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DOI: 10.1590/1413-81232017229.

13032017 2881

Família e negligência: uma análise do conceito de negligência

ARTIGO ARTICLE
na infância

Family and neglect: an analysis of the concept of child negligence

Natália Teixeira Mata 1


Liane Maria Braga da Silveira 1
Suely Ferreira Deslandes 2

Abstract The aim of this paper is to specify and Resumo O objetivo do artigo é problematizar
investigate the types of negligence practiced on as denominações de negligências direcionadas
families in the context of healthcare that are con- às famílias no contexto de práticas de cuidados
sidered to be insufficient or inappropriate for chil- consideradas insuficientes ou inadequadas para
dren and adolescents. These reflections are part of crianças e adolescentes. A reflexão é parte de um
a previous study that analyzed how the concept of estudo prévio que analisou como o conceito de
negligence is defined and applied in Brazilian ac- negligência é definido e aplicado nas produções
ademic studies, and indicated that a large part of acadêmicas nacionais e indicou que grande parte
the cases of negligence practiced against children dos seus casos contra crianças é atribuída à esfera
is attributed to the sphere of the family. This pres- familiar. A presente discussão busca considerar as
ent discussion seeks to consider families in their famílias em sua pluralidade. É um estudo quali-
plurality. It is a qualitative study made from an tativo, desenvolvido numa perspectiva antropoló-
interpretative anthropological point of view. The gica interpretativa. Os resultados apontam que há
results indicate that there are accusatory labels, rótulos acusatórios e omissões graves em relação
and serious omissions in relation to the configu- às configurações familiares, fatos que reforçam a
rations of families – underlining the complexity complexidade de definir uma situação como ne-
of defining a situation as negligence: families can gligência: as famílias podem reproduzir, praticar
reproduce, practice, or suffer negligence. ou sofrer negligências.
Key words Families, Children, Negligence, Child Palavras-chave Famílias, Crianças, Negligência,
negligence, Domestic violence Negligência infantil, Violência doméstica

1
Escola Nacional de
Saúde Pública, Fiocruz. R.
Leopoldo Bulhões 1480,
Manguinhos. 21041-210
Rio de Janeiro RJ Brasil.
nataliateixeira.psi@
gmail.com
2
Instituto Fernandes
Figueira, Fiocruz. Rio de
Janeiro RJ Brasil.
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Mata NT et al.

Introdução aos campos do direito e da saúde. De acordo com


a mesma autora, a vítima ganha reconhecimento e
O presente artigo busca problematizar as deno- se afirma por meio de seus ‘direitos’, de modo que
minações de negligência dadas às famílias no um ato é atribuído como violência a partir de
cuidado de crianças e adolescentes e suas im- uma concepção preliminar de vítima, socialmen-
plicações morais. A negligência é um problema te definida como tal e suscetível de cuidados no
de saúde pública que atinge diversas famílias na campo da saúde.
sociedade. Não desconhecemos que existem situações
No contexto da Saúde, essa denominação faz graves de negligências da família, que podem co-
parte das tipologias de apresentação das violên- locar em risco a vida dos filhos. Todavia, há ca-
cias interpessoais (violência física, psicológica, sos em que certos comportamentos classificados
sexual e negligências)1. Primeiro cabe destacar a como negligência parental ou familiar refletem
junção das “negligências” ao corolário de violên- vinculação a práticas culturais ou situações pro-
cias, como fenômenos de mesma ordem, apesar vocadas por impossibilidade financeira ou social,
das categorias que as sustentam (intencionalida- entre outras. Há muitas questões do cenário na-
de/violência e omissão/negligência) constituírem cional e no contexto familiar que permeiam o
sentidos bem distintos. A partir dessa filiação ao tema e reforçam a necessidade de uma reflexão
escopo das violências, o Relatório Mundial sobre crítica diante da atribuição de uma família como
a Prevenção da Violência 20142 amplia a magni- negligente ou negligenciada.
tude do problema ao afirmar que o abuso e ne- Observamos que as preconizações do cuidar
gligência por parte dos pais e de outros cuidadores podem atuar como uma forma de dominação e
atinge milhões de crianças no mundo. de controle social, na medida em que novas dire-
O segundo pressuposto envolvido na deno- trizes são instauradas e são submetidas a um re-
minação de negligência é que há supostamente gime de vigilância do cuidado na infância. Sendo
um parâmetro de cuidado, considerado aceitável assim, o descumprimento de certas normas do
socialmente e capaz de prover as necessidades es- cuidar, traduz-se em negligência, e, consequente-
senciais das crianças e adolescentes. Em geral, essa mente, é passível de punição.
delimitação, apesar de “reconhecer” as diferenças Deste modo, problematizamos neste arti-
entre cada cultura de cuidados, universaliza um go a centralidade dos diálogos da negligência
limite aceitável de tolerância, associado aos pa- na infância sobre as diversidades de famílias no
râmetros de “crescimento e desenvolvimento” de contexto brasileiro, com apoio de estudos an-
crianças e adolescentes. Esses conceitos, de forte tropológicos, como de Geertz6, e análises que se
marcação biomédica, são mais ou menos renego- inspiraram e se fundamentaram nas teorias de
ciados segundo quem os emprega a partir de uma Foucault7,8, tal como os trabalhos de Nascimen-
visada comparativa quanto aos parâmetros de to9-11. De modo que o problema seja identificado
cuidados possíveis a uma determinada classe so- e discutido considerando a complexidade que
cial, aos recursos disponíveis na comunidade e aos envolve tal classificação, evitando a reprodução
aspectos subjetivos de “compromisso familiar” em de discursos que não consideram as concepções
buscar atender às necessidades infanto-juvenis. morais e sociais que condicionam aos familiares
O terceiro aspecto dessa discussão é o poder os lugares de vítima e agressor.
institucional dos agentes e agências de proteção
à infância em classificar atos e famílias como ne-
gligentes e as consequências que tais definições Método
acarretam, muitas das vezes funcionando como
um dispositivo de controle para a adesão às re- Trata-se de um estudo qualitativo sobre a pro-
comendações profissionais (seja para adesão a dução científica brasileira acerca da “negligência
terapêuticas, a comportamentos, a ações da vida familiar” com base em uma pesquisa bibliográ-
prática, etc). fica prévia acerca do conceito de negligência. O
A criança, socialmente reconhecida como levantamento bibliográfico foi realizado na Bi-
“vulnerável”, cujos direitos definidos na Consti- blioteca Virtual de Saúde, SciELO, Scopus e Web
tuição de 19883 e consolidados principalmente of Science, e teve como critério de busca os des-
com o Estatuto da Criança e do Adolescente de critores: abuse, negligência, negligence, neglect,
19904 estejam sob suspeita de violação ou nega- malpractice, abuso de crianças, maus-tratos de
ção dos mesmos tomará o lugar legitimado de menores, negligência infantil, negligência com
“vítima”. Sarti5 correlaciona a produção da vítima a criança, abandono de menores, child, children,
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criança. O período estudado contemplou as pu- Discussão
blicações das décadas de 1980, 1990 e 2000.
Entre artigos, dissertações e teses sobre negli- As famílias no contexto brasileiro
gência contra crianças, 30 textos constituíram o
acervo final, correspondentes às seguintes áreas: Não vislumbramos aqui aprofundar sobre
8 da clínica, 8 de psicologia, 4 do serviço social as diferentes concepções de família, mas tão so-
e 10 da saúde coletiva. Adotamos como critério mente lembrar que em vários estudos a família
de exclusão os trabalhos que não discutiam o assume diversas conformações. Assim, a família
contexto brasileiro. O acervo foi organizado por não é uma instituição “natural”, estável, harmo-
áreas e por dois grupos. Como as situações de niosa e privada. Bourdieu afirma que, embora a
negligência são frequentemente abordadas junto família apareça como uma categoria natural, ela
com outras naturezas de violências, no primeiro é produto de um verdadeiro trabalho de instituição,
grupo reunimos as publicações que abordavam ritual e técnico, ao mesmo tempo que visa instituir
a violência contra crianças. Para o segundo gru- de maneira duradoura, em cada um dos membros
po, selecionamos os textos que contemplavam da unidade instituída, sentimentos adequados a
especificamente a negligência e os agrupamos de assegurar a integração que é a condição de existên-
acordo com as áreas de conhecimento escolhidas. cia e de persistência dessa unidade12
Os textos, em sua maioria, foram lidos integral- Se, por um lado, evidencia-se o “verdadeiro
mente. As três publicações, cujos textos não eram trabalho de instituição” que forma a família, que
disponibilizados integralmente, analisamos so- faz com que esta pareça o que ela não é; por outro
mente os resumos. lado, temos conhecimento, igualmente, a partir
A análise que segue parte da compreensão de de etnografias sobre famílias, a capacidade de ne-
que a constituição do conceito de negligência é gociação existente nas diferentes conformações,
atravessada por aspectos econômicos, sociais e abrindo possibilidades para novos arranjos fami-
culturais. O discurso antropológico sobre estu- liares que buscam ultrapassar o modelo ‘institu-
dos de famílias nos desvelam os diferentes modos cional’.
e estilos de vida, e práticas de cuidar das crianças Dentre os diversos estudos que se dedicaram
e dos idosos (entre outros exemplos) norteados à temática da família, destacamos o trabalho de
pelo universo sociocultural em que as famílias Elizabeth Bott13 que, embora seja marcado por re-
estão situadas. Dito isto, informamos ao leitor as tratar a família de uma determinada época (socie-
lentes aqui adotadas – orientadas pela perspec- dade londrina na década de 50), é relevante por
tiva antropológica interpretativa, cunhada por abrigar-se no fato de a autora pensar as interco-
Clifford Geertz – na análise dos textos do nosso nectividades na família – a estrutura das redes – e,
acervo. Geertz6 afirma que o conceito de cultura portanto, ir além do parentesco. A autora afirma
que ele defende e utiliza em seus ensaios: estar interessada não somente na estrutura geral do
[...] é essencialmente semiótico. Acreditan- sistema de parentesco, mas, também, na maneira
do, como Max Weber, que o homem é um animal pela qual ele é manipulado em casos particulares13.
amarrado a teias de significados que ele mesmo te- Para sua análise, Bott parte da família, a da
ceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a coabitação e daquilo que os entrevistados men-
sua análise; portanto, não como uma ciência expe- cionam das redes de relações que se constituem
rimental em busca de leis, mas como uma ciência ao redor das famílias. Assim, a autora abre a uni-
interpretativa, à procura do significado6 dade da família e estende a sua análise para seus
Nessa mesma linha de análise antropológica, relacionamentos externos com amigos, vizinhos,
assinalamos, igualmente, o aspecto de vocação parentes, clubes, lojas, locais de trabalho13, enfim,
etnográfica que atribuímos aos textos analisados. com instituições. O trabalho de Bott nos permite
Assim, as publicações acadêmicas são o nosso observar que há uma capacidade de movimen-
campo de pesquisa frequentado e habitado por tação social. As pessoas não se aprisionam nas
famílias, crianças e profissionais interagindo e fronteiras internas à família e, mesmo no interior
produzindo sentidos suscetíveis de serem inter- dela, há possibilidade de valorar as pessoas den-
pretados como um texto. Portanto, trata-se de tro das relações de parentesco ou de vizinhança
uma interpretação do conceito de negligência: e inseri-las ou não à rede: um primo mais primo
uma leitura da leitura acadêmica que é realizada do que o outro, ou um amigo que é mais irmão
acerca das práticas de cuidados consideradas in- do que o próprio irmão.
suficientes ou inadequadas para crianças e ado- Ao pensarmos na rede de relações construí-
lescentes. da em torno da família, nos remetemos à noção
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de lar, casa, moradia. Não exatamente como um Foucault12 afirma que conhecemos certos dis-
ponto de partida dessa rede, mas sim como um cursos de nossa sociedade pelo sistema de cultura.
aspecto que estabelece uma forte vinculação às A família também é vista dentro desse sistema
concepções que temos sobre família. Para Bour- cultural, fato que traduz a interferência dos seus
dieu, a casa é visceral. O autor afirma que a defi- costumes e práticas nas relações de cuidado com
nição dominante, legítima, da família normal [...] os seus filhos. Sarti5 afirma que para compreen-
apóia-se em uma constelação de palavras – casa, der o significado desses fenômenos que retratam
unidade doméstica, house, home, household – que, os valores culturais, é necessário vê-los em sua re-
sob a aparência de descrevê-la, de fato constroem a lação com as estruturas mais amplas de dominação
realidade social12. que constituem esta sociedade. A autora considera
E o que faz uma casa ser uma “casa”? Para Ya- importante o conhecimento dos hábitos, ideais
nagisako14, é uma referência na maneira como se e as crenças para o entendimento dos sentidos
classifica esse domínio de temáticas em torno da aplicados a certas problemáticas, e aqui destaca-
household e a unidade doméstica. A autora pro- mos as negligências contra crianças atribuídas a
blematiza acerca da idéia de “família universal”, sua família.
discute as definições de família e household, e, E hoje também refletimos como as modifi-
diferentemente do que vinha sendo realizado até cações políticas e socioeconômicas desencade-
então, observa os aspectos envolvidos no com- aram novas lógicas e configurações familiares.
promisso para manter essa unidade doméstica. Hillesheim et al.15 enfatizam que as famílias são
Assim, a autora chama a atenção para um siste- assim reinscritas em um regime de vigilância e re-
ma de valoração na constituição da família que gulação; neste sentido, quanto mais indefinido o
envolve o cultivo de afetos. A unidade doméstica conceito de negligência, mais ele se molda às neces-
não se refere somente ao espaço físico da mora- sidades de controle e disciplinamento dos sujeitos.
dia. A Household é feita de uma série de ativida- Assim, vale ressaltar os argumentos de Fonseca e
des: fazer e consumir a comida; reprodução se- Cardarello16 sobre as situações em que a família é
xual; cuidar das crianças. Tudo isso está de certa responsabilizada:
maneira encoberto pela marca impenetrável das A passagem do “problema sócio-econômico”
atividades “domésticas”14. para a “negligência” revela uma mudança de en-
Assim, família pode ser analisada nas relações foque na visão da infância pobre e da sua família
com gênero, parentesco, geração, sexualidade e no Brasil. Se em 1985 considerava-se que motivos
com as políticas da família que, como percebemos como “mendicância”, “maus tratos”, “desintegração
em diversos textos acadêmicos que trataram da te- familiar” e “doenças do menor” eram decorrência
mática da negligência, governam corpos e almas10. direta de “problemas sócio-econômicos”, hoje, mais
Aqui estão em jogo, ou em ameaça, os afetos como do que nunca, a família pobre, e não uma questão
elementos que atribuem valor à família. Malgrado estrutural, é culpada pela situação em que se en-
as evidências empíricas e de pesquisa que nos con- contram seus filhos. É ela que é “negligente”, mal-
firmam a diversidade de concepções de famílias, a trata as crianças, as faz mendigar, não lhes propor-
família espelhada nas políticas públicas é aquela ciona boas condições de saúde, enfim, “não se orga-
que se embasa numa concepção universal. niza”. Em suma, parece que a família pobre – e não
As discussões acerca de negligências cen- o “Poder Público” ou “a sociedade em geral” – é o
tralizam as famílias como locus de cuidados ou alvo mais fácil de represálias. Cria-se então uma
ausência dos mesmos na infância. Diante do di- situação particular em que a noção de “criança ci-
recionamento da responsabilidade com os cui- dadã” leva como complemento quase inevitável a
dados durante este período, muitas famílias são de “pais negligentes”9.
consideradas negligentes. Nascimento11 colabora Nascimento e Scheinvar10 ao discutirem sobre
com a descrição: definida pela negação, a família os equipamentos sociais de proteção à infância
negligente é considerada “culpada” por suas estra- destacam que neles se inscreve uma modalidade
tégias de sobrevivência, autuada pelo que “não fez”, do poder sustentada na disciplina; e afirmam que
por uma falta de ação no provimento das necessi- esse monitoramento é desempenhado tanto por
dades da criança. A família negligente é a que não aqueles que possuem um papel coercitivo, quan-
faz coisas esperadas, e não se encontra potência de to os que detêm uma função disciplinar. Assim,
vida nas coisas que faz, que em geral não são aque- o cuidado, tal como os equipamentos sociais,
las que se espera que ela faça. Não se potencializa o também está implicado nessa lógica de controle.
que existe, já que o valor maior está no mundo das Nascimento et al.9 afirmam que quando pais exi-
ideias, e não nas práticas vivas. bem um determinado comportamento que difere
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da concepção instituída de cuidado, vemos pesar nos lembra das relações que se constituem em
sobre eles a culpa que os categoriza e os segrega, torno das famílias e ao transpormos para a dis-
tornando-os, nesse contexto, pais negligentes, lugar cussão aqui realizada constataremos que entre os
que eles passam a ocupar. diversos argumentos que corroboram a definição
Salienta-se que frente à realidade brasileira, de uma família negligente, as situações de circu-
indicar intenções nos casos de negligências dos lação da criança, entre pessoas que são externas
pais e responsáveis, também é evidenciar as de- à família, constitui um motivo que agregará ao
sigualdades, na medida em que os recursos ne- dossiê que a identifica e rotula como negligente.
cessários para um “cuidado integral” das crianças Observamos nos textos acadêmicos analisa-
não estão disponíveis para todas as camadas so- dos que, por vezes, a atribuição de negligente à
ciais. Não são poucas as famílias que vivem em si- determinada família era constituída a partir de
tuações de pobreza e miséria, por exemplo – que critérios marcados por uma referência de família
de forma intencional não levam os filhos à escola, tradicional burguesa. Outrossim, os argumentos
pois conseguiram a vaga somente em um local aqui sustentados buscam dar sentido às experiên-
longe de sua residência e perigoso; ou de maneira cias e dramas que acontecem entre os familiares
não intencional, não levam as crianças à escola e suas crianças, sobretudo pertencentes às cama-
em função de transporte escasso decorrente de das populares, deslocadas da situação de pobreza
ausência ou ineficiência de políticas públicas. para a de negligência. Nascimento19 afirma que
A Sociedade Brasileira de Pediatria17 mencio- no contemporâneo, práticas de desqualificação se
na que a identificação da negligência no nosso meio associam a processos de criminalização da pobre-
é complexa devido às dificuldades sócio-econômi- za. São feitas ligações imediatas entre os pobres e
cas da população, o que leva ao questionamento a negligência para com seus filhos, indicando que
da existência de intencionalidade. No entanto, in- essas famílias não teriam condições de educar ade-
dependente da culpabilidade do responsável pelos quadamente suas crianças.
cuidados da vítima, é necessária uma atitude de Nos textos produzidos pela pediatria, o olhar
proteção em relação a esta. clínico sobre as situações de negligência na infân-
Cabe destacar que problematizar questões cia destaca os danos causados à criança. Os dis-
sociais que interferem na concepção de negligên- cursos são centrados nos danos à saúde da crian-
cia na família não isenta a atenção aos casos que ça e na situação de suposto risco. Diante da gravi-
ocorrem dentro dos lares. Os cuidados na infân- dade de casos de queimaduras, por exemplo, sen-
cia são extremamente necessários, de forma que sibilizados pela gravidade e possíveis proporções
existem situações de negligência que colocam do trauma, os profissionais da área da pediatria
crianças em perigo. fazem uso do conceito de negligência de forma
Percebemos que os estudos de natureza des- generalizada e pautada na concepção técnica de
critiva da ocorrência dos agravos não mais ques- sua área de atuação. Consequentemente, outros
tionam a categoria, contabilizando-a no rol das aspectos (condição socioeconômica, condições
demais violências, naturalizando uma lógica de de moradia, hábitos e práticas de cuidados, etc.)
acusação, tal como Mata18 apresenta ao discutir não são problematizados; além de reproduzirem
o conceito de negligência, que permite uma cir- a noção de responsabilidade à família os agravos
culação de culpa direcionada à família diante os da negligência na infância. Eis uma passagem do
casos ocorridos. estudo de Hillesheim et al.15:
A fala de um dos médicos nos dá uma direção:
“Famílias negligentes” ou negligenciadas? ele identifica que as situações de negligência são
O olhar de diferentes campos mais frequentes em mães adolescentes, no caso de
de conhecimento uso de drogas por parte dos pais, em famílias deses-
truturadas, e, de forma mais genérica, em famílias
O que faz uma família ser uma “família negli- infelizes. Nas observações realizadas junto às agen-
gente”? Eis uma questão que nos remete a consi- tes comunitárias, o acento é dado aos aspectos da
derações sobre as implicações teórico-metodoló- falta de acesso a condições materiais – a pobreza
gicas da definição do que seja uma “família”, con- – embora esta não seja vista como determinante,
siderando em especial os aspectos relacionados ao uma vez que reconhecem situações de pobreza nas
parentesco, à moradia e às obrigações recíprocas. quais as crianças recebem os cuidados considerados
Os estudos antes comentados nos trazem al- como adequados15.
guns elementos que constituem e diferenciam as Embora os textos da área de pediatria enfati-
famílias entre si. O estudo de Bott13, por exemplo, zem a perspectiva clínica das situações definidas
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como negligência infantil, não podemos deixar Igualmente, esses autores chamam a atenção
de destacar as considerações de Zyngier20, ao afir- para o papel coercitivo que o Estado pode exercer
mar que quando uma criança pobre é negligen- sobre as famílias e suas crianças. Nascimento11,
ciada e morre no Brasil, não se pergunta quem a em seu estudo sobre abrigo, pobreza e negligên-
negligenciou. Todos o fizeram. cia, problematiza as políticas de proteção como
Os discursos da área de psicologia também se possíveis formas de judicialização da vida. Nas-
apropriam do conceito de negligência conforme cimento afirma que o ECA não dá destaque à ne-
seu contexto de atuação. Há estudos que enfati- gligência, no sentido de defini-la ou insistir em seu
zam as questões psicossociais, culturais, políticas, enquadramento. Desse modo, não é o dito da lei
estruturais, econômicas e, principalmente, a po- que sozinho culpabiliza os pais. Foi o cotidiano de
breza, aparecem constantemente nos debates da sua aplicação que construiu o lugar que a negligên-
área ao fazer uso do conceito de negligência. Do cia ocupa hoje, que garantiu, no contemporâneo, a
mesmo modo, nos textos produzidos pelos pro- força de intervenção que tem no campo da assistên-
fissionais do serviço social é questionada a asso- cia à infância e à adolescência19.
ciação linear entre pobreza e negligência, espe- Vale ressaltar ainda que entre esses estudos
cialmente em textos cujos autores atuam na área que têm sido fundamentais para problematizar
de proteção social à infância. o conceito de negligência, há uma análise muito
Em um estudo com cuidadores notificados fina que a vincula às práticas de medidas prote-
por negligência, Bazon e Bérgamo21 citam que tivas e acolhimento institucional. Neste sentido,
no plano sociodemográfico, quando comparadas a mais uma vez o estudo de Nascimento19 é seminal
famílias não negligentes, as negligentes apresenta- para tal discussão. Esta autora repete ao longo de
riam um número maior de gestações, sendo estas, seu estudo que as práticas que foram se constituin-
muitas vezes, resultado de concepções não planeja- do com a presença do ECA deu corpo ao discur-
das, e se caracterizariam por ter maior dificuldade so da negligência. A propósito, embora seja uma
econômica, vivendo em condições mais adversas, longa citação, consideramos importante apresen-
geralmente com a ajuda de benefícios sociais. Em tar uma síntese de Nascimento sobre os elos que
termos psicológicos, os cuidadores apresentariam ligam proteção e negligência:
uma autoestima menos elevada e uma maior im- O chamado sistema de garantias de direitos
pulsividade, sendo diagnosticados mais frequente- para a infância e a adolescência instaurou, atra-
mente pelo uso abusivo de álcool e outras drogas vés do ECA, a chamada proteção integral, propos-
e, em termos psicossociais, viveriam mais intensa- ta que traz mais governo sobre corpos de crianças,
mente uma falta de apoio social e se ressentiriam adolescentes e seus familiares. As tecnologias de
mais de estresse associado à vida cotidiana, in- poder promovem políticas de segurança, jogos de
cluindo aí o decorrente do cuidado da criança. negociação permanentes sob a forma de gestão: até
Portanto, os mesmos autores acima citados que ponto se é governado, por que se é governado,
ressaltam que é necessário cogitar a eventual con- de que forma se é governado, até que limite se é go-
fusão entre condição de pobreza da família e a pro- vernado. Com base nesses parâmetros, a chamada
blemática em si20. Eis um trecho do estudo de Sta- proteção estabelece processos permanentes de nego-
mato22 ao afirmar que por isso, precisamos estar ciação pela via do consentimento. O controle se faz
atentos para não confundir a negligência de pais por positividade, já que as relações de poder não
contra filhos com a falta de condições materiais operam somente por opressão. O fato de ter positi-
das famílias, negligenciadas pelas desigualdades vidade evita as revoltas, produz a saúde, possibilita
de classes, expostas à miséria, excluídas do acesso a estados de bem estar que levam à aceitação das es-
bens, serviços e riquezas, abandonadas pela desin- tratégias de poder e de assujeitamento. Ou seja, a
formação, alienação, isolamento, vítimas de uma chamada proteção funciona no sentido da negocia-
sociedade egoísta e excludente. ção. É aceita mesmo com seu contingente de violên-
Ao considerar a carência de políticas públicas cia e cerceamento, porque ela é governo, é controle,
e a intervenção estatal (de forma seletiva e puni- mas também porque pode trazer conforto, soluções
tiva) nas situações nomeadas de negligência nas e por isso espera-se por ela, aspira-se por ela; enfim,
famílias, a perspectiva que tais estudos introdu- há sedução no fato de se sentir protegido19.
zem vincula a negligência parental à negligência Assim, podemos afirmar que à medida que o
estatal. Alguns autores percebem a culpabilização uso indiscriminado da definição de negligência
direcionada somente aos pais, sobretudo nas fa- foi fixado à identidade das famílias, sobretudo
mílias de camadas populares, como uma maneira aquelas de camadas populares, mais estudos sur-
de criminalizar a pobreza. giam buscando aprofundar acerca do conceito de
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negligência e suas especificidades, contemplando o uso da categoria como estratégia de construir
a construção desta realidade social e as diversida- uma imagem de incompetência parental.
des do contexto brasileiro. O que tais cenários de disputas nos revelam é
que para além das classificações imputadas pre-
ponderantemente às famílias pobres, o trabalho
Considerações finais de construir o indivíduo negligente passa tam-
bém pelo de apagamento social de uma impor-
Entre as categorias acusatórias que rotulam uma tante figura que constitui a família – o pai. Além
determinada família de negligente, e as funda- disso, percebemos que o direcionamento à fa-
mentadas situações de omissões no contexto de mília nos casos de negligência perpassa também
práticas de cuidados à infância, observamos que pela questão de gênero, na maioria dos casos, a
o trabalho de naturalizar a categoria em análise responsabilidade de zelar e cuidar dos filhos re-
não se sustenta se refletirmos criticamente acerca cai sobre as “mães”. Aqui, muitas vezes, vemos o
da produção social do conceito de negligência. deslocamento da acusação de família negligente
No entanto, aqui e acolá, apontamos que há con- para mãe negligente.
trovérsias em torno da maneira de compreender Assim, ao longo deste artigo buscamos evi-
tal conceito quando situado em práticas vivas, denciar que é preciso ter atenção ao tratarmos
atuando nas formulações de determinados cená- das diferentes práticas adotadas pelas famílias
rios familiares. Revelando-nos, afinal, a comple- para cuidar de seus filhos. Acreditamos que a ge-
xidade de definir uma situação como negligência: neralização não deveria fazer parte do escopo de
as famílias podem reproduzir, praticar ou sofrer cuidados, tendo em vista que as relações familia-
negligências. res e o contexto sociocultural não são universais, e
Ademais, há uma discussão que passa ao que as perspectivas de cuidados também são par-
largo dos textos aqui analisados. Se as situações ticulares. As responsabilidades do cuidar são da-
de negligência são rótulos atribuídos preponde- das a todos, entretanto, a forma como cuidam das
rantemente às famílias pobres e negligenciadas, crianças é alinhada ao interior de suas estruturas
sobretudo porque são estas que chegam aos téc- e possibilidades – recursos econômicos, sociais,
nicos da rede de assistência e são atendidas em hábitos, cultura, entre outras. Portanto, para além
hospitais públicos; as supostas situações de ne- de suas próprias concepções acerca da melhor
gligência atendidas em hospitais privados ou re- forma de cuidar, existem os limites impostos à fa-
tidos no seio de uma família de camadas médias mília, que dificultam um cuidado integral, “ideal”.
ou de elite não se expõem à análise social. Con- Neste sentido, a arte do cuidado deveria não ge-
tudo, em cenários de disputas entre pais de classe neralizar através dos casos, mas generalizar dentro
média em litígio pela guarda dos filhos, não raro deles6, contextualizando a compreensão.
a acusação de “negligência” é declarada contra o Por fim, mais que definir uma família como
ex-cônjuge, visando desqualificar sua capacidade negligente ou negligenciada, cabe uma reflexão
de cuidar. As chamadas situações de “alienação crítica e intervenções direcionadas aos dramas
parental” desafiam o discernimento profissional sociais e pessoais que afligem as famílias e suas
dos agentes do sistema de garantia de direitos de crianças, visando um cuidado às primeiras, forta-
crianças e adolescentes e chamam a atenção para lecendo-as em suas habilidades protetoras.

Colaboradores

NT Mata, LMB Silveira e SF Deslandes participa-


ram do planejamento, análise e redação do artigo.
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Mata NT et al.

Referências

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