Você está na página 1de 15

artigo

Cuidado Vigilante: diálogo construtivo e


responsabilidade relacional em contexto de
violência familiar

Vigilant Care: constructive dialogue and relationship


responsibility in contexts of family violence

Marlene
Resumo: Esse texto tem como objetivo apre- Abstract: This text has as its objective to present
Magnabosco Marra,
sentar o conceito de Cuidado Vigilante (CV) como the concept of Vigilant Care (VC) as a proposal of
Doutora em Psicologia Clínica
uma proposta de intervenção em contextos de intervention in contexts of family violence. A sec-
e Cultura pela Universidade
violência familiar e como objetivo secundário, ondary objective is to reflect about VC as a form
de Brasília, Brasil
refletir sobre o CV como uma forma de aproxi- of establishing closer relationships and of creating
Endereço:
mação, de um diálogo construtivo das narrativas a constructive dialogue of the family narratives marlenemarra1@gmail.com
familiares e suas vivências de abuso sexual, con- and their experiences of sexual abuse. These con-
trapondo a crença ancorada na violência como cepts run contrary to the belief in violence as an
Haim Omer, Doutor.
solução educativa e evidenciando a questão da educational measure and the responsibility of the
responsabilidade relacional. O CV consiste em parents/caretakers is put in first instance. Vigilant University of Tel Aviv, Israel
Endereço:
um enfoque psicoeducativo, uma perspectiva te- Care (VC) consists of a psycho-educational focus,
haimomer2@gmail.com
órica e prática que evidencia os efeitos positivos a theoretical and practical perspective that aims at
do conhecimento dos pais sobre a vida dos filhos enhancing parents’ knowledge about the lives of
em situação de risco, resultando em confiança children at risk thus resulting in mutual trust and di- Liana Fortunato
e diálogo mútuos. O CV difere das tentativas de alogue. VC seeks not to monitor but to increase the Costa, Doutora.
monitoramento e busca aumentar a presença dos parents’ presence in the lives of the children. This Universidade de Brasília, Brasil
pais na vida dos filhos. Essa proposta combina proposal combines vigilance and affective positive Endereço:
vigilância e presença afetiva positiva dos pais ga- and immediate presence of the parents. The ap- lianaf@terra.com.br
rantindo a segurança da criança ou adolescente proach is meant to guarantee the security of the
em situação de risco, através de sua presença child and the adolescent in situation of risk through
imediata. O Construcionismo Social apresenta-se the immediate personal presence of the parents.
como uma referência na articulação do CV com The Social Constructivism is used as reference in
as abordagens relacionais e conversacionais para VC with its approach of forging closer relationships
os contextos interventivos. and dialogue in contexts of intervention.

Palavras-chave: violência, construcionismo Keywords: violence, social constructivism,


social, comportamento de cuidado da criança, behavior of care towards the child, family, social
família, responsabilidade social. responsibility.
Recebido em: 06/03/2015
Aprovado em: 02/06/2015

Diversas temáticas contemporâneas de grande relevância têm sido debatidas no


contexto da família, dentre elas a violência em todas as suas manifestações. Vio-
lações dos direitos de crianças e adolescentes são frequentes, tanto nas famílias
de baixa renda, como nas demais classes sociais. Os atos violentos vão desde atos
de omissão, não garantia de acesso aos serviços de saúde e educação, submissão
a trabalhos forçados, métodos disciplinares violentos e agressões psicológicas, até
abusos sexuais deliberados e exploração sexual. Estes atos violentos desencadeiam
sintomas de traumas, prevalência de fatores de risco e consequências associadas à
negligência e aos maus-tratos sofridos pelas crianças e adolescentes. Estes atos são

NPS_52.indd 77 18-Aug-15 5:24:44 PM


considerados pela literatura como in- de agressões físicas e/ou negligência
78 NPS 52 | Agosto 2015
dicadores críticos para a instalação de era de 3500. Estas violências se pro-
situações que impedem o cuidado, a duziam a cada semana na Alemanha e
saúde e o desenvolvimento da criança Reino Unido e a cada duas semanas na
e adolescente. Estes aspectos indicam França. A cada dia, a violência familiar
ainda que a família não está envolvi- cobra a vida de 4 crianças menores de
da na proteção de seus membros e que 14 anos na Europa.
utiliza tais atos para justificar as ações Estudos realizados em Israel, país
dos agressores como formas de educar do meio oriente, mas que se aproxima
e corrigir transgressões de comporta- em algum aspecto sociocultural dos
mento (Habigzang et al., 2007; Lebo- países ocidentais mostra uma pers-
witz, Omer, Holly, & Lawrence, 2013; pectiva da violência em diferentes âm-
Moura et al., 2008). bitos. Dados coletados com base em
A manifestação e os modos de orga- relatório dos serviços sociais de casos
nização dessas vivências de violência de maus-tratos durante o ano de 2004
se fazem presentes nas famílias, grupos mostram taxas que variaram entre as
e comunidades, variando apenas na diferentes localidades do país. Elas fo-
sua intensidade e formas de expressão. ram menores em localidades árabes (9
São configurações que não estão atre- por 1000 crianças) do que em locali-
ladas à classe social, etnia ou gênero, dade judaicas (20 por 1000 crianças) e
mas à construção social das famílias e maiores nas grandes cidades e outras
estão presentes em todas as sociedades localidades socioeconômicas bem fa-
atuais. Com relação aos países de lín- vorecidas financeiramente (9 por 1000
gua inglesa como Canadá, Austrália e crianças) (Ben-Arieh & Haj-Yahia,
Estados Unidos, esta apresenta os ín- 2006). Outro estudo, realizado ainda
dices mais elevados na incidência de em Israel, trata de um levantamento
diferentes formas de violência, a partir nacional sobre a violência e apresenta
da década de 1990. O Canadá (UNI- uma amostra que inclui 10400 estu-
CEF, 2012b), em um estudo realizado dantes entre a 7ª e a 11ª série de esco-
em três grandes províncias (Ontário, las públicas. Nesta pesquisa, os alunos
Québec e Alberta), com dados primá- foram convidados a relatar se haviam
rios de uma amostragem em 51 insti- sido vítimas de atos específicos de vio-
tuições de atendimento às crianças vi- lência na escola durante o mês anterior
timadas, totalizou 7.672 investigações, à pesquisa. Os resultados mostraram
apontando 25% de casos de abuso físi- que 29,1% dos alunos foram vítimas
co como forma primária de violência. de pelo menos um ato de maus-tratos.
Em 23% do total de casos, 10% foram Os atos mais comuns dos agressores
de violência sexual comprovada e 46% foram: mostrar imagens ofensivas ou
de negligência – falta de supervisão fa- enviar cartas obscenas, tirar ou tentar
miliar e exposição indevida da criança tirar parte da roupa do aluno e tentar
a riscos ambientais, incluindo violên- beijar um estudante. Os grupos mais
cia sexual (Costa et al., 2007). vulneráveis foram os meninos árabes
A UNICEF (2012a, 2012b) estudou estudantes da oitava série. Os relató-
a morte de crianças por maus tratos em rios indicam que as taxas mais baixas
30 países considerados ricos, incluin- estavam entre as meninas árabes. O
do 25 estados europeus, e calculou que assédio sexual é prevalente em escolas
a cifra anual de mortes de crianças me- israelenses (Zeira, Anat, Astor, & Ben-
nores de 15 anos como consequência benishty, 2002).

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 78 18-Aug-15 5:24:44 PM


No Brasil, estudos realizados com lacional. O Construcionismo Social Cuidado Vigilante
atos violentos e maus-tratos intrafami- apresenta-se como uma referência na Marlene Magnabosco Marra, 79
Haim Omer, Doutor.
liares apresentam um expressivo cres- articulação do CV com as abordagens Liana Fortunato Costa, Doutora.

cimento nas taxas de mortalidade de relacionais e conversacionais para os


pessoas na faixa etária de 0 a 19 anos, contextos interventivos.
à semelhança de outros países (Moura O CV (Omer, 2004, 2011; Omer,
& Reichenheim, 2005). As causas vio- Steinmetz, Carthy & von Schlippe,
lentas foram responsáveis por aproxi- 2013) enfatiza uma prática que se ar-
madamente 120 mil mortes em 2001, ticula com as referências do Cons-
representando cerca de 20% dos óbitos trucionismo Social, abordagem rela-
registrados no país, sendo as crianças cional (Gergen, 1999, 2006; Gergen
as mais atingidas (Ministério da Saú- & Gergen, 2010; White & Epston,
de, 2002). Nas últimas duas décadas 1993; White, 2002), com foco na im-
no Brasil, a violência contra crianças portância do diálogo construtivo e na
e adolescentes ganhou maior atenção co-construção de responsabilidade
e passou a ser notificada como uma relacional. O CV é considerado uma
questão social e como um desafio pú- ferramenta utilizada em conversação
blico que demanda investimentos e in- que pode fortalecer pessoas, relações
tervenções (Faleiros & Faleiros, 2007). e cuidados parentais quando há risco
Constata-se, portanto, que as fa- ou constatação de violência. É um en-
mílias vivem e expressam sua vio- foque psicoeducativo que tem como
lência de forma característica, em característica a presença dos pais, in-
função da cultura em que estão in- formando e sinalizando aos filhos que
seridas. A dimensão subjacente que estão aumentando sua atenção, cuida-
determina a identificação de casos do e vinculação com eles, produzindo
como maus tratos é a gravidade do uma resistência à violência. Essa pro-
dano potencial para a criança e como posta combina vigilância e presença
ela significou esse ato violento visto afetiva positiva dos pais garantindo a
ou sofrido, e não o tipo de mau trato segurança da criança ou adolescente
(ou seja, físico, sexual, emocional ou, em situação de risco, através de sua
ainda, a negligência). Daí decorre a presença imediata. Trata-se de uma
ideia de que se deve criar possibili- ação com dimensões preventivas e in-
dades de adaptar intervenções para terventivas com famílias em situação
atender as diferentes atitudes, con- de violência, cujos filhos vivenciam
textos, consequências e perspectivas comportamentos com diferentes fato-
de diferentes grupos socioculturais. res de risco, que justificam um cuida-
Este texto tem como objetivo apre- do vigilante por parte dos pais.
sentar o conceito de Cuidado Vigi-
lante (CV) como uma proposta de
intervenção em contextos de violência Um olhar para a construção da
familiar e como objetivo secundário, violência na família
refletir sobre o CV como uma forma
de aproximação, de um diálogo cons- A ênfase na satisfação pessoal, as gran-
trutivo das narrativas familiares e suas des exigências por uma vida melhor, a
vivências de abuso sexual, contrapon- pouca tolerância com relação à divisão
do a crença ancorada na violência das tarefas domésticas, os novos espa-
como solução educativa e evidencian- ços assumidos pela mulher no mundo
do a questão da responsabilidade re- público, a necessidade cada vez maior

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 79 18-Aug-15 5:24:44 PM


de obtenção de lucros, a crescente res- de gama de maus-tratos às crianças
80 NPS 52 | Agosto 2015
ponsabilidade das famílias pela qua- e adolescentes, é também ali que a
lidade de vida de seus membros e a sociedade deposita a crença de um
autoridade dos pais – desgastada por grupo privilegiado para o enfrenta-
conflitos de geração- são fatores que mento e tratamento dessas situações.
geram crises e mudanças, nem sempre A família se constitui, portanto, um
acordadas por todos os membros da grupo com potencialidades e compe-
família. Essas mudanças sociais têm tências para responder às exigências
impactado as relações interpessoais dessas questões. As habilidades para
tanto de famílias de classe média no lidar com situações de tal natureza são
Brasil e no mundo, quanto de famílias aprendidas pelas famílias, desde que
em situação de risco e vulnerabilida- os responsáveis decidam proteger a si
de social, agravadas pelo processo de e a seus filhos e encontrem serviços
modernização, urbanização que ge- especializados (políticas públicas) que
ram isolamento relacional na família os ajudem nessa construção (Habi-
nuclear. Acrescenta-se que as famílias, gzang & Koller, 2011; Penso & Neves,
ao migrarem para outros espaços na 2008; Ramos, 2010; Santos, 2011).
busca de oportunidade de educação e Percebe-se que antes mesmo do
emprego, afastam-se de suas origens e acontecimento das situações de vio-
redes sociais e distanciam-se de seus lências expressas, as crianças e adoles-
grupos familiares de origem. Esses centes já vivem em ambientes de risco
avanços urbanos têm produzido desi- dentro da organização familiar ou da
gualdades sociais e milhões de pessoas comunidade. São famílias protagonis-
nas cidades estão marginalizadas, en- tas de múltiplas formas de violência,
frentando diariamente desafios e pri- como negligência, desrespeito aos di-
vações (Diniz, 2009; Giddens, 2005; reitos humanos fundamentais, falta de
Jablonski, 2011; Omer, 2004). comunicação entre seus membros e es-
O fenômeno da desigualdade social tresse causado por fatores situacionais
tipicamente urbana tem consequên- e contextuais (Costa et al., 2007; Esber,
cias diretas nas famílias, pois estas são 2009; Habigzang & Caminha, 2004;
consideradas grupos sociais dinâmi- Santos, Costa, & Granjeiro, 2009; San-
cos em constante transformação, em tos, Pelisoli, & Dell’Aglio, 2012; Santos
virtude de processos demográficos e & Dell’Aglio, 2009).
socioeconômicos (Bruschini & Riden-
te, 1994). Aliado a estes fenômenos,
apontam-se aspectos psicossociais, so- Potencialidades do Cuidado
cioculturais e políticos, que interferem Vigilante
na vida familiar, tornando-a vulnerá-
vel a situações de violência, à vivência Várias linhas de pesquisas têm se pre-
de diversos fatores de risco, à explo- ocupado com o impacto do trauma da
ração e a outros abusos, expressos de violência e maus-tratos no desenvolvi-
diversas formas. A vida atual apresenta mento humano e com os avanços das
um descompasso entre novos e velhos intervenções para o enfrentamento
modelos, o que provoca o surgimento adaptativo das vítimas e seus familia-
de conflitos na vida familiar (Diniz, res, no sentido de preparar a família
2009; Omer, 2011). para lidar com situações dessa natu-
Ao mesmo tempo em que a família reza. Algumas destas pesquisas estão
é o contexto no qual ocorre a gran- baseadas nas práticas narrativas, nas

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 80 18-Aug-15 5:24:44 PM


terapias breves, nas terapias orientadas CV mostra um envolvimento estreito e Cuidado Vigilante
para solução, na dessensibilização do contínuo entre pais e filhos como for- Marlene Magnabosco Marra, 81
Haim Omer, Doutor.
trauma, na terapia cognitiva compor- ma de garantir um desenvolvimento Liana Fortunato Costa, Doutora.

tamental e nas neurociências – que positivo, destacando como evitar esses


têm demonstrado, por meio de neuro- dois extremos que se situam entre a
-imagens, os efeitos dos maus tratos superproteção e a negligência (Omer,
no cérebro infantil (Deblinger & He- 2004, 2011).
flin, 1996). No sentido prático, o CV implica em
Em uma proposta de resgatar a intervenções junto aos pais, à crian-
principal função dos pais, cuidadores ça e ao adolescente, com a orientação
e figuras proativas na vida dos filhos, para que os pais tenham uma atitude
tem-se a abordagem do Cuidado Vi- flexível, porém, informada e coorde-
gilante (CV). Trata-se de uma pers- nada, que implica na redução de fa-
pectiva teórica e prática do Professor tores de risco para a família. Os pais
Haim Omer da Universidade de Tel vão se organizar alternando-se entre
Aviv, que evidencia os efeitos positivos níveis de atenção aberta, atenção foca-
do conhecimento dos pais sobre a vida da e proteção ativa ou passos proteto-
dos filhos em situação de risco, resul- res de acordo com os sinais de alerta
tando em confiança e diálogo mútuos. (presença de mentiras, atraso escolar,
O CV difere das tentativas de monito- amizades duvidosas ou incertas, sinais
ramento e busca aumentar a presença de que a criança/adolescente não está
dos pais na vida dos filhos, constituin- bem), que eles detectam. No nível de
do-se em uma iniciativa constante dos atenção aberta, os pais primeiramente
adultos em saber o que está acontecen- manifestam um interesse não intrusi-
do na vida da criança ou do adolescen- vo e afetuoso para a criança, ao passo
te. Algumas condutas proativas, como que também estabelecem contatos não
conversar com as crianças e adoles- inquisitivos e encorajam um diálogo
centes e acolher os questionamentos aberto com as pessoas que fazem parte
de suas vidas, verificando os relatos do ambiente da criança (professores,
acerca deles, e entrar em contato com amigos ou outros pais). Conquanto
amigos, pais e professores da criança, que não haja sinais de alerta, os pais
viabilizam um monitoramento que permanecem neste nível, que é nor-
sustenta e é sustentado pelo diálogo malmente mais conducente a diálogo
(Omer, 2011). aberto e revelação espontânea da sua
Esta abordagem pretende reestabe- presença (Omer, 2004, 2011; Omer,
lecer uma relação de confiança mútua Schorr-Sapirb, & Weinblatt, 2008).
e de diálogo aberto, na qual o filho sen- No entanto, se os sinais de alarme
te que não é negligenciado, esquecido tornam-se evidentes os pais passam
ou abandonado, mas que seus pais ao nível de atenção focada. Neste nível
sabem sobre sua vida e a conhecem, eles começam a verificar e perguntar à
sem um monitoramento controlador. criança sobre os detalhes de suas ati-
Os pais trabalham no sentido de criar vidades. Eles também oferecem o cui-
oportunidades para recuperarem sua dado especial de clarificar e reafirmar
presença e encontrarem uma “terceira regras que foram deixadas de lado. Se
via”- que implica na disponibilidade os sinais de alarme retrocedem, os pais
dos pais para encontrarem os filhos, retornam ao nível de atenção aberta.
que se contrapõe a uma superproteção Caso torna-se claro que a criança está
ou monitoramento. A perspectiva do envolvida em atividades que implicam

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 81 18-Aug-15 5:24:44 PM


na construção de problemas ou em so- do CV é ao mesmo tempo mediador e
82 NPS 52 | Agosto 2015
frimento para ela, eles passam ao nível portador de uma mensagem, tornan-
de proteção ativa, isto é, eles tomam do o que é pouco familiar, obscuro ou
atitudes ativas para reduzir o risco. O distante na relação pais-filhos em algo
CV se transforma gradualmente em real, próximo e inteligível. À medida
autocuidado (Omer, 2004, 2011). que pais e filhos colocam seus elemen-
Considera-se o CV como proposta tos conceituais e suas ferramentas para
teórica prática, um meio heurístico, compreender o que o outro está falan-
uma prática discursiva de negociação do, os membros da família estão cons-
de sentidos, surgida na tensão da rela- truindo um contexto significativo, um
ção familiar, mais precisamente entre círculo hermenêutico, resultando em
pais e filhos. É um convite ao diálo- uma responsabilidade relacional. O
go, através do qual os pais e os filhos significado não reside nem nos pais,
ajudam-se mutuamente na constru- nem nos filhos, mas na relação de
ção de uma conversação que vai gerar ambos. Tanto a ação quanto o com-
significados, compreensões e valores plemento estão todo o tempo coorde-
colaborativos. O CV está incluído nas nados para que o significado ocorra,
abordagens compreensivas, pois surge tanto para o bem quanto para o mal.
de um contexto relacional e procede a As vidas são vividas de forma dialógi-
uma determinada forma de diálogo. ca e a compreensão das dificuldades
O CV como abordagem relacional existentes entre as pessoas desperta
para intervenções familiares em situa- para a responsabilidade relacional.
ção de violência tem um interesse pela O conceito de CV integra ideias de
linguagem e parte desta para a com- um diálogo aberto e transparente, uma
preensão do significado do que fala atenção protetiva e colaborativa, uma
cada um dos componentes da relação. vigilância ativa dos pais em caso de pe-
O diálogo é produzido para se com- rigo evidente dos filhos. Além disso, o
preender o que o outro está significan- CV leva também em consideração os
do ou querendo informar. O diálogo efeitos negativos do controle dos pais,
traz outras vozes que possibilitam no- que impede a criança e o adolescente
vas formas de conversação que ajudam de exercitarem sua autonomia. Esta
a dissolver os problemas. Ao transitar abordagem entende que esconder a
em um diálogo com novas vozes inte- violência em casa equivale a perpetuá-
riores expressas, renova-se também a -la. Portanto, o jogo do falar e se calar
forma de ver o mundo. A riqueza da e as dimensões relacionadas aos diálo-
linguagem possibilita buscar novos gos entre os membros da família nos
sentidos, capacita a modificar e trans- momentos de violência são aspectos
formar a realidade (Gergen, 2006). que devem ser aprendidos. Há que se
O diálogo produzido no contexto atentar para a necessidade de remover
do CV passa pelo processo que vai da as narrativas e os discursos dominan-
inteligibilidade à compreensão. A lin- tes vivenciados pelas famílias. Pais e
guagem é uma ferramenta que a com- filhos são capazes de desenvolver no-
preensão humana utiliza para chegar vos conhecimentos construídos sobre
ao significado das coisas e transmiti- si mesmos ao se darem conta do que
-los aos outros. Precisa-se compreen- cada um narra sobre suas vivências e
der para dar sentido ao que se fala ou também da dimensão do que está nar-
ao que se ouve. Portanto, compreensão rando para sua vida numa perspectiva
é diferente de explicação. O processo de cuidado (Omer, 2011).

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 82 18-Aug-15 5:24:44 PM


Modos de vida vão sendo organi- tos, gerando propostas de interven- Cuidado Vigilante
zados e forças vão sendo mobilizadas ções que mobilizam e impulsionam Marlene Magnabosco Marra, 83
Haim Omer, Doutor.
na direção da criação de determinados os sujeitos ao desejo de relatar sobre Liana Fortunato Costa, Doutora.

padrões normativos (dominantes) que suas vidas. O procedimento consiste


sustentam determinadas narrativas em ouvir e prestar atenção à criança
sobre as situações de vidas. Essas con- para que ela tenha voz e para ajudá-la
dições de vida influenciam a formação a enfrentar a violência sofrida. Nesse
de dificuldades e problemas ligados movimento, a linguagem passa a ser
também às questões da violência de uma forma de imagem embutida em
modo geral e aos fatores de risco em sistemas de regras ou em convenções
especial. Os pais constroem seus mo- compartilhadas, mas ainda não ressig-
dos de viver partindo de narrativas e nificadas naquele contexto (Gergen &
significados criados e construídos em Gergen, 2010).
suas vivências com suas famílias de As experiências de violência vivi-
acordo com a cultura na qual estão das na interação são modeladas pelos
inseridos. O CV tem a perspectiva de significados que as pessoas vão dan-
construir um contexto onde pais e fi- do a elas. São estes significados que
lhos juntos possam conversar e expli- constroem a forma como a pessoa vai
car um ao outro o significado vivido expressar as narrativas, confirmando
e criado pela família anteriormente, suas interpretações ou não acerca do
seus medos, anseios e possibilidades vivido. Percebe-se que a pessoa que
futuras. Os pais podem dizer aos seus está em situação de abuso sexual e ou-
filhos: “Se até agora só demos conta tras formas de violência expressam,
de fazer assim, podemos pensar em em geral, narrativas de culpabilidade
outras formas e encontrar espaços al- e demérito da sua capacidade de evi-
ternativos para construir de um novo tar situações que as colocam nesta po-
jeito, que nos atenda”. A vivência do sição. Portanto, os atos de violência e
protocolo de atendimento às famí- abuso confirmam as interpretações,
lias com histórico de abuso sexual na tratando-se de um processo circular:
abordagem do CV possibilita essa con- vivência-significado-interpretação-
versação (Marra & Omer, 2015). -expressão. Não existe um significado
Acredita-se que os diálogos articu- em si passível de ser capturado de for-
lados entre os membros da família po- ma correta. É um processo construído,
tencializam as vozes de conversações criado e recriado pelo intérprete. O
com suas dificuldades, medos, ansie- que se compreende não é aquilo que
dades, sintomas e favorecem a liberta- é, pois envolve a pessoa do intérprete.
ção do enclausuramento resultante de Os seres humanos são seres interpre-
concepções totalizantes. A conversa- tantes. Ao se interpretar experiências,
ção com os familiares e amigos, como tem-se acesso a algum marco de inteli-
também com outras vozes, deve ser gibilidade, que possibilita a atribuição
considerada (White, 2002). Aliviar o de novos significados. Os pais não po-
sofrimento da criança consiste em dar dem pensar que seus relatos e suas po-
voz a ela e às figuras ou protagonistas sições são melhores que as de seus fi-
existentes nela (Cunningham, 2009). lhos. As vidas são constituídas através
A concepção dos processos de cons- das narrativas e, portanto, é impossível
trução narrativa favorece a compreen- pensar que um relato é melhor ou pior
são dos fenômenos humanos e permite que outro (Gergen & Gergen, 2010;
interpretar várias dimensões dos rela- White, 2002).

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 83 18-Aug-15 5:24:44 PM


O construcionismo Social textos entrelaçados com suas respec-
84 NPS 52 | Agosto 2015
tivas tramas. São padrões de comuni-
O pós-modernismo permite que se cação que conectam a família e seus
considerem múltiplas possibilidades membros à construção de suas iden-
e múltiplas versões. Os críticos pós- tidades, de suas experiências vitais e
-modernos valorizam as conexões en- formas de ação. Estes textos, por meio
tre as pessoas e desconsideram a tradi- de processos conversacionais ou não
ção do positivismo que determina as conversacionais mobilizam a família.
causas dos sofrimentos humanos .Os Estes textos ou relatos que falam das
pensadores pós-modernos baseiam se particularidades ou atributos do siste-
na crença de que as interpretações e as ma familiar, um corpus de narrações
intervenções sejam raras e que con- descreve e faz as famílias singulares
firmar o significado das pessoas é o ou únicas e estabelecem valores, prin-
ponto alto dessa proposta. Sustentam cípios e papéis que as caracterizam,
ainda, que os terapeutas venham de constituindo suas identidades fami-
um lugar de “não saber” e descartam a liares (Gallego, 2006). Esse corpus
ideia de procurar problemas e doenças favorece a emergência de histórias e
quando de seus atendimentos. Não há memórias familiares. Neste sentido,
conhecimento definitivo e útil que se observa-se a família como uma refe-
possa generalizar e nem situações que rência importante na construção dos
definam a essência última da pessoa. relatos. Para a compreensão e mudan-
O foco está na linguagem que constrói ças de atitudes, com relação às tramas
esses mundos sociais. O que organi- e relatos, é necessário que se compre-
za a vidas das pessoas é o significado enda o significado do que se está vi-
construído acerca de suas experiên- vendo.
cias e atribuído a essas conexões. As- As narrativas são eventos liga-
sim sendo, o significado de qualquer dos em sequência através do tempo,
vivência dependerá de sua localização de acordo com um enredo (White &
contextual e os recursos para essa sig- Epston, 1993). Os relatos não nascem
nificação nem sempre está na pessoa do “nada”, mas se constroem a partir
e sim nas suas relações (Anderson, de uma rede de processos integrados
2010; Hoffman, 2001; Gergen, 1985). por múltiplos eventos de maneira re-
As pessoas vivem suas vidas de cursiva. Não existe uma definição
acordo com as histórias que cons- precisa sobre o que sejam narrativas,
troem sobre a experiência vivida. As mas podem ser compreendidas como
vivências e experiências são tecidas formas linguísticas usadas para contar
e produzidas nas relações familiares algo sobre o processo vivido junto às
como construções sociais. Os con- demais pessoas e, para expressar ex-
textos relacionais se definem como periências e situações. As narrativas
cenários espaços-temporais nos quais são construções complexas ao redor
os conteúdos familiares se mantêm ou de tramas temáticas, construídas em
se transformam. Pode-se afirmar que uma dimensão histórica e negociadas
os textos e suas tramas, criados pelas socialmente. Elas estão sempre abertas
famílias para explicarem a violência, à reconstrução, não se constituindo
são compreendidos como conteúdos como uma posse das pessoas, mas de
narrativos que necessitam de novos suas relações vividas em um sistema
significados e sentidos. Nos contex- social e histórico, modos discursivos
tos familiares, existem infinidades de disponibilizados pela cultura.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 84 18-Aug-15 5:24:44 PM


Dessa maneira, as narrativas não sobre nós mesmos e sobre os envolvi- Cuidado Vigilante
falam somente do mundo interno da dos na situação. Como chegar juntos a Marlene Magnabosco Marra, 85
Haim Omer, Doutor.
pessoa ou das suas cognições, mas se um sentido, a um caminho, respeitan- Liana Fortunato Costa, Doutora.

constituem formas sociais de signi- do as diferenças, legitimando o outro?


ficar o ocorrido e organizar as ações Como se pode focar conjuntamente
que fazem parte de nosso processo no processo que se está vivendo, isto
conversacional (Gergen, 1999). As é, buscando recursos para as ações?
narrativas organizam e definem signi- É importante acompanhar o proces-
ficados e sentidos às experiências das so que se faz via conversação entre as
pessoas, e são “instrumentos incrus- pessoas envolvidas em uma situação,
tados nas sequências conversacionais” focar nos processos e não nas pessoas
(Gergen, 1999, p. 234) e recursos cul- e criar contextos em que múltiplas for-
turais que cumprem um propósito mas possam coexistir buscando me-
social. Uma vez compreendidas como lhor potenciais e futuro de realidades
instrumentos e recursos, pode-se preferidas. Além disso, é importante
concluir que as narrativas das experi- construir conjuntamente um conheci-
ências formulam relatos e expressões mento que amplie a visão e que consi-
que promovem mudanças e transfor- dere uma multiplicidade de discursos.
mações nas vivências. Faz-se, pois, um convite a uma postura
As narrativas, os textos e as tramas crítica e reflexiva das nossas formas de
estruturam-se a partir de construções perceber e funcionar no mundo (Shot-
linguísticas que permitem a formula- ter, 1993).
ção de relatos formados por sequên- Responsabilidade relacional é uma
cias que são ordenadas em enunciados, ferramenta que se centra nos processos
argumentos e descrições. Estes relatos microssociais das relações, dentre eles:
encontram-se de forma imprevisível no processo de produção de conheci-
com outros processos e/ou eventos mento no qual a verdade não está em
presentes na interação entre pessoas, uma polaridade ou em outra, mas em
estabelecendo maneiras de perceber as processos interativos que se estabele-
experiências de si mesmo e de outros cem nas relações, ou seja, uma inteli-
sistemas (Gergen, 2006a; Omer, 1997; gibilidade relacional que ocorre entre
Rasera, Guanes, & Japur, 2004; White os indivíduos e que gera possibilidades
& Epston, 1993). de abertura e ampliação de sentidos;
no processo comunicativo que não
seja baseado em antagonismos, mas
Um encontro entre o Cuidado em multiplicidades e aproximações,
Vigilante e o Construcionismo acreditando-se que os sentidos e as
Social: A responsabilidade mudanças se darão nas relações e nas
relacional interações e não na mente de indiví-
duos, como tradicionalmente se bus-
Shotter (1993), ao considerar uma vi- cava alcançar; e em formas discursivas
são dialógica, tal como fala Bakhtin nas quais caibam diferenças culturais
(1981) propõe uma compreensão ati- e ideológicas, que gerem espaços in-
va e responsiva para entender como clusivos para que as pessoas possam
as pessoas se constroem. Tal como no seguir juntas buscando um cuidado
Construcionismo social, o CV coloca em saúde mais efetivo e gerando prá-
a responsabilidade relacional a serviço ticas mais contextuais. Desta maneira,
da busca de formas de entendimento fracasso, sucesso, problemas e dificul-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 85 18-Aug-15 5:24:44 PM


dades não estão localizados em um in- Social ainda vincula a ação a seus sig-
86 NPS 52 | Agosto 2015
divíduo, mas num imbricado processo nificados em lugar do comportamen-
de coordenação entre as pessoas. Isso to a seus determinantes e reconhece
possibilita transformar a compreensão que as pessoas assumem uma respon-
tradicional do indivíduo, pois se pas- sabilidade por suas escolhas de vida.
sa a enxergar as situações como con- Ao juntar-se a outras pessoas para
juntamente criadas, instituindo assim narrar suas experiências, o constru-
um diferente espaço conversacional cionista social assume conjuntamen-
e a geração de corresponsabilidade. te o propósito de denunciar e desafiar
Nesta perspectiva, o processo de se as injustiças. Esta abordagem, tanto
relacionar tem potência transforma- quanto o CV, tende a abarcar toda a
dora, e por isso se faz o esforço em dar diversidade de famílias que vivem em
visibilidade a ele e investir na prática situações de violências e risco social.
cotidiana das relações (McNamee & Trata-se de uma tentativa de remover
Gergen, 1998). as narrativas e discursos dominantes
Os significados originam-se no pro- acerca da violência e desenvolver a
cesso de conversação e as compreen- capacidade de novos conhecimen-
sões alternativas ocorrem no processo tos construídos responsavelmente,
de diálogo junto àqueles com os quais ao dar-se conta do que cada um está
convivem. Essas conversações desen- narrando e a dimensão do que está
volvem recursos resilientes que con- narrando para sua vida (Gergen &
tribuem para novas respostas para as Gergen, 2010).
situações vividas. Esse é o movimento São variadas as unidades de sentido
que as famílias fazem ao viver o pro- expressas pelas famílias no momento
cesso do CV, buscando seus próprios que entram em contato com as histó-
recursos no percurso. Cada família en- rias vivenciadas pelas crianças e ado-
contra saídas em sua convivência que, lescentes, carregadas de sofrimento e
para muitos, pode parecer errada, não marcadas por ciclos de violência e si-
adaptada ou até mesmo estranha. Nes- tuações de risco. A primeira unidade
se sentido, cabe a cada família encon- de sentido pode advir da própria ví-
trar seu caminho. tima ou de outras pessoas da família,
Para os construcionistas sociais, da comunidade próxima ou de outras
tudo que é real é resultante de uma redes sociais a que pertencem. Essas
construção social. A compreensão da histórias e relatos são construídos a
realidade sempre parte de uma tradi- partir das narrativas privadas que as
ção cultural. Os eventos narrados po- pessoas têm de suas vidas e a partir
dem ser idênticos, mas as descrições daí, representa o marco inicial para
dos fatos dependem da tradição. Não a interpretação de suas experiências
existem descrições isentas de valores. vitais. Se o discurso dominante na-
Os pais e filhos às vezes falam da mes- quela cultura é um discurso que des-
ma questão, porém com significados considera tanto os processos vividos
diferentes. O que se fala nem sempre por aquela pessoa que está sofrendo
é o que se ouve. O Construcionismo a violência, quanto os processos dos
Social trata das histórias que cons- responsáveis pela criança ou adoles-
tituem as vidas das pessoas e tem o cente, então é provável que se atribua
papel de comprometer-se com as prá- um significado de culpa e demérito
ticas da palavra e com os significados pessoal. Assim, a pessoa expressa seus
dessas práticas. O Construcionismo relatos de violência de maneira auto

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 86 18-Aug-15 5:24:44 PM


abusiva e autodestrutiva (Gergen & sabilidade e à coordenação entre as Cuidado Vigilante
Gergen, 2010; White, 2002). pessoas na produção dos sentidos e Marlene Magnabosco Marra, 87
Haim Omer, Doutor.
Tanto o CV quanto o Construcio- das ações de cada um concretizados Liana Fortunato Costa, Doutora.

nismo Social são considerados abor- no mundo. Tem-se a oportunidade de


dagens relacionais e que desenvolvem refletir sobre o significado da cons-
a compreensão de processos interco- trução social relacionado às situações
nectados de interação. O Construcio- vivenciadas no conjunto e suas im-
nismo Social não rechaça protocolos e plicações para a família e os demais
técnicas, mas convida a pensar todas contextos. Busca-se conhecer cada
essas ferramentas como socialmente sujeito por meio dos sentidos e signi-
construídas. Nesse processo de cons- ficados que cada um dá às suas vivên-
trução e reconstrução, o mais impor- cias. A busca da verdade é baseada na
tante é que as pessoas estejam juntas diversidade e nunca se revela em sua
e disponíveis para o diálogo, para a totalidade. As verdades vêm das cren-
reflexividade e para a construção de ças, valores e diálogos que são criados
formas de trabalho que possam aten- com os outros.
der ao sofrimento das pessoas de for- O diálogo cooperativo que é desen-
ma produtiva e prazerosa. Na medida volvido entre pais e filhos abre pers-
em que as famílias se propõem a pro- pectiva para a valorização da plura-
blematizar o fenômeno de maus tratos, lidade, onde novas vozes podem ser
violências e riscos, sem estar fixada em inseridas na conversação, ampliando
encontrar uma solução, mas aberta a espaços para novos significados, di-
criar narrativas diferentes, comple- vergentes ou convergentes para a con-
xificar e olhar de diferentes lugares,
vivência, e diminuindo os conflitos. À
elas podem começar a capturar no-
medida que a conversação entre pais
vas formas de compreensão. Uma vez
e filhos é desenvolvida em uma cons-
que tornam sua preocupação pública
trução dialógica e compartilhada da
e se permitem falar sob a perspectiva
realidade, estes experimentam, cada
da busca pela particularidade de seus
vez mais e em âmbitos de intimidade,
sentimentos e não pela generalidade,
a produção de sentidos e significados
as famílias vão ao encontro da Res-
e um discurso de inteligibilidade. O
ponsabilidade Relacional e do Cuida-
marco de compreensão e inteligibili-
do Vigilante. Este movimento torna-se
dade são as novas narrativas ou novos
um contexto de capacitação de pro-
significados, possibilidades e oportu-
cessos transformativos. Este contexto
qualifica a pessoa, resgata seus recur- nidades. Ocorre aí um conhecimento
sos para a ação e possibilita o encontro em espiral (Gergen & Gergen, 2010;
de espaços onde múltiplos formas de White, 2002).
ser possam coexistir. A metodologia do CV se propõe a
Tanto o CV quanto o Construcio- ser participativa e colaborativa, possi-
nismo Social abandonam a alterna- bilitando que as soluções sejam cons-
tiva de um discurso individualista, truídas de forma mais abrangente e
contribuindo para um trabalho com com o envolvimento dos sujeitos na
famílias, grupos e comunidades. situação. Esta dimensão aproxima essa
Além disso, ambos vinculam a ação nova abordagem das teorias relacio-
dos envolvidos a seus significados e nais. Enfim, o Cuidado Vigilante le-
sentidos. A interação humana é valo- gitima ideias de corresponsabilidade,
rizada, dando importância à respon- cooperação, interação e contexto.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 87 18-Aug-15 5:24:44 PM


Considerações gerais vimento e a criança passa por vários
88 NPS 52 | Agosto 2015
impactos que não pode compreender.
O CV é uma abordagem que convi- A ausência dos pais já é uma violência
da os pais a considerarem pequenos relacional. É difícil para a criança es-
gestos, falar de questões que parecem tar perto de pais violentos e vice versa.
insignificantes, procurar conciliação, Nem a criança nem os pais são capa-
o caminho do meio, uma autoridade zes de perceber que a violência está na
amorosa, elemento indispensável ao interação entre eles, no contexto das
relacionamento. É uma nova práti- situações e não nas pessoas e que elas,
ca que promove a transformação de pais e filhos, são apenas um dos ele-
sentidos. É uma forma de condução mentos dessa situação. A criança não
de diálogos e intervenções familiares consegue fazer essa conexão com rela-
que ajuda a potencializar o processo ção à violência ou negligencia de seus
de empoderamento da família. Uma pais.
tentativa de buscar soluções para esses Os pais vão compreender como tor-
dilemas, integrando conceitos, mos- nar se presente na vida dos filhos, não
trando que o mecanismo que move através de uma posição dominante,
o Cuidado Vigilante não é o contro- pois este modelo pode tornar se uma
le, mas sim a presença dos pais e suas batalha pelo poder e controle. Fortale-
implicações altamente práticas na vida cer os pais para uma autoridade posi-
da criança e adolescente. É, portanto tiva e não autoritária. Todo o processo
uma abordagem psicoeducativa. Tem ajuda os pais a se sentirem mais apoia-
vários aspectos coincidentes com o dos, protegidos a fim de ajuda-los a te-
construcionismo social, apresentando rem melhores maneiras de reagir à sua
se como uma práxis dialogada. Essa disposição. Os pais vão aprender a não
dimensão correspondente diz respeito serem violentos e a resistirem às vio-
tanto à prática profissional no campo lências presentes no contexto. Resistir
da psicoterapia, como para a resolu- à humilhação e as atividades de auto
ção de conflitos e os atendimentos risco e autodestrutivas. É como resistir
psicossociais. ao abuso da violência.
O processo está centrado em torno As dificuldades, problemas e situa-
do papel de pais e como eles podem ções traumáticas vividas co-evoluem
ser cuidadores. Neste sentido capacita com os sistemas culturais e de sig-
os pais a fazerem escolhas mais posi- nificado pessoal. Estão incrustados
tivas no trato com os filhos e aumen- em nosso comportamento e ações, os
tar sua presença em contraste com o quais influenciam a maneira como so-
absentismo ou ausência que já estava mos e agimos no mundo e como nos
estabelecida na relação entre pais e fi- vemos e vemos aos demais. Por isso ao
lhos. Vai possibilitar aos pais abrir se contarmos nossas histórias, estes sig-
em direção ao filho, compartilhar seus nificados são os que conferem sentido
sentimentos e pensamentos, seus dias às nossas experiências e selecionam os
bons e maus, construindo um vínculo aspectos que daremos maior impor-
mais forte entre eles e também per- tância ou não, originando contextos
ceber melhor como estão seus filhos, de interação que sustentam ou não o
promovendo segurança e diminuindo que privilegiamos (Costa et al., 2009;
a violência. A ausência da presença Gergen, 1999; Grandesso, 2008).
dos pais na vida da criança tira lhes a O conhecimento das histórias de
oportunidade de educação e desenvol- sua vida compartilhada às de ou-

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 88 18-Aug-15 5:24:44 PM


tras pessoas propiciará aos sujeitos Bakhtin, M. (1981). The dialogic imagi- Cuidado Vigilante
a construção de novos significados, nation. Holquist Austin: University Marlene Magnabosco Marra, 89
Haim Omer, Doutor.
a vivência de outras circunstâncias of Texas Press. Liana Fortunato Costa, Doutora.

mais favoráveis e potencializadoras Costa, M. C. O., Carvalho, R. C., Santa


e a desconstrução dessas narrativas e Bárbara, J. F. R., Santos, C. A. S. T.,
reconstrução de outras. Na conversa- Gomes, W., & Sousa, H. L. (2007). O
ção, é possível cocriar outras possibi- perfil da violência contra crianças e
lidades no universo narrativo, nome- adolescentes segundo registros de
ando as vivências e histórias de forma Conselhos Tutelares: vítimas, agres-
diferente. Este processo é vivido pelas sores e manifestações de violência.
famílias no transcurso do aprendiza- Ciência e Saúde Coletiva, 12(5),
do do CV. As famílias em situação de 1129-1141.
risco e violência vão organizando suas Cunningham, A. (2009). A escuta de
experiências à medida que conversam crianças abusadas sexualmente para
e narram sobre o vivido, produzindo compreensão do processo de auto-
novos vocabulários e significados, en- -revelação. In L. C. A. Willians & E.
tendidos e compartilhados por toda A. C. Araújo (Orgs.). Prevenção do
a família. A família converte as in- Abuso sexual infantil: Um enfoque
formações, os significados e os senti- interdisciplinar (pp.89-103). Curiti-
mentos em possibilidades alternativas ba: Juruá.
de vida. Quando se conecta a ação ao Deblinger, E., & Helfin, A. H. (1996).
seu sentido as descrições são libera- Abuso sexual infantil. In F. M. Dat-
das. Assim, na conversação, os pais e tilio & A. Freeman (Orgs.). Estra-
os filhos constroem entendimentos de tégias cognitivo-comportamentais
que um fato ou atitude não tem uma para intervenção em crise: tópicos
verdade única. O diálogo constante e especiais (pp.229-253). São Paulo:
aberto cede lugar para outra voz, outra Editorial Psy.
visão e expansão na esfera da relação, Diniz, G. R. S. (2009). O casamento
aumentando o potencial protetor das contemporâneo em revista. In T. Fé-
famílias. Esta é a perspectiva do Cui- res-Carneiro (Org.). Casal e família:
dado Vigilante. permanências e rupturas (pp. 135-
155). São Paulo: Casa do Psicólogo.
Esber, K.M. (2009). Autores de violência
Referências sexual contra crianças e adolescen-
tes. Goiânia: Cânone Editorial.
Anderson, H. (2010). Conversação, Lin- Faleiros, V. P. & Faleiros, E. S. (2007).
guagem e possibilidades. Um enfo- Escola que protege: enfrentando a
que pós-moderno da terapia. São violência contra criança e adolescen-
Paulo: Editora Roca. te. Brasília: Ministério da Educação/
Ben-Arieh, A., & Haj-Yahia, M. M. (2006). Secretaria de Educação Continua-
Geography of Child Maltreatment da, Alfabetização e Diversidade.
in Israel: Findings From a National Gallego, S. U. (2006). Comunicación fa-
Data Set of Cases Reported to the miliar: un mundo de construcciones
Social Services. Child Abuse & Ne- simbólicas y relacionales. Manizales:
glect, 30 (13), 991-1003. Editorial Universidad de Caldas.
Bruschini, C. & Ridente, S. (1994). Fa- Gergen, K.J. (1999). An invitation to so-
mília, casa e trabalho. Cadernos de cial construction. London: Sage.
Pesquisa, 88, 30-36.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 89 18-Aug-15 5:24:45 PM


Gergen, K.J. (2006). Construir la reali- Lebowitz, E. R., Omer, H., Holly. H., & La-
90 NPS 52 | Agosto 2015
dad: el futuro de la psicoterapia. Bar- wrence, S. (2013). Parent Training
celona: Paidós. for Childhood Anxiety Disorders:
Gergen, K. J. & Gergen, M. (2010). The SPACE Program. Cognitive and
Construcionismo social: Um convite Behavioral Practice 21(4), 456-469.
ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Marra, M. M., Omer, H. (2015).: Cuida-
Noos. do vigilante: cambios para familias
Giddens, A. (2005). O mundo em des- en situación de abuso sexual. Ma-
controle: O que a globalização está nuscrito submetido para publica-
fazendo de nós. Rio de Janeiro: ção. Madri: Revista Psychosocial
Record. Intervention
Habigzang, L. F. & Caminha, R.M. McNamee, S., & Gergen, J. K. (Orgs.).
(2004). Abuso sexual contra crianças (1998). A terapia como construção
e adolescentes: Conceituação e inter- social. Porto Alegre: Artes Médicas
venção clínica. São Paulo: Casa do Ministério da Saúde (2002). Violência
Psicólogo. intrafamiliar: orientações para práti-
Habigzang, L. F. & Koller, S. H. (2011). ca em serviço (Cadernos de Atenção
Abuso sexual contra crianças e ado- Básica nº 8, série A). Brasília: Mi-
lescentes: Aspectos conceituais e es- nistério da Saúde.
tudos recentes. In L. F. Habigzang & Moura, A. T. M., & Reichenheim. M. E.
S. H. Koller (Org.). Intervenção psi- (2005). Estamos realmente detec-
cológica para crianças e adolescentes tando violência familiar contra a
vitimas de violência sexual: manual criança em serviços de saúde? A ex-
de capacitação. São Paulo: Casa do periência de um serviço público do
Psicólogo. Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de
Habigzang, L. F., Streber, F., Corte, F. Saúde Pública, 21(4),1124-1133.
D., Hattzenberger, R., Cunha, R. C. Moura, A. C. A. M., Scodelario, A. S., Ca-
Ramos, M., & Koller, S. H. (2007). margo, C. N. M. F., Ferrari, D. C. A.,
Integrando os cuidadores, a rede Mattos, G. O. & Miyahara, R.P. (2008).
e os terapeutas: potencializando a Reconstrução de vidas: Como preve-
melhora clínica de crianças e ado- nir e enfrentar a violência domésti-
lescentes vítimas de abuso sexual. ca, o abuso e a exploração sexual de
In M. L. P. Leal, M. F. P. Leal, & Li- crianças e adolescentes. São Paulo:
bório, R. M. C (Orgs.).  Tráfico de SMADS (Secretaria Municipal de
pessoas e violência sexual  (pp. 263- Assistência e Desenvolvimento So-
274). Brasília: Violes/Ser/Universi- cial)/SEDES Sapientae.
dade de Brasília. Omer, H. (1997). Intervenções críticas
Hoffman, L. (2001). Family Thera- em psicoterapia: Do impasse ao iní-
py.New York: WWW Norton & cio da mudança. Porto Alegre: Artes
Company. Médicas.
Jablonski, B. (2011). O país do casa- Omer, H. (2004). Nonviolent Resistan-
mento segundo seus futuros ha- ce: A new approach to violent and
bitantes: pesquisando atitudes e self-destructive children. New York:
expectativa de jovens solteiros. In Cambridge University Press.
T. Féres-Carneiro (Org.). Casal e fa- Omer, H. (2011). The new Authority:
mília: conjugalidade, parentalidade Family, school an community. New
e psicoterapia (pp.27-42). São Paulo: York: Cambridge University Press.
Casa do Psicólogo.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 90 18-Aug-15 5:24:45 PM


Omer, H., Schorr-Sapirb. I., & Wein- Santos, S. S., & Dell’Aglio, D.D (2009). Cuidado Vigilante
blatt. U. (2008). Non-violent resis- Revelação do abuso sexual infantil: Marlene Magnabosco Marra, 91
Haim Omer, Doutor.
tance and violence against siblings: Reações maternas. Psicologia Teoria Liana Fortunato Costa, Doutora.
the Association for Family Thera- e Pesquisa, 25 (1), 85-92.
py. Journal of Family Therapy, 30, Santos, S. S, Pelisoli, C., Dell’Aglio, D.
450–464. D. (2012). Desvendando segredos,
Omer H, Steinmetz S. G., Carthy, T., & von padrões e dinâmicas familiares no
Schlippe A. (2013). The anchoring abuso sexual. In L.F. Habigzang &
function: parental authority and the S.H. Koller. (Orgs.). Violência con-
parent-child bond. Family Process, tra crianças e adolescentes: Teoria,
52(2), 193-206. pesquisa e prática (pp.55-69). Porto
Penso, M. A. & Neves, V. L. (2008). Abu- Alegre: Artmed.
so sexual infantil e transgeraciona- Shotter, J. (1993). Conversational reali-
lidade. In M.A. Penso & L. F. Costa ties. Londons: Sage.
(Orgs.). A transmissão geracional UNICEF. (2012a). Situação mundial
em diferentes contextos: da pesquisa da infância 2012: Crianças em um
à intervenção. São Paulo: Summus. mundo urbano. Recuperado em 27
Ramos, M. C. R. (2010). Mães de meni- de novembro de 2012, de http://
nas vítimas de abuso sexual: aquilo www.unicef.org/brazil/pt/PT-BR_
que não se pode dizer. Dissertação SOWC_2012.pdf.
de Mestrado não publicada. Uni- UNICEF. (2012b). Together for girls: se-
versidade Católica de Pernambuco, xual violence fact sheet. Recuperado
Recife, Pernambuco, Brasil. em 05 de março de 2013, de http://
Rasera, F. E., Guanes, C., & Japur, M. www.unicef.org/protection/files/
(2004). Psicologia, ciência e cons- Together_for_Girls_Sexual_Vio-
trucionismo: Dando sentido ao Self. lence_Fact_Sheet_July_2012.pdf.
Psicologia: Reflexão e Crítica, 17(2), Zeira, A., Astor, R. A., & Benbenishty, R.
157-165. (2002). Sexual harassment in jewish
Santos, S. S. (2011). Uma análise do and arab public schools in Israel.
contexto de revelação e notificação Child Abuse & Neglect, 26(2), 149
do abuso sexual: A percepção de -166.
mães e de adolescentes vítimas. Dis- White, M. (2002). Reescribir la vida:
sertação de Doutorado não publi- entrevistas y ensayos. Barcelona:
cada. Universidade Federal do Rio Gedisa
Grande do Sul, Porto Alegre, Rio White, M., & Epston, D. (1993). Medios
Grande do Sul, Brasil. narrativos para fines terapeuticos.
Santos, V. A., Costa, L. F. & Granjeiro, I. Barcelona: Paidós.
A. C. L. (2009). Intervenção no abu-
so sexual intrafamiliar: Ingerência
invasiva ou proteção devida. Psico,
40(4), 516-524.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 52, p. 77-91, agosto 2015.

NPS_52.indd 91 18-Aug-15 5:24:45 PM

Você também pode gostar