das mulheres entrevistadas dentro da
“Aliciamento ao crime por figuras prisão, tendo sido encontradas apenas
masculinas” estão todos os trechos que informações que se referiam a duas
referiam que, para o crime pelo qual circunstâncias: solidão ou resistências.
aquelas mulheres foram condenadas, Na primeira categoria, “Solidão”,
elas foram aliciadas por algum homem foram reunidos os relatos sobre ter sido
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vivenciado tal sentimento de forma ocupação”, e o parecer D: “Quando
acentuada quando estas mulheres presa, afirmou que buscou não
estavam encarceradas, devido a ausência desenvolver problemas de
de visitas dos parentes, relacionamento e sempre se ocupar,
cônjuges/companheiros, ou mesmo em fazendo cursos, como os que fez de corte
decorrência da falta de amizades com as e costura de moda praia e preparo de
colegas do local, tais como os relatos do doces e salgados, e trabalhando, de modo
parecer C, que revela “Em seu período de que trabalhou na horta, na cozinha e na
reclusão, diz ter sido muito solitária. Não limpeza”.
se relacionava muito com as outras
colegas de cela e mal saía para tomar Depois do cárcere
banho de Sol, assim como também não
recebia visitas” e do parecer J, Por fim, nas dificuldades vividas
“Enquanto estava reclusa, passava a após a conquista da liberdade foram
maior parte do tempo sozinha e referiu descobertas duas informações: sobre os
que chorava bastante”. efeitos na saúde ou sobre a precariedade
Na categoria “Estratégias de financeira ou exclusão do mercado de
resistência”, estão todos os trechos dos trabalho. Foram reunidas na primeira
pareceres que informavam as estratégias categoria as informações registradas
de resistência utilizadas por aquelas sobre problemas de saúde físicos e
mulheres privadas de liberdade para mentais com os quais as mulheres
continuar sobrevivendo com saúde à passaram a sofrer depois que adquiriram
reclusão. Em geral, essas estratégias a liberdade, algumas vezes decorrentes
foram a aproximação com a religião, o da própria vida na prisão. Por isso, esta é
desempenho de alguma atividade laboral uma classe que também diz respeito, em
dentro da prisão ou a realização de alguma medida, à vida durante o cárcere.
cursos profissionalizantes que eram Chama a atenção a incidência
oferecidos. significativa: 5 das 12 mulheres, ou seja,
Neste sentido, o parecer E, que 41,6%, relataram comprometimentos na
traz “(...) Na prisão, evangelizou-se e fez saúde depois de passar pelo cárcere.
disso o seu novo modo de vida e
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Ilustram o teor da classe “Saúde consegue um emprego”. Este dito
comprometida” os trechos “(...) Tendo sentimento de desespero com o
ficado com uma série de problemas desemprego foi encontrado em dois
psicossociais por conta desta prisão, pareceres.
como sintomas de ansiedade, depressão Os relatos encontrados sobre as
e uma forte insônia, além de problemas vivências ao longo da trajetória de vida
de saúde como a tuberculose que destas mulheres, do início de suas vidas
contraiu no sistema prisional e da qual até a prisão e depois dela, se encontram,
ainda se recupera apropriadamente” em grande parte, em concordância com o
(Parecer D) e “Disse que hoje não se que já traz a literatura. Assim, Souza et
encontra muito bem, pois sofre de dores al. (1998) ressaltaram a existência do
de cabeça quando sente muita raiva e perigo de contágio de várias
desejo de vingança com o mundo” enfermidades na prisão, Carvalho et al.
(Parecer F). (2006) e Cerneka (2009) enfatizaram a
A categoria “Dificuldade solidão da mulher privada de liberdade,
financeira ou de inserção no mercado de que recebe menos visitas que os homens,
trabalho”, por último, agrupou todas as gerando o sentimento de abandono,
informações relatadas sobre estar-se Frinhani e Souza (2005) chamaram a
vivendo sérias dificuldades financeiras atenção para a recorrência do trabalho
depois de ter saído da prisão, em como domésticas, Carvalho et al (2006)
condições socioeconômicas precárias, e Huang et al. (2012) para o histórico de
ou então em dificuldades para conseguir educação deficitária e Barcinski (2009)
um emprego formal por conta do estigma para o aliciamento ou forte influência de
da condição de ser ex-presidiária. Neste companheiros e demais figuras
sentido, os pareceres D, “(...) referiu que masculinas para aquela mulher envolver-
sofre preconceito por ser egressa do se com o tráfico.
sistema penal, o que a desestimula
bastante, e que (...) tudo no que queria Discussão
pensar e gostaria de obter seria um
emprego fixo” e F, “(...) referiu que se O que o conjunto dos resultados
encontra desesperada porque não apresentados deflagrou é a inegável
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exposição da situação de vulnerabilidade principalmente, na solidão vivenciada
e marginalidade sociais vividas pelas dentro daqueles muros, bem como a
mulheres da amostra, bem como o ciclo aquisição de problemas de saúde. Neste
de violências iniciado desde a infância: sentido, a prisão, por si mesma, funciona
um cenário de abandono parental, como uma dupla penalização: além da
trabalho infantil, abuso sexual e condenação à pena privativa de liberdade
relacionamentos abusivos, influência ou em si mesma, as mulheres também são
aliciamento por homens para a penalizadas, como ressaltaram Carvalho
participação nos crimes, solidão e et al. (2006), com a solidão, algo que
abandono no cárcere, problemas de decorre especificamente da condição de
saúde, desemprego e condição financeira ser mulher, uma vez que isso ocorre
precária após a prisão. menos para a população carcerária
As mulheres, enquanto masculina, que recebe mais visitas,
integrantes do gênero feminino, são inclusive visita íntima. A mulher presa,
conhecidamente submetidas a um ciclo por diversos motivos, é condenada ao
contínuo de violências ao longo de suas esquecimento e ao abandono familiar e
vidas, físicas ou não, estruturais, conjugal, e isto foi o levantado nas
simbólicas ou institucionais. Quando análises dos pareceres deste estudo.
falamos de mulheres de classes As estratégias de resistência
oprimidas, as violências se tornam ainda relatadas parecem ser o único respiro no
mais comuns e mais intensificadas e as meio da sequência de violências. Os
acompanham do início de suas vidas até pareceres revelaram que a aproximação
o final. São histórias de violência e de com a religião (a evangelização), a
falta de acesso aos direitos de cidadania, realização de cursos e também o trabalho
aos bens e aos benefícios da sociedade foram as formas encontradas para
que garantem a dignidade humana. sobreviver à prisão e “ocupar a cabeça”,
Esse foi o tom das histórias ou promover saúde mental e, por que
presentes nos pareceres das mulheres não, física. A oportunidade de fazer
que compuseram este estudo. Quando cursos foi também uma maneira de
elas foram presas, esse ciclo de violência resistir e se ocupar. De fato, tratam-se de
continuou e ganhou expressão, uma forma de fazer o tempo deixar de ser
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apenas um tempo de espera para ser após o cárcere, pelo estigma, contribui
também de produção. diretamente para a manutenção dessa
O ciclo da violência continua, situação de exclusão social.
nos dizem os pareceres, igualmente após Como bem explicaram Rosendo
o cárcere. A dupla penalização referida et al. (2018), esse cenário piora para as
segue para fora da prisão sob a forma de mulheres em relação ao homem ex-
sequelas que ela deixa na saúde. A pena presidiário devido, mais uma vez, a
de privação de liberdade é acrescida de dupla penalização: dessa vez, por aquela
um plus de punição que está presente nas mulher ter fugido ao padrão de
condições estruturais, assistenciais e docilização e disciplinarização esperado
sanitárias precárias dos presídios que mais delas, de maneira que é ainda
deixam danos na saúde, física e menos aceitável que uma mulher, que
psicológica, dos sujeitos que foram deveria representar o arquétipo da mãe,
presos. Um dos pareceres da amostra tenha se envolvido com o crime. Se as
relatou a aquisição de tuberculose na ofertas de emprego poderiam, por
prisão, uma enfermidade comum neste diversas razões, já ser poucas antes (ou
âmbito (Machado et al., 2016). Além até inexistentes), depois da prisão se
disso, foram comuns os sintomas de reduzem ainda mais.
sofrimento psíquico: ansiedade e A aquisição de um emprego,
depressão, insônia, traumas, sentimentos socialmente, além de meio para perceber
de medo, desespero, raiva e vingança. o capital imediato de satisfação das
A situação financeira precária necessidades básicas, também é uma
depois do tempo em privação mais a não forma de reconhecer que aquela pessoa
inserção no mercado de trabalho que reconquistou a liberdade não está
finalizam o conto dessa história de mais envolvida com a criminalidade
vulnerabilidades das mulheres. (Souza e Silveira, 2017). A desocupação
Enquanto que a situação socioeconômica depois da prisão, por tais motivos, pode
já poderia ser precária nas suas vidas abrir uma porta para que se enxergue na
pregressas, inclusive possivelmente pela criminalidade, novamente, a única saída
falta de trabalho formal em alguns casos, restante para a obtenção de capital para a
a dificuldade de conseguir um emprego
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subsistência, levando à reincidência socioeconômica precária e exclusão do
criminal. mercado de trabalho depois da prisão. A
Todo este cenário exposto análise dos dados revelou um triste
descortina, somando-se ao conjunto de padrão comum, que, inclusive, pode
trabalhos neste campo, a falência do parecer estereotipado, mas que foi
sistema prisional em seus (ditos) fins de efetivamente encontrado.
recuperação da pessoa que cometeu o Evidentemente, trata-se de uma
crime e também revela a dupla amostra pequena e de um instrumento de
penalização imposta aos reclusos que coleta de informações (pareceres
ultrapassa, e muito, a mera reclusão. A psicossociais) com dados pré-
questão é ainda mais sensível para as determinados e feitos por outrem, não
mulheres, que, com frequência, incorrem tendo sido a pesquisa feita diretamente
no crime por aliciamento de alguma com as pessoas, de maneira que
figura masculina próxima, sofrem com o certamente nem tudo o que foi dito
abandono familiar quando no cárcere e encontra-se nos documentos e também
com um maior estigma decorrente da não se pode assegurar que o que foi
condição de ex-presidiária quando saem registrado foi dito exatamente como foi
dele – e, consequentemente, com maior anotado. Além disso, certamente, as
dificuldade de inserção no mercado de dificuldades identificadas nos pareceres
trabalho. não devem ter sido as únicas vividas.
Ainda assim, os dados relatados, que são
Considerações finais oficiais e foram fruto de entrevistas, de
fato trazem tal realidade, a qual só
O presente estudo revelou, por denuncia a condição precária das
meio da leitura atenta dos pareceres, uma mulheres que vão presas em nosso país.
história de mulheres egressas do sistema Esta realidade ressalta que
prisional atravessada por alternativas para a trajetória destas
vulnerabilidades sociais e por um ciclo mulheres são cogentes. Há uma
de violências que pode ter início com o verdadeira necessidade de adoção de
abandono pelos pais na infância e penas alternativas à prisão,
terminar com a condição especialmente quando o crime é dito de
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menor potencial ofensivo. Além disso, é (org.), Criminologia e feminismo. Porto
imprescindível promover a qualificação Alegre: Editora Sulina, p. 19-80.
profissional intramuros, bem como a
realização de parcerias com empresas Barcinski, Mariana (2009),
(públicas e privadas) para incentivar e “Protagonismo e vitimização na
oferecer postos de trabalho (não trajetória de mulheres envolvidas na rede
precarizados, vale salientar) às mulheres do tráfico de drogas no Rio de Janeiro”.
egressas do sistema. Como lembra Ciênc. saúde colet., 14(2), 577-586.
Baratta (1999), não se pode alcançar a Consultado a 02.12.2018, em
reintegração social do condenado por https://www.scielosp.org/pdf/csc/2009.v
meio do cumprimento da pena de 14n2/577-586
reclusão, no entanto, se deve buscá-la
apesar dela.
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