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Cirandas da Vida: dialogismo e arte na gestão

em saúde1
Cirandas da Vida: dialogism and art within health
management

Vera Lúcia de Azevedo Dantas Resumo


Mestre em Saúde Pública. Doutora em Educação. Coordenadora
pedagógica do Sistema Municipal de Saúde Escola - Secretaria Este estudo tem como objeto as ações das Cirandas
Municipal de Saúde de Fortaleza. da Vida, em seu dialogismo entre o princípio da
Endereço: Av. dos Expedicionários, 3.406, ap. 1.101, bl. 2, Benfica,
comunidade e a esfera institucional na formulação
CEP 60410-410, Fortaleza, CE, Brasil.
E-mail: dantas.verinha@gmail.com e implementação de políticas de saúde e tenta apre-
ender como a perspectiva popular se expressa com
Ângela Maria Bessa Linhares
arte na gestão em saúde. Busca capturar como as
Professora doutora da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Ceará. comunidades exprimem sua história de luta, me-
Endereço: Rua Waldery Uchôa, no 1 - Campus do Benfica, CEP diante as linguagens da arte como fertilizadora do
60120-021, Fortaleza, CE, Brasil. princípio de comunidade; analisar como os atores
E-mail: angela.ciranda@hotmail.com populares se inserem na formulação e implementa-
Elias José da Silva ção dessas políticas; compreender como os diferen-
Teólogo. Educador popular e coordenador das Cirandas da Vida, tes grupos geracionais expressam suas leituras da
Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza. realidade, no dialogismo vivido na gestão em saúde
Endereço: Rua Humberto Lomeu, 3.231, Granja Lisboa, CEP 60541-
110, Fortaleza, CE, Brasil.
e analisar como as linguagens da arte contribuem
E-mail: elias_jsilva@yahoo.com.br para a construção de atos limite como estratégias
de superação das situações-limite apontadas nas
Raimundo Félix de Lima
Graduado em Língua e Literaturas de Língua Portuguesa. Es-
rodas das Cirandas. Trabalhamos com a pesquisa
pecialista em Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde; Assessor ação, constituindo uma comunidade ampliada de
artístico-pedagógico das Cirandas da Vida, Secretaria Municipal pesquisa que procedeu à análise coletiva da experi-
de Saúde de Fortaleza. ência. A violência aponta como uma das situações
Endereço: Rua Silva Cavalcante, 777, Pirapora Maranguape, CEP
limite, revelando o seu impacto na juventude em
61940-000, Fortaleza, CE, Brasil.
E-mail: limafeliz@gmail.com situação de conflito com a lei e as linguagens da
artes surgem como potências, espaços de expres-
Maria Rocineide Ferreira da Silva
são, problematização e transgressão da realidade
Enfermeira. Mestre em Saúde Pública. Doutoranda em Saúde Cole-
tiva pela UECE-UFC. Docente da Universidade Estadual do Ceará. e do envolvimento desses jovens na construção de
Endereço: Av. Parajana, 1.700, Serrinha, CEP 60000-000, Fortaleza, políticas. Revela ainda o enfoque de gênero e as
CE, Brasil. estratégias de sócio-economia-solidária, bem como
E-mail: rocineideferreira@gmail.com
práticas de cuidado como atos-limite. O acesso aos
Luiz Odorico Monteiro de Andrade serviços de saúde, outra situação limite apontada,
Professor adjunto da Faculdade de Medicina, UFC/Sobral; doutor revelou a necessidade de fortalecer a humanização
em Saúde Coletiva pela UNICAMP, Secretário de Gestão Estratégica
da atenção. A arte e as práticas populares de cuidado
e Participativa do Ministério da Saúde.
E-mail: odorico_andrade@hotmail.com surgem como potências dos atores populares que
ocuparam rodas de gestão, incluindo seus saberes
1 Este artigo foi baseado no trabalho apresentado à 3a edição do no cotidiano: o inédito viável.
Prêmio Sérgio Arouca de Gestão Participativa da Secretaria de Palavras-chave: Dialogicidade; Gestão; Educação
Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, 2008,
tendo recebido menção honrosa como “Experiências Exitosas”.
popular; Arte; Saúde.

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Abstract A Educação Popular e o Campo da
This study discusses the actions of the project ‘Ci- Saúde: encontros possíveis sob a
randas da Vida’, which works indialogism between ótica da gestão participativa
the principles of community and the institutional
field in the formulation and implementation of A saúde coletiva insere-se em uma realidade social
health policies. It tries to understand how popular complexa, por isso deve ser pensada como um campo
perspective expresses itself artistically within he- interdisciplinar, articulado a uma totalidade social.
alth management, and to capture how communities Nesse sentido, é fundamental compreendermos a
express their history of fight through arts´ langua- importância de construir marcos que referenciem a
ges as a fertilizer of the principle of community; we mudança das práticas de saúde, de forma a contem-
looked into how popular actors insert themselves plar sua historicidade mediante espaços dialógicos
into the formulation and implementation of these de interlocução entre saberes e práticas, ampliando
policies, in order to understand how different groups as perspectivas de atuação e reflexão sobre a reali-
of different generations express their readings of dade na ótica da integralidade.
reality, in the dialogism lived within health ma- Podemos pensar a saúde coletiva, portanto, no
nagement. Finally, we try and analyze how arts´ contexto da produção de um processo emancipató-
languages contribute to the construction of limit rio dos sujeitos sociais, para dar conta da complexa
acts as strategies to surpass limit situations which realidade dos serviços públicos de saúde e do diálogo
came up during Cirandas’ encounters . Action rese- que devem estabelecer com os movimentos sociais.
arch was the chosen method: an extended research Situamos, assim, inicialmente, a educação popular
community was constituted and proceeded to a col- e saúde como um braço do movimento popular, na
lective analysis of the experience. Violence points luta pelo direito à saúde.
out that it is one of the limit situations, revealing A articulação entre saúde e doença, nesse con-
its impact onto youth with problems with the law texto, faz-se com base na concepção de saúde como
and the potential of the languages of art as spaces processo de conquistas sociais amplas, que incor-
of expression, problematization and transgression pora aspectos das subjetividades, no caminho de
of reality and the involvement of these youngsters exercer-se como direito, percebendo tratar-se da
within the construction of policies. It reveals also produção da vida coletiva que se tece, porém, no
the focus on gender, and the strategies of social traçado singular das culturas.
and solidarity economy and care practices as limit As políticas de saúde, no Brasil, têm passado por
acts. Access to health services was another limit mudanças significativas nos últimos vinte anos,
situation pointed out, emphasizing the necessity of que refletem as conquistas populares no sentido da
strengthening humanization in health attention. Art democratização dos serviços e do acesso da popu-
and popular practices of care emerge as potentiali- lação aos processos decisórios. O Sistema Único de
ties of the popular actors that participated of the Saúde (SUS) é emblemático dessas mudanças, no
management encounters, bringing their knowledge entanto, é preciso percebê-lo como um projeto social
in a daily basis: the viable unknown. em construção.
Keywords: Dialogism; Management; Popular edu- Segundo Oliveira (1994), vivenciamos no Brasil
cation; Art; Health. um movimento em que a sociedade busca redefinir e
redesenhar o Estado a partir de uma ampla conjuga-
ção de variadas forças, em que as classes populares
tentam a criação de uma sociedade política que se
erga com novos parâmetros de justiça social.
Pensar o SUS sob a ótica da integralidade e da hu-
manização significa situar os cidadãos como centro
da organização das práticas de saúde, a serem pau-
tadas nos desejos e necessidades da população.

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Em que pese os extensos e graves desafios que cogestão da saúde coletiva e da clínica.
permanecem, é possível vislumbrar cenários, nos Para o autor, cogestão implica um modo de
quais as ações de saúde estejam voltadas para o administrar em que o pensar e o fazer coletivo
enfrentamento dos seus condicionantes, possibi- constituem-se diretrizes ético-políticas, objetivan-
litando encontros entre profissionais, gestores e do democratizar as relações no campo da saúde.
população. Portanto pensar processos que apontem para a
Espera-se que esses encontros sistemáticos cogestão dos diversos espaços institucionais no
(práxis formativa) fortaleçam a formação política campo da saúde coletiva pressupõe reconhecer os
dos sujeitos populares, atores sociais capazes de cenários de disputa, micropoderes e as diferentes
“vir-a-ser-mais” (Freire, 1999) e de produzirem novos concepções de saúde que constituíram as práticas
saberes que contribuam para a inclusão social e a nesses espaços.
promoção da vida. Também pressupõe o reconhecimento dos di-
Ao refletirmos sobre a gestão em saúde, não po- versos atores como sujeitos – protagonistas dessas
demos nos distanciar das lutas que historicamente práticas e a necessidade de potencializar a auto-
foram travadas pela conquista do SUS no qual o nomia desses diversos sujeitos, possibilitando a
controle social, representado pelos conselhos de construção de diálogos e escutas sob a ótica da saúde
saúde, institui-se enquanto política. Apesar desse como direito dos cidadãos e cidadãs.
espaço instituído, é na tensão permanente entre a O fortalecimento de espaços de gestão participa-
sociedade organizada e as esferas de governo que tiva no SUS implica no envolvimento da população
novos direitos constituem-se e fazem-se valer aque- na construção das políticas de saúde e no compro-
les já instituídos. misso com a autonomia das pessoas, ampliando os
O presente estudo emerge da caminhada de ho- espaços públicos para o exercício do diálogo e das
mens, mulheres, jovens e crianças que compõem as pactuações, respeitando as diferenças.
rodas das Cirandas da Vida, atividade de educação Essas reflexões nos levam a alguns questiona-
popular situada no contexto do Sistema Municipal mentos necessários a esse processo de elabora-
de Saúde Escola e insere-se no contexto de uma ções:
gestão pública municipal, buscando fazer o movi- Como pensar caminhos no campo da saúde co-
mento dialético de desvelar o mundo, partindo da letiva, em que gestores, profissionais e população
ação-reflexão-ação (Freire, 1999). possam interagir e descobrir, juntos, formas coleti-
Nesse sentido, a pergunta geradora destas re- vas de aprendizagem e investigação?
flexões foi: como poderíamos ler o dialogismo e a Como construir a problematização da realidade
arte na gestão em saúde, buscando a perspectiva complexa do nosso cotidiano de trabalho numa
popular? Para dialogar sobre essas questões, elege- perspectiva transformadora da realidade?
mos o relato da experiência viva em ato a partir do Como efetivamente promover a inclusão popular
diálogo entre a Comunidade Ampliada de Pesquisa, nos espaços de gestão e na construção do processo
Comunidade Ampliada de Pares, os círculos de cul- de trabalho em saúde? Que diálogos seriam possíveis
tura e a arte. e constituiriam as condições de possibilidade para
Campos (2006) chama a atenção para a necessi- que as transformações necessárias ocorram?
dade de estruturação de arranjos organizacionais Merhy (2002) fala sobre o trabalho em saúde
que facilitem e mesmo estimulem a construção de como trabalho vivo em ato cujo objeto não é ple-
vínculos, a “longitudinalidade”, a responsabilização namente estruturado, possibilitando certo grau
clínica e sanitária entre gestores, trabalhadores e de liberdade na forma de realizá-lo, incluindo sub-
usuários. Esses mecanismos teriam como principal jetividades a partir de tecnologias leves (aquelas
objetivo potencializar a democratização das organi- voltadas para o campo relacional e destituídas de
zações de saúde, apontando para a possibilidade de poder pela mecanização e tecnificação dos atos em

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saúde) implicadas com a produção de relações entre um desenho organizativo e uma proposta de gestão
os vários sujeitos envolvidos: os profissionais, os que potencialize a efetiva participação dos diversos
gestores e a população. atores institucionais, na tentativa de constituir
Nesse contexto, a educação popular oferece um espaços coletivos para análise das informações e
instrumental teórico-fundamental para o desenvol- tomada das decisões.
vimento dessas novas relações, “através da ênfase Nesse sentido, a gestão constitui, como arranjos,
ao diálogo, a valorização do saber popular e a busca as Rodas da Gestão que perpassam pelos territórios
de inserção na dinâmica local” (Vasconcelos, 2001, “vivos”, as Redes Assistenciais e as políticas estrutu-
p.14), tendo a identidade cultural como base da ação rantes do Sistema na perspectiva de descentralizar e
educativa, e compreendendo que o “respeito ao sa- democratizar os processos da gestão e de tomada de
ber popular implica necessariamente o respeito ao decisão (Fortaleza, 2006). Andrade e colegas (2006,
contexto cultural” (Freire, 1999, p. 86). p. 121) desenharam, para o Sistema, a Teia da Coges-
A Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza tão da Produção de Saúde, que, de forma transversal,
adotou a Estratégia Saúde da Família como estru- alimenta a interface da gestão e da atenção das redes
turante da rede de serviços de saúde do SUS no mu- assistenciais, constituindo teias “que dão suporte à
nicípio, buscando a ampliação efetiva da cobertura cogestão do cuidado, dando vida e materializando o
assistencial. Nesse percurso tem se orientado por SUS que queremos – universal, com integralidade,
critérios de avaliação de risco e vulnerabilidade nos equidade e participação social.” As Cirandas da Vida
diversos territórios da cidade, como estratégia de foram nomeadas na Teia da Cogestão como Roda da
estabelecer prioridades na ampliação do acesso aos Educação Popular em Saúde e incluídas no colegiado
serviços. Ao mesmo tempo tem buscado construir gestor da Secretaria Municipal de Saúde (figura 1).

Figura 1 - Teia da Cogestão de Produção da Saúde no Sistema Municipal de Saúde de Fortaleza

Fonte: Canuto, O. M. C.; Andrade, L. O. M. Fortaleza, 2006

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Nessa perspectiva caberia interrogar: que pontos tituições formadoras e as diferentes representações
de ruptura e que dificuldades esses novos desenhos dos movimentos sociais e populares. O SMSE nasce
de participação e organização dos serviços eviden- com o intuito de fortalecer e consolidar a estratégia
ciam? Em que medida as rodas de gestão constitu- da Educação Permanente no município de Fortaleza,
ídas nas diversas redes assistenciais da saúde em em dezembro de 2006, através da Portaria 160/2006,
Fortaleza promovem a inclusão dos atores popula- publicada no DOM de 04/01/07. É importante frisar
res, considerando a proposição de Campos (2006) de que ele se articula aos movimentos que hoje pautam
fazer comportar, nesses espaços, além dos gestores e as discussões sobre a Educação Permanente em
trabalhadores do campo da saúde, a sociedade civil, Saúde e às instituições formadoras no Estado.
os cidadãos e seus familiares? As Cirandas da Vida surgem por iniciativa de
Segundo relatório de gestão da Secretaria Mu- atores e atrizes vinculados à Articulação Nacional
nicipal de Saúde, o enfrentamento dos desafios de Movimentos e Práticas de Educação Popular e
presentes no campo da gestão e da atenção, “reque- Saúde – ANEPS e inserem-se no contexto do Sistema
rem a implementação de uma política de educação Municipal Saúde-Escola – SMSE (BARRETO, et al,
para o SUS” que potencialize a mudança do modelo 2006) – objetivando a inclusão da educação popu-
médico-assistencial e qualifique o processo de ges- lar nas ações educativas deste sistema, a partir da
tão participativa e democrática (Fortaleza, 2006). dialogicidade, da problematização, da criatividade
Ao nos referirmos à gestão participativa, nós e essencialmente do “saber-de-experiência-feito”
nos remetemos à concepção apontada por Pedro- (Freire, 1999) dos diversos sujeitos implicados, na
sa (2008) “como compartilhamento do poder nos perspectiva de construção da autonomia.
processos que constroem e decidem as formas de
enfrentamento aos determinantes e condicionantes
da saúde, bem como a presença do conjunto dos
As Trilhas Desenhadas na
atores que atuam neste campo”. Ainda segundo o Comunidade Ampliada de Pesquisa
autor, gestão participativa refere-se ao aprofunda- As singularidades das trilhas (violência, humaniza-
mento de processos e mecanismos que possibilitem ção e moradia na área de risco) construídas na cami-
o alargamento da participação social nas políticas nhada das Cirandas da Vida, ao buscar a perspectiva
públicas e a constituição de espaços em que, a partir popular na luta pelo direito à saúde, questionando
da explicitação das diferenças, podem-se construir como o princípio de comunidade e a esfera institu-
proposições coletivas e arranjos institucionais que cional dialogam na formulação e implementação de
venham operacionalizar respostas às necessidades políticas no campo da saúde em uma gestão popular,
sociais reveladas. nesse contexto maior de dialogismo, em que a arte se
Nesse contexto, a Secretaria Municipal de Saúde explicita como caminho nessa busca da perspectiva
de Fortaleza adota, como política estruturante de popular em saúde e a esfera da instituição, é que
organização e de gestão do serviço, o Sistema Mu- pautamos o relato desta experiência.
nicipal de Saúde-Escola - SMSE.
Nesse itinerário, outras questões dão contorno à
pergunta inicial: como a população das comunidades
Um Sistema para Efetivar as envolvidas nas rodas das Cirandas da Vida, projeto
Transformações Necessárias: da gestão atual, expressam – em seu dialogismo – as
diversas dimensões da sua história de luta mediante
articulando forças as linguagens da arte?
A ideia-força que orienta o Sistema Municipal de Ao chamar a arte ao contexto dialógico desse
Saúde-Escola é potencializar a reorientação do projeto, perguntávamos por dimensões da vida que
modelo assistencial, propiciando mudanças qualita- constituem a saúde das comunidades envolvidas nas
tivas no processo de trabalho em saúde, contextua- suas rodas, expressas nas falas populares.
lizadas em uma vivência educacional que tem como Existem, no Ceará e em outros Estados do Bra-
protagonistas: gestores, trabalhadores da saúde, ins- sil, diversas experiências envolvendo arte e saúde.

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No entanto, a maioria delas têm se remetido a uma Tendo como ponto de partida a reconstituição
dimensão instrumental da arte, que reduz a com- coletiva da memória social desses territórios, ex-
preensão dos contextos nos quais o dizer da arte pressas como suas histórias de luta e resistência, os
articula sentidos e diálogo. atores sociais envolvidos nas rodas das Cirandas da
No âmbito deste estudo, a arte é compreendida Vida têm apontado situações-limite e potencialida-
como espaço de criação – transcendência, capaz de des, construindo possibilidades de transformação
produzir sentidos, trajetos, sentimentos, contri- da vida do lugar, a partir de atos-limite.
buindo para construir as trilhas do caminho, dos Nessa perspectiva caberia interrogar: em que
projetos de futuro e dos atos que ultrapassam limites medida as rodas de gestão constituídas nas diversas
e transformam realidades. Refutamos a ideia de arte redes assistenciais da saúde em Fortaleza promovem
como instrumento, e a entendemos como dimensão a inclusão dos atores populares e como as rodas po-
que potencializa a dialogicidade criativa, capaz de pulares das Cirandas dialogam com esses espaços
realizar a suspensão crítica em que se promove a instituídos da gestão?
reflexão das ações – situações vividas e se favorece Nesse sentido as Cirandas da Vida, ao trazerem
a escuta em rede da experiência coletiva. a perspectiva popular para o campo da gestão, vão
Dessa forma, os propósitos da experiência das delineando, a partir do campo da saúde, trilhas nas
Cirandas da Vida em Fortaleza - CE são: compreender quais é possível articular esses dois campos: o da
como se expressam o dialogismo e a arte, na gestão perspectiva popular e o da esfera institucional.
em saúde, buscando a perspectiva popular; capturar Um dos aspectos significativos da proposta é
como a população das comunidades envolvidas nas a inclusão de atores e atrizes dos movimentos po-
rodas das Cirandas da Vida expressa as diversas pulares como protagonistas da construção dessas
dimensões da sua história de luta, mediante as lin- rodas populares que denominamos Cirandas. Ao se
guagens da arte como fertilizadora do princípio de incluírem na esfera institucional, trazem a tensão
comunidade; identificar como a luta pelo direito à permanente entre ação política e o fortalecimento
saúde se expressa nas rodas populares, no contex- dos espaços organizativos do movimento e da comu-
to das Cirandas da Vida, em seus enfrentamentos nidade e vão realizando a mediação entre esses dois
com a esfera institucional; analisar como os atores espaços, renovando as relações sociais cotidianas,
e atrizes populares se inserem na formulação e incluindo novos sentidos para a ação governamen-
implementação de políticas no campo da saúde, tal, revitalizando-a, chamando-a a pensar coletiva-
a partir das rodas das Cirandas da Vida; entender mente e a ouvir a comunidade em seus desejos e
como os diferentes grupos geracionais percebem necessidades. Esse caminhar revela-se um campo
e expressam suas diversidades de leituras da rea- tenso de recuos e limites, de onde se impulsiona
lidade, no dialogismo vivido no contexto da gestão o pluralismo necessário para fazer comportar as
atual em saúde. vozes populares.
Outra dimensão da experiência das Cirandas da
Vida diz respeito aos espaços de escuta e diálogo pro-
Trilhas e Teias para um Trabalho piciados aos gestores, em sua interface com os atores
em Rede: contextualizando a de várias gerações. A possibilidade de participar dos
diálogos intergeracionais evidencia a diversidade de
proposta olhares no cotidiano das comunidades que refletem
Lançadas em meados de 2005, as Cirandas da Vida a complexidade a ser enfrentada pelos espaços ins-
colocam em cena o desafio de desenhar coletivamen- titucionais na construção das políticas.
te uma proposta de educação popular que construa Outro aspecto relevante da experiência é a pos-
um olhar multirreferencial na interface entre atores sibilidade de trabalhar pensando a integralidade do
populares e institucionais, para dialogar sobre ações território, com suas culturas, suas potencialidades
de enfrentamento às situações-limite apontadas e seus desafios de estruturar atos-limite que devem
pela população, especialmente nas áreas de maior tentar romper com a fragmentação setorial. Para
vulnerabilidade social de Fortaleza. caminhar em direções tão difíceis de serem vividas

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na prática, temos de nos perguntar constantemen- freios, é que elas se configuram como obstáculos
te: como incorporar o saber construído na vivência à sua libertação, se transformam em “percebidos
cotidiana como estratégia de resistência dos setores destacados” em sua “visão de fundo”. Revelam-se
oprimidos e como estratégia de redesenhar e opera- assim, como realmente são: dimensões concretas
cionalizar as políticas? e históricas de uma dada realidade. Dimensões
As Cirandas têm afirmado, em sua constituição, desafiadoras dos homens [...] (p. 90).
a necessidade de promover um processo permanente Os encontros e oficinas das Cirandas da Vida vêm
de interação entre os diversos setores no campo possibilitando a construção de espaços de escuta à
da saúde e de todas as políticas sociais nas seis população, capazes de potencializar os processos de
loco-regiões administrativas de Fortaleza. Segundo territorialização, planejamento e avaliação perma-
Andrade (2006, p.282), um processo intersetorial nentes vividos por algumas equipes da Estratégia
aponta para a constituição de um espaço em que Saúde da Família em Fortaleza; proporcionando o
novas práticas e saberes vão se construir “com fato de que o saber gestado nesses espaços possa
base nos problemas concretos e complexos que alimentar as práticas de saúde locais.
a realidade apresenta”. Para o autor, os diversos A tentativa de incorporar abordagens popula-
setores contribuem com essa construção, a partir res como Farmácias Vivas, Terapia Comunitária,
de seu acúmulo histórico, organizacional, teórico Massoterapia, Reiki, entre outras, no contexto dos
e metodológico, gerando um novo objeto com suas serviços públicos de saúde, além de potencializar as
práticas, saberes e identidade que, por sua vez, são práticas culturais da comunidade como estratégias
mediados por esses acúmulos.
de promoção e cuidado à saúde, têm criado caminhos
Nessa perspectiva a caminhada das Cirandas
que vão nessa direção de escuta popular.
aposta na possibilidade de construção coletiva e
Pinçamos aqui um aspecto importante: o caráter
intersetorial de atos-limite capazes de reconhecer
dialogal dessa “busca” de escuta às experiências
a possibilidade de promover a vida e construir o
As comunidades apontam as situações-limite vi-
inédito viável, categoria fundamental ao desenvol-
venciadas e, então, estudam-se as potencialidades
vimento do processo, definido por Freire como:
locais para o seu enfrentamento, tentando buscar a
“Uma palavra que traz nela mesma o germe das
memória coletiva dos grupos e pessoas. Os limites
transformações possíveis voltadas para um futuro
são vistos de diversos ângulos – os “percebidos
mais humano e ético. Uma palavra que carrega no
destacados”.
seu âmago, crenças, valores, sonhos, desejos, aspira-
A partir da definição das situações-limite, são
ções, medos, ansiedades, vontades e possibilidade de
estruturadas oficinas temáticas, articuladas com
saber, fragilidade e grandeza humanas” (1999).
instituições e movimentos que trabalham e atuam
com o tema-problema, com o objetivo de estudar e
Situações-Limite: o lugar de se realizar enfrentamentos coletivos no âmbito das
problematizar as transformações regiões envolvidas, sempre partindo das potencia-
lidades locais de luta.
As situações-limite são aqui entendidas como aque- A problematização parte de um mergulho na
las que exigem transformação no contexto local, por memória, fazendo a reconstituição da história do
dificultarem a concretização dos sonhos, desejos e grupo e dos problemas, norteada por perguntas ge-
necessidades coletivas das populações. Para Freire radoras, expressas e socializadas através de rodas
(1987), as “situações-limite” envolvem trabalharmos de conversa, círculos de cultura e das linguagens da
os “percebidos destacados” e, ainda, se referem à arte. O reencontro das pessoas das diversas comuni-
chegada de dimensões humanas e tarefas históricas dades com essa memória tem explicitado desafios
e concretas das pessoas, em sua atuação social: importantes a serem enfrentados pelo conjunto dos
[...] não devem ser tomadas como barreiras insupe- atores.
ráveis, além das quais nada existisse. No momento Outro aspecto importante considerado nessa
mesmo em que os homens as apreendem como proposta diz respeito ao envolvimento de crianças,

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adolescentes e jovens nos grupos geracionais que dramatizando, enfim, traz sua riqueza expressiva
protagonizam diferentes ações, na tentativa de parti- de um modo mais abrangente.
cipar dos momentos de reconstituição da história do Os principais desafios apontados nesse percurso
seu bairro. Cabe aqui ressaltar a importância desses dizem respeito ao envolvimento dos atores institu-
atores sociais na percepção dos problemas do lugar; cionais (gestores e trabalhadores) com a possibili-
no entendimento do que sejam as potencialidades e dade de re-conhecimento e inclusão dos “saberes-de-
nas formas como contam dos seus desejos e sonhos experiência-feitos” e a captação de recursos para o
sobre o espaço urbano. desenrolar das ações que por vezes esbarram nas
O aprofundamento temático é feito com base na barreiras da burocracia institucional. A construção
articulação entre os vários saberes e na tentativa de da intersetorialidade e da multirreferencialidade
contribuir com o processo de reorganizar a atenção que considere os saberes do mundo da vida tão im-
– o que se presume permitir ampliar o olhar sobre portantes quanto os técnicos, tem se configurado
a questão. como outra questão relevante a ser enfrentada.
O processo de construção dessas reflexões tem
envolvido expressões artísticas como teatro, cenopo- Movimentos para uma Ciranda da
esia, música, hip-hop, artes plásticas, entre outras,
produzidas coletivamente a partir de perguntas ge- Cidade
radoras que buscam traçar os diferentes percursos Nos registros produzidos sobre as situações-limite
e perfis das situações- -limite apontadas e que repre- trabalhadas nas seis regionais de Fortaleza, estão
sentam, também, a possibilidade da emergência do apontadas: a violência, a dificuldade de acesso aos
lúdico, do simbólico, dimensões em geral subtraídas serviços de saúde e a moradia na área de risco A aná-
dos processos formativos e de pactuação política. lise dos indicadores construídos na Comunidade Am-
Nesse sentido, a arte, por sua capacidade de per- pliada de Pesquisa desvelaram potencialidades locais
manecer vinculada às fontes da vida e da morte das para a superação das situações-limite apontadas.
comunidades (Linhares, 2003), envolve a criação Em quatro, dos seis territórios trabalhados
de laços solidários e comprometidos com a liberta- pelas Cirandas, a violência foi apontada como uma
ção, constituindo-se como elo que articula saberes situação-limite priorizada pelo conjunto dos atores,
diferenciados, sensibiliza os diferentes atores revelando singularidades tais como: o impacto dessa
envolvidos e exprime as representações que o ho- violência para a juventude de algumas regiões, re-
mem constrói a partir da sua leitura do mundo na velando a necessidade de construção de atos-limite
perspectiva de conhecer e intervir sobre a realidade. para um coletivo de jovens que estão em situação de
(Geertz,1989). vulnerabilidade social mais profunda; como jovens
Outra dimensão fundamental da experiência diz em situação de conflito com a lei, e adolescentes e
respeito à possibilidade de os diversos atores en- jovens em situação de exploração sexual.
volvidos na construção da proposta, especialmente As linguagens da arte têm-se revelado espaços
os atores populares a que chamamos cirandeiros, de criação, formação, problematização e transfigu-
exercitarem a construção da autoralidade. O diálogo ração da realidade, potencializando o envolvimento
pressupõe uma ideia de conhecimento que inclui o desses jovens na construção de políticas tais como
saber como algo que é produzido por todo o corpo orçamento participativo, políticas de juventude,
social e que cada pessoa recompõe quando aprende. esporte e lazer e a aproximação com a comunidade
Dessa forma constituímos uma comunidade am- escolar, favorecendo o envolvimento com processos
pliada de pesquisa na qual esses atores populares formativos, a produção de círculos de cultura e a
percebem-se autores de suas falas individuais e estruturação de redes de arte, cultura e saúde.
coletivas e discutem como organizar a experiência Nesse processo a arte, para o conjunto dos atores
dos grupos com quem lutam, trazendo o campo ex- infanto-juvenis, tem se revelado também como prin-
pressivo do outro. Este, não só se diz oralmente, mas cipal ato-limite para o enfrentamento da questão.
desenhando, pintando, cantando, cenopoetizando, Eles reconhecem nessas expressões a possibilidade

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de ocupar espaços que se vêm constituindo cenários ao participarem dos momentos de reconstituição da
de produção de violência, reconfigurando-os na história do seu bairro, colocando-se como moradores
perspectiva de promover a vida. que percebem os problemas do lugar; apresentando
No que diz respeito à dificuldade de acesso aos o que entendem como potencialidades e falando dos
serviços de saúde, esses desafios afirmaram a neces- seus desejos e sonhos sobre espaço urbano.
sidade de redimensionamento da atenção à saúde Com assento garantido nas rodas das Cirandas,
prestada, expressa no desejo de um maior diálogo e as crianças são sensibilizadas a expressarem sua
respeito à comunidade. Emergiram, assim, trilhas compreensão do lugar onde vivem, por meio de dese-
temáticas no contexto das dificuldades de acesso aos nhos, música, teatro, dança e outras manifestações
serviços de saúde: humanização das ações; organiza- artísticas, mostrando o quanto estão conectadas
ção da atenção à saúde e participação popular. com as questões que permeiam o seu cotidiano.
A humanização tem sido um dos principais fo- Protagonizando processos, interferem no direcio-
cos da discussão, permeando as três trilhas acima namento e na tomada de decisões, influenciando as
descritas e suscitando a necessária convergência de demais gerações.
caminhos que tenham por base o diálogo, a solidarie- Freire (1999) refere-se à multiculturalidade não
dade e a compreensão de que o fazer compartilhado como justaposição de culturas ou como poder exa-
torna a humanização possível. cerbado de uma sobre as outras, mas propõe uma
No que se refere aos espaços instituídos de liberdade conquistada, em que cada cultura se move
gestão participativa que, no contexto de Fortaleza, e respeita a outra, dialogando criticamente e cons-
foram nomeados rodas de gestão, as Cirandas, atra- truindo novos cenários de prática social. Haveria
vés de seus atores protagonistas, os cirandeiros, uma cultura da infância?
ocuparam com arte esses espaços, problematizando Dos relatórios primeiros, das Cirandas da Vida,
a questão da participação dos usuários nas rodas, escuta-se:
produzindo uma tensão permanente entre o princí- Esses corpos diminutos cheios de graça crescem e
pio de comunidade e a esfera institucional. Dessa se equilibram nas pernas de pau e falam, cantam,
forma, em alguns centros de saúde da família, deu- gesticulam a contar uma história de caminhantes
se a inclusão dos atores populares. Por outro lado, que peregrinam por uma cidade tão grande, mas
os cirandeiros, atores comunitários ocupando um onde não conseguem um lugar para morar... Escu-
espaço na gestão em saúde, ao participarem das temos como se dizem:
rodas regionais ou mesmo do coletivo gestor da
Dona Mariquinha se eu pedir você me dá
secretaria municipal de saúde, promoveram essa
inclusão comunitária na gestão. Um lugarzinho pra gente poder morar
A discussão acerca das dificuldades de moradia nas E elas cantam pra contar pedaços da história. As-
áreas de risco possibilitou a reflexão sobre as diversas sim as dificuldades de moradia...
dimensões do tema-problema, revelando a necessidade
Pipoca amendoim torrado
de problematizar as causas e determinantes da ocupa-
ção do mangue em uma determinada região da cidade A chuva era grossa e derrubou o meu barraco
e seus impactos sobre a vida dessas pessoas. A participação das crianças foi reveladora da
No processo outras questões foram evidenciadas necessidade de incluí-las nos processos de discussão
tais como: a ausência de políticas de geração de em- e transformação da realidade, resguardando aquilo
prego e renda, o confronto entre as leis de proteção que é próprio do seu momento de vida: o aprender a
ambiental e a realidade concreta de pessoas vivendo partir do universo infantil e a partir do seu saber de
em ambientes hostis, onde a falta de oportunidades experiência feito, como propõe Paulo Freire.
gera agressões ao ambiente e impacto sobre a saúde Diante de uma realidade marcada pela dificul-
dessas pessoas. dade de acesso à escola, falta de oportunidades de
Outro aspecto importante refere-se à participa- profissionalização e de lazer, os jovens elaboraram
ção das crianças, que protagonizam diferentes ações suas estratégias de enfrentamento e as expressões

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culturais surgiram como alternativas concretas de Os enfrentamentos propostos quase sempre
resistência e transcendência da realidade. buscam as formas culturais de se expressar, com-
A fala do cirandeiro, Thyago, advindo do Movi- preender e se relacionar com o mundo do bairro e a
mento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, traz sociedade. As experiências com arte aparecem como
para o centro da discussão a problemática da juven- grandes oportunidades.
tude envolvida com o crime, a exploração sexual, Como um dos frutos desse diálogo, deu-se a
como ele diz com a linguagem do rap: implantação de uma turma do projeto Adolescente
Olha a Fortaleza Bela Cidadão do Governo Federal, executado em parceria
com a Fundação da Criança da Cidade do Município
Nesse imenso arquipélago
de Fortaleza (FUNCI), dirigida para jovens em situa-
De bairros e favelas ção de conflito com a lei:
Sua área de maiores contradições Em relato e estudo grupal, pudemos pensar:
É a regional II [...] os enfrentamentos tentam fazer reviver a
esfera sistêmica, alargando o dialogismo vivido
Onde pequenas porções de riquezas
nos grupos intergeracionais, agora junto à esfera
São cercadas por bolsões de pobreza institucional. Contudo, como manter vivo o princí-
Nesse território, a questão da violência, para os pio de comunidade, em meio à hierarquização dos
jovens, surge de forma bastante contundente. Os gru- serviços públicos? Como deixar claro que não se
pos de juventude apontam a violência gerada pela trata de “fazer pelo estado”, mas fazer com que a
falta do acesso aos direitos básicos de cidadania, que esfera sistêmica possa dispor do poder analítico
se expressam no tráfico de drogas e vão desaguar dos movimentos sociais, da riqueza de sua experi-
na discriminação e no cerco de negações conhecido ência, de sua construção de saberes múltiplos e do
como “mundo dos jovens em conflito com a lei”. conhecimento da cultura na qual se inserem?
As narrativas juvenis, como a do hip-hop, mostra- [...] na SER II estamos trabalhando o foco dessa
ram sua potência como crônica social. Despertam o juventude vida loka na perspectiva que eles partici-
interesse e o respeito dos participantes, e em musi- pem da construção das políticas. O projeto “craques
calidade, ritmo e letra expõem um conteúdo social só de bola” foi organizado numa parceria das Ciran-
verdadeiro; com uma imagética rica, abordam a das com a Central Única das Favelas-CUFA e está
comunidade de modo criativo e situam o político em trazendo para dentro da escola os jovens que foram
todos os espaços da vida da juventude da periferia. expulsos dela - porque a grande maioria dos jovens
A participação dos jovens envolvidos diretamen- que estão fora da escola foram expulsos por ela.
te com a violência trouxe um olhar diferenciado
Da narrativa do cirandeiro, é possível apreender
sobre a questão:
uma dificuldade de reconhecimento, nas institui-
Graças à participação desses sujeitos vida loka
é que tivemos como situação-limite a violência que ções públicas, da atuação da juventude. A visão de
atinge a juventude e não a violência da ótica da participação popular e do princípio da comunidade
segurança pública como queriam os líderes comu- como massa de mobilização (instrumentalizadora e
nitários. redutora) ainda é preponderante, como se pode ver:
Os jovens destacam as múltiplas dimensões da [...] Uma outra ação que estamos tentando realizar
violência sob a ótica da exclusão social: o não-acesso é a oficina de Acolhimento ao Adolescente que foi
às políticas públicas de saúde, educação, trabalho, construída com as entidades que trabalham com
moradia. Falam da ausência de oportunidades de esses jovens Esta, ainda não iniciou porque as
profissionalização, do “falseado” acesso à escola, da unidades de saúde não encontraram tempo para
inexistência de áreas de lazer e da violência policial enviar um profissional. “Só nos reconhecem quando
que geram uma reação em cadeia e ocasionam a se trata de mobilizar a comunidade para eleição do
organização dos jovens em níveis correspondentes conselho local de saúde.”
de violência.

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Na perspectiva de construir atos-limite para da atenção. As práticas populares de cuidado e as
o enfrentamento da violência, foi elaborada uma linguagens da arte como o teatro, a música, a pro-
proposta de atuação junto a 15 escolas públicas dução de Histórias em Quadrinhos, surgem como
municipais, onde artistas e educadores populares atos-limite possíveis sob o protagonismo dos atores
adentraram o espaço pedagógico da escola para populares que ocuparam as rodas de gestão das uni-
trabalhar, a partir das linguagens da arte, o tema dades e apontaram para a inclusão de outros olhares
da violência com os estudantes. e práticas no cotidiano do trabalho em saúde, como
Ancorado nessas linguagens, as Cirandas da a Terapia Comunitária, Massoterapia, Grupos de
Vida refletem e valorizam as potencialidades de auto-estima, entre outros.
atores e grupos juvenis que, abrangendo as diversas Nesse contexto a interação com a ANEPS poten-
regiões de Fortaleza, constituem-se como espaço de cializou o fortalecimento de um espaço no campus
produção de saberes e sentidos, a partir dos quais da Universidade Estadual do Ceará – Espaço Ekobé
consideramos a possibilidade de promover a am- – como forma de estabelecer diálogos entre os sabe-
pliação da percepção de seres humanos enquanto res disciplinares da universidade, aqueles desenvol-
sujeitos criativos e afetivos, bem como propiciar vidos na prática profissional e os gestados a partir
a participação popular e o protagonismo infanto- das experiências de movimentos populares. Desse
juvenil na promoção da saúde e da qualidade de vida. modo, foram sendo pensadas ações em campos como
As linguagens da arte arrogam-se como espaço de cultura, cuidado em saúde, formação, a partir das
aprendizagens e reflexões críticas para revelar as necessidades percebidas pelos diferentes atores
várias dimensões da questão estudada desse modo do processo, procurando integrá-las aos currículos
coletivo. universitários, processos de educação permanente
As ações nas escolas principiaram sob o protago- desenvolvidos nos serviços de saúde e práxis dos
nismo de artistas-educadores e cirandeiros apoiados movimentos populares. Criou-se, assim, um espaço
no acompanhamento dos gestores das escolas, dos de encontro em que esses diversos atores passaram
distritos de saúde e educação, além dos diversos ato- a enxergar as possibilidades de uma práxis compar-
res envolvidos nos processos formativos do Sistema tilhada que pudesse fortalecer a todos e destacar o
Municipal de Saúde Escola de Fortaleza. A proposta saber popular, tantas vezes negligenciado, como
tem como ponto de partida a reconstituição da his- também significativo.
tória de luta e resistência das escolas sob o olhar de As práticas integrativas e complementares de
seus vários atores e a problematização das situações- cuidado existentes no contexto dos movimentos
limite vivenciadas através das linguagens da arte. populares de Fortaleza têm representado a princi-
A caminhada evidencia a necessidade de rediscu- pal singularidade da atuação do Espaço Ekobé que
tir a proposta com o conjunto dos atores na perspec- mantém há um ano um calendário de práticas como
tiva de maior apoio da escola e inserção na proposta Massoterapia, Reiki, Reflexologia, rezas, entre ou-
pedagógica, assim como fortalecer a interface com a tras, disponibilizadas a estudantes, trabalhadores
unidade de saúde e com outros setores que potencia- e pessoas das comunidades. Por outro lado, esses
lizem a inclusão de outras ações e políticas sociais atores dos movimentos têm ocupado esse espaço,
para o contexto da comunidade. referenciando-se como facilitadores de processos
A escuta aos adultos é reveladora de um trabalho formativos, inclusive nos cursos de graduação e pós-
em rede que ajuda a socialização das estratégias de graduação, ocupando também agendas políticas no
luta e resistência. A tematização da violência revelou que diz respeito às ações de educação permanente
o enfoque de gênero e as trilhas apontaram atos- em saúde, realizando uma espécie de extensão co-
limite como incubadoras femininas, feiras e outras munitária.
estratégias de sócio-economia-solidária, grupos de Por fim, a temática da moradia em área de risco
arte e processos formativos com esse enfoque. trouxe a necessidade de problematizar as causas
A dificuldade de acesso aos serviços de saúde e determinantes da ocupação do mangue e seus
revelou a necessidade de fortalecer a humanização impactos sobre a vida dessas pessoas. No processo

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outras questões foram evidenciadas, tais como: Esperamos que as Cirandas da Vida possam
a ausência de políticas de geração de emprego e contribuir para delinear possíveis percursos peda-
renda, o confronto entre as leis de proteção am- gógicos e de gestão como referências para os tra-
biental e a realidade concreta de pessoas vivendo balhadores da saúde em que seja possível partilhar
em ambientes hostis, onde a falta de oportunidades experiências e a própria crítica, lançando-se mão
gera agressões ao ambiente, e os impactos sobre a da expressão oral, da narração e da memória social
saúde das pessoas. Por outro lado, a participação de forma a estimular a criação de laços solidários
de atores institucionais de vários setores da gestão comprometidos com a emancipação humana, vista
municipal trouxe, para as pessoas que residem no também como a chegada das potencialidades dos
território, a possibilidade de escuta às suas neces- sujeitos, em suas amplas dimensões.
sidades e a conquista de algumas questões como a
coleta de lixo, a liberação de casas para a área de
maior vulnerabilidade, ação no território da equipe
Referências
de saúde da família. ANDRADE, L. O. M. A saúde e o dilema da
intersetorialidade. São Paulo: Hucitec, 2006. v. 1,
p. 293.
No Caminhar, Algumas Lições
ANDRADE, L. O. M.; BUENO, I. C. C.; BEZERRA,
Aprendidas R. C. Atenção primária à saúde e estratégia de
O reencontro da ciência com o saber popular, saber saúde da família. In: CAMPOS, G. W. S. et al. A
de experiência feito segundo Paulo Freire, remete- educação permanente e a construção de sistemas
nos à necessidade de um saber plural, em saúde municipais de saúde-escola: o caso de Fortaleza
coletiva, em que os profissionais de saúde, gestores (CE). Divulgação em Saúde para Debate, Rio de
e a comunidade possam vislumbrar atos-limite. Des- Janeiro: v. 34, p. 31-46, 2006.
sa forma, subverte-se a dominação e estabelece-se CAMPOS, Gastão W. S. Saúde Paideia. São Paulo:
o novo – o inédito que é possível, como nos ensina Hucitec, 2006.
o autor.
Boaventura Sousa Santos (1998) alerta-nos para FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 35. ed. Rio de
a ideia de que todo paradigma em ciência deve ser Janeiro: Paz e Terra, 1987.
um paradigma social, que deve exigir vida digna FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um
para todos. A complexidade da realidade que nos reencontro com a pedagogia do oprimido. 6. ed.
é apresentada exige a perspectiva multicultural, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
entendida como criação histórica – desejo e utopia
FORTALEZA. Relatório de gestão 2005: saúde,
de sujeitos diferentes, trazendo o singular de suas
qualidade de vida e a ética do cuidado. Fortaleza,
culturas para uma ação comum.
2006. 274 p.
Dessa forma, a caminhada com as Cirandas da
Vida vêm nos fazendo pensar nos possíveis espaços- GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de
cenários de dialogicidade entre saberes diferencia- Janeiro: LTC, 1989.
dos. Bordando falas, narrativas, gestos, será que as LINHARES, A. M. B. O tortuoso e doce caminho da
diversas linguagens da arte podem ajudar a cons- sensibilidade: um estudo sobre a arte e educação.
truir novos sentidos, atos-limite no tempo de agora 2. ed. Iju:Unijui, 2003.
para os processos educativos e de gestão?
Nesse sentido a experiência com as Cirandas da MERHY, E.E. Saúde: a cartografia do trabalho vivo.
Vida nos orienta a fazer uma suspensão crítica sobre São Paulo: Hucitec, 2002.
a realidade social que estamos a vivenciar, buscando OLIVEIRA, F. Estado, sociedade, movimentos
tecer conexões entre os microuniversos das comuni- sociais e políticas públicas no limiar do século
dades e sujeitos-atores/atrizes envolvidos(as) com a XXI. Conferência debate promovida pela FASE/
complexidade do tecido social. PIC. Rio de Janeiro: FASE/PIC, 1994.

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PEDROSA, J. I. S. Educação popular em saúde e
gestão participativa no Sistema Único de Saúde.
Revista APS, Juiz de Fora v. 11, n. 3, p. 303-313, jul./
set. 2008
SANTOS, B S. Um discurso sobre as ciências. 10.
ed. Porto: Edições Afrontamento, 1998.
VASCONCELOS, E. M. (Org.). A saúde nas palavras
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popular e saúde. São Paulo: Hucitec, 2001.

Recebido em: 27/04/2011


Aprovado em: 03/10/2011

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