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ARTIGO

O ATENDIMENTO PSICOLÓGICO AO ADOLESCENTE


E O CARÁTER TERAPÊUTICO DA ORIENTAÇÃO DE
PAIS: ESTUDO DE CASO EM TERAPIA SISTÊMICA
INDIVIDUAL

PSYCHOLOGICAL INTERVENTION OF THE ADOLESCENT AND THE


THERAPEUTIC CHARACTER OF THE ORIENTATION OF PARENTS: A CASE
STUDY IN INDIVIDUAL SYSTEMIC THERAPY

RESUMO: Esse artigo apresenta o estudo de ABSTRACT: This paper is a case study about ETIENE OLIVEIRA
caso de um atendimento psicoterapêutico realiza- the individual systemic therapy with one teen- SILVA DE MACEDO1
do com uma adolescente e sua família, com base ager and her parents. It´s objective is to show
na terapia sistêmica individual. O objetivo é mos- to show the importance of individual systemic
ANALICE DE SOUSA
trar como a terapia sistêmica pode ser realizada therapy with children and adolescents also in-
ARRUDA VINHAL
com crianças e adolescentes de modo individual, cluding the family in the orientation of parents.
incluindo também a família no formato de orien- Metaphors, circular questions and therapeutic
CARVALHO2
tação de pais. Metáforas, perguntas circulares e games were used in individual sessions and
jogos terapêuticos foram utilizados ao longo do sessions of orientation of parents. Individual
atendimento, realizado em sessões individuais sessions and parenting sessions were focused 1
Instituto de Educação em
com a adolescente e sessões de orientação de on the dynamical relationships of the family Psicologia (Goiânia-GO)
pais. As sessões individuais e sessões de orien- group and their impact in adolescent develop- Universidade Paulista
tação de pais mantiveram o foco na dinâmica ment, emphasizing the complexity, instability (Campus Goiânia)
relacional do grupo familiar e suas ressonâncias and intersubjectivity that exist in the parents and 2
Instituto de Educação em
no desenvolvimento da adolescente, destacando children relationship.
Psicologia (Goiânia-GO)
aspectos da complexidade, instabilidade e inter-
Pontifícia Universidade
subjetividade presente na relação pais e filhos. KEYWORDS: Psychotherapy of Adolescent; Católica de Goiás
Orientation of Parents; Individual Systemic Universidade Paulista
PALAVRAS-CHAVE: Psicoterapia com adolescen- Therapy. (Campus Goiânia)
te; Orientação de pais; Terapia sistêmica individual.

INTRODUÇÃO

A família contemporânea passa por modificações que a desafiam na criação


de novos arranjos e modos de existência. A velocidade das transformações so-
ciais, a instabilidade econômica, as mudanças da atualidade requerem, de uma
ou outra forma, criatividade e flexibilidade para adaptação a esses novos modos
de vida, tão diferentes daqueles vivenciados nos séculos anteriores (Berthoud,
2003; Walsh, 2016).
Os terapeutas contemporâneos têm abandonado o foco nas limitações em di-
reção a um paradigma orientado às competências e aos pontos fortes das famí- Recebido em: 13/09/2018
lias. Todas as abordagens de Terapia Familiar, em que pese as diferentes ênfases Aprovado em: 04/06/2019

http://dx.doi.org/10.21452/2594-43632019v28n64a05
teóricas, compartilham da ideia de a complexidade, a instabilidade e a
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que os componentes familiares são di- intersubjetividade. Por complexidade
nâmicos e interativos. Sejam padrões se compreende a capacidade auto-or-
estruturais, formas de comunicação ganizadora do sistema em que o todo
ou produção de significados, os te- é indissociável da parte, ao mesmo
rapeutas familiares orientam-se do tempo em que, separadamente, a par-
déficit para o crescimento em busca te traz aspectos constitutivos do todo,
de reconhecer e ampliar o potencial sem, contudo, apresentá-lo por com-
construtivo da família nessa reinven- pleto. A instabilidade faz referência ao
ção da vida (Walsh, 2016). caráter dinâmico do conhecimento,
Este artigo apresenta um estudo não há verdades a priori, pois o mun-
de caso que mostra a contribuição da do é movimento e imprevisibilidade.
terapia sistêmica com foco no atendi- E o pressuposto da intersubjetividade
mento ao adolescente e sua família. Os entende que não há neutralidade entre
eixos teóricos desse artigo articulam observador e o fenômeno observado
os pressupostos do pensamento sistê- (Vasconcelos, 2010).
mico (Vasconcelos, 2010) com a tera- Assim, para a teoria sistêmica, uma
pia individual de orientação sistêmica queixa comparece como tal em função
(Boscolo & Bertrando, 2013). de sua própria relação na constituição
As reflexões foram construídas a do sistema familiar. O objetivo do te-
partir do atendimento psicoterapêuti- rapeuta sistêmico é interagir com os
co de uma adolescente e seus pais. O familiares, na criação conjunta de hi-
recorte deste trabalho será a tarefa da póteses e desenvolvimento de recur-
adolescência e a parentalidade, a par- sos a partir das interações no próprio
tir do atendimento psicoterapêutico sistema familiar, em lugar da interven-
de uma adolescente e sua família nesse ção diretamente voltada à remissão de
momento do ciclo vital. Trabalhos vol- sintomas ou modificação de compor-
tados ao atendimento infantil são mais tamentos-alvo.
comuns e têm um amplo escopo de Frente às queixas e conflitos gera-
publicações e métodos sistematizados. dores de sofrimento, a abordagem à
Estudos clínicos com foco no atendi- família é cuidadosa para não estabe-
mento do adolescente ainda não têm lecer objetivos terapêuticos irrealistas,
a mesma robustez, principalmente na baseados em padrões clínicos e cultu-
perspectiva do atendimento sistêmico. rais a partir do binômio saúde-doen-
Essa é a maior contribuição pretendi- ça, sem considerar o próprio modo de
da com este artigo. vida de cada família. Cada sistema tem
O objetivo é trazer alguns aponta- um funcionamento que lhe é peculiar
mentos sobre a adolescência no de- e a normalidade ou disfunção só tem
senvolvimento do ciclo vital familiar, a sentido no contexto específico dos
partir de um estudo de caso de um pro- subsistemas envolvidos (Walsh, 2016).
cesso de atendimento clínico realizado Por sistema compreende-se a orga-
com uma adolescente. Serão apresen- nização familiar e sua transformação,
tadas vinhetas ilustrativas agregadas a partir da regulação dos comporta-
às reflexões desenvolvidas ao longo do mentos de seus membros. A família
processo terapêutico realizado. é um sistema que possui subsistemas
O pensamento sistêmico contribui como o conjugal, parental e fraternal,
com a elucidação do fenômeno psico- que funcionam a partir de padrões
lógico a partir de pressupostos como transacionais e geracionais necessários

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à sobrevivência do grupo. Também é com maior ou menor estresse, depen-
O atendimento psicológico
um sistema emocional transversal à dendo de inúmeros fatores (Carter & ao adolescente e o caráter
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dimensão temporal ou geracional, po- McGoldrick, 1995a). terapêutico da orientação de
pais: estudo de caso em
dendo influenciar além da terceira ou Segundo as autoras, as experiên- terapia sistêmica individual

quarta geração (Carter & McGoldrick, cias familiares ao longo do tempo são Etiene Oliveira Silva
de Macedo
1995a; Nichols & Schwartz, 2007). marcadas por fluxos verticais e hori- Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
Assim, compreender a dinâmi- zontais. Por fluxos verticais entende-
ca das relações entre os membros de -se os padrões de relacionamento e
uma família dentro de sua estrutura funcionamento transmitidos ao longo
é mais importante do que se ater ao do tempo, como tabus, crenças, mitos,
seu formato propriamente dito. São lealdades. Por fluxos horizontais com-
os laços relacionais que organizam as preende-se aqueles estressores previsí-
pessoas dentro de um grupo familiar veis e imprevisíveis ao longo do tempo
e as mantêm de alguma forma vin- que suscitam ansiedade e demandam
culadas. E essas relações são insubs- remanejamentos ao sistema familiar.
tituíveis. Famílias se arranjam e rear- A adolescência, por exemplo, é um
ranjam em formatos diferentes. Mas estressor horizontal, normativo, que
é a qualidade da relação construída qualquer família com filhos enfrenta.
quando os subsistemas interagem que Mas o grau de dificuldade da relação
as habilita para criarem seus próprios entre pais e filhos durante esse está-
caminhos, serem flexíveis e resilien- gio depende de como convergem os
tes (McGoldrick & Shibusawa, 2016; estresses verticais e horizontais em
Walsh, 2016). cada família. Ou seja, depende da
A partir da reflexão desses autores, confluência dos mitos, valores e le-
compreendemos que prover espaços gados com a vivência familiar sobre
relacionais de pertencimento e aceita- esse estágio. Assim, para determina-
ção entre adolescentes e seus pais em das famílias, a adolescência pode ser
meio aos conflitos geracionais é um vivenciada com maior sofrimento e,
dos, se não o maior desafio de tera- para outras, pode ser um estágio pro-
peutas infantojuvenis sistêmicos. missor para o crescimento coletivo e
Para compreender esses conflitos, a individual de cada membro (Carter &
noção de ciclo vital familiar é funda- McGoldrick, 1995a).
mental. A estrutura clássica do ciclo De acordo com o desenho formal
vital familiar compreende oito está- do ciclo de vida familiar, podemos di-
gios que são articulados aos eventos zer que primeiro os casais se juntam e
transicionais que a família vivencia: formam a família, depois se preparam
casamento, nascimento de filhos, para ter filhos, aprendem a cuidar des-
educação de filhos durante a primeira ses filhos e, em seguida, sentem que
infância, educação de filhos durante a desaprendem, quando a adolescência
pré-escola, educação de filhos duran- chega. Depois de crescidos, alguns
te a adolescência, o preparo e saída conflitos resolvidos, outros não, os fi-
do lar, o estágio do ninho vazio até o lhos saem de casa. E o casal tem novas
último estágio, com a aposentadoria e tarefas e o desafio de seguir como casal
falecimento de um dos cônjuges. e se preparar para a velhice e finitude
Em cada estágio existem tarefas (Carter & McGoldrick, 1995a).
esperadas que fazem parte do pro- A ideia de transição como uma
cesso normativo do desenvolvimen- passagem decisiva em momentos-
to familiar, que podem ser realizadas -chave do ciclo de vida é bem aceita

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por estudos psicológicos e estudos de refletem o que denominamos o “não-
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família. Desde os estudos psicanalíti- -lugar” que é vivido pelos adolescen-
cos ericksonianos e freudianos, essa tes em nossa sociedade. Ora criança
metáfora busca compreender as tare- ora adolescente, o pré-adolescente se
fas e desequilíbrios inerentes aos mo- torna invisível quando, na realida-
mentos vividos pelo sujeito durante a de, está vivenciando intensamente as
vida (Cowan & Cowan, 2016). transformações dos anos iniciais da
Ao nascer o primeiro filho, se inicia adolescência (Macedo, 2010; Macedo,
a transição para a parentalidade. Ao 2018; Macedo & Conceição, 2015).
fim da idade adulta, dá-se a transição A concepção negativa de adoles-
1
para velhice. A adolescência é vista cência em termos de instabilidade,
como uma transição para a vida adul- da transitoriedade, do não ser e seus
ta. Um momento em que confluem processos naturalizados de socializa-
demandas biopsicossociais para a ção (a ideia de crise da adolescência)
criança em transformação e também contribui para uma generalização
para sua família. Podemos então con- indiscriminada e a invisibilidade das
siderar a pré-adolescência como uma necessidades específicas desse grupo
transição para a adolescência? etário. Quando visíveis, enfatiza-se
A pré-adolescência, ou, como am- mais o risco do que a oportunidade
plamente aceito, adolescência pre- para a prevenção ou desenvolvimen-
coce, compreende o período que vai to recursivo do adolescente nesse
dos 11 aos 13 anos. É nessa faixa etá- processo (Macedo, 2010; Macedo &
ria que ocorrem mais intensamente Conceição, 2015).
as mudanças cognitivas decorrentes A cultura ocidental concebe esse
da puberdade, com ressonância na período como uma transição norma-
vida psicológica e social. Entre 14 e tiva. Ou seja, novos arranjos psico-
16 anos, o adolescente desenvolve um lógicos são construídos e provocam
interesse maior pela sexualidade, pelo profundas mudanças nas definições
relacionamento com pares e um sen- de identidade e papéis. Mais do que
so moral. Esse período é chamado de uma mudança, a transição provo-
adolescência média, ou propriamente ca transformações que vão repercu-
dita. E por fim, durante a adolescên- tir profundamente tanto na criança
cia tardia, de 17 a 19 anos, acontece quanto nos sistemas dos quais ela par-
a consolidação da identidade e auto- ticipa (Cowan & Cowan, 2016).
nomia em relação ao grupo familiar, Muda-se do status de criança para
marcando esse ciclo de desenvolvi- adolescente; muda-se o status da
mento (Micucci, 2009). função parental exercida pelas famí-
Entretanto, nossa experiência clíni- lias. Entretanto, essas transformações
ca e de pesquisa mostra que o período acontecem num campo de tensão
1 Embora o marco etário civil
da adolescência seja os 12
que vai dos 11 aos 13 anos comparece onde percebemos resistência e difi-
anos de idade, esse trabalho como infância, ou pré-adolescência, culdade de negociações, principal-
adota como adolescência a no discurso social e familiar. Essa mente por parte dos adultos, que ne-
faixa etária compreendida en-
dificuldade em reconhecer e legiti- cessitam outras estratégias parentais.
tre 10 a 19 anos, preconizada
pela Organização Mundial de mar o momento inicial da adoles- Muitos conflitos acontecem devido à
Saúde (WHO, 2014), a qual cência acentua o estranhamento e o cristalização no imaginário dos pais a
inclui a chamada puberda- sentimento de não pertencer, que é respeito de seus filhos e sua incapaci-
de, ou pré-adolescência, que
compreende a faixa etária en- vivenciado durante a adolescência. dade de lidar com as demandas que o
tre 10 e 12 anos de idade. Podemos inferir que essas concepções adolescente traz. Torna-se necessário

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ampliar fronteiras: permitir o afasta- além da aquisição de outras necessá-
O atendimento psicológico
mento e aproximação do adolescente, rias ao momento do ciclo vital fami- ao adolescente e o caráter
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conforme o grau de dificuldade para liar. A organização-desorganização terapêutico da orientação de
pais: estudo de caso em
manejar as situações que vivencia que é vivida pela família como insta- terapia sistêmica individual

(Carter & McGoldrick, 1995b). bilidade, incerteza marca a passagem Etiene Oliveira Silva
de Macedo
O adolescente tem a tarefa de se para um novo equilíbrio funcional. Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
aventurar em decisões próprias, fa- E quanto mais a família suporta esse
zer escolhas que podem ser diferentes processo, maior será a capacidade de
das escolhas dos pais. Algumas vezes diferenciação do indivíduo, em ter-
esse movimento desencadeia conflitos mos da aquisição de habilidades para
emocionais e o afastamento de pesso- as reconfigurações do sistema fami-
as até então tidas como fundamentais. liar e para seu crescimento pessoal
Os pais, sentindo-se “rebaixados” ao (Andolfi, 1984).
segundo plano, têm a tarefa de permi- A família precisa desenvolver a ca-
tir essa mudança, sem que isso impli- pacidade de tolerar e resolver os con-
que um abandono ou ausência na vida flitos, sem permitir o aniquilamento
dos filhos (Macedo, 2018). das individualidades. Adolescentes
Essa é uma das maiores dificulda- que vivem em ambientes onde se per-
des do sistema familiar: permitir uma mite contradições e peculiaridades
maior separação sem o rompimento tendem a construir um senso de si e a
de relações e vínculos, manejando os capacidade para relações de intimida-
estressores e riscos de perda da boa de, mais do que aqueles que vivem em
convivência familiar. Não há dúvida ambientes rígidos e punitivos (Kobac
de que esse período afeta os pais, os & Mandelbaum, 2003).
cônjuges, irmãos e todo o restante do Ou seja, se os pais podem permane-
sistema familiar. O quanto esse siste- cer amando durante o processo de in-
ma será ou não afetado vai depender dividuação, os adolescentes mantêm o
deles mesmos a priori (Guimarães & senso de sentirem-se amáveis ao alcan-
Costa, 2003). çar a individualidade. Quando podem
Abordar a família na perspectiva expressar raiva e tristeza em relação
relacional sistêmica não prescinde da aos pais, podem se desenvolver de for-
importância de compreendermos o ma mais autônoma, sem o enfraqueci-
comportamento individual em seu ci- mento dos vínculos entre pais e filhos.
clo evolutivo. Para isso, Andolfi (1984) Assim como na infância, os ado-
destaca a necessidade de diferencia- lescentes precisam ser afirmados por
ção como constitutiva do desenvolvi- seus cuidadores em três dimensões:
mento individual dentro do ciclo fa- que será possível e permitida uma co-
miliar. O indivíduo integra um grupo municação aberta com seus pais; que
familiar coeso o bastante para que ele eles são acessíveis; que fornecerão
possa gradualmente se diferenciar em apoio e presença quando necessário.
busca da autonomia e independência. A diminuição de contatos físicos, de
Essa individuação não leva ao rompi- que os pais se queixam, não é necessa-
mento dos vínculos familiares, mas riamente diminuição do afeto, mas se
sim a uma reconfiguração do sistema passa a uma negociação na expressão
com novas funções e tarefas. dos sentimentos, em que a relação en-
A capacidade de mudar, se deslo- tre pais e filhos precisa estimular a au-
car, participar, separar e juntar per- tonomia dos adolescentes (Diamond
mite a emergência de funções únicas, & Stern, 2003).

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Ou seja, diferentemente do que Também entendemos por rela-
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se imagina, a presença de adultos de ções seguras aquelas em que entre
referência é fundamental para o su- os integrantes dos grupos é permiti-
porte psicológico do adolescente nes- da expressão de diferenças. Kobac e
sa vivência contraditória e fluida da Mandelbaum (2003) sugerem que as
adolescência. Afirmar sua autonomia conversações entre famílias em que os
sem a represália da crítica, ameaças e adolescentes possam manifestar livre-
rejeição, promover diálogo, acolher mente seus sentimentos em relação às
dúvidas, medos, tolerar as mudanças experiências vividas colaboram para a
de gostos, de humor, tudo isso confe- manutenção de relações de apego mais
re ao adolescente confiança para cres- seguras e vinculações saudáveis.
cer (Lopes Oliveira, 2006, Macedo & A família tem a tarefa de se abrir
Conceição, 2015). para novos olhares e permitir que o
Em pesquisa de mestrado, uma das adolescente faça experimentações di-
autoras desse artigo também consta- ferentes daquelas que eram delega-
tou que os adolescentes aspiram a re- das durante a infância. A família que
lações de confiança e intimidade com apresenta dificuldade de permitir essa
seus pais. Eles esperam da família flexibilidade está, provavelmente, con-
presença e o entendimento de que o gelada na ideia anterior de seus filhos.
momento da adolescência é estranho Havendo esta rigidez, o conflito se tor-
não somente para os pais, mas tam- na inevitável e o distanciamento pode
bém para eles (Macedo, 2010). perdurar ao longo do desenvolvimento
Nesse sentido, podemos afirmar do adolescente com prejuízos para to-
que a relação entre pais e filhos du- dos (McGoldrick & Shibusawa, 2016).
rante a adolescência tanto pode ser O maior desafio para os pais du-
fator de risco como de proteção para rante a adolescência é o exercício de
a saúde mental desse grupo etário. sua função parental. Se antes os pais
Apesar do aparente afastamento dos participavam com voz ativa e a ideia
adolescentes em relação à família, de controle sobre a vida e rotina dos
ainda assim eles precisam de proxi- filhos, agora eles sentem que os filhos
midade e constância. Os pais têm a estão se esvaindo. Faltam estratégias
tarefa de redefinir os limites de sua para manejar conflitos e, dependendo
autoridade, mantendo, ao mesmo das pessoas envolvidas na trama rela-
tempo, laços de confiança e comuni- cional, há um nítido distanciamento
cação aberta. E os adolescentes têm o físico e relacional. Concebemos como
desafio de aprender a circular entre função parental a concretização da
a autonomia e a dependência numa parentalidade.
dialética afastamento-aproximação. Berthoud (2003) define como pa-
Adolescentes que vivem em famí- rentalidade a experiência relacional
lias onde não são permitidos seus envolvida na interação entre pais e
questionamentos e conflitos, ou filhos, com profundo significado psi-
seja, que não têm relações seguras cológico, num constante processo de
nas famílias, correm mais risco de mudança que perpassa todo o ciclo
desenvolverem problemas de com- vital. Mais do que práticas parentais
portamento como uso abusivo de moldadas por características individu-
substâncias, transtornos psicológicos ais, envolve o contexto sociocultural e
e gravidez precoce. (McGoldrick & as articulações possíveis entre os sujei-
Shibusawa, 2016). tos, entre pais e filhos.

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Segundo Berthoud (2003), numa de tem características contingenciais
O atendimento psicológico
perspectiva sistêmica, a parentalida- e específicas (Beiras & Souza, 2015; ao adolescente e o caráter
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de pode ser definida em duas verten- Feinberg, 2003; Margolin, Gordis, & terapêutico da orientação de
pais: estudo de caso em
tes: parentalidade de primeira ordem John, 2001). terapia sistêmica individual

e parentalidade de segunda ordem. Fatores socioeconômicos, crenças Etiene Oliveira Silva


de Macedo
Uma estaria relacionada às práticas e e valores culturais influenciam como Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
atos propriamente ditos que visam à o casal exerce as práticas educativas e
correção de comportamentos indese- como pai e mãe (no caso da família bi-
jáveis e atos educativos para com os parental clássica) vivenciam o exercí-
filhos. Outra, a parentalidade secun- cio de seu papel parental. Atualmente,
dária, estaria relacionada aos signifi- a participação paterna no exercício co-
cados e implicações dos próprios pais parental está além da função de provi-
em tais práticas. são e subsistência. Participar da rotina
Numa perspectiva sistêmica, im- diária de cuidado com os filhos desde
porta mais compreender a influência os primeiros anos do nascimento faci-
mútua que pais e filhos exercem sobre lita a criação de laços afetivos proteti-
si, do que apresentar modelos padro- vos para o desenvolvimento saudável
nizados de conduta do que seja certo (Beiras & Souza, 2015).
ou errado na educação parental. Ao
considerar pais e filhos como sistemas
em interação, a noção de causa e efei- O ATENDIMENTO SISTÊMICO DO
to é ampliada para a compreensão dos ADOLESCENTE E SUA FAMÍLIA
múltiplos elementos que influenciam a
parentalidade (Micucci, 2009). A terapia sistêmica, seja no aten-
Nesse sentido, para compreender dimento familiar ou individual, com-
sistemicamente a parentalidade em preende as pessoas e os problemas por
famílias com adolescentes é importan- elas referidos de uma forma contextu-
te considerar: o contexto interacional al. Padrões relacionais se interconec-
onde ocorre o comportamento e a cau- tam ao longo do tempo numa relação
salidade circular nessa interação; os recursiva e complementar. O objetivo
processos reflexivos em detrimento de não é retirar o sintoma de um ou de
“como fazer”, ampliando assim as pos- outro, mas ampliar a capacidade per-
sibilidades de mudança do comporta- ceptiva dos sistemas envolvidos acer-
mento parental (Berthoud, 2003). ca dos múltiplos fatores mantenedo-
Outro elemento que influencia a res do que é referido como queixa ou
prática educativa é a coparentalidade. sintoma (Boscolo & Bertrando, 2013,
Esse termo se refere ao compartilha- Micucci, 2009).
mento das responsabilidades educati- No atendimento psicoterapêutico
vas entre pais e mães e como a orga- individual, a pessoa é considerada um
nização das funções parentais podem sistema humano em interações cons-
ser complementares ou antagônicas. tantes com outros sistemas. Assim,
Embora sofra o impacto dos aspectos uma mudança comportamental al-
psicossociais e econômicos de cada cançada no âmbito individual desen-
sistema familiar, a coparentalidade cadeia mudanças nas relações e rede
não contempla aspectos da vida con- de interações com os outros sistemas,
jugal, sexual, financeira ou legal que contemplando assim a ideia de retroa-
não inclua a educação de filhos. Por limentação e recursividade (Boscolo &
isso, em cada família, a coparentalida- Bertrando, 2013).

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Uma perspectiva sistêmica de Para Rosset (2008), o atendimento
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atendimento infantojuvenil envolve do adolescente precisa ter o foco de
considerar os sistemas fundamentais incentivar sua autonomia, ensinar a
dos quais a criança ou adolescente perceber e sair dos jogos das famílias
fazem parte para a compreensão do e ser um sujeito cada vez mais capaz
mundo que os cerca, em especial, a de conscientizar-se e responsabilizar-
família, a escola e a interação com -se pelo seu próprio funcionamento.
pares (Guimarães & Costa, 2003). É importante validar seus sentimentos
Um dos grandes desafios da psicote- e encorajar o trabalho de diferencia-
rapia com pré-adolescentes ou adoles- ção, oferecendo um contexto seguro,
centes é criar um sistema terapêutico um ambiente protegido para expres-
tanto para o adolescente quanto para são dos conflitos, segredos, bem como
a família, com uma aliança terapêuti- para a ampliação de suas possibilida-
ca que atenda às necessidades de am- des de existência.
bos, sem que o terapeuta fique refém O atendimento dos pais deve visar à
de um cabo de guerra. Geralmente, os aceitação da autonomia do adolescen-
pais buscam ajuda profissional pela te, à privacidade e aos limites, exercen-
dificuldade de manejo de situações do suas regras com clareza e sem cul-
conflituosas que começam a surgir e o pa. Ou seja, a família não é um agente
adolescente é visto como “culpado” ou externo ao qual o terapeuta se contra-
aquele que provoca o conflito. O êxito põe, mas sim um sistema fundamental
depende do vínculo criado com a fa- que pode ser potencializado para faci-
mília e o adolescente. litar e melhorar a saúde do adolescente
Criar uma relação de confiança é (Rosset, 2008).
fundamental para ativar processos Para o terapeuta, o desafio é poder
criativos e recursivos entre pais e fi- circular com esses sistemas sem to-
lhos, com o objetivo de fazer coisas mar partido de um ou de outro, mas
que antes não eram feitas e despertar determinando com clareza o espaço
novos sentidos. Ou seja, busca-se tra- do vínculo a ser estabelecido. Fazer-se
balhar cooperativamente para a me- perguntas sobre sua própria adolescên-
lhora de suas relações, a partir de uma cia, estar consciente de seu momento
responsabilização individual e coletiva naquela relação terapêutica, buscar
em prol dos objetivos acordados. orientações e ter uma rede de apoio es-
Criar esse ambiente tanto para fa- tão entre as medidas que podem ser to-
mília quanto para o adolescente ao madas para que esse resultado seja po-
mesmo tempo não é, porém, tão sim- sitivo (Carter & McGoldrick, 1995a).
ples, pois eles têm motivações diferen-
tes e objetivos distintos para o atendi-
mento. O terapeuta precisa criar uma ESTUDO DE CASO: O ATENDIMENTO
estratégia de ajuda que contemple os SISTÊMICO AO ADOLESCENTE E A
desafios comuns e, também, as espe- ORIENTAÇÃO DE PAIS
cificidades e pontos de conflitos entre
pais e filhos. Precisa ser habilidoso na Este trabalho tem natureza qualita-
construção desse vínculo e manejo tiva, em formato de estudo de caso clí-
dos conflitos que vão emergindo na nico. Trata-se de um método de estu-
medida em que o processo terapêuti- do que contribui para a compreensão
co acontece (Escudero & Muñiz de La de fenômenos no decurso de um tem-
Peña, 2008). po específico, permitindo entendê-lo

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em maior profundidade, bem como as tema familiar. Os encontros de orien-
O atendimento psicológico
transformações e desdobramentos as- tação de pais propiciaram reflexão e ao adolescente e o caráter
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terapêutico da orientação de
sociados à psicoterapia (Turato, 2003). aprendizagem sobre educação de fi- pais: estudo de caso em
Os nomes utilizados para apresen- lhos, mais do que o treinamento de terapia sistêmica individual
Etiene Oliveira Silva
tação do caso são fictícios e os partici- técnicas específicas sobre como lidar de Macedo
pantes aquiesceram via termo de con- com essa faixa etária. Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
sentimento livre e esclarecido que as
informações e registros do atendimento
poderiam ser utilizados para apresen- QUEIXA
tação e produção de textos acadêmicos
e científicos, conforme as normas éti- A mãe de Aurora procurou aten-
cas do Código de Ética do profissional dimento psicológico para a filha em
psicólogo e da Resolução 466/2012 do decorrência do baixo desempenho
Conselho Nacional de Saúde. escolar, isolamento e hostilidade no
Realizou-se o atendimento em psi- ambiente familiar. Segundo relatou, a
coterapia sistêmica individual com adolescente apresentava episódios de
uma adolescente (Aurora, 11 anos). O tristeza, choro, irritabilidade, além de
recorte temporal para o artigo se refere redução no engajamento das ativida-
aos atendimentos realizados em 2017, des acadêmicas. A maior preocupa-
num total de 38 sessões. Os encontros ção da mãe era com o distanciamento
foram semanais, com duração de 50 observado em sua relação com a filha,
minutos. A cada quatro encontros, era descrita até então como muita próxi-
prevista uma sessão de orientação de ma. A mãe também estava preocupada
pais, sendo que foi agendado o total com o relacionamento entre a adoles-
de 6 sessões com a participação dos cente e o pai, já que ambos passavam a
genitores Luciana, 40 anos, e José, 44 maior parte do tempo juntos e os con-
anos à época. Os atendimentos foram flitos eram comuns.
realizados em consultório particular
e durante as sessões foram utilizados
instrumentos terapêuticos auxiliares CONTEXTUALIZAÇÃO
como jogos e atividades manuais.
O presente estudo de caso teve Aurora vivia com os pais e uma
como objetivo apresentar uma das irmã de 2 anos. A mãe era farma-
possibilidades da psicoterapia sis- cêutica e trabalhava numa rede de
têmica individual a partir do aten- farmácias. O pai era agrônomo, mas
dimento psicoterapêutico de uma estava desempregado há 2 anos e es-
pré-adolescente. O recorte feito privi- tudava para aprovação em concurso
legiou aspectos relacionados à transi- público. Desde quando Aurora era
ção para a adolescência e à parentali- criança, ele trabalhava em outra ci-
dade, por se compreender que essa é dade, chegando a ficar longe de casa
uma demanda importante de produ- por até 30 dias. A mãe passava a
ção de conhecimento sobre os adoles- maior parte do tempo envolvida com
centes e suas famílias. as demandas domésticas e da educa-
O atendimento individual da ado- ção da filha. Depois que o pai perdeu
lescente foi priorizado por se enten- o emprego, a mãe buscou reinserção
der que, sistemicamente, a psicote- no mercado de trabalho e o pai assu-
rapia tem efeito circular e alcança miu os cuidados domésticos. A famí-
também os demais membros do sis- lia contava com apoio financeiro da

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NPS 64 | Agosto 2019
avó materna de Aurora, que auxiliava creveu Aurora como alguém que esta-
70
nas despesas com educação, moradia, va se distanciando e de quem ela não
saúde e lazer. conseguia mais se aproximar. Quando
O relacionamento da família da perguntada sobre as expectativas em
adolescente com as famílias extensas, relação ao atendimento da filha ela
tanto a paterna quanto a materna, era afirmou, aos prantos, “eu quero a mi-
conflituoso. A avó materna de Auro- nha filha de volta” (sic). O pai descre-
ra adotava uma comunicação basea- veu Aurora como alguém desinteres-
da em chantagem e barganhas com sada, que parecia desafiar ou ignorar
ela e a filha, prometendo retirar o au- sua autoridade e sem muitas preocu-
xílio financeiro caso não fosse aten- pações com o futuro. Almejava que o
dida em suas requisições. A mãe de atendimento fosse para a filha o equi-
Aurora tinha conflitos importantes valente a um despertar para a vida.
com a família do pai, por considerar Nessa ocasião, foi realizado o aco-
que a avó e a mãe dele o tratavam de lhimento, escuta e estabelecimento
modo infantilizado, inviabilizando do contrato terapêutico, incluindo in-
sua autonomia e iniciativa na busca formações sobre duração das sessões,
pelos projetos da família. frequência, sigilo e orientação de pais.
Devido à extensa jornada diária de No primeiro encontro com Aurora,
trabalho da mãe, o pai de Aurora pas- perguntei para a adolescente: “por qual
sava a maior parte do tempo em casa motivo você acha que seus pais lhe
e dividia o tempo entre os estudos e trouxeram aqui?” (sic). A adolescente
o cuidado das filhas. Enquanto a mais falou rapidamente que não sabia ao
nova estava no berçário ele estudava certo, mas que gostava da ideia de ter
e auxiliava Aurora na rotina – como um espaço para si. Aurora foi convida-
tarefas de casa e acompanhamento di- da a fazer uma autodescrição e um de-
ário. A mãe assumia as tarefas da edu- senho familiar. Ela se descreveu como
cação e do cuidado com as filhas nos uma pessoa companheira e amiga, que
momentos em que estava em casa. evitava conflitos, apesar de ter suas
próprias opiniões. Parecia desejosa de
falar de si e de sua casa, gesticulava
O PROCESSO TERAPÊUTICO: com frequência e relatava que sua con-
CAMINHOS EM CONSTRUÇÃO vivência em casa era tensa, devido às
brigas entre seus pais que eram cons-
Aurora se definia como uma pessoa tantes, bem como às dificuldades que
alegre, companheira, risonha e que todos apresentavam na comunicação.
gostava de dançar. Não se queixava da Ao fazer o desenho da família, Au-
escola e dos relacionamentos que ali rora representou graficamente como
mantinha, embora afirmasse que não se percebia, bem como enxergava as
gostava de estudar. Lamentava-se de pessoas que moravam em sua resi-
uma sobrecarga na vida familiar quan- dência. Referiu-se à mãe com ambi-
do sentia que precisava ser a mediado- guidade: ora amiga, ora alguém que
ra para garantir um clima afetivo tran- não a compreendia. Essa contradição
quilo e alegre entre o grupo. também se refletia no modo como
No primeiro encontro de acolhi- tratava sua mãe, com subserviência
mento, como de costume na prática da ou hostilidade, conforme relataram
terapia com crianças e adolescentes, os em sessões posteriores. Sobre o pai,
pais foram entrevistados. A mãe des- referiu que ele era exigente e alguém

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 64, p. 061-081, agosto 2019.


que “emburra rápido”. E sobre a irmã- Diversos instrumentos foram or-
O atendimento psicológico
zinha, afirmou “ela é mandona”. ganizados para utilização ao longo do ao adolescente e o caráter
71
Por diversas vezes Aurora se defi- atendimento. Dentre eles, o jogo Pa- terapêutico da orientação de
pais: estudo de caso em
nia como a mediadora dos conflitos po-Cabeça (Costa, 2016) foi útil para terapia sistêmica individual

que aconteciam em casa. Por esse mo- disparar as conversas dos primeiros Etiene Oliveira Silva
de Macedo
tivo, evitava manifestar suas opiniões encontros. Com perguntas sobre au- Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
e calava-se sempre que era corrigida toimagem, família, relacionamentos,
ou se sentia criticada pelo pai, mãe sentimentos, amigos, autoestima, en-
ou outro membro da família extensa. frentamento, esse instrumento facili-
Relatou que tinha um relacionamen- tou a abordagem à Aurora. As per-
to próximo com a avó materna. Mas guntas e respostas eram alternadas
algumas vezes havia conflitos, pois se entre a terapeuta e a adolescente, de
Aurora fizesse o que a avó desejava, modo que, por meio das respostas, a
então ela era recompensada com rou- terapeuta também buscava demons-
pas, acessórios ou outros objetos que trar sua disponibilidade para a cons-
lhe interessavam. trução de vínculo e confiança.
Na escola, relatou que mantinha À medida que se percebiam aspec-
relacionamentos significativos e dura- tos relevantes relacionados aos temas
douros já que convivia com o mesmo abordados, perguntas eram aprofun-
grupo desde quando estudava na Edu- dadas e a adolescente compartilhava
cação Infantil. À época da psicotera- seus interesses, impressões, opiniões,
pia, alguns conflitos entre ela e seus lembranças, medos e sonhos. Como
amigos começaram a acontecer, em ela se manteve interessada nos te-
decorrência de um posicionamento mas discutidos, o jogo foi utilizado
mais assertivo de Aurora sobre diver- ao longo de oito sessões. Ao final de
gências nas opiniões e preferências. cada encontro, a metáfora do baú
Aurora consentiu em participar era retomada com a pergunta: “o
de encontros terapêuticos semanais que você retira do seu baú hoje e o
e, por meio de uma metáfora, elen- que você coloca dentro dele?”. Nes-
camos os objetivos do atendimento. ses momentos, a adolescente refletia,
Utilizando a metáfora de um baú há avaliava e considerava suas possibili-
tempos guardado, de onde se reti- dades de uma ação diferente da que
ram objetos não utilizáveis e onde se vinha sendo apresentada na família
guardam objetos de valor, sugeriu-se e no grupo de pares. Esse momen-
à Aurora que refletisse sobre o que ela to também foi importante porque
desejava para o atendimento. Ela res- configurava-se como oportunidade
pondeu: “me conhecer e me entender para autoavaliação e avaliação do
mais e fazer com que meus pais me processo terapêutico em termos de
entendam”. Parafraseando, os objeti- alinhamento dos objetivos e hipóte-
vos do atendimento foram: desenvol- ses levantadas ao início do processo
ver o senso de segurança em si, dife- de atendimento.
renciar-se dos pais, construir limites Terminado o jogo, as sessões se-
para aprender a dizer não, conviver guintes foram para a confecção ma-
melhor com a família. Daí por dian- nual do baú, utilizando revistas e
te, os encontros seguintes utilizaram papelão, que, depois de pronto, foi
essa metáfora, no sentido de buscar entregue à adolescente como sím-
diferenciar entre necessidades dela e bolo daquele processo de aprendi-
necessidades dos pais. zagem. Nos encontros em que esse

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objeto foi construído, as conversas O MANEJO CLÍNICO E O CARÁTER
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foram aprofundadas com perguntas TERAPÊUTICO DA ORIENTAÇÃO
e reflexões sobre o relacionamento DE PAIS
com os pais, com a família extensa,
com os amigos e sobre relaciona- A cada quatro atendimentos com
mentos amorosos. a adolescente foram realizados en-
Os instrumentos utilizados possi- contros com os pais, denominados
bilitaram reflexões sobre hipóteses, “sessões de orientação de pais”. Esses
emoções e pensamentos relaciona- encontros tomaram como referência
dos à vivência da adolescente. Nessas a leitura de teóricos da área infantoju-
conversas, Aurora conseguiu produ- venil e familiar (Bowlby, 1989; Kobac
zir novos sentidos sobre seu sistema & Mandelbaum, 2003; Walsh, 2016) e
parental e sistema fraternal, como o de leituras prévias sobre orientação de
que significava ser a filha mais velha, pais, incluindo cartilhas e modelos de
sobre os sentidos da adolescência, atendimento, bem como a produção
a emergência do primeiro amor, as teórica e instrumental da autora por
relações de intimidade e sobre de- ocasião do mestrado em Psicologia
senvolver o autocuidado. Essas são Clínica (Macedo & Conceição, 2015).
algumas das principais intervenções Todas as sessões de orientação de
do terapeuta sistêmico porque per- pais foram realizadas com a aquies-
mitem ao próprio paciente mudar cência e conhecimento prévio da ado-
concepções, rever emoções e hipóte- lescente sobre o que seria abordado. O
ses sobre suas queixas, como prota- sigilo do atendimento individual tam-
gonista de sua própria história e des- bém era assegurado, de modo que ela
construindo um padrão relacional compreendeu que essas atividades vi-
cristalizado em que o profissional savam à sua aproximação com os pais,
detém o saber (Souza, Souza, Rolim, conforme as queixas referidas.
& Gomes, 2016). Criou-se uma ficha autoavaliativa
Depois de finalizada essa etapa para nortear o levantamento das de-
do atendimento, outro instrumento mandas que foram abordadas com os
auxiliar foi o jogo Baralho das pais e a reflexão sobre seu relaciona-
Habilidades Sociais (Rodrigues & mento com a adolescente. Essa ficha
Folquitto, 2015). O jogo consiste surgiu da necessidade de sistematizar
em cartas com expressões faciais, o atendimento aos pais, para diferen-
personagens, situações-problema ciá-lo de um processo psicoterapêu-
e objetivos que são utilizados para tico propriamente dito, e, ao mesmo
auxiliar na observação e reflexão sobre tempo, identificar áreas que serviram
os eventos contingentes ao cotidiano como temas-chave e que foram abor-
dos adolescentes. Foi utilizado com dadas nas sessões seguintes; serviu
o objetivo de mediar a reflexão sobre como um levantamento de demandas,
a relação de Aurora com seus pares, orientado pelos eixos teóricos: comu-
especialmente no desenvolvimento nicação, afeto e limites, que nortearam
de um senso de autoeficácia e da todos os encontros de orientação de
habilidade para dizer “não”, expressar pais (Macedo, 2017)2.
opiniões, sentimentos, desejos e A ficha é um instrumento com-
direitos sempre que sentisse seus posto por perguntas sobre aspectos
2 Macedo, E. O. S. (2017).
Orientação de pais (manuscri- limites extrapolados por cobranças da convivência, diálogo, resolução de
to não publicado). no grupo e na família. conflitos, expressão de sentimentos,

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 64, p. 061-081, agosto 2019.


rotina e distribuição de tarefas, além O primeiro acordo firmado com
O atendimento psicológico
de perguntas sobre como os pais des- eles foi uma separação de demandas ao adolescente e o caráter
73
crevem a si mesmos no processo edu- conjugais e demandas parentais. Os terapêutico da orientação de
pais: estudo de caso em
cativo e como descrevem os filhos em pais de Aurora vivenciavam conflitos terapia sistêmica individual

termos de dificuldades e potenciali- importantes, que, sem dúvida, esta- Etiene Oliveira Silva
de Macedo
dades. Trata-se de um instrumento vam influenciando o relacionamento Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
que faz parte de uma produção teó- com a adolescente. Esta, por sua vez,
rica ainda não publicada por uma das parecia estar caminhando para o lugar
autoras (Macedo, 2017). de filho parental, assumindo a respon-
Também se buscou criar um clima sabilidade pela boa convivência entre
de acolhimento e esclarecimento de pai e mãe.
dúvidas sobre o atendimento da ado- Os demais encontros de orienta-
lescente, bem como sobre a reflexão ção de pais tiveram como objetivo dar
acerca da parentalidade e coparen- continuidade às reflexões propostas
talidade. As conversas com os pais no acolhimento, bem como levantar
aconteceram no sentido de propiciar a demandas que estivessem emergindo
reflexão sobre seus papéis e a relação do processo terapêutico de Aurora. Os
do momento atual com suas histórias pais descreveram a filha como mais
de vida e família de origem. Tendo em motivada para estudar, responsável e,
vista que é preciso primeiro engajar os ao mesmo tempo, mais “respondona”,
pais, os encontros tiveram o objetivo o que para eles significava um maior
de acolher suas preocupações, bus- enfrentamento quando opiniões eram
car uma aliança que fosse terapêutica divergentes.
também para eles (Escudero & Muñiz Aqui um parêntese: observou-se
de La Peña, 2008). que esse termo foi referido pelo pai
Além do preenchimento da ficha para descrever as tentativas de enfren-
autoavaliativa, o primeiro encontro de tamento que Aurora fazia diante das
orientação de pais teve como objetivo imposições que, para ela, não eram
diferenciar aspectos da vida conjugal adequadas, como, por exemplo, as
e da relação parental, para, então, pro- constantes proibições para visitar co-
por um esquema de orientação. Eles legas, vestir certos estilos e roupas ou
conseguiram compreender como tais demonstrar preferências musicais com
conflitos estavam repercutindo nega- as quais os pais não concordavam. En-
tivamente no relacionamento com a tende-se que Aurora estava ensaiando
filha adolescente, bem como em seu formas diferentes de responder às si-
desenvolvimento. Eles também refe- tuações de conflito, pois, costumeira-
riram culpa, dificuldade no ajuste de mente, ela se retirava e silenciava, não
tarefas entre o pai e mãe na educação demonstrando aos pais sentimentos
da filha e foram encorajados a reco- de tristeza, hostilidade e decepção.
nhecer seus acertos e recursos para Em uma das sessões individuais, a
desenvolver estratégias alternativas mãe de Aurora foi convidada a parti-
àquelas que vinham sendo executadas cipar. Por meio do jogo “Será que co-
no processo de educação, como pu- nheço você?” (Moura, 2005), realizou-
nições e represálias. Foi um momen- -se a mediação de uma conversa entre
to oportuno para identificar padrões ambas. O jogo consiste em um con-
intergeracionais de relacionamento da junto de cartas com perguntas que são
família de origem e ensaiar novas for- respondidas alternadamente pelo filho
mas de atuação frente à adolescente. acerca dos pais e pelos pais acerca do

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 64, p. 061-081, agosto 2019.


filho e o objetivo é emitir o máximo de a crise da adolescência, já trazido pe-
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respostas certas. O jogo culminou no los pais, outrossim, atuou na direção
diálogo sobre tempo, aceitação das di- de ampliar o foco para as demandas
ferenças e a adolescente pôde requerer e objetivos de mudanças nas relações
para si a qualidade do relacionamen- entre a adolescente e a família, pactu-
to que queixava ter perdido até então, ados com a terapeuta.
principalmente após o nascimento da Por isso, manteve-se o modelo de
filha mais nova, que ainda demanda- atendimento individual, combinado
va cuidado integral. Falou de como se com sessões de orientações de pais.
sentia valorizada quando conseguia As perguntas circularam por meio de
escuta, diálogo com contato visual e diálogos, metáforas, jogos e instru-
a importância da realização de ativi- mentos lúdicos que proporcionaram à
dades de lazer na companhia da mãe, Aurora a desconstrução e reconstru-
como caminhadas e passeios. ção de hipóteses de forma recursiva
No último encontro eles avaliaram e dinâmica. A cliente referiu como
os resultados do processo psicotera- descoberta mais significativa nesse
pêutico com Aurora. O pai relatou que processo o fato de que ela pode e deve
observara uma mudança expressiva iniciar o diálogo com seus pais e seus
no comportamento da filha em rela- amigos sempre que se sentir prejudi-
ção à mãe. Se antes Aurora ficava em cada ou demandada além de sua ca-
silêncio ou buscava tranquilizar a mãe, pacidade. Em outras palavras, Aurora
agora ela já manifestava quando pen- descobriu sua capacidade de autode-
sava diferente ou quando se ressentia terminação, de produzir diálogos em
com os pais. Verbalizava com mais fa- que há o reconhecimento dela mesma
cilidade quando se sentia injustiçada e ao mesmo tempo do outro.
e buscava negociar as regras e limites O pai, pessoa de maior valência
estabelecidos com os pais por meio de afetiva para Aurora, referiu que estava
acordos e do diálogo. conseguindo abordá-la de forma mais
assertiva, lembrando-se do exercício
diário de enxergá-la como um sujeito
RESULTADOS singular, com demandas distintas da-
quelas que ele apresentava, com uma
O caso de Aurora aqui descri- história de vida singular a ser cons-
to exemplificou uma das possíveis truída. O aspecto da transmissão ge-
formas de abordagem à família, no racional emergiu, e ele percebeu que
contexto do atendimento psicotera- seria um fator de risco à saúde mental
pêutico ao adolescente, a partir dos da filha cristalizar expectativas e con-
pressupostos da teoria sistêmica em ceitos sobre ela, assim como fizera o
terapia individual. Uma das vanta- pai a seu respeito.
gens dessa abordagem teórica é que as Ele também reduziu as altas expec-
queixas dos pacientes são vistas como tativas em relação a seu desempenho
pontos de partida de onde se pode acadêmico, e estabeleceu parâmetros
desvelar o potencial construtivo da fa- mais realistas, negociados com a ado-
mília (Walsh, 2016). lescente de forma dialogada e demo-
Nesse estudo, o atendimento indi- crática. Esse estreitamento de vínculo
vidual à adolescente teve o cuidado de entre pai e filha foi confirmado pela
não produzir um discurso patológico, mãe, que reconheceu os esforços do
a partir de um viés ideológico sobre pai em relação à educação da filha, já

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 64, p. 061-081, agosto 2019.


que ele é quem passava a maior par- o pai de Aurora pode perceber como
O atendimento psicológico
te do tempo com ela. Por exemplo, sua concepção de adolescência esta- ao adolescente e o caráter
75
em relação ao uso de eletrônicos, ao ria influenciando seu relacionamento terapêutico da orientação de
pais: estudo de caso em
invés do celular e tablet serem usa- com a filha e como sua própria vivên- terapia sistêmica individual

dos como mecanismos de punição e cia como filho também impedia uma Etiene Oliveira Silva
de Macedo
barganha, ele começou a criar regras maior intimidade com ela. Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
e parâmetros mais realistas em rela- Aurora também observou mudan-
ção às expectativas sobre seu desem- ças no comportamento dos pais. Rela-
penho escolar, ampliando o tempo e tou, ao final das sessões, que se sentia
qualidade do diálogo reflexivo sobre mais feliz porque percebia nos pais a
os benefícios e prejuízos do uso de tentativa de dialogar com tolerância e,
eletrônicos. Essa medida reduziu sig- sobretudo, o real desejo de vinculação
nificativamente os conflitos entre pai com ela. De igual modo, ela mostrou à
e filha e possibilitou o início de uma família o desejo de participar da mu-
comunicação mais amorosa e toleran- dança familiar, a partir da mudança
te entre eles. de si mesma. Começou a aceitar as
Numa das sessões de orientação, orientações, sobretudo do pai, como
o pai refletiu sobre sua própria ado- tentativas de aproximação e não im-
lescência e as repercussões de suas posições arbitrárias.
vivências em seu modo de ver os ado-
lescentes, bem como no modo de se “Assim, eu gosto de conversar com
relacionar com sua filha. Segundo Es- meu pai sobre as coisas, ainda não falo
cudero & Muñiz de La Peña (2008), tudo não, mas eu sei que ele fala as coi-
perguntas sobre a adolescência dos sas pro meu bem.” (Aurora, 11 anos)
pais são importantes para conectá-
-los ao tempo presente, ajudando-os Essa mudança de paradigma, reali-
a serem mais objetivos em relação às zada pela adolescente e estendida aos
expectativas que têm sobre a adoles- pais, corrobora a afirmativa de Walsh
cência dos filhos. (2016) sobre a centralidade no poten-
cial cuidador da família. Ao final des-
“Eu não quero que aconteça com ela sa etapa do processo terapêutico, pai,
o que aconteceu comigo. Meu pai mãe e filha estavam construindo uma
nunca falou, nunca orientou e se eu relação alternativa àquela até então
tivesse tido o que ela tem, talvez hoje existente, mais afetuosa, num clima de
seria diferente.” (Pai, 44 anos) pertencimento, aceitação, escuta e diá-
logo reflexivo.
Visto de maneira ecológica, uma Em relação ao subsistema conjugal,
mudança de primeira ordem é en- os pais acolheram o convite de parti-
tendida como uma tentativa visível cipação em terapia de casal com outro
de algo novo, um comportamento ou profissional. Inicialmente, a proposta
ato. A mudança de segunda ordem era que, enquanto a adolescente esti-
demanda uma modificação no siste- vesse em psicoterapia individual, os
ma, como a relação com o filho, o que pais poderiam ser acompanhados em
inclui sua própria relação como filho. suas demandas conjugais, Cogitou-
O foco deixa de ser o comportamento -se, oportunamente, ampliar o aten-
problemático, por exemplo, para uma dimento para sessões de terapia fami-
compreensão de sua relação com esse liar com todos os membros do grupo,
filho (Berthoud, 2003). Por exemplo, mas o casal optou por suspender o

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 64, p. 061-081, agosto 2019.


atendimento à díade, priorizando a Quando sentia falta da presença da
76 NPS 64 | Agosto 2019
terapia com a adolescente. mãe, em lugar de se isolar ou recorrer
No entanto, numa das sessões de aos pensamentos do tipo “eles não me
orientação de pais, eles relataram que dão atenção, eles preferem minha ir-
interromperiam a terapia de casal por mãzinha, eles estão ocupados demais
já alcançarem os resultados esperados para mim”, já conseguia solicitar mo-
em termos de distinguir as funções mentos de diálogo ou de companhia.
conjugais e parentais. Nem todos os De igual modo, depois da última ses-
aspectos relacionados à transmissão são realizada com os três, já conseguia
geracional, fronteiras entre família nu- se aproximar do pai e solicitar ajuda,
clear e família extensa foram contem- conselhos ou relatar eventos diários
plados, mas, sem dúvida, o casal alcan- da escola. Também referiu ter desco-
çou mais equilíbrio no desempenho de berto que não precisaria mentir para
seus papéis dentro do núcleo familiar. seus pais, pois, afinal, entendera que
Esse equilíbrio está entre um dos ela pertencia à família e que eles esta-
maiores preditores de saúde mental vam realmente disponíveis para con-
em um sistema familiar. Segundo Wal- viver com ela.
sh (2016), quando um casal consegue Os pais, por sua vez, estavam mais
distinguir entre demandas conjugais e continentes às demandas de Aurora. A
parentais, ele demonstra maior dispo- mãe, antes culpada pela extensa jorna-
nibilidade para o exercício da função da de trabalho e cansaço que acabaram
parental. Consequentemente reduz-se a distanciando de sua filha, agora per-
de forma significativa os níveis de an- cebia que seus limites não correspon-
siedade entre os filhos porque eles per- diam à mera falta de vontade, mas sim
cebem que não são o “estorvo” dos pais às condições limitadoras com as quais
e se sentem confiantes. ela precisou lidar criativamente. Per-
Em relação ao subsistema paren- cebeu que, mais do que o tempo físico,
tal, Aurora já não se definia como a demanda de Aurora era por presença
a responsável pela irmã. Anterior- na rotina, com uma participação mais
mente ela participava e se envolvia calorosa e menos austera. Ela e a filha
ativamente nos conflitos conjugais concordaram em escolher momentos
quando sua mãe se queixava da rotina semanais para ficarem juntas, sem a
familiar; agora já evitava e verbaliza- presença do pai e da filha mais nova.
va para os pais ao perceber que seus O pai, inicialmente focado na ideia
limites eram extrapolados, ou quan- de controle, da adolescência como
do era convocada a assumir o lugar uma fase problemática, passou a iden-
parental. Aprendeu a falar como se tificar recursos que ele poderia desen-
sentia para seus pais. É importante volver para conhecer melhor Aurora
lembrar que a habilidade de expressar como pessoa, sem o estigma da “abor-
sentimentos está entre uma das mais rescência”. Nos momentos de orienta-
importantes habilidades para a vida, ção, pôde revisitar sua adolescência, à
sugerida pela Organização Mundial qual se referiu, num deles: “eu fui mes-
de Saúde (WHO, 1997). mo aborrecido na adolescência e acho
que estou nela ainda”, como alguém
“Toda vez que minha mãe começa preocupado com possíveis “descami-
falar dele ou fico calada ou então nhos” que a filha pudesse realizar.
eu falo que não posso resolver isso.” Em relação à família extensa da
(Aurora, 11 anos) adolescente, os desafios ainda persis-

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 64, p. 061-081, agosto 2019.


tiam após os encontros, já que a avó rora tinha em seu favor a gestão do
O atendimento psicológico
materna de Aurora, como colabora- próprio tempo, podendo exercitar sua ao adolescente e o caráter
77
dora ativa na vida financeira da famí- função parental. terapêutico da orientação de
pais: estudo de caso em
lia, usava de recursos como barganhas A situação da família de Aurora, terapia sistêmica individual

e certa permissividade no relaciona- em vez de estagnar, mobilizou outros Etiene Oliveira Silva
de Macedo
mento com ela e sua família. Cogita- recursos desse sistema para o cuida- Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
-se a possibilidade de, oportunamen- do e proteção uns dos outros. A mãe
te, esse atendimento ser revertido em pareceu estar lidando melhor com sua
terapia familiar, quando assim a famí- ausência de casa, reconhecendo sua
lia demandar. importante colaboração no sustento
Como foi visto, o processo terapêu- familiar, e o pai conscientizou-se de
tico com Aurora teve efeito circular, que estaria subutilizado com as tarefas
beneficiando também o sistema fami- que realizava.
liar. O pai, que vivia um período de Finalizado esse estágio do atendi-
desequilíbrio emocional por não es- mento, soube-se que a família havia
tar à altura da condição de provedor, montado um negócio local para a
voltou-se aos recursos do momento venda de bolos caseiros, já que o pai
para manter uma relação satisfatória apresentou reconhecidas habilidades
com a filha: presença física por dispor culinárias. Ou seja, diante de uma situ-
de maior tempo em casa. Se o desem- ação crítica de desemprego e escassez,
prego do pai fosse visto unicamente novos recursos foram mobilizados e o
como um problema a ser resolvido sistema familiar inteiro se reorganizou
pela família, poderia ter imobilizado o para um funcionamento alternativo ao
processo de crescimento do grupo em modelo patriarcal.
relação ao tempo que eles viviam. Aurora também passou a reconhe-
A participação paterna na educa- cer como importantes as suas próprias
ção dos filhos é um dos fatores que experiências. Tem agora o desafio de
contribui para o desenvolvimento buscar sua autonomia, movimentar-
social humano, incluindo redução da -se com mais liberdade. Outro ganho
desigualdade de gênero e exercício da desse processo terapêutico foi o reco-
coparentalidade. A função do pai na nhecimento de sua própria compe-
família contemporânea vai além de tência interna. Deixou de se descrever
prover e proteger. Tem-se cada vez como criança e de sempre buscar a
mais reconhecida a importância da aprovação dos pais em seus compor-
participação paterna nas atividades tamentos. Ao final do processo tera-
educativas diárias, com impacto posi- pêutico, expressava o desejo de viven-
tivo para a saúde mental das famílias ciar experiências que são inerentes
e da sociedade (Beiras & Souza, 2015; a essa etapa: saber o que é gostar de
Walsh, 2016). alguém, iniciar relacionamentos amo-
Essas evidências justificam uma rosos, pertencer a um grupo.
mudança de perspectiva, de um mo- Considera-se como ganhos desse
delo patriarcal para a coparentalidade atendimento o estabelecimento de
e para a educação compartilhada entre fronteiras mais visíveis entre os sub-
todos os membros do grupo familiar. sistemas conjugais e parentais, bem
Isso mostra que na própria família como uma maior diferenciação de
há recursos para a mudança, em sua Aurora, na direção de fazer escolhas
diversidade de formatos. Nesse caso, mais autônomas e responsáveis, li-
embora desempregado, o pai de Au- berada da função de mediar os de-

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sentendimentos entre seus pais. Em Entende-se, portanto, que este es-
78 NPS 64 | Agosto 2019
outros contextos, Aurora já consegue tudo pode auxiliar terapeutas infan-
manejar melhor a pressão dos pares e tojuvenis e terapeutas sistêmicos em
se comunicar com assertividade. suas práticas, porque se torna um
caminho alternativo às terapias tra-
dicionais com crianças e adolescen-
CONSIDERAÇÕES FINAIS tes. Em que pese as contribuições
das diversas abordagens teóricas na
Uma das dificuldades encontradas psicoterapia com esses sujeitos, a
pelos terapeutas sistêmicos é a escas- literatura brasileira ainda é escassa
sez de relatos sobre o atendimento in- sobre o manejo clínico dessa faixa,
dividual de crianças e adolescentes. A utilizando-se como referência a te-
própria emergência da terapia familiar rapia sistêmica.
sistêmica, como uma alternativa aos Constatamos que essa perspectiva
modelos tradicionais e patologizantes, é viável no setting individual e con-
pode suscitar questionamentos sobre a templa também as necessidades da
pertinência do atendimento individu- família, no contexto da psicoterapia
al a esses sujeitos, em detrimento de infantojuvenil. Outra contribuição
tantas demandas familiares. Caberia dessa perspectiva de atendimento é a
então o atendimento individual sistê- possibilidade de compreender a ado-
mico ao adolescente? lescência mais próxima de seu con-
Certamente, o atendimento fami- texto, do que a partir de conceitos já
liar beneficiaria todo o grupo. No en- formulados sobre as transformações
tanto, como referido anteriormente, dessa faixa etária. A intervenção não
consideramos como desafio e como buscou a adaptação da adolescente,
necessidade construir espaços tera- mas, recursivamente, ela e os pais
pêuticos aos adolescentes, de modo foram descobrindo recursos e subs-
que tanto suas demandas específicas tituindo arcaicas formas de comuni-
sejam contempladas, como as queixas cação pela criação conjunta do espa-
familiares sejam acolhidas e contextu- ço relacional entre eles.
alizadas ao momento do desenvolvi- Entendemos que a terapia sistê-
mento do ciclo da família. mica individual pode ser um espa-
Somado a isso, a cultura de invisibi- ço terapêutico para o adolescente,
lidade construída em torno da ideia de ao mesmo tempo em que amplia o
adolescência acaba por negligenciar a olhar aos sistemas parental e con-
demanda psicológica que existe nesse jugal, mas sem perder de vista a
estágio. A ideia de que a crise da ado- necessidade do atendimento indivi-
lescência é passageira, e, por isso, nor- dual. Realizar sessões individuais e
mal, acaba por empobrecer a prática sessões de orientações de pais com
clínica, muitas vezes, limitada à pola- o foco na dinâmica relacional do
rização onde, de um lado pais se quei- grupo familiar e suas ressonâncias
xam e, de outro, adolescentes resistem, no desenvolvimento do adolescente
ambos sem efetivarem mudanças em é, pois, possível para a terapia sistê-
seus padrões de comportamento. mica individual.

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 64, p. 061-081, agosto 2019.


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ETIENE OLIVEIRA SILVA DE MACEDO
O atendimento psicológico
ao adolescente e o caráter
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terapêutico da orientação de
(https://orcid.org/0000-0001-6604-1516) pais: estudo de caso em
É psicóloga com Mestrado e Doutorado terapia sistêmica individual
Etiene Oliveira Silva
em Psicologia Clínica e Cultura de Macedo
(UnB). Psicoterapeuta infantojuvenil Analice de Sousa Arruda
Vinhal Carvalho
com formação em Terapia Familiar
(IEP-Goiânia). Professora Titular
na Universidade Paulista (Campus
Goiânia).
E-mail: etienemacedo@gmail.com

ANALICE DE SOUSA ARRUDA VINHAL


CARVALHO

(https://orcid.org/0000-0003-4363-1243)
É psicóloga com Mestrado em Family
Sciences pela BYA (EUA). Doutorado
em Psicologia pela PUC-Goiás.
Professora Adjunta na Universidade
Paulista (Campus Goiânia) e PUC-
Goiás. Terapeuta de Casais e Famílias.
Professora de Especialização em
Terapia de Casais e Famílias.
E-mail: analicearrudavinhal@gmail.com

Nova Perspectiva Sistêmica, n. 64, p. 061-081, agosto 2019.

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