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PSICOLOGIA, EDUCAÇÃO E SAÚDE:

TEMAS CONTEMPORÂNEOS
Centro Universitário La Salle - Unilasalle
Reitor: Paulo Fossatti
Vice-Reitor: Cledes Antonio Casagrande
Pró-Reitora Acadêmica: Vera Lúcia Ramirez
Pró-Reitor de Desenvolvimento: Luiz Carlos Danesi

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Conselho Editorial: César Fernando Meurer, Cristina Vargas
Cademartori, Evaldo Luis Pauly, Rafael Kunst, Tamára Cecília
Karawejszyk, Vera Lúcia Ramirez, Zilá Bernd,
Ricardo Figueiredo Neujahr (Secretário).

Produção: Editora Unilasalle


Preparação dos originais: Prisla Calvetti e Denise Quaresma
Capa: Fernanda B. Guimarães e Ricardo F. Neujahr
Projeto gráfico: Fernanda B. Guimarães e Ricardo F. Neujahr
Diagramação: Fernanda B. Guimarães e Ricardo F. Neujahr

Prisla Ücker Calvetti


Denise Quaresma da Silva
(Organizadoras)

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Prisla Ücker Calvetti
Denise Quaresma da Silva
Organizadoras

PSICOLOGIA, EDUCAÇÃO E SAÚDE:


TEMAS CONTEMPORÂNEOS

Canoas, 2014
Sumário

Apresentação / 7

Parte I – Interfases do desenvolvimento humano

Fatores de risco e de proteção ao desenvolvimento infantil / 13


Andrea Rapoport, Sabrina Boeira da Silva

A pele e o toque no desenvolvimento humano:


da prevenção em saúde aos aspectos biopsicossociais
implicados no adoecimento / 27
Prisla Ücker Calvetti

Gênero, psicologia e educação: notas sobre a


subjetivação/construção da sexualidade normal/anormal / 41
Denise Quaresma da Silva

Parte II – Das teorias às práticas

Reprodução assistida: revelar ou não revelar aos filhos? / 57


Gisleine Verlang Lourenço, Daniela Knauth, José Roberto Goldim,
Luiz Eduardo T. Albuquerque, Ana Rosa Detílio Monaco,
Maria Lucia Tiellet Nunes, Eduardo Pandolfi Passos

Violência na infância: um olhar a partir da prática clínica / 69


Lúcia Belina Rech Godinho

Uso de drogas na contemporaneidade:


perspectivas de compreensão e práticas de intervenção / 87
Luciane Raupp

5
Parte III – Olhares contemporâneos

Contribuições de Freud à psicoterapia / 103


Julio Cesar Walz

Donald Winnicott: para pensar saúde e educação / 117


Cleber Gibbon Ratto

Autores / 139

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Apresentação

O séc. XXI estava prestes a engatar e já se encontrava delineado certo sen-


timento de que a psicologia repensava os processos humanos na contemporanei-
dade. Nessa assertiva, profissionais da Psicologia apresentam nesta obra questões
pertinentes a este repensar e lançam múltiplos olhares sobre a interlocução com
a saúde e a educação, dialogando desde as interfaces do desenvolvimento huma-
no às teorias e práticas, culminando esta proposta acadêmica com a exposição de
alguns olhares contemporâneos.

Ao elencarmos as interfaces do desenvolvimento humano como ponto


de partida deste livro, propomos o entendimento da infância apresentando sub-
sídios par a compreensão dos fatores de risco e de proteção no desenvolvimento
infantil, bem como na prevenção em saúde e os aspectos biopsicossociais impli-
cados no adoecimento do bebê humano, reiterando a importância do toque na
pele para seu desenvolvimento sadio. Sabemos que essa não é uma equação sim-
ples para predizer resultados, ou seja, considerando-se vários aspectos podemos
falar em probabilidades e que as influências sobre o desenvolvimento provêm
tanto da hereditariedade quanto do ambiente. Neste sentido, assinalamos que
a escolarização tem papel fundamental na vida de uma criança, não apenas por
todo potencial que a educação terá na sua vida, mas também porque na escola
muitas crianças em situação de vulnerabilidade social, desestruturação familiar,
pobreza e maus-tratos estão em contato com profissionais que podem intervir
em seu desenvolvimento servindo como fatores de proteção e que, muitas vezes,
são capazes de redirecionar os caminhos destas crianças.

A educação também é ponto de reflexão na continuidade, quando pro-


pomos olhares sobre a interlocução entre Gênero, Psicologia e Educação: notas
sobre a subjetivação/construção da sexualidade normal/ anormal. Cada pessoa
fala a partir de um lugar que expressa o cruzamento de características específicas
de gênero, raça/etnia, classe social, religião, orientação sexual, localização, ge-
ração etc. Referindo-se ao gênero, essas características remetem às construções
sobre o papel de homem e de mulher em nossa sociedade que se relacionam com
determinadas normas, regras e papéis sociais.

A Psicologia, enquanto campo de pesquisa, formação e atuação relacio-


nada ao ser humano tem muito a contribuir no que se refere à desconstrução das

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desigualdades sociais e de gênero. Para tanto, esse estudo tem que ser efetivado
em um terreno transversal, pois estudar gênero no âmbito da Psicologia perpas-
sa o entendimento de que categorias transversais de gênero, raça/etnia, classe
social, orientação sexual e geração se cruzam construindo sujeitos com certas
especificidades que precisam ser observadas.

Os estudos de gênero têm confirmado que existem padrões ou ideais de


masculinidades e feminidades hegemônicas e que esses padrões que se instituem
como normas e expectativas são, de maneira acentuada, os mais valorizados e
aceitos socialmente, sendo os demais comportamentos considerados anormais.

Na continuidade, seguimos indagando questões pertinentes a contem-


poraneidade ao problematizar: reprodução assistida: revelar ou não revelar aos
filhos? Apontamos que estima-se que a cada ano 3.5 milhões de crianças nascem
através de processos de reprodução assistida, o que torna a temática relevante e
atual. Mergulhando nas famílias atuais, propomos para além da problemática
sugerida que possamos pensar nas violências vivenciadas na infância. A expe-
riência clínica leva o profissional a se deparar com realidades que vão de um
extremo a outro completamente oposto quando se trata da educação de crianças
e é justamente nestes extremos que dialogamos sobre as violências praticadas, se-
jam físicas, psicológicas, negligências, violência sexual, Síndrome de Münchau-
sen por procuração ou Síndrome do bebê sacudido. Propomos entendimentos e
discussões sobre seus efeitos na e para a infância.

Todas estas problemáticas relevantes nos levam a pensar no mal estar


social vigente e por isso, nossas reflexões dirigem-se ao uso de drogas na contem-
poraneidade, discutindo perspectivas de compreensão e práticas de intervenção,
pensando sobre a questão do uso de substâncias psicoativas na atualidade sob
uma perspectiva histórico social, destacando a forma de compreensão das Ciên-
cias Humanas e Sociais acerca da relação dos seres humanos com as drogas, as-
sim como as transformações nas práticas de uso e prejuízos a elas associados.
Em um segundo momento, articula-se essa perspectiva com as modalidades de
compreensão e intervenção sobre os problemas decorrentes do abuso de drogas,
destacando as concepções que orientam as políticas públicas que regulam o setor.

Finalizamos nossa tarefa acadêmica entregando para os/as leitores/as


subsídios teóricos advindos de Donald Winnicott para pensar saúde e educação
e da teoria freudiana, com as contribuições de Freud à psicoterapia, onde pos-

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tula-se que a psicoterapia foi um passo importante na história da humanidade.
Formula o autor: trata-se de uma chance real de podermos nos tornar mais hu-
manos, sem dúvida nenhuma, pois a neurose é o oposto disso, ela é uma obtura-
ção completa da capacidade de aprender com a experiência da vida como ela é.

Tomamos emprestadas essas palavras para sintetizar nosso pensamento


ao finalizarmos esta apresentação: falar, discutir, aproximar a Psicologia da Saú-
de e da Educação, trata-se de uma chance muito importante de tornarmos a vida
mais humana, mais saudável e com muito mais potência de vida.

As Organizadoras

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Parte I – Interfases do Desenvolvimento Humano

11
Capítulo 1

FATORES DE RISCO E DE PROTEÇÃO


AO DESENVOLVIMENTO INFANTIL

Andrea Rapoport Currículo Lattes

Sabrina Boeira da Silva

Ao se abordar o tema sobre fatores de risco e de proteção ao desenvolvi-


mento infantil torna-se importante explicar que esta não é uma equação simples
para predizer resultados, ou seja, considerando-se vários aspectos podemos fa-
lar em probabilidades. Segundo Papalia, Olds e Feldman (2006) durante muito
tempo se discutiu o que influenciaria o desenvolvimento humano, se os aspectos
do ambiente, a maturação ou os fatores hereditários. Embora tenham existido
explicações ambientalistas que sugeriam que as pessoas seriam resultado de suas
experiências ou as inatistas que explicavam as características de uma pessoa a
partir da hereditariedade, hoje é praticamente consenso que estes não podem
ser separados embora ainda se discuta o peso que cada um tem. Dessa forma, as
influências sobre o desenvolvimento provêm tanto da hereditariedade quanto do
ambiente.
Buscando-se prevenir e também reduzir riscos, assim como intervir de
forma adequada nos casos de crianças já afetadas por fatores que possam preju-
dicar o seu desenvolvimento torna-se importante o conhecimento de quais são
os fatores que podem afetá-las negativamente e quais, de forma contrária, podem
servir de proteção. Este conhecimento não deve restringir-se aos profissionais da
área da saúde, mas deve ser realizado um trabalho de formação constante com
aqueles que em seu cotidiano trabalham com as crianças que estão frequentando
as escolas, embora saibamos que muitas ainda estão fora delas.
A escolarização tem papel fundamental na vida de uma criança, não ape-
nas por todo potencial que a educação terá na sua vida, mas também porque na
escola muitas crianças em situação de vulnerabilidade social, desestruturação

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familiar, pobreza e maus-tratos estão em contato com profissionais que podem
intervir em seu desenvolvimento servindo como fatores de proteção e que, mui-
tas vezes, são capazes de redirecionar os caminhos destas crianças.

Vulnerabilidade social
O termo vulnerabilidade social tem recebido diversas definições, assim
como tem sido empregadas outras denominações para o mesmo tema, como
famílias em situação de risco, famílias pobres, famílias de baixa renda, famílias
de camadas populares entre outros para denotar o mesmo sentido (Prati, Couto
e Koller, 2009). O estudo desses termos apontou para um único foco: trata-se de
famílias que se apresentam vulneráveis por estarem fragilizadas e suscetíveis a
fatores de risco. A vulnerabilidade social pode ser identificada em uma única fa-
mília ou em uma comunidade inteira, o que é mais comum e é definida por Prati
e colaboradores (2009, p. 404) da seguinte forma:
Vulnerabilidade social é uma denominação usada para caracterizar famí-
lias expostas a fatores de risco, sejam de natureza pessoal, social ou ambiental,
que coadjuvam ou incrementam a probabilidade de seus membros virem a pade-
cer de perturbações psicológicas.
A pobreza extrema seguidamente acompanha a vulnerabilidade, no en-
tanto não é o que a define. Vulnerabilidade caracteriza-se também pela impossi-
bilidade de modificar a condição atual em que se encontra (Kaztman apud Silva,
2007). Geralmente estas pessoas ou grupos sobrevivem em condições precárias
no que se refere à alimentação, higiene, educação e saúde, sem acesso a melhores
oportunidades de emprego.

Fatores de risco ao desenvolvimento infantil

O impacto no desenvolvimento das experiências vivenciadas pelas crian-


ças, em situação de vulnerabilidade social ou não, será influenciado pelo que
chamamos de fatores de risco e de proteção.
Fatores de risco são todas as adversidades que podem interferir no desen-
volvimento humano, seja na infância, na adolescência ou qualquer outra fase da
vida (Sapienza & Pedromônico, 2005). A possibilidade de danos é agravada pelo
o que Sapienza e Pedremônico chamaram de riscos cumulativos e também da

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associação de vários fatores de risco. Coll et al., 2004) referem uma diversidade
de fatores que incluem fatores da criança, do microssistema familiar, do micros-
sistema de iguais, da escola, a conexão entre estes sistemas e por fim fatores do
macrossistema. Ou seja, esta criança que tem suas próprias características como
sexo, idade, tipo de temperamento, ausência presença de problemas evolutivos
está inserida em uma família que também tem sua forma de funcionamento e
especificidades, a criança está numa escola ou não, tem um determinado tipo de
relações com outras crianças e está inserida num contexto socioeconômico e cul-
tural. Esta gama de fatores tem polos positivos (fatores de proteção) e negativos
(fatores de risco).
Grande parte dos fatores de risco encontra-se no próprio lar da criança
e na comunidade em que esta habita. Alguns destes são identificados como po-
breza extrema, violência física e/ou psicológica, desestruturação familiar, vul-
nerabilidade social, maus-tratos, negligência (Amparo et al., 2008), assim como
criminalidade, drogas ilícitas, álcool, desemprego e baixa escolaridade (Siqueira
& Dell’aglio, 2010).
Algumas situações vivenciadas no próprio lar da criança caracterizam-se
como fatores de risco comuns em comunidades em situação de vulnerabilidade
social, por exemplo, os maus-tratos físicos e/ou psicológicos. Segundo Sapienza
e Pedromônico (2005, p. 210) “aquelas crianças com dificuldades socioeconômi-
cas cujas mães sejam também jovens, solteiras e pobres ou que tenham vindo de
famílias desorganizadas, ou ainda crianças que tenham pais com desordens afe-
tivas [...] são vulneráveis a eventos estressores”. Entre as modalidades de maus-
tratos, as que apresentam maior ocorrência nas comunidades vulneráveis são o
abuso físico, o abuso sexual, a negligência e a violência psicológica.
O abuso físico envolve maus-tratos corporais e está presente principal-
mente no ambiente familiar ou em seu entorno, sendo geralmente praticado por
pessoas que possuem laços afetivos ou sanguíneos. Utilizando castigos físicos,
coercivos e práticas violentas para a “educação” dos filhos, pais/responsáveis
que apresentam um modelo familiar com relações agressivas, adotam o discurso
de estarem educando, porém não percebem que a violência por eles praticada
contra seus filhos poderá causar sérios danos ao desenvolvimento desta criança
(Ferreira & Marturano, 2002).
Em estudo realizado com professoras que possuíam em sua sala de aula
crianças vítimas de abuso físico e violência familiar, verificou-se que o desempe-

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nho escolar dessas crianças é inferior ao dos outros alunos, assim como foram
observados comportamentos agressivos e indisciplina (Pereira e Williams, 2008).
Esses problemas de comportamento causados pelo abuso físico trazem danos ao
desenvolvimento psicológico também em outras fases da vida, pois o compor-
tamento da criança com características antissociais que repercute nas relações
na escola e no desempenho possivelmente conduzirá o jovem a um grupo de
amigos de risco e a uma posterior delinquência (Bee, 1997). Dessa forma, muitas
vezes, a família, que deveria ser a primeira a proteger de agressões e situações de
conflito e violência, acaba sendo a responsável por uma futura delinquência que
poderá decorrer da vivência e da violência sofrida quando criança.
Segundo Maia e Williams (2005) a negligência refere-se ao fato de privar
a criança de algo que ela necessita, quando isto é fundamental para um desen-
volvimento sadio. Por exemplo, alimentação, vestuário, segurança, estudo, afeto,
etc. Esta pode ser decorrência de fatores que fogem à vontade da família, mas que
se relacionam a falhas do Estado em lhes prover condições que são direito como
cidadãos. Por outro lado, podem estar diretamente ligadas a falhas na atuação da
família como cuidadora e protetora da criança, responsável por seu desenvolvi-
mento físico, emocional, cognitivo e social (Bérgamo & Faleiros, 2010).
A violência psicológica refere-se tanto às ameaças e humilhações como
também à privação emocional. O Conselho Americano de Pediatria (Maia &
Williams, 2005, p. 94) elenca prejuízos em várias áreas decorrentes deste tipo de
violência:
Pensamentos intrapessoais (medo, baixa autoestima, sintomas de
ansiedade, depressão, pensamentos suicidas, etc.), saúde emocional
(instabilidade emocional, problemas em controlar impulso e raiva,
transtorno alimentar e abuso de substâncias), habilidades sociais
(comportamento antissocial, problemas de apego, baixa simpatia e
empatia pelos outros, delinquência e criminalidade), aprendizado
(baixa realização acadêmica, prejuízo moral), e saúde física (queixa
somática, falha no desenvolvimento, alta mortalidade).

Já o abuso sexual, uma das modalidades que implica mais seriamente no


desenvolvimento da criança, refere-se ao fato de um ou mais adultos buscarem
prazer sexual utilizando a criança. Há uma relação de poder da pessoa agresso-
ra, geralmente mais velha, de quem a vítima depende intelectual, emocional ou
economicamente. De acordo com Williams (apud Meira & Williams, 2005, p. 95)
a criança vítima de abuso sexual pode manifestar comportamento sexualizado,
ansiedade, depressão, queixas somáticas, agressão, regressão no seu desenvolvi-

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mento, autoagressão, problemas na escola, entre outras manifestações a curto
prazo. Os prejuízos não são apenas a curto prazo, a longo prazo podem ocorrer
“depressão, ansiedade, prostituição, problemas de relacionamento sexual, pro-
miscuidade, abuso de substâncias, ideação suicida entre outros”.
Por outro lado, algumas vezes a criança vitimizada pode apresentar ma-
nifestações minimamente perceptíveis (Inoue & Ristum, 2008). De acordo com
Inoue e Ristu (2008), estudos demonstram que a escola tem papel significativo
para a descoberta de casos de abuso infantil, já que é lá que a criança passa boa
parte do dia. As professoras são mencionadas como quem mais identifica a vio-
lência sexual, seja através da verbalização das crianças ou comportamentos que
indiquem o abuso, e por isso seria importante oferecer a estas uma formação
para que a abordagem e encaminhamento sejam feitos de forma correta e não
prejudiquem ainda mais a criança.
Vê-se a importância de abordar também a questão do trabalho infantil
como fator de risco, pois esta realidade está fortemente presente no cotidiano das
comunidades que apresentam situação de vulnerabilidade social. Gomes (1998)
trata o trabalho infantil como um adoecimento da família e não só da criança,
referindo que não se pode querer culpar somente os pais pela situação, já que
estes são também vítimas muitas vezes de um sistema que os deixa sem opção ou
sem conhecimento dos danos que estão causando ao desenvolvimento dos filhos,
já que esta prática pode ser vista como natural por estes pais.
Muitas vezes pobreza extrema faz com que o grupo familiar se mobilize,
todos em prol da sobrevivência, para prover o seu sustento (Gomes, 1998). No
entanto, existe ainda a exploração do trabalho infantil, que se diferencia pelo
caráter nocivo à saúde física e psicológica da criança e do adolescente, e também
por estar relacionado ao benefício de um sobre o outro, no caso da exploração
do trabalho infantil, do adulto sobre a criança, no intuito de obter vantagem ou
lucro. Diferindo do trabalho em prol do núcleo familiar, a exploração pode estar
explícita em casos onde pais que não trabalham exploram seus filhos para que
estes promovam o sustento do lar (Gomes, 1998). A exploração do trabalho in-
fantil, segundo escolarização regular, tão imprescindível à preparação deles para
a cidadania plena.
Uma das sérias consequências trazidas pelo trabalho infantil é, então, a
evasão escolar, pois a criança abandona a escola para dedicar-se somente à ati-
vidade remunerada. Para contrapor essa necessidade, os programas que buscam

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erradicar o trabalho infantil e incentivar a frequência escolar são de fundamental
importância. Entretanto, Kassouf (2007) analisa que os programas governamen-
tais de auxílio financeiro para que as crianças frequentem a escola não inibem
o trabalho das crianças, pois não garantem que no turno inverso à escola estas
crianças deixarão de trabalhar.

Fatores de proteção ao desenvolvimento infantil

Ao pensar em casos de crianças que passaram por maus-tratos e vivem


em situação de vulnerabilidade social nem todas são igualmente afetadas por
estas situações. Como uma possível resposta a esse questionamento se apresen-
tam os fatores de proteção, que se caracterizam das mais diversas formas, contri-
buindo para o desenvolvimento e para a redução dos traumas sofridos. Segundo
Branden (apud Amparo et al., 2008, p. 167) se dividem em três categorias:
(1) Fatores individuais, tais como autoestima positiva, autocontro-
le, autonomia, características de temperamento afetuoso e flexível;
(2) fatores familiares, como coesão, estabilidade, respeito mútuo,
apoio/suporte; (3) e, fatores relacionados ao apoio do meio ambien-
te, como bom relacionamento com amigos, professores ou pessoas
significativas que assumam papel de referência segura à criança e a
faça sentir querida e amada.

De acordo com o autor, estão envolvidos nos fatores de proteção carac-


terísticas pessoais, influenciadores familiares e sociais. A criança poderá buscar
não somente em si, mas principalmente na família e na escola apoio para de-
senvolver-se adequadamente. Os fatores de proteção pessoais estão diretamente
relacionados à forma como se dá o desenvolvimento da criança. Por exemplo,
quando ela desenvolve relações seguras de apego com os pais ou cuidadores,
principalmente no primeiro ano de vida, estará mais fortalecida para enfrentar
as adversidades, tornando a criança menos suscetível a danos decorrentes do
meio social (Bee, 1997). Segundo Sapienza e Pedromônico (2005) o bom rela-
cionamento dos pais com os filhos pode ser considerado importante fator de
proteção, talvez o mais relevante, pois influenciará diretamente a criança.
Por constituir-se em um importante fator de proteção para a criança, de-
rivado das relações familiares, mas que depois se transforma numa característica
que acompanhará o indivíduo pelo resto de sua vida, entendemos ser importante
explicar sobre a teoria do apego.

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Bowlby (1989) ao abordar a teoria do apego refere a importância dos
primeiros três anos de vida, mas em especial do primeiro, para o desenvolvi-
mento de uma pessoa segura, tendo um desenvolvimento emocional saudável
e estando mais apta para enfrentar as adversidades da vida. Para o autor, o bebê
e a criança pequena precisam contar com cuidados adequados, que respondam
às suas necessidades afetivas, de proteção, assim como as necessidades básicas,
transmitindo-lhes que têm com quem contar quando necessitam e que o mundo
é bom e confiável.
O autor descreveu em sua obra três tipos de apego e relacionou-os às con-
dições familiares vivenciadas pela criança. Segundo Bowlby (1989) os tipos de
apego são: apego seguro e inseguro ansioso ou inseguro com evitação. No apego
seguro, a criança tem confiança de que os pais estarão disponíveis, oferecendo
ajuda em caso de situação adversa ou amedrontadora. É promovido por um dos
pais, especialmente a mãe, que nos primeiros anos se mostra disponível, sensível
aos sinais da criança e com respostas amáveis quando esta busca conforto e/ou
proteção. O apego inseguro e ansioso caracteriza-se pela incerteza da criança na
disponibilidade dos pais para ajudá-la caso necessite. Devido a isto, ela tende a
ficar grudada, demonstrar ansiedade de separação e dificuldade de explorar o
mundo. É promovido por pais que se mostram instavelmente disponíveis e pres-
tativos, por separações e ameaças de abandono usadas como forma de controle.
Já o apego inseguro com evitação ocorre quando a criança não tem nenhuma
confiança de que se procurar ajuda e cuidado irá recebê-lo, esperando ser rejeita-
da. Este modelo é promovido por uma mãe que rejeita constantemente a criança,
sempre que ela a busca para conforto e proteção. Por fim, o apego desorganizado,
descrito posteriormente por Main e colegas foi observado em crianças que sofre-
ram abuso físico ou foram completamente negligenciadas pelos pais.

Resiliência

Mesmo passando por situações múltiplas de adversidades algumas pes-


soas permanecem resistentes e são pouco afetadas de forma negativa em seu
desenvolvimento. Esse tipo de fenômeno passou a ser estudado, uma vez que
desperta, no mínimo, estranheza o fato de alguns indivíduos serem capazes de
superar os traumas e outros não. A resiliência configura-se pela capacidade que
um indivíduo ou um grupo possui de se recuperar psicologicamente após viven-
ciar situações extremas (Amparo et al., 2008). Segundo Sapienza e Pedromônico

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(2005) a resiliência configura-se como um fator de proteção para a adaptação do
indivíduo às demandas cotidianas, estando relacionada à autoestima e ao auto-
conceito de cada um, pois dependerá da forma como este recebe e interpreta as
situações de risco. O indivíduo resiliente passa por situações adversas, porém
com perspectivas otimistas, apresentando estratégias de enfrentamento eficazes
que os tornam capazes de superar e progredir apesar dos obstáculos que lhes são
postos.
Silva, Elsen e Lacharité (2003) citam uma pesquisa longitudinal realizada
por Werner (1995) em que foram acompanhadas durante trinta e dois anos 698
crianças nascidas na ilha de Kauai-Hawaii. Os resultados desta pesquisa mostra-
ram que as crianças que se desenvolveram adequadamente contaram com fatores
de proteção como laços afetivos positivos dentro da família com pelo menos um
cuidador, especialmente durante o primeiro ano de vida e encontraram suporte
emocional fora de casa, geralmente de um professor na escola, de amigos ou
outra pessoa que as apoiavam, principalmente nos períodos de maior estresse. A
pesquisa confirma a importância dos laços familiares e redes de apoio, sejam elas
na escola, amigos ou qualquer outra pessoa ou instituição que acolha esta criança
em momentos de conflito. Está explicitado ainda que o apego desenvolvido no
primeiro ano de vida torna o indivíduo mais confiante e seguro, capaz de enfren-
tar situações adversas e desenvolver resiliência.
O estudo sobre resiliência traz ainda questões relativas às possibilidades
de reversão do quadro social em que o resiliente está inserido, pois nega o con-
ceito de que uma criança que se desenvolve em uma comunidade vulnerável,
em uma família desestruturada ou passa por qualquer outra adversidade estará
destinada a viver tal como foi criada e reproduzir a violência que sofreu (Silva,
Elsen, & Lacharité, 2003). Entretanto, não se pode desprezar o fato da pobreza
extrema ser identificada como um fator de risco capaz de reduzir a possibilidade
de a criança ser resiliente, pois acarreta diversos outros fatores adversos já am-
plamente citados acima.

A família, a escola e a criança em situação de vulnerabilidade social

Sabe-se que grande parte das escolas, onde existem as queixas em relação
ao desempenho dos alunos, encontram-se situadas em comunidades carentes e
vulneráveis e, segundo Ferreira e Marturano (2002), neste contexto as crianças
tendem a apresentar mais problemas de desempenho escolar e de comportamen-

20
to. Talvez, devido ao fato de muitos dos pais ou responsáveis por essas crianças
apresentarem baixa escolaridade e não reconhecerem na escola uma oportuni-
dade de ascensão social (Pereira, Santos, & Williams, 2009). Em um estudo rea-
lizado foi constatado que mães com mais anos de estudo se envolvem mais com
a escolaridade de seus filhos, e que esse maior envolvimento está associado a
um melhor desempenho da criança (Stevenson & Backer, apud D’avila-bacarji,
Marturano & Elias, 2005).
O incentivo dos pais e a importância que estes direcionam à escola são
fatores que contribuirão para o comprometimento da criança com a educação de
forma que pais que acompanham seus filhos, que se preocupam com seu desem-
penho e disponibilizam algum tempo para verificar as atividades da escola junto
com as crianças aumentam as chances de seus filhos obterem um bom desempe-
nho (Marturano, apud D’avila-bacarji, Marturano, & Elias, 2005). O bom relacio-
namento com os pais ou cuidadores também pode ser um fator importante no
interesse e na preocupação da criança em realizar as tarefas da escola, observam
D’avila-Bacarji, Marturano e Elias (2005).
Existem ainda outros fatores que dependem da família e que poderão in-
fluenciar no desempenho escolar das crianças. Crianças cujos pais não possuem
hábitos de leitura, não costumam ler ou contar histórias a seus filhos, podem
influenciar seu interesse. O fato de muitas crianças estarem distantes de formas
de estimulação intelectual, que poderiam lhes despertar interesse e curiosidade,
pode acarretar altas taxas de problemas e de fracasso escolar, principalmente em
bairros pobres (Bee, 1997).
Na vida de uma criança a escola desempenha funções imprescindíveis.
Neste ambiente serão proporcionadas vivências que farão parte do desenvolvi-
mento e contribuirão para a aprendizagem, podendo significar ainda local de
proteção, onde a criança se sentirá acolhida. Os laços formados com professores
e colegas servirão para que a criança sinta-se inserida em um grupo onde ela po-
derá aprender a reelaborar seus sentimentos de medo, agressividade, frustração,
bem como seus colegas e professores (Sampaio, 2004).
Acredita-se que, principalmente em comunidades vulneráveis, a escola
assume funções que vão além do ensino. A carência afetiva e social das crianças
obriga o corpo docente a oferecer mais do que a legislação delega à escola (Sam-
paio, 2004). Segundo a autora, a escola acaba assumindo funções que antes eram
ocupadas pela família, mas que com a desestruturação que nos dias de hoje é

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quase comum à maioria dos alunos, recaem sobre a instituição escolar.
É necessário considerar ainda a qualidade do trabalho e o comprometimento
investido na escola por aqueles que a compõe. Sabe-se que o modo como o
ensino é conduzido, a estrutura da escola, a metodologia usada pelo professor
e o investimento destes em relação aos alunos serão fatores determinantes na
aprendizagem das crianças que lá estudam. Mais do que recursos financeiros e
boa estrutura, para a escola funcionar bem são necessários também profissionais
motivados, preocupados com a formação de seus alunos. Dessa forma, quando
o foco do ensino é a qualidade que se oferece ao aluno, mesmo com poucos
recursos torna-se possível a escola proporcionar um ambiente favorável ao de-
senvolvimento e à aprendizagem.
Quando a escola encontra-se situada em um bairro onde a vulnerabi-
lidade social faz parte da vida das famílias, o professor tem pela frente ainda
mais um desafio que se caracteriza pelas dificuldades em lecionar em uma classe
que une especificidades em um único núcleo. Nessas comunidades podem ser
encontrados em uma mesma sala de aula alunos que passaram por experiências
extremas, muitos deles com privações e déficits que se colocam como empeci-
lhos ao desenvolvimento e à aprendizagem. Entretanto, o professor que se dispõe
a trabalhar com este perfil precisa ter o cuidado de não determinar a capacidade
de seus alunos pela situação em que estes vivem. Silva (2011, p. 69) refere que
muitos professores criam rótulos da capacidade intelectual segundo a classe so-
cial dos alunos. A partir disso, os professores seguindo uma visão determinista
deixam de investir nesta criança e aí poderá se perder um grande talento, uma
possibilidade de sucesso e superação. Por outro lado, um professor que atua em
uma comunidade vulnerável possui nas mãos a possibilidade desenvolver um
trabalho diferenciado com estes alunos, que certamente é privado de muitas ou-
tras possibilidades.

Considerações finais

São muitos os fatores que interferem no desenvolvimento de uma crian-


ça, principalmente quando esta vivencia situações traumáticas e permanece em
situação de vulnerabilidade social. Conhecer esses fatores e compreender a for-
ma como influenciam no seu desenvolvimento é fundamental para aqueles pro-
fissionais que atuam com estas crianças. Embora não tenha-se abordado, no pre-

22
sente artigo, fatores de risco como negligência e maus-tratos físicos, psicológicos
e abuso sexual não são exclusivos de comunidades que vivem em situação de
vulnerabilidade social, embora sejam mais prevalentes pelo acúmulo de fatores
de risco ao qual estão submetidas. Neste espaço também não foi possível enfati-
zar todos os fatores de risco e de proteção, pois é uma temática bastante ampla.
Por exemplo, a idade em que a criança é submetida a um evento adverso, carac-
terísticas de seu temperamento, condições de saúde incluindo deficiências físicas
e psicopatologias são alguns fatores que deixaram de ser abordados podendo
constitui-se em uma limitação do presente estudo, mas também em um convite
para outras leituras.
Outro aspecto que merece atenção é o trabalho de prevenção que pode
ser feito não apenas na escola, mas também na esfera da saúde pública através
de ações de prevenção primária em saúde mental intervindo diretamente com as
famílias e fortalecendo os laços afetivos e orientando para práticas parentais que
promotoras de um desenvolvimento saudável.

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e Pesquisa, 26(3), pp. 407-415.

25
Capítulo 2

A PELE E O TOQUE NO DESENVOLVIMENTO HUMANO:


DA PREVENÇÃO EM SAÚDE AOS ASPECTOS
BIOPSICOSSOCIAIS IMPLICADOS NO ADOECIMENTO

Prisla Ücker Calvetti Currículo Lattes

A pele é o maior órgão de percepção no momento do nascimento, sendo


um órgão de comunicação visível e se tornando meio de contato físico e para a
transmissão de sensações físicas e emoções (Müller, Cenci, Hoffmann, Boschetti,
Kim, Redivo, & Ludwig, 2001). É o espelho do funcionamento do organismo: sua
cor, textura, umidade, secura, e cada um de seus demais aspectos refletem nosso
estado de ser, psicológico e também fisiológico (Montagu, 1988; Gascon, 2012).
Órgão sensorial primário, a pele divide-se entre a epiderme, constituída
de tecido epitelial, é formada por células mortas na camada mais externa. A
derme, formada por tecido fibrilar que proporciona a sua elasticidade e o hipo-
derme, tecido celular subcutâneo, também chamado panículo adiposo. Origina-
se da mais extensa das três camadas embriônicas, a ectoderme de onde derivam
também a epiderme e os sistemas nervosos periféricos e central.
Conforme Caminha, Soares e Kreitchmann (2011) a pele humana é com-
posta de diferentes classes de receptores que são sensíveis a fatores como calor,
pressão, temperatura e movimento (entre outros), mas cujas respostas são pro-
cessadas e depois unificadas para criar a sensação do toque. A pele é como um
sistema de abrigo de nossa individualidade, atuando como limite dentro-fora, eu
e o outro, eu e o mundo. Ao mesmo tempo em que nos protege, é a fachada que
nos expõe (Strauss, 1989, p. 1221).

Toque e desenvolvimento humano saudável

É importante salientar que a pele tem origem embrionária, desde a

27
gestação a ectoderme é formada interligada ao sistema nervoso, mostrando a
relação entre este órgão e o psiquismo. Em relação ao desenvolvimento humano
o toque tem importante papel na promoção da saúde desde o início da vida até
o envelhecimento. Na gestação o toque da mãe na barriga proporciona fortale-
cimento do vínculo com seu bebê. Desde então, o toque é promotor de saúde. A
amamentação posteriormente ao nascimento, além de proporcionar nutrientes
necessários para o desenvolvimento da criança, é importante para melhorar as
funções respiratórias e a oxigenação do sangue, além de receber o toque carinho-
so da mãe. O sistema imunológico do bebê é fortalecido.
Efeitos fisiológicos do toque também são manifestos em relação a sexua-
lidade. O tato é a verdadeira linguagem do sexo. A presença ou ausência apre-
senta-se relacionada a experiências prévias ligadas ao tato. A privação cutânea
no início da vida nas relações podem estar implicadas na dificuldade de casais ao
contato físico e afetivo. O toque está diretamente relacionado a experiências de
prazer, elemento de intimidade.
Ainda discorrendo sobre o desenvolvimento humano, o tato é uma das
experiências mais negligenciadas ao envelhecer, em especial na terceira idade.
Sabe-se que o contato físico é inclusive preventivo de depressão, em especial nes-
ta etapa do ciclo da vida.
Portanto, pode-se observar que a presença ou ausência do toque desde o
início da vida tem suas repercussões na saúde e na doença. A seguir apresento
os aspectos biopsicossociais implicados no desenvolvimento humano quando a
pele é acometida pelo adoecimento.

A pele e o adoecimento

De acordo com Gupta e Gupta (1996), é estimado que pelo menos um


terço dos pacientes com doença dermatológica apresenta aspectos emocionais
associados. Os prejuízos em suas vidas são evidentes, incluindo sofrimento psí-
quico, como referido no estudo de Taborda, Weber e Freitas (2005), em que fo-
ram avaliados pacientes dermatológicos do espectro psicocutâneo através do Self
Reported Questionnaire (SRQ-20), instrumento de triagem de doença mental.
Verificou-se presença de sofrimento psíquico em 25% da amostra. O estudo de
Ludwig (2007) também encontrou sofrimento psicológico em pacientes der-
matológicos. Avaliando 205 pacientes com diferentes dermatoses, os resultados

28
demonstraram que 65,9% apresentavam sintomas de estresse. A maioria dos pa-
cientes estava na fase de resistência (50,7%) e apresentava predominantemente
sintomas psicológicos (46,8%) se comparados aos físicos (10,2%).
Sabe-se que o estresse é um fator que está relacionado com o surgimento
e desenvolvimento de doenças, desde os estudos de Selye em 1936. Muitos pes-
quisadores têm buscado aprofundar os conhecimentos sobre a relação entre o es-
tresse e as doenças de pele. Rodríguez, Celis e Sosa (2002) referem que extensos
estudos indicam que o estresse emocional pode exacerbar alguns eventos, como
na psoríase, por exemplo. A questão psicossomática está implicada no adoeci-
mento da pele, já que o estresse é uma variável psicológica importante, influen-
ciando tanto no surgimento, quanto no desenvolvimento de uma manifestação
orgânica, neste caso a doença de pele.
A constante relação entre mente e corpo nas doenças, neste caso as der-
matológicas, tem suscitado interesse de médicos internacionalmente. Panconesi
(Grimalt & Cotterill, 2002), dermatologista italiano, menciona a importância de
uma relação estreita entre médico e paciente, de forma que o primeiro se coloque
à disposição do segundo, podendo escutá-lo e verificar os fatores de estresse e
as questões emocionais envolvidas. Refere também que certas doenças, dentre
elas as de pele, são influenciadas, desencadeadas ou causadas por fatores que
pertencem à esfera psíquica, podendo ser genericamente definidos como fatores
emocionais.
Os dermatologistas Azulay e Azulay (1992) falam que a necessidade de
resolver conflitos psíquicos pode transformar-se em doenças e manifestações
psicossomáticas “onde o papel do psiquismo torna-se bastante mais complexo”.
No Brasil, existem produções de dermatologistas que abrangem os as-
pectos emocionais envolvidos. Azambuja (2000) discorre sobre a Dermatologia
Integrativa como a psiconeuroimunologia aplicada a atentar aos aspectos físico,
mental e emocional do indivíduo, podendo reduzir o estresse e aumentar a efi-
ciência dos tratamentos através de recursos complementares. O mesmo autor
refere que é impossível fragmentar o ser humano e cuidar só de seu corpo ou
apenas de sua mente, porque um aspecto depende do outro, um influencia o
outro o tempo todo, e ambos compõem uma unidade (Azambuja, 2001). Uma
de suas considerações é de que “medicina e psicologia deverão buscar juntas as
origens mais remotas das doenças para não só delas tratar, mas para primordial-
mente expandir a saúde”.

29
Rocha (2003) menciona a validação de aspectos fisiológicos, comporta-
mentais, cognitivos, afetivos, sistêmicos e ecológicos, presentes na abordagem
integrativa em relação ao paciente, tendo como objetivo “alcançar a excelência
no relacionamento médico/paciente”, não só na dermatologia, mas em toda a
medicina. A autora refere ainda a importância da precaução de se cuidar emo-
cionalmente bem como de verificar suas próprias questões pessoais antes de
abordar estes aspectos no paciente. Também conforme depoimento verbal, esta
dermatologista, Tânia Rocha, a avaliação do estresse é feita na primeira consulta.
Considerando o sofrimento psíquico envolvido, Hoffmann, Zogbi, Fleck
e Müller (2005) mencionam estar o vitiligo associado a fatores psicológicos, visto
que, em estudo da última autora, o aparecimento da doença se deu após situação
de estresse emocional. Neste estudo, comparou-se dois grupos de pacientes com
vitiligo, um recebendo tratamento médico por 6 meses, e o outro, tratamento
médico e psicológico durante o mesmo período. Os resultados demonstraram
que o grupo que obteve os dois tratamentos teve melhoras bem mais representa-
tivas do que o outro.
Os temas de ansiedade e depressão também estão sendo estudados na
sua relação com as doenças de pele por diversos autores. Amorim-Gaudencio,
Roustan e Sirgo (2004), numa pesquisa sobre a evolução da ansiedade nas der-
matoses crônicas, avaliando diferenças entre os sexos, encontraram relação entre
o impacto psicológico produzido pelo problema de pele e sua condição crônica
com o alto nível de ansiedade nesses pacientes.
O’leary, Creamer, Higgins e Weinman (2004) estudaram as causas atribuí-
das pelos pacientes psoriáticos à sua doença, verificando a relação entre estresse
percebido, qualidade de vida, bem estar psicológico e severidade da psoríase. Os
resultados demonstraram que do total da amostra, 61% acredita no estresse e em
atributos psicológicos como fatores causais da psoríase, e esta crença foi signifi-
cativamente associada a altos níveis de ansiedade, depressão e estresse percebido.
As pessoas têm formas diferentes de interpretar as situações de vida,
assim como distintas formas de lidar com elas, como estudado por Silva, Müller
e Bonamigo (2006), avaliando estratégias de coping e níveis de estresse em pa-
cientes com psoríase. Desta forma, aponta-se à necessidade de conhecer as estra-
tégias utilizadas pelos pacientes para enfrentar a sua doença de pele, sendo pos-
sível, através disto, ensinar maneiras mais adequadas e que possam beneficiá-lo.
Qualidade de Vida (QV) é um dos construtos que diz respeito a elemen-

30
tos do sentir-se bem; pode ser definida como a harmonização de diferentes mo-
dos de viver e dos níveis: físico, mental, social, cultural, ambiental e espiritual
(Fleck, Borges, Bolognesi, & Rocha, 2003). É compreendida como sendo “a per-
cepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de
valores nos quais ele vive em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e
preocupações” (Fleck, Louzada, Xavier, Chachamovich, Vieira, Santos, & Pin-
zon, 2000). A preocupação com a QV se refere a um movimento nas ciências hu-
manas e biológicas destinado a valorizar parâmetros mais amplos que o controle
de sintomas, a diminuição da mortalidade ou aumento da expectativa de vida.
A importância de novos estudos, principalmente no Brasil, que busquem
avaliar a influência dos aspectos biopsicossociais presentes em pacientes com
doenças de pele são relevantes devido a escassos estudos na área a fim de elabo-
ração de propostas para a melhora da qualidade de vida desta população. Mello
filho (2002) menciona que toda doença humana é psicossomática, já que incide
em um ser provido de soma e psique, inseparáveis, anatômica e funcionalmente.

Dermatoses na infância e suas implicações no desenvolvimento hu-


mano

A pele pode ser compreendida como espelho das emoções, e como tal
pode estar implicado nela manifestações de conflitos que aparecem por meio de
alguma dermatose. É possível encontrar conexões entre as relações iniciais mãe-
-bebê e a pele, uma vez que os primeiros modelos de vinculação com o mundo
externo começam a ser “impressos no corpo, e a partir disso, no psiquismo da
criança”. Desta forma, as dificuldades experienciadas pela díade podem ter di-
ferentes vias de manifestação, sendo a doença de pele uma delas. A dermatose
pode representar, de alguma forma, a “não existência de um limite claro entre
eu e não-eu”, tanto pelo excesso quanto pela falta de estímulo (Jorge, Muller,
Ferreira, & Cassal, 2004).
A Dermatite Atópica (DA), ou eczema, é  uma doença crônica de pele
que acomete entre 10 a 20% da população infantil mundial. Caracteriza-se pela
presença de episódios cíclicos de prurido, com alterações imunológicas cutâneas
que causam inflamação. Ocorre com mais frequência em famílias em que há
rinite alérgica, asma e alergia alimentar, e em países industrializados (Alvaren-
ga & Caldeira, 2009; Ricci, Dondi, & Patrizi, 2009; Myssior, Fontes, Ferreira, &

31
Marques, 2008). Sua etiopatogenia não está completamente esclarecida, entre-
tanto, observa-se que há uma complexa inter-relação envolvendo fatores imu-
nitários, genéticos, infecciosos, ambientais, alimentares e psicossomáticos.
Ferreira, Müller e Jorge (2006) acreditam que a DA está associada com o aumen-
to do nível de ansiedade, assim como os próprios sintomas da dermatose geram
ansiedade e causam um grande impacto na qualidade de vida.
Após o surgimento dos sintomas de DA, as famílias precisam se reor-
ganizar, e a vida familiar gira em torno desta doença de pele, de modo que esta
instituição passa a evitar situações que possam desencadear crises. As origens
das crises provêm de diferentes fatores, como mudanças climáticas, ingestão de
alimentos, exposição à alérgenos e situações emocionais (Ferreira, Müller, &
Jorge, 2006).
A DA, devido a sua cronicidade, ao intenso prurido, a perturbações no
sono e nas atividades diárias e pela associação potencial com doenças respira-
tórias, pode ser considerada como uma dermatose social e psicologicamente
relevante, pois além de acometer o próprio paciente, todo o ambiente familiar
e profissional é afetado. É relatado, também, um impacto financeiro, social e
emocional na família do acometido por esta doença de pele. Pais com crianças
portadoras de DA possuem dificuldade na disciplina e no cuidado delas, espe-
cialmente devido à exaustão, à privação do sono, a dificuldades no custo e na
administração da medicação tópica e sistêmica. Não obstante, esta sobrecarga
gerada pelos cuidados das crianças com DA gera conflitos entre o casal e entre
os irmãos saudáveis, alterando a estrutura familiar (Alvarenga & Caldeira, 2009;
Ferreira et al., 2006).
Os pacientes crianças com DA sofrem com o prurido, enquanto a mãe
sente-se culpada por relutar em tocar o bebê, afastando-o de si. Quando a família
apresenta altos escores de independência e organização, a área corporal acometi-
da por DA é significativamente mais baixa (Ferreira et al., 2006).
Torna-se necessário compreender o significado da pele para um melhor
entendimento da dermatose. Jorge, Muller, Ferreira e Cassal (2004) corroboram
com esta afirmação ao crer que a doença de pele pode ser reflexo das relações
iniciais da criança. Isso denota a importância tanto da pele quanto do contato
inicial com o outro para a constituição psíquica da criança. As relações iniciais
entre a mãe e seu bebê têm grande importância para o desenvolvimento emocio-
nal deste, visto que a partir da atitude emocional da genitora e de seu afeto, ela

32
orienta a criança, cujo aparelho perceptivo e discriminação sensorial se encontra
imaturo. Não obstante, a formação das primeiras relações entre esta dupla serve
como modelo para as futuras relações sociais do infante (Thomaz, Lima, Tavares,
& Oliveira, 2005).
Muitos sintomas físicos infantis, tais como cólica, eczema, hostilidade
materna, manipulação fecal, entre outros, são advindos da relação mãe-bebê,
como forma patológica decorrente das relações objetais. Pode-se dizer que a
criança fica contaminada pelo clima afetivo materno, e, quando a mãe depressiva
se afasta, a criança fica impossibilitada de completar a fusão, necessária nesta eta-
pa do ciclo vital, e, se estiver no período de formação do psiquismo, estes distúr-
bios deixam cicatrizes tanto na estrutura quanto no funcionamento do aparelho
psíquico (Pio, 2007).
Piccinini, Marin, Alvarenga, Lopes e Tudge (2007) acrescentam ser críti-
co o primeiro ano de vida para o desenvolvimento afetivo, cognitivo e social da
criança. Desta forma, é imprescindível que os pais respondam com afeto e sen-
sibilidade ao comportamento do filho, a fim de favorecer a formação do apego e
seu desenvolvimento sócio-emocional. O apego representa a propensão de os se-
res humanos construírem “fortes vínculos afetivos com outros e de explicarem as
diferentes formas de consternação emocional que ocorrem quando da separação
ou perda involuntárias do outro, é construído a partir do processo de interação
entre o bebê e o círculo maternante” (Piccinini, Moura, Ribas, Bosa, Oliveira,
Pinto, Schermann, & Chahon, 2001).
Do ponto de vista evolucionista, o sistema de apego aumenta as chances
de sobrevivência do bebê, por permitir ao cérebro imaturo da criança a utilização
do funcionamento maduro de seus pais, a fim de atender suas necessidades vi-
tais. O vínculo materno adequado é crucial para o surgimento do apego seguro,
o qual necessitará da retro-alimentação do comportamento do bebê (Motta et al.,
2005; Pio, 2007).
Filhos de mães mais sensíveis e responsivas tendem a ter um apego se-
guro, caracterizado pela confiança na disponibilidade emocional e responsivida-
de materna, bem como na promoção de uma orientação positiva e confiante da
criança em relação à mãe, ao mundo e a si mesma. Entretanto, quando o bebê
recebe cuidados com pouca sensibilidade e baixa responsividade materna, ele
tende a desenvolver um apego inseguro, o qual representa uma falta de confian-
ça na disponibilidade emocional da mãe e acarreta em uma atitude negativa e

33
pouco confiante em relação à genitora, ao mundo e a si mesmo (Piccinini et al.,
2007; Motta et al., 2005). É necessário salientar que a responsividade corresponde
a um domínio, o qual consiste de um complexo de construtos e variáveis
relacionadas, tais como empatia, sensibilidade a pistas sociais, não-intrusividade,
capacidade de previsão, disponibilidade emocional e envolvimento positivo
(Piccinini et al., 2007).
Deve-se valorizar elementos saudáveis referentes aos padrões de paren-
talidade, tais como cuidados físicos, promoção de experiências iniciais, favore-
cimento do desenvolvimento físico e psíquico, defesa da vida e da saúde, entre
outros. Entretanto, é necessário identificar, também, os aspectos de omissão,
depreciação, rejeição, descontinuidade, abandono, os quais correspondem à pa-
rentalidade patogênica, que conduz a desajustes e a sintomas psicofuncionais na
criança, ou, ainda, psicopatologias mais graves (Piccinini et al., 2001).
As configurações familiares que, além da mãe, contam com a presença e
auxílio de outros adultos favorecem a maternidade e o desenvolvimento infantil,
especialmente quando o pai é a figura presente, pois este também compartilha
com a esposa a responsabilidade da criação, incluindo êxitos e fracassos. Estudos
realizados constataram a existência de uma relação positiva entre a presença do
pai e o cuidado maior da mãe pelo filho, favorecendo o desenvolvimento infan-
til saudável. Em pesquisa realizada por Piccinini et al. (2007) verificou-se que
mães casadas demonstram maior responsividade, principalmente nas questões
referentes ao desconforto ou aflição de seus bebês do que mães solteiras. Assim,
inferiu-se que o apoio da figura paterna e a relação desta com a genitora pode
favorecer o aumento da disponibilidade da mãe para atender, de forma sensível e
contingente, os desconfortos do filho.
Outro fator de grande relevância é a questão de haver menor impacto
de depressão materna quando não há outros fatores de risco associados, tais
como baixo apoio marital ou familiar e baixo status socioeconômico (Motta et
al., 2005). Esses achados só reforçam a importância de a mãe poder contar com
uma rede de apoio no cuidado com o filho, pois, desta forma, ela poderá exercer
sua maternagem de forma mais adequada (Rapoport & Piccinini, 2006). É ne-
cessário ressaltar que além da mãe, a criança está cercada de outras pessoas que a
influenciam emocionalmente, como irmãos, parentes, amigos, podendo ou não
ter algum significado emocional (Pio, 2007).

34
A partir do explanado, percebe-se a importância de uma relação familiar
para a saúde da pele e do desenvolvimento da criança. Dentro disso, cabem as
práticas educativas parentais, as quais podem ser compreendidas como conjun-
tos de condutas dos pais no processo de educação e socialização dos filhos. Essas
práticas estão associadas a vários indicadores de desenvolvimento psicossocial
e comportamental, tais como a autoestima, a depressão, a ansiedade, psicopa-
tologia, desempenho escolar, entre outros (Teixeira, Oliveira, & Wottrich, 2006;
Teixeira & Lopes, 2005; Cecconello, De Antoni, & Koller, 2003).
Teixeira e Lopes (2005) salientam que os estilos parentais referem-se a
metas ou valores considerados importantes pelos genitores tanto em suas vidas
quanto na educação de seus filhos. Os pais que conseguem ser mais amorosos,
acolhedores, encorajadores e aceitadores das perspectivas singulares de cada
indivíduo e de seus desejos, satisfazem as necessidades psicológicas da pessoa,
como autonomia e relações interpessoais, aumentando a probabilidade de que
esta possa se expressar e sentir mais confiante.
Por outro lado, quando o ambiente de desenvolvimento é frio, controla-
dor e rejeitador, o sujeito procura aprovação e segurança por meio do estímulo
externo, pois há maior dificuldade de relacionamento interpessoal e de autono-
mia, especialmente se os genitores exercem excessivo controle, sem apoio emo-
cional, de forma a prejudicar a internalização, isto é, as metas e os valores são
buscados a partir de uma autoridade externa, valorizando mais a opinião alheia
do que a sua própria (Teixeira & Lopes, 2005).
Quando a pele adoece em qualquer etapa do desenvolvimento humano a
pessoa e família se depara com as repercussões que este órgão reflete na vida. Se
uma criança desencadeia a dermatite atópica esta doença impacta além dos pais,
a família. Inclusive dermatologistas que atuam na perspectiva interdisciplinar
da compreensão da relação entre pele e psiquismo recomendam que a mãe da
criança ao aplicar a medicação tópica (na pele) faça carícias na mesma. Desta
forma, a criança sente o contato mais prazeroso. Este aspecto tende a auxiliar na
recuperação da saúde integral da pessoa, além do fortalecimento imunológico e
vínculo.

Considerações finais

A pele sendo o maior órgão do corpo, reflete nela o mundo interno e

35
externo. Emoções são manifestadas na pele desde o nascimento e durante todo o
ciclo vital. A cada etapa do desenvolvimento, o toque repercute na promoção do
fortalecimento do sistema imunológico e das relações interpessoais.
Destaca-se que são escassas as pesquisas sobre a relação entre Psicologia
e Dermatologia no Brasil, sendo necessário o avanço de novos estudos sobre
esta inter-relação entre pele e aspectos psicológico no desenvolvimento humano.
Novas pesquisas permitem o diálogo entre pesquisadores brasileiros com outros
internacionais para a produção de conhecimentos sobre o processo saúde-doen-
ça implicado na saúde da pele. O desenvolvimento de novas pesquisas poderá
contribuir para a prevenção e tratamento de dermatoses e promoção da qualida-
de de vida do nascimento ao envelhecimento no âmbito da saúde da pele.
Nesse sentido, destaca-se a necessidade de aprofundamento de estudos
no que diz respeito às questões de intervenções terapêuticas relacionadas as der-
matoses. Além disso, a importância dos profissionais da área da saúde trabalha-
rem de forma interdisciplinar, como promover um melhor resultado no trata-
mento das doenças de pele crônicas. Cumpre salientar que existe uma ligação
muito forte entre a pele e os fatores psicológicos, os quais acabam desencadean-
do o surgimento ou agravamento das dermatoses.

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39
Capítulo 3

GÊNERO, PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO:


NOTAS SOBRE A SUBJETIVAÇÃO/CONSTRUÇÃO
DA SEXUALIDADE NORMAL/ANORMAL

Denise Quaresma da Silva Currículo Lattes

A proposta deste capítulo é trazer a discussão da temática de gênero para


o campo da Psicologia, discorrendo sobre a conceitualização do termo, o seu
caráter relacional, o estudo junto a outros campos do conhecimento humano e
implicando a Psicologia nessas discussões, mais especificamente propondo uma
articulação com o campo da Educação, onde centro minhas pesquisas.
Cada pessoa fala a partir de um lugar que expressa o cruzamento de ca-
racterísticas específicas de gênero, raça/etnia, classe social, religião, orientação
sexual, localização, geração, etc. No que se refere ao gênero, essas características
remetem às construções sobre o papel de homem e de mulher em nossa socieda-
de que se relacionam com determinadas normas, regras e papéis sociais.
O termo gênero foi conceitualizado numa perspectiva feminista em fins
da década de 1970 (Sardenberg, 2004). Inicialmente, era uma palavra usada ape-
nas em oposição a sexo, como construção social das identidades sexuais, descre-
vendo o que é socialmente construído. Já nas décadas de 70 e 80, de acordo com
Sorj (1992), os estudos de gênero passaram a envolver duas dimensões: a ideia de
que o gênero seria um atributo social institucionalizado e a noção de que o po-
der estaria distribuído de modo desigual entre os sexos, subordinando a mulher.
Com o avanço nas discussões, o termo gênero passou a ser considerado como ca-
tegoria múltipla e relacional que abarca códigos linguísticos institucionalizados e
representações políticas e culturais (Butler, 2003).
Scott (1995) conceitua o gênero como uma categoria de análise histórica
que implica em quatro elementos: 1) símbolos culturais disponíveis (da tradição
cristã ocidental) – que evocam representações múltiplas e contraditórias, por

41
exemplo, Eva e Maria como símbolos de mulher; 2) conceitos normativos – que
colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos, limitando e con-
tendo suas possibilidades metafóricas; 3) inclusão da noção do político – como
referência às instituições e organizações sociais; e 4) identidade subjetiva – re-
ferenciada pela psicanálise lacaniana que concebe a formação da identidade de
gênero a partir das relações objetais estabelecidas com o Complexo de Édipo, nas
primeiras etapas do desenvolvimento humano.
Ampliando o conceito, De Lauretis (1994) propõe pensar o gênero como
produto de tecnologias sociais, discursos, epistemologias e de práticas institucio-
nalizadas que o sustentam dentro de um aparato social e representacional absor-
vido subjetivamente por cada pessoa. A autora também traz quatro proposições
sobre o gênero: 1) o gênero é uma representação; 2) a representação do gênero
é a sua construção; 3) a construção do gênero vem se efetuando hoje nos apare-
lhos ideológicos do Estado; e 4) a construção do gênero se faz por meio de sua
desconstrução.
Postulo que as/os diversos profissionais e a sociedade como um todo pre-
cisam refletir sobre os impactos nas produções de subjetividade para homens
e mulheres que se entrecruzam com relações de poder. A Psicologia, enquanto
campo de pesquisa, formação e atuação relacionada ao ser humano tem muito
a contribuir no que se refere à desconstrução das desigualdades sociais e de gê-
nero. Para tanto, esse estudo tem que ser efetivado em um terreno transversal,
pois estudar gênero no âmbito da Psicologia, perpassa o entendimento de que
categorias transversais de gênero, raça/etnia, classe social, orientação sexual e
geração se cruzam construindo sujeitos com certas especificidades que precisam
ser observadas. Ocupo-me da articulação da Psicologia com a Educação, a partir
de pesquisas no campo da Educação sexual.
Os temas da sexualidade, da educação sexual e das diversidades de gêne-
ro estão ocupando crescentemente diversos espaços da mídia, da política, acadê-
micos e da sociedade civil brasileira. A amostra mais evidente da extensão des-
tes temas pode ser a atual polêmica dentro e fora do Congresso Nacional sobre
a pertinência de uma proposta do Ministério da Educação para incluir temas
de homofobia e a respeito da diversidade da instrução da educação sexual nas
instituições escolares. A articulação deste debate e seus desenlaces confirmam
a consolidação da educação sexual como um campo de interesses e lutas, onde
diferentes discursos participam de uma disputa política de gênero e sexualidade

42
que envolve relações desiguais de poder por legitimar ou estigmatizar algumas
identificações e práticas (Furlani, 2008).
Estes enfrentamentos destacam um acentuado interesse pela educação
sexual que transcende a preocupação pela higiene do corpo, a prevenção do
HIV/AIDS, o aumento da gravidez na adolescência e o início cada vez mais cedo
das relações sexuais; falam de um acentuado interesse por produzir- ou não-
corpos e subjetividades ajustados aos ideais sexuais e de gênero predominantes.
Minhas indagações vêm se fundamentando ultimamente dentro desta
perspectiva da análise e tem seu início a partir de um estudo com adolescentes
grávidas em situação de risco social que revelou as limitações das famílias para
dialogar sobre sexualidade (Quaresma da Silva, 2007).
Na sequência, desenvolvi uma pesquisa institucional onde entrevistei
professores e estudantes das escolas públicas municipais de ensino fundamental
da cidade de Novo Hamburgo/RS, objetivando analisar as práticas de educação
sexual e a sua transversalidade no currículo escolar.
Nesta direção, examinar as práticas de educação sexual com uma pers-
pectiva de gênero nas instituições escolares de nível fundamental em Novo
Hamburgo/RS significa revelar as pedagogias de gênero que ali são articuladas,
descrever o que elas ensinam sobre como ser homens e mulheres, analisar os
discursos de gênero que circulam nestas práticas, verificar como são significadas,
representadas, valorizadas e ordenadas diversas identidades e quais homens e
mulheres são legitimados, estigmatizados e marginalizados.
Concluí, através das análises das entrevistas, que quando as/os professo-
ras/es explicam a importância e a finalidade da educação sexual, destacam preo-
cupações e propósitos que não tem a ver somente com a prevenção das doenças
e da prevenção da gravidez adolescentes. Em suas explanações se evidenciam
que nas práticas de educação sexual se ensina muito mais que órgãos e partes do
corpo, muito mais do que como colocar um preservativo, muito mais que infec-
ções de transmissão sexual. Acompanhando estes temas, circulam discursos e
representações sobre gênero e sexualidade que indicam como devem ser homens
e mulheres e quais comportamentos, atitudes, gestos e práticas sexuais são ade-
quadas para cada um (Quaresma da Silva, 2011).
As reflexões que apresento neste texto, podem ser úteis para justificar
ações dirigidas a sensibilizar e implicar a todos/as no questionamento das suas

43
práticas cotidianas sobre como nos posicionamos frente à questão da sexualida-
de humana, na análise dos efeitos de inclusão-exclusão, aceitação-discriminação,
legitimação-desaprovação e normalidade-aberração que elas nossas posturas
produzem.
Entendo a subjetividade como o encontro do social e do individual, for-
mando a teia que constitui o sujeito e se manifesta nas suas relações, na práxis.
Reitero a importância de (re)conhecer como se institucionalizam as práticas so-
ciais, visto que estas são responsáveis pela transmissão de valores, incorporados
nas subjetividades.
Não podemos pensar em relações que se efetivem entre sujeitos que não
estejam inseridas em determinado contexto, e que não sofram influência deste.
Neste sentido, as subjetividades, são compostas de determinantes estruturais e
singularidades. Minha concepção é de que aquilo que se traduz nas interações
entre sujeitos é o reflexo de valores culturais internalizados no processo de socia-
lização, embora nas relações se expressem de forma única. Desta forma, assumo
a posição de que o gênero, na construção das subjetividades se efetiva nas inte-
rações singulares, no âmbito social, cada caso se configurando de forma única,
mas tendo como “pano de fundo”, as práticas histórico/culturais onde os sujeitos
se constituem.
Postulo que toda educação é sexual e que a educação sexual constitui
um espaço onde circulam identidades de gênero valorizadas e desacreditadas e
para este propósito, são ativadas diversas táticas regulamentares para registrar
nos corpos características de gênero e sexualidade legitimadas e dominantes na
lógica heteronormativa.
Louro (2010, p. 15) afirma:
O ato de nomear o corpo acontece no interior da lógica que supõe
o sexo como um ‘dado’ anterior à cultura e lhe atribui um caráter
imutável, a-histórico e binário. Tal lógica implica que esse ‘dado’
sexo vai determinar o gênero e induzir a uma única forma de desejo.
Neste sentido, Roudinesco (2003, p. 117) destaca que “quando se con-
sidera que o sexo anatômico prevalece sobre o gênero, a unidade se esfacela e a
humanidade é dividida em duas categorias imutáveis: os homens e as mulheres.
As outras diferenças são então desprezadas ou abolidas”.
Diversas instâncias (escola, família, lei, igreja, mídia, ciência, cinema,
organizações) participam ativamente e suportam esta lógica para produzir os

44
corpos – e as subjetividades – acordes à norma que privilegia a heterossexua-
lidade. Nessas instâncias podem ser desconstruídos processos articulados que
privilegiam identidades e práticas hegemônicas enquanto negam, desvalorizam
e marginam outras identidades e práticas. Louro (2010) descreve este “fazer os
corpos” como um trabalho pedagógico ininterrupto, reiterado e ilimitado que é
desenvolvido para inscrever nos corpos o gênero e a sexualidade legítimos.
Refiro as pedagogias culturais que nos ensinam hábitos, formas de com-
portamentos e valores através de diferentes artefatos como os filmes, a moda, as
revistas, os programas de televisão, a literatura, a publicidade e a música. Através
das pedagogias de gênero se ensinam quais comportamentos se devem valorizar,
quais atitudes e gestos são adequados para cada gênero, bem como se deve ser e
fazer (Louro, 2008).
Quando falamos destas identificações ensinadas, valorizadas, permitidas
e estimuladas, é impossível não ter em conta a participação da mídia nesse pro-
cesso, e especificamente das revistas como mídia impressa. As revistas, segundo
Bassanizi (1996, p. 16):
[...] tentam corresponder à demanda do público leitor, consideran-
do seu modo de agir e pensar, ao mesmo tempo em que procu-
ram discipliná-lo e enquadrá-lo nas relações de poder existentes,
funcionando como um ponto de referência, oferecendo receitas de
vida, impingindo regras de comportamento, dizendo o que deve e
principalmente o que não deve ser feito.

Ou seja, as revistas, transmitem conselhos e recomendações que indicam


caminhos, atitudes, comportamentos a serem seguidos pelos homens e pelas
mulheres, algumas vezes na lógica heteronormativa, outras vezes na direção da
legitimação da diversidade. Isso confirma a convergência de diversas representa-
ções sobre como devem ser homens e mulheres. Por isto, as/os pesquisadoras/es
envolvidas/os neste campo buscam apontar:
[...] os modos pelos quais características femininas e masculinas
são representadas como mais ou menos valorizadas, as formas pe-
las quais se re-conhece e se distingue feminino de masculino, aqui-
lo que se torna possível pensar e dizer sobre mulheres e homens
que vai constituir, efetivamente, o que passa a ser definido e vivido
como masculinidade e feminilidade, em uma dada cultura, em um
determinado momento histórico (Meyer, 2003, p. 14).
Nesse sentido, torna-se um imperativo com altas implicações políticas a
problematização da constituição cultural e o governo das identidades de gênero

45
através das revistas, buscando desconstruir tais representações para desestabili-
zar ou interpelar as “verdades” sobre gênero, que ali são veiculadas.
Para Foucault (2003), a sexualidade é um dispositivo histórico muito
concreto de poder. O dispositivo de sexualidade é uma criação social e inscre-
vem-se nas mais variadas relações de poder existentes na sociedade, do pai para
o filho, do homem para a mulher, do professor para o aluno, do médico para o
paciente, do governo para a população, etc. Este autor descreve um conjunto
de técnicas e táticas com a finalidade de produzir corpos dóceis e úteis para o
sistema onde eles se encontram inseridos, configurando-se, segundo ele, uma
anatomia política do detalhe.
É assim como meninos e meninas vão apropriando se de um conjunto
de ‘mandamentos’ sobre como devem ser homens e mulheres para ser aceitos,
respeitados e valorizados. Através do discurso, as crianças e jovens aprendem
quais comportamentos devem valorizar, quais as atitudes e gestos adequados a
cada um dos gêneros, bem como o que podem e devem fazer cada um deles.
Esse processo complementa-se com o reconhecimento dos sujeitos em uma
identidade frente às constantes interpelações confrontadas no cotidiano. O
reconhecimento implica sempre a identificação e a negação do seu oposto desde
uma posição social determinada, o que condiciona ordenamentos e hierarquias.
Isto confirma que as masculinidades e as feminilidades são construídas e
produzidas nas relações de poder de uma sociedade e estão marcadas pelas par-
ticularidades do contexto histórico cultural onde elas emergem. Elas não existem
como uma essência constante e universal, em todo caso, elas são um conjunto de
significados e comportamentos atravessados por outras marcas de identidade.
Por isso, um mesmo sujeito pode vivenciar situações de identidade des-
valorizada ou aceita em contextos culturais/sociais diferentes. Quando interpre-
tamos as identidades como posições de sujeito, pensamos no entrecruzamento
que se produz entre masculinidades e classe, raça, nacionalidade, sexualidade,
profissão, religião, moradia, idade, escolaridade. O resultado é uma contínua va-
riação de fronteiras, reconhecimentos, interpelações, e de possibilidades carre-
gadas de contradições, ambiguidades e incoerências (Bessa, 1998).
Nessa perspectiva, gênero torna-se uma categoria analítica das relações
de poder, ou seja:
[…] um mecanismo heurístico com funções positivas e negativas
em um programa de pesquisa. Como heurística positiva, gênero

46
elucida uma área de indagação, perfila um conjunto de perguntas
[…] identifica problemas que se devem explorar e oferece concei-
tos, definições e hipóteses para guiar a pesquisa, especialmente para
sondar o terreno das relações humanas. A heurística negativa da
análise de gênero permitiria impugnar a naturalização das diferen-
ças de sexo em diferentes âmbitos de luta, ou para desafiar atitudes
que assumem como naturais determinados comportamentos mar-
cados pelo gênero (Chiarotti, 2006, p. 12).

Distancio-me de posturas teóricas que estabelecem uma sinonímia entre


gênero e mulher e que, por tanto, restringem a potência analítica da categoria
gênero. Talvez porque o conceito gênero é uma ferramenta de análise que tem
marcado as lutas e o pensamento feminista, tem sido difícil superar este reducio-
nismo na compreensão e uso da categoria gênero, inclusive na atualidade, como
apontam Corrêa e Vianna (2007, p. 10): “na dinâmica da militância feminista
ainda existe grande resistência no que se refere a abrir mão deste ‘patrimônio’, ou
seja, do capital político construído ao redor da categoria mulher”.
Segundo Lamas (2000), o uso da categoria gênero foi estimulado pelo
feminismo anglo-saxão nos anos setenta com a finalidade de mostrar que as mu-
lheres aprendem a ser mulheres, mediante um complexo processo individual e
sociocultural de caráter político. Posteriormente, se estendeu o uso do termo
para nomear os estudos de mulheres, dando um matiz mais neutro, científico e
objetivo às pesquisas nesta área, tal e como exigem os pressupostos positivistas
(Rey, 1997).
Não obstante, reconheço que a pertinência atual da categoria gênero,
para explorar outras identidades discriminadas, tem sido resultado dos próprios
avanços, contribuições e limitações dos estudos sobre mulheres, o que possibili-
tou o deslocamento do objeto de gênero, passando “do objeto empírico mulheres
para o objeto teórico gênero” (Alencar-Rodrigues, Strey, & Espinosa, 2009). Por
tanto, defendo que:
[...] não se pode apenas estudar as mulheres, pois o objeto dos es-
tudos de gênero é mais amplo, e, sendo assim, faz-se necessária
uma análise em todos os níveis, âmbitos e tempos, das relações mu-
lher-homem, mulher-mulher, homem-homem para se alcançarem
maiores resultados (Barbieri apud Medrado & Lyra, 2008, p. 819).

Este deslocamento não deve ser interpretado como uma simples amplia-
ção dos sujeitos de estudo, passando agora a incluir aos homens. A transcen-
dência é muito mais profunda, pois significa um salto epistemológico para uma

47
compreensão muito mais complexa dos ordenamentos e desigualdades resultan-
tes dos diversos modos como são representadas as diferenças de gênero, sem
ignorar as pluralidades, contradições e ambiguidades que emergem do entre-
cruzamento com outras representações (classe, etnia, crença religiosa, profissão,
sexualidade, idade, maternidade/paternidade, dentre outras).
Nesta visão, os homens não são identificados como executores de desi-
gualdades senão como parte e objeto dos mecanismos que produzem desigual-
dades. Desta forma, o grande desafio é dar visibilidade às desigualdades de gêne-
ro, sejam entre homens e mulheres, entre mulheres ou entre homens.
O campo dos estudos de gênero no qual se localizam e transitam mi-
nhas inquietações, se distinguem por constituir um enfoque interpretativo que
examina a ordem das coisas existente na história, sociedade, cultura, política e
na economia, desarticulando as verdades que (re)produzem, legitimam e perpe-
tuam essa mesma ordem, na qual as representações das diferenças femininas e
masculinas terminam classificando sujeitos e limitando seus espaços e destinos.
Não são nossos genitais e anatomias que determinam as relativas posi-
ções que ocupamos nos sistemas de relações sociais, é tudo o que se diz sobre
nossos genitais e anatomias o que nos constitui e articula nossos vínculos; ao
mesmo tempo convertem-se em argumentos para explicar o caráter hierarqui-
zado destes vínculos. Em outras palavras: “gênero é um elemento constitutivo de
relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos [...] gênero é
uma forma primária de dar significado às relações de poder” (Scott, 1995, p. 86).
É isto precisamente o que está sendo repensado no campo dos estudos de
gênero: hierarquias e desigualdades, as representações que as fundamentam e os
mecanismos que as produzem culturalmente.
As diversas maneiras de serem homens e mulheres são construções pro-
duzidas nas relações de poder de uma sociedade, validadas por inúmeras ‘verda-
des’ cientificas e míticas e marcadas pelas particularidades do contexto histórico
cultural onde elas emergem (Beauvoir, 1990). Ou seja, as significações de gênero
configuram modos diversos de pensar, sentir e agir e determinam espaços, fun-
ções e destinos na sociedade. Como expressa Louro (1995, p. 106): “ser do gênero
feminino ou do gênero masculino leva a perceber o mundo diferentemente, a
estar no mundo de modos diferentes – e, em tudo isso, há diferenças quanto à
distribuição de poder”.

48
Os significados que se constroem sobre os corpos de homens ou mulhe-
res trasbordam os próprios corpos para transitar ilimitadamente por tudo, dan-
do a impressão de viver em um mundo classificado em masculino e feminino.
Por isso, escutamos os relatos das/dos professoras/es preocupadas/dos com o
menino de gestos femininos, os comentários da vizinha sobre a colega de traba-
lho que caminha como um homem, o cliente de uma loja que não gostou de uma
gravata, por entender que parece feminina, a vendedora que sugeriu um perfume
com uma fragrância masculina, a decoradora que não gostou daquela cor mas-
culina, o pai decepcionado com o filho que escolheu uma profissão de mulher, o
gay que é muito feminino e assim por diante.
Nesta direção, os estudos de gênero têm confirmado que existem padrões
ou ideais de masculinidades e feminidades e que esses padrões que se instituem
como normas e expectativas são, de maneira acentuada, os mais valorizados e
dignos de ser exibidos.
É imprescindível que as possibilidades de serem homens e mulheres sejam
ensinadas e aprendidas. Diversos estudos, localizados na interseção de gênero e
educação, revelam os contínuos processos e mecanismos de formação de homens
e mulheres, segundo os padrões estabelecidos em cada contexto histórico-
cultural. Escola, família, igreja, mídia, ciência, cinema e organizações de diversas
índoles estão ativamente envolvidos na tarefa de produzir identidades de gênero,
privilegiando umas enquanto marginam outras. Louro (2004) descreve um
trabalho pedagógico ininterrupto, reiterado e ilimitado que é desenvolvido por
cada uma de estas instâncias para inscrever nos corpos os gêneros e as sexuali-
dades legítimas.
Assumo uma noção não tradicional da categoria pedagogia, que permi-
te pensar no pedagógico além dos limites físicos escolares, porque compartilho
que ensina e aprende-se muito também fora da escola. Articulam-se pedagogias,
como expõem Giroux e McLaren (1995, p. 144): “[...] em qualquer lugar em que
existe a possibilidade de traduzir a experiência e construir verdades, mesmo que
essas verdades pareçam irremediavelmente redundantes, superficiais e próximas
ao lugar-comum”.
A partir das pedagogias de gênero, se ensinam quais aparências corpo-
rais, comportamentos, acessórios, atitudes e gestos são mais ou menos adequa-
dos para cada gênero. Brincadeiras e brinquedos constituem acessos efetivos
para ir conhecendo os lugares e destinos estabelecidos para homens e mulheres

49
na sociedade, na família e em outros âmbitos. Sob constante orientação, vigia e
controle, meninos e meninas ‘escolhem’ como e com o quê brincar. É assim que
meninos e meninas se vão apropriando de um conjunto de ‘mandamentos’ sobre
como devem ser homens e mulheres, para obter aceitação e respeito.
Porém, é impossível nomear e descrever o normal sem apresentar o
anormal. Por isso, circulam continuamente diversas representações sobre gêne-
ro, tanto representações hegemônicas, tradicionais ou instituídas quanto repre-
sentações desvalorizadas, transgressoras, emergentes ou dissidentes, resultando
um universo de significados diversos, ambíguos, socialmente produzidos e em
conflito, mas com significativos efeitos de inclusão-exclusão e aceitação-discri-
minação.
Ao se falar de identidades valorizadas nas diversas instâncias sociais, se
abre espaço para as identidades desacreditadas, indicando o que não pode ser: o
punido, o proibido, mesmo que nunca seja enunciado verbalmente. Ao se igno-
rar, ao se fazer de conta que não existe, se define o lugar em que são colocadas
algumas identidades.
Identidades estigmatizadas e demonizadas pelo distanciamento com os
ideais hegemônicos são produtivas, úteis, para evidenciar os limites entre o res-
peitado e o desestimado. Toda matriz excludente “[...] pela qual os sujeitos são
formados exige, pois, a produção simultânea de um domínio de seres adjetos,
aqueles que ainda não são “sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo
relativamente ao domínio do sujeito (Butler, 2010, p. 155)”.
Essa autora evidencia o caráter relacional e complementar das represen-
tações de identidades que circulam culturalmente: o que somos se define a partir
do que não somos. Examinar as identidades de gênero sem ignorar esta particu-
laridade, multiplica as possibilidades de problematizar as lutas por legitimação
que se estabelecem entre as identidades. Sendo assim, representações de femini-
dades se encontram interligadas com representações de masculinidades, repre-
sentações hegemônicas de feminidades indicam as feminidades estigmatizadas e
novas masculinidades revelam o menosprezado nas masculinidades tradicionais.
Numerosos estudos vêm mostrando que ao pensar em pedagogias po-
dem ser múltiplos os espaços onde ela se pode articular. Além do espaço propria-
mente escolar, encontramos, em diferentes locais e contextos, as mais variadas e
singulares pedagogias, muitas delas nomeadas como pedagogias do gênero e da
sexualidade. Em programas de educação em saúde se observam pedagogias da

50
maternidade (Meyer, 2003), algumas revistas estão muito interessadas em en-
sinar como os homens heterossexuais devem procurar e obter prazer (Câmara,
2007) enquanto outras oferecem lições sobre como serem homossexuais (Lo-
pes, 2011). Os centros de tradição gaúcha investem em ensinar como ser um
verdadeiro homem gaúcho (Nunes, 2003), filmes infantis constituem recursos
pedagógicos para garantir a heterossexualidade como norma (Sabat, 2003), um
programa de TV desenvolve uma pedagogia amorosa/sexual (Soares, 2007) e um
programa social ensina as crianças a viverem em família de determinadas formas
(Fernandes, 2008).
Estes autores/as assumem que podemos encontrar pedagogias culturais
em “qualquer instituição ou dispositivo cultural que, tal como a escola, esteja
envolvido em conexão com relações de poder- no processo de transmissão de
atitudes e valores” (Silva, 2000, p. 89). Estas produções teóricas têm possibilitado
a extensão das noções de educação, ensino, aprendizagem, pedagogia e currículo
para além dos contornos físicos das escolas.
Nessa assertiva, ao finalizar este texto, reitero a fundamental importância
de um exame crítico de como todos/as estamos permanentemente produzindo e
sendo produtos nas designações de gênero e nas constituições subjetivas, caben-
do a cada um se perguntar: o que significa ser homem ou ser mulher? Que coisas
são designadas como sendo de homem ou de mulher? Existem coisas que um
homem pode fazer que uma mulher não possa ou vice-versa? Como aceito a di-
versidade de escolhas sexuais para além da determinada em minha cultura como
sendo a correta? O consideramos normal ou anormal no campo da sexualidade?
Como olhamos, entendemos, interpretamos, analisamos a sexualidade humana?

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54
Parte II – Das Teorias às Práticas

55
Capítulo 4

REPRODUÇÃO ASSISTIDA:
REVELAR OU NÃO REVELAR AOS FILHOS?

Gisleine Verlang Lourenço Currículo Lattes

Daniela Riva Knauth Currículo Lattes

José Roberto Goldim Currículo Lattes

Luiz Eduardo Albuquerque


Ana Rosa Detílio Monaco Currículo Lattes

Maria Lucia Tiellet Nunes Currículo Lattes

Eduardo Pandolfi Passos Currículo Lattes

Estima-se que a cada ano 3.5 milhões de crianças nascem através de


processos de reprodução assistida (Goossens et al., 2008). O desenvolvimento
de técnicas de Reprodução Assistida, que consistem em todos os tipos de tra-
tamento que incluem a manipulação in vitro (no laboratório) em alguma fase
do processo, de gametas masculinos (espermatozóides), femininos (oócitos ou
embriões) tem favorecido com que casais inférteis tenham a possibilidade de
alcançar a gravidez (Passos, 2003). Estas técnicas permitiram a doação de óvulos,
doação de sêmen, adoção de embriões ou útero de substituição, o que na prática,
favoreceu o surgimento de novas formas de parentalidade e conjugalidade (pa-
ternidade homoparental, famílias uniparentais, produção independente, filho de
reprodução assistida).
Na fertilização in vitro, a transição para a parentalidade tem um caráter
bastante particular. Estudos têm sugerido que o problema da infertilidade e as
técnicas de reprodução assistida podem estar associados a longos períodos de
estresse parental, o que poderia afetar negativamente a adaptação ao papel pa-
rental, o comportamento dos pais, a qualidade de a relação pai/mãe-filho, e sub-

57
sequententemente o desenvolvimento emocional e social das crianças (Colpin,
2008).
Entre o casal se interpõe a tecnologia reprodutiva, com sua linguagem e
técnicas específicas (Aggleton, 2001). O desejo de ter um filho passa a ser uma
decisão necessariamente consciente e que implicará em um grande investimen-
to emocional e financeiro. Neste contexto é preciso atentar para duas situações
delicadas. Ter filhos através da medicina reprodutiva significa enfrentar as exi-
gências impostas pelos procedimentos, repetibilidade de tentativas para aumen-
tar a chance de êxito, elaboração do luto da capacidade de facilmente conceber,
inclusão de uma equipe médica na privacidade do casal. A outra situação, o de
se tornarem mães e pais de forma “não natural” ou com a marca da infertilidade
(Lourenço, 2010).
Com o crescimento das crianças, os pais precisam tomar a decisão acerca
da revelação (ou não) do procedimento realizado para o seu nascimento. Poucos
estudos investigaram os padrões de divulgação entre os pais que tiveram filhos
após tratamento de fertilidade com o uso de gametas dos próprios, através de
fertilização in vitro (FIV), injeção intracitoplasmática de espermatozóides (ICSI)
ou inseminação intra-uterina (IUI-H) (Rosholm, 2006).
Os resultados publicados demonstram que a idade da criança parece in-
terferir na revelação do método de fertilização, em estudos que envolviam crian-
ças com até 11 anos de idade, a maioria dos pais afirmou ainda não ter revelado o
método de concepção. No entanto, os mesmos afirmaram a intenção de informar
a criança no futuro (Braverman, 1998; Sundby, 2007). Corroborando com esses
dados, Colpin (2008) em um trabalho recente, relatou que mais da metade dos
pais (66%) informou seus filhos entre 15 e 16 anos de idade a respeito da fertili-
zação in vitro.
No Brasil, o impacto destas tecnologias sobre a vida dos casais, das mu-
lheres e dos filhos ainda é pouco estudado (Chachamovich, 2009; Urdanpiletta,
2002). O presente estudo se propõe a compreender uma das dimensões do im-
pacto da reprodução assistida sobre a parentalidade de famílias brasileiras, quer
seja, a revelação aos filhos sobre a forma de concepção realizada.

Método

Trata-se de estudo transversal desenvolvido em quatro centros de re-

58
produção assistida tanto públicos como privados em São Paulo e Porto Alegre.
Foram incluídos no estudo, os casais que procuraram atendimento nos quatro
centros no período de 1997 a 2006 e que obtiveram sucesso no tratamento. O cri-
tério de exclusão escolhido foi crianças com presença de algum tipo de malfor-
mação. Em função de que essa variável torna a revelação ainda mais complexa.
Os convites foram feitos via telefone, momento em que uma explicação
detalhada do objetivo da pesquisa era dada pela pesquisadora. Após o aceite, a
pesquisadora ia ao encontro do casal, levando o Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido e o questionário. Cada integrante do casal respondia o questionário
separadamente. O instrumento foi constituído de uma coleta via questionário de
uma parte com dados quantitativos e outra com dados qualitativos.
Os dados dos pacientes incluídos no estudo foram inseridos em um ban-
co de dados, onde sua identificação era protegida pelo anonimato, sendo que
uma correspondência numérica era atribuída a cada participante. A estratégia
de investigação foi solicitar aos participantes a se expressar por linguagem es-
crita através de um instrumento auto-aplicado, semi-estruturado contendo cin-
co questões abertas (descritivas) e fechadas (de múltipla escolha). Nas questões
abertas foi perguntado ao entrevistado se revelou ou se há intenção de contar ao
filho sobre seu método de concepção; a quem caberá ou coube esta tarefa, como
e quando isso ocorreu; se há concordância por parte do casal sobre a intenção
de revelação do método de reprodução assistida ao filho. Também buscamos in-
vestigar quais outras pessoas do relacionamento social e familiar tiveram conhe-
cimento sobre o método de concepção, e as razões para esta revelação ou não.
O presente estudo utilizou-se de uma metodologia qualitativa de cole-
ta e análise dos dados. A técnica da análise foi análise de conteúdo. Os dados
coletados foram inseridos em um banco de dados e sistematizados através do
programa Sphinks Léxica® que analisa dados qualitativos. O referencial da abor-
dagem qualitativa deste sistema é de autoria de Jean Moscarola. A análise levou
em consideração as recorrências e divergências dos discursos dos entrevistados.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de
Clínicas de Porto Alegre (GPPG 06-058) aceito pelas instituições participantes.
Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclareci-
do. O desenvolvimento do projeto está de acordo com a Resolução do Conselho
Nacional de Saúde 196/96 que regulamenta a pesquisa com seres humanos.

59
Resultados

No total foram convidados a participar do estudo 200 casais, 56 pessoas


aceitaram participar do estudo, sendo 37 mulheres e 28 homens, parceiros destas
mulheres. Foi possível observar que em todas as famílias que o pai aceitou parti-
cipar, também a mãe aceitou. Em relação ao tipo de serviço, 20 (54% dos casais e/
ou mulheres) frequentavam os serviços públicos e o restante 17 (46% dos casais
e/ou mulheres) buscaram clínicas privadas.
Em termos de trajetória no uso das técnicas de reprodução assistida ob-
serva-se que 40% (15 pacientes) da amostra já tinham realizado mais de uma
tentativa de concepção através de reprodução assistida. No que se refere à re-
velação sobre a forma de concepção a outros membros das diferentes redes de
relações sociais dos casais, a análise dos dados indica que, no universo estudado,
é possível identificar três maneiras distintas de lidar com este tema. Um pequeno
número de entrevistados revela esta informação a um grupo bastante restrito de
pessoas, visto que este é considerado um assunto que interessa somente ao casal
ou a familiares muito próximos. Para este grupo, a forma de concepção constitui-
se em segredo, como indicam os relatos abaixo:
Não, nem uma pessoa sabe, é tudo segredo. (Homem, 35 anos, pós-
graduação)
Não. Acreditamos ser uma particularidade do casal. (Mulher,
41 anos, ensino superior completo)
Uma segunda atitude em relação à forma de concepção e que foi adotada
pela maioria dos entrevistados é a revelação para um grupo mais amplo de pes-
soas que incluem familiares, amigos e conhecidos mais próximos. Esta revelação
se dá, na maioria dos casos, já no momento mesmo do recurso à técnica, visto
que o apoio desta rede social próxima é considerado como um elemento impor-
tante para o enfrentamento da situação, como evidenciam os depoimentos:
Toda a família e amigos sabem e sabiam dos tratamentos que
realizamos. Contamos e dividimos nossas ansiedades com as
pessoas queridas desde o início, nossos medos e alegrias. Come-
moramos o sucesso da fertilização com um churrasco para fa-
miliares e amigos. Não contei para vizinhos e colegas de traba-
lho por falta de vínculo com eles. Como não contaria qualquer
outra coisa que diz respeito a minha vida pessoal. (Mulher, 39
anos, pós-graduação)

60
Sim. Não escondemos isto de ninguém. Logo que tomamos a
decisão contamos aos mais próximos e depois que confirmamos
a gravidez contamos aos outros. (Homem, 48 anos, ensino su-
perior incompleto)
Mas além do apoio, outro aspecto que determina a revelação são as dinâ-
micas das próprias redes familiares, como indica o relato abaixo:
Sim. Pais, irmãos e tios. Para os pais e irmãos acabamos con-
tando, afinal nos viam angustiados. Os tios receberam a notícia
através do jornal familiar, aquele que circula de boca em boca.
(Mulher, 34 anos, ensino superior completo)
Há ainda um grupo de entrevistados que não faz questão em esconder o
método de concepção utilizado seja porque não veem problemas nesta revela-
ção, especialmente porque consideram que ela pode auxiliar outras pessoas que
vivem situação semelhante.
Sim, sempre que comentamos sobre o assunto falamos. Também
há uma curiosidade das pessoas em relação a filhos gêmeos, per-
guntam se foi hereditário ou tratamento. Não vejo problemas
em falar, muito pelo contrário, penso que deva ser um estímulo
a outros casais que procuram o método. Também vejo que o
método nos ajudou a realizar um sonho, e teve sucesso também
pela persistência do casal. (Mulher, 40 anos, pós-graduação)
No que diz respeito à revelação para a criança, os entrevistados são pra-
ticamente unânimes em afirmar que esta deva ser realizada. Apenas dois entre-
vistados referiram não ter a intenção de revelar ao filho a forma de concepção
e cinco participantes (duas mulheres e três homens) mencionaram que o casal
ainda não havia pensado sobre o assunto.
A tarefa de revelação aos filhos é vista pela maioria dos entrevistados
como uma atribuição do casal e está condicionada a um conjunto de aspectos,
dentre os quais a idade, a maturidade ou capacidade de compreensão da criança.
Os relatos abaixo evidenciam estes condicionantes:
Caberá contar aos pais na hora oportuna quando ela entender
do assunto. (Mulher, 30 anos, ensino superior incompleto)
Quando estiver na adolescência, idade escolar, provavelmente
pai e mãe [irão contar] quando ela estiver estudando sobre as-
suntos (Mulher, 35 anos, fundamental completo)
Para nós [casal] isto é muito natural. Assim que nosso filho ti-

61
ver idade para entender contaremos. (Homem, 48 anos, ensino
superior incompleto)
E mais: a revelação do método de concepção é vista por parte dos entre-
vistados como uma coisa natural que se dará a partir do momento em que surgir
interesse e questionamentos por parte das crianças.
[Caberá contar] ao casal, em conjunto, no momento em que
surgir o questionamento, de maneira adequada a idade do
questionador. (Mulher, 41 anos, ensino médio completo.)
Entretanto, apesar de salientarem a naturalidade da revelação, alguns en-
trevistados indicam, ao mesmo tempo, os elementos que distinguem esta forma
de concepção, tais como o esforço, as dificuldades, o desejo intenso por um filho.
O depoimento de uma entrevista evidencia esta perspectiva, e destaca como a
concepção é parte da história da família e das filhas:
Nossa intenção é fazê-lo na medida em que as crianças
já tiveram algum entendimento e demonstrarem interesse em
saber sobre seus nascimentos e concepção. Acho linda nossa his-
tória e não vejo motivo algum de esconder delas o esforço que
fizemos para concebê-las. Escrevi um diário durante a gestação
onde conto todos os momentos e fases, tenho um histórico que
pretendo entregar a elas quando compreenderem. Faz parte da
nossa história, da nossa vida e das histórias de vida de minhas
filhas. (Mulher, 39 anos, pós-graduação)
Ou ainda outra entrevistada que afirma:
Como mãe gostaria de contar a ele o quanto foi esperado e de-
sejado. Não sei exatamente qual a idade, talvez uns 10-12 anos.
(Mulher, 33 anos, fundamental incompleto)
Apesar da maioria dos casais e mulheres entrevistadas enfatizar, no nível
do discurso, que a revelação da forma de concepção não é algo problemático,
o fato de grande parte dos entrevistados manifestarem que não haviam ainda
refletido sobre o tema antes da pesquisa, é um indicador de que este é um tema
delicado. A revelação sobre a forma de concepção implica em admitir o recurso
a um processo diferente do normal, que por sua vez necessita da mediação da
técnica e de um terceiro, o médico, como relata uma entrevistada:
Na minha geração, quando adolescente, a gravidez pressupu-
nha o contato sexual, ou seja, a concepção natural. Era uma
ligação espontânea ao coito. Quando o meu filho estiver na fase

62
de entender de sexo, gravidez, não sei (não sabemos como so-
ciedade se o diferente disto será visto tão somente como mais
uma forma de se dar origem a vida ou como um método que
discriminará as crianças). Sinto curiosidade e bastante receio.
Espero que o fato de ter sido concebido fora do útero como meio
de maior proteção não lhe traga nenhum tipo de dissociação.
(Mulher, 34 anos, ensino superior completo)
É desta forma que para grande parte dos casais e mulheres entrevistadas, a
revelação sobre a forma de concepção implica necessariamente em dois aspectos
tidos como centrais: o primeiro é o detalhamento dos complexos procedimentos
técnicos utilizados e o segundo é a confiança depositada no médico e na equipe
de profissionais da saúde. A necessidade da descrição da tecnologia utilizada para
a concepção é um dos fatores colocado como empecilho à revelação às crianças
pequenas. Falar que a criança foi concebida através de Reprodução Assistida é,
assim, falar sobre as técnicas utilizadas, como evidenciam os relatos abaixo:
Vou explicar que papai e mamãe fizeram um procedimento:
tentando explicar que foi tirado um óvulo meu, levado ao la-
boratório e que o papai deu seus espermatozoides para que este
óvulo nascesse o nenê. Ai esse óvulo foi posto dentro da mamãe
e a barriguinha foi crescendo e 9 meses depois nasceu a Maria
Eduarda. (Mulher, 35 anos, fundamental completo)
Tentarei explicar que foi feito de forma diferente do normal, fei-
to em laboratório, fecundado in vitro, pois meu organismo não
tinha condições. (Mulher, 33 anos, ensino superior completo)
A mediação da tecnologia no processo de concepção impõe, por sua vez,
a mediação do médico e da equipe de profissionais da saúde. Há, entre os casais
e mulheres entrevistados, um forte sentimento de gratidão para com os profis-
sionais que participaram do processo. A presença deste terceiro elemento entre
o casal é também um dos fatores que deve ser revelado e justificado, visto que
difere do normal. A equipe de profissionais da saúde e mais particularmente o
médico, é sempre apresentada como idônea e “de confiança”, atributos esses que
conferem legitimidade ao processo de concepção.
Já [revelou a forma de concepção]. Desde que minha filha é
bebe de colo eu falo para ela assistindo a fita do parto e as fotos
do parto que foi o “anjo” [médico que fiz tratamento] que colo-
cou ela lá em minha barriga e depois fez o parto. Que a “fada”
ajudou [assistente dele]. (Mulher, 36 anos, ensino superior com-

63
pleto)
Eu estou muito satisfeita por este trabalho maravilhoso da equi-
pe que nos abençoou de dar uma linda filha. (Mulher, 32 anos,
ensino superior completo)
Como evidenciam os dados acima, os argumentos de ordem tecnológica
ocupam o centro da discursividade na maior parte dos entrevistados. Falar sobre
a concepção através do aparato tecnológico permite, de certa forma, desviar o
foco das atenções do casal para a medicina, ou melhor, da infertilidade para a
tecnologia. Revelar o recurso à reprodução assistida é, necessariamente, revelar
a infertilidade do casal ou de um de seus membros. O preconceito em relação à
infertilidade é ainda um dos aspectos que dificultam a revelação, seja para fa-
miliares ou para as próprias crianças, da forma de concepção. Segundo nossos
dados, esta dificuldade é maior quando a causa da infertilidade é masculina.
Poucos foram os casais e mulheres entrevistadas que ao falar sobre a reve-
lação da forma de concepção enfatizaram aspectos afetivos. Os dois depoimentos
abaixo indicam esta outra forma de revelação possível:
Os pais não deveriam ter preconceito nenhuma para contar a
família e aos filhos, pois os bebês de fertilização são concebidos
com muito mais amor ainda. (Mulher, 40 anos, fundamental
completo)
Sim, já sabe [sobre a forma de concepção]. O pai e a mãe con-
taram. Com 5 anos lendo o jornal, contando que sempre foi
desejado, sempre sonhamos em tê-la. (Mulher, 45 anos, ensino
superior incompleto)
É interessante notar que a infertilidade é um aspecto tão marcante para
os casais e mulheres entrevistados que poucos foram aqueles que estabeleceram
a demarcação entre o momento da concepção e o nascimento. A necessidade do
uso de técnicas de reprodução assistida é percebida como um diferencial que se
impõe na relação dos pais com os filhos, visto que apesar desses serem crianças
normais após o nascimento, os pais continuam com a condição de inférteis. Ter
um filho pode reduzir o estigma da infertilidade, mas certamente não o elimina
por completo.

Discussão

As mães e os pais brasileiros que participaram desta pesquisa manifesta-

64
ram a clara intenção de revelar aos filhos sobre a forma de concepção e acreditam
que esta revelação deva se dar no momento em que a criança tenha mais idade,
maturidade e capacidade de compreensão.
Comparando com estudos internacionais, os resultados obtidos corro-
boram dados de Colpin (2008) e outros autores (Braverman, 1998; Peters, 2005;
Sundby, 2007), que afirmam que a maioria dos casais pretende informar aos fi-
lhos acerca do método de concepção utilizado. Entretanto, estudo busca avaliar
a intenção de revelação, enquanto outros estudos avaliam a revelação propria-
mente dita. Estes estudos observam que existe um aumento na revelação com o
aumento da idade dos filhos, os pais tendem a revelar o método de concepção a
partir da idade escolar, quando as crianças supostamente terão maior capacidade
de compreensão e interesse sobre o assunto.
A partir do contexto da infertilidade os achados revelaram uma temática
latente na discursividade dos participantes de pesquisa. Que exista também na
vivência da infertilidade um “estigma” assim como o experimentado pelos pa-
cientes portadores da síndrome da imunodeficiência humana (HIV) (Aggleton,
2001). Nesse sentido, Chachamovich (2009) e colaboradores demonstraram que
mulheres com infertilidade possuem escores significativamente mais baixos na
saúde mental, funcionamento social e comportamento emocional. Das respos-
tas abertas, foi possível depreender que tenha havido a presença de mecanismos
psicológicos de defesa, como o da negação, que consideramos ser um elemento
que pode interferir na espontaneidade dos casais na questão da revelação, na me-
dida em que a temática da técnica se sobrepõe ao discurso de ser pai e mãe. Os
padrões de gênero se sobrepõem à infertilidade (Augusto, 2002) e, neste sentido,
quando a causa é masculina, o estigma aparece com mais intensidade e a forma
de concepção permanece ainda como um “não dito” (Heritier, 1996).
Apesar da maioria dos entrevistados brasileiros manifestarem clara in-
tenção de revelar ao filho acerca do método de reprodução assistida, tal vivência
tende a deixar marcas e na discursividade destas pessoas que o fator infertilidade
é revelado. (Lourenço, 2010). Sob este aspecto, considerar certa discrepância en-
tre a espontaneidade da revelação e o poder de constrangimento que pode gerar
na discursividade dos pais em relação aos filhos e mesmo familiares. Esta cons-
tatação sugere que o apoio psicológico preventivo torna-se necessário no auxílio
das diversas etapas reprodutivas a serem vivenciadas, desde a adesão ou não aos
tratamentos, destino de embriões congelados até a transição para a parentali-

65
dade há novas exigências de fertilidade e subjetividade. Além destes aspectos já
caracterizados, que o estigma da infertilidade é um tópico de real importância
a ser trabalhado pela equipe e/ou profissional que acompanhe, com a finalidade
de que ele não se interponha na relação dialógica entre pais e filhos concebidos
através da reprodução assistida.
O valor deste estudo está em nos dar uma ideia de que os brasileiros têm
uma tendência a querer tratar do assunto revelação assim como os indivíduos
estudados em outros países. Ao mesmo tempo, revelou um discurso subjacente
que eventualmente possa contradizer ou dificultar esta tendência de revelação,
ou seja, o tema do estigma da infertilidade.

Considerações finais

O presente estudo sinaliza a importância de outros estudos, tanto quali-


tativos como quantitativos que aprofundem os aspectos relacionados da inferti-
lidade, estudos que contemplem famílias homólogas e heterólogas, e estudos que
acompanhem ao longo do tempo as diferentes implicações sociais e psicológicas
do uso de tecnologias reprodutivas sobre os casais e filhos.
Por fim, ainda são necessários estudos longitudinais que avaliem quais
as consequências dessas novas configurações familiares na constituição dos
sujeitos, também na comparação entre famílias homólogas e heterólogas. Ou
seja, a avaliação da possível ocorrência de uma ressignificação do lugar da mãe,
do pai e do bebê que fora concebido através de reprodução assistida.

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68
Capítulo 5

VIOLÊNCIA NA INFÂNCIA:
UM OLHAR A PARTIR DA PRÁTICA CLÍNICA

Lúcia Belina Rech Godinho Currículo Lattes


Não me cabe conceber nenhuma necessidade tão
importante durante a infância de uma pessoa que a
necessidade de sentir-se protegido por um pai. (Sig-
mund Freud)

Na prática clínica, o profissional que atua na área da psicologia defron-


ta-se cotidianamente com inúmeras situações de sofrimento mencionadas nas
falas dos pacientes que buscam ajuda. Entre as queixas mais comuns referidas
pelos pacientes adultos estão os relatos de vivências infantis como abandono,
negligência, maus tratos e abuso sexual. Na fala ou na representação das crianças
atendidas na área clínica também não é incomum a menção feita ao mesmo tipo
de vivências que estão na memória dos pacientes adultos. Frequentemente, mui-
tas dessas informações são confirmadas pelos próprios pais das crianças durante
as entrevistas iniciais ou mesmo posteriormente, quando a criança já se encontra
em atendimento psicoterápico. Há pais que, orgulhosamente, afirmam nunca ter
batido no filho, apenas imprimem-lhes “castigos”. Porém, existem castigos que
sem dúvida, parecem aterrorizantes. É possível exemplificar com alguma breve
referência extraída de exemplos clínicos. Deixar o filho trancado no quarto du-
rante horas, não permitir que o filho se alimente ou cortar suas refeições duran-
te as horas de castigo. Existem também pais que admitem ameaçar ou mesmo
colocar pimenta na boca do filho para que esse não mais mencione palavrões.
Surras de vara ou cinto ainda são muito mais comuns do que se possa imagi-
nar. Observa-se que não há uma ligação direta entre a prática da violência no
ambiente doméstico e a classe social, raça e nem mesmo grau de instrução das
pessoas envolvidas. Alguns pais que aplicam esses castigos aos filhos são pes-

69
soas com nível de escolaridade superior. Frequentemente pode se observar uma
forte predominância em relação à repetição do modelo de educação e discipli-
na a que os próprios pais foram submetidos em suas infâncias. Os maus-tratos
contra crianças podem ser praticados pela omissão, supressão ou transgressão
dos seus direitos definidos por convenções legais ou normas culturais (Gomes,
Deslandes, Veiga, Bhering, & Santos, 2002). Esses autores concluem que pais que
“apanham” da vida podem acabar “batendo” nos filhos.
A experiência clínica leva o profissional a se deparar com realidades que
vão de um extremo a outro completamente oposto quando se trata da educação
de crianças. De um lado estão pais que não conseguem dar limites aos seus filhos,
inclusive apanhando dos filhos adolescentes ou até mesmo de crianças, sentindo-
se intimidados e temendo a reação agressiva dos filhos. Afirma Cyrulnik (2006)
que existem lares onde as crianças fazem a lei, por mais improvável que isso pos-
sa parecer, existem sim pais que apanham dos seus próprios filhos e isso constitui
um verdadeiro desastre afetivo. Esses seriam os pais que se auto definem com
“moles” ou “bonzinhos” demais. Há pais que justificam essa atitude com argu-
mentos como “amamos muito nosso filho” ou “não queremos repetir a educação
dura e repressora que tivemos”, referindo-se à disciplina que receberam de seus
próprios pais. Em outro extremo, temos pais tirânicos, agressivos, intolerantes,
perfeccionistas, repressores e que agem impulsivamente e violentamente diante
de qualquer deslize da criança. Nesse último caso, quando o profissional escuta
esses pais, sabe que muitos lamentam posteriormente as suas atitudes, mostram
arrependimento e sentimentos de culpa, alegando que “agiram sem pensar” e só
puderam refletir sobre o ocorrido num momento posterior à violência praticada
contra o filho. Alguns desses pais parecem indecisos sobre a melhor maneira de
educar os filhos e justamente por isso estão buscando ajuda profissional.
De acordo com Godinho e Ramires (2011), a infância nem sempre foi
compreendida com as características atualmente reconhecidas. Ao longo dos sé-
culos, os castigos, as humilhações e até mesmo o assassinato de crianças foram
“tolerados”. Os pais, muitas vezes, pareciam ter o poder de vida ou morte sobre
os seus filhos, tal a violência com que era praticada a disciplina na infância. As
autoras mencionam que apenas nos dois últimos séculos a relação entre pais e
filhos passou a ser permeada por uma maior afetividade.
Há alguns anos, nosso país ficou estarrecido com o caso veiculado nos
meios de comunicação sobre a morte da menina Isabella Nardoni de cinco anos

70
de idade, ocorrido em março de 2008, no estado de São Paulo. A suspeita era de
que o pai havia jogado a filha do sexto andar do prédio onde ele residia com a
madrasta e os irmãos de Isabella. A madrasta de Isabela é acusada de ter matado
a menina por esganadura antes de o pai atirá-la pela janela. E mais: suspeita-se
que a menina ainda estivesse viva ao ser lançada do edifício. Esse é apenas um
entre tantos casos veiculados na mídia nos últimos anos. O caso ganhou notorie-
dade e tornou-se comum ouvir a opinião das pessoas sobre o mesmo, arriscando
palpites sobre quem seria o culpado: o pai, a madrasta ou ambos? Nas ruas, nas
escolas e em conversas entre amigos e vizinhos, em muitos cantos de nosso país,
parece que as pessoas opinaram também sobre o castigo para o crime. Para al-
guns, a pena de morte. Para outros, cadeia para os assassinos. O fato faz refletir
sobre o tema da violência na infância. Faz pensar porque o caso Isabella ganhou
tamanha repercussão na mídia. Muitos outros casos de violência ou possível vio-
lência contra crianças aparecem na mídia diariamente, em diversos lugares do
mundo, como o desaparecimento da menina inglesa Madeleine McCain, ocorri-
do em Portugal em maio de 2007. Apesar da hipótese de tratar-se de um crime,
nada ficou comprovado, o episódio McCain ganhou visibilidade internacional e
ficou a dúvida: trata-se realmente de mais um crime contra a infância? E quan-
to às crianças anônimas que diariamente são vítimas silenciosas e indefesas da
violência? Parece que, ao menos na nossa realidade, é assim se apresenta a tra-
gédia no que diz respeito à violência doméstica infantil. Provavelmente existem
milhares de crianças que cotidianamente são vítimas da agressividade de adultos
desestruturados emocionalmente e que, possivelmente, num dado momento de
suas infâncias, podem ter sido também vítimas de outras violências, repetindo
assim um ciclo transgeracional duradouro, que pode persistir por muitas e mui-
tas gerações familiares (Weber, Viezzer, Brandenburg, & Zocche, 2002).
Existe concordância entre diversos autores no que diz respeito à concei-
tuação de maus tratos. A violência contra a criança pode ser compreendida como
qualquer ação ou omissão que provoque danos, lesões ou transtornos a seu de-
senvolvimento. Pressupõe uma relação de poder desigual e assimétrica entre o
adulto e a criança (UNICEF, 2006). Pode implicar em negligência, abandono,
abuso físico, emocional ou social (Weber et al., 2002). Maus tratos ou abusos
ocorrem quando um sujeito em condições de superioridade (idade, força, po-
der) comete ato capaz de causar danos físicos, psicológicos ou sexuais, contra-
riamente à vontade da vítima ou por sedução enganosa (Sociedade Brasileira de
Pediatria, Fundação Osvaldo Cruz, Ministério da Justiça, 2001). Para Azevedo

71
e Guerra (1997), a infância vítima de violência é tão variada, quanto os meios
de violentar crianças. Encontram-se infâncias pobres, exploradas, torturadas,
fracassadas, vitimizadas em âmbitos que podem ser sociais, institucionais, no
trabalho, na escola e na vida doméstica.
A seguir são descritas as formas de maus-tratos mais comumente citadas
na literatura sobre o assunto:
a) Violência física: ocorre quando alguém causa ou tenta causar dano por
meio de força física, de algum tipo de arma ou instrumento que possa causar le-
sões internas, externas ou ambas (Day, Telles, Zoratto, Azambuja, Machado, Sil-
veira, Debiaggi, Cardoso, & Blank, 2003). Outros autores usam expressões como
abuso físico (Pires & Miyazaki, 2005; Albornoz, 2006), acrescentando que esse
tipo de ocorrência, na maioria das vezes, deixa marcas como hematomas, esco-
riações, queimaduras, intoxicações, sufocação e espancamento. Albornoz (2006)
exemplifica o tipo de força física citando o “bater, castigar, sacudir, submeter
à situação física violenta e desnecessária” (p. 24), cujas marcas são justificadas
como medidas educativas (Pires, 1999).
b) Violência psicológica: inclui toda a ação ou omissão que causa ou visa
a causar dano a auto estima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa (Day
et al., 2003). É toda forma de rejeição, discriminação, depreciação ou desrespeito
em relação à criança (Gomes et al., 2002; Pires & Miyazaki, 2005). Pode envolver
comportamentos como punir, humilhar, aterrorizar com graves agressões ver-
bais ou cobranças exageradas. Também pode envolver isolamento, privando de
brincar, de ter amigos ou indução à prostituição (Pires & Miyazaki, 2005). As
repetitivas e inapropriadas respostas emocionais e comportamentais às expe-
riências infantis caracterizam-se como abuso emocional (Albornoz, 2006). Maus
tratos psicológicos podem ser um padrão repetitivo de danos interacionais entre
pais e filhos que se tornam típicos em um relacionamento (Kairys et al., 2002).
c) Negligência: Parece ser a forma mais amplamente descrita. Para Day et
al. (2003), é a omissão de responsabilidade de um ou mais membros da família
em relação a outro, sobretudo àqueles que precisam de ajuda porque são pessoas
dependentes. No entanto, Pires e Miyazaki (2005) associam negligência a outros
fatores, como é descrito a seguir:
Negligência e abandono: Envolve a omissão de cuidados básicos e de pro-
teção à criança. Exemplo: deixar de oferecer alimentação, medicamentos, cui-
dados de higiene, proteção a alterações climáticas, vestimentas e educação. O

72
abandono é uma forma grave de negligência que evidencia a ausência de víncu-
lo adequado dos responsáveis com seus filhos. A negligência física pode incluir
abandono ou expulsão de casa por rejeição ou deixar a criança sozinha e sem
cuidados por longos períodos.
Negligência emocional: inclui exposição crônica à violência doméstica,
permissão para o uso de álcool e drogas, permissão e encorajamento de atos
delinquentes e recusa a não procurar tratamento psicológico quando recomen-
dado.
Negligência educacional: permissão para faltar aulas ou não realização de
matrícula em idade escolar.
Para Albornoz (2006), a negligência ocorre quando os pais ou respon-
sáveis falham em prover as necessidades básicas de uma criança. Há desatenção
quanto a aspectos importantes do cuidado, da proteção ou descaso para com
suas necessidades evolutivas. A compensação através da oferta de presentes, da
inclusão em atividades de lazer, atitudes superprotetoras e permissivas, podem
encobrir sentimentos de descaso e de falta de comprometimento dos pais para
com o filho. Nessas situações, as relações de cuidado são inexistentes ou inade-
quadas e a falta de atenção muitas vezes fica justificada pela falta de tempo dos
pais (Pires, 1999).
d) Violência sexual: é toda ação na qual uma pessoa, em situação de po-
der, obriga outra à realização de práticas sexuais, utilizando força física, influên-
cia psicológica ou uso de drogas ou armas (Day et al., 2003). Para Pires e Miya-
zaki (2005), este tipo de violência ocorre quando a vítima tem desenvolvimento
psicossexual inferior ao do agressor. O abuso pode ser intrafamiliar, extrafami-
liar ou institucional e, na maioria dos casos, o abusador é conhecido e tem acesso
fácil à criança.
e) Síndrome de Münchausen por procuração: ocorre quando os respon-
sáveis, geralmente a mãe, provocam ou simulam na criança, sinais e sintomas
de doenças, com falsificação de exames laboratoriais, administração de medi-
camentos ou substâncias que causam sono ou convulsões, simulando quadros
que envolvem sofrimento físico e psicológico (Sociedade Brasileira de Pediatria,
Fundação Osvaldo Cruz, Ministério da Justiça, 2001; Pires & Miyazaki, 2005).
Nesses casos, a criança pode ser levada para receber cuidados médicos devi-
do aos sintomas inventados ou provocados por seus cuidadores (Gomes et al.,
2002). Esses últimos autores exemplificam citando situações onde a criança é

73
submetida a vários exames médicos por longos períodos de tempo, ou ainda, os
pais contam histórias mirabolantes não compatíveis com o estado da criança.
f) Síndrome do bebê sacudido: como diz o nome, denomina uma forma
de violência que não deixa marcas. O agressor geralmente é o pai, que se irrita
com o choro da criança pequena, podendo causar graves danos cerebrais e até a
morte (Sociedade Brasileira de Pediatria, Fundação Osvaldo Cruz, Ministério da
Justiça, 2001; Pires & Miyazaki, 2005).
Acidentes e agressões são as primeiras causas de morte de crianças de
um a seis anos de idade no Brasil (UNICEF, 2006), porém alguns autores (Pires
& Miyazaki, 2005; Weber et al., 2002) com base nos dados levantados por Aze-
vedo (1996) referem que, na verdade, nosso país ainda carece de dados estatís-
ticos fidedignos. Segundo levantamento do Laboratório de Estudos da Criança
(LACRI), do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP), a
modalidade de violência contra crianças e adolescentes até 19 anos que apresenta
maior incidência é a negligência (LACRI/IPUSP, 2007). Diante dessa grave reali-
dade, é importante discutir as repercussões que os maus tratos podem ocasionar
no desenvolvimento psicológico e nos vínculos afetivos das crianças, e que tipo
de rupturas podem ser determinadas a partir dessas vivências. A criança inserida
em um contexto de maus tratos, principalmente no meio intrafamiliar, mostra-
se vulnerável às situações de risco que o seu meio proporciona. É importante
compreender que a infância é uma fase que alicerça o desenvolvimento e a for-
mação de sua personalidade (Frota et al., 2011).
Há mais de um século, a violência contra a criança tem sido reconheci-
da como uma questão social (Weber et al., 2002) que envolve complexos me-
canismos sociolegais que pretendem regulá-la (Sibila, 2001). Portanto, parece
importante considerar que a violência contra a criança se apresenta, desde os
tempos primitivos até hoje como um fenômeno cultural de grande relevância
(Minayo, 2001). A família contemporânea que ainda se expressa pela violência
ou pelo abandono traz consigo uma manifestação que é histórica e prevalente
em todas as épocas, desde a mais remota Antiguidade. Tal manifestação pode
ocorrer ainda sob a forma de infanticídio/filicídio, num grau que vai desde as
formas mais sutis até as mais extremadas, como a concretização do assassinato
(Maltz, Zavaschi, Lewcowicz, Bugin, Lahude, Suarez, Soibelmann, Sordi, & For-
tes, 2008). Os autores concordam, de forma geral, que a violência doméstica é um
fenômeno universal e extremamente complexo (Araújo, 2002; Day et al., 2003;

74
Guerra, 2001).
Nas diversas conceituações trazidas pela literatura, pode-se perceber o
uso de diferentes terminologias que parecem falar, em seu núcleo, de uma mes-
ma questão. Assim, encontramos definições sobre violência doméstica ou vio-
lência intrafamiliar usadas, muitas vezes, como sinônimos. Segundo Guerra
(2001), a violência doméstica é um tipo de violência de natureza interpessoal, na
qual se verifica uma transgressão do poder disciplinador e coercitivo do adulto.
Consiste numa negação da liberdade exigindo da criança que seja cúmplice do
adulto, num pacto silencioso. Nesse caso, ocorre um aprisionamento do desejo e
da vontade da criança que fica submetida aos interesses e expectativas do adulto.
Do ponto de vista de Caravantes (2000), a violência intrafamiliar pode ser enten-
dida como qualquer ação ou omissão que resulte em dano físico, emocional, so-
cial ou patrimonial de um ser humano, onde exista vínculo familiar entre vítima
e agressor. A violência pode ficar encoberta por longo período de tempo sem ser
denunciada (UNICEF, 2006).
Ao abordarmos a questão da violência doméstica nos deparamos inicial-
mente com a dificuldade de sua definição. Os limites desse conceito vão desde
uma punição leve até o espancamento, esbarrando assim em parâmetros éticos e
pedagógicos. Alguns autores afirmam que o entendimento mais aprofundado do
fenômeno da violência doméstica passa principalmente pelo entendimento da
dinâmica familiar (Neves & Romanelli, 2006). No entanto, outros autores consi-
deram que bater nos filhos insere-se num continnum de violência que vai desde a
simples palmada até o espancamento (Azevedo & Guerra, 2001; Webber, 2001).
Existem quatro formas mais comuns de violência intrafamiliar ou doméstica: a
violência física, a violência psicológica, a negligência e a violência sexual (Day et
al., 2003; Guerra, 2001; Lisboa & Koller, 2000).
“O tipo mais frequente de maus-tratos contra a criança ou adolescente
é a violência doméstica, que ocorre, na maioria das vezes, dentro dos lares ou
no convívio familiar” (Pires & Miyazaki, 2005, p.44). Muitas vezes, esses episó-
dios ficam camuflados como acidentes em geral que ocorrem principalmente no
espaço do lar, embora se reconheça que nem todo tipo de acidente caracterize
violência doméstica. Alguns deles podem estar associados à falta de cuidado em
relação à criança (Gomes, Silva, & Njaine, 1999). A violência doméstica costu-
ma prolongar-se por muito tempo, uma vez que a família é considerada agente
protetor da criança e tende a silenciar ou encobrir o ato por cumplicidade dos

75
adultos ou pelo medo que as vítimas sentem de denunciar o seu agressor (Pires &
Miyazaki, 2005). Silva, Coelho e Caponi (2007) postulam que existe certa concor-
dância na literatura quanto à presença da violência psicológica em praticamente
todos os outros tipos de violência sofrida pelo sujeito no contexto familiar. De
forma geral, parece que persiste ainda a ideia de que a punição corporal é uma
prática educativa aceitável e, muitas vezes, considerada adequada (Cecconello et
al., 2003; Guerra, 2001; Weber et al., 2002).
Silva, Coelho e Caponi (2007) mencionam o termo “violências domésti-
cas”, para descreverem os acontecimentos no âmbito familiar ou doméstico, entre
quaisquer membros da família, justificando que essas ações podem ser referidas
no plural por tratar-se de diversas formas de violências ocorridas nesse espaço.
Trata-se de um fenômeno universal e endêmico, parecendo que nenhuma etnia,
classe social ou religião está imune. Não é característico apenas das classes mais
pobres e ainda pode envolver, de forma cíclica, várias gerações na sua reprodu-
ção (Guerra, 2001; Tardivo, Junior, & Santos, 2005). Neves e Romanelli (2006)
concordam que a violência doméstica pode estar presente em todas as camadas
sociais em diferentes momentos históricos, mas acreditam que, nas camadas po-
pulares, ela se torna pública devido à denúncia e intervenção de órgãos públi-
cos, enquanto que as camadas mais altas da sociedade mantêm o anonimato e a
discrição através de atendimentos particulares, quando o fazem. Black, Trocmé,
Fallon e Maclaurin (2008) salientam que as políticas públicas voltadas para o
bem-estar da criança, de forma geral, indicam que crianças submetidas à violên-
cia doméstica estão em situação de risco e de falta de proteção, sujeitas a danos
físicos permanentes. Para esses autores, como a violência doméstica ocorre em
um espaço privado, é provável que as famílias não denunciem e nem recorram à
busca de auxílio especializado, o que leva a pensar que o fenômeno da violência
doméstica tenha uma prevalência pelo menos quatro vezes maior do que real-
mente é informado.
No Brasil, o conhecimento sobre a violência doméstica ainda é escasso,
mas existem muitas evidências que apontam para um cenário que necessitaria de
intervenção imediata (Reichenheim, Hasselmann, & Moraes, 1999). Nosso país
apresenta graves deficiências em matéria de dados epidemiográficos (Oliveira &
Flores, 1999) e as políticas públicas parecem ainda pouco sensibilizadas sobre a
questão dos maus-tratos à infância (Weber et al., 2002). Essas mesmas políticas
parecem não estar dando conta da prevenção da violência (Sacramento & Rezen-
de, 2006). É provável que os casos não notificados superem em muito os casos

76
notificados (Romaro & Capitão, 2007) porque o fenômeno seria muito mais fre-
quente do que se possa imaginar (Viezzer, Brandenburg, & Zocche, 2002). Para
a maioria dos casos de violência cometida contra a criança ainda paira certo
silêncio. Estima-se que apenas 20% dos casos de maus-tratos são denunciados
(Weber, Viezzer, & Branderburg, 2004; Weber et al., 2002). Na literatura encon-
tram-se inúmeros estudos sobre o tema da violência doméstica na infância, al-
guns deles revelando dados sobre o perfil das vítimas, das famílias e a prevalência
da violência contra a infância.
O desafio é que a violência doméstica nem sempre é claramente iden-
tificável e a vítima, inerte, assujeitada, sofre, tem dificuldade de encontrar al-
ternativas de ajuda, seja pela ameaça sofrida, seja pela ausência de elementos
norteadores de auxílio, como a escola, a creche e os vizinhos, esclarecem Neves
e Romanelli (2006). O autor da infração é o sujeito que transgride não somente
as normas sociais, mas invade a intimidade e a organização afetiva e corpórea do
outro. Para as mesmas autoras, o agressor utiliza-se de persuasão e de controle
para manter o outro na condição de dominado e subjugado.
O estudo sobre a violência doméstica é, na sua forma mais profunda, um
estudo sobre a família (Rosa, Tassara, & Oliveira, 2006), uma vez que grande
parte dos agressores são pais ou parentes (Gomes et al., 2002). Na cena da violên-
cia doméstica existem três formas de desempenhar o papel no enredo familiar:
como vítima, ator e/ou testemunha (Koller, 2000). A criança é facilmente a víti-
ma nesse cenário da violência doméstica, que pressupõe uma relação de poder
desigual e assimétrica com o adulto. O cenário é a casa e os personagens deste
triste enredo são os membros de sua própria família, uma vez que a violência
é exercida na intimidade do lar que, ao estabelecer normas, valores, costumes
determina também como os indivíduos se relacionarão de acordo com a distri-
buição do poder (UNICEF, 2006). De acordo com Neves e Romanelli (2006), a
análise do sujeito e a análise da família consistem em inserirmos a discussão do
homem como um sujeito em que a história e a violência imprimiram suas marcas
em espaços privados como a família. Características predominantes nesse meio
familiar dizem respeito a disfunções como manifestações de agressividade, má
integração social e familiar, rechaço aos filhos e irresponsabilidade no cuidado e
atenção aos mesmos (Noroño Morales, Segundo, Cadalso Sorroche, & Fernán-
dez Benítez, 2002). Entre as diversas hipóteses acerca das razões da violência
no meio familiar, o uso de álcool e de outras substâncias psicoativas é apontado
como uma delas (Gomes et al., 2002; Noronho Morales et al., 2002; Zilberman &

77
Blume, 2005). Outras justificativas utilizadas para explicar a violência doméstica
dizem respeito a argumentos baseados na negação da crueldade como: “a criança
pediu uma surra” ou “as mulheres gostam de ser machucadas”, como se a violên-
cia pudesse ser exercida para o “bem”, ocorrendo assim uma verdadeira distorção
da realidade (Lamano-Adamo, 1999).
Para Gomes et al. (2002), a busca pela explicação de por que as crianças
são maltratadas encontra parcialmente a resposta na questão da repetição trans-
geracional e na sua influência sobre a educação dos filhos, pois parece que a si-
tuação presente revive o passado em termos de violência familiar. Embora exista
um questionamento sobre o que distingue os pais que sofreram violência e não
as repetem com os seus filhos, parece que esses passaram por outras vivências
capazes de favorecer a resiliência e adotarem um comportamento que supere
os traumas sofridos, existindo algum potencial que permita a reorganização da
experiência de violência. Porém, parece que a capacidade de ser resiliente não é
o padrão esperado para a difícil vivência, ficando assim os sujeitos, em grande
parte, expostos às consequências da violência doméstica.
A violência doméstica contra a criança pode representar um fator de ris-
co ao processo do desenvolvimento, trazendo sérias consequências para a vítima,
implicando em dificuldades ou problemas de ajuste ao seu meio, perturbação da
noção de identidade e outros distúrbios de personalidade (Mc Donald, Jouri-
les, Briggs-Gowan, Rosenfield, & Carter, 2007; Tardivo, Junior, & Santos, 2005).
Existe uma crescente consciência de que os maus-tratos contra crianças trazem
frequentemente consequências negativas significativas àqueles que são vítimas,
sendo um importante preditor de problemas comportamentais, especialmente
os maus tratos físicos e sexuais (Malik, Ward, & Janczewski, 2008; Pesce, 2009).
Quanto mais precocemente a criança é submetida à violência, mais suscetível fi-
cará aos efeitos da mesma (Sternberg, Lamb, Guterman, & Abbott, 2006). Crian-
ças que experimentaram a violência na relação com seus cuidadores, em geral,
têm uma história pessoal de problemas de apego, com ausência ou fragilidade
nos vínculos (Lisboa & Koller, 2000).
Das variadas formas de violência, os maus tratos físicos constituem uma
das principais formas de morbidade entre crianças e adolescentes apontadas pela
literatura (Junqueira & Deslandes, 2003). Independente da forma de apresen-
tação da violência, seja física ou psicológica, um expressivo número de autores
aponta que as principais consequências de sua ocorrência durante a infância

78
ocorrem no desenvolvimento nas esferas social, comportamental, emocional,
cognitiva e geral (Reichenheim, Hasselmann, & Moraes, 1999; Weber et al., 2002;
Wolfe, Crooks, Lee, Mc-Intyre-Smith, & Jaffe, 2003).
Alguns indicativos de sintomas em crianças que testemunharam violên-
cia doméstica são apontados na literatura: um alto nível de tensão pós-traumá-
tica associada à depressão (Reynolds, Wallace, Hill, Weist, & Nabors, 2001). A
experiência pode levar a danos como auto estima baixa, dificuldade de manter
vínculos afetivos, isolamento, agressividade, falta de confiança, dor emocional e
ressentimento. Além disso, pode perpetuar o círculo vicioso existindo a possi-
bilidade de o agredido tornar-se o agressor. A agressão pode ser em relação ao
outro ou a si próprio, pois as vítimas da violência possuem um maior risco de
cometer suicídio (Weber et al., 2002).
O impacto decorrente da experiência de submissão à violência no con-
texto familiar pode ser imprevisto, pois depende de uma série de variáveis, como
a idade da criança, a natureza e severidade da violência e a existência de outros
fatores de risco na vida da criança, como por exemplo, pobreza, abuso físico e
abuso de substância por parte das figuras parentais. Em geral, a exposição da
criança à violência doméstica pode ser associada com aumento de comporta-
mento agressivo, problemas emocionais como ansiedade e depressão, baixos ní-
veis de competência social e baixo nível de escolaridade, conforme Fantuzzo e
Mohr (1999). A intensidade do problema depende ainda da conjunção de outros
fatores como o desenvolvimento psicológico e a capacidade intelectual da crian-
ça, o vínculo afetivo da criança com o seu agressor e a natureza e duração do
abuso (Reichenheim, Hasselmann, & Moraes, 2006). Há indícios de que 60% de
mulheres e 20% de homens que apresentam desordens que envolvem dor crôni-
ca tiveram história de abuso durante a infância, o que mostra que essa vivência
aumenta a suscetibilidade da pessoa para a dor (Rubin, 2005). Experiências ad-
versas na infância surgem como fortes indicadores de problemas emocionais e
físicos na vida adulta (Broad & Wheeler, 2006).
A descrição desse cenário que envolve profundas consequências
para o desenvolvimento do indivíduo leva a refletir sobre qual é o papel do
profissional da área da saúde no contexto da violência doméstica. Como ocorre
o enfrentamento dessa realidade? Como vimos anteriormente, a subnotificação
dos casos de crianças vitimizadas pela violência doméstica é uma realidade. Isso
pode ocorrer como consequência do despreparo dos profissionais (Azambuja,

79
2005) ou como refere Gomes (2002), os profissionais preferem não notificar por
acreditarem que o procedimento pode produzir efeito negativo para a vítima.
Outros profissionais, informa o último autor, ainda não conseguem “ver” os di-
ferentes tipos de maus-tratos por sentimentos associados à omissão ou medo,
sentindo-se emocionalmente inseguros para realizar a denúncia.
No entanto, de acordo com Saliba, Garbin, Garbin e Dossi (2007), quan-
do a violência doméstica é informada pelos profissionais que trabalham nessa
área, existe uma maior possibilidade de avaliação epidemiológica do problema, o
que contribui para o desenvolvimento de programas que visem mudar o cenário
e proteger prioritariamente a criança. Além disso, é dever legal informar os casos
de violência doméstica que chegam ao conhecimento do profissional. De forma
geral, parece que os profissionais da área da saúde associam violência à conjun-
tura econômica, social, política e cultural (Gonçalves & Ferreira, 2002). Em suas
concepções, muitos desses profissionais acreditam que os atos violentos são parte
do ciclo intergeracional e da dinâmica familiar (Nunes, Sarti, Ohara, & Silva,
2008). Desvelar a violência doméstica representa romper um complô de silêncio
e deparar-se com a vítima, o agressor e a família em um mesmo e único núcleo
com uma dinâmica perigosa e destrutiva (Tardivo, Junior, & Santos, 2005). Ain-
da assim, cabe ao profissional da área da Psicologia levantar as evidências sobre
a possibilidade da violência sofrida e de sua natureza, avaliando a gravidade do
acontecimento, seu impacto sobre a vítima e os demais membros da família, bus-
cando identificar o risco e o funcionamento psíquico do indivíduo que foi vítima
da violência doméstica (Tardivo, Junior, & Santos, 2005).
Portanto, é muito importante que os profissionais em geral que atuam
na área estejam preparados para identificar e atuar adequadamente sobre os
casos de violência contra a criança. A ação efetiva desses profissionais pode
contribuir para a redução do problema, de modo a interromper o circuito vicioso
de violência dentro da família (Lamano-Adamo, 1999). Para essa autora, numa
perspectiva psicanalítica, é preciso considerar uma certa complexidade na tarefa
de trabalhar com esse perfil de família que maltrata. Esse tipo de trabalho exige
do profissional muito estudo, supervisão e conhecimento, correndo ainda o risco
de ser alvo das identificações projetivas das famílias, sendo capaz de acolhê-las,
decifrá-las, nomeá-las, propiciando que as experiências emocionais provenientes
das fantasias inconscientes possam ser pensadas e evoluídas e não atuadas ou
encenadas com a violência. A vivência da violência acarreta danos a curto e a
longo prazo e a intervenção psicoterápica pode se mostrar eficaz para aumentar

80
a autoestima e diminuir os índices de depressão (D’Affonseca & Willians, 2003).
A partir do que foi discutido, é possível constatar que a violência na fa-
mília ainda perdura em certa medida, fazendo refletir principalmente sobre as
estratégias disciplinares utilizadas na educação de crianças e que perpassam os
séculos. Pensando na forma como a sociedade familiar se estrutura, parece ne-
cessário repensar os discursos familiares, bem como os papéis de cada um e sua
participação enquanto promotores da saúde ou da doença emocional e de trans-
missores de um legado que também perpassa gerações. Existem inúmeras dis-
cussões sobre o tema, mas até agora não foram suficientes para explicar o que e o
porquê do que se passa de fato na intimidade do “lar doce lar”.
Considerando a complexidade dos fatores que determinam a violência
doméstica contra a criança, conclui-se que a sua ocorrência não pode ser expli-
cada através de percepções que consideram pontos de vistas parciais. Isso signifi-
ca que logicamente um único modelo teórico não pode ter a pretensão de esgotar
o assunto ou explicá-lo plenamente.
As pesquisas já realizadas sobre o tema certamente contribuem para uma
melhor compreensão do fenômeno. No entanto, existe certo consenso entre os
autores sobre a necessidade de mais atenção, maior produção literária e pesqui-
sas sobre a violência doméstica na infância, bem como a contínua divulgação de
seus resultados.

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85
Capítulo 6

USO DE DROGAS NA CONTEMPORANEIDADE:


PERSPECTIVAS DE COMPREENSÃO E PRÁTICAS
DE INTERVENÇÃO

Luciane Marques Raupp Currículo Lattes

Este trabalho visa refletir sobre a questão do uso de substâncias psicoa-


tivas na atualidade sob uma perspectiva histórico social, destacando a forma de
compreensão das Ciências Humanas e Sociais acerca da relação dos seres huma-
nos com as drogas, assim como as transformações nas práticas de uso e prejuízos
a elas associados. Em um segundo momento, busca-se articular essa perspectiva
com as modalidades de compreensão e intervenção sobre os problemas decor-
rentes do abuso de drogas, destacando as concepções que orientam as políticas
públicas que regulam o setor.

Substâncias psicoativas: história e atualidade


As substâncias que entram em nosso corpo, por qualquer via de absorção,
podem ser assimiladas e convertidas em matéria para novas células, embora pos-
sam também resistir a essa assimilação imediata. Aquelas que são imediatamente
assimiladas merecem o nome de alimentos, pois graças a elas a vida orgânica se
conserva. Entre as que não são assimiladas imediatamente, há dois tipos básicos:
o primeiro é composto por aquelas que são expulsas intactas de nosso organis-
mo; e o segundo por substâncias que provocam alguma reação intensa. Nesse
segundo grupo encontra-se o que se chama, em geral, de drogas1, pois afetam o
organismo de forma notável, mesmo que tenham sido absorvidas quantidades
mínimas (Escohotado, 1996).
Chame-se essas substâncias de medicamentos ou drogas, são compostas
1
Utilizarei os termos ‘drogas’, ‘substâncias psicoativas’ e ‘psicoativos’ para designar tanto as substâncias
legais como ilegais que afetam o sistema nervoso central, alterando uma ou mais de suas funções.

87
por princípios ativos, a maioria derivados de plantas com características tóxicas
que, em quantidades relativamente pequenas, podem causar danos ao organismo
ou até mesmo sua morte.
O consumo de drogas acompanha a história da humanidade. Desde
a pré-história são utilizadas para fins terapêuticos, recreativos ou rituais. Nas
mais antigas culturas do planeta, a dos caçadores e coletores, os sujeitos absor-
viam e reafirmavam sua identidade cultural através de rituais nos quais o uso
de substâncias psicoativas ocupava lugar central (Schultess & Hofmann, 2000).
Isso levou diversos autores a concluir que o ser humano jamais viveu apenas
a dimensão real do cotidiano, pois todas as culturas desenvolveram formas de
transcendência regulamentadas socialmente nas quais o uso de drogas tinha um
lugar definido, não representando risco para os indivíduos e sendo até mesmo
divinizadas (Neri Filho, 1995; Carneiro, 2002; Escohotado, 1996, 1998; Schultes
& Hofmann, 2000).
Nesse sentido, consideram que a influência que exerce a aceitação ou o
rechaço sobre a forma de consumir determinada substância pode ser tão decisi-
va como suas propriedades farmacológicas, pois essas são substâncias às quais,
cultural e historicamente, foram acrescidas determinadas características e quali-
dades (Escohotado, 1998; Neri Filho, 1995; Carneiro, 2002). Ou seja, a alteração
de consciência provocada pelo uso de substâncias psicoativas ocupou diferentes
funções na história da humanidade, de acordo a cultura e o efeito desejado.
Escohotado (1996) fornece exemplos sobre como os valores de cada so-
ciedade influenciam as ideias sobre as drogas e sua utilização. Por exemplo, no
Peru pré-colombiano as folhas de coca eram um símbolo da nobreza Inca, reser-
vadas exclusivamente à corte. Já na Roma pré-imperial, o uso livre de vinho es-
tava reservado aos homens maiores de 30 anos, sendo permitido executar qual-
quer homem ou mulher jovem que fosse visto perto de uma bodega. Na Rússia,
beber café foi, durante meio século, um crime castigado com tortura e mutilação
das orelhas. Fumar tabaco foi condenado entre os católicos sob a pena de exco-
munhão (Escohotado, 1996).
No Ocidente, foi a partir do final do século XIX que o consumo regular
de álcool e outras drogas iniciou um aumento progressivo. No início do século
XX a circulação e o consumo dessas substâncias passaram a ser regulamenta-
dos, com algumas sendo permitidas e outras proibidas por serem consideradas
ameaças à ordem social e estarem relacionadas a problemas de saúde pública e

88
violência urbana.
Segundo autores como Epele (2010) e Bourgois (1995), a persistência no
uso de drogas, apesar dos riscos individuais e sociais aos quais estão expostos
os usuários, articula-se com questões econômicas e políticas macroestruturais.
Segundo os autores, através de processos sucessivos de expropriação de formas
tradicionais de bem-estar - que anteriormente eram responsabilidade do Estado,
de tradições comunitárias e das redes sociais -, o prazer na sociedade atual foi re-
sumido a um mercado repleto de promessas de satisfação imediata e fugaz meio
do consumo de produtos.
Nardi (2003), referindo-se às características da contemporaneidade,
aponta o deslocamento da ética do trabalho, hegemônica na modernidade, para
a ética do consumo, caracterizada pela necessidade de satisfação imediata. Para o
autor essa nova forma de reflexão ética, que teria como princípio a auto referen-
cialidade, conduziria a uma transformação dos cuidados de si, os quais teriam
como modelo a satisfação imediata, transformando a temporalidade em um pre-
sente contínuo e apresentando novas formas de individualismo. Ainda segundo
Epele (2010), a rapidez desses câmbios acarretou amplas consequências nos mo-
dos de expressão da vulnerabilidade, da fragilidade, do prazer e do sofrimento
nos corpos sociais e subjetivos.
Birman (1993), demarca o início dos anos 1960 como o marco de um
processo significativo de mudança nos hábitos de consumo de psicoativos, na
medida em que, impulsionadas pelo movimento da contracultura, tais substâncias
passaram a ocupar uma posição estratégica, simbolizando uma forma privilegiada
de acesso a um outro mundo e a negação dos valores dominantes. Nesse contexto,
os jovens consumidores, principalmente de alucinógenos, inscreviam as
experiências que lhes eram reveladas pelas drogas em inovadores códigos éticos e
estéticos. Para eles, o consumo regular dessas substâncias estava integrado a uma
visão de mundo que contestava os valores tradicionais e almejava a construção
de novos horizontes culturais. É também nesse momento histórico que ocorre
uma mudança decisiva nesse campo, com a formação de cartéis ligados ao tráfico
mundial de drogas, com ramificações internacionais diversificadas. A partir de
então, assiste-se a um crescente processo de criminalização e a um aumento da
violência relacionada à venda e uso de drogas (Birman, 1993).
Ao fornecer chaves para a leitura das relações entre as microdinâmicas
das relações contemporâneas e os traços característicos das macrorrelações so-

89
ciais na contemporaneidade, Bauman (2000, p. 70) destaca que o que denominou
de modernidade líquida2 seria efeito de um processo dinâmico de “derretimen-
to de todos os sólidos” - referindo-se ao peso da moral ocidental tradicional,
atrelada à tradição - o qual, aumentando a margem de liberdade dos sujeitos,
deixou-os, por outro lado, em uma situação de agudo desamparo. Conforme o
autor, na atualidade: “Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida,
crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costu-
mes, hábitos e verdades auto evidentes” (Bauman, 2000). Destaca que, enquanto
no passado esse desmanche de verdades também ocorria, mas para ser seguido
pela institucionalização de novos paradigmas, agora diversas práticas e tradições
sociais - empregos, relacionamentos, saberes e fazeres - tendem a permanecer
em fluxo constante: voláteis, desregulados, flexíveis de forma que, virtualmente,
todos os aspectos da vida humana são afetados quando se vive o momento sem
que a perspectiva de longo prazo tenha mais sentido (Bauman, 2000).
Nesse contexto, movidos pelo principal imperativo da sociedade capita-
lista: Consuma e seja feliz!, o mundo se transforma em: “(...) uma mesa de buffet
com tantos pratos deliciosos que nem o mais delicado comensal poderia esperar
provar de todos” (Bauman, 2000, p. 75). Ou seja, os cidadãos viraram consu-
midores vorazes cuja necessidade de estabelecer prioridades configura-se quase
impossível, frente ao desejo permanente de explorar todas as possibilidades à
disposição. Movidos incessantemente pelo apetite voraz do consumo, o preço a
pagar é a incerteza perpétua e um desejo que dificilmente se saciará (Bauman,
2000). Segundo Bauman (2000), a compulsão ao consumo levaria cada vez mais
à individualidade e ao isolamento afetivo como formas de proteção, ao mesmo
tempo em que diminuiria a convivência comunitária e as formas tradicionais de
socialização.
De acordo com Conte (2001), as drogas são mais um produto incentiva-
do, mesmo que indiretamente, pelo mercado de consumo ao fornecerem a pro-
messa de satisfação e alívio para enfrentar a realidade objetiva das necessidades
orgânicas e dos conflitos subjetivos. Dessa forma, inserem-se perfeitamente no
movimento social da nossa cultura, o qual fornece bens de consumo de todo o
tipo, capazes de, supostamente, preencher os vazios e evitar o sofrimento.
Desde meados dos anos 1970, autores como Illich (1975 apud

2
Termo cunhado pelo autor para referir-se ao estágio atual da cultura ocidental, visando evitar as
polêmicas ligas ao termo pós-modernidade.

90
Bucher, 1995, p. 40), o qual utilizou a expressão “sociedade drogada”, denuncia-
vam a
medicalização da vida, destacando nossa sociedade como en-
fraquecida e vulnerável em consequência da sobrevalorização
da produção e do consumo, do desempenho e da competição,
deixando de lado outros aspectos e dimensões fundamentais da
vida afetiva e comunitária (Bucher, 1995, p. 40).
Em suma, a sociedade contemporânea e seu apelo ao prazer pela via do
consumo, conjugado à aceleração do tempo e perda de referenciais, produziram
mudanças na relação milenar da humanidade com o consumo de drogas. Além
disso, a expansão internacional do mercado das drogas, aumentando a disponi-
bilidade e inserindo novos e mais potentes tipos de drogas – como demonstrado
pela expansão do uso de crack no Brasil e de substâncias sintéticas em países da
Europa e nos Estados Unidos, como a metanfetamina – se relacionam ao aumen-
to exponencial do número de dependentes, muitos dos quais apresentam graves
prejuízos sociais e à saúde.
Além dos fatores aludidos que relacionam características da contempo-
raneidade ao aumento do uso nocivo de drogas, pesquisadores têm destacado a
importância de se considerar a influência da dimensão socioeconômica na pro-
pagação do uso de drogas entre jovens de camadas populares (Epele, 2010; Rau-
pp & Adorno, 2011; Murphy & Rosenbaum, 1997; Zaluar, 1994). Por exemplo,
Zaluar (1994), relacionou as falhas do Estado em promover cidadania por meio
da distribuição adequada de recursos, benefícios e serviços, os quais se fazem
particularmente visíveis na precariedade da educação e na falta de oportunida-
des no mercado de trabalho para jovens sem qualificação, ao aumento do abuso
de drogas entre esse público. A autora ressalta que a pobreza não explica a entra-
da no mundo das drogas e do crime, mas que esta pode, em conjunção com as
falhas do Estado na criação de possibilidades de ascensão social, assim como a
cultura hedonista que faz parte da sociabilidade jovem contemporânea, facilitar
a adesão às culturas de uso de drogas e ao mundo da ilegalidade (Zaluar, 1994).
Conforme Murphy e Rosenbaum (1997), classe social é uma variável
tão importante quanto a potência farmacológica da substância utilizada para
o aumento das chances de desenvolvimento de problemas relacionados ao uso,
considerando-se que entre pessoas com vidas “convencionais” e maior acesso a
capitais econômicos, sociais e culturais é maior a chance do autocontrole ou mais
acessíveis os meios para uma maior regulação ou mesmo parada no uso abusivo

91
de drogas. Raupp e Adorno (2011), em um estudo com usuários de crack em
situação de rua em duas capitais brasileiras, destacaram que o predomínio do
padrão de uso compulsivo entre os sujeitos pesquisados ligava-se a um complexo
de relações que, além das propriedades aditivas da substância, unia questões es-
truturais e trajetórias de vida. Nesse contexto, o uso de crack era utilizado como
artifício capaz de transformar uma vida marcada pela falta, discriminação e au-
sência de perspectivas em uma busca constante por prazer, focada no presente
(Raupp & Adorno, 2011).

Concepções e práticas de atenção: da dependência à autonomia

As referências até aqui aludidas visaram destacar a questão do uso de


drogas como permeada por dimensões históricas e sociais que influenciam as
práticas de uso dessas substâncias tanto quanto as variáveis biológicas e psicoló-
gicas, geralmente destacadas de forma isolada na análise de fatores relacionados
ao encontro do ser humano com essas substâncias e aos prejuízos dele decorren-
tes.
A diversidade de influências e entendimentos sobre essa questão de-
monstra o caráter multifacetado e complexo da problemática. De acordo com o
enfoque que oriente a investigação, a questão das drogas pode ser abordada em
seus aspectos bioquímicos e farmacológicos, jurídicos, de segurança pública, de
saúde pública, de prevenção ou ainda de tratamento aos dependentes.
Em especial em relação ao campo de tratamento da drogadição, distintos
vieses e teorias predominaram em diferentes épocas, elegendo distintas modali-
dades de atenção como as mais influentes em cada momento histórico. Na verda-
de, até os dias atuais não há uniformidade nessa área, a qual é repleta de concep-
ções de recuperação e de práticas distintas, e muitas vezes incompatíveis, o que
leva à existência de programas e serviços ligados a diferentes modelos, os quais
tendem a funcionar sem integração, dificultando assim o trabalho em rede - uma
das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) que deveria orientar essas ações.
Se nos reportamos à história das práticas de atenção aos problemas aqui
enfocados, encontramos a concepção chamada de Moral como a primeira a
fornecer uma visão geral sobre o usuário de substâncias e suas motivações in-
trínsecas. Segundo Marlatt e Gordon (1993), o “modelo moral” de tratamento
constitui o viés mais tradicional no campo do tratamento ao abuso e depen-

92
dência de drogas. Nesse modelo, o uso excessivo de qualquer substância é visto
como um problema de controle do impulso, no qual falta ao indivíduo força de
vontade para exercer controle sobre si. Dessa forma, um dependente de drogas
lícitas ou ilícitas é compreendido como uma pessoa a quem falta “fibra moral”
para resistir à tentação. De acordo com essa visão, os indivíduos são considera-
dos responsáveis pelo “início, desenvolvimento e solução dos seus problemas,
necessitando apenas de motivação apropriada para isso” (Marlatt, 1999, p. 13).
Pillon e Luis (2004) enfatizam o efeito de culpabilização presente nessa aborda-
gem, pois o “modelo moral” levaria as pessoas a sentirem-se culpadas pelo seu
comportamento compulsivo e a pensarem que, de alguma forma, lhes falta força
de vontade ou “fibra moral” para alterar sua situação, desconsiderando questões
físicas, psicológicas, econômicas ou sócio culturais relacionadas à instalação ou
desenvolvimento do problema.
Atualmente, modelos de tratamento baseados predominantemente na
autoajuda, assim como modalidades de atenção presentes em algumas Comuni-
dades Terapêuticas, seguem premissas desse modelo. De acordo com um a inves-
tigação conduzida por Raupp e Sapiro (2008) em uma comunidade terapêutica
localizada na cidade de Porto Alegre/RS, apesar do potencial do local pesquisado
para acolher uma demanda que dificilmente encontra espaço em outros lugares,
não havia formas de reconhecimento e valorização das singularidades dos usuá-
rios, pois todos deviam adequar-se às verdades pré-estabelecidas pela instituição,
padronizando as possibilidades de desenvolvimento dos sujeitos e não fornecen-
do preparo ou alternativas de socialização fora da internação.
De forma bastante distinta da abordagem chamada moral, outra forma
de compreender a tratar os problemas relacionados à drogadição que ocupa um
espaço majoritário nas práticas atuais de atenção pode ser compreendida a partir
do que Marlatt e Gordon (1993) conceituaram como “Modelo de Doença” ou
“Modelo Médico”. De acordo com essa abordagem, o abuso ou dependência de
álcool e outras drogas fundamenta-se em uma dependência física subjacente,
salientando a importância dos fatores biológicos predisponentes, geneticamen-
te transmitidos. Assim, o foco de atenção centra-se na substância psicoativa e
seus efeitos farmacológicos, não levando em conta as questões psíquicas singu-
lares de cada sujeito ou mesmo suas circunstâncias sociais. De acordo com Cruz
(2000), nessa abordagem procura-se estender para o campo da drogadição pa-
radigmas que obtiveram êxito no tratamento em outras formas de adoecimen-
to: “No caso das toxicomanias, as tentativas de explicação se ligam à ação das

93
drogas no sistema nervoso central, provocando quadros como a intoxicação e a
abstinência” (Cruz, 2000, p. 235).
O predomínio do “paradigma médico” se faz presente na maioria das
unidades de internação de hospitais ou clínicas especializadas nos problemas
relacionados ao que, segundo esse paradigma, é denominado de dependência
química – denominação que alude ao predomínio da influência química, portan-
to orgânica, na compreensão das causas do problema. Nesses espaços especiali-
zados, a grande maioria das atividades terapêuticas têm por objetivo o alcance ou
manutenção da abstinência total de drogas – objetivo também seguido nos locais
influenciados pelo chamado modelo moral.
Historicamente, a adesão majoritária dos serviços ao “modelo de doença”
trouxe muitas vantagens em relação à abordagem “moral”, pois colaborou para
remover estigmas e encorajou muitas pessoas a buscar tratamento, tal qual o
fariam com qualquer outro transtorno biológico. Além disso, trouxe inegáveis
avanços científicos na compreensão dos efeitos cerebrais e físicos da dependência
e seus mecanismos internos. Contudo, apesar desses avanços, Marlatt e Gordon
(1993) sublinham a existência de um paradoxo importante nessa abordagem,
pois, se por um lado, afirma-se que o sujeito é incapaz de exercer controle sobre o
seu comportamento, por outro lado, o único modo seguro de evitar o problema é
a abstinência total por um período indefinido, o que supõe a capacidade de auto-
controle. Dessa forma, produzir-se-ia uma restrição dicotômica acerca dos pos-
síveis resultados do tratamento: ou o sujeito está abstinente, ou sofreu recaída.
Conte (2003), comenta que a aplicação da concepção de doença nos tra-
tamentos traz como consequência a produção de um descompromisso dos su-
jeitos com sua vida psíquica, pois, a ideia de sofrer de uma doença incurável
acarretaria a inibição das possibilidades de mudança em seu registro sintomáti-
co, sustentando uma relação imaginária dual, que os mantém vinculados ao pro-
duto-droga. Outro possível desfecho se ligaria à produção de uma divisão entre
a vida do sujeito durante e depois do uso de drogas, o que poderia produzir uma
alienação de sua subjetividade e uma dissociação, na medida em que o sujeito
deve negar o passado para construir um novo homem (Conte, 2003). Segundo
a autora, a ideologia fundamental dessa visão é centrada na busca da contenção
e do controle sobre o sujeito, dificultando a consideração de motivações mais
profundas/inconscientes ou sociais relacionadas ao seu padrão de uso.
Apesar do predomínio do modelo citado acima no campo de pesquisa e

94
tratamento, no campo das políticas públicas que regulam as práticas de atenção
no país outros paradigmas se fazem presentes. Representante principal das con-
cepções do Ministério da Saúde sobre a questão, a política de “Atenção Integral
ao Usuário de Álcool e outras Drogas” tem nas diretrizes do SUS seus eixos cen-
trais, sob os quais trabalha as especificidades de seu público-alvo.
Um dos pontos fundamentais dessa política refere-se à assunção do com-
promisso presente nas diretrizes do SUS de fortalecer o trabalho em rede, pro-
porcionando uma atenção integral nos moldes da intersetorialidade, incitando
outras instâncias à conexão em torno da mesma problemática:
O uso de álcool e outras drogas, por tratar-se de um tema trans-
versal a outras áreas da saúde, da justiça, da educação, social e de
desenvolvimento, requer uma intensa capilaridade para a exe-
cução de uma política de atenção integral [...]. As articulações
com a sociedade civil, movimentos sindicais, associações e orga-
nizações comunitárias e universidades, são fundamentais para
a elaboração de planos estratégicos dos estados e municípios,
ampliando-se significativamente a cobertura das ações dirigidas
a populações de difícil acesso. Tais articulações constituem-se
em instrumentos fundamentais de defesa e promoção de direi-
tos (advocacy) e de controle social (Ministério da Saúde, 2004,
p. 20).
Buscando viabilizar os princípios de integralidade e intersetorialidade,
uma das estratégias enfatizadas nas políticas atuais consiste em buscar a integra-
ção regional entre diferentes secretarias, através de projetos intersetoriais que
viabilizem uma rede de atenção. Assim, a política do Ministério da Saúde enfati-
za a importância do estabelecimento de vínculos e da construção da correspon-
sabilidade pelo tratamento.
Segundo o Ministério da Saúde (2004), comprometer-se com a formula-
ção, execução e avaliação de uma política de atenção a usuários de drogas requer
a ruptura com a lógica binarizante que separa e detém o problema do abuso de
drogas em fronteiras rigidamente estabelecidas. De acordo com Traverso-Yepez
e Pinheiro (2002), faz-se necessário romper com a visão unidimensional que im-
pera no campo da saúde pública, na qual o modelo é o médico e os problemas
são avaliados apenas por sua dimensão orgânica e biológica. Essa visão, aplicada
ao campo do tratamento da drogadição, produz como efeito principal a ênfase
hospitalocêntrica nos tratamentos, os quais reduzem-se a inúmeras internações
para desintoxicação sem que seja dada a devida importância à continuidade

95
do tratamento pós-alta (Conte, 2001). Para a autora, ao invés de o indivíduo
ser apenas hospitalizado para desintoxicação e depois voltar ao seu cotidiano,
deveria seguir vinculado a um ambulatório, posto de saúde ou a um CAPSad,
além de outros dispositivos da rede municipal capazes de facilitar o acesso a pro-
gramas de geração de renda, profissionalização, participação comunitária, etc.,
seguindo o objetivo de sua recuperação integral.
Embasada por uma visão unilateral do problema da drogadição, a pers-
pectiva da abstinência imperou por muito tempo, e ainda é bastante forte. No
entanto, de acordo com o Ministério da Saúde (2004, p. 21), a abstinência não
deveria ser o único objetivo de um tratamento:
Quando se trata de lidar com vidas humanas é necessário que se
tenha em primeiro plano o respeito às singularidades e diferen-
tes possibilidades de escolha possíveis. As práticas de saúde, em
qualquer nível, devem levar em conta essa diversidade.

Buscando alcançar essa meta, a política do Ministério da Saúde elege a


abordagem da Redução de Danos como método de trabalho, visando adequar
o tratamento à singularidade dos pacientes e incentivar sua autonomia para en-
tão serem traçadas estratégias voltadas para a defesa de sua vida. A Redução de
Danos é um método de tratamento que não exclui outros, pois está vinculado
primordialmente ao direcionamento do tratamento.
A abordagem da Redução de Danos vem se consolidando como uma al-
ternativa às abordagens baseadas nos modelos moral, criminal ou de doença.
Seu foco visa aos efeitos e consequências do comportamento aditivo, ao invés
de priorizar o uso de drogas em si e a meta da abstinência. Dessa forma, a ideia
básica que orienta as ações desse modelo baseia-se na compreensão de que ao
invés de direcionar todos os esforços para prevenir o uso de drogas, devemos
buscar evitar o seu abuso, ou seja, o mau uso que pode resultar em ameaças ao
bem estar do sujeito e da sociedade (MacRae, 2003). Apesar dessa abordagem
apelar menos para um ideal de saúde do que para aquilo que é viável ao sujeito
e, portanto, não exigir a abstinência para a existência de um tratamento, Marlatt
(1999) ressalta que essa é uma meta desejável, porém, situada em um continuum
que não dicotomiza as possibilidades de recuperação. Assim, a abordagem de
redução gradual estimula os indivíduos com comportamentos de risco a “dar um
passo de cada vez”.
No Brasil, a Redução de Danos surgiu junto aos avanços promovidos

96
pela reforma psiquiátrica, visando ao reconhecimento dos direitos e deveres dos
usuários de drogas, suas demandas, o tempo de elaboração de suas experiências
e a flexibilidade no contrato. Conte (2003) ressalta que esses aspectos viabilizam
uma escuta no contexto de condições preliminares à formulação de uma de-
manda, favorecendo o reconhecimento de riscos e a construção de estratégias de
autocuidado.
Como vimos acima, o Ministério da Saúde reconhece esse paradigma
como a diretriz a ser implementada na rede nacional de atenção. Contudo, cons-
tata-se que essa orientação é ainda incipiente e convive com uma diversidade
de paradigmas e abordagens terapêuticas. Na opinião de Cruz (2003), vive-se
no Brasil uma disputa no campo das políticas públicas: se, por um lado, vem
sendo desenvolvida uma série de iniciativas dentro da perspectiva da Redução
de Danos por parte dos poderes executivos, por outro, no poder judiciário e em
muitos locais de internação aplica-se um modelo que retira a autonomia dos
sujeitos, compreendendo-os apenas a partir da perspectiva de sua dependência
(química).

Considerações finais

Dada à complexidade e polifonia das questões relacionadas ao uso de


drogas, compreendemos que não é possível abordar os problemas decorrentes do
encontro dos sujeitos com essas substâncias apenas através de uma única dimen-
são. Segundo Velho (1997), a ideia básica de que a realidade é complexa e se dá
em múltiplos planos, confere ao uso de substâncias como as drogas significados
particulares definidos a partir das lógicas das diferentes culturas, sociedades e
grupos que as utilizam.
Nesse sentido, modalidades de atenção e/ou tratamento que considerem
apenas uma dimensão do problema, como a dimensão biomédica - focada nas
alterações que o uso continuado produz no organismo - têm se mostrado insufi-
cientes, o que é atestado pelas altas taxas de recaídas e insucesso nos tratamentos.
Por outro lado, apesar da mudança nas legislações, a realidade dos ser-
viços de atenção em saúde mental ainda deixa muito a desejar no tocante a sua
adequação aos novos paradigmas vigentes. Se considerarmos o número de CAP-
Sad, os dados demonstram que a oferta de tratamentos está ainda aquém da de-
manda, principalmente em face do aumento do que já vem sendo chamada de

97
uma “epidemia” de uso de crack. Considerando as consequências psicossociais
do uso abusivo de drogas, tal quadro é alarmante e justifica medidas urgentes
na área da saúde, baseadas na necessária ação intersetorial nos cuidados com a
drogadição (Fefferman, Raupp, & Salum Morais, 2011).
Ao invés dos grandes investimentos voltados sobretudo à repressão ao
uso, a prioridade deveria ser o investimento em espaços capazes de propiciar
acolhimento, continência, escuta e meios de simbolização dos conflitos psíqui-
cos que levam um sujeito à compulsão ao uso de drogas (Raupp & Sapiro, 2009).
Da mesma forma, dever-se-ia investir em mecanismos que garantissem a real
efetivação de um trabalho em rede entre os distintos equipamentos públicos e
sociais, a fim de viabilizar o acesso do usuário a atividades lúdicas, artísticas, de
reforço escolar e profissionalizantes, visando ampliar suas perspectivas de vida
a partir da descoberta de novas potencialidades, ao mesmo tempo em que lhes
instrumentalizam para uma inserção social diversificada.
No entanto, grande parte dos serviços que oferecem tratamento para dro-
gadição tendem a considerar o uso de drogas como o problema principal, des-
considerando o papel desempenhado pelas formas de relação com o consumo
propostas socialmente e seus efeitos subjetivos. Nesse sentido, ressaltamos que o
predomínio do “modelo de doença” nos tratamentos leva a uma ênfase excessiva
na química – na dependência química - e tende a desconsiderar o sujeito e suas
motivações profundas.
Segundo Rotelli (1990), o problema enfrentado sempre, e de modo er-
rado, é o da droga e não o da drogadição, pois não é interessante ouvir o parecer
dos sujeitos que o enfrentam; o que interessa é normatizar o “fenômeno droga”,
e não o confronto com as histórias singulares. Ressaltamos que esse é um campo
ainda permeado por concepções do “modelo moral” presentes, de forma direta
ou indireta, em muitas práticas de prevenção e tratamento, assim como nas polí-
ticas que seguem tratando a questão sob uma ótica repressiva que, a despeito de
toda a produção atual sobre o tema.

98
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100
Parte III – Olhares Contemporâneos

101
Capítulo 7

CONTRIBUIÇÕES DE FREUD À PSICOTERAPIA

Julio Cesar Walz Currículo Lattes

Psico-análise é a arte de restituir a uma pessoa a alma que ela


tem (ou a possibilidade de não sentir mais vergonha de si mes-
mo). (Paulo Sérgio Rosa Guedes)

Iniciando a conversa...

A Psicoterapia é o tratamento pela palavra. Isso significa uma perspectiva


de tratar doenças mentais de caráter psicogênico (ou seja, de origem emocional)
através da conversa. Essa forma terapêutica estabeleceu-se no mundo médico e
psicológico a partir das investigações de Sigmund Freud no final do século XIX.
A psicoterapia, propriamente dita, assim como conhecemos hoje em suas mais
variadas compreensões e técnicas, tem no máximo 120 anos de existência.
Em 1896, Freud criou uma expressão para nomear o tratamento pela con-
versa. Tal termo era “Talking Cure” (Roudinesco & Ploom, 1998, p.603). Reforço
essa ideia do tratamento pela fala como sendo algo novo na história da humani-
dade. Ninguém, até então, havia conseguido sistematizar uma maneira de usar a
fala como um tratamento ou uma cura psicológica (da alma). Esse tratamento ele
denominou de psico-análise. Destaco essa grafia para acentuar o termo “psico”,
com ênfase na alma e não na análise, e espero poder esclarecer melhor ao longo
do texto tal distinção. Foi essa ênfase de Freud sobre a alma (psique) que tornou
sua análise diferente de todas as outras até nossos dias (Bettelheim, 1984, pp.
24-25).
Com palavras minhas, definiria, para efeitos deste texto, que a psicote-
rapia é o lugar de encontro para que a pessoa em sofrimento mental possa esta-
belecer um vínculo humano com a finalidade da construção de espaços mentais
onde não fique restrita ao sofrimento nem mantenha ou sustente a ilusão da

103
onipotência. Esse encontro visa, na medida do possível, favorecer que a pessoa
recupere a si para si mesma e volte a oxigenar sua vida mental.

Os começos do psicoterapeuta Freud...

Freud formou-se em Medicina em 1882, após oito anos de estudo. Du-


rante o curso foi um aluno muito destacado. Além dos estudos normais, dedi-
cou-se profundamente a conhecer o darwinismo com Ernst Haeckel e filosofia
com Franz Brentano, além de ter recebido uma bolsa para estudar glândulas se-
xuais das enguias machos de rio. Nesse período, como bolsista (hoje seria bol-
sista de iniciação científica), criou uma teoria sobre o funcionamento das células
nervosas e neurônios.
Quando terminou a faculdade, e sem condições de seguir como pesqui-
sador por razões de falta de apoio financeiro institucional, entrou em contato
com Joseph Breuer e acompanhou o caso “Ana O.” (Berta Pappenheim). Jovem
(21 anos) inteligente acometida de perturbações histérico-orgânicas (paralisias,
perturbações visuais, desordens de linguagem, fobias, etc.), submetida a hipnote-
rapia é tida como o primeiro caso da Psico-análise. Com Breuer, Freud descobriu
a técnica psicoterápica mais usada na época, a hipnose. Quando sob hipnose,
parece que a paciente “liberava” algo que a incomodava com grande melhoria
de sintomas, dizia Breuer. Este denominou tal técnica de “katharsis” (do grego
“purgar-se”) e a hipnose que o acompanhava de “hipnose catártica” (do grego
“kathartikos”; latim “catharticus”). Freud trabalhou quatorze anos com Breuer.
Em termos históricos, é interessante notarmos que apenas em 1882, na
França, foi criada a primeira cátedra de clínica de doenças nervosas, onde Jean
Martin Charcot foi o titular. A neurologia fica reconhecida como disciplina autô-
noma, e o estudo das doenças mentais começa a ganhar visibilidade e autonomia.
Num certo sentido, as doenças mentais estavam saindo do campo da bruxaria e
dos maus espíritos. Charcot foi um dos maiores clínicos e professores de Medi-
cina da França, juntamente com Guillaume Duchenne, o fundador da moderna
neurologia. Suas maiores contribuições para o conhecimento das doenças do cé-
rebro foram o estudo da afasia, a descoberta do aneurisma cerebral, causas de
hemorragias cerebrais. Charcot também concluiu que a hipnose era um método
que permitia tratar diversas perturbações psíquicas, em especial à histeria. Char-
cot foi tão famoso quanto seus alunos: Sigmund Freud, Joseph Babinski, Pierre

104
Janet, Albert Londe e Alfred Binet.
Em 1885, Freud viajou a Paris para iniciar um estágio com Charcot de 19
semanas. Esse estágio terá papel fundamental na formação do jovem Sigmund.
As várias cartas que trocaram estão traduzidas no livro “Lições da Terça-feira”.
Ali pôde aprender toda a técnica da hipnose e estar no centro da efervescência
e das discussões acerca das doenças mentais, especialmente a histeria. Essa era
um enigma para o conhecimento: tinha a figuração de um quadro neurológico,
sintomas físicos importantes, mas não se inscrevia completamente num quadro
orgânico degenerativo, ou mesmo seus sintomas não apresentavam diagnóstico
mensurável ou visível clinicamente.
Em 1886, Freud volta a Viena, onde se estabelece como médico e dirige
o Departamento de Neurologia, primeiro instituto público para crianças. Entre
1886 e 1890, exerce medicina como especialista em doenças nervosas.
Freud foi incansável, com o desejo profundo de poder ajudar seus pa-
cientes a poderem viver melhor. Usava de todos os recursos possíveis na época:
banhos, pressão na cabeça, passeios nas montanhas, eventualmente choques e a
hipnose. Com esta técnica, a hipnose, iniciou uma série de tratamentos psico-
terápicos, sempre auxiliado pelas outras técnicas, quando achava que seria be-
néfico ao paciente. No início tinha grande estima pela hipnose e considerava-a
de grande valor terapêutico. Via suas pacientes histéricas melhorarem de seus
sintomas, chegando a afirmar a cura da histeria pela hipnose.
Aos poucos foi percebendo que alguns sintomas retornavam ou que não
conseguia avançar em muitas lembranças pela hipnose, na tentativa de buscar a
causa ou fator desencadeante das crises nervosas. Certa vez, uma de suas pacien-
tes, Elisabeth, não estava melhorando com hipnose e nem se deixava hipnotizar.
Freud, então, começou a usar a técnica da pressão na cabeça da paciente com
o objetivo que ela pudesse desfocar de seus pensamentos circulares. Diz Freud
(1893, p. 194): “Realizei isso instruindo a paciente para que me informasse fiel-
mente tudo o que aparecesse em sua imaginação ou se lembrasse, no momento
da pressão”. Destaco que esta passagem foi decisiva na história da humanidade e
da psicoterapia. Qual passagem?
Freud estava trocando a inquisição, o questionamento, o rastreamento
ou a relação linear entre causa e efeito, com suas suposições para que a paciente
pudesse falar qualquer coisa, aquilo que viesse à cabeça dela espontaneamente.
Provavelmente essa passagem foi um misto de intuição com o apoio do que suas

105
pacientes normalmente lhe diziam vez ou outra, que ele deveria ficar mais quieto
e as deixasse falarem um pouco mais.3
No caso da Elizabeth, quando ela começou a falar, digamos assim, sem o
norte das perguntas de Freud (1893, p. 195), constatou ele: “abriu-se uma nova
corrente de ideias”. Ou seja, novas memórias, novos conteúdos, novas emoções,
aparentemente inusitadas e sem nenhuma relação com o seu sofrimento mental.
Isso causou um espanto, digamos assim, em Freud. Afinal, surgiram saberes, in-
formações e emoções que não estavam acessíveis de maneira direta ao paciente
e muito menos ao médico.
Dessa constatação surge uma questão: teria realmente valor terapêutico
deixar o paciente falar livremente? E em que termos?

Das originalidades fundamentais...

Para efeitos de tentar esclarecer o que considero central na contribuição


de Freud à psicoterapia, vou me valer do roteiro do caso descrito por Freud acer-
cado tratamento da Elisabeth (1893) para tentar transmitir os fundamentos da
genialidade de Freud, em termos clínicos.
Quando procurou Freud, Elisabeth tinha 24 anos de idade. Na ocasião da
procura, estava com paralisia e dores na perna sem nenhum resultado positivo
em seus tratamentos há mais de dois anos. Sua situação de vida era de muitas
perdas familiares: recentemente a irmã falecera após longa afecção cardíaca; a
mãe tinha realizado uma cirurgia dos olhos e o pai morrera, após longo cuidado
dedicado por ela. Aliás, boa parte da sua juventude estava envolvida em cuidar
do pai e de todos os familiares, abdicando praticamente de toda e qualquer ati-
vidade para si própria.
Conclui Freud (1893, p. 193), após investigar a vida de Elisabeth:
Eis aqui, portanto, a infeliz história dessa moça orgulhosa, que
queria amor. Incompatibilizada com o seu destino, amargurada
pelo fracasso de todos os seus pequenos esquemas para o resta-
belecimento das antigas glórias da família [...] vivera 18 meses
numa reclusão completa, não tendo nada a ocupá-la senão os
cuidados com a mãe e com suas próprias dores.

3
Podemos encontrar observações assim em quase todos os casos descritos por ele nesta época. Cf.
Freud, 1893.

106
Na época usava a hipnose para encontrar fatores desencadeantes enterra-
dos na memória. Dizia ele (Freud, 1893, p. 188) o que pretendia com a técnica:
Desembaraçar o material psíquico patogênico camada por ca-
mada, e gostamos de compará-lo à técnica de escavar uma ci-
dade soterrada... Todo o trabalho era baseado, naturalmente, na
expectativa de que seria possível estabelecer um grupo perfeita-
mente adequado de determinantes para os fatos em causa.
Ou seja, no início desse tratamento Freud tinha a mesma convicção dos
seus pares da época, que era: existe uma relação linear entre causa e efeito. A
razão para o sofrimento mental ou a histeria de Elisabeth (ou de qualquer outro
paciente) poderia ser encontrada em sua vida e em alguma memória oculta, e
bastaria associar o sofrimento atual a algum fato ocorrido anteriormente que a
descarga poderia ser feita (ab-reação), e sua mente estaria livre.
No entanto, tal esquema começou a ruir definitivamente com Elisabeth.
Ou melhor, Freud aprendeu com Elisabeth que o sofrimento mental não se pro-
cessa nessa forma linear e não está relacionado diretamente com a vida, ou ainda
uma memória esquecida que ao ser acessada libertaria a pessoa. Vejamos.
Pressionada na cabeça pelas mãos de Freud e solicitada a falar tudo o que
lhe ocorresse, “abriu-se uma nova corrente de ideias”. No caso, a situação era a
seguinte: Elisabeth estava cuidando do pai incessantemente, dia após dia. Um
moço jovem e talentoso estava interessado em Elisabeth e convidou-a para um
baile. A moça recebeu o apoio de todos na família, inclusive de seu pai. Cheia de
reticências, foi ao encontro.
Mas quando chegou em casa nesse feliz estado de espírito, en-
controu o pai pior e recriminou-se amargamente por haver gasto
tanto tempo divertindo-se. Esta foi a última vez em que deixou o
pai doente por uma noite inteira. (Freud, 1892, p. 195)
No contexto do tratamento dessa jovem, a lembrança desse dia que ter-
minara penoso foi a de um amor proibido (apenas por ela), por assim dizer.
Este assunto, o seu interesse por aquele jovem rapaz, não havia sido falado em
nenhum momento com Freud, nem em estado hipnótico.
Estamos aqui diante da primeira originalidade de Freud, no caso, da sua
técnica: estava dado o início da aplicação da ideia da associação livre.4 Freud
4
Quando Freud tinha 14 anos recebeu de presente as obras completas de um escritor chamado Ludwig
Börne (1786-1837). Num dos livros havia um texto denominado “Como se tornar um escritor original
em três dias? No artigo ele recomendava que se deveria anotar, por três dias seguidos, sem falsificação e

107
observa que uma nova corrente de ideias surgiu. E, no caso, era um segredo, a
sensação de um amor proibido. Enfim, a associação livre começa cada vez mais
fazer parte do trabalho de Freud, com o nítido ganho de o paciente poder livre-
mente seguir seus próprios caminhos discursivos.
Em sentido literal, a associação livre é, na realidade, o resultado final ou
aquilo que se busca de um tratamento. Afinal, quando alguém está mentalmente
enfermo, diz Freud, ele “sofre de ideias fixas”, “ou sofre de reminiscências”, ou
“sofre de ideias excessivamente intensas ou aprisionadas”. Dessa forma é impos-
sível associar livremente. Nesse estado de aprisionamento, a vida mental enferma
baseia-se na ilusão do controle ou do poder, como veremos adiante. Ele quer ex-
plicar e ser explicado. E acolher-se a si mesmo, respeitar suas ideias e sensações,
enfim, a sua humanidade, passa a ser um horror. A base da associação livre é o
auto respeito. Da neurose é a autocrítica.
Voltando a técnica. O efeito típico do aparecimento inusitado de algum
material ou mesmo a lembrança de algo jamais esperado, ou ainda a evocação e
uma vivência dolorosa na vida mental de fatos reais, levou Freud a definir uma
segunda originalidade, ainda mais decisiva e genial: a noção de conflito, conflito
psíquico.
Essa segunda originalidade, a do conflito psíquico, deu a ele uma nova di-
mensão acerca da vida mental. Começava agora uma nova compreensão acerca
da questão da origem do sofrimento mental. Ou seja, a origem do sofrimento
mental é intrapsíquico. Ele é decorrente do efeito de ideias antagônicos ou opos-
tas e que se digladiam permanentemente. A noção de ideia aqui não se restringe
simplesmente a pensamentos conscientes, mas refere-se a “forças” antagônicas
que se digladiam dentro do indivíduo, na sua cabeça (Laplanche & Pontalis,
2001). Trata-se de uma situação de incompatibilidade, ou vivida assim. Mais tar-
de ele usa essa noção para construir a noção de aparelho psíquico e de que o con-
flito estava na incompatibilidade entre os sistemas psicológicos denominados de
Consciente, Pré-Consciente e Inconsciente. Posteriormente ele denominou de
Id, Ego e Super-Ego (ou literalmente: Isso, Eu e Super-Eu respectivamente).

hipocrisia tudo o que passasse na cabeça. Disse ele: “Escreva o que você pensa de você mesmo, de suas
mulheres, da guerra da Turquia, de Goethe, do juízo final, de seus superiores e, depois de três dias, você
ficara surpreso com quantos pensamentos novos, jamais expressos, surgiram em você”. Anos mais tar-
de, numa carta a Ferenczi ele reconhece que esta leitura pode ter sido a influência de sua originalidade
técnica. Cf. Sousa, 2005, p. 32.

108
No caso de Elisabeth, ele (Freud, 1893, p. 213) cita o conflito da seguinte
maneira:
[...] círculo de ideias que abrangia seus deveres para com o
pai enfermo, entrou em conflito com o conteúdo do desejo
erótico que sentiu na época. Sob a pressão de vividas auto
censuras, ela decidiu em favor das primeiras, e ao fazê-lo
provocou a dor histérica.

Elisabeth, como todos os seres humanos, teve as dificuldades naturais da


vida. Poderíamos achar que esses seriam os problemas mentais dela, as dificul-
dades da vida. Mas o que Freud foi percebendo é que a raiz do sofrimento não
eram, em si, os fatos da vida, mas sim as ideias incompatíveis e não aceitas pela
pessoa ou pelo seu sistema psicológico ou moral, inclusive em relação à própria
vida.
Podemos esclarecer melhor a relação entre vida real e vida mental. A
compreensão que Freud nos traz é fantástica (talvez um pouco esquecida ou, na
maioria das vezes, mal compreendida). Parece a mesma maneira de ver da Física
Quântica acerca da realidade, que nos ensina teoricamente que aquilo que per-
cebemos como sendo massa sólida e compacta (uma mesa, por exemplo) de fato
não é em sua essência. Ou melhor, ele tem uma ideia muito interessante sobre a
relação sujeito e ambiente. Na neurose, a origem e a manutenção de sofrimento
não é direta e imediata. Tal compreensão e sua aplicação nos indicam questões
terapêuticas e o lugar de nossa atenção e cuidado. O que diz ele (Freud, 1918,
p. 68):
A concepção, portanto, que estamos colocando em discussão é a
que se segue. Sustenta que cenas da primeira infância, tais como
as que são construídas por uma análise exaustiva das neuroses
(...), não são reproduções de ocorrências reais, às quais seja pos-
sível atribuir uma influência sobre o curso da vida posterior do
paciente e sobre a formação dos seus sintomas. Considera-as,
antes, como produtos da imaginação, que encontram estímulo
na vida madura, que pretendem servir como uma espécie de re-
presentação simbólica dos verdadeiros desejos e interesses e que
devem sua origem a uma tendência regressiva, a uma fuga das
incumbências do presente.
O que Freud está dizendo não é que não ocorram eventos na infância ou
na vida, mas sim que o que fazemos ou pudermos fazer com os fatos ocorridos
(internos e externos), ou seja, com nossa capacidade imaginativa é que terá in-
fluência decisiva para o surgimento ou não de perturbações emocionais. Quer

109
dizer, o passado no presente não são as memórias conscientes ou esquecidas do
passado, ou as memórias rancorosas conscientes ou do sofrimento vivenciado e
mantido como lembrança intensa.
Seguindo uma sugestão do Dr. Paulo Sérgio Rosa Guedes (Guedes, 2010,
p. 91), diz ele:
[...] me parece muito útil considerar “produtos da imaginação”,
nesse contexto, como intensos desejos de poder alcançar a oni-
potência. E sublinhar enfaticamente, que Freud não afirmou
ser o chamado trauma infantil a causa da neurose, mas sim a
configuração que cada um pode criar em torno de determinado
evento como “produtos da imaginação”.

Trata-se de uma revolução conceitual ímpar na história, à primeira vista,


estranha e longe da percepção imediata que temos de nosso sofrimento, pois
sempre queremos atrelá-lo a fatos, digamos, reais. E os usamos para justificar
nosso sofrimento ou a sua existência. Esse procedimento corriqueiro confun-
de nosso pensar de maneira quase crônica. Ou melhor, Freud nos ensinou que
parte do que pensamos, em estado mental de sofrimento é confuso em razão de
tentarmos compatibilizar tudo ou de não aceitarmos as oposições ou que elas
fazem parte da nossa vida, intrinsicamente. O ser humano não é unívoco, nem
uníssimo. E a sua “loucura” está na tentativa de curar o incurável. Aliás, jamais
deveríamos esquecer: a vida não tem cura. Apenas a neurose.
A terceira originalidade é a noção de defesa. Ela é o resultado do conflito
psíquico ou da experiência de incompatibilidade vivida pelo indivíduo. Ou seja,
quando algo é incompatível ou percebido como tal, o sistema tende a rejeitá-lo
em favor de outra. No caso da Elisabeth, o efeito descrito por Freud (1893, p.
196) foi o seguinte: “O resultado deste conflito foi que a ideia erótica foi repri-
mida da associação e a emoção ligada àquela ideia foi utilizada para reviver uma
dor física que se achava presente simultaneamente, ou pouco antes.”
A ideia de defesa é muito forte para Freud. Vem do termo alemão Ab-
wehr e refere-se a situações de guerra. Ou seja, o conflito psíquico, na imagem
de Freud, parece uma guerra. E um dos mecanismos da defesa é a repressão. A
repressão é o resultado de uma incompatibilidade (intrínseca ao ser humano) que
gera a defesa, e tem por finalidade impedir o avanço de uma ideia supostamente
ameaçadora ou diferente. Sempre que ocorre esse impedimento, a força que vi-
nha para a consciência precisa retornar ao seu local de origem. E aí surge uma
questão: o que acontece com essa energia psíquica que buscava escoamento, mas

110
que precisou ser contida?
Aqui temos a quarta contribuição original de Freud. A noção de sintoma.
Diz ele sobre Elisabeth (Freud, 1893, p. 206):
Os conceitos de desvio de uma ideia incompatível, da gênese dos
sintomas histéricos através da conversão de excitações psíqui-
cas em algo físico e a formação de um grupo psíquico separado,
através do ato de vontade que conduziu ao desvio – todas essas
coisas, naquele momento, apareceram diante dos meus olhos de
forma concreta.

Ou seja, o sintoma é o resultado de uma ideia ou impulso original que foi


desviada dentro do aparelho psíquico e que ganha nova roupagem para poder
ser aceita, digamos assim, pela consciência ou ego. Assim, podemos dizer que na
própria doença encontramos a saúde oculta e que não consegue manifestar-se
efetivamente. Conforme Freud (1913 p. 69):
Se os neuróticos são dotados da característica prejudicial de des-
viar o seu interesse do presente e de vinculá-lo a esses substitutos
regressivos, os produtos da sua imaginação, então o que há a fa-
zer é seguir a sua trilha. [...] eles são os portadores e possuidores
do interesse que queremos libertar.

Pensando a neurose...

Interessante percebermos o que Freud estava descobrindo e levando em


curso durante o trabalho com Elisabeth. Disse ele a certa altura que a neurose são
(Freud, 1893, p. 209): “casos que escrevo que parecem contos”. Aparentemente
simples, esta afirmação pode dar uma dimensão importante às descobertas que
ele vinha construindo. Sua extrema capacidade investigativa e criadora levou-o a
demonstrar que o sofrimento psíquico é, num certo sentido, criação da própria
pessoa. E mais: o sofrimento é mantido por ela. E mais ainda: cultivado como se
fosse necessário (Guedes & Walz, 2011).
A cura pela palavra ou a psico-análise se apoia nessa magistral desco-
berta. Torna-se fundamental, então, o ato de conversar. Justamente porque na
neurose ocorre um enclausuramento na convicção profunda de que se é a maior
vítima da vida. Na conversa terapêutica o objetivo não é a conservação, e sim a
abertura de novos mundos, a oxigenação. Nesta conversa surge necessidade de
ir demonstrando ao doente que a criação de seu sofrimento é mesmo obra sua.

111
Sem ele perceber, óbvio. A pessoa foi construindo essa condição, e se fechando
em torno de si mesma, de certa forma numa tentativa ilusória de cura. Afinal, no
sintoma está a saúde ocultada, como vimos acima.
A neurose, então, é uma tentativa de cura. Nada mais do que isso. Diz
Freud (1913, p. 109, grifos meus):
[...] a investigação analítica revela a mesma coisa em todas as
neuroses. Em todas elas, o que determina a formação dos sinto-
mas é a realidade, não da experiência, mas do pensamento. Os
neuróticos vivem num mundo à parte, onde, como já dissemos
antes, somente a ‘moeda neurótica é a moeda corrente’; isto é,
eles são afetados apenas pelo que é pensado com intensidade e
imaginado com emoção, ao passo que a concordância com a rea-
lidade externa não tem importância.
Com base nessa formulação de Freud trago aqui uma proposição do Dr.
Paulo S. R. Guedes (2011) acerca do sofrimento mental. Podemos afirmar que a
neurose é a “ausência” (aparente) da paixão na vida, ou seja, a onipotência em
carne viva tentando se manter e mantida pela pessoa a todo custo de desgaste
humano e psicológico. Mas para ela, a pessoa, torna-se o centro, fundamental
mantê-la e sem a percepção de que pode largá-la com ganhos imensos. A paixão
seria a capacidade humana baseada em curiosidade, investigação, expansão. Afi-
nal, o universo é expansão.
O oposto da paixão é a onipotência. A pessoa sabe tudo. Ora, quem vai
querer largar esse estado de convicção profunda de que sabe tudo e dá conta de
tudo?
Por isso, não podemos nos esquecer de que, quando alguém em sofri-
mento mental neurótico busca um tratamento para aliviar seu estado de miséria,
em primeiro lugar o que ele busca é um aprimoramento do seu sentimento de
poder ou da sua onipotência. O seu sofrimento é este: ele não está dando conta
de tudo e quer melhorar-se a si mesmo para poder fazer tudo, vencer tudo. Ele
não quer ser um ser humano. Ele quer ser deus ainda mais.
Para esclarecer melhor esse ponto fundamental, vou recorrer às palavras
de Nelson Boeira acerca do tema da onipotência (Guedes & Walz, 2011, p. 36):
Nietzsche distingue entre o sofrimento e a interpretação do so-
frimento. Há uma dor que é própria da condição humana, da
qual não escapa homem algum, seja ele atingido por maiores ou
menores reveses nesta vida. Esse sofrimento pode resultar do

112
infortúnio, do acaso ou das limitações que a realidade impõe a
qualquer ser humano. Contudo, não significa uma imperfeição,
mas parte constituinte da experiência humana, que em nada lhe
retira o valor. Há, no entanto, um segundo sofrimento, a dor au-
toinfligida. Nasce da interpretação que fazemos de nosso sofri-
mento primário ao tratá-lo como algo injusto e imerecido, como
um sinal de desvalor ou culpa. Ao proceder assim, atribuímos a
nós mesmos a responsabilidade por dores inevitáveis, como se
fôssemos causadores das infelicidades “naturais” que sobre nós
se abatem. Para Nietzsche, o que torna o sofrimento insuportá-
vel, doentio e apequenador não é a dor e as perdas que contém,
mas a interpretação que fazemos dessa dor e dessas perdas. Do
sofrimento enquanto parcela da vida não nos podemos “curar”,
mas podemos libertar-nos de crenças doentias sobre o sofri-
mento, do sofrimento como má consciência, como sublimação,
como desvalorização da experiência humana.

Sofrimento mental para o neurótico, então, é a crença de que é a falta de


poder ou de controle que ocasiona o sofrimento. Desta forma busca a pessoa,
incessante e persistentemente, alcançar um estado verdadeiramente onipotente
que possa – fantasticamente – livrá-la da situação de sofrimento. Por este cami-
nho afunda-se cada vez mais na angústia, perpetua cada vez mais intensamente
sua confusão mental, envergonha-se cada vez mais de si mesma. Afinal, cria ta-
refas impossíveis e usa sua impossibilidade como mais combustível para se auto-
criticar severamente e envergonhar-se constantemente.

Considerações finais...

Amar é o preço que o enamorado deve pagar à vida para poder


se reconciliar com ela. (Roland Barthes)
O mundo aumentou em muito seus conhecimentos nos últimos cem
anos. Em todas as áreas. No nosso caso sobre o desenvolvimento humano e o
sofrimento mental. Entendemos bem mais sobre as influências do dentro e do
fora, do interno e do externo, das questões relacionadas aos traumas infantis e
suas repercussões. Claro que hoje já temos um quadro de evidências consistentes
em relação às alterações cerebrais quando das separações precoces entre mãe e
bebê, do abandono, maus tratos, doenças, etc. Também sabemos como fatores
estressores externos (ambiente de vivências ou mesmo alimentares) e a alostase
influenciam no desgaste do cérebro e no organismo. Ou ainda as novas formula-

113
ções de genética e epigenética. Temos também muito mais evidências sobre a im-
portância do cuidado parental sobre a vida mental das crianças e o futuro desses
cérebros e psiquismos. Mais ainda, descobrimos e sabemos sobre a plasticidade
cerebral, as recognições, as proteínas neuroprotetoras e oxidativas e, inclusive,
que na vida adulta existe neurogênese em muitas áreas cerebrais.
Diante de tantas conquistas do conhecimento e de terapêuticas para si-
tuações específicas, cabe uma pergunta: a psicoterapia e no nosso caso, a psico-
-análise, ainda têm algo a dizer ou a propor em termos de terapêutica para as
questões relacionadas ao psiquismo ou às neuroses propriamente ditas? Ou seja,
da presença do passado no presente enquanto amarra sintomática?
A psicoterapia foi um passo importante na história da humanidade. Tra-
ta-se de uma chance real de podermos nos tornar mais humanos, sem dúvida ne-
nhuma. A neurose é o oposto disso. Ela é uma obturação completa da capacidade
de aprender com a experiência da vida como ela é.
Considero que compreender esta fantástica ideia de Freud acerca do que
seja a neurose ou de como se mantém a presença do passado no presente ou do
que seja o sofrimento mental pode nos situar em relação a todas as discussões
sobre o cérebro ou os avanços científicos. E em relação à vida moderna, crescente
e desenfreada em sua ilusão de poder.
Esta proposição, de que no sofrimento mental encontramos ocultada a
saúde, é de uma significação estrondosa. Ou seja, nosso tema é a onipotência, a
grande doença mental. Ela tira ou deixa o ser humano intolerante com a efetiva
vivência de aprendizado emocional ou com a vida. Na neurose, não se aceita a
vida. Luta-se contra ela. Em outras palavras, a onipotência é uma cruel emoção
interpretativa que assumimos como verdade e que sentimos como sendo real-
mente necessária e real para a manutenção da nossa vida.
A psico-análise se propõe a olhar e a resgatar o ser humano como ser
humano. Seres humanos não são perigosos. Deuses sim. Seres humanos amam.
Deuses sabem tudo.
Para concluir, tomo uma preciosidade na vida de Elisabeth e diria que
psico-análise é, “em segredo, tomar aulas de canto...” (Freud, 1893, p. 220).

114
Referências

Barthes, R. (1981). Fragmentos de um Discurso Amoroso. (3a ed.) Rio de Janeiro: Fran-
cisco Alves.
Bettelheim, B. (1984). Freud e a Alma Humana. São Paulo: Editora Cultrix.
Freud, S. (1893). Caso 5: Fraulein Elisabeth, in: Obras Completas. vol II.
Freud, S. (1913). Totem e Tabu, in: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago. Vol XIII.
Freud, S. (1918). Uma neurose infantil e outros trabalhos, in: Obras Completas. Rio de
Janeiro: Imago, vol. XVII.
Guedes, P.S.R., WALZ, JC.(2011).O Sentimento de Culpa. (3a ed.) Porto Alegre: Ed. do
Autor.
Guedes, P.S.R. (2010). A Paixão: Caminhos e Descaminhos – Os Fundamentos da Psico-A-
nálise. Porto Alegre: Ed. do Autor.
Laplanche, J., Pontalis, L. (2001). Ed. Vocabulário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
Roudinesco, E., Ploom .M. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro, JZE.
Sousa, E. (2005). Freud. São Paulo: Editora Abril.

115
Capítulo 8

DONALD WINNICOTT:
PARA PENSAR SAÚDE E EDUCAÇÃO

Cleber Gibbon Ratto Currículo Lattes

Partindo de uma análise das condições culturais contemporâneas, no-


tadamente marcadas pela fragmentação dos saberes, desengajamento político
e vazio dos projetos existenciais coletivos – marcas do capitalismo globalizado
– o texto discute a validade do sentido de confiança como dispositivo ético de
passagem do sentimento de vazio à existência criativa e da vida urbana como
clichê à imaginação. Está apresentado na forma de três blocos de notas, a saber:
Confiança e subjetividade que recoloca o ambiente como condição ontológica de
constituição do humano enquanto instância imaginativa e de criação; Do público
ao coletivo em saúde onde são apontadas as condições para a passagem de um
projeto de normalização biopolítica à construção da saúde como bem coletivo e
valorização da normatividade e; Educação ético-estética no qual se pauta a dis-
cussão sobre as possiblidades da educação como dispositivo de desmonte dos
clichês existenciais contemporâneos e abertura para afirmação da singularidade.
Em última análise, o artigo explora a sintonia entre o paradigma psicanalítico de
Donald Winnicott e a afirmação do valor ético e estético da existência humana,
numa perspectiva pós-metafísica.

Confiança e subjetividade

Donald Winnicott, psicanalista inglês que viveu entre os anos 1896 e


1971, constitui uma das mais importantes contribuições ao pensamento psicana-
lítico contemporâneo. Um dos mais citados autores na área, especialmente quan-
do se trata de pensar o tema do ambiente na constituição da subjetividade, Win-
nicott foi um dos mais célebres integrantes e presidentes da Sociedade Britânica
de Psicanálise, ao lado de Melanie Klein e Anna Freud. Integrou o Círculo de

117
Bloomsbury, do qual fizeram parte, entre outros artistas e intelectuais britânicos,
Virgínia Woolf, E. M. Forster e Lytton Strachey. Talvez por ter vivido de perto
as experiências traumáticas da Segunda Guerra Mundial, Winnicott foi um dos
psicanalistas mais fortemente ocupados das vivências de privação e desamparo
características do século XX.
Durante a Segunda Guerra, Winnicott foi nomeado psiquiatra
consultor do Plano de Evacuação Governamental de uma área
de recepção da Inglaterra e, segundo Clare Winnicott, que fa-
zia parte de sua equipe como assistente social, o exercício dessa
função teve um profundo efeito sobre ele. Winnicott teve que
ver-se frente a frente, em larga escala e de modo concentrado,
com o desfazimento dos lares, com a desintegração maciça da
vida familiar e pôde observar os efeitos, nas crianças e nos ado-
lescentes, da separação e da perda. (Dias, 2002, p. 115)

Mais que uma abordagem decorrente das revolucionárias formulações


freudianas do final do século XIX, quando a consciência humana é desalojada de
seu lugar de soberania, Winnicott constitui um novo paradigma em psicanálise,
justo por representar uma alteração na ortodoxia freudiana, fazendo incidir suas
diferenças justo naquilo que constituiu a pedra de toque da institucionalização
psicanalítica ao longos dos anos: a sexualidade como fundamento pulsional do
humano, o Complexo de Édipo como força organizadora da subjetividade e a
pulsão de morte como força antinômica instituidora da dialética subjetiva e cul-
tural.
É sobretudo com Zeljko Loparic, um dos mais importantes pesquisado-
res da filosofia da psicanálise, que encontraremos a ideia de que a
psicanálise passou por várias reformulações pelo próprio Freud
e seus seguidores, efetuadas no mais das vezes sob pressão de fa-
tos clínicos. Nas pesquisas de Winnicott, contudo, o paradigma
freudiano como tal entra em crise, dando lugar à busca por um
novo paradigma. (Loparic, 2006, p. 04)
Tal variação implica, antes de tudo e de maneira destacada, a afirmação
da noção de singularidade, um modo de instituição subjetiva que se constitui nas
primeiras experiências de relação com o ambiente, antes de qualquer significa-
ção sexual ou representação edipiana.
Para ele [Winnicott], muito antes de o bebê constituir um si pró-
prio, um self unificado e coeso, ele já se define por um estilo
próprio de estar no mundo. Ou seja, o “próprio” precede o “si”,

118
designado pela maneira peculiar e única que cada bebê possui de
aglutinar uma herança biológica e articulá-la de forma viva pe-
rante aquele ambiente singular que lhe dá sustentação. Esse “pró-
prio”, inicialmente incipiente, fragmentário, que Winnicott de-
nomina gesto espontâneo ou criatividade (no seu sentido mais
primário), indica o eixo principal que definirá a singularidade
daquele ser humano durante toda a sua vida e, no melhor dos
casos, o núcleo de onde ele se desenvolverá rumo à maturidade.
A interação entre essa criatividade primária do bebê e o seu am-
biente acolhedor produz experiência, a noção mais fundamental
a todo o pensamento de Winnicott, já que é a partir dela que
toda a sua psicanálise será descrita. (Naffah Neto, 2005, p. 439,
grifos meus)
É nessa perspectiva que o paradigma winnicottiano abre-se como uma
nova interpretação da contrbuição psicanalítica ao pensar as formas de sofrer
no mundo contemporâneo, especialmente aquelas advindas de uma constante
ameaça à integridade subjetiva, numa sociedade do risco e da insegurança on-
tológica (Guidens, Beck, & Lash, 1997; Giddens, 1991). O que está em jogo em
nossas formas atuais de sofrer, e que bem se expressa nas crises que vivemos, seja
naquilo que nomeamos como crise ambiental, crise da saúde ou crise da educa-
ção, é a impossibilidade de existir de modo criativo garantindo um sentido de
continuidade existencial.
A noção de risco (acidente, desastre) veio a caracterizar as socie-
dades ocidentais contemporâneas. Como “sociedade de risco”,
nossas formas de sociabilidade exibem uma infinidade de mani-
festações: fala-se em grupos de risco, áreas de risco, investimen-
tos de risco, comportamentos de risco, e essas são expressões
que se aplicam às mais diversas condições e situações. (Figuei-
redo, 2007, p. 83)
A crise ambiental tão propalada entre nós, está ancorada basicamente
na desconfiança em relação às condições de continuidade da existência no pla-
neta, implicando uma sensação quase ininterrupta de medo diante do futuro. A
crise da saúde, para além da falta de condições infraestruturais de garantia da
assistência sanitária às populações pobres do planeta, revela-se por uma crise de
legitimidade diante do grande desenvolvimento técnico-científico que não foi
capaz de erradicar as marcas históricas da desigualdade econômica e social entre
os povos. E a crise da educação, por sua vez, cada vez mais se apresenta como
uma crise de sentido, onde a notável ampliação do acesso aos equipamentos edu-
cacionais e às tecnologias correspondentes não acompanha, definitivamente, a

119
ampliação das capacidades criativas capazes de oferecer respostas aos dramas
existenciais crescentes numa cultura cada vez mais individualista, competitiva e
homogeneizada.
Na base de tais crises está um colapso generalizado no sentido de segu-
rança ontológica, não mais encontrada nas narrativas metafísicas do ser ou da
subjetividade, mas diretamente dependente de experiências criativas das cole-
tividades humanas, possíveis apenas num ambiente favorável onde o rosto e o
olhar do outro (alteridade) são nosso único alento diante do sem-fundo caó-
tico do mundo. O que está em jogo, portanto, diferentemente da restauração
das agências históricas garantidoras de segurança (Deus, a Igreja, o Estado, o
Legislador, o Pai etc.) é a construção francamente humana de ambientes de con-
fiabilidade, onde o jogo com o outro é nossa única condição de continuidade da
existência e produção de sentido.
Para Winnicott, quando um problema de integração existencial não pode
ser equacionado – o que geralmente se relaciona com condições ambientais pou-
co acolhedoras e produtoras de desconfiança e paranoia – o indivíduo trava em
seu processo de singularização e, então, adoece, vítima das significações hege-
mônicas (clichês) injetadas na subjetividade sem o concurso da experiência. O
vazio surge como uma espécie de resposta regressiva de dependência que denun-
cia não a falta de algo já pressuposto ou um conflito e/ou fantasia inconscien-
tes (edípicas, por exemplo), mas um movimento de existir que não se realizou.
Com uma dimensão francamente existencialista, o gesto criativo ou espontâneo
– assumido como marca distintiva do humano na psicanálise de Winnicott – é
apresentado como condição ontológica diretamente dependente das condições
ambientais. É do próprio existir, enquanto gestualidade criativa em jogo com al-
teridades também humanas, que nos tornamos o que somos. Mas esse existir sin-
gular depende diretamente de condições ambientais favoráveis, acolhedoras da
singularidade humana que busca se realizar na forma de uma “biografia” própria.
O que temos aí é uma braçada de anatomia e de fisiologia e,
acrescentado a isto, um potencial para o desenvolvimento de
uma personalidade humana. Existe uma tendência geral voltada
para o crescimento físico, e uma tendência ao desenvolvimento
na parte psíquica da parceria psicossomática; existem, tanto na
área física quanto na psíquica, tendências hereditárias, e estas,
do lado da psique, incluem as tendências que levam à integração
ou à conquista da totalidade. A base de todas as teorias sobre o
desenvolvimento da personalidade humana é a continuidade, a

120
linha da vida, que provavelmente tem início antes do nascimen-
to efetivo do bebê [...]. (Winnicott, 1988, p. 79)

Experiência nesse contexto é definida pelo próprio psicanalista como “um


trafegar constante na ilusão, uma repetida procura da interação entre a criativi-
dade e aquilo que o mundo tem a oferecer” (Winnicott, 1987, p. 38) construindo
um sense of trust [sentido de confiança] (Winnicott, 1971), que potencializa o
gesto criativo do humano na busca por existir de modo singular e suprindo o
vazio de sentido que está na base de toda ação. Tal sentido de confiança não está
garantido por qualquer transcendência metafísica, mas se constrói na própria
cultura humana, através de jogos intercambiáveis de oferta e acolhida da alteri-
dade.
Winnicott recusou explicitamente o naturalismo e o determinis-
mo. [...] mudou os pressupostos essenciais da psicanálise tradi-
cional, operando a transição do modelo naturalista e objetivante
do ser humano, característico da psiquiatria e da psicanálise tra-
dicional (Freud, Klein, Bion, Lacan) para um modelo decidida-
mente não-naturalista. (Loparic, 1999, p. 21)
Assim, o ambiente aparecerá nessa perspectiva psicanalítica como fundo
inextorquível da subjetividade humana, mais que um fator, elemento ou dimen-
são. É a própria concepção da subjetividade moderna que está em questão numa
clara ultrapassagem da metafísica da subjetividade oriunda do pensamento de
Kant. A subjetividade pensada com Winnicott, a partir de sua teoria do amadu-
recimento humano, encontra grande sintonia com a perspectiva existencialista
de Heidegger, sobretudo em sua postulação do cuidado enquanto categoria onto-
lógica. Tais aproximações são largamente desenvolvidas por Loparic ao longo de
seus trabalhos exploratórios. (Loparic, 1995, 2001a, 2001b e 2007) Assim,
há uma diferença filosófica fundamental entre os dois autores:
enquanto Freud ainda pensa em termos da teoria da subjetivida-
de, iniciada pelos filósofos por volta do século XVII e represen-
tada paradigmaticamente por Kant, Winnicott concebe os seres
humanos numa chave teórica completamente distinta, que em
minha opinião tem uma grande afinidade com a ontologia fun-
damental de Heidegger, conforme apresentada em Ser e tempo
(1927). (Loparic, 2001, p. 51)
Assim como em Heidegger, para Winnicott o homem é uma emergên-
cia ético-estética do próprio mundo, resultante do cuidado. Concebido aqui o
cuidado como ação política [sorge], espaço de construção humana no encontro

121
com o outro, uma ética do cuidado implica necessariamente a construção de es-
paços intersubjetivos. A inevitabilidade da angústia, como condição do próprio
ser-no-mundo, não coaduna nessa perspectiva com a desconfiança ou o medo
de existir que paralisa a “acontecência” humana. Angustiar-se é uma condição do
próprio existir em meio aos outros. Angustiar-se, aqui, é a própria condição do
mover-se, do estar vivo, do devir existencial. (Ratto, 2012)
Diferentemente disso, a desconfiança ou o medo de existir, marca do ca-
pitalismo globalizado, constituem modos de controle biopolítico que impedem
a existência, despotencializam a singularidade humana e nos relegam à mera
reprodução dos clichês existenciais, imagens (modelos) de vida pré-fabricadas
pelas grandes máquinas do capitalismo atual (midiáticas, econômicas, culturais,
subjetivas), destinadas ao consumo pelas massas. Quanto mais se acentuam a
sensação de insegurança e medo no contexto ambiental contemporâneo – carac-
terizado basicamente pela vida nas grandes cidades – mais nos vemos privados
de experiências efetivamente criativas, aquelas que para serem vividas dependem
de um ambiente sustentador e confiável, capaz de nos incitar à aventura (angus-
tiante) do encontro com a alteridade.
Trata-se, segundo Winnicott, de um espaço potencial para emergência da
criatividade originária, esse ser-no-mundo e ser-para-a-morte em termos exis-
tencialistas, que nos caracteriza.
Localizei esta importante área de experiência no espaco poten-
cial entre o indivíduo e o ambiente, que inicialmente tanto junta
quanto separa o bebê da mãe quando o amor materno, exercita-
do ou tornado manifesto em termos de confiabilidade [reliabi-
lity] humana, que de fato dá ao bebe um senso de confianca [a
sense of trust or of confidence] no fator ambiental. […] O espaço
potencial entre o bebê e a mãe, entre a criança e a família, en-
tre o indivíduo e a sociedade depende da experiência que leva
à confiança. Ele pode ser visto como sagrado pelo indivíduo
na medida em que é aqui que ele experimenta o viver criativo.
(Winnicott, 1971, pp. 74-75).

Na base da constituição subjetiva como singularidade existencial, encon-


tra-se um senso de confiança no próprio ambiente, uma confiança na possibili-
dade de existir e ter seu gesto acolhido pelo olhar do outro.
Zigmunt Bauman (2009), ao examinar a questão do medo nas sociedades
contemporâneas, especialmente nos grandes centros urbanos – palco privilegia-

122
do das nossas “novas” formas de sofrer – afirma que
o medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demônios que
se aninham nas sociedades abertas de nossa época. Mas é a inse-
gurança do presente e a incerteza do futuro que produzem e ali-
mentam o medo mais apavorante e menos tolerável. (Bauman,
2007, p. 32, grifos meus)
Entenda-se por sociedades abertas as coletividades organizadas em torno
do desengajamento e do enfraquecimento do laço social. Formas de sociabilida-
de bastante precárias, marcadas pela partilha de projetos fragmentados e fuga-
zes, nada semelhantes a projetos existenciais coletivos que possam nos encorajar
ao agir criativamente. A algo semelhante Anthony Giddens, fortemente influen-
ciado por Winnicott, refere-se ao examinar o desencaixe (ou desengajamento)
típico das transformações do final do século XX. Diz ele:
Que me seja permitido agora considerar o desencaixe dos
sistemas sociais. Por desencaixe me refiro ao `deslocamen-
to´ das relações sociais de contextos locais de interação e sua
reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espa-
ço. (Giddens, 1991, p. 29)
O ambiente potencialmente sustentador de experiências de singulariza-
ção existencial parece ser substituído muito frequentemente por “ambiências”
frágeis, pouco convincentes para emergência de um sentido de realidade e con-
fiança que nos faça querer continuar existindo.
Grosso modo, as condições ambientais da atualidade não parecem favo-
ráveis à construção de um senso de confiança capaz de nos incitar à existência.
Vivemos sob os signos da insegurança, do medo, da desconfiança em relação a
tudo e a todos.
O que mais amedronta é a ubiquidade dos medos; eles podem
vazar de qualquer canto ou fresta de nossos lares e de nosso pla-
neta. Das ruas escuras ou das telas luminosas dos televisores. De
nossos quartos e de nossas cozinhas. De nossos locais de tra-
balho e do metrô que tomamos para ir e voltar. De pessoas que
encontramos e de pessoas que não conseguimos perceber. De
algo que ingerimos e de algo com o qual nossos corpos entraram
em contato. (Bauman, 2008, p. 12)
É nesse sentido que a psicanálise contemporânea se vê desafiada a pensar
novas formas de intervenção no campo social, para além da subjetividade
privatizada oriunda da metafísica moderna, favorecendo condições ambientais

123
capazes de potencializar nossa confiança e vontade de continuidade da existên-
cia, em contraste com a pobreza das formas de vida propagadas pelo capitalismo
globalizado.
Não se pratica psicanálise no vácuo cultural e histórico e mui-
to menos contra as forças da história. A psicanálise não é uma
seita, e, menos ainda, uma seita conservadora e reformista. É
preciso apoiar-se nos fenômenos e processos da vida – da vida
cotidiana – para operar com alguma eficácia. (Figueiredo, 2007,
p. 85)

O que terão a ver com isso, a saúde e a educação enquanto práticas so-
ciais? Seremos capazes de imaginar formas de vida efetivamente criativas no am-
biente das grandes cidades, ultrapassando o clichê da vida urbana como misto
repetitivo de excitação e consumo?

Do “público” ao “coletivo” em saúde

A saúde enquanto prática social tem servido tradicionalmente ao espírito


da normalização biopolítica, típica da modernidade no Ocidente. Marcada por
uma nova forma de racionalidade no governo das populações humanas, a Saúde
Pública nasce junto com o Estado Moderno, buscando produzir homogeneidade
social com vistas ao estabelecimento de uma nova economia política, pautada
no gerenciamento de grandes massas humanas. Enquanto na cultura da Anti-
guidade a relação entre as condições de saúde e os fatores sociais não foi priori-
zada, no Renascimento essa relação ganha importância, marcando a emergência
de uma medicina social (Rosen, 1983; Foucault, 1999). Tal fenômeno se deu de
diferentes maneiras conforme os países, compartilhando, no entanto, a moder-
na política de normalização orientada por uma racionalidade esquadrinhadora
do espaço social, com vistas ao controle dos movimentos das populações. Tra-
ta-se do nascimento de uma biopolítica. Na França e na Inglaterra o propósito
foi o controle da natalidade e morbi-mortalidade, além da preocupação com o
aumento populacional, sem qualquer intervenção inicial efetiva ou organizada
sobre as condições sanitárias. Entretanto, é na Alemanha que se desenvolverá,
por primeira vez, uma prática sanitária objetivando a melhoria das condições de
saúde da população (Foucault, 1999).
A concepção e operação de uma chamada “polícia sanitária” transfor-
mou-se progressivamente numa prática da administração pública, ganhando

124
força especialmente na Alemanha. No começo do século XIX os diferentes es-
tados alemães já haviam incorporado todas as atividades para o bem-estar da
população como norma que cabia ao Estado. Portanto, “com a organização de
um saber médico estatal, a normalização da profissão médica, a subordinação
dos médicos a uma administração central e, finalmente, a integração de vários
médicos em uma organização médica estatal, tem-se uma série de fenômenos
inteiramente novos que caracterizam o que pode ser chamada a medicina de
Estado” (Foucault, 1999, p. 84).
Estamos diante de uma reorganização dos poderes, com o propósito de
instituir os Estados Modernos em sua função de propagação da ideologia libe-
ral, elemento chave de expansão do capitalismo. Assim, o interesse pela saúde
da população, e isso não está muito distante do movimento de escolarização na
modernidade, dá-se em relação direta com o interesse por governo das cidades e
instauração organizada das forças produtivas.
A necessidade de constituir a cidade como unidade responde
a interesses políticos e econômicos, na medida em que a cida-
de se torna um lugar importante para o mercado e para a pro-
dução, ao mesmo tempo em que o aparecimento de uma classe
operária pobre (o proletariado) aumenta a tensão política entre
os diferentes grupos que integram a cidade. É a necessidade de
controlar esta concentração de uma grande população em um
só lugar que leva à escolha de um modelo de intervenção, que
Foucault (1999) denomina “o modelo da peste”. Ele considera a
existência de dois grandes modelos de organização médica na
história europeia: o modelo suscitado pela lepra e o modelo sus-
citado pela peste. No primeiro, o doente é excluído fisicamente,
mandado para fora da cidade, em uma tentativa de purificação
do espaço urbano. No segundo, as pessoas permanecem em suas
casas, mas são meticulosamente observadas e vigiadas, em um
esquadrinhamento e controle permanente dos indivíduos, em
um modelo mais próximo à revista militar do que à purificação
religiosa. (Ramminger, 2008, p. 72)
No Brasil, tal tendência marca as perspectivas de saúde pública desde a
Primeira República, na forma de uma medicina sanitária capanhista, higienista,
normalizadora e de inspiração cientificista.
Na Primeira República, em torno desse modelo se estruturou
o discurso dominante na política de saúde, simultaneamente às
políticas de urbanização e de habitação. Consolidou-se uma es-
trutura administrativa de saúde centralista, tecnoburocrática e

125
corporativista, isto é, ligada a um corpo médico em geral prove-
niente da oligarquia de origem agrária que dominou a República
Velha. (Luz, 1991, p. 79)
Importa destacar que esses “traços configuraram o perfil autoritário que
ainda hoje caracteriza, em grande parte, o conjunto das instituições de saúde pú-
blica e dos sistemas de decisões em política de saúde no Brasil”. (Luz, 1991, p. 79)
As políticas de saúde, de modo geral, instalaram-se sob a influência teó-
rica e programática da medicina social urbana francesa e da medicina de esta-
do alemã, mas foi sobretudo com a influência do modelo inglês (decorrente do
avanço industrial capitalista) que se constituíram efetivamente como
um controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para
torná-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes
ricas (…) e assistência médica ao pobre, controle da saúde da
força de trabalho e esquadrinhamento geral da saúde pública
(Foucault, 1999, p. 97)
Assim, a história da saúde pública remonta ao modelo fisicalista, bioló-
gico e organicista típico da racionalidade científica moderna, onde o modelo da
normalidade biológica estatística constituiu o parâmetro hegemônico de julga-
mento acerca dos limites entre saúde/doença. A saúde é, assim como a educação,
um campo problemático, complexo, onde “diferentes modalidades de discurso,
com fundamentos epistemológicos diversos e com origens históricas particula-
res” (Birman, 2005, p. 11) entram em confronto e disputa.
Uma marca característica de tal perspectiva é a dicotomização subjetivi-
dade/ambiente, a fragmentação dos saberes e a supervalorização da racionalida-
de técnica. O modelo sanitário médico, com a supervalorização da técnica em
detrimento das diferentes formas de produção de sentidos acabou por soterrar
uma pluralidade de discursos e práticas sociais em torno das questões sanitárias.
Em nome da ciência moderna vimos marginalizados diferentes segmentos so-
ciais, com a consolidação de práticas higienistas que, ao silenciarem dimensões
simbólicas e históricas na compreensão das condições de vida e saúde das po-
pulações, nos levaram a crer que não exista uma escolha, antes de tudo, política,
ideológica e ética nas práticas sanitárias. (Birman, 2005)
Numa tentativa de ruptura com a tradição naturalista e pretensamente
neutra da Saúde Pública foi que o movimento da reforma sanitária, não somente
no Brasil, mas em toda a América Latina, coincidente com as lutas populares por
abertura democrática, favoreceu a emergência de um novo campo de saberes da

126
saúde – não mais da massa informe da população, mas das singularidades cul-
turais, políticas, sociais e econômicas que compõem as sociedades: o campo da
Saúde Coletiva. Desse modo, o campo de saberes da Saúde Coletiva, gestado nas
lutas populares das décadas de 70 e 80 no país, buscou problematizar as concep-
ções e práticas da Saúde Pública, questionando a hegemonia dos discursos bio-
lógicos e incluindo as dimensões ética, estética e política na discussão sobre as
condições de saúde da população, além de buscar ultrapassar a fragmentação dos
saberes em especialismos técnico-científicos. Nessa esteira, a oposição subjetivi-
dade/ambiente será fortemente questionada, buscando-se constituir um campo
de saberes complexos, onde ecologias ambientais, políticas e subjetivas precisam
ser pensadas indissociavelmente (Guattari, 2005), com importantes repercussões
sobre o conceito de saúde.
A reforma sanitária implicou a luta não apenas por uma nova organiza-
ção dos poderes sobre a saúde enquanto política social, sua defesa como direito
de cidadania, como também uma reformulação na própria concepção de saúde,
tributária das epistemologias positivistas, do mecanicismo técnico-científico e
da razão de Estado investidora dos saberes biomédicos. De modo que
o lema “Saúde, direito de cidadania, dever do Estado”, implica
uma visão desmedicalizada da saúde, na medida em que suben-
tende uma definição afirmativa (positiva), diferente da visão
tradicional, típica das instituições médicas, que identifica saúde
com ausência relativa de doença (Luz, 1991, p. 88).

O que se colocou em cena na segunda metade do século XX, no âmbito


das questões de saúde, foi uma profunda redefinição do fenômeno saúde/doen-
ça, implicando um questionamento radical das epistemologias que sustentam
sua compreensão.
No contexto dessa nova definição, a noção de saúde tende a ser
socialmente percebida como efeito real de um conjunto de con-
dições coletivas de existência, como expressão ativa - e partici-
pativa -do exercício de direitos de cidadania, entre os quais o
direito ao trabalho, ao salário justo, à participação nas decisões e
gestões de políticas institucionais etc. Assim, a sociedade tem a
possibilidade de superar politicamente a compreensão, até então
vigente ou socialmente dominante, da saúde como um estado
biológico abstrato de normalidade (ou de ausência de patolo-
gia). (Luz, 1991, p. 88)

A psicanálise, por sua vez, nascida na aurora do século XX, não passa ao

127
largo de tais movimentos. Isso se deve
ao fato de a psicanálise freudiana ter sido construída nos mol-
des de uma ciência natural e Freud não ter jamais abandonado
a ideia de assentar as suas descobertas na biologia, tendo manti-
do com essa ciência, em muitos aspectos da teoria, um vínculo
estreito (Dias, 2002, p. 136).

Apesar de reconhecer e reverenciar o mérito de Freud ao superar as hi-


póteses organicistas da psiquiatria de sua época e as posições ambientalistas dos
psicólogos acadêmicos, Winnicott tem clareza das bases epistemológicas do pen-
samento freudiano e as aponta com nitidez, encaminhando sua posição diferen-
cial em relação a este.
Freud aí lida com a natureza humana em termos de economia,
simplificando deliberadamente o problema, com o propósito de
estabelecer uma formulação teórica. Existe um determinismo
implícito em todo esse trabalho, a premissa de que a natureza
humana pode ser examinada objetivamente e que podem ser
a ela aplicadas as leis conhecidas em física (Winnicott, 1983,
p. 20).

É justamente esse determinismo biológico, pressuposto por uma economia


pulsional presente no pensamento teórico freudiano, que Winnicott recusará, ao
optar por assentar sua psicanálise na experiência clínica direta, distanciando-
se dos modelos metapsicológicos. A abertura fenomenológica do psicanalista
inglês permitiu-lhe aproximar-se de uma concepção de saúde bastante sintônica
com as formulações do campo da saúde coletiva, afastando-se dos fundamentos
mecanicistas e funcionalistas da tradição psicanalítica.
[...] é preciso admitir o fato de que o clima da pesquisa neu-
rológica no final do século XIX induzia Freud a conceituar a
psique humana e seu funcionamento nos moldes da máquina;
daí as suas teorias do aparelho psíquico, das catexias energéti-
cas e das estruturas intrapsíquicas através das quais ele figurou,
diagramaticamente, o ego, o id e o superego; e mais, o esquema
topográfico do consciente, do pré-consciente e do inconsciente
(Khan, 2000, p. 41).
É no contexto de uma crítica às bases funcionalistas e às pretensões
metafísicas da psicanálise que Winnicott formula sua singular concepção
de saúde, na qual o que está em jogo, fundamentalmente, é o sentimento de
continuidade da existência como viver criativo sustentado pelo ambiente, e não

128
a equilibração de forças pulsionais. Pautado por uma ampla experiência clínica
com crianças em situação de extrema vulnerabilidade e em meio aos psiquiatras
de seu tempo, Winnicott, um pediatra de formação,
fez de perto a experiência da inadequação de se pensar a saú-
de e a doença em termos puramente organicistas. Ele parece ter
sido, muito cedo, despertado para o fato de que a saúde, e mais
do que a saúde, o sentir-se vivo, não pode resumir-se ao bom
funcionamento dos órgãos e das funções, e que separar o físico
do psíquico é um procedimento intelectualmente possível, mas
altamente artificial. (Dias, 2002, p. 112)
Sua concepção de saúde está muito próxima da concepção de normativi-
dade oriunda do pensamento de Georges Canguilhem, importante referência no
campo da Saúde Coletiva. Para Winnicott a saúde consiste na condição singular
de existência, onde se pode afirmar um modo particular de enfrentar as adver-
sidades e viver criativamente. A saúde consiste em sentir-se vivo, real e capaz de
gestualidade espontânea. Com esse horizonte a normatividade enquanto valor
existencial ultrapassa o valor na normalidade como padrão estatístico. Além dis-
so, uma contemporaneidade os aproxima.
Resistindo cada um por seu lado durante a Segunda Guerra
Mundial, Donald Woods Winnicott e Georges Canguilhem ja-
mais se encontraram efetivamente. Enquanto o psicanalista agia
para proteger crianças em abrigos antiaéreos ou participava dos
debates sobre a criança na sociedade britânica de psicanálise, o
filósofo lutava nos subterrâneos da resistência e preocupava-se
com o conceito jurídico de norma e com as doenças da humani-
dade (Estellita-Lins, 2007, p. 384).
A definição de normatividade em Canguilhem (2006) aponta na direção
de uma valoração singular da experiência feita por cada organismo vivo, segun-
do a qual a vida ganha um valor próprio, não redutível aos padrões sociais da
normalidade. Essa potência normativa de cada organismo vivo consiste na sua
potência de saúde, condição de adaptação e recriação das normas ante as contin-
gências que se lhe apresentam. Para Canguilhem,
a vida não é indiferente às condições nas quais ela é possível, [...]
a vida é, de fato, uma atividade normativa. Em filosofia, entende-
se por normativo qualquer julgamento que aprecie ou qualifique
um fato em relação a uma norma, mas essa forma de julgamento
está subordinada, no fundo, àquele que institui as normas. No
pleno sentido da palavra, normativo é o que institui as normas
(Canguilhem, 2006, p. 86).

129
É com Canguilhem e Foucault que encontraremos no âmbito da saúde
coletiva a possibilidade de pensar a saúde como valor existencial e não apenas
como valor estatístico. Trata-se de reconectar a existência humana ao seu caráter
ético-estético, devolvendo-lhe a potência criativa e agonística de construir-se a si
própria, no jogo árduo e interminável de sua própria ultrapassagem. “Tanto para
Canguilhem como para Foucault o limite entre o normal e o patológico se torna
impreciso, e só quem deveria determiná-lo é aquele que vive a experiência de
uma vida” (Ramminger, 2008, p. 89). Assim,
alguém se torna doente somente em relação a si mesmo, e não
em relação a uma média ou a alguma frequência estatística, ou
a algum comportamento esperado socialmente. O doente sente
sua potência diminuída em relação a si mesmo, e é isto que
deveria ser o ponto de ancoragem das práticas de saúde (Ram-
minger, 2008, p. 90).
Tal perspectiva coaduna com as formulações da psicanálise pós-meta-
física de Winnicott, na qual o “cuidado” aparece como condição da saúde, para
além da terapêutica hermenêutica ou estruturalista. Antes de tudo, trata-se de
um modo de estar junto, de acompanhar, de existir-com-o-outro, sustentando
sua capacidade imaginativa de novos mundos e novas formas de vida. Nesse sen-
tido, o cuidar aparece como intervenção terapêutica e, normal e patológico – no-
ções científicas modernas – dão lugar à saúde e doença, noções comuns, como
experiências existenciais.
Com Winnicott a questão do tratamento psicanalítico recebe um
novo alento e novos ares. A reflexão sobre o cuidado materno
abre caminho para uma ruptura com a ideia consagrada de que
os efeitos terapêuticos da psicanálise consistem na intervenção
interpretativa (hermenêutica ou estruturalista). A prática psica-
nalítica desde Freud consagra o ato psicanalítico como seu pa-
drão-ouro. No lugar de uma interpretação que desata, ilumina,
reorganiza, ressignifica, escande ou pontua, Winnicott concebe
um processo intensivo e inesgotável, crescendo por justaposição
e tecido na continuidade – trata-se do cuidar como intervenção
terapêutica (Estellita-Lins, 2007, pp. 382-383).
É nesse sentido que as contribuições da psicanálise de Winnicott abrem
um promissor horizonte para pensar a articulação entre ambiente e saúde na cul-
tura atual. O mal-estar contemporâneo responde, como vimos na seção anterior,
ao sentimento crônico de desconfiança que marca nossas relações num mundo
desamparado pela falência das grandes concepções metafísicas. Entretanto, tal

130
desamparo não pode significar uma ruptura completa com a tradição, mas uma
abertura para sua recriação e para o embate com o problema crucial da continui-
dade da existência, ao modo como Heidegger pensou seu próprio tempo.
Desde seu encontro com Hölderlin e Nietzsche, Heidegger foi
dominado praticamente pela ideia de superação da metafísica.
Mas isto não deveria significar uma ruptura com a tradição mas
sim um tomar a si a tarefa do pensamento que ela nos impõe
(Stein, 1997, p. 60).
No plano social, os problemas com a “segurança ontológica” têm conse-
quências bastante importantes. Vê-se a emergência de uma forte angústia exis-
tencial, um sinal de alerta que, não raro, se torna contínuo por sobre os senti-
mentos crônicos de vazio. Observamos, igualmente, movimentos individuais e
coletivos de entrega indefesa (melancólica) e /ou triunfante (maníaca) ao “in-
certo” e ao “desconectado”; “de tais movimentos – e na lista vamos do unsafe sex
e da promiscuidade aos esportes radicais” – esperam-se, ao que parece, efeitos
excitantes, mas no fundo jaz a questão da desconfiança, aqui colocada “de forma
paradoxal: confiar-se ao não-confiável como modo de se defender – pela via da
negação – da desconfiança básica” insuportável num ambiente sem sustentação.
(Figueiredo, 2007, p. 84) Além disso, podemos nos reportar a outros sintomas
sociais que desafiam as políticas e práticas da saúde e da educação no mundo
atual: a epidemia dos comportamentos adictos e compulsivos, situados na mes-
ma esteira daquilo que se dá além do princípio de prazer.
Finalmente, a apatia, a “falta de apetite existencial”, a pouca dis-
posição para os investimentos afetivos que podem tornar a vida
mais vibrante e ‘encantada’, dão testemunho da mesma descon-
fiança básica. No caso, essa desconfiança se traduz em uma ati-
tude acomodada e conservadora (Figueiredo, 2007, p.85).
Enfim, estamos diante de um quadro onde a
desproporção entre excitação e continência se alastra, fazendo
da desconfiança um dos ingredientes básicos do mal-estar con-
temporâneo e produzindo [...] uma série de movimentos psí-
quicos: alguns serão as manifestações da própria desconfiança,
enquanto outros figuram como defesas contra ela (Figueiredo,
2007, p. 85).
Desse modo, os velhos e ainda inescapáveis temas da saúde “pública” dão
lugar a uma preocupação com a saúde como evento coletivo, envolto em toda a
rede de sentidos e afetos que lhe constituem. Para além da gestão biopolítica da

131
normalidade populacional, a discussão da saúde coletiva abre-se aos temas do
mal-estar na atualidade, hoje assumido como condição subjetiva e cultural bá-
sica de desamparo e desengajamento. Assim, pensar a produção de saúde numa
perspectiva pós-metafísica não implica recair num individualismo estético exa-
cerbado que abomina toda e qualquer forma de projeto coletivo. Antes, implica
recriar as condições ambientais, sobretudo as condições de vida nas grandes ci-
dades, para que uma imaginação criativa de outros modos de vida e uma potên-
cia de normatividade possam emergir.
Trata-se de recriar o próprio papel do Estado, assumido como garanti-
dor da res-pública, favorecedor do espaço da ação política, e não apenas como
gerente biopolítico das “liberdades” individuais. Numa instigante aproximação
entre o pensamento de Foucault e Winnicott, com aquilo que compartilham de
uma vontade criativa dos modos de vida, Mizrahi (2010) aponta na direção dessa
necessária reconstrução do papel do Estado na contemporaneidade.
Nesse sentido, podemos entender que o Estado Social não foi
apenas um mero instrumento de controle e apropriação das
forças vitais, mas também ofereceu, aqui e ali, um certo lugar
para a sua manifestação criativa: ajustou-se a certas reivindica-
ções compartilhadas, permitindo aquele interjogo transicional
no qual a objetividade das coisas é parcialmente alterada pela
ação dos sujeitos. Ao mesmo tempo, ofereceu estabilidade sufi-
ciente para que as pessoas exercessem sua capacidade crítica na
política sem medo de abandono ou retaliação. É esse o quadro
que hoje se desfaz, deixando o sujeito, muitas vezes, temeroso
demais quanto ao próprio lugar para que arrisque o gesto espon-
tâneo (Mizrahi, 2010, p. 201).

E quando falamos de recriação das funções do Estado, referimo-nos ao


jogo inesgotável de recriação humana de suas instituições, historicamente reféns
da técnica e da racionalidade burocrática. A saúde e a educação são, em grande
medida, locus privilegiados para pensar a reinvenção das práticas e dos modos
de existir e conviver. Isso implica, entretanto, o reconhecimento da materiali-
dade dos processos envolvidos, para além de qualquer pretensão metafísica. As
práticas sociais em saúde e educação são produzidas por nós, gente de carne e
osso, em meio às agruras de um mundo em desalento. O que poderá a Educação
diante disso?

132
Educação ético-estética

Assim como a saúde pública, a educação na Modernidade é tributária


do projeto de autonomia humana, característico da Ilustração. A modernidade
se define, basicamente, pelo advento da razão esclarecida, instituída em movi-
mentos culturais, políticos e intelectuais desde o século XVI. Nessa esteira, a
razão ilustrada pretendeu-se ordem e medida de todas as coisas e trabalhou pela
consumação de uma forma “oficial” de constituição da verdade, assegurada pelos
princípios da técnica: a Ciência. A ciência moderna, por sua vez, corolária da
duplicação empírico-racionalista do sujeito (Foucault, 2002), torna-se a política
privilegiada de produção das verdades, funcionando a partir daí como a princi-
pal agência de produção dos saberes. Indicar a razão instrumental como marca
predominante da modernidade, implica referir-se à sua impregnação pelo sonho
da Aufklärung, do esclarecimento que permite melhor governar.
Curiosa e ironicamente, o projeto da Ilustração viu-se subsumido ao im-
pério da técnica, a serviço da expansão capitalista.
Daí o formidável e incessante desenvolvimento da técnica preso
ao crescimento econômico e largamente financiado por ele. Daí
também o fato de que o aumento do poder dos homens sobre o
mundo tornou-se um processo absolutamente automático, in-
controlável e até mesmo cego, já que ultrapassa asa vontades in-
dividuais conscientes. É simplesmente o resultado inevitável da
competição. Neste ponto, contrariamente às Luzes e à filosofia
do século XVIII que, como vimos, visavam à emancipação e à
felicidade dos homens, a técnica é realmente um processo sem
propósito, desprovido de qualquer espécie de objetivo definido:
na pior das hipóteses, ninguém mais sabe para onde o mundo
nos leva, pois ele é mecanicamente produzido pela competição
e não é de modo algum dirigido pela consciência dos homens
agrupados coletivamente em torno de um projeto, no seio de
uma sociedade que, ainda no século passado, podia se chamar
res publica, república, etimologicamente negócio ou causa co-
mum (Ferry, 2007, p. 247).
Diante de uma crise generalizada dos fundamentos metafísicos sobre os
quais repousavam as mais estimadas crenças educacionais da civilização ociden-
tal, a Educação se vê forçada a reinventar suas práticas, encontrando justificativa
não mais nas pretensões civilizatórias universalizantes, mas nas próprias urgên-
cias de um mundo cada vez mais desafiador, onde crescem o individualismo e a
falta de sentido existencial coletivo.

133
Para tanto, precisamos considerar as novas oportunidades de
continência e de ligação que esse mesmo regime social engen-
dra. Isso requer observação não preconceituosa e pesquisa. No-
vas subjetividades e novas formas de existência social, novos
dispositivos de estimulação e de continência – e não apenas
`novas patologias´ – precisam ser conhecidos e considerados
(Figueiredo, 2007, p. 85).
Abdicar dos fundamentos metafísicos que até então orientavam o projeto
emancipatório do homem moderno, entretanto, não deverá servir como uma
carta de alforria para toda e qualquer exigência de rigor ético, validade coletiva e
definição programática. Na educação, especialmente, a necessidade de continuar
pensando, tensionados por todas as mudanças da racionalidade, muito antes de
ser um exercício tranquilizador e sereno, é um trabalho árduo de tentar conciliar
a necessária justificação da ação educativa com um mundo onde os ideais me-
tafísicos de liberdade e emancipação já não encontram bases políticas e sociais
para sua sustentação. A possibilidade de liberdade ou criatividade existencial que
se nos oferece se dá na condição de prática agonística, na relação com os outros
e em meio às contingências.
Essa dimensão francamente ético-estética da existência e dos projetos
educacionais, no entanto, não pode prescindir de um horizonte existencial co-
mum, sob pena de recairmos num exacerbado e vazio esteticismo.
A perspectiva do homem tornar-se criador de leis e costumes,
ao produzir esteticamente um estilo de vida, traz em si uma
tensão constitutiva: por um lado, requer a ideia de construção
e originalidade e com frequência também oposição às regras
morais, e por outro lado, requer também uma abertura a um
horizonte de significados, uma forma de vínculo social (caso
contrário, a autocriação recairia no individualismo exacerbado).
O reconhecimento dessa tensão é condição necessária para
não permanecermos no exagero da moralidade abstrata ou do
esteticismo superficial (Hermann, 2005, p. 110).
É nesse sentido que queremos pensar a necessária construção de práticas
educativas ético-estéticas, onde os limites entre crise ambiental, sanitária e
educacional sejam definitivamente borrados, para dar lugar à saúde e à educação
como práticas ecosóficas (Guattari, 2005). E isso implica, necessariamente, uma
nova forma de conceber o valor do ambiente-mundo, o sem fundo de onde emer-
gimos como consciência e seres de linguagem, para o que contribui de modo
bastante fértil o pensamento de Donald Winnicott.

134
O reconhecimento da necessidade de um ambiente que, por um
lado, resista com estabilidade às expressões de vitalidade do in-
divíduo e, por outro, se deixe transformar por seus gestos nos
permite pensar de outra forma as instituições sociais (Mizrahi,
2010, p. 204).
Na perspectiva psicanalítica ora sustentada, vemo-nos diante do desafio
de empreender transfigurações de nossas formas institucionais, dando margem
a novas práticas e saberes. Assim, a
constância e a permanência [das instituições] não necessaria-
mente congelam a criatividade, mas podem servir-lhe de base e
sustentação. Com isso, estamos mais livres para pensar as políti-
cas sociais sem temermos, em princípio, a sua transformação em
práticas que desconsiderem a singularidade, a fluidez e a multi-
plicidade da vida (Mizrahi, 2010, p. 204).
O trabalho do qual a educação não se pode furtar é o do efetivo exer-
cício do pensamento ante a falência de nossos consolos metafísicos, mas num
mundo onde o reconhecimento do rosto do outro é nossa própria condição de
existência. Já em 1931 Heidegger comenta que a superação da metafísica inclui a
consumação da metafísica e esta não implica qualquer retorno a Kant ou Goethe,
Platão ou Aristóteles.
Mas um compreender daquilo que hoje é. No seu encontro com
Nietzsche esta tarefa da superação da metafísica se tornou um
desafio para pensar de modo radical que toda metafísica deveria
ser questionada e, com isto, também a ciência e mesmo o con-
ceito de verdade (Stein, 1997, p. 60-61).
Tal perspectiva não implica, contudo, um desconhecimento do horizonte
de vida humana comum. Nossa condição de ser-no-mundo nos obriga à inalie-
nável tarefa de enfrentar-nos com o olhar do outro, em suas distâncias e diferen-
ças.
A defesa da autonomia da criação do eu como se fosse a autono-
mia da criação artística, que não tem nenhuma finalidade exceto
ela mesma, resulta num processo de estetização que projeta um
ideal de vida, mas que exclui a relação com o outro. (Hermann,
2008, p. 26)
Em termos winnicottianos, a continuidade de nossa existência depende
diretamente de condições ambientais favoráveis, sustentadoras, capazes de exci-
tar e conter nosso impulso vital. Tais condições, no entanto, não estão garantidas
a priori, mas se constroem, isto sim, no jogo entre estados de integração e não-
-integração perpétuos, onde a diferença e a familiaridade são termos inextorquí-

135
veis de uma mesma e insolúvel equação.
Com a relevância dada por Winnicott ao ambiente e sua com-
preensão a respeito de suas funções de facilitação, o autor não
nos deixa mais confundir o sofrimento solitário do sujeito em
sua doença com o viver criativo e afirmativo. Este último sim
desponta como resistência, mas é ao mesmo tempo sempre de-
pendente da presença, nem sempre possível, de um outro aco-
lhedor (Mizrahi, 2010, p. 131).

Os desafios de uma educação em tempos pós-metafísicos nos faz reen-


contrar o próprio dilema da continuidade do ser em um mundo despedaçado.
Restamos nós, uns aos outros, como possibilidade de afirmar novas formas de
vida e novos horizontes para continuidade da vida no planeta.
Uma educação ético-estética apoiada em estratégias da arte de
viver, como atenção aos casos particulares, às emoções e à sabe-
doria prática, pode, como anunciado no início desse texto, es-
clarecer a relação recíproca entre o universal e o particular. Evita
uma orientação puramente abstrata, sem abandonar princípios
universais, pois a educação pressupõe um processo de inserção
num mundo compartilhado de valores e crenças, sem o qual
qualquer dialética entre individualização e socialização estaria
condenada ao fracasso. E atua como limite a uma estética de si
mesmo que, centrada apenas em critérios individuais, pode esti-
mular a indiferença, o egoísmo e a frivolidade (Hermann, 2008,
p. 26).
Em tempos de universalização do acesso à educação e à saúde, assumidas
como direito do cidadão e dever do Estado, estas se apresentam como importan-
tes agências de transformação dos nossos modos de existir. Isso se tratarmos as
práticas educativas e sanitárias como dispositivos potentes para o desmonte dos
clichês existenciais contemporâneos e abertura para a afirmação das singulari-
dades humanas. É nestes termos que o estudo sobre ambiente, saúde e educação
constitui um sentido comum, fortemente imbricado, que nos dá um horizonte
e um alento. O encontro com a perspectiva pós-metafísica de Winnicott é, tam-
bém, uma forma de dar futuro à própria psicanálise em tempos de desconfiança
quanto às possibilidades humanas de imaginar e recriar-se coletivamente. Ofe-
recer-se ao outro como ambiente sustentador e encontrar nele uma ancoragem
minimamente duradoura para o nosso gesto espontâneo, no que mais poderia
consistir a saúde e a educação, como práticas de liberdade, na tórrida paisagem
do capitalismo contemporâneo?

136
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138
Autores

Ana Rosa Detílio Monaco


Psicóloga. Especialista em Psicoterapia Breve Psicodinâmica pelo Instituto Pau-
lista de Psicologia Estudos Sociais e Pesquisa. Docente do Curso de Psicologia
da Universidade São Marcos. Psicóloga Hospitalar do Centro de Referência de
Saúde da Mulher - Hospital Pérola Byington. Psicóloga do Centro de centro de
Reprodução Humana FERTIVITRO - SP.

Andrea Rapoport
Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Mestre
em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul; Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Espe-
cialização em Terapia cognitivo-comportamental em andamento pela Wainer &
Piccoloto Centro de Psicoterapia cognitivo-comportamental. Docente do Curso
de Psicologia do Unilasalle/Canoas/RS e do Curso de Pedagogia do Cesuca Fa-
culdade Inedi.

Cleber Gibbon Ratto


Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS); Psicólogo pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). Atual-
mente é pesquisador e coordenador adjunto do Mestrado em Educação do Uni-
lasalle/Canoas/RS e docente do Curso de Psicologia.

Daniela Riva Knauth


Graduada em Ciências Sociais, Mestrado em Antropologia Social pela Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorado em Etnologia e Antropologia
Social - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Professora associada do
Departamento de Medicina Social da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, atuando também como docente e orientadora no Programa de Pós-Gradua-
ção em Antropologia Social e no Programa de Pós-Graduação em Epidemiolo-
gia.

139
Denise Quaresma da Silva
Pós-doutora em Estudos de Gênero (UCES, Argentina) e doutora em Educa-
ção (UFRGS, Brasil). Professora do Programa de Mestrado em Educação, do
Curso de Psicologia e pesquisadora do Centro Universitário Unilasalle, Ca-
noas, Rio Grande do Sul, Brasil. Professora da Universidade Feevale, Brasil.
Psicanalista Membro do Círculo Psicanalítico RS.

Eduardo Pandolfi Passos


Professor adjunto do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Universi-
dade Federal Rio Grande do Sul. Chefe do Setor de Reprodução Assistida do
Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do HCPA. Diretor da SEGIR.(Serviço de
Ecografia, Genética e Reprodução Humana), Doutor em Medicina.

Gisleine Verlang Lourenço


Psicóloga. Mestre em Ciências Médicas pela Universidade Federal do rio Grande
do Sul. UFRGS. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica pelo ESIPP Estudos
Integrados em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica. Professora da graduação
do UNILASALLE/Canoas . Pesquisadora do Serviço de Ginecologia e Obsterícia
do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

José Roberto Goldim


Biólogo. Doutor em Medicina. Professor de Bioética da UFRGS e da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS.

Julio Cesar Walz


Psicólogo. Psicanalista. Professor do curso de Psicologia da Unilasalle. Professor
do Mestrado em Saúde e Desenvolvimento Humano Unilasalle. Pesquisador do
INCT em Medicina. Pós doutor em Ciências Médicas - Psiquiatria (UFRGS).
Doutor em Ciências Médicas - Psiquiatria (UFRGS). Mestre em PSicologia So-
cial (UFRGS). Autor dos livros: O sentimento de Culpa e Aprendendo a Lidar
com os Medos:A Arte de cuidar das crianças.

140
Lúcia Belina Rech Godinho
Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Psicó-
loga pela Universidade de Caxias do Sul. Especialista em Psicoterapia de Orien-
tação Psicanalítica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Colaboradora na
Pesquisa “Processo da Psicoterapia Psicanalítica de Crianças” - Linha de Pesqui-
sa Infância e Adolescência - Unisinos. Docente dos Cursos de Psicopedagogia e
Psicologia do Unilasalle/Canoas/RS.

Luciane Marques Raupp


Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre em
Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS); Psicóloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Atualmente é docente do curso de Psicologia no Centro Universitário Unilasalle
e do curso de Psicologa do Centro Universitário UNIVATES .

Luiz Eduardo T Albuquerque


Pós Graduação “Lato Sensu” em Ginecologia pela Santa Casa de Misericórdia do
Rio de Janeiro - RJ. Título de Especialista em Ginecologia e Obstetrícia (TEGO)
pela FEBRASCO. Especialista em Reprodução Humana pelo Instituto Dexeus -
Barcelona - Espanha. Membro da American Society of Reproductive Medicine
- USA. Membro da European Society of Human Reproductive and Embriology
- Belgica. Mestre em Ginecologia pela Universidade Federal de São Paulo - UNI-
FESP. Diretor do centro de Reprodução Humana FERTIVITRO - SP.

Maria Lucia Tiellet Nunes


Psicóloga, Mestrado em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba
e doutorado em Psicologia Tratamento e Prevenção pela Freie Universität Ber-
lin(1989). Professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul e 2ª Vice-presidente dasASBRo do Associação Brasileira de Rorschach e
Métodos Projetivos.

141
Prisla Ücker Calvetti
Doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul. Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS. Residência Integrada em Saú-
de Coletiva com ênfase em Projetos Assistenciais em Dermatologia Sanitária.
Especialista em Terapia Cognitiva-comportamental pela Wainer & Piccolotto –
Centro de Psicoterapia Cognitiva-comportamental. Psicóloga pela PUCRS. Do-
cente do Curso de Psicologia e Pesquisadora do Mestrado Saúde e Desenvolvi-
mento Humano do Unilasalle.

Sabrina Boeira da Silva


Graduada do Curso de Pedagogia do Cesuca Faculdade Inedi. 

142

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