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DOI: 10.1590/1413-81232015215.

14542015 1583

As Estratégias da Saúde da Família no enfrentamento

temas livres free themes


das violências envolvendo adolescentes

Family Health Strategies to tackle violence involving adolescents

Moysés Francisco Vieira Netto 1


Suely Ferreira Deslandes 1

Abstract The Family Health Strategy (FHS) has Resumo A Estratégia Saúde da Família (ESF)
an acknowledged potential for the promotion of apresenta reconhecido potencial para a promoção
health and the prevention of violence. This is an da saúde e a prevenção das violências. Trata-se de
integrative bibliographic review with the aim of revisão bibliográfica integrativa com o objetivo
evaluating the performance of FHS professionals de avaliar a atuação dos profissionais da ESF no
in tackling and preventing violence involving ado- enfrentamento e prevenção das violências envol-
lescents. It is an integrative review of dissertations vendo adolescentes. O acervo foi de 17 dissertações
and theses on healthcare published from 1994 to e 2 teses da área da saúde, entre 1994 e 2014, e
2014. The collection of 17 dissertations and 2 doc- evidencia que são recentes os estudos sobre o tema.
toral theses reveals that these studies are recent. Os profissionais reconhecem a vulnerabilidade do
The FHS professionals acknowledge the vulnera- adolescente para praticar e sofrer violências, entre-
bility of adolescents to inflicting and being subject tanto a ESF mostra-se pouco atuante no enfren-
to violence, however the FHS proves ineffective in tamento e prevenção das mesmas. O predomínio
tackling and preventing such violence. The pre- do modelo médico técnico assistencial, as defici-
dominance of the medical technical care model, ências do ensino de Saúde Coletiva na formação
the deficiencies in Public Health education in dos profissionais e a falta de respaldo institucio-
professional training and the lack of institution- nal são apontados como entraves. Muitos desses
al support are seen as the main obstacles. Many profissionais desconhecem a ficha de notificação
of these professionals are unaware of the files for das violências. A violência familiar e a de grupos
notification of violence. The existence of family vi- criminosos foram as mais citadas como presentes
olence and criminal groups were the aspects most nos territórios. Verifica-se a reprodução da repre-
mentioned in the territories. The social represen- sentação social do adolescente como “problemáti-
tation of adolescents as being “problematic” and co” e a ausência de ações da ESF que promovam
the lack of ESF actions that promote an increase o protagonismo juvenil e o seu empoderamento.
youth leadership and empowerment were clearly Palavras-chave Violência, Adolescente, Estraté-
detected. gia Saúde da Família
Key words Violence, Adolescent, Family Health
1
Instituto Fernandes
Figueira, Fiocruz. Av. Rui Strategy
Barbosa 716, Flamengo.
22250-020 Rio de Janeiro
RJ Brasil.
mfvnetto@hotmail.com
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Vieira Netto MF, Deslandes SF

Introdução direcionada aos cuidados primários, de forma a


responder às demandas, identificando os riscos
A violência tem sido um dos grandes desafios à vida10. É neste contexto abrangente que a ESF
para as agências públicas e os sistemas de saúde1. está inserida, com responsabilizações ampliadas e
A Organização Mundial (OMS) e a Organização cada vez mais abrangentes, visando atender pro-
Pan Americana de Saúde (OPAS), a partir da dé- blemas que antes eram menos frequentes ou não
cada de 1990, reconhecem oficialmente as violên- incluídos na agenda da saúde11.
cias como o maior e mais crescente problema de A ESF é reconhecida em suas premissas como
saúde pública no mundo1. Todavia, a apropriação importante estratégia política para o enfren-
do tema da violência e sua legitimação pela Saúde tamento das violências, especialmente no que
como objeto de pesquisa, intervenção e formula- concerne à sua prevenção12. Contudo, apesar do
ção de políticas é relativamente recente no Brasil2,3. avanço em número de equipes da ESF nas Unida-
Tomando-se o conceito de vulnerabilidade des Básicas de Saúde (UBS) em todo o território
enquanto um constructo que delimita, nos pla- nacional, observa-se pouca atuação frente à vio-
nos individual, biológico, sociocultural, progra- lência7,13,14.
mático e institucional, os diferentes capitais dis- Considerando tais questões, o artigo bus-
poníveis e capazes de proteger pessoas e coletivi- ca analisar como tem sido a atuação da ESF no
dades dos agravos à saúde4, podemos afirmar que enfrentamento das violências envolvendo ado-
os adolescentes são um dos grupos mais vulnerá- lescentes e quais ações tem investido junto a esse
veis da nossa sociedade para sofrerem violências5. segmento na promoção de uma cultura de paz.
Constata-se que no Brasil a violência cons-
titui há mais de duas décadas a principal causa
de morte entre adolescentes5. Segundo o mais re- Material e método
cente mapeamento da violência juvenil no Brasil,
os adolescentes e os jovens representam grupos O estudo constitui uma revisão bibliográfica in-
extremamente vulneráveis para sofrer ou come- tegrativa a partir de acervo delimitado pelo con-
ter violências, e os centros urbanos são os locais junto de dissertações e teses da área da saúde. A
onde se concentram os maiores índices dessas revisão integrativa é a modalidade de investiga-
violências6. ção científica que visa reunir a análise de pes-
O Brasil ocupava em 2010 o oitavo lugar den- quisas relevantes que dão suporte para a tomada
tre os 25 países do mundo com maiores taxas de de decisão, possibilitando a síntese do estado do
homicídios de adolescentes. Além disso, tanto as conhecimento de um determinado assunto, além
agressões físicas, em ambientes públicos ou em de apontar lacunas que precisam ser minimiza-
domicílios, quanto os suicídios têm crescido ex- das com a realização de novos estudos15.
pressivamente entre esse grupo etário5. Utilizou-se o Banco de Teses da Biblioteca
A violência contra adolescentes é definida de Virtual do Centro de Aperfeiçoamento Profissio-
forma abrangente, como todo ato intencional ou nal de Ensino Superior - CAPES (http://capesdw.
omissão capaz de causar danos físico, sexual e/ou capes.gov.br/capesdw), tendo como critério de
psicológico6. Implica, de um lado, numa ruptura busca os descritores: violência, agressão, adoles-
da expectativa idealizada da proteção que adultos cente, Saúde da Família (SF), Programa Saúde
e sociedade em geral deveriam prestar; de outro, da Família (PSF) e Estratégia Saúde da Família.
numa negação do direito outorgado na contem- Considerando que a ESF foi instituída a partir
poraneidade ocidental de serem protegidos como de práticas em SF e do PSF, essas terminologias
sujeitos e pessoas em condições especiais de cres- foram incluídas. O recorte temporal marca o
cimento e desenvolvimento2. ano de criação do PSF (1994), até o mês de abril
Os modos de enfrentamento e prevenção às (completo) de 2014.
violências contra este segmento ainda são mo- A escolha pela produção da pós-graduação
destos, pouco eficazes, merecendo especial aten- sustenta-se em dois argumentos: 1. a pós-gradu-
ção5-8. No que concerne às iniciativas da Saúde, o ação representa o mais alto nível na hierarquia de
Pacto pela Saúde, de 2006, prevê, por exemplo, o formação de quadros para pesquisa e assistência,
cuidado integral aos adolescentes e a prevenção permitindo um retrato da visibilidade do tema
das violências como uma das ações da Estratégia nesse lócus; 2. no âmbito da pós-graduação se
Saúde da Família (ESF)9. encontra a maior produção sobre o tema. A bus-
A ESF foi concebida com o propósito de me- ca exploratória na base SciELO, com os mesmos
lhorar o estado de saúde da população brasileira, descritores, permitiu um resultado muito mais
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restrito. Considerando o assunto principal “vio- mais recentemente, sendo mais da metade dos
lência”, 1.485 artigos estão disponíveis. Ao refinar estudos produzida entre 2011 e 2012 (11 das 19
a busca com o descritor “saúde da família” (na publicações). Os dados demonstram o quanto é
opção de “todos os índices”) são selecionados atual e crescente o interesse pelo estudo do tema.
16 e desses restam apenas dois artigos quando Nota-se que os municípios de aplicação das
acrescido o descritor “adolescente” (ambos dos pesquisas coincidem com os das instituições de
mesmos autores). Ensino. A maior parte da produção concentra-se
A partir do portal da CAPES, obteve-se um na região Nordeste e Sudeste. Apenas três pes-
total de 134 dissertações e 43 teses. Todos os re- quisas foram realizadas na região Sul, e nenhu-
sumos foram lidos e adotou-se como critério de ma nas regiões Norte e Centro-Oeste. O maior
exclusão estudos que não tratassem a atuação da número de estudos em instituições do Nordeste
ESF no enfrentamento das violências envolven- coincide com a região de implantação da ESF no
do adolescentes. Também foram excluídos seis Brasil. Quanto à vinculação à área dos cursos, a
estudos com indisponibilidade de acesso ao con- maior parte da produção está relacionada à saúde
teúdo completo, após solicitações às bibliotecas coletiva (13 estudos), outros quatro à enferma-
e autores. gem e dois à psicologia.
O acervo final constituiu-se de 17 disserta- Dentre as violências estudadas, 15 estudos
ções e duas teses. A partir da leitura dos textos tratam da violência familiar. Destes, nove volta-
completos, foi feita uma caracterização da pro- ram-se para a RS da violência (quanto às percep-
dução servindo de cenário inicial de análise. ções, valores e conhecimentos dos profissionais
A interpretação das práticas relatadas e dos da ESF), e seis focaram o processo de notificação
sentidos manifestos foi conduzida pela técnica de dessas violências (Quadro 2).
análise temática16 através dos procedimentos: lei- Foi possível observar apenas três pesquisas
tura flutuante de cada texto; numeração de cada com enfoques abrangentes, voltadas para a com-
documento (Fontes de 1 a 19); identificação de preensão das RS e os processos de prevenção e
eixos temáticos; identificação de representações cuidados com os adolescentes.
nucleadoras dos sentidos de cada tema; produ- Quando analisado o tipo de metodologia
ção de inferências; e, por fim, diálogo com a li- aplicada, 12 estudos foram qualitativos, seis estu-
teratura. dos quantitativos e um quanti-qualitativo.
A análise das ideias centrais permitiu o agru-
pamento do acervo em três grandes temas: I. Representações da violência
Representações das violências envolvendo ado- envolvendo adolescentes
lescentes; II. Desafios para tratar a violência na
agenda da ESF; III. Propostas apresentadas para Com base nas RS dos profissionais da ESF, os
atuação da ESF. O primeiro tema trata a ótica estudos revelam que algumas vezes as violências
dos profissionais entrevistados pelos autores dos parecem personificadas à identidade adolescente.
estudos, o segundo e o terceiro temas trazem a Como se a violência na adolescência representas-
perspectiva dos autores dos estudos a partir das se em regra um problema social de poucas pos-
suas conclusões investigativas. Para tratar o pri- sibilidades de enfrentamento, demarcando um
meiro tema operou-se com a categoria de repre- campo de atuação desafiador para as políticas
sentações sociais (RS), definidas como o con- públicas, consequentemente para a ESF (Fontes
junto heterogêneo de ideias e concepções que 2, 4, 5, 9, 8, 11, 16, 17).
sustentam “visões de mundo”. Sua análise pode A violência familiar envolvendo adolescentes
ser um caminho para a compreensão de crenças e foi a mais retratada, objeto de 15 estudos (Fontes
valores enquanto balizas que influenciam a ação 1-7, 9, 10, 12-17). Apenas um estudo (F.1) desta-
dos sujeitos, ainda que não a determine17. Traba- ca a sinergia da violência familiar com o poder
lhou-se com um material já interpretado, por- legitimado socialmente ao homem, que numa
tanto a RS dos profissionais aqui tratadas são o relação de desigualdade de gênero acaba por
resultado de sucessivas inferências analíticas dos repercutir em abuso, intolerância, desrespeito e
autores consultados. submissão à companheira e seus filhos.
A RS da violência familiar é tratada pela óti-
Caracterização da produção ca da frágil constituição dos laços protetores. Os
relatos dos profissionais mencionam que algumas
No acervo analisado (Quadro 1) observa- mulheres se acham incapazes de exercer a denún-
se que a maior parte da produção foi publicada cia contra o seu companheiro, já que o mesmo
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Quadro 1. Caracterização das fontes estudas segundo título da pesquisa, nome dos autores, ano de publicação,
instituição de ensino, curso e área de atuação. Brasil, 2006-2012.

Nº da Ano
fonte Título/autor Instituição Curso/área

1 “Violência doméstica contra a mulher: 2012 Universidade Federal Mestrado


representações de profissionais na Estratégia de da Bahia - UFBA Enfermagem
Saúde da Família” . Silva Filho CC

2 “Notificação de maus tratos em crianças e 2012 Universidade de Mestrado Saúde


adolescentes por profissionais da Estratégia Fortaleza - UNIFOR Coletiva
Saúde da Família”. Moreira GAR

3 “Entre as amarras do medo e o dever 2012 Universidade Federal Mestrado Saúde


sóciossanitário: notificação da violência contra de Pernambuco - Coletiva
crianças e adolescentes sob a perspectiva de rede UFPE
na Atenção Primária”. Silva JL

4 “Notificação de maus-tratos em crianças e 2012 Universidade de Mestrado Saúde


adolescentes em cinco regiões de saúde do Fortaleza - UNIFOR Coletiva
Ceará”. Pinto JR

5 “A construção do cuidado: o atendimento às 2012 Universidade de São Mestrado Saúde


situações de violência doméstica por euipes de Paulo - USP Pública
Saúde da Família” . Moreira TNF

6 “Impasses no acolhimento de crianças e 2012 Universidade Federal Doutorado Ciências


adolescentes em situação de violência sexual por de Minas Gerais - da Saúde
profissionais da Estratégia Saúde da Família”. UFMG
Trabbold VLM

7 Estratégia de Saúde da Família e o atendimentos 2011 Universidade Federal Mestrado Psicologia


aos adolescentes”. Santos BR de Santa Maria -
UFSM

8 “Notificação de maus tratos em crianças e 2011 Universidade de Mestrado Saúde


adolescentes em microrregiões de saúde do Fortaleza - UNIFOR Coletiva
Ceará”. Silva IZF

9 “Ações de enfermeiros (as) na atenção primária 2011 Universidade de São Mestrado


à saúde de crianças e adolescentes vítimas Paulo - USP Enfermagem
de violência doméstica no distrito oeste do
unicípio de Ribeirão Preto-SP”. Leite JT

10 “Entre o sol e a liberdade impera a violência: 2011 Universidade Federal Mestrado


formação de redes para a ação a partir da do Rio Grande do Enfermagem
estratégia saúde da família”. Oliveira KKD Norte - UFRN

11 “Sensibilização de profissionais de Programa 2011 Universidade Federal Mestrado Psicologia


Saúde da Família (PSF) para notificação de de Sao Carlos -
violência contra criança e adolescente: um UFSCAR
estudo de caso”. Bannwart TH

12 “Percepções dos profissionais da Estratégia 2010 Universidade de Mestrado Saúde


Saúde da Família acerca do enfrentamento da Fortaleza - UNIFOR Coletiva
violência entre adolescentes”. Ferreira Júnior AR

continua
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Quadro 1. continuação

Nº da Ano
fonte Título/autor Instituição Curso/área

13 “Estratégia Saúde da Família e a notificação de Universidade de Mestrado Saúde


maus tratos contra crianças e adolescentes na 2010 Fortaleza - UNIFOR Coletiva
região metropolitana de Fortaleza”. Barbosa IL

14 “A percepção de médicos do PSF sobre o 2010 Universidade do Vale Mestrado Saúde e


processo de atendimento médico a crianças e do Itajaí - UNIVALI Gestão do trabalho
adolescentes vítimas de violência doméstica”.
Margarido A

15 “Conhecimentos e práticas dos profissionais de 2009 Universidade Estácio Mestrado Saúde da


Saúde da Família diante da violência doméstica de Sá do Rio de Família
contra crianças e adolescentes no município de Janeiro
Teresópolis-RJ”. Lobato GR

16 “A violência intrafamiliar contra a crianças e o 2007 Universidade Federal Doutorado


adolescente na perspectivade profissionais de de São Paulo - Enfermagem
saúde”. Nunes CB UNIFESP

17 “Violência intrafamiliar contra crianças e 2007 Universidade Federal Mestrado Ciências


adolescentes na perspectiva dos profissionais de Uberlândia - UFU da Saúde
de Saúde da Família: contribuições para uma
política pública de prevenção”. Villar EB

18 “Notificação de maus tratos em crianças e 2007 Universidade de Mestrado Saúde


adolescentes por profissionais da equipe Saúde Fortaleza - UNIFOR Coletiva
da Família – Fortaleza (CE)”. Luna GLM

19 “A violência familiar contra crianças e 2006 Universidade Estadual Mestrado Ciências


adolescentes e a intervenção das equipes de de Ponta Grossa - Sociais Aplicadas
Saúde da Família do município de Ponta UEPG
Grossa”. Sonego C

Fonte: Capes, abril de 2014.

provê o sustento da família. Enfatiza-se que, nes- adolescentes. Alguns estudos reconhecem que os
sa dinâmica, a mãe também é vítima de violência meios de comunicação dão ênfase a esse tema,
(F.10). muitas vezes de forma sensacionalista, reprodu-
A violência sexual foi abordada como uma das zindo percepções de violências que associam line-
mais crescentes manifestações de violência fami- armente as dinâmicas e os modos de viver das pe-
liar nos territórios. A identificação desses agresso- riferias com o tráfico de drogas e as armas (F.3, 6).
res esteve associada à sensação de medo e impo- Poucas pesquisas propuseram discussões
tência dos profissionais da ESF, sem que houvesse problematizando o envolvimento dos adolescen-
iniciativa de enfrentamento definida (F.6). tes com as drogas e a prática de violências. Con-
A violência urbana foi a segunda menção tudo, a situação foi citada pelos profissionais a
dentre as forma de violência envolvendo adoles- partir dos constantes problemas em que estão en-
centes (F. 1,3,4,6,7,9,10,15-17). Todas as 19 pes- volvidos nas comunidades e pela multiplicidade
quisas foram consensuais sobre a percepção dos de atos infracionais associados (F.7,10). Enfatiza-
profissionais da ESF acerca dos riscos à qualidade se, ainda, que o uso de drogas entre adolescentes
de vida que as violências urbanas têm trazido aos colabora para a valorização do uso da força como
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Quadro 2. Caracterização das fontes estudadas segundo temas, objetivos, método de pesquisa e instrumentos.

Temas Fonte e objetivos Método Instrumento


utilizado para
coleta dos dados

Representações sociais, percepções, F.7. Conhecer as demandas Qualitativo F.7. entrevista;


conhecimentos e estratégias de identificadas pelos profissionais da
prevenção, proteção e cuidado das ESF com foco nos adolescentes.
Equipes da ESF frente a situações de F.10. Analisar a construção coletiva F.10. questionário
violências. de uma rede de proteção à violência. e entrevista;
F.12. Investigar as percepções
dos profissionais da ESFno F.12. entrevista
enfrentamento da violência entre e observação
adolescentes. participante;

Representações Sociais, percepções, F.1. Estudar as representações sociais Qualitativo F.1. teste de
conhecimentos e estratégias de dos profissionais da ESF sobre a associação livre
prevenção, proteção e cuidado das violência doméstica contra a mulher de palavras e
Equipes da ESF frente a situações de e a assistência prestada à crianças e entrevista;
violência familiar. adolescentes.
F.5. Compreender as estratégias F.5. entrevista;
de cuidado contra a violência
doméstica com crianças e
adolescentes construídas pela ESF.
F.15. Identificar as percepções F.15. entrevista
dos profissionais da ESF sobre a individual;
violência doméstica com crianças e
adolescentes.
F.16. Identificar as percepções F.16. entrevista
sobre a violência intrafamiliar e observação
envolvendo crianças e adolescentes participante;
na perspectiva dos profissiionais de
saúde.

F.17. Avaliar o conhecimento e a Quantitativo F.17. questionário,


conduta dos profissionais da ESF e entrevista;
PACS sobre a violência intrafamiliar
contra crianças e adolescentes.

F.19. Discutir o fenômeno da Quanti- F.19. questionário


violência familiar contra crianças e qualitativo e entrevista;
adolescentes e analisar a atuação das
equipes da ESF junto aos casos de
ocorrência.

Atuação dos enfermeiros da ESF F.9.Conhecer e descrever as ações Qualitativo F.9. entrevistas e
frente a situações de atenção primária prestada por diário de campo;
de violência familiar. enfermeiros da ESF às crianças e
adolescentes vítimas de violência
doméstica.

Atuação dos médicos da ESF frente a F.14. Investigar a vivência e a Qualitativo F.14.entrevista;
situações de violência familiar. prática diária de médicos da ESF no
atendimento a violência doméstica
contra crianças e adolescentes.

continua
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Quadro 2. continuação

Temas Fonte e objetivos Método Instrumento


utilizado para
coleta dos dados

Desenvolvimento e avaliação de F.11. Sensibilizar os profisisonais do Quantitativo F.11.questionário;


estratégia de capacitação profissional PSF quanto à prevenção da violência
na temática da violência familiar. contra crianças e adolescentes ao
elaborar, propor e avaliar um curso
de capacitação para identificar
e notificar maus-tratos contra
crianças e adolescentes.

Notificação de violência familiar. F.3. Identificar os fatores que Quanti- F.3. questionário
influenciam a notificação da Qualitativo e entrevista;
violência contra crianças e
adolescentes sob a perspectiva de
rede pelos profissionais da ESF.

F.2.Analisar a notificação de maus- Quantitativo F.2. questionário;


tratos em crianças e adolescentes a
partir da prática da ESF.
F.4. Analisar a notificação de maus- F.4. questionário;
tratos em crianças e adolescentes
a partir da prática de médicos,
enfermeiros e cirugiões-dentistas
da ESF.
F.8. Identificação das características F.8. questionário;
dos profissionais da ESF (formação,
tempo de trabalho, variáveis
sociodemográficas) para a
instrumentalização da notificação
de maus-tratos em crianças e
adolescentes.
F.13. compreender a dinâmica F.13.
familiar de famílias que possuem questionário;
filhos adolescentes envolvidos com
o abuso de drogas, na perspectiva de
suas mães, e compreender a história
de vida familiar
F.18.Analisar o processo de F.18. questionário
notificação de maus-tratos em
crianças e adolescentes por médicos,
enfermeiros e cirurgiões dentistas
da ESF.

Identificação e condução profissional F.6. Investigar as práticas discursivas Qualitativo F.6. entrevista
dos casos de violência sexual de diferentes profissionais da ESF
sobre a identificação e condução
dos casos de violência sexual contra
crianças e adolescentes.

Fonte: Capes, abril de 2014.

meio de resolução de conflitos, comuns a essa fai- O tráfico de drogas e armas chega a ameaçar
xa etária (F.7). a rotina de trabalho da ESF, com situações de
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conflitos que envolvem os profissionais, levando uma nova postura de atuação, inclusive de gestão,
à interrupção do atendimento em algumas cir- com administração das demandas e priorização
cunstâncias (F.7). dos agravos (F.2,13,14,16,17).
A violência também é apontada por alguns Outro grande desafio apontado foi a falta de
profissionais como um problema social a ser preparo dos profissionais da ESF. Para muitos au-
enfrentado por medidas de repressão, como sen- tores esse é um dos principais empecilhos para o
do de competência exclusiva do poder policial reconhecimento da necessidade de se trabalhar o
(F.4, 8). tema das violências junto aos adolescentes (F.1 -
Constatou-se nos relatos dos profissionais a 5,9,14,17).
ausência de discursos que problematizassem as Nesse cenário, os relatos dos profissionais
vulnerabilidades sociais e as motivações dos ado- afirmam que a maioria dos cursos da saúde não
lescentes para o envolvimento com ações violen- contempla em seus currículos aspectos relacio-
tas e as formas de trabalhar tais questões. nados às violências, e que, por isso, não se encon-
tram preparados para oferecer ações que tenham
Desafios para tratar a violência impacto efetivo à saúde daqueles envolvidos, seja
na agenda da ESF das vítimas ou dos perpetradores (F.1,2,4,6,7,11-
14,16).
A maioria dos estudos reconhece que os pro- Segundo boa parte das pesquisas, a maioria
fissionais estariam sensibilizados com o cresci- dos profissionais nunca recebeu treinamento
mento das violências envolvendo adolescentes, específico no assunto, não lê, nem discute a te-
porém, destaca-se a ausência de medidas espe- mática no ambiente de trabalho (F.2,4,5,12,15).
cíficas de enfrentamento (F.1,3,4,6,7,9,10,15,16). Contudo, mesmo com a realização de algumas
Todavia, identificou-se resistência de alguns oficinas e capacitações, constataram-se dificulda-
profissionais para acompanhar os casos de vio- des destes eventos serem incorporados nas agen-
lência, sobretudo por não considerarem este tipo das dos profissionais da ESF (F.1-11,13,14,15,17).
de problema pertinente ao setor saúde (F.4,8). A Quanto ao enfoque dado à notificação, foi
prática contínua de notificação e de acompanha- quase unânime entre os profissionais da ESF o
mento dos casos de violências foi mencionada entendimento sobre a responsabilidade da Saúde
em apenas dois estudos (F.5,17). na identificação, notificação e acompanhamento
A falta de respaldo institucional foi conside- dos casos de violências que atingem aos adoles-
rada pela análise dos autores como o maior de- centes (F.1-7, 11, 12, 14, 16). Paradoxalmente, a
safio. Os relatos mostram a desarticulação entre sub-notificação foi identificada como um gran-
instituições e setores que poderiam, junto com a de desafio a ser superado (F.1-4,6-13,16). Alguns
Saúde, atuar como redes de suporte e proteção. profissionais sequer conheciam a Portaria que
Constata-se, ainda, uma incompreensão dos flu- oficializou a notificação compulsória de violên-
xos de encaminhamentos que poderiam fortale- cia no Brasil. Outros desconheciam a utilização
cer o acompanhamento dos casos de violências da ficha de notificação na UBS de referência de
envolvendo adolescentes (F.1-11,13,15,16,17). atuação da sua ESF (F. 2,9,10,13,15).
Em relação à construção dessas redes de pro- A subnotificação foi também relacionada
teção, algumas pesquisas enfatizam que a ESF ao desconhecimento de profissionais do que
tem dificuldade no trabalho interdisciplinar e fazer nos casos de violência identificada (F.2,4,
intersetorial (F.9,8,11,13,15). Contudo, o enfren- 6- 8,10,13). Alguns estudos indicam que entre
tamento da violência requer um rompimento as equipes houve predomínio para a notificação
do modelo de saúde fragmentado, com vistas à somente dos casos confirmados, sem a devida
construção de um trabalho que coloque em co- responsabilização de acompanhamento das situ-
municação os setores, entrelace as possibilidades, ações (F.4,13). Contudo, para alguns gestores en-
fortaleça as potencialidades e dê suporte a varia- trevistados, a notificação deveria ser um registro
das iniciativas de enfrentamento e, sobretudo, de sinalizador para o planejamento e para a gestão
prevenção às violências (F.13). em saúde que permitiria a alocação de recursos e
Alguns estudos mostram que profissionais a oferta de serviços mais adequados (F.6,11).
da ESF justificam não atuar em redes devido à O medo foi a justificativa mais citada como
sobrecarga de trabalho. Referiram-se à demanda causa da subnotificação (F.4,7,8,11-17) pela pos-
acumulada por serviços assistenciais clínicos que sibilidade de serem identificados e expostos ao
tomava a maior parte do tempo de trabalho. Na risco de retaliações por parte dos agressores ou
visão dos autores, isto indica a necessidade de por membros da comunidade (F.13,15,16).
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Como visto na primeira seção, há autores Outra proposta muito citada pelos auto-
que assinalam que o desafio decorre da imagem res foi o incremento de ações que promovam
construída sobre o adolescente, visto como pro- maior proximidade da ESF com a comunidade,
blemático, difícil de lidar, destacando-se como os fortalecendo o vínculo entre usuários e profis-
mais ausentes dentre os demais usuários, o que sionais para alocação de esforços às demandas
refletiria, inclusive, no cuidado com a sua saúde trazidas pela população. Assim, as violências
(F.11,9,15). Segundo um estudo (F.9), os profis- envolvendo adolescentes, seriam facilmente re-
sionais da ESF nem mesmo conheciam a existên- conhecidas enquanto um problema prioritário
cia de um Programa Nacional de Atenção à Saú- (F.1,2,4,5,7,11,12,16,17).
de do Adolescente. É também proposto que a partir da identifi-
A questão salarial foi outro ponto citado pe- cação das famílias com suspeita ou confirmação
los profissionais da ESF como entrave, pois se de envolvimento em violências com adolescen-
sentem mal remunerados, insatisfeitos com as tes, deve haver monitoramento e apoio aos casos
condições de trabalho (infraestrutura, insumos, com visitas domiciliares periódicas, atendimen-
organização da demanda) – o que desafia a mo- tos regulares com assistente social, tratamento
tivação e o compromisso profissional, gerando a em saúde em geral (consultas, exames, atendi-
procura de outros empregos para complementar mentos psicológicos e psiquiátricos) e ações de
a renda (F.16). intervenções mais radicais, como acolhimento
Pela escassez de práticas de enfrentamento institucional. Ressaltam, para tanto, a valorização
e prevenção às violências por profissionais da dos conhecimentos dos Agentes Comunitários de
ESF, de relatos de casos e experiências exitosas, Saúde (apontados como essenciais no trabalho
opiniões e sugestões, os autores concluem que da ESF) e, ainda, a importância de aproximações
se faz necessário o fomento a estudos revela- com o Conselho Tutelar, os Centros de Referên-
dores de como a Estratégia pode melhor atuar cia Especializada de Assistência Social (CREAS) e
(F.2,4,5,12,15). escolas (F.2,5,11,12).
A proposta ao trabalho interdisciplinar foi
Propostas apresentadas para a atuação muito sugerida pelos autores (F.1,2,5-7,9,17).
da ESF Apontam como ganho, o compartilhamento
de saberes e práticas, adequação das diretrizes
Em geral, os autores consideram que o en- de trabalho e formação das redes de apoio e
frentamento das violências deveria assumir papel proteção aos adolescentes. Considera-se que a
mais relevante na ESF. Enfatizam que certas ca- ESF deve adotar uma postura articuladora com
racterísticas, como o campo de atuação dos pro- outros serviços e setores na construção de am-
fissionais da ESF (áreas e micro áreas), com ads- bientes que garantam a participação popular
crição de clientela, carga horária ampliada, po- nas associações comunitárias, nos conselhos lo-
deriam facilitar a atuação (F.1,3-7,9,10,15,16,17). cais de saúde, e nas UBS (F.2). Outros estudos
A notificação da violência na saúde configu- (F.4,7,11,16) propuseram um maior vínculo en-
rou-se como um dos maiores desafios, (F.1-4,6- tre a Saúde e a Educação, a exemplo do Programa
13, 15,16), sendo considerado fundamental que Saúde na Escola (PSE). Enfatizam que é preciso
sejam garantidos a implantação da ficha de noti- assegurar a construção de momentos mais dura-
ficação em todas as UBS da ESF (F.11) e o anoni- douros e que o trabalho em conjunto (PSE e ESF)
mato da notificação (F.15). faça parte da rotina dos profissionais envolvidos
Foi enfaticamente sugerida a realização de ca- (F.4, 7, 11, 16).
pacitação continuada, com suporte técnico que Alguns autores entendem ser pré-requisito a
permita a realização das notificações e a pondera- ampliação do acesso dos adolescentes à ESF com
ção sobre os casos, permitindo identificar fatores mecanismos de busca ativa (F.1,15,16). A rea-
de risco e proteção às violências (F.1-7,11,12,15). lização de diagnóstico situacional em saúde foi
Nesse sentido, um estudo pondera que a for- indicada para a ampliação desse acesso na iden-
mação de grupos de promoção de saúde a partir tificação dos agravos e formas de enfrentamento
das demandas dos próprios adolescentes, seria (F.1-6,8,11,13,15,16). O apoio da gestão da ESF
atividade mais resolutiva, com maior aceitação e foi considerado essencial para tornar viável a im-
adesão. Abordagens relacionadas às drogas, à se- plementação do diagnóstico situacional (F.11,15).
xualidade, às atividades esportivas e à inclusão da Por fim, aponta-se para a necessidade do in-
atenção psicoterapêutica no acompanhamento de cremento de debates e pesquisas sobre o tema,
alguns casos são enfoques também sugeridos (F.6). para a construção de estratégias de enfrenta-
1592
Vieira Netto MF, Deslandes SF

mento das violências envolvendo adolescentes, práticas criminosas23-25. Todavia, observou-se


sintonizadas com a realidade da saúde pública pouca ênfase ao protagonismo juvenil e ao seu
brasileira (F.14). empoderamento, tampouco foram mencionadas
outras ações apontadas pela OMS e pelo Ministé-
rio da Saúde26,27 como favoráveis à prevenção das
Discussão violências, tais como: o trabalho com adolescen-
tes e familiares sobre a construção de projetos de
Percebe-se que o tema da prevenção da violência futuro; criação de vínculos de confiança entre os
envolvendo adolescentes no âmbito da ação da profissionais de saúde e os adolescentes que pos-
ESF só recentemente começa a ser objeto de estu- sibilitem conversas sobre as primeiras relações
do. Considerando que a ESF foi criada em 1994, afetivas e sexuais, envolvimento com álcool, dro-
passaram-se 12 anos para que o tema ganhasse gas e armas; maior atenção aos adolescentes que
maior visibilidade. sofrem perdas familiares ou desemprego, entre
O conjunto das pesquisas apresenta desigual outras ações sugeridas.
inserção regional. Mesmo nas regiões onde pre- Não foram citadas em nenhum estudo a
dominam os estudos, chama a atenção a ausên- força, o vigor e a criatividade dos adolescentes,
cia de pesquisas em estados muito afetados pe- características dessa faixa etária que podem pro-
las violências envolvendo adolescentes, como é piciar mudanças de posturas, do pensar e do agir
o caso do Espírito Santo, com uma das maiores com responsabilidade social, o que pode reper-
taxas de violências do país envolvendo esse seg- cutir favoravelmente nas relações comunitárias,
mento etário6. promovendo uma cultura de paz28,29.
O predomínio dos estudos na área de Saúde Como consoante ao defendido pela literatura
Coletiva contrasta com a ausência de estudos em sobre o tema30-32, foi consensual entre os autores
outras áreas da saúde, diretamente envolvidas dos estudos analisados o reconhecimento de que
na ESF. A odontologia, por exemplo, inserida na a ESF deveria assumir o enfrentamento e a pre-
Estratégia desde o ano 2000, não apresentou ne- venção das violências envolvendo adolescentes.
nhum estudo acerca do tema. Todavia, poucas experiências de atuação foram
Ao examinar as percepções dos profissionais relatadas.
da ESF, por um lado, revela-se o conhecimento A identificação e a notificação das situações
em torno da indiscutível relevância das violên- de violências com adolescentes são medidas ain-
cias enquanto um dos mais importantes agravos à da não incorporadas, o que já deveria fazer parte
saúde dos adolescentes, por outro, sugere uma as- da rotina de trabalho da ESF como procedimento
sociação com baixa problematização sobre as im- padrão de ações protetivas20. As premissas institu-
bricadas relações entre as dinâmicas da sociabili- cionais da ESF são extremamente claras quanto à
dade infantojuvenil e a prática de violências18,19. necessidade de haver uma postura profissional de
Observou-se no estudo que a violência fa- proximidade com a comunidade. Permite identi-
miliar, especialmente a agressão física, continua ficar e atuar nas prioridades que incidem sobre
a ser entendida como ação “reservada” à intimi- o processo saúde-doença da população adscrita,
dade familiar, sendo difícil de estabelecer, para contrapondo a hegemonia tecnoassistencial na
cada caso, o limite do que é inaceitável ou não, Saúde33. Paradoxalmente, foi consenso entre os
gerando dúvida e medo ao profissional da ESF estudos analisados, a ausência de diagnóstico
em notificar e acompanhar os casos, um proble- situacional, não havendo a realização de plane-
ma também identificado por outros autores20,21. jamento e execução de demandas prioritárias, a
A violência urbana foi destaque, indicando exemplo das violências envolvendo adolescentes,
a reprodução subjacente ao senso comum22, da o que oportunizaria o monitoramento dos casos
imagem do adolescente como responsável por e o acompanhamento das famílias.
atos infracionais, envolvido com o tráfico de dro- A ESF requer dos seus profissionais uma pos-
gas e armas, impondo à sociedade riscos que in- tura contra-hegemônica, com a incorporação de
terferem na qualidade de vida de todos. atitudes que abarquem os conceitos da promo-
A dificuldade de acesso aos direitos sociais, a ção de saúde. Os profissionais são confrontados a
pobreza, a baixa qualidade da educação, a falta trabalhar em equipe multidisciplinar, comparti-
de oportunidades sociais e a precária efetivação lhando saberes e práticas de vigilância em saúde,
de políticas públicas, colocam os adolescentes em podendo ser necessário empreender parcerias in-
situação de risco e vulnerabilidade, tornando-os tersetoriais para a formação ou consolidação das
indubitavelmente expostos ao envolvimento com redes de apoio e proteção. Com isso, o campo de
1593

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atuação é de fato ampliado, requerendo posturas tema “violência e saúde” na ESF, por outro, pou-
que antes não eram de responsabilidade do pro- co foi problematizado sob quais condições polí-
fissional de saúde, o que representa um conside- tico-pedagógicas tais iniciativas poderiam surtir
rável desafio34-36. mais efeito. Questões críticas para a formação do
Vários estudos sinalizam a necessidade da profissional na área da saúde têm sido exaustiva-
criação de ambientes comunitários com par- mente apontadas, dentre as quais a desarticula-
ticipação de diversos atores sociais para conso- ção entre a teoria e a prática; a centralização no
lidar redes de proteção e cuidados ao segmento modelo hospitalocêntrico, com ênfase nas espe-
infanto-juvenil37-40. Enfatizam que é necessário cialidades e em detrimento das práticas de aten-
romper com a lógica do trabalho setorizado e ção básica/primária à saúde48,49. Continuam a ser
verticalizado; promover o exercício constante de requeridas novas atitudes perante o conhecimen-
comunicação e troca de informações; capacitar to, capazes de incorporar a interdisciplinaridade
permanentemente todos que participam da rede; e promover o deslocamento para novos espaços
incorporar a família nas ações de proteção e de de aprendizagem, com destaque para a atenção
prevenção e promover a participação de amplos primária à saúde50.
setores sociais5,8,9,12,13,23,26,27,29,30,32-39. Por fim, confirmando a discussão já travada
Essas dificuldades se mostraram muito rele- e a literatura sobre o tema51, as iniciativas de pre-
vantes na atuação diante das situações de violên- venção não constituíram destaque, nem relevân-
cias envolvendo adolescentes. cia na atuação dos profissionais da ESF.
Segundo a perspectiva dos profissionais da
ESF, pesam como obstáculos à atuação interse-
torial a falta de apoio institucional, a pouca com- Conclusões
preensão dos fluxos e encaminhamentos diante
das situações de violências e a percepção de que O cenário que se configura demonstra a neces-
há muitos déficits nas redes de proteção e garan- sidade dos profissionais da ESF repensarem suas
tia de direitos dos adolescentes. Esses argumentos práticas com vistas à ressignificação da imagem
são também citados na literatura, que conclui ha- do adolescente, das formas de trabalho de pre-
ver certa inércia quanto à superação desse desafio venção às violências junto a esse segmento e da
para a atuação diante das violências41-42. promoção de práticas alternativas e criativas que
Estudos demonstram que no âmbito da aten- valorizem o protagonismo juvenil, com vistas
ção básica, a saúde dos indivíduos e dos grupos é à promoção de saúde e de uma cultura de paz.
tomada como objeto de trabalho, mas a família A formação dos profissionais sobre o tema; a
ainda é tratada seguindo-se o modelo da medi- priorização do problema nas programações de
calização, sendo a ela dispensada uma atenção trabalho; a criação de redes de apoio e proteção
fragmentada e focal. Revela-se a necessidade de (incluindo desde a prevenção até o acompanha-
ampliar a compreensão a partir de um diagnós- mento dos casos de violências e das famílias en-
tico mais amplo de suas necessidades físicas, psi- volvidas) continuam a desafiar gestores e profis-
cológicas, sociais, econômicas e culturais43. Ob- sionais da ESF e a demandar ações concretas.
serva-se que diante das suas demandas de saúde,
os membros das equipes da ESF têm dificuldades
em dar respostas mais abrangentes44-47. Tamanha
tarefa exige a institucionalização de processos
estruturados e sistemáticos de gestão, avaliação
e educação em saúde, associada com o compro-
misso ético, humanístico e social com as famílias
cuidadas pelas equipes da ESF47.
A pouca valorização do enfrentamento da
violência na formação dos profissionais de saúde8
pode ser um cenário explicativo da deficiência de
formação sobre o tema (constantemente indica- Colaboradores
da nos estudos analisados).
Se, por um lado, no conjunto dos estudos MF Vieira Netto trabalhou na concepção, pes-
analisados foi constante a proposta de realização quisa, metodologia e redação final; SF Deslandes
de capacitações que consigam sensibilizar e me- trabalhou na concepção, metodologia e redação
lhor apoiar o profissional com a incorporação do final.
1594
Vieira Netto MF, Deslandes SF

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