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DOI: 10.1590/1413-81232023286.

14022022 1703

As práticas profissionais realizadas em situações de maus-tratos

revisão review
infantis: uma revisão integrativa

Professional practices in situations of child abuse: an integrative


review

Beyle Pereira da Silva (https://orcid.org/0000-0002-1601-4437) 1


Denise de Camargo (https://orcid.org/0000-0001-9092-9988) 1

Abstract Child abuse is a problem that affects Resumo A violência infantil é um problema que
children all over the world. The present study afeta crianças no mundo todo. O presente estu-
therefore aimed to identify and analyze the do objetiva identificar e analisar os principais
main findings relating to professional practices resultados apresentados em artigos publicados
for dealing with situations of child maltreatment no Brasil sobre as práticas profissionais desenvol-
in articles published in Brazil. To this end, we vidas em situações de maus-tratos infantis. Para
conducted an integrative literature review of ar- tanto, realizou-se uma revisão integrativa da li-
ticles published between 2017 and 2022 based teratura, com buscas nas bases de dados Google
on searches of the following databases: Google Acadêmico, no SciELO Brasil, nos Periódicos da
Scholar, SciELO Brasil, the periodicals database Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
of the Agency for the Improvement of Higher Ed- Nível Superior do Ministério da Educação (CA-
ucation Personnel (CAPES), MEDLINE, the Vir- PES/MEC), no MEDLARS ONLINE (Medline),
tual Health Library, and Electronic Journals in na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS Saúde) e
Psychology (PePSIC). A total of 24 publications nos Periódicos Eletrônicos em Psicologia (Pepsic),
were selected for the review after screening the abrangendo publicações de 2017 a 2022. Após
titles and abstracts. The findings reveal several a leitura dos títulos e resumos, 24 artigos foram
challenges to ensuring the protection of children selecionados para a análise. Os resultados apon-
caused by shortcomings in professional training, tam a dificuldade na proteção integral da criança
which have a negative influence on the identifi- devido à deficiência na formação do profissional,
cation and reporting of child maltreatment. The que influencia na identificação e notificação do
present study reveals the lack of priority given to abuso infantil. O presente estudo revela o lugar
the issue of child maltreatment in professional que os maus-tratos infantis ocupam na formação
training and provides important inputs to inform dos profissionais e subsidia pesquisas futuras so-
future research on professional practices for deal- bre práticas profissionais para o enfrentamento
ing with child violence. da violência infantil.
Key words Violence against children, Profession- Palavras-chave Violência infantil, Práticas pro-
al practices, Child protection, Mandated report- fissionais, Proteção da criança, Notificação obri-
1
Universidade Tuiuti do
Paraná. R. Wilsom Gomes ing, Integrative review gatória, Revisão integrativa
Ramos 120, 401, bloco
3, Abranches. 82.220-
510. Curitiba PR Brasil.
beylesilva@outlook.com
1704
Silva BP, Camargo D

Introdução forma ou reproduz um padrão existente. Uma


prática é a expressão de uma rede formada por
Os maus-tratos infantis (MTI) caracterizam-se ações, motivações, desejos, resistências, discur-
pelo uso da força ou do poder por parte dos pais sos e significados próprios do indivíduo15. Assim,
e profissionais responsáveis pelos cuidados da o estudo da prática produz importantes conheci-
criança. Há, de um lado, a transgressão no uso do mentos sobre como os profissionais reconhecem,
poder e do dever de proteção de um adulto, e de produzem e formulam as cenas e regulamentos
outro uma deslegitimação do direito da criança, que compõem o cotidiano de atuação16.
que se torna um objeto nas mãos daqueles que No Brasil, a maioria dos estudos sobre MTI
deveriam cuidar e proteger1. foca na categorização e descrição dos tipos de
O que torna a violência infantil uma situação violência, nos procedimentos realizados e nas
delicada é o fato de que as crianças são vulnerá- instituições responsáveis pela proteção infantil,
veis, apresentando pouca possibilidade de de- apontando para uma escassez de pesquisas qua-
fesa e um alto nível de dependência emocional litativas que abordem práticas de intervenção no
e física de adultos2,3. A violência é uma prática enfrentamento da violência1,14. Nunes et al.3 con-
universal que atinge crianças no mundo todo, duziram um estudo para traçar o perfil do tipo de
independentemente do nível sócio-econômico3, violência, vítima, agressor e local da violência no
sendo que, de acordo com dados do Fundo das contexto brasileiro.
Nações Unidas para a Infância (UNICEF)4, mais No que diz respeito às revisões abrangen-
de 1 bilhão de crianças e adolescentes, em todo o do práticas profissionais e os MTI, é possível
mundo, entre 2 e 14 anos são vítimas de violên- constatar uma carência na produção científica
cia, sofrendo consequências duradouras por toda brasileira. Maia et al.17 apresentaram uma revi-
a vida. No Brasil, em 2019, o Disque 1005 recebeu são integrativa de práticas em situações de vio-
86.837 denúncias de abuso infantil, envolvendo a lência praticadas por profissionais da atenção
negligência (38%), a violência psicológica (23%) domiciliar com crianças, idosos e mulheres. Rosa
e a violência física (21%). et al.18 abordam as condutas de cirurgiões-den-
Isso é preocupante, visto que a exposição à tistas diante dos MTI, identificando a falta de
violência gera danos físicos e psicológicos na in- parâmetros dos profissionais para intervir. Nes-
fância e na fase adulta, como o desenvolvimento te contexto, Wyzykowski et al.19 concluíram que
de depressão, agressividade, ansiedade, dificulda- fragilidades na formação do enfermeiro tornam
des no convívio social e aprendizagem6. Hillis et deficitário o atendimento da violência infantil.
al.7 indicam que a vivência da violência na infân- Diante da complexidade dos MTI, o enfren-
cia pode gerar alterações cerebrais e no sistema tamento de tal problemática depende da inter-
metabólico, mudanças na imunidade e produzir relação de diferentes instituições e profissionais
respostas inflamatórias no indivíduo. atuando em prol do fortalecimento de uma rede
No Brasil, a Constituição8 tornou-se um ins- capaz de proteger e garantir os direitos da crian-
trumento de proteção à criança, ao reconhecê-la ça2,6. O presente artigo contribui para a compre-
como sujeito de direitos9. No mesmo sentido, o ensão das práticas de distintos campos de atua-
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)10 ção ao responder à indagação: “Como as práticas
prevê a construção de uma rede destinada à profissionais em situações de maus-tratos infantis
proteção integral da criança11 e estabelece como são abordadas no contexto brasileiro?” O objeti-
obrigatória, por parte dos profissionais da saúde vo do trabalho foi identificar e analisar os princi-
e da educação, a comunicação dos MTI ao con- pais resultados presentes em artigos publicados
selho tutelar. no Brasil relacionados às práticas profissionais
Nesse contexto, a atuação de profissionais ca- desenvolvidas em diferentes campos de atuação
pacitados e sensibilizados para identificar e inter- diante de situações de maus-tratos infantis.
vir em situações de violência infantil é essencial
para garantir a proteção integral e minimizar o
sofrimento da criança12,13. No entanto, pesquisas Método
apontam que nem sempre as práticas dos profis-
sionais envolvidos no cuidado e na educação de Tipo de estudo
crianças são voltadas para a proteção e o enfren-
tamento dos MTI6,13,14. A revisão integrativa é um método que inte-
Entende-se a prática como um conceito pro- gra estudos empíricos ou teóricos com o objetivo
cessual, em que um indivíduo ativamente trans- de compreender de forma abrangente um dado
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fenômeno, traçando uma análise do conheci- c) ter como público-alvo da pesquisa crianças,
mento já construído em pesquisas anteriores e na faixa etária de 0 a 12 anos incompletos; d) a
apontando novos rumos17,20. disponibilidade do artigo na íntegra online ou
para download em qualquer idioma; e) o artigo
Coleta de dados ter sido revisado por pares; e f) artigos publica-
dos nos últimos seis anos (2017 a 2022). Foram
A pesquisa foi realizada a partir de um pro- excluídas da seleção as pesquisas desenvolvidas
tocolo que consiste em etapas da revisão inte- fora do contexto brasileiro, com crianças e ado-
grativa20. Primeiramente, identificou-se o tema lescentes em conjunto, com a temática da vio-
e definiu-se o problema que nortearia os demais lência entre crianças ou focados nos reflexos dos
passos. MTI na vida adulta. Na sequência foram excluí-
Para a segunda etapa da pesquisa, foram dos os artigos duplicados.
utilizadas as recomendações do Statement for A partir da leitura dos resumos de cada ar-
Reporting Systematic Reviewsand MetaAnaly- tigo, foram buscados dados de identificação dos
ses of Studies, mais conhecida como Checklist artigos, tais como título, autoria, ano, periódico
PRISMA, que prevê uma relação de 27 itens e de de publicação, tipo de artigo e região do Brasil
etapas que auxiliam na construção das revisões em que a pesquisa foi produzida.
sistemáticas21.
Em seguida, buscou-se por descritores em Análise e tratamento dos dados
Ciências de Saúde (DeCS/MeSH) presentes no
site https://decs.bvsalud.org/ para identificar as A caracterização dos estudos ocorreu após a
palavras-chave adequadas à pesquisa. As pala- leitura integral, contemplando os seguintes as-
vras-chave são instrumentos úteis na pesquisa, pectos: objetivo da pesquisa, amostra, principais
por permitirem a identificação do termo corre- resultados, temáticas dos artigos relacionadas à
to para indexar o artigo e as buscas em bases de atuação dos profissionais com os MTI. A leitura
dados22. integral permitiu a extração de informações e a
Assim, determinou-se como palavras-chave: formulação de categorias, buscando a compara-
Maus-tratos infantis; Intervenção; Prevenção; ção entre os estudos e a identificação de similari-
Práticas profissionais, que foram associados aos dades e diferenças23, utilizando-se como recurso o
operadores booleanos AND e OR. Primeiramen- Microsoft Excel e o software Atlas TI (Versão 7.3).
te, utilizou-se o termo Maus-tratos infantis asso- Por fim, foram discutidas as informações co-
ciado ao operador booleano OR Child abuse para letadas nos artigos e apresentados os resultados
contemplar um campo de busca mais abrangen- obtidos, seguidos de uma apreciação qualitativa
te, para posteriormente associar a palavra-chave dos estudos e uma síntese da literatura.
maus-tratos infantis ao operador booleano AND
aos outros termos.
A seleção dos artigos foi efetuada em bases de Resultados
dados que publicam de forma multidisciplinar,
como Google Acadêmico, SciELO Brasil e Peri- Na primeira etapa, foram buscados artigos rela-
ódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de cionados à temática abordada publicados entre
Pessoal de Nível Superior do Ministério da Edu- os anos de 2017 e 2022, contabilizando 40.146
cação (CAPES/MEC), e naquelas voltadas espe- artigos, divididos por Google Acadêmico (n =
cificamente à área da saúde, como MEDLARS 34.919), SciELO Brasil (n = 66), Periódicos CA-
ONLINE (Medline), Biblioteca Virtual em Saúde PES/MEC (n = 3.034), Medline (n = 1.571), BVS
(BVS Saúde) e Periódicos Eletrônicos em Psico- Saúde (n = 523) e Pepsic (n = 33). Após a leitura
logia (Pepsic). A busca dos artigos ocorreu de do título, foram selecionados 254 artigos, destes,
agosto de 2021 a outubro de 2022. 71 eram duplicados, 21 tratavam de uma temáti-
Em uma primeira etapa, os artigos foram se- ca fora da área de interesse e 58 eram de acesso
lecionados a partir da leitura do título. Na etapa indisponível.
seguinte, realizou-se a leitura dos resumos de Após a leitura do resumo dos artigos, foram
cada artigo, aplicando como critérios de inclusão: selecionados inicialmente 104, no entanto, após a
a) a temática central do estudo ser MTI associada aplicação dos critérios de inclusão, apenas 24 fo-
à alguma prática profissional (identificação, noti- ram selecionados para a análise integral. O pro-
ficação, encaminhamentos, atendimentos, inter- cesso de seleção dos artigos consta em detalhes
venções); b) pesquisas desenvolvidas no Brasil; na Figura 1.
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Silva BP, Camargo D

Registros identificados nas bases de dados


(n= 40.146 artigos)

Identificação
Google Acadêmico Scielo Brasil Capes Periódicos Medline BVS Saúde Pepsic
(n=34.919) (n=66) (n=3.034) (n=1.571) (n=523) (n=33)

71 duplicados

Artigos selecionados após a leitura do


Seleção

21 fora da temática
título Excluídos
(n=254)
58 de acesso indisponível
Elegibilidade

Artigos selecionados para a leitura do 80 artigos que não atenderam aos


resumo Excluídos critérios de inclusão
(n=104 artigos)

Artigos selecionados para a leitura integral


(n=24 artigos)
Inclusão

Google Acadêmico Scielo Brasil Capes Periódicos Medline BVS Saúde Pepsic
(n=4) (n=5) (n=6) (n=1) (n=8) (n=0)

Figura 1. Fluxograma de seleção dos artigos.

Fonte: Autoras.

Caracterização dos artigos gos25,31-38, dois envolvendo as regiões Sul e Su-


deste29,39. A região Norte publicou apenas dois
A caracterização dos 24 artigos ocorreu a artigos40,41.
partir da compilação de informações de identifi- As pesquisas foram conduzidas nas áreas de
cação, que foram reunidas no Quadro 1. Entre os educação, saúde, segurança pública, serviço so-
artigos selecionados, o maior número de publi- cial e rede de proteção à criança. A área da saúde
cações foi em 2019, contabilizando seis artigos, e apresentou o maior número de pesquisas, com 12
o menor número foi em 2022, com apenas dois. artigos24,27-31,39,41-45 e dois realizados em conjunção
As publicações ocorreram em diferentes pe- com o serviço social32,35, enquanto as áreas de
riódicos nacionais e internacionais, sendo que a educação36 e segurança pública38 publicaram tive-
Revista Ciência & Saúde Coletiva publicou cin- ram apenas um artigo cada.
co artigos24-28 e a Revista Abeno somou três arti-
gos29-31. Entre os publicados pela Ciência & Saú- Categorias temáticas
de Coletiva, três estudos foram realizados com
profissionais de saúde que atuavam com crian- As similaridades entre os estudos são apre-
ças24,27,28, a Revista Abeno publicou dois estudos sentadas a partir das seguintes categorias: a) fato-
com graduandos de odontologia29,30 e um com res associados à identificação e à notificação dos
cirurgiões-dentistas31. maus-tratos infantis; b) dificuldades na atuação;
A região Sul do Brasil apresentou o maior e c) deficiências na formação do profissional.
número de publicações, totalizando nove arti-
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Quadro 1. Caracterização dos artigos.
Nº Autoria/Ano/Periódico Título Amostra Objetivo
01 Silva Junior GB, Rolim Identificação e notificação 227 médicos Analisar os fatores associados
ACA, Moreira GAR, de maus-tratos em à identificação e notificação
Corrêa CRS, Vieira crianças e adolescentes de maus-tratos em crianças e
LJES. por médicos de família o adolescentes no exercício da
2017 Ceará prática de médicos que atuam
Trab Educ Saude na atenção primária.
02 Apostólico MR, Egry EY, Acurácia de diagnósticos 26 enfermeiros Identificar os diagnósticos de
Fornari LF, Gessner R. de enfermagem para enfermagem atribuídos a uma
2017 o enfrentamento da situação hipotética de violência
Rev Esc Enferm USP violência doméstica doméstica infantil e os
infantil respectivos graus de acurácia.
03 Schek G, Silva MRS, Organização das práticas 15 profissionais Analisar, com base no discurso
Lacharité C, Bueno profissionais frente à dos serviços dos profissionais, como ocorre
MEM. violência intrafamiliar sociais e saúde a organização de suas práticas
2017 contra crianças e frente às situações de violência
Rev Lat Am Enferm adolescentes no contexto intrafamiliar contra crianças e
institucional adolescentes.
04 Hohendorff JV, Patias Violência sexual contra Não se aplica Descrever o (s) conceito (s)
ND, N. D. crianças e adolescentes: na pesquisa de violência sexual contra
2017 identificação, - Artigo de crianças e adolescentes, suas
Rev Barbarói consequência e indicações revisão narrativa consequências e indicações de
de manejo manejo.
05 Egry EY, Apostólico MR, Notificação da violência 25 profissionais Analisar os fluxos de proteção
Morais TC. infantil, fluxos de atenção de saúde à violência contra a criança, no
2018 e processo de trabalho dos que concerne à notificação e às
Cien Saude Colet profissionais da atenção decisões encaminhadas.
primária em saúde
06 Platt VB, Back IC, Violência sexual contra Não se aplica Identificar características do
Hauschild DB, Guedert crianças: autores, vítimas e na pesquisa - abuso sexual contra crianças,
JM. consequências Artigo de análise como perfil da vítima, do
2018 documental autor da agressão e fatores
Cien Saude Colet associados, notificadas em um
serviço de referência.
07 Silva PA, Lunardi VL, Protection of children 12 profissionais Conhecer os obstáculos
Meucci RD, Algeri S. and adolescents victims de um CREAS enfrentados pelos profissionais
2018 of violence: the views para atuação em rede e desafios
Invest Educ Enferm of the professionals of a da atuação dos profissionais no
specialized service CREAS de um município do
extremo sul do Brasil.
08 Busato CA, Pereira TCR, Maus-tratos infantis na 363 estudantes Verificar o conhecimento de
Guaré RO. perspectiva de acadêmicos do curso de estudantes de Odontologia
2018 de Odontologia odontologia de em relação aos maus-tratos na
Rev Abeno instituições de infância e adolescência.
ensino superior
09 Ferreira CLS, Côrtes Promoção dos direitos da Não se aplica Caracterizar o perfil das
MCJW, Gontijo ED. criança e prevenção dos crianças vítimas de violência
2019 maus tratos infantis doméstica e de seus agressores
Cien Saude Colet e avaliar a eficácia das
intervenções judiciais
10 Martins-Júnior PA, Abuso físico de crianças 62 profissionais Avaliar se os profissionais de
Ribeiro DC, Peruch e adolescentes: os de saúde saúde percebem e denunciam
GSO, Paiva SM, profissionais de saúde o abuso físico em crianças/
Marques LS, Ramos- percebem e denunciam adolescentes.
Jorge MLR.
2019
Cien Saude Colet
continua
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Silva BP, Camargo D

Quadro 1. Caracterização dos artigos.


Nº Autoria/Ano/Periódico Título Amostra Objetivo
11 Santos LF, Costa MM, Fatores que interferem 16 profissionais Apresentar perspectivas de
Javae ACRS, Mutti CF, no enfrentamento da atuantes em conselheiros tutelares sobre a
Pacheco LR. violência infantil por conselhos atuação nos casos de violência
2019 conselheiros tutelares tutelares contra a criança.
Saude Debate
12 Silva PA, Lunardi VL, (In) visibilidade das 10 profissionais Conhecer a percepção dos
Meucci RD, Algeri S, notificações de violência atuantes na rede profissionais de saúde,
Silva MP, Franciscatto contra crianças e de atendimento educação e serviço social
FP. adolescentes registradas à crianças e acerca dos registros e
2019 em um município do sul adolescentes notificações de violência
Invest Educ Enferm do Brasil vítimas de contra crianças e adolescentes,
violência realizadas em um município do
sul do Brasil.
13 Costa AP, Tinoco RLR. Maus-tratos infantis no 200 estudantes Avaliar se o currículo dos
2019 currículo dos cursos de do curso de cursos de Odontologia
Rev Abeno Odontologia do Rio de Odontologia do Rio de Janeiro fornece
Janeiro conhecimento e preparo
suficiente para os acadêmicos
acerca dos maus-tratos infantis.
14 Cota ALS, Queiroz Conduta do cirurgião- Não se aplica Orientar os cirurgiões-
AMC, Remígio MMCJ, dentista frente à suspeita na pesquisa dentistas na identificação
Reis DA, Kabengele DC. de maus-tratos contra - Artigo e denúncia de maus-tratos
2019 crianças e adolescentes de revisão contra crianças e adolescentes.
J Health Sci integrativa
15 Guimarães APA, Conhecimento de 2 professoras Analisar o conhecimento de
Machado L, Ormeño, educadoras a respeito da educação educadoras a respeito dos
GIR. dos maus-tratos infantis: infantil maus-tratos infantis.
2020 identificação e notificação
Rev Dialogia de casos
16 Trindade AA, Efetivação da Lei Menino Verificar se as redes de
16 profissionais
Hohendorff JV. Bernardo pelas redes de proteção e de atendimento
da rede proteção
2020 proteção e de atendimento e atendimentoa crianças e adolescentes
Cad Saude Publica a crianças e adolescentes a crianças e em situação de risco estão
organizadas para efetivar a
adolescentes em
Lei Menino Bernardo (Lei nº
situação de risco
13.010/2014).
17 Costa VS, Aguiar RS. Percepção da equipe Não se aplica Conhecer a percepção da
2020 multidisciplinar acerca na pesquisa – equipe multidisciplinar acerca
Res Soc Dev dos cuidados à criança e artigo de revisão dos cuidados prestados à
ao adolescente vítima de integrativa criança e ao adolescente vítima
violência de violência.
18 Corrêa F, Hohendorff JV. Atuação da delegacia de 10 profissionais Compreender as ações de uma
2020 proteção à criança e ao de uma delegacia de proteção à criança
Estud Pesq Psicol adolescente em casos de delegacia e ao adolescente frente a casos
violência sexual de violência sexual.
19 Batista MKB, Quirino Debatendo a violência 62 profissionais Aproximar os profissionais das
TRL. contra crianças na saúde de saúde equipes de Saúde da Família
2020 da família: reflexões a das discussões sobre a violência
Saude Soc partir de uma proposta de contra crianças, de modo a
intervenção em saúde viabilizar a construção de
estratégias de enfrentamento.
20 Demarco GT, Silva- Conhecimentos e atitudes 45 cirurgiões- Identificar e analisar os
Júnior IF, Azevedo MS. de cirurgiões dentistas da dentistas conhecimentos e atitudes dos
2021 rede pública de Pelotas- cirurgiões-dentistas da rede
Rev Abeno RS frente aos maus-tratos pública de Pelotas-RS frente
infantis aos maus-tratos infantis.
continua
1709

Ciência & Saúde Coletiva, 28(6):1703-1715, 2023


Quadro 1. Caracterização dos artigos.
Nº Autoria/Ano/Periódico Título Amostra Objetivo
21 Marques DO, Monteiro Violência contra crianças 215 profissionais Analisar a atuação dos
KS, Santos CS, Oliveira e adolescentes: Atuação da de enfermagem profissionais de Enfermagem
NF. enfermagem da Estratégia Saúde da
2021 Família sobre a identificação
Rev Enferm UFPE e notificação dos casos de
violência contra crianças e
adolescentes.
22 Nunes LS, Silva-Oliveira Prevalence of recognition 181 dentistas da Investigar a prevalência de
F, Mattos FF, Maia FBF, and reporting of child Estratégia Saúde identificação e de notificação
Ferreira EF, Zarzar physical abuse by dental da Família do abuso físico infantil e
PMPA surgeons and associated fatores associados por dentistas
2021 factors da atenção primária.
Cien Saude Colet
23 Ricks L, Tuttle M, Ellison Child Abuse Reporting: 303 conselheiros Examinar o conhecimento
SE. Understanding Factors tutelares dos conselheiros tutelares
2022 Impacting Veteran School veteranos sobre procedimentos
The Professional Counselors e experiências com denúncias
Counselor de abuso infantil.
24 Rios EB, Rodrigues GS, Conhecimento dos 62 cirurgiões- Avaliar o conhecimento dos
Rocha SA, Oliveira LFB. cirurgiões dentistas que dentistas cirurgiões-dentistas que
2022 atuam em unidades de Atenção atuam nas Estratégias Saúde
Rev APS básicas de saúde frente Primária à da Família do município de
aos abusos e maus-tratos Saúde (APS) Montes Claros - MG, frente aos
infantis abusos e maus-tratos infantis.
Fonte: Autoras.

Fatores associados à identificação dos45 indica que os profissionais ignoram à qual


e notificação dos maus-tratos infantis instituição podem recorrer nos casos de MTI.
O processo de identificação e a notificação Os estudos24,29,44 reportam que, quando os
da suspeita ou confirmação dos MTI surgem MTI são diagnosticados, o profissional faz a
como temática central nos artigos. No entanto, N.O., reconhecendo sua importância para a pro-
os estudos analisados27,28,30,39,42,43,46 revelam que a teção da criança e a resolução da situação. Em
maioria dos profissionais não se mostra capaz e/ contrapartida, muitos desvalorizam a N.O. por
ou capacitado para identificar a violência infan- estarem descrentes de que tal intervenção seja
til, apresentando dificuldades no diagnóstico por capaz de ajudar a vítima, como presente em al-
falta de informações teóricas sobre a temática e guns artigos30,34,35.
pouco conhecimento acerca da criança, seu his- Por vezes, os profissionais não fazem a N.O.
tórico e relações familiares. Por outro lado, dois por medo de represálias dos familiares, do agres-
estudos41,43 apontam que predomina no diagnós- sor e da comunidade, ou por medo de prejudicar
tico dos profissionais a identificação da violência a vítima, tendo em vista que após a N.O. a criança
física e sexual. pode permanecer em contato com o agressor por
Constatado o abuso infantil, surge para o falta de intervenção36,43,46.
profissional a dificuldade de fazer a notificação
obrigatória (N.O.) da violência ao conselho tute- Dificuldades na atuação
lar. Mesmo quando os profissionais reconhecem O atendimento da criança vítima de MTI é
os MTI, a maioria demonstrou desconhecimento um campo de atuação complexo. Nesse contexto,
sobre a N.O., de como efetuar o preenchimento obstáculos podem surgir na prática, como a falta
correto ou outros encaminhamentos possíveis de comunicação entre os profissionais34 e a falta
para a vítima25,28,31,42,43. Além disso, um dos estu- de recursos humanos e materiais, que dificultam
1710
Silva BP, Camargo D

a realização de um atendimento adequado, como disciplinar. Os estudos24,26,27,33,34,40 apontam que


acontece com a ausência de um sistema informa- a proteção da vítima é realizada por uma rede
tizado nos conselhos tutelares, tornando a inter- de profissionais, mas a atuação é fragmentada,
venção mais lenta, pouco efetiva e com restrições dificultando a continuidade de intervenções e a
de acompanhamento40. resolução da situação, indicando a urgência do
O atendimento dos MTI é impactante para fortalecimento de um trabalho interdisciplinar.
os profissionais. Os estudos analisados indicam Além disso, um dos estudos28 traz a necessidade
que os profissionais vivenciam sentimentos de ir- de incluir na formação do profissional da saúde
ritabilidade, adoecimento, impotência e pressão a abordagem desta como conceito integrado e
diante dos casos32,38,40, vendo-se como incapazes amplo, possibilitando uma atuação profissional
de atender e proteger a vítima34. Nesse contexto, articulada a outros serviços e instituições de
a presença de redes de apoio ao profissional pode atendimento.
ser um fator positivo para a melhoria da inter- A ausência de um protocolo de ações ou
venção no abuso infantil46. um documento orientador que direcione um
Além disso, as práticas profissionais podem fluxo de atendimento à criança vítima de MTI
se basear em relações de poder, nas quais o pro- também surge como debilidade na atuação pro-
fissional não se vê como responsável por intervir fissional35,44,46,47. Porém, mesmo quando há um
ou fazer a N.O.32,36, restringindo-se ao repasse da protocolo de atendimento, os profissionais não
situação a outros profissionais, tornando o traba- aplicam as orientações24, não observam as previ-
lho fragmentado e ineficaz32. sões legais31,37 e criam um fluxo próprio dentro
das instituições.
Deficiências na formação do profissional
De maneira geral, os artigos apresentaram
como deficiência a formação dos profissionais e Discussão
a ausência de capacitação contínua sobre os MTI,
sendo que dos 24 artigos analisados, 20 citaram O objetivo desta pesquisa foi identificar e analisar
esse tópico. A deficiência na formação do profis- os principais resultados presentes em artigos pu-
sional se inicia na graduação, pois a temática dos blicados no Brasil relacionados às práticas pro-
MTI é desvalorizada e muitas vezes não é previs- fissionais desenvolvidas em diferentes campos de
ta nos currículos dos cursos28,29,31,33,42,45. atuação diante dos maus-tratos infantis. A análi-
Em alguns casos os profissionais podem se dos artigos trouxe que as práticas profissionais
receber a formação na graduação, mas não se diante da violência infantil são vistas principal-
veem como responsáveis pela identificação e mente pelo viés da área da saúde, contabilizando
notificação dos MTI, como constatado em dois o maior número de publicações.
estudos30,31. Por outro lado, apenas a inclusão do O ECA10 prevê como dever dos profissionais
abuso infantil nos currículos dos cursos da gra- da saúde e da educação a comunicação dos casos
duação e pós-graduação não garante uma con- de MTI. Diante disso, o alto número de publica-
duta profissional adequada. Isso porque, mesmo ções demonstra que o profissional de saúde busca
quando o profissional recebe capacitação e sente- uma compreensão mais ampla sobre os MTI e o
se apto a identificar a violência infantil, ele não processo de intervenção. No entanto, a produção
sabe o que fazer e como agir31,45. de artigos sobre o tema na área da educação pode
Três estudos25,28,34 apontam a necessidade de indicar uma fragilidade no olhar destes profissio-
capacitação contínua devido à complexidade na nais.
atuação com crianças vítimas de violência, sendo Dornelles et al.48 apontam que hospitais e
que, uma das pesquisas28 cita a formação especia- instituições de atenção primária da saúde são os
lizada na área da infância e a experiência no aten- que fazem o maior número de notificações. Mes-
dimento de crianças como elemento facilitador mo assim, muitos profissionais não sabem qual
na identificação e notificação da violência. A for- procedimento seguir ante os MTI e não fazem a
mação do profissional deve ser suficiente para que N.O., fortalecendo a subnotificação6,14,18.
ele conheça os protocolos de identificação dos ti- A maioria dos artigos pesquisados aborda o
pos de violência e esteja apto a comunicar a vio- abuso infantil de maneira geral24,26,29-32,34-36,39-47,
lência e encaminhar a situação, utilizando-se dos sem especificar o tipo de violência, sendo que,
meios necessários para proteger a vítima, como entre os que especificaram, predominaram as
conclui a maioria dos estudos24-28,34,36,38,39,42,44,46,47. violências física27,28,37 e sexual25,33,38. A literatura
Além disso, a formação do profissional é aponta que mesmo os MTI se dividindo em vio-
frágil ao abordar a atuação em rede e/ou multi- lências física, psicológica, sexual, institucional e
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negligência14,49, os profissionais têm olhar e co- experiência pode gerar insegurança no profis-
nhecimento diferenciado sobre a violência física sional, que adia o diagnóstico e a denúncia da
por deixar marcas visíveis no corpo da vítima ou violência e faz com que ele busque respaldo em
por causar o sentimento de repugnância, como colegas de nível hierárquico superior ou mais
ocorre na violência sexual, o que acaba impac- experientes. Do mesmo modo, Tiyyagura et al.53
tando os profissionais emocionalmente2. também identificam como barreiras na prática
As pesquisas científicas identificam as meni- profissional a incerteza na detecção dos MTI e o
nas como as principais vítimas de violência se- medo de notificarem uma violência sem ter cer-
xual2, como constatado em alguns estudos ana- teza.
lisados25,33. Pesquisadores indicam que, apesar Para Maia et al.17, é a partir do diagnóstico
de a violência física ser facilmente identificada, correto que o profissional decidirá estratégias e
ela também é vista como instrumento dos pais encaminhamentos adequados diante da violên-
na educação e disciplina dos filhos, tornando-se cia. Isso porque a comunicação dos MTI por
uma prática socialmente aceita e muitas vezes meio da N.O. permite a articulação de ações em
subnotificada2,50. prol da criança10.
No que se refere à negligência, predomina Apesar de tal obrigatoriedade, os profissio-
o desconhecimento entre os profissionais sobre nais desconhecem a N.O., dado que muitas vezes
esse tipo de violência, como demonstrado em um o preenchimento se apresenta incorreto ou in-
dos estudos29, em que os profissionais reconhe- completo, comprometendo não só a intervenção
ceram somente as violências física, psicológica, a vítima, mas a caracterização da violência e a
sexual e o abandono. Sobre isso, a literatura cien- construção de estratégias de enfrentamento2,14. É
tífica define a negligência como o tipo de MTI relevante citar que o registro e a notificação dos
menos reconhecido ou valorizado pelos profis- MTI surgem, em alguns estudos analisados35,41,43,
sionais2,48. como uma prática desconhecida ou pouco usual
Os artigos demonstram que a deficiência na na rotina dos profissionais, ou ainda que a N.O. é
formação e na capacitação contínua dos profis- inacessível aos profissionais no local de trabalho,
sionais é uma fragilidade no combate aos MTI. inviabilizando qualquer possibilidade de comu-
Isso foi constatado em alguns estudos anali- nicação da violência, como presente em um dos
sados29,31,42,45, ao apontarem que a maioria dos estudos42.
profissionais não receberam treinamentos ou in- Somando-se a isso, por vezes o profissional
formações sobre os MTI durante a formação aca- não se vê como integrante da rede de proteção à
dêmica. Sobre isso, Nilchian et al.51 corroboram criança ao desresponsabilizar-se pela intervenção
tal informação ao apresentarem dados de uma e ao repassar a informação para outro profissio-
pesquisa realizada na Coréia, em que as enfer- nal, omitindo-se em relação ao preenchimento
meiras com nível de conhecimento adequado da da N.O.6,18 Isso acontece no caso dos cirurgiões-
violência infantil alcançaram níveis mais altos de dentistas e enfermeiros que atribuem a tomada
detecção e notificação. de decisão e a atitude ao médico, por não se ve-
A fragilidade na formação apresenta-se na rem como responsáveis pela notificação da vio-
dificuldade dos profissionais em identificar os lência, como concluem dois artigos31,32.
tipos de violência, no reconhecimento do Con- Ressalta-se que o ECA10, no artigo 83, prevê
selho Tutelar e de suas funções na proteção in- uma política de atendimento à criança denomi-
fantil, indicando a necessidade de abordar o tema nada de Sistema de Garantia de Direitos, que deve
nos cursos de graduação e formação continuada, ser efetivado por meio de um conjunto articula-
como apontado nos estudos29,30,39,45. Um dos arti- do de ações governamentais e não-governamen-
gos36 identificou que o curso de Pedagogia falha tais, envolvendo a atuação em rede de diferentes
ao abordar a violência em geral, pois não con- atores em prol da promoção, defesa e atendimen-
templa no currículo os maus-tratos infantis e a to da criança 9. Desse modo, a proteção à criança
violência contra a mulher, o idoso e a pessoa com se dá pelos serviços da educação, saúde, assistên-
deficiência. cia social, segurança pública e justiça, que atuam
Entre os outros fatores identificados como de forma planejada e intencional10,14. No entan-
instrumentos de detecção dos MTI estão a for- to, chama atenção o fato de que, entre os artigos
mação complementar especializada na área da analisados, apenas um se desenvolveu na área da
infância e o nível de experiência do profissional educação36, um na segurança pública38 e nenhum
no atendimento à criança, como referido em um na área da justiça, indicando possível fragilidade
dos estudos28. Green52, afirma que a limitação de nas áreas que compõem a rede de proteção.
1712
Silva BP, Camargo D

Sobre a atuação em rede, a literatura cientí- Considerações finais


fica9,14 indica que ela ocorre de forma desarticu-
lada, fragmentada, mostrando-se ineficaz para a A presente pesquisa trouxe um olhar diferencia-
prevenção, responsabilização do agressor e pro- do para as práticas profissionais diante da violên-
teção da vítima. Nesse contexto, alguns estudos cia infantil em diferentes contextos de atuação,
analisados33,34,42 apontaram a atuação em rede tendo em vista que, apesar de a temática ser obje-
como desafio no atendimento da criança por de- to de estudo de revisões integrativas3,17-19, há, no
pender de um conjunto de ações articuladas en- contexto brasileiro, uma carência de produções
tre diferentes profissionais, sendo que a fragmen- científicas. Os resultados da pesquisa indicaram
tação entre os serviços que compõem a rede de que as práticas profissionais ante os MTI são
atendimento à criança dificulta a continuidade vistas pela lente dos profissionais da saúde, uma
de ações entre os profissionais, como mostrado vez que as outras áreas de atuação publicam de
em um dos artigos34. forma tímida, prejudicando a construção de uma
Para muitos profissionais, a rede representa atuação interdisciplinar.
uma instituição independente, responsável por A partir dos dados, constatou-se que as prá-
receber os encaminhamentos e efetivar a prote- ticas profissionais são estruturadas de maneira
ção infantil, demonstrando a fragilidade no co- fragilizada e marcadas pela deficiência. Isso indi-
nhecimento do profissional sobre o Sistema de ca que mesmo com políticas públicas8,10,49 funda-
Garantia de Direitos e seu papel na rede de pro- mentadas na proteção integral da criança, a de-
teção11. Tal desconhecimento não traz somente ficiência na formação e a falta de capacitação do
uma dificuldade prática, mas a necessidade de profissional dificultam tal efetivação. Com isso,
formação e capacitação multidisciplinar para os os profissionais que deveriam proteger a criança
profissionais, priorizando a articulação de ações não estão capacitados para identificar e notificar
voltadas à prevenção da violência e à minimiza- os MTI, favorecendo a subnotificação e a perpe-
ção dos danos causados, como concluem dois es- tuação da violência.
tudos analisados24,35. Os artigos analisados na presente revisão de-
Nesse mesmo sentido, a ausência ou o des- monstram que a maioria dos profissionais atuam
conhecimento de fluxos ou protocolos de atendi- sem um referencial teórico e prático. Isso porque
mento surgem como fragilidade na prática pro- há a falta de fluxos e/ou protocolos de atendi-
fissional, sendo que tal conhecimento pode ser mento aos MTI, ou ainda o desconhecimento
um instrumento contra a violência infantil, como ou descumprimento deles, quando existentes.
apresentado por um dos estudos47. Um dos arti- Diante disso, destaca-se a importância de pesqui-
gos analisados30 aponta que a ausência de pro- sas sobre os currículos de formação (graduação
tocolos direcionando as ações e definindo o que e pós-graduação) dos profissionais envolvidos
fazer e como abordar as situações de MTI gera nos atendimentos às crianças e de como a vio-
insegurança no profissional e a desvalorização de lência infantil tem sido abordada. É fundamen-
orientações legais. Por outro lado, a divergência tal promover investigações científicas focadas na
entre as previsões dos protocolos de atendimen- compreensão das práticas profissionais exercidas
to e a prática indica novamente a debilidade na diante da violência infantil, identificando ações
formação dos profissionais, como mostra um dos pertinentes para a construção ou o fortalecimen-
estudos analisados24. to de protocolos de atuação que sirvam como re-
Por fim, é interessante citar que um dos arti- ferencial.
gos37 considera que o enfrentamento da violência Também é essencial a realização de pesquisas
vai além de melhorias na formação profissio- sobre a percepção e a segurança dos profissionais
nal, envolvendo também o treinamento de pais para notificarem a violência, bem como de estu-
e campanhas de conscientização da sociedade. dos capazes de revelar a dinâmica da violência
Outro estudo46 traz o fortalecimento do vínculo estrutural que perpassa a sociedade brasileira e
entre pais e filhos e de ações articulando famí- suas consequências no enfrentamento dos MTI.
lias e comunidades como fatores que favorecem Seria importante, ainda, investigar o papel que a
a atuação do profissional diante da violência e a desconfiança dos profissionais em relação às ins-
proteção integral da criança. tituições protetivas e à Justiça desempenha para
contribuir com a subnotificação dos MTI.
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O presente estudo contribui para ampliar a de publicações em diferentes áreas de atuação, a
compreensão das práticas profissionais ante os pesquisa focou-se principalmente na análise de
MTI no contexto brasileiro, apontando os ele- produções na área da saúde, fator que pode ser
mentos que surgem como barreiras para a pro- um limitador, tendo em vista que os artigos es-
teção integral da criança e para o atendimento crutinados podem não representar realmente a
capaz de minimizar o sofrimento das vítimas e compreensão global sobre as práticas profissio-
suas famílias. Ressalta-se que, diante da escassez nais em situações de violência.

Colaboradores

BP Silva trabalhou na concepção, coleta, análise


e interpretação dos dados e redação do artigo. D
Camargo atuou na concepção, coleta, análise e
interpretação dos dados, redação, correção e re-
visão crítica do artigo e na aprovação da versão a
ser publicada.
1714
Silva BP, Camargo D

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