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O ensino a distância e a falência da educação

Maria Helena Souza PattoI

Resumo

A partir da análise do discurso oficial em defesa do ensino superior


a distância, identificam-se os silêncios que o estruturam. De um
lado, esse discurso ignora a dimensão ideológica da ciência e
da técnica; de outro, desconsidera a complexidade da relação
pedagógica. A ausência de ambos os temas, tão fundamentais,
faculta a defesa da aplicação de tecnologias de comunicação e de
informação no processo educativo sem que sejam investigadas
as consequências deletérias de tal procedimento sobre a
formação do educando. O texto destaca a educação concebida
como formação e a contrapõe à semi ou pseudoformação, nos
termos de filósofos da Escola de Frankfurt. A partir de um exame
da natureza das atividades previstas em cursos a distância,
questiona-se a própria existência de um professor e de um aluno
nessa modalidade de ensino, bem como de uma relação entre
eles que garanta a formação ético-política de um educando
atento às relações de poder presentes nas instituições sociais, no
conhecimento científico e no exercício profissional. Tal estado
de coisas demanda pesquisa sobre os resultados alcançados
pelos cursos a distância, sobretudo por aqueles que se destinam
à formação de professores.

Palavras-chave

Ensino a distância – Universidade virtual – Política educacional –


Relação professor-aluno.

I- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.


Contato: spmhelena@gmail.com

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 39, n. 2, p. 303-318, abr./jun. 2013. 303


Distance learning and the demise of education

Maria Helena Souza PattoI

Abstract

An analysis of the official discourse in defense of distance


learning in higher education identifies the silences that structure
it. On the one hand, such discourse ignores the ideological
dimension of science and technique; on the other, it disregards
the complexity of the pedagogical relation. The absence of such
fundamental themes makes it possible to defend the application
of communication and information technologies in the education
process without investigating the deleterious consequences of
such procedure upon the formation of those being educated. The
present text emphasizes education as formation, and contrasts it
with semi- or pseudo-formation as described by the philosophers
of the Frankfurt School. Based on an examination of the nature
of the activities included in distance courses, we question the
very existence of a teacher and of a pupil under such modality of
teaching, as well as of a relationship between them that would
contribute to the ethical-political formation of a student aware
of the power relations present in social institutions, in scientific
knowledge and in professional practice. Such state of affairs
demands research on the results achieved by distance courses,
particularly by those that aim at the formation of teachers.

Keywords

Distance learning – Virtual university – Education policy – Teacher-


student relation.

I- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brazil.


Contact: spmhelena@gmail.com

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Uma crítica que ponha em discussão o não O texto de apresentação do programa da
discutido e em formulação o não formulado [só é Universidade Virtual é escrito em tom celebra-
possível] quando o mundo social perde o caráter de tivo. Exaltam-se a democratização do ensino
fenômeno natural. pela expansão de vagas; a formação universi-
Pierre Bourdieu tária de recursos humanos, sobretudo de pro-
fessores para a rede estadual de ensino funda-
Sobre o discurso oficial mental e médio; as mudanças promissoras que
a metodologia inovadora trará ao ensino tradi-
A criação da Secretaria de Ensino Superior cional; o uso intensivo, sem perda da qualidade
pelo Decreto no 51.461, de 1º de janeiro de 2007, do ensino, de tecnologias de informação e de
foi uma das iniciativas mais polêmicas da polí- comunicação; a aprendizagem eletrônica; a in-
tica educacional do governo do Estado de São teração educativa virtual; a natureza semipre-
Paulo na gestão 2006-2010. Se o embate entre sencial do programa; e a entrada do país no rol
representantes e defensores do governo e par- internacional das universidades virtuais.
celas dos três segmentos que compõem as três Além dos professores, pretende-se atin-
universidades estaduais paulistas não chegou à gir gradualmente “todo cidadão com anseio de
extinção da nova Secretaria, levou a uma sensí- dedicar-se aos estudos de nível superior” (SÃO
vel mudança de rumo na definição de seus ob- PAULO, 2009, p. 14). Para isso, as atividades pre-
jetivos, e o projeto de criação da Universidade vistas dividem-se em três módulos: o primeiro
Virtual no Estado de São Paulo ocupou o pri- abrange a formação de professores das redes pú-
meiro plano. No entanto, o ensino a distância blica e privada da educação básica; o segundo,
(EaD) não foi recurso arbitrário tirado do bolso a oferta de cursos de licenciatura em disciplinas
do colete, pois já vinha sendo planejado nos bas- que integram os currículos do ensino fundamen-
tidores do governo e das universidades estaduais tal e médio; o terceiro, cursos de capacitação,
como resposta a três problemas: o cumprimento extensão e pós-graduação a graduados em bus-
do artigo no 253 da Constituição do Estado de ca de educação continuada e aperfeiçoamento
São Paulo, que prevê a organização do sistema profissional. O “novo desafio” trazido por esse
de ensino superior estadual para a ampliação do programa de “caráter inovador” é definido nos
número de vagas; a cobrança social de inclusão seguintes termos: que as universidades públicas
do contingente de egressos do sistema público de paulistas “democratizem o acesso ao conheci-
ensino médio nessas universidades; o compro- mento” (SÃO PAULO, 2009, p. 77).
misso histórico da Universidade de São Paulo, Longo espaço é dedicado à apresenta-
desde sua fundação, de formar docentes para o ção da Tidia-Ae (Tecnologia da Informação para
nível médio. Criado pelo Decreto no 53.536, de o Desenvolvimento da Internet Avançada –
9 de outubro de 2008, o objetivo do programa Ambiente de aprendizagem eletrônica), escolhida
Universidade Virtual do Estado de São Paulo como ambiente virtual de aprendizagem do progra-
(Univesp) é formar recursos humanos, ampliar o ma Univesp, e das TICs (Tecnologias de Informação
acesso às três universidades estaduais e buscar e Comunicação). A primeira é louvada porque
formas alternativas de oferta de formação uni-
versitária compatíveis com o atual estágio tec- representa o Brasil na comunidade interna-
nológico da revolução eletrônica. Para esse fim, cional de pesquisadores em aprendizagem
as novas tecnologias de comunicação e infor- eletrônica na condição de membro votante
mação aplicadas à educação são tomadas como do IMS-Global Learning Consortium, uma
instrumentos “capazes de atingir alunos que de iniciativa mundial de padronização em
outra forma não teriam possibilidade de acesso à aprendizagem eletrônica, e no Framework
formação superior” (SÃO PAULO, 2008). Sakai. (SÃO PAULO, 2009, p. 17)

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As TICs, porque revolucionaram a co- e de um mesmo grupo de trabalho” é garanti-
municação e possibilitaram a globalização. da pelo “ambiente de aprendizagem Tidia-Ae”
Mais da metade do livreto enaltece experiên- (SÃO PAULO, 2009, p. 21-23). O folheto nem se-
cias internacionais e nacionais de educação a quer menciona situações genuínas de convívio
distância; as mudanças que a nova tecnologia institucional. A esse respeito, vale a leitura de
introduziu no conceito de educação tradicional; uma análise do programa Universidade Aberta
a inclusão digital; e a possibilidade de criação do Brasil, com foco na figura do tutor e do pro-
de um ambiente análogo ao de uma escola por fessor virtual para refletir sobre o ensino a dis-
essa modalidade de ensino. As poucas passa- tância como um ensino distante (ZUIN, 2006).
gens que se referem às atividades presenciais Debates em andamento vêm destacando
em polos de aprendizagem falam, na verdade, não só imprecisões teórico-conceituais, abstra-
de atividades virtuais. Como afirmam os pró- ções e inversões ideológicas e equívocos de in-
prios autores do texto: terpretação de dados estatísticos, mas também
lacunas no discurso oficial sobre o EaD, entre
A virtualidade da Univesp é também, por as quais a omissão de fatos como: sua presença
paradoxal que seja a informação, o que lhe inexpressiva no cenário da educação superior
dá realidade, presença e necessidade no da maioria dos países; o investimento, sobre-
cenário da educação superior em São Paulo tudo pela Espanha, na produção e exportação
e no Brasil. (SÃO PAULO, 2009, p. 11) de pacotes educacionais e de EaD; e a diferença
marcante entre o Brasil e outros países quanto
Assim sendo, a menção aos aspectos pre- ao grau de mercantilização já existente na edu-
senciais mais parece estratégia de defesa contra cação superior. Juntos, esses aspectos levam os
eventuais críticas à virtualidade do programa. críticos dessa modalidade de ensino a concluir
As aulas virtuais, de 15 a 20 minutos de que ela será um “filão comercial extremamente
duração, transmitidas ao vivo pela Univesp-TV, pernicioso que aprofundará, em curto espaço
divulgam “material didático televisivo” cujo de tempo, essa mercantilização da educação”
conteúdo resulta da “transformação de conte- (ADUSP, 2005).
údos pedagógicos em produtos audiovisuais”, Para subsidiar o I Fórum de Debates so-
o que não impede a afirmação de seu “cará- bre a EaD, realizado em 2009, a Associação de
ter eminentemente pedagógico” (SÃO PAULO, Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp)
2009, p. 17-18). Aos tutores, o programa não formulou uma série de questões relativas à
reserva uma função docente, mas uma função expansão do EaD, como a alegação oficial de
mediadora, supervisora, animadora, de “diálogo inexistência de recursos para o ensino superior
permanente on-line com o aluno e com grupos presencial, a generalização indevida do que
de trabalho” e produtora de conteúdos que se- seria solução para casos específicos e a conti-
rão compartilhados em ambiente web. Nos po- nuidade da exclusão escolar sob o disfarce de
los de apoio, também chamados salas de aula, inclusão (ADUSP, 2010). Nesse Fórum, o EaD foi
os tutores propõem atividades diretamente re- defendido e criticado pelos integrantes das me-
lacionadas às aulas virtuais, nas quais os alu- sas. Defenderam-se, por exemplo, o estar junto
nos podem “encaminhar perguntas ao professor virtual e o ensino virtual como únicas formas de
pela internet”. A relação aluno-conteúdo tam- sanar a falta de formação adequada de grande
bém é essencialmente virtual, pois se dá prin- número de professores no país. Apresentaram-
cipalmente “por meio do conjunto de ativida- se críticas ao aligeiramento dos conteúdos, à
des realizadas em ambiente virtual”. A menção fragmentação do processo de ensino que ele
à relação aluno-aluno é feita de passagem: “a promove e à dualidade escolar imposta pelo
interação entre os alunos de um mesmo curso crescimento vertiginoso de cursos a distância

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credenciados pelo MEC e vendidos por institui- é a melhoria de vida pela empregabilidade.1
ções privadas de ensino superior. Houve quem Segundo a reportagem,
advertisse para a necessidade de contextualizar
o EaD nas mudanças educacionais impostas por [...] a febre [do EaD] começou com cursos
organismos internacionais e que transformaram técnicos e de especialização, fenômeno mun-
a educação em mercadoria; houve menção à pre- dial turbinado pela valorização do ensino.
cariedade dessa modalidade de ensino não por Muita gente está em busca de conhecimento,
eventual implementação descuidada, mas como porque sentiu que ele garante mais oportuni-
resultado de características que lhe são inerentes dades. (GUIMARÃES, 2010)
(ADUSP, 2009a, 2009b, 2009c).
Números costuram um texto entusias-
O ensino a distância na mídia mado que, sem qualquer vestígio de crítica,
comemora a crescente multidão de adeptos no
No registro do elogio puro e simples país. Consta também um retrato do aluno ade-
do progresso tecnológico, o EaD é enalteci- quado aos cursos a distância: motivado a com-
do em textos de divulgação que dispensam petir; disciplinado (capaz de evitar dispersão e
comentários: de cumprir horários); organizado (apto a dividir
o tempo entre o estudo e os horários de ativida-
A EaD começou a avançar a passos largos des on-line); e disposto a ler textos virtuais ou
no Brasil e já responde por expressivo nú- apostilados. O nível de conhecimento alcança-
mero de cursos oferecidos. [...] as avalia- do dependeria, portanto, do perfil do aluno. Os
ções de provas e concursos demonstram que carecem dessas características seriam aque-
que já se conta entre os melhores classi- les que integram as fileiras dos que abandonam
ficados a presença de candidatos que só os cursos virtuais, evasão tomada como prova
fizeram cursos a distância. É a inevitabi- do alto nível de exigência e da qualidade do en-
lidade da era do conhecimento. [...] Por sino a distância. O texto termina lamentando o
semestre, acrescentam-se ao patrimônio preconceito contra os cursos a distância mani-
científico da humanidade mais de 30 festo no fato de que algumas redes públicas de
milhões de novos saberes, que as anti- ensino ainda se recusam a contratar professores
gas lições escolares não têm como clas- concursados que se formaram a distância.
sificar, ordenar, sistematizar e distribuir
aos alunos dos cursos tradicionais. Só a Os silêncios do discurso oficial
eletrônica, com seus veículos informati-
vos [...] passará a dar conta desse recado, O que mais impressiona na apresentação
não mais via professor em classe, e sim de um programa virtual de ensino superior que
via alunos pesquisadores em rede, o que envolve as três universidades estaduais paulis-
deve inspirar as escolas a formarem, da- tas – consideradas, no texto oficial a respeito da
qui para frente [sic], não repetidores de Univesp, as três melhores do país – é a ausên-
lições transmitidas por docentes, e sim cia, mesmo nas entrelinhas, de questões funda-
navegadores da internet em busca do sa- mentais que há muito são matéria de reflexão e
ber necessário ao interesse de cada um. pesquisa nessas instituições. Nos debates e nas
(SOUZA, 2009, p. 66) publicações oficiais, os argumentos dos que de-
fendem a universidade virtual não raro ficam
Em recente matéria de capa de uma revista no plano do senso comum ou, na melhor das
semanal – Como tirar seu diploma pela internet 1- Em propaganda televisiva de uma empresa privada de ensino superior,
(GUIMARÃES, 2010) –, o objetivo valorizado uma jovem afirma: “Se você não tiver conhecimento, está fora do mercado”.

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hipóteses, da racionalidade instrumental. Como essas análises, a atualidade não é uma nova
regra, nenhuma reflexão sobre história, socie- realidade resultante de uma revolução econô-
dade e relações de poder; sobre a ciência e a mica e social, pois inexistem transformações
técnica como ideologia; sobre a política educa- que justifiquem denominá-la pós-industrial,
cional numa sociedade de classes; sobre a cul- pós-capitalista ou pós-moderna; a chamada
tura e os meios de comunicação de massa nas pós-modernidade não é senão a lógica cultural
sociedades administradas; sobre o conceito de do capitalismo em uma etapa avançada – ou
formação educacional; sobre a relação profes- seja, a lógica da modernização capitalista, que
sor-aluno – temas que não podem ser desconsi- tem como centro a fragmentação e a acelera-
derados pelo Estado quando se trata de pensar ção do tempo, matéria-prima da mais-valia
a democratização do ensino e as possibilidades (HARVEY, 2007). As aulas de curta duração da
e os limites de sua realização. Universidade Virtual mimetizam a nova rela-
A concepção de história que perpassa os ção com o tempo louvada na contemporanei-
argumentos em defesa do EaD é claramente evo- dade e inviabilizam a educação como formação
lucionista: tudo se passa como se o processo his- da inteligência e da sensibilidade. Submetida
tórico fosse uma sucessão natural e linear de es- à compressão do tempo, a educação se afasta
tágios sucessivos. Os que defendem sem nenhum da reflexão não por mero erro técnico, mas por
questionamento o progresso tecnológico acredi- meio da invasão das instituições de ensino pela
tam piamente que estamos no estágio científi- lógica produtivista. Enquanto as teorias críticas
co da racionalidade humana, motivo pelo qual da sociedade moderna desvelam os mecanismos
qualquer saber que não se atenha aos fatos é tido de controle incrustados na racionalidade técni-
como filosofia vã adotada por retrógados que se ca, as que louvam o mundo atual resignam-se
opõem à marcha do progresso. De costas para à fragmentação, aderem às aparências, recusam
o passado, reféns do presente e concebendo o as ferramentas teóricas que permitem desvelar
futuro como um admirável mundo novo gerado o que subjaz às superfícies. A perda da tempo-
pelo avanço da ciência e da técnica, os que exal- ralidade implica a perda de profundidade e de
tam, sem mais nada, “as novas tecnologias de visão de totalidade: Estamos na era da revolu-
comunicação e informação” (SÃO PAULO, 2008), ção eletrônica? Então, bem-vindos os recursos
“a metodologia inovadora” (SÃO PAULO, 2009) eletrônicos, dizem explícita ou implicitamente
e suas “formas alternativas e adequadas ao atual os adeptos do tecnicismo educacional, alheios
estágio tecnológico” (SÃO PAULO, 2007) deixam à relação entre tecnologia e poder. Fixados nas
na penumbra as relações de poder vigentes em aparências, nas superfícies, no imediato, os “pós-
sociedades marcadas por desigualdades sociais -modernos” são reféns da experiência reduzida a
congênitas, bem como os mecanismos sociais – “uma série de presentes puros não relacionados
entre os quais a política educacional – que per- com o tempo” (HARVEY, 2007, p. 57).
petuam esse estado de coisas por meio de refor- Embora a evolução das ciências não
mas que em essência nada mudam. possa ser analisada exclusivamente a partir
Na defesa da Universidade Virtual, ou- dos movimentos sociais que as rodeiam, não se
ve-se com frequência que não estamos mais pode desconsiderar que o pensamento científi-
na era da revolução industrial moderna, mas co é influenciado por questões externas a seu
na era da revolução eletrônica pós-moderna, campo específico, o que é tanto mais verdade
afirmação que desconsidera a reflexão acadê- quanto mais adentramos o campo das ciências
mica que desvela não só os pontos cegos e os sociais (HOBSBAWM, 2009). Atentas a essa re-
compromissos políticos inerentes ao conceito lação, análises revelam a dimensão ideológica
de pós-modernidade, mas também os equívo- da ciência e da técnica; as exigências da in-
cos que lastreiam o próprio conceito. Segundo dústria e da política como o principal motor da

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pesquisa científica, agora voltada para finali- Como meio cultural que apresenta a realidade
dades muito claras: a implementação de novas como uma colagem de fenômenos nivelados em
formas de aceleração e de barateamento do importância, simultâneos e num fluxo ininter-
processo produtivo que resultaram em dispensa rupto, ela está nas salas de estar do mundo, vei-
brutal do trabalho humano; o aperfeiçoamento culando o tempo todo uma percepção da histó-
da indústria bélica a serviço do imperialismo; ria como “uma reserva interminável de eventos
o aprofundamento do controle social; a justi- iguais”. A cultura de massa é
ficação da crescente desigualdade nacional e
internacional; a formação da mentalidade re- [...] um apego antes às superfícies do que
querida a cada novo ciclo do modo de produção às raízes, à colagem em vez do trabalho
em vigor (HABERMAS, 1980). Nesse cenário, “a em profundidade, a imagens superpostas e
maioria dos pensadores pós-modernos está fas- não às superfícies trabalhadas, a um senti-
cinada pelas novas possibilidades de informa- do de tempo e de espaço decaído em lugar
ção e de produção, de análise e de transferência do artefato cultural solidamente realizado.
do conhecimento” (HARVEY, 2007, p. 53), sem (HARVEY, 2007, p. 61-63)
a devida atenção aos determinantes sociais es-
truturais das novas tecnologias de comunica- É como peça da indústria cultural, cuja
ção. Noutras palavras: essência é a transformação da cultura em
produto a ser consumido e logo descartado,
Hoje a dominação se perpetua e se esten- que a educação formal televisiva torna-se
de não apenas através da tecnologia, mas mercadoria oferecida a alunos transformados
como tecnologia, e esta garante a grande em consumidores de produtos culturais que
legitimação do crescente poder político mimetizam a realidade e injetam-na como
que absorve todas as esferas da cultura. ficção e como função na sensibilidade, o que
(MARCUSE, 1973, p. 154) certamente gera efeitos na vida e na ação
social.2 Quando veiculados pela mídia, esses
Como bem observa David Harvey (2007, produtos transformam-se numa modalidade
p. 61-63), os produtores culturais – aí incluídas específica de ficção: a virtualidade como si-
as equipes de produtores de tecnologias de in- mulação que pode ir além da simulação, che-
formação para o desenvolvimento da internet gando a “um estado de réplica tão próxima
avançada e dos ambientes de ensino eletrônico da perfeição que a diferença entre o original
– “aprenderam a explorar e usar novas tecno- e a cópia é quase impossível de ser percebida”
logias, a mídia e, em última análise, as possi- (HARVEY, 2007, p. 261). Se assim é,
bilidades multimídia”, aproximando a cultura
erudita da cultura popular não mais por meio [...] a Realidade Virtual simplesmente ge-
da autoria intelectual, mas por intermédio de neraliza esse processo de oferecer um pro-
uma “massa cultural” – os milhões de pessoas duto esvaziado de sua substância: oferece
que, nos meios de comunicação, na indústria a própria realidade esvaziada de sua subs-
de propaganda, nas universidades e editoras, tância, do núcleo duro e resistente do real
transformam objetos de cultura em objetos de – assim como o café descafeinado tem o
consumo. Entre essas ferramentas, não se pode aroma e o gosto do café de verdade sem
omitir a TV como instrumento de massifica-
2- Em 2009, aos 85 anos, a atriz Cleyde Yáconis fez uma reflexão
ção planetária. A TV é parte deste momento da interessante sobre o esvaziamento dos teatros nas últimas décadas: “em
modernidade: “as preocupações pós-modernas 1950, fazíamos dez sessões por semana. Hoje, são dez por mês”. Mas ela
não concorda que a causa seja o preço dos ingressos: “O relacionamento
com a superfície, por exemplo, podem remontar humano hoje é através da máquina. E o teatro é uma comunicação de gente
ao formato necessário das imagens televisivas”. para gente” (BERGAMO, 2009).

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ser café de verdade, a Realidade Virtual o Instituto de Pesquisas Sociais, dedicou-se ao
é sentida como a realidade sem o ser. estudo da relação entre autoritarismo e institui-
(ZIZEK, 2003, p. 25)3 ções educativas e fez uma pergunta fundamen-
tal: “por que a humanidade, em vez de entrar
Entre as considerações sobre as aulas de em um estado verdadeiramente humano, está se
programas de ensino a distância, vejamos o que afundando em uma nova espécie de barbárie?”
diz uma professora de um curso virtual de pe- No centro das reflexões, a crítica do elogio cego
dagogia na reportagem já mencionada: “é um da ciência e da técnica como fontes indiscutí-
desafio, eu falo para 700, 1.000 alunos, mas na veis de progresso, “último vestígio de inocência
minha frente só tem uma câmera”. Para adaptar- diante dos costumes e tendências do espírito da
-se a essa situação, ela “fez oficinas para treinar época” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 11).
voz e postura. Assistiu palestras com especia- A própria história desmentiu a crença
listas. Gravou horas e horas de aulas para se iluminista de que o desenvolvimento científico
ver no vídeo e corrigir as falhas” (GUIMARÃES, e técnico tiraria o homem das trevas da igno-
2010, p. 84). Numa foto ilustrativa da matéria, rância e criaria as condições para uma vida in-
ela está num estúdio, diante de uma máquina, dividual e coletiva, livre e feliz. Nessa moldura,
como uma apresentadora de TV. Valendo-nos a inovação produzida por “dóceis especialistas”
da frase Isto não é um cachimbo, sob o desenho só faz reforçar “o poder da ordem existente
de um cachimbo numa tela célebre de Magritte, que ela gostaria de romper” (HORKHEIMER;
podemos afirmar três coisas: sobre o estúdio, ADORNO, 1985, p. 11-15). Ao investir de poder
Isto não é uma sala de aula; sobre a apresenta- o aparato técnico e os que o controlam, o modo
dora do programa, Isto não é uma professora; de produção vigente anula o indivíduo que, in-
sobre o que ela faz diante da câmera, Isto não é tegrado à massa, limita-se a consumir os bens a
uma aula. Uma aula virtual é apenas simulacro ele oferecidos em quantidade cada vez maior, aí
de uma aula presencial. incluída a produção da indústria cultural, que
põe no mercado uma enxurrada de informações
*** e diversões que ao mesmo tempo despertam e
Como seria, diante desse quadro, um idiotizam as pessoas. Esclarecida nesses moldes,
projeto de educação para a emancipação? Para a civilização retorna à barbárie. É assim que “a
responder, é preciso começar pelo exame dos terra totalmente esclarecida resplandece sob o
objetivos da educação numa sociedade regida signo de uma calamidade triunfal”, que tem
pela racionalidade totalitária. A resposta a essa como paradigma o holocausto (HORKHEIMER;
questão torna-se ainda mais urgente diante da ADORNO, 1985, p. 19).
conhecida imprecisão conceitual que marca os Diante desse quadro, uma pergunta: edu-
textos oficiais brasileiros sobre política educa- cação para quê? Na moldura da barbárie atual,
cional, nos quais educação, formação, ensino, de dimensão planetária, só existe uma resposta:
instrução, treino e até mesmo reciclagem são “Qualquer debate acerca das metas educacio-
frequentemente usados como equivalentes. nais carece de significado e importância fren-
Em 1923, no terreno minado da economia e te a essa meta: que Auschwitz não se repita”
da política alemãs e da ascensão do nazismo, (ADORNO, 1995, p. 119). Reflexão ausente nos
um grupo de filósofos fundou, em Frankfurt, lugares em que se define uma política educa-
cional que se limita, como regra, à “preparação
3- Muito próximo dessa leitura sobre a realidade virtual e suas consequên-
cias nas relações intersubjetivas, o psicanalista francês Jean-Claude Filloux para o mercado de trabalho”, o que na maio-
levantou a hipótese de que a invasão da vida pela virtualidade e pelos vi- ria dos casos não passa de fornecimento de um
deogames violentos encontra-se entre os determinantes da violência fria e
gratuita tão frequente no mundo atual (I Colóquio de Laboratório de Estudos diploma a jovens que recebem uma educação
e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância, IP-Feusp, 1999). escolar precária desde a escola fundamental.

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Baseada nos princípios da rapidez e da linguagem e de expressão, intimamente ligado
eficiência, a escola pautada pela pedagogia ao empobrecimento da experiência:
moderna faz parte das instituições sociais que
produzem o homem unidimensional – o homem [...] os homens não são mais aptos à ex-
que perdeu a autonomia necessária à crítica do periência, mas interpõem entre eles e o
existente ao internalizar a lógica objetiva nas que deveria ser experimentado uma cama-
instâncias mais profundas de sua subjetividade. da estereotipada a que é preciso se opor.
Trata-se de uma concepção taylorista de educa- (ADORNO, 1995, p. 148-149)
ção, na qual caberia à escola, à imagem e se-
melhança das máquinas na produção industrial, Ou seja, as relações mediadas pela téc-
processar a matéria-prima de modo a homoge- nica empobrecem a experiência e geram uma
neizar o produto final. Educação para a eman- nova barbárie:
cipação não é planejamento técnico que perde
de vista os fins e faz dos meios fins em si mes- Uma nova forma de miséria surgiu com esse
mos; não é ordenamento cuidadoso e formali- monstruoso desenvolvimento da técnica,
zado de passos previamente definidos em guias sobrepondo-se ao homem. [...] A natureza
curriculares, procedimento que bloqueia o pen- e a técnica, o primitivismo e o conforto se
samento autônomo; não é imposição de uma unificam completamente, e aos olhos das
visão de mundo constituída de conhecimento pessoas, fatigadas com as complicações in-
morto para ser memorizado; não é avaliação finitas da vida diária e que veem o objetivo
do êxito da aprendizagem pela repetição pelo da vida apenas como o mais remoto ponto
aluno do que o professor ou o livro disseram, de fuga numa interminável perspectiva de
palavra por palavra; não é oferta de conheci- meios, surge uma existência que se basta a
mentos técnicos para uma futura inserção no si mesma, em cada episódio, do modo mais
mercado de trabalho; não é imposição de valo- simples e mais cômodo. [...] Ficamos pobres.
res, muito menos educação moral e cívica; não Abandonamos uma depois da outra todas as
é produção de conformismo; não é educar para peças do patrimônio humano. (BENJAMIN,
o individualismo ou para a massificação; não é 1993, p. 114-119, grifos nossos)
educar para a competição e para a frieza; não é
controlar o aprendiz tendo em vista adaptá-lo Tomando como ponto de partida essa re-
ao existente. Na sociedade administrada, a edu- flexão de Walter Benjamin, o filósofo Giorgio
cação não pode reduzir-se à mera produção de Agamben (2008, p. 21-23) conclui:
well adjusted people. A administração atual da
subjetividade pela cultura de massa já faz isso Porém, nós hoje sabemos que, para a
além da conta, motivo pelo qual “a crítica deste destruição da experiência, uma catástrofe
realismo supervalorizado” é tarefa educacional não é de modo algum necessária, e
decisiva (ADORNO, 1995, p. 143-145). Trata-se que a pacífica existência cotidiana em
de uma exigência política: que a educação seja uma grande cidade é, para esse fim,
produtora de uma consciência que questiona o perfeitamente suficiente. Pois o dia a dia
real, sem a qual não há decisões conscientes, do homem contemporâneo não contém
não há sujeito e, portanto, não há possibilidade quase nada que seja traduzível em
de democratização. experiência. [...] O que não significa que
hoje não existam mais experiências. Mas
*** estas se efetuam fora do homem. [...] Posta
Nas sociedades atuais, é nítido o diante das maiores maravilhas da terra,
empobrecimento do repertório de imagens, de a esmagadora maioria da humanidade

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recusa-se hoje a experimentá-las: prefere profissionais manuais e não manuais, à
que seja a máquina fotográfica a ter especialização que produz ‘conselheiros’,
experiência delas. ‘peritos’, ‘especialistas’ para a máqui-
na burocrática do capitalismo moderno.
A inaptidão à experiência não é ausên- (MÉSZÁROS, 2006, p. 271-272)
cia de funções ou incapacidade, mas aversão à
educação num mundo em que a racionalidade No entanto, é preciso ressaltar que a recu-
se tornou simples instrumento de realização de sa à mentalidade tecnicista não é recusa radical
planos existenciais pragmáticos que recusam a à televisão como recurso educativo. Os próprios
consideração de tudo o que não for útil. Os jo- críticos dessa maneira de pensar destacam o po-
vens atuais são, como regra, cada vez mais hos- tencial educativo da TV, mas, para evitar mal-
tis a qualquer projeto educativo que não tenha -entendidos, esclarecem a natureza desse poten-
a instrumentalidade como centro. A questão, cial: a serviço das TVs educativas, ela contribui
portanto, não é simplesmente a ausência de for- para a formação cultural ao veicular o melhor
mação, mas a hostilidade a ela. A educação que da produção espiritual nos campos da filosofia,
mimetiza esses meios e fins vem para reforçar a das ciências e das artes, de modo a interessar o
competição, o individualismo, a indiferença pelo grande público. É por essa via que a TV pode
outro, o isolamento, o empobrecimento da ex- concorrer – de modo importante, embora sempre
periência, ingredientes da prontidão para a vio- restrito, porque inevitavelmente superficial e de
lência. Como reanimar o que foi depauperado? fora para dentro – para a abertura de “uma bre-
Formando pela e para a reflexão: “a única possi- cha na barreira do conformismo”. Mas, mesmo
bilidade que existe é tornar tudo isso consciente nesse caso, ela não forma: “o conceito de infor-
na educação”. Formar não é desenvolver apenas mação é mais apropriado à TV do que o conceito
a capacidade formal de pensar, que, embora ne- de formação” (ADORNO, 1995, p. 79). De cará-
cessária, limita a inteligência; “pensar é o mesmo ter essencialmente informativo e documentário,
que realizar experiências intelectuais” (ADORNO, ela não tem como formar para a experiência do
1995, p. 151-154). Florestan Fernandes (1989, p. pensamento. Evidentemente, os conteúdos e mé-
264) reiterou essa ideia: “O objetivo último da todos da educação presencial também se podem
educação escolarizada não está em ‘fazer a cabe- prestar à ideologização e resultar em mera acei-
ça do estudante’, mas em inventar e reinventar tação do estabelecido, mas a reversão profun-
a civilização sem barbárie”. O enfraquecimen- da disso – que se faz de dentro para fora – só
to da formação do eu é tanto maior, segundo pode acontecer numa instituição educativa real,
Adorno, quanto mais a educação vai se transfor- ou seja, habitada por professores e alunos cujas
mando em ensino técnico, verdadeira obsessão relações face a face tecem a vida institucional.
atual das autoridades educacionais brasileiras.
Fazer a crítica dessa modalidade de ensino não A relação professor-aluno
significa valorizar a educação do Homo sapiens
em detrimento da educação do Homo faber, mas Não por acaso, é no bojo da própria crí-
concebê-las, em companhia de Gramsci, como tica do tecnicismo na educação escolar que a
indissociáveis. Reduzida a qualificação para o reflexão sobre a relação professor-aluno vem
mercado, a educação não é mais ganhando relevo na literatura educacional. Nos
anos 1920, Gramsci (1978, p. 132) já advertia:
[...] feita para os homens, mas para o sis-
tema, pois aderida ao que Schiller con- Um professor medíocre pode conseguir
siderava como ‘a racionalidade daninha’ que seus alunos se tornem mais instruídos,
[...] limitada à qualificação técnica de mas não conseguirá que sejam mais

312 Maria Helena Souza PATTO. O ensino a distância e a falência da educação


cultos; ele desenvolverá – com escrúpulo ensino a distância, cresce a reflexão sobre os
e com consciência burocrática – a parte males da formação virtual de professores (ver,
mecânica da escola. por ex., GIOLO, 2008). Nas universidades es-
taduais paulistas, a contribuição da psicanáli-
Em 1939, dirigindo-se a jovens nor- se vem se fazendo cada vez mais presente no
malistas argentinas, o escritor Julio Cortázar entendimento da relação educativa como um
falou-lhes da essência do ato de educar e do encontro de subjetividades baseado numa rela-
professor então mecanizado pelo tecnicismo da ção de transferência. É no campo configurado
pedagogia moderna, embora não pudesse então pela presença de um professor que fala diante
imaginar a que ponto essa mecanização che- de seus alunos e se expõe pessoalmente – pois
garia, meio século depois, com o progresso da não se limita à leitura de um texto previamente
tecnologia da comunicação: preparado – que se dá o fenômeno da trans-
ferência, primeiramente do professor que fala,
Um número desoladoramente grande de e depois dos alunos, quando estes começam a
professores fracassa. Fracassa silencio- falar e a ser ouvidos pelo professor (KUPFER,
samente, sem que o mecanismo do nosso 2010). Mas definir a relação pedagógica com
ensino fundamental tome conhecimento de uma relação transferencial de dupla mão não
sua derrota; fracassa sem ele mesmo saber, significa defendê-la como uma relação de amor
porque nunca teve o conceito de sua mis- – como uma pedagogia do amor –, nem pregar
são. Fracassa tornando-se rotineiro, entre- o amor para eliminar a frieza, e isso por três
gando-se ao cotidiano, ensinando o que os motivos: porque essa pregação não é suficiente
programas exigem e mais nada, prestando para mudar a ordem social que produz e re-
contas rigorosamente do comportamento produz a frieza; porque o amor não pode ser
e da disciplina de seus alunos. Fracassa exigido em relações profissionalmente inter-
transformando-se no que se costuma cha- mediadas, como o é a relação professor-aluno;
mar de “professor correto”. Um mecanismo porque, transformado em dever, ele faz parte da
de relojoaria, limpo e brilhante, mas sub- ideologia que perpetua a indiferença ao outro
metido à condição servil de toda máqui- (ADORNO, 1995). No entanto, se a demanda de
na. [...] Considero que o fracasso de tantos acolhimento mútuo é necessária à construção
professores argentinos decorre da carência da relação professor-aluno – o que, de novo,
de uma verdadeira cultura, de uma cultura exclui o ensino virtual como terreno propício
que não se apoie na mera acumulação de ao convívio entre o professor e seus alunos nos
elementos intelectuais. [...] A cultura é isso termos em que o definimos aqui –, ela não é su-
e muito mais [...] [é] a atitude integralmen- ficiente; é necessário um terceiro elemento que
te humana, sem mutilações, que resulta de rompa essa relação e a remeta à dimensão sim-
um longo estudo e de uma ampla visão da bólica. No caso da educação escolar, esse tercei-
realidade. (CORTÁZAR, 2010, p. 163-164) ro é o desejo de saber do aluno, sem o qual não
se constrói o lugar do professor.
Uma aula virtual não pode ter a intensi- Segundo Kupfer (2010), é a maneira es-
dade de uma aula real, pois a relação professor- pecial com que o professor se relaciona com a
-aluno é essencialmente imediata, sem interme- matéria que escolheu, é seu estilo que desperta
diações, requer uma “situação de transferência” nos alunos o desejo de terem com o saber uma
entre professor e aluno (ADORNO, 1995, p. relação parecida, embora com o estilo próprio
91). Essa relação tem sido uma das dimensões a cada um, sem o que seriam espelhos, robôs,
da educação mais pesquisadas nas universi- clones do professor. Chauí (1980, p. 39) diz isso
dades do país; com o boom dos programas de de outro modo: uma pedagogia centrada na

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consciência contraditória do professor e do alu- de massificação, de tal modo que o “direi-
no pressupõe “um professor que não tem mo- to igual de todos à educação” se converta
delos para imitar porque aceitou a contingência automaticamente na suposição de que para
radical da experiência pedagógica”. O que vale ser um “direito igual” a educação deva
destacar é que: reduzir-se à vulgarização dos conhecimen-
tos através dos “media”? [...] O recurso au-
[...] o trabalho pedagógico, por ser um tra- diovisual tende a transformar a igualdade
balho, não é transmissão de conhecimentos educacional em nivelamento cultural pelo
(para isso existem outros instrumentos), baixo nível dos conhecimentos transmitidos
mas também não é um diálogo, uma co- (CHAUÍ, 1980, p. 32-33).
municação intersubjetiva entre o professor
e seus alunos. (CHAUÍ, 1980, p. 39) São muitas as questões suscitadas pelos
programas de ensino a distância:
O que não significa que o diálogo esteja ausente: • Há de fato relação professor-aluno
“Ao professor não cabe dizer: ‘faça como eu’, numa proposta de ensino em que o professor é
mas ‘faça comigo’” (CHAUÍ, 1980, p. 39, grifo mero veículo de textos e de exercícios previa-
nosso). Assim como mente ordenados, pré-fabricados por outrem e
impostos de cima e de fora?
[...] o professor de natação não pode ensinar • É possível avaliar a aprendizagem por
o aluno a nadar na areia fazendo-o imitar meio de testes que exigem respostas que repro-
os seus gestos, mas leva-o a lançar- duzem a fala do professor e a letra dos textos?
se na água em sua companhia, para que Em caso positivo, qual é a natureza da aprendi-
aprenda a nadar lutando contra as ondas, zagem avaliada?
fazendo seu corpo coexistir com o corpo • Relação ao vivo, no sentido dessa ex-
ondulante que o acolhe e repele, revelando pressão no campo da comunicação midiática,
que o diálogo do aluno não se trava com será sinônimo de convívio?
seu professor de natação, mas com a água, • Numa modalidade de ensino em que
o professor se dirige a uma máquina e passa
da mesma forma, “o diálogo do aluno na educação por treinamento para se adequar à linguagem
escolar é com o pensamento, com a cultura verbal e gestual televisiva, há espaço para uma
corporificada nas obras e nas práticas sociais” relação transferencial como condição da rela-
transmitidas pelo professor, diálogo impossível ção pedagógica?
sem a presença dele (CHAUÍ, 1980, p. 32-33). • Diante de um docente engessado pelas
exigências da técnica ou de um tutor limitado
À guisa de inconclusão a atividades segmentadas e rigidamente enca-
deadas nos polos de apoio, o aluno terá alguma
São muitas as perguntas a respeito da condição de aprender a nadar em companhia
instalação das máquinas no coração do ensino: do professor, no corpo vivo do saber que o aco-
lhe e repele?
A quem interessa que a educação seja ape- • Que interesses alimentam o crescimento
nas mais um item da cultura de massa e da de programas de EaD neste momento da
indústria cultural? Quem lucra, do ponto de economia mundial e num país como o Brasil?
vista econômico, com a fabricação desses Elitizar os cursos presenciais nas universidades
recursos? Quem lucra, social e politicamen- estaduais paulistas, transformando-as em ilhas
te, com seu uso? A quem interessa que a de excelência destinadas aos mais capazes?
democratização da cultura seja sinônimo Criar uma universidade pública dual, que

314 Maria Helena Souza PATTO. O ensino a distância e a falência da educação


oferece cursos presenciais aos que tiveram • Por que a política educacional se faz
acesso a instituições privadas de ensino de costas para o melhor da produção univer-
fundamental e médio que os preparam para sitária sobre educação financiada por verbas
a Fuvest, e cursos a distância aos que estão à públicas? A quem interessa a total ausência de
mercê do desmanche desses níveis de ensino atitude filosófica num programa que enaltece
na rede pública? Produzir um contingente de a excelência das três universidades estaduais
excluídos que estão dentro, segundo expressão paulistas? Por que os encarregados de elaborá-
de Bourdieu, ou seja, de excluídos do direito à -lo ignoram o melhor da teoria e da pesquisa
educação que só aparentemente têm esse direito nelas produzidas sobre os impasses da educa-
garantido, pois estão dentro das escolas? ção escolar brasileira, decisão que faz do pro-
• A quem interessa, num momento de grama Univesp um exemplo desconcertante do
horror econômico – do desemprego estrutural, ditado casa de ferreiro, espeto de pau? Por que
que permite o sucateamento da educação es- a cúpula dessas universidades aderiu tão pron-
colarizada, e do capital sem pátria, que busca tamente à Universidade Virtual sem evocar o
lugares do mundo onde é possível explorar ao saber acumulado por muitos de seus docentes e
máximo a força de trabalho –, a proliferação de pesquisadores e sem convocá-los para discutir
escolas técnicas como o ensino que emprega? a criação de um programa que os tornou par-
• A quem interessa a volta, quarenta anos ceiros por decreto?
depois, da teoria do capital humano, que reduz A deterioração da concepção de univer-
formação educativa a formação profissional para sidade é um desastre em curso desde os anos
o mercado de trabalho, como se o mercado de 1970, quando, segundo análise de Franklin
trabalho ainda fosse o mesmo na atualidade? Leopoldo e Silva (2001, p. 296), um diagnós-
• A quem interessa a disseminação da ex- tico de estrangulamento do acesso à universi-
pressão ensino de qualidade, sem que se defina o dade levou os governos militares, orientados
que se entende por isso numa época em que pre- por uma “ideia perversa de expansão e demo-
domina a ideia de qualidade total, noção forjada cratização do ensino superior”, a ampliar as
por ideólogos do FMI e do Banco Mundial que vagas sem onerar o poder público – ou seja,
reduz ensino a mercadoria, alunos a consumido- abrindo as portas desse nível de ensino à ini-
res e instala uma pedagogia sem sujeito?4 ciativa privada. Com uma mentalidade organi-
• A quem interessa a avaliação quantitati- zacional bem-sucedida no ensino fundamental
va dos resultados da educação, dados que engor- e médio, as empresas usaram-na com êxito no
dam estatísticas enganosas que em breve porão o novo empreendimento:
Brasil entre os países com os maiores índices de
escolaridade e ocultarão legiões de semianalfabe- Os parâmetros de eficiência e lucrativida-
tos portadores de diploma de nível superior? de excluíam qualquer ideário pedagógico
• Por que a insistência oficial na cren- mais consistente, o que foi substituído
ça de que medidas técnicas podem resolver os pelo senso de oportunidade comercial na
problemas da escola pública brasileira, quando organização e venda de serviços segundo
pesquisas já mostraram o fracasso delas e os o critério da demanda. Esse tipo de atitu-
males que elas causam?5 A quem interessa uma de compunha-se muito bem com o regime
sociedade sem cidadãos pensantes? autoritário, que entendia a universidade
como formadora de “recursos humanos”,
de acordo com a ideologia do desenvol-
4 - Sobre o aluno como mercadoria a ser vendida no mercado de trabalho vimento e da segurança nacionais. Dessa
e, assim, impedido como sujeito, ver pesquisa de Bueno (2003).
5 - Sobre essa característica da política educacional e seus males, ver o forma, a ditadura encontrou na expansão
trabalho de Carvalho (2001). do ensino privado tanto um meio de se

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desonerar da responsabilidade educativa criticamente sobre ela. Para que isso aconteça,
quando um instrumento ideológico eficaz elas não podem entrar no círculo perverso de
na adaptação do alunado às regras de com- produção e consumo que invade tudo, inclusive
portamento político (ou apolítico) vigentes. os bens culturais, e os atrela a determinações
Há de se entender também que os parâme- pragmáticas e economicistas. São os critérios
tros de lucratividade e eficiência repercu- extrínsecos de utilidade e oportunidade que
tiam diretamente na questão da qualidade alimentam uma crítica da universidade que a
e do nível de ensino ministrado. A depen- denigre “por abrigar tantas coisas ‘inúteis’, tais
dência da clientela para a sobrevivência como a Filosofia, as Letras Clássicas, os Estudos
econômica da empresa gerava naturalmen- Literários etc.”, até mesmo as Ciências Sociais e
te um nivelamento por baixo das exigên- Humanas, e as colocam “no rol dos ornamentos
cias didáticas. Como esse rebaixamento re- supérfluos, a menos que se prestem diretamente
dundava num aumento visível do número a se transformar em instrumentos de poder tec-
de graduados em nível superior, isso tam- nocrático” (SILVA, 2001, p. 303). A relação in-
bém vinha ao encontro das expectativas do trínseca com a cultura é condição da autonomia
governo, na medida em que constituía uma das universidades públicas e só existe quando
maneira de alimentar com ilusões e falsas elas se preservam como espaço verdadeiramen-
esperanças os anseios de ascensão da classe te público, ou seja, como espaço
média. (SILVA, 2001, p. 295-296)
[...] de preservação, de apropriação e de re-
Se a expansão do ensino superior pri- flexão da cultura que permite que o acesso
vado como mercadoria ainda era pouco clara não seja filtrado por dispositivos discrimi-
nos governos da ditadura, hoje “trata-se de algo nadores montados em outras instâncias da
plenamente manifesto na vigência das escolhas vida social. (SILVA, 2001, p. 303-304)
neoliberais” (SILVA, 2001, p. 299). Por isso mes-
mo, na contracorrente de uma instituição priva- É esse o silêncio do discurso e das me-
da que responde às necessidades sociais filtradas didas oficiais sobre o ensino superior que hoje
pelo mercado, cabe às universidades públicas mais ameaça a integridade das universidades
preservar a cultura, apropriar-se dela e refletir públicas brasileiras.

316 Maria Helena Souza PATTO. O ensino a distância e a falência da educação


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Recebido em: 28.09.2012

Aprovado em: 14.11.2012

Maria Helena Souza Patto é docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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