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13032017 2881
ARTIGO ARTICLE
na infância
Abstract The aim of this paper is to specify and Resumo O objetivo do artigo é problematizar
investigate the types of negligence practiced on as denominações de negligências direcionadas
families in the context of healthcare that are con- às famílias no contexto de práticas de cuidados
sidered to be insufficient or inappropriate for chil- consideradas insuficientes ou inadequadas para
dren and adolescents. These reflections are part of crianças e adolescentes. A reflexão é parte de um
a previous study that analyzed how the concept of estudo prévio que analisou como o conceito de
negligence is defined and applied in Brazilian ac- negligência é definido e aplicado nas produções
ademic studies, and indicated that a large part of acadêmicas nacionais e indicou que grande parte
the cases of negligence practiced against children dos seus casos contra crianças é atribuída à esfera
is attributed to the sphere of the family. This pres- familiar. A presente discussão busca considerar as
ent discussion seeks to consider families in their famílias em sua pluralidade. É um estudo quali-
plurality. It is a qualitative study made from an tativo, desenvolvido numa perspectiva antropoló-
interpretative anthropological point of view. The gica interpretativa. Os resultados apontam que há
results indicate that there are accusatory labels, rótulos acusatórios e omissões graves em relação
and serious omissions in relation to the configu- às configurações familiares, fatos que reforçam a
rations of families – underlining the complexity complexidade de definir uma situação como ne-
of defining a situation as negligence: families can gligência: as famílias podem reproduzir, praticar
reproduce, practice, or suffer negligence. ou sofrer negligências.
Key words Families, Children, Negligence, Child Palavras-chave Famílias, Crianças, Negligência,
negligence, Domestic violence Negligência infantil, Violência doméstica
1
Escola Nacional de
Saúde Pública, Fiocruz. R.
Leopoldo Bulhões 1480,
Manguinhos. 21041-210
Rio de Janeiro RJ Brasil.
nataliateixeira.psi@
gmail.com
2
Instituto Fernandes
Figueira, Fiocruz. Rio de
Janeiro RJ Brasil.
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Mata NT et al.
de lar, casa, moradia. Não exatamente como um Foucault12 afirma que conhecemos certos dis-
ponto de partida dessa rede, mas sim como um cursos de nossa sociedade pelo sistema de cultura.
aspecto que estabelece uma forte vinculação às A família também é vista dentro desse sistema
concepções que temos sobre família. Para Bour- cultural, fato que traduz a interferência dos seus
dieu, a casa é visceral. O autor afirma que a defi- costumes e práticas nas relações de cuidado com
nição dominante, legítima, da família normal [...] os seus filhos. Sarti5 afirma que para compreen-
apóia-se em uma constelação de palavras – casa, der o significado desses fenômenos que retratam
unidade doméstica, house, home, household – que, os valores culturais, é necessário vê-los em sua re-
sob a aparência de descrevê-la, de fato constroem a lação com as estruturas mais amplas de dominação
realidade social12. que constituem esta sociedade. A autora considera
E o que faz uma casa ser uma “casa”? Para Ya- importante o conhecimento dos hábitos, ideais
nagisako14, é uma referência na maneira como se e as crenças para o entendimento dos sentidos
classifica esse domínio de temáticas em torno da aplicados a certas problemáticas, e aqui destaca-
household e a unidade doméstica. A autora pro- mos as negligências contra crianças atribuídas a
blematiza acerca da idéia de “família universal”, sua família.
discute as definições de família e household, e, E hoje também refletimos como as modifi-
diferentemente do que vinha sendo realizado até cações políticas e socioeconômicas desencade-
então, observa os aspectos envolvidos no com- aram novas lógicas e configurações familiares.
promisso para manter essa unidade doméstica. Hillesheim et al.15 enfatizam que as famílias são
Assim, a autora chama a atenção para um siste- assim reinscritas em um regime de vigilância e re-
ma de valoração na constituição da família que gulação; neste sentido, quanto mais indefinido o
envolve o cultivo de afetos. A unidade doméstica conceito de negligência, mais ele se molda às neces-
não se refere somente ao espaço físico da mora- sidades de controle e disciplinamento dos sujeitos.
dia. A Household é feita de uma série de ativida- Assim, vale ressaltar os argumentos de Fonseca e
des: fazer e consumir a comida; reprodução se- Cardarello16 sobre as situações em que a família é
xual; cuidar das crianças. Tudo isso está de certa responsabilizada:
maneira encoberto pela marca impenetrável das A passagem do “problema sócio-econômico”
atividades “domésticas”14. para a “negligência” revela uma mudança de en-
Assim, família pode ser analisada nas relações foque na visão da infância pobre e da sua família
com gênero, parentesco, geração, sexualidade e no Brasil. Se em 1985 considerava-se que motivos
com as políticas da família que, como percebemos como “mendicância”, “maus tratos”, “desintegração
em diversos textos acadêmicos que trataram da te- familiar” e “doenças do menor” eram decorrência
mática da negligência, governam corpos e almas10. direta de “problemas sócio-econômicos”, hoje, mais
Aqui estão em jogo, ou em ameaça, os afetos como do que nunca, a família pobre, e não uma questão
elementos que atribuem valor à família. Malgrado estrutural, é culpada pela situação em que se en-
as evidências empíricas e de pesquisa que nos con- contram seus filhos. É ela que é “negligente”, mal-
firmam a diversidade de concepções de famílias, a trata as crianças, as faz mendigar, não lhes propor-
família espelhada nas políticas públicas é aquela ciona boas condições de saúde, enfim, “não se orga-
que se embasa numa concepção universal. niza”. Em suma, parece que a família pobre – e não
As discussões acerca de negligências cen- o “Poder Público” ou “a sociedade em geral” – é o
tralizam as famílias como locus de cuidados ou alvo mais fácil de represálias. Cria-se então uma
ausência dos mesmos na infância. Diante do di- situação particular em que a noção de “criança ci-
recionamento da responsabilidade com os cui- dadã” leva como complemento quase inevitável a
dados durante este período, muitas famílias são de “pais negligentes”9.
consideradas negligentes. Nascimento11 colabora Nascimento e Scheinvar10 ao discutirem sobre
com a descrição: definida pela negação, a família os equipamentos sociais de proteção à infância
negligente é considerada “culpada” por suas estra- destacam que neles se inscreve uma modalidade
tégias de sobrevivência, autuada pelo que “não fez”, do poder sustentada na disciplina; e afirmam que
por uma falta de ação no provimento das necessi- esse monitoramento é desempenhado tanto por
dades da criança. A família negligente é a que não aqueles que possuem um papel coercitivo, quan-
faz coisas esperadas, e não se encontra potência de to os que detêm uma função disciplinar. Assim,
vida nas coisas que faz, que em geral não são aque- o cuidado, tal como os equipamentos sociais,
las que se espera que ela faça. Não se potencializa o também está implicado nessa lógica de controle.
que existe, já que o valor maior está no mundo das Nascimento et al.9 afirmam que quando pais exi-
ideias, e não nas práticas vivas. bem um determinado comportamento que difere
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como negligência infantil, não podemos deixar Igualmente, esses autores chamam a atenção
de destacar as considerações de Zyngier20, ao afir- para o papel coercitivo que o Estado pode exercer
mar que quando uma criança pobre é negligen- sobre as famílias e suas crianças. Nascimento11,
ciada e morre no Brasil, não se pergunta quem a em seu estudo sobre abrigo, pobreza e negligên-
negligenciou. Todos o fizeram. cia, problematiza as políticas de proteção como
Os discursos da área de psicologia também se possíveis formas de judicialização da vida. Nas-
apropriam do conceito de negligência conforme cimento afirma que o ECA não dá destaque à ne-
seu contexto de atuação. Há estudos que enfati- gligência, no sentido de defini-la ou insistir em seu
zam as questões psicossociais, culturais, políticas, enquadramento. Desse modo, não é o dito da lei
estruturais, econômicas e, principalmente, a po- que sozinho culpabiliza os pais. Foi o cotidiano de
breza, aparecem constantemente nos debates da sua aplicação que construiu o lugar que a negligên-
área ao fazer uso do conceito de negligência. Do cia ocupa hoje, que garantiu, no contemporâneo, a
mesmo modo, nos textos produzidos pelos pro- força de intervenção que tem no campo da assistên-
fissionais do serviço social é questionada a asso- cia à infância e à adolescência19.
ciação linear entre pobreza e negligência, espe- Vale ressaltar ainda que entre esses estudos
cialmente em textos cujos autores atuam na área que têm sido fundamentais para problematizar
de proteção social à infância. o conceito de negligência, há uma análise muito
Em um estudo com cuidadores notificados fina que a vincula às práticas de medidas prote-
por negligência, Bazon e Bérgamo21 citam que tivas e acolhimento institucional. Neste sentido,
no plano sociodemográfico, quando comparadas a mais uma vez o estudo de Nascimento19 é seminal
famílias não negligentes, as negligentes apresenta- para tal discussão. Esta autora repete ao longo de
riam um número maior de gestações, sendo estas, seu estudo que as práticas que foram se constituin-
muitas vezes, resultado de concepções não planeja- do com a presença do ECA deu corpo ao discur-
das, e se caracterizariam por ter maior dificuldade so da negligência. A propósito, embora seja uma
econômica, vivendo em condições mais adversas, longa citação, consideramos importante apresen-
geralmente com a ajuda de benefícios sociais. Em tar uma síntese de Nascimento sobre os elos que
termos psicológicos, os cuidadores apresentariam ligam proteção e negligência:
uma autoestima menos elevada e uma maior im- O chamado sistema de garantias de direitos
pulsividade, sendo diagnosticados mais frequente- para a infância e a adolescência instaurou, atra-
mente pelo uso abusivo de álcool e outras drogas vés do ECA, a chamada proteção integral, propos-
e, em termos psicossociais, viveriam mais intensa- ta que traz mais governo sobre corpos de crianças,
mente uma falta de apoio social e se ressentiriam adolescentes e seus familiares. As tecnologias de
mais de estresse associado à vida cotidiana, in- poder promovem políticas de segurança, jogos de
cluindo aí o decorrente do cuidado da criança. negociação permanentes sob a forma de gestão: até
Portanto, os mesmos autores acima citados que ponto se é governado, por que se é governado,
ressaltam que é necessário cogitar a eventual con- de que forma se é governado, até que limite se é go-
fusão entre condição de pobreza da família e a pro- vernado. Com base nesses parâmetros, a chamada
blemática em si20. Eis um trecho do estudo de Sta- proteção estabelece processos permanentes de nego-
mato22 ao afirmar que por isso, precisamos estar ciação pela via do consentimento. O controle se faz
atentos para não confundir a negligência de pais por positividade, já que as relações de poder não
contra filhos com a falta de condições materiais operam somente por opressão. O fato de ter positi-
das famílias, negligenciadas pelas desigualdades vidade evita as revoltas, produz a saúde, possibilita
de classes, expostas à miséria, excluídas do acesso a estados de bem estar que levam à aceitação das es-
bens, serviços e riquezas, abandonadas pela desin- tratégias de poder e de assujeitamento. Ou seja, a
formação, alienação, isolamento, vítimas de uma chamada proteção funciona no sentido da negocia-
sociedade egoísta e excludente. ção. É aceita mesmo com seu contingente de violên-
Ao considerar a carência de políticas públicas cia e cerceamento, porque ela é governo, é controle,
e a intervenção estatal (de forma seletiva e puni- mas também porque pode trazer conforto, soluções
tiva) nas situações nomeadas de negligência nas e por isso espera-se por ela, aspira-se por ela; enfim,
famílias, a perspectiva que tais estudos introdu- há sedução no fato de se sentir protegido19.
zem vincula a negligência parental à negligência Assim, podemos afirmar que à medida que o
estatal. Alguns autores percebem a culpabilização uso indiscriminado da definição de negligência
direcionada somente aos pais, sobretudo nas fa- foi fixado à identidade das famílias, sobretudo
mílias de camadas populares, como uma maneira aquelas de camadas populares, mais estudos sur-
de criminalizar a pobreza. giam buscando aprofundar acerca do conceito de
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Colaboradores
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8:161-205. Versão final apresentada em 29/05/2017