Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Bullying:
O outro
lado da
escola
Agressões físicas ou verbais e diversas
formas de intimidação entre colegas
são um fenómeno que cresce a olhos
vistos no Brasil e no mundo; um tipo de
violência real ou virtual que compromete
seriamente o desenvolvimento global
de crianças e jovens
Por Cleo Fante, educadora
em dúvida, todos nós, em algum
^ momento da vida, já fomos vítimas
da ação de um bully (valentão).
Suas atitudes prepotentes, domi-
nadoras e cruéis podem ser identificadas em
diversos contextos: na família, na escola, nos
condomínios, no trabalho, nas forças armadas,
no trânsito, nas filas de banco, nos hospitais,
nas delegacias, nos presídios, nos asilos de ido-
sos, na igreja, na política... Os valentões estão
em todo lugar, porém no âmbito escolar seus
estragos podem ser ainda maiores.
Em várias partes do mundo, meninos e
54 MENTE&CÉREBRO www.mentecerebro.com.br
meninas se vêem envolvidos num fenómeno início na década de 70, na Noruega, Suécia e
B O D E EXPIATÓRIO
conhecido como bullying escolar. O termo Dinamarca, motivados pelo crescente núme-
A exposição repetida de
bullying é utilizado na literatura psicológica ro de suicídios entre crianças e adolescentes,
um indivíduo a ações
anglo-saxã, em estudos sobre a violência, para principalmente na Europa. Em busca de suas
tiranas de todo tipo
designar comportamentos agressivos e anti- principais causas, os pesquisadores depararam
por parte de colegas é
sociais. De origem inglesa, sem tradução na com os maus-tratos que os alunos recebiam
característica de uma cena
língua portuguesa, refere-se a uma situação dos colegas de escola. Profissionais da área de bullying. As vítimas,
na qual um indivíduo (bully) ou um grupo de de psicologia passaram, então, a estudar as em geral, não conseguem
indivíduos {bullies) deliberadamente atormen- formas de relacionamento estabelecidas entre se defender como
ta, hostiliza ou molesta outro(s). Pode ser tra- os estudantes e constataram a existência de deveriam ou mesmo
duzido como tiranizar, oprimir, amedrontar, um fenómeno antigo, que, no entanto, reque- recorrer a alguém que o
intimidar, humilhar. ria atenção e tratamento, por comprometer faça por elas; costumam
Os estudos sobre o bullying escolar tiveram sobretudo o psiquismo daqueles que eram ser passivas e inseguras
vitimizados, em especial o das crianças pequenas. como vítimas e agressores. A partir daí, outros
ALTO PREÇO Pioneiramente, entre 1978 e 1993, Dan países, como o Brasil (ver quadro acima), se dis-
O bullying abre as portas Olweus, professor da Universidade de Bergen, puseram a estudar o fenómeno, encontrando
para a delinquência. Noruega, desenvolveu estudos em que diag- índices semelhantes ou superiores.
Os adolescentes valentões nosticou o fenómeno e estabeleceu critérios
tendem a ter uma ou para diferenciá-lo das brincadeiras próprias AGRESSORES E VÍTIMAS
duas condenações legais da idade e do amadurecimento do indivíduo. O bullying é caracterizado pela repetição, pelo
no decorrer da vida, Identificou que 15% dos alunos noruegueses desequilíbrio de poder entre vítima e agressor
muitos antes dos 24 anos de 8 a 16 anos estavam envolvidos em bullying. e pela ausência de motivos que justifiquem os
maus-tratos. Na prática, acontece quando um
ou mais indivíduos elegem outro (ou outros)
como "bode expiatório", expondo-o repeti-
damente a ações agressivas, contra as quais
ele não consegue se defender com eficiência
nem motivar alguém a defendê-lo. Em geral,
os agressores escolhem como vítimas os indi-
víduos tímidos, retraídos, com dificuldade de
expressão, de socialização e de defesa ou sem
recursos ou status para fazer cessar os ataques.
Normalmente, as vítimas têm aspecto físico
mais frágil ou algum traço ou característica
que as diferenciam dos demais. Demonstram
insegurança, passividade, submissão, ansieda-
de, baixa auto-estima, hipersensibilidade, difi-
culdade de auto-afirmação e de auto-expres-
são, nervosismo ou aspectos depressivos.
Os ataques tendem a expor as vítimas ao
medo, à humilhação e ao constrangimento
público. São ações hostis e deliberadas, por
meio de apelidos pejorativos, zoações, perse-
56 MENTE&CÉREBRO' www.mentecerebro.com.br
5^ a 8" série do ensino
público e privado do Rio
de Janeiro, ouvidos em
2002-2003, 40,5% afirmam
ter participado de ações
intimidatórias como
vítimas ou agressores.
Diante de quadros
como este, programas
antibullying têm sido
cada vez mais difundidos
na educação formal, como
mostram os cartazes ao
lado feitos por alunos da
Escola Municipal Joaquim
Nabuco (RJ, 2003)
FORMAS DE ATAQUE
Os garotos são mais
propensos a cometer
bullying e, em geral, usam
de agressões psicológicas
ou físicas. As meninas,
entretanto, optam por
caminhos mais "sutis",
em meio a um círculo mais
restrito de amizades
- entre as formas mais
comuns estão a difamação,
a fofoca e a manipulação
afetiva e social
58 MENTE&CÉREBRO www.mentecerebro.com.br
boatos. Ameaçam contar segredos revelados.
Exigem que a vítima se vista de determinada
maneira ou traga para a escola algo de que
não dispõem, como material escolar, brinque-
dos, lanches ou dinheiro.
Meninos e meninas, no uso de sua força
física ou habilidade psicoemocional, aterrori-
zam os mais fracos ou indefesos. São prepo-
tentes, arrogantes e estão sempre metidos em
confusões e desentendimentos. Utilizam várias
artimanhas para se tornar populares ou disfar-
çar sua insegurança. Possuem necessidade de
chamar a atenção para si e de pertencer a um
grupo ou de reproduzir os maus-tratos recebi-
dos. Adotam atitudes hostis, perversas e cruéis
para submeter suas vítimas ao psicoterrorismo.
Rotulam e perseguem aqueles que conside-
ram diferentes, os "estranhos", os "nerds", os
"retardados", os "bichas", os "esquisitos", os
"aleijados". Constrangem-nos com zoações,
apelidos pejorativos, humilhações, brincadei-
rinhas de mau gosto. Ameaçam, encurralam, EXPERIÊNCIA TRAUMÁTICA TIROS EM COLUMBINE
espancam, abusam, difamam. Fazem uso de Estudos evidenciam que, dependendo da gravi- Intimidações crónicas
gestos, empunhaduras, risadinhas irónicas, dade da exposição ao bullying, pode ser desen- podem levar a grandes
piadinhas, expressões corporais e faciais, olha- cadeada na mente da vítima uma condição psi- tragédias. É o caso do
massacre ocorrido na
res ameaçadores. Aos poucos, vão isolando e quiátrica caracterizada por explosões de cólera
escola de Columbine, nos
excluindo as vítimas, que não se atrevem a ou episódios transitórios de paranóia ou psicose,
Estados Unidos, que
denunciá-los, por medo de represálias ou por conhecida como borderline personality disorder deixou uma série
vergonha de se expor ainda mais. (transtorno de personalidade limítrofe), alteran- de mortos e feridos após
Raramente alguém sai em defesa da vítima do o desenvolvimento do sistema límbico. Essas ataque de alunos
- alguns, por medo de se tornarem o próximo alterações comprometem o controle da emoção perseguidos pelos
alvo ou de serem banidos do grupo; outros, e da memória pelo hipocampo e pela amígdala, colegas. Acima, ato em
pelo espetáculo que os faz rir e se divertir à localizada abaixo do córtex, no lobo temporal, memória das vítimas da
custa daqueles que sofrem. afetando seriamente o desenvolvimento infantil. tragédia, em 1999
60 MENTE&CÉREBRO' www.mentecerebro.com.br
espectador, ninguém
passa incólume ao bullying.
Os que sofrem a ação
tendem a ter prejuízos
cognitivos, sintomas físicos
e doenças psicossomáticas.
Os valentões experimentam
a falta de adaptação
escolar e estão propensos
à violência e ao delito.
Já os que assistem,
passam por medo,
insegurança e stress
i
queda do rendimento intelectual, o absentis- prejuízos não somente ao ambiente escolar, mas
mo, a reprovação e a evasão escolar. Na saúde, à sociedade, em decorrência das atitudes de seus
provoca queda da resistência imunológica e membros. As relações desestruturadas por meio
sintomas psicossomáticos diversificados, como de condutas abusivas e intimidatórias incidem na PARA CONHECER MAIS
cefaléia, tontura, náusea, ânsia de vómito, formação de valores e na construção do caráter, Garota fora do jogo:
dores epigástricas, diarreia, enurese, sudorese, o que refletirá na vida do indivíduo, nos campos a cultura oculta da agressão
febre, taquicardia, tensão e dores musculares, pessoal, profissional, afetivo, familiar e social. entre meninas.
excesso de sono ou insónia, pesadelos, perda Portanto, o bullying deve ser considerado R. Simmons. Rocco, 2004.
ou aumento do apetite, dores generalizadas, problema de todos e, como tal, requer medidas
Bullying, como combatê-lo?
entre outros. Podem surgir também doenças urgentes de intervenção e prevenção. Às escolas
- Prevenir e enfrentar
de causas psicossomáticas, como gastrite, úlce- cabe desenvolver programas anti-bullying com
a violência entre jovens.
ra, colite, bulimia, anorexia, herpes, rinite, aler- o envolvimento de toda a comunidade escolar
A. Costantini. Itália Nova,
gias, problemas respiratórios, obesidade, além - profissionais, alunos, pais - em parceria com 2004.
do comprometimento de órgãos e sistemas. os diversos segmentos sociais, como nas áreas
Eu não sou macaco.
de saúde e segurança pública.
V. Lou. Nova Fronteira, 2005.
UMA GAMA DE REFLEXOS A capacitação de profissionais para a identi-
Para os agressores, são comuns o distan- ficação, o diagnóstico e o encaminhamento de Bullying e desrespeito:
ciamento e a falta de adaptação aos objeti- casos tem de ser prioritária. A prática da tolerân- como acabar com
vos escolares, a supervalorização da violência cia, da solidariedade e do respeito nas relações essa cultura na escola.
como forma de obtenção de poder, o desen- entre os adultos é imprescindível para que nos- M.-N. Beaudoin. Artmed,
volvimento de habilidades para futuras condu- 2005.
sas crianças e jovens possam introjetar valores
tas delituosas, além da projeção de condutas morais e éticos, capazes de formar uma geração Bullying: estratégias
violentas na vida adulta. Já os espectadores, de cidadãos comprometidos consigo mesmos, de sobrevivência para
que são a maioria dos alunos, podem sentir com o outro e com a sociedade em geral. in©c crianças e adultos.
insegurança, ansiedade, medo e stress, com- J. Middelton-Moz. Artmed,
prometendo seu processo socioeducacional. A A U T O R A CLEO FANTE é doutoranda em ciên- 2007.
cias da educação da Universidade de Ilhas Baleares,
O bullying viola o direito à integridade física Centro IMultidisciplinar
Espanha, pesquisadora do bullying escolar, vice-
e psicológica e à dignidade humana. Ameaça de Estudos e Orientação
presidente do Centro Multidisciplinar de Estudos e
o direito à educação, ao desenvolvimento, à Orientação sobre o Bullying Escolar (Cemeobes) e sobre o Bullying Escolar
saúde e à sobrevivência de muitas vítimas. É autora de Fenómeno bullying: como prevenir a violência (Cemeobes):
uma forma de violência que resulta em sérios nas escolas e educar para a paz (Verus, 2005). www.bullying.pro.br.
adolescente
OS INCRÍVEIS ANOS DE TRANSIÇÃO PARA A IDADE ADULTA