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N495 Neuropsicologia forense [recurso eletrónico] /Organizadores,

Antonio de Pádua Serafim, Fabiana Saffi. - Porto Alegre: Artmed, 2015.


ISBN 978-85-8271-182-8
CDU 159.91:612.8

Aspectos históricos da
neuropsicologia clínica e
forense

ANTONIO DE PÁDUA SERAFIM


ÉVERTON DUARTE
MARIA FERNANDA F. ACHÁ

O fato de que tuna ação violenta possa não ter relação com tuna
disfunção cerebral e a possibilidade de que urna alegação de amnésia
seja apenas uma simulação de déficit cognitivo visando a explicar UD1
desvio de dinheiro são exemplos de contextos da interface entre a
saúde mental e a justiça. A investigação do funcionamento cerebral e
da expressão do comportamento faz parte de um contexto de
questionamentos que aproxima, ao longo da história, a psicologia, a
neurologia e, mais recentemente, a neuropsicologia. Essa aproximação
se deu no fim do século XIX, na Alemanha, a partir da obra
Princípios da psicologia fisiológica, de Wundt, estabelecendo um
conceito que perdurou por muito tempo e que dizia respeito ao corpo
de pesquisas realizadas em laboratório (Kristensen, Almeida,
&Gomes, 2001).
O percurso histórico do surgimento da neuropsicologia tem início com
os estudos dos antigos egípcios, que, embora acreditassem que o
coração e o diafragma fossem os centros vitais, já faziam intenções a
alterações comportamentais resultantes de lesões no crânio.

Platão (428 a.C.) descreveu a medula como uma das partes mais
importantes do corpo, considerando-a urna extensão do cérebro,
Alcmeón de Crotona, 110 século V, na Grécia Antiga, julgava que o
cérebro era o órgão responsável pela sensação e pelo pensamento,
afirmando que, para cada sensação, havia uma localização específica
no cérebro (Feinberg & Farah, 1997). Um século depois, Hipócrates
ressaltava que o cérebro era responsável, pela inteligência, pela
sensação e pela emoção, e dissociava os quadros epilépticos das
possessões demoníacas. Já Galeno (129 d.C.) explicava que a
sensação era a mudança qualitativa de um órgão dos sentidos, e a
percepção se configurava como o estado de consciência dessa
mudança (Kristensen et al., 2001).
A partir do século XVIII, o estudo entre mente e cérebro se
desenvolve escapo das Localizações. Inicia-se um processo de
identificar regiões cerebrais com determinadas funções. Nesse recorte
da história, podemos destacar as explicações de David Hartley, em
1777, que já apontava que a base da sensação e do movimento era a
substancia branca do cérebro e do cerebelo. Essa descrição preconiza
as concepções localizacionistas, intensamente difundidas no século
XIX.

Franz Josef Gall (século XIX) estabeleceu a diferença entre a estância


branca e a cinzenta, descrevendo a ligação dos quadros de afasia com
lesões de lobo frontal. Gall identificou 27 faculdades humanas
relacionadas a áreas cerebrais, criando, assim, a teoria geral da
localização cerebral, ou frenología (Brett, 1953).

Embora os conceitos localizacionistas tenham perdurado por todo o


século XIX, em 1820, Flourens contradiz as concepções de Gall,
ressaltando que o cérebro funcionava como um todo e não dependia
de uma única região ou área específica (Walsh, 1994). As
conceituações de Flourens acerca do funcionamento cerebral integrado
podem ser consideradas como o início das concepções
associacionistas, que discorrem sobre urna organização cerebral
hierarquicamente organizada e interativa. Paul Broca, na metade do
século XIX, descreve o quadro clínico de um paciente que apresentava
perda da capacidade da fala em função de urna lesão na região frontal
do hemisfério esquerdo, corroborando a dificuldade em pronunciar
palavras, embora mantivesse preservada a compreensão dos
significados. As descrições de Broca sobre os centros cerebrais da
linguagem foram observadas paralelamente por Wernicke, que, urna
década mais tarde, apresentou casos de pacientes com lesões no terço
posterior do giro temporal superior esquerdo. Embora tais pacientes
não apresentassem alterações na fala expressiva, as lesões resultavam
na perda da capacidade de compreendê-la (Benedet, 1986).
A neuropsicologia, assim, é de fato reconhecida nos meados do século
XX, com os trabalhos de Alexander Romanovich Luria, que
desenvolveu diversas técnicas para estudar o comportamento dos
indivíduos acometidos por lesões cerebrais (Crawford, Parker, &
McKinlay, 1994). Para Luria (1981), o sistema nervoso central, além
da organização em rede, participa de forma ativa na regulação das
funções superiores (percepção, memória, gnosias, praxias), visto que
essas funções se organizam como sistemas complexos, resultado
de urna ação e interação dinâmica de diversas regiões cerebrais
interligadas entre si. Autores mais recentes, como Gil (2002,
p.l ), definem a neuropsicologia como

. . . o estudo dos distúrbios cognitivos


e emocionais, bern corno o estudo dos
distúrbios de personalidade provocados
por lesões do cérebro, que é o órgáo
do pensamento e, portanto,
a sede da consciencia.

O que rege esse dinamismo cerebral é a integração entre unidades


cerebrais funcionais (Tab. 1.1). Luria (1981) elaborou a teoria do
sistema funcional, fazendo urna revisão dos termos "função"
"localização" e "sintoma" O termo "função" foi substituído
por "sistema funcional", que se refere a um conjunto de áreas que
trabalham juntas para desempenhar um objetivo final.

TABELA 1.1
Unidades cerebraís funcionais
Fonte: Luria (1981).

UNIDADE 1
Responsável por programar, regular
e verificar a atividade mental.
Composta pelas partes anteriores
do cérebro (lobo frontal).
UNIDADE 11
Responsável por receber, processar
e armazenar as inforrnacóes.
Compéiese
das partes posteriores
do cérebro (lobo parietal, occipital
e tempora ll.
UNIDADE 111
Responsável por regular o tónus
cortical, a vigilia e os estados
mentais. É composta pela forma9ao
reticular e pelo tronco
encefálico.

As contribuições de Luria (1981) acerca das três unidades funcionais


não só representaram um modelo para o entendimento do
funcionamento cerebral como também colaboraram para o
desenvolvimento de mecanismos de avaliação das possíveis
disfunções cerebrais. Entre os instrumentos para investigar tais
alterações, destaca-se a avaliação neuropsicológica. Segundo Lezak,
Howieson e Loring (2006), essa técnica é uma importante ferramenta
para a compreensão da relação entre cérebro e comportamento e das
consequências psicossociais de urna possível lesão ou disfunção
cerebral.
A avaliação neuropsicológica tem como objetivo estudar a expressão
das disfunções cerebrais sobre o comportamento, podendo essas
disfunções resultar de lesões ou doenças degenerativas, ou ligar-se
a quadros psiquiátricos e doenças que têm a disfunção neurológica
como resultado secundário, sem que esta possa ser detectada
por meio de exames clínicos, uma vez que o tecido cortical não está
comprometido.
A avaliação é realizada por testes organizados em baterias que
fornecem informações diagnósticas e permitem confirmar - ou não - as
hipóteses iniciais sobre o paciente. A partir dos resultados do exame
Neuropsicológico é possível delimitar quais funções cerebrais estão
afetadas e quais estão preservadas (Groth-Marnat, 2000).
Nesse contexto, a análise neuropsicológica fornece urna lente através
da qual podem ser observadas a natureza e a dinâmica dos processos
cognitivos e afetívo-emocíonais em sua relação com o cérebro.
Ainda segundo Lezak e colaboradores (2006), o processo de
investigação neuropsicológica engloba a função cerebral inferida
a partir da manifestação do comportamento. As principais
manifestações comportamentais que sugerem a necessidade de
uma avaliação neuropsicológica podem ser organizadas em três
grupos distintos (Tab. 1.2).

TABELA 1.2
Principais quadros que sugerem a necessidade de
avaliação neuropsicológica

PESSOAS COM LESÃO CEREBRAL CONHECIDA


Doenças
• Traumatismos crânio-encefálicos
• Hidrocefalia
• Doença de Alzheimer
• Doença de Parkinson
• Esclerose múltipla

PESSOAS COM FATOR DE RISCO PARA LESÃO OU DISFUNÇÃO


CEREBRAL
Nestes quadros, as andanças de comportamento podem ser sintomas de
uma determinada patologia
• Endocrinopatias
• Alterações metabólicas
• Doenças renais
• Entre outras

SUSPEITA DE DOENÇA OU TRAUMATISMO CEREBRAL


Baseando-se na observação de urna mudança de comportamento da
pessoa, sem uma etiologia identificável
• A pessoa não tem fatores de risco conhecidos para lesão cerebral
• O diagnóstico é considerado a partir da exclusão de outros diagnósticos
• São pessoas sem história neurológica ou psiquiátrica

De certa maneira, com base em Lezak e colaboradores (2006), os


déficits cognitivos podem ocorrer em quatro diferentes funções:
Esses apontamentos convergem com as notificações de vários autores
quanto a ampliação da aplicação da avaliação neuropsicológica nos
últimos anos, relacionados principalmente ao córtex pré-frontal
e as funções executivas (Müller, Baker, & Yeung, 2013).
Para Müller e colaboradores (2013), a relevância do estudo do córtex
pré-frontal se dá em função de ele ocupar cerca de um terço da massa
total do córtex, além de manter relações múltiplas majoritariamente
recíprocas com inúmeras outras estruturas encefálicas, como conex6es
com regiões de associação dos córtices parietal, temporal e occipital,
bem como com diversas estruturas subcorticais, em especial o tálamo,
além de conter as únicas representações corticais de informações
provenientes do sistema límbico.
Os instrumentos neuropsicológicos, portanto, se configuram como
ferramentas cujo objetivo é avaliar um conjunto de habilidades
e competências cognitivas como atenção, memória, linguagem,
funções executivas, aprendizagem, praxia construtiva e potencial
intelectual, seja no contexto clínico, seja no forense.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os conceitos localizacionistas, a priori, não devem ser considerados


como ideias ou concepções simplesmente descartáveis. O pensamento
"localizacionista" possibilitou, ao longo da história, a construção das
bases da neuropsicologia no campo das neurociências, visto que seu
debate deu lugar, gradativamente, a concepção de uma organização
do sistema nervoso central pautada no funcionamento integrado das
várias regiões cerebrais.
Considerar as descrições de David Hartley, Gall, Flourens, Broca,
Wernicke e Luria representa traçar a linha da construção de uma
ciência focada na investigação do funcionamento mais elementar
ao funcionamento mais complexo do sistema nervoso central
peculiar as neurociências.
Não se discute que a utilização da avaliação neuropsicológica é
capaz de colaborar para a compreensão da conduta humana,
seja ela delituosa ou não, no escopo da participação das instancias
biológica, psíquica, social e cultural como moduladoras
da expressão do comportamento. Além disso, examinadores
forenses em geral concordam quanto ao crescimento da avaliação
neuropsicológica e suas contribuições para o processo judicial.
Sua consolidação e seu reconhecimento na prática forense se
constroem por um processo temporal contínuo fundamentado por
meio de estudos, da pesquisa científica e de urna conduta
humanitária e ética na busca do fator nexo causal de determinado
fenômeno. O desenvolvimento de pesquisas nessa área ainda
precisa ser ampliado, assim como a estruturação de centros
formadores de neuropsicólogos forenses.

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