Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DOI: 10.1590/0103-1104202113021
RESUMO Políticas de saúde voltadas para pessoas com deficiência podem ser compreendidas como uma
expressão dos reiterados processos de exclusão e silêncio impostos por relações culturais e políticas.
Entender os diferentes modelos conceituais e as palavras usadas para se referir a esse grupo é essencial
para a mudança dessa perspectiva, bem como para a melhoria de dados epidemiológicos sobre a defi-
ciência. O objetivo deste ensaio é discutir a relação entre modelos teóricos da deficiência, as múltiplas
formas de denominação, a epidemiologia da deficiência e sua relação com políticas públicas. Através da
compreensão da terminologia utilizada para descrever indivíduos com deficiência, da adoção de simi-
laridades linguísticas entre as instâncias formuladoras e implementadoras de políticas, a sociedade e as
próprias pessoas com deficiência poderiam auxiliar nas mudanças de perspectivas de vida ao sugerirem
modificações nas políticas públicas e na forma de cuidado.
ABSTRACT Health policies aimed at people with disabilities can be understood as an expression of the
repeated processes of exclusion and silence, imposed by cultural and political relations. Understanding the
different conceptual models and the words used to refer to this group is essential to change this perspective, as
well as to improve epidemiological data on disability. The purpose of this essay is to discuss the relationship
between theoretical models of disability, the multiple forms of denomination, the epidemiology of disability
and its relationship with public policies. By understanding the terminology used to describe individuals with
disabilities, by adopting linguistic similarities between the policy makers and implementers, society and
people with disabilities themselves could assist in changing life perspectives by suggesting changes in public
policies and in the form of care.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 45, N. 130, P. 847-860, JUL-SET 2021
848 Mota PHS, Bousquat A
ocupação do espaço urbano e a desvalorização sendo uma fonte rica de termos, conceitos e
de pessoas com deficiência através de imagens relações para terminologias formais. Delimita
negativas nas grandes mídias30. um ponto de partida para o desenvolvimento
Ampliar o foco restrito ao biológico requer do conhecimento do campo32.
ampla mudança social, alterando o status- Segundo a CIF, o termo ‘deficiência’ cor-
-quo. Assim, oferecer um acesso a direitos responde somente às alterações nas funções
básicos igualitário à pessoa com deficiência ou estruturas corporais, apenas no corpo.
é um direito que se deve almejar. Já o termo ‘incapacidade’ é dado de forma
abrangente, incluindo limitações de atividades,
Modelo Biopsicossocial restrições à participação e nas estruturas cor-
porais. Indica aspectos negativos da interação
O Modelo Biopsicossocial foi proposto pela entre um indivíduo (com uma determinada
OMS em 2001, a partir de revisão de modelo condição de saúde) e seus fatores contextuais
classificatório da ICIDH, incorporando aspec- (fatores ambientais ou pessoais)12.
tos do Modelo Médico e do Social. Segundo Reconhece que toda a população é passível
ele, a pessoa que não pode deslocar-se até seu de algum grau de deficiência e incapacidade.
trabalho pode apresentar diferentes condições Assim, não fornece limites para definir quem
associadas a essa tarefa, seja ela pela ampu- tem alguma incapacidade ou não. Constituiu-
tação de um membro (biológico), por não ter se em uma ferramenta dos profissionais de
transporte público de qualidade (ambiental) ou saúde que trabalham com a funcionalidade
por não ter condições financeiras de adquirir humana, de policy-makers que visam a moldar
uma cadeira de rodas (social e ambiental), de os sistemas de saúde em resposta às necessi-
modo que a sua participação é afetada12. dades funcionais dos indivíduos e de pesqui-
O exemplo acima expande a questão dos sadores e acadêmicos31,32.
cuidados em saúde, assim como a dos direitos Masala e Petretto acreditam que o modelo
sociais. A visão não é mais restrita ao entendi- proposto pela CIF não é claro quando trans-
mento hegemônico, como aquele representado posto de sua base teórica para a prática, já
pela pessoa com desvio ou perda em alguma que não consegue identificar a incapacidade
função de seu corpo, mas é extrapolada pelo como um processo dinâmico. Os problemas
que ela de fato é capaz de realizar em seu meio. e os limites podem derivar do fato de ela ser
Trata-se de um modelo que não dita quem é resultado de um modelo multidisciplinar
‘normal’ e quem é ‘incapaz’, que permite que em vez de um modelo interdisciplinar. Essa
uma pessoa ou um grupo possa ser identificado escolha essencial perdeu-se na criação das
como tendo suas ‘capacidades’ e ‘incapacidade’ taxonomias classificatórias, que contêm uma
dentro de cada contexto. A mudança ocorre classificação mais detalhada de limitações
no referencial. O problema em questão não funcionais e estruturais, mas uma classificação
está mais restrito ao corpo, mas está presente menos detalhada de atividades, participação
nas interações entre condições de saúde, ati- e fatores ambientais. Por outro lado, apontam
vidades, participação social, fatores pessoais que outros modelos têm utilização restrita,
e ambientais e as funções do corpo. enquanto a CIF é atualmente conhecida
A partir dessa visão, é criada a CIF, publicada mundialmente13.
e utilizada em 191 países12. Trata-se, também, Modelos teóricos são construções hipoté-
de um sistema informacional de referência ticas, formas de explicação de um fenômeno
que visa a padronizar a descrição da saúde, a visando à análise de uma realidade. Estão an-
funcionalidade e a incapacidade em todos os corados no local e no momento histórico em
níveis da saúde, incluindo educação, social que são construídos e na compreensão social
e laboral31. É baseada em visão acadêmica, do fenômeno. São redutíveis ao trabalhar com
uma porção finita do objeto a ser representado ‘deficiência’, são: ‘incapacidade’, ‘limitação’ e
e, diferentemente de teorias, são pontuais, ‘desvantagem’12.
não almejando criar um sistema geral de ex- O adjetivo ‘defeituoso’ também já foi muito
plicação. Os modelos aqui apresentados são utilizado para retratar essas pessoas e é carre-
vulneráveis a esses pontos de análise. São gado de estigma e influência social negativos.
construções que representam o momento e É comum que profissionais de saúde, serviço
o local de onde partem. social e educação utilizem termos para se referir
Desta forma, os Modelos Médico e Social à ‘deficiência’ como ‘doença’, ‘síndrome’ e ‘con-
partem justamente do seu local de origem e dição’, que fazem parte do vocabulário comum,
buscam compreender a deficiência e o proces- com pouca diferenciação do seu real significado,
so de incapacidade. O primeiro, sendo direcio- tornando-se tão pejorativos quanto.
nado para o ajuste do corpo; e o segundo, para Sassaki sustenta que a tradução correta da
os aspectos sociais e das relações humanas. terminologia disability (utilizada na língua
O caminho para a compreensão da deficiên- inglesa para se referir a esse amplo grupo de
cia e da incapacidade e para a aplicação prática indivíduos) para o português seria ‘deficiência’,
do Modelo Biopsicossocial é, no entanto, com- uma vez que a palavra permanece no vocábulo
plexo. Estudos têm demonstrado que gestores do senso comum dos indivíduos com ‘defi-
e profissionais de saúde possuem uma visão ciências’ e dos profissionais de reabilitação.
tecnicista, focada no ajuste do corpo através de Ao defender o uso de terminologias do senso
ações curativas e restaurativas, sendo refletida comum, trata como uma infelicidade o uso da
na organização dos serviços de saúde33,34. terminologia ‘incapacidade’ pela CIF35.
Os diferentes modelos oferecem subsídios No Brasil, o documento da CIF foi traduzido
para a construção de relações entre a sociedade por especialistas na área, após debate técnico,
e a pessoa com incapacidade/deficiência. O sig- e utiliza alternativa à tradução usual. Emprega
nificado das palavras utilizadas é essencial para o termo ‘incapacidade’ quando se refere a di-
compreender como estas traduzem tais relações. sability, e ‘deficiência’ quando quer referir-se
a impairment12. A CIF, por tratar-se de uma
classificação proposta pela OMS para reconhe-
O significado das palavras cimento desses indivíduos, toma a dianteira
numa nova abordagem quanto ao tema.
O que é ‘deficiência’? Trata-se de um estado, Os significados das palavras, ou seja, aquilo
um momento, uma construção, uma condição, que entendemos delas, também são diferentes
uma certeza ou uma incerteza? Quem se con- dependendo da cultura na qual a linguagem é
sidera ‘deficiente’? Trata-se de ser ‘deficiente’ utilizada. O termo disability tem como significado,
ou estar ‘deficiente’? A ‘deficiência’ significa segundo o dicionário ‘The new Oxford American
possuir alguma ‘incapacidade’? A pessoa com Dictionary’, o seguinte: uma condição física ou
‘deficiência’ terá sempre uma ‘incapacidade’ ou mental que limita os movimentos, sentidos ou
pode ser capaz de realizar suas atividades de atividades de uma pessoa36. Já o ‘Cambridge
vida diária e laborais? Essas questões são com- Dictionary’ traz como significado: uma doença,
plexas e certamente não possuem um único lesão ou condição que torna difícil para alguém
significado tanto para a pessoa com deficiência fazer algo que outras pessoas fazem37.
quanto para pesquisadores, formuladores de A CIF descreve a disability como um fe-
políticas e formadores de opinião. nômeno complexo resultante da interação
Com o destaque que o tema vem conquis- entre um problema no corpo e um fenômeno
tando no mundo, novas palavras e novos con- essencialmente social. E o termo impairment
ceitos são incorporados ao discurso35. Algumas como uma deterioração do funcionamento de
das palavras que passam a ser usadas, além de uma parte, órgão ou sistema do corpo humano,
que pode ser temporária, permanente e pode orienta a utilização de forma simultânea das
resultar em uma doença ou lesão. Já handcap palavras ‘incapacidade e deficiência’, visando
é uma condição na qual uma parte do corpo a estabelecer uma transição progressiva de
ou da mente foi permanentemente danificada nomenclatura, assim como fora realizado na
ou não funciona normalmente. Espanha, onde o termo minusvalias foi subs-
Para Diniz, o uso do termo incapacidade tituído por discapacitad42.
pela CIF ignora as contribuições do Modelo Atualmente, deficiência pode apresentar
Social. Além disso, afirma que a tradução da diferentes entendimentos, e os atores parti-
versão brasileira deve ser revista, buscando cipantes dos processos políticos precisam se
legitimidade e acuidade do campo22. confrontar com problemas complexos e mal
Canguilhem38, em sua obra ‘O normal e definidos devido ao significado dado à palavra.
o patológico’ (1978), afirma que a anomalia Podem haver diferentes opiniões sobre causa
é um fato estritamente biológico, do corpo. e efeito, tipos de intervenções ou adequação
Pereira utiliza essa proposição para conferir das soluções propostas, incertezas substan-
o mesmo significado à deficiência. Trata-se ciais quanto às consequências financeiras das
de um fator biológico de diferenciação física, mudanças de políticas ou visões e opiniões
sensorial, orgânica ou intelectual, que produz conflitantes das diferentes partes envolvidas.
uma ‘diferença funcional’39. Desta forma, o meio e a sociedade são atores
Mesmo utilizando a base conceitual da CIF, centrais para o desempenho das capacidades
o documento ‘World Report on Disability’, pro- individuais. Dificuldades de acesso não são
duzido pela OMS, em 2011, tem a tradução para meramente resolvidas através de programas
a língua portuguesa como descrito por Sassaki35. de mobilidade urbana, alterações na infraes-
Outras publicações de documentos oficiais brasi- trutura ou por mudanças na sinalização vol-
leiros utilizam nomenclaturas distintas, como a tadas para deficiências visuais ou auditivas.
Política Nacional de Saúde da Pessoa Portadora Dependem de encadeamento lógico da tomada
de Deficiência – pessoa portadora de deficiência de decisão política, que visa a construir ‘pontes
– e o programa Viver Sem Limites, do Governo de informação’ através de versões de letras
Federal – pessoa com deficiência. Em 2019, o impressas, sem renunciar à linguagem de sinais
Senado Federal aprovou proposta de emenda ou a outras formas de comunicação.
constitucional uniformizando as menções às A definição deve ser capaz de reconhecer os
pessoas com deficiência na Constituição, uma efeitos que o meio socioambiental exerce sobre
vez que nesta também ocorre a utilização de o indivíduo. Somente quando um problema é
diferentes nomenclaturas40,41. bem definido as formas de intervenção política
Em Portugal, a recomendação dada pelo podem ser definidas com maior acurácia e me-
Ministério da Saúde é que o termo ‘deficiência’ lhores estudos podem ser realizados, visando
não exprime um conceito claro. Defende-se a resultados que impactem positivamente a
que seja utilizado ‘incapacidade’, englobando vida desses indivíduos43.
os diferentes níveis de limitações funcionais
relacionados com a pessoa, o meio social e
ambiental. Incapacidade expressa aspectos Diferentes significados
negativos e positivos da interação entre um e suas interpretações
indivíduo com problemas de saúde e o seu
meio físico e social em substituição ao termo
para a epidemiologia da
‘deficiência’, que se configura mais restritivo deficiência
e distante do Modelo Social. No entanto, o
documento reconhece que o termo ‘deficiente’ Dificuldades em padronizar conceitos relati-
ainda é referência para a língua portuguesa e vos a essa temática geram problemas práticos
em diferentes níveis, desde a pesquisa epi- são importantes para estimar a prevalência de
demiológica até a construção de políticas incapacidade, bem como para compreender a
públicas44. A identificação desses sujeitos e prática de reabilitação.
as estimativas serão dependentes de fatores O ‘World Report on Disability’ apresenta
históricos, culturais e de identidade, que irão dois modelos para estimar a população com
moldar, dentro daquela sociedade, o indivíduo deficiência e incapacidade: a Pesquisa Mundial
que será classificado como incapaz, capaz, de Saúde e a Carga Global de Doenças, ambas
deficiente, limitado, entre outros, e o modo com limitações técnicas e conceituais, não
como os dados são coletados. devendo ser compreendidas como definitivas
Nesse contexto, deve-se ter o cuidado de para o campo7.
distinguir descrições objetivas da experiência A primeira foi realizada em entre 2002 e
e a satisfação do sujeito. Embora igualmente 2004, em 70 países. O módulo referente ao
significativas, as informações sobre defici- estado de saúde utilizou questões baseadas
ência são descrições objetivas, enquanto as na CIF, sendo mensuradas pelas incapacida-
informações sobre a incapacidade são com- des relativas à mobilidade, ao autocuidado, à
plexas. Os dados sobre participação social, visão, audição e respiração, bem como aquelas
qualidade de vida, bem-estar e satisfação são que afetam as atividades usuais, a energia, a
úteis para o planejamento de políticas de vitalidade e o sono44. O objetivo principal não
saúde, mas esses podem ou não ser relevantes era observar as incapacidades individuais,
a depender da experiência, da deficiência e mas almejava-se obter substrato abrangente
das capacidades individuais. da funcionalidade humana. A taxa média de
Muitos usos estatísticos de dados de defici- prevalência na população adulta com dificul-
ência ou incapacidade não requerem o estabe- dades funcionais significativas foi de 15,6%,
lecimento de limites. Por exemplo, estatísticas com variação entre 11,8% em países de maior
que resumem a saúde da população podem renda, e 18,0% nos de renda mais baixa. Para
incorporar elementos relacionados à deficiência dificuldades muito significativas, foi estimada
ou à incapacidade num continuum de estado de uma média de 2,2%. A prevalência da incapa-
saúde. Nesse tipo de abordagem, não existe a cidade nos países de renda mais baixa entre
necessidade de definição de quem se considera pessoas com idades de, ao menos, 60 anos foi
como incapacitado ou deficiente e quem não. de 43,4%, se comparada à de 29,5% nos países
Durante as décadas finais do século XX com renda mais elevada7.
e início do século XXI, o desafio de se es- O segundo conjunto de estimativas sobre
tabelecer um consenso para a terminologia a prevalência das incapacidades é oriundo
‘deficiência’ e para a ‘incapacidade’ foi pre- do estudo sobre a Carga Global de Doenças.
ponderante para a dificuldade de realização O primeiro estudo sobre a Carga Global de
de trabalhos epidemiológicos sobre o tema31. Doenças foi encomendado nos anos 1990
Por sua abrangência e tradução para diferentes pelo Banco Mundial, com objetivo de avaliar
línguas, a CIF acabou se destacando e estabele- o peso relativo da mortalidade precoce e
cendo uma proposta de unidade. Ainda assim, incapacidade oriundas de diferentes defici-
o estado atual da epidemiologia da deficiência ências, lesões e fatores de risco. Esse estudo
tende a confundir duas experiências distintas: utiliza como parâmetro de medição os anos
problemas que as pessoas experimentam ao de vida ajustados pela incapacidade. Essa é
realizar ações que dependem inteiramente uma medida que se refere aos anos de vida
de seu estado físico de saúde e problemas saudáveis perdidos em virtude da morta-
resultantes da interação entre seu estado de lidade ou de determinada incapacidade7.
saúde, ambientais e fatores pessoais. Apesar Dados de pesquisas e censos nacio-
de serem diferentes, ambas as perspectivas nais não podem ser comparados entre si
diretamente, bem como não podem ser com- de financiamento para a política social (seja
parados às estimativas utilizadas pela Carga centralizado ou descentralizado) e o grau de
Global de Doenças ou a Pesquisa Mundial confiança e accountability dos profissionais
de Saúde devido à falta de padronização envolvidos nas políticas sociais45.
dos conceitos e modelos de análise. Países Palavras utilizadas e os significados
em desenvolvimento tendem a ter taxa de atribuídos a elas, assim como os diferen-
prevalência menor para deficiência e inca- tes modelos de concepção da deficiência
pacidade, pois utilizam dados fornecidos podem levar a diferentes compreensões do
pelos estudos censitários e medidas base- fenômeno. Tais diferenças podem dificultar
adas em uma limitada seleção ou conceito o reconhecimento dessa população, suas
de deficiência. Por outro lado, países mais necessidades e, em consequência, a adoção
ricos tendem a reportar maiores taxas, pois de políticas públicas eficazes.
coletam seus dados através de pesquisas es- No Brasil, utiliza-se o termo deficiência
pecíficas e mensuram as incapacidades e as tanto para indicar um problema no corpo
restrições para realizar atividades. Fatores (impairment) como para determinar a in-
como esses influenciam estudos de compa- teração entre um problema físico com a
rabilidade nos níveis internacional, nacional participação e as tarefas executadas (disa-
e subnacional7. bility). O uso de uma mesma palavra para
Taxas de prevalência surgidas em ambas indicar duas situações diferentes acarreta
as análises citadas, bem como nos censos na- problemas de entendimento na sociedade,
cionais, são influenciadas diretamente pela academia e nas políticas públicas.
definição utilizada de incapacidade e deficiên- A duplicidade de conceitos oriundos do
cia. Diferentes escolhas nos limiares resultam termo deficiência provoca problemas para a
em números diferentes, mesmo utilizando construção de políticas públicas. O Censo de
abordagens relativamente similares. A falta 2010, com questões baseadas nas utilizadas
de padronização por parte dos autores e dos pelo Grupo de Washigton46, utiliza perguntas
agentes censitários entre os conceitos utiliza- referentes a dificuldades em realizar atividades
dos para definir o que seria uma pessoa com para identificar o percentual de deficientes, o
deficiências gera dados discrepantes entre que é uma lógica que é imprópria e incoerente.
cada estudo. Esse é um ponto metodológico O resultado é tornar um problema de interação
que deve ser considerado nessas análises. entre o indivíduo, o meio e sua ação em um
Países de maior renda tendem a considerar problema restrito ao corpo. Por essa classifi-
o Modelo Social sobre o Modelo Médico em cação, 23,9% da população brasileira possui
suas definições de políticas públicas, enquanto algum tipo de deficiência, no entanto, baseado
países de média e baixa renda têm preferência no tipo de pergunta, a resposta deveria ser
pelo Modelo Médico. Esse também é um fator que 23,9% dos brasileiros têm algum tipo de
que pode modificar os resultados7. incapacidade, sendo 18,6% visual, 7,0% motora,
O relatório elaborado pela Universidade 5,1% auditiva e 1,4% intelectual47.
de Brunel, do Reino Unido, com foco nas de- Já em 2018, houve a atualização do dado
finições para a incapacidade em diferentes restringindo o problema àquelas pessoas que
países europeus, apresenta dois parâmetros têm ‘muita dificuldade’ e ‘não conseguem’
de determinação: o grau de medicalização e fazer algo, o que pode gerar a criação de
a extensão do poder discricionário na tomada políticas públicas voltadas somente para os
de decisões políticas. A incapacidade nesses indivíduos com maiores comprometimen-
países pode estar relacionada às caracterís- tos. A formulação política, a partir desse
ticas fundamentais subjacentes às tradições novo olhar, pode ser focalizada somente
de política social de cada Estado, o padrão naqueles indivíduos nos quais a sociedade,
Referências
1. Clark L, Marsh S. Patriarchy in the UK: The langua- 8. Secker B, Goldenberg MJ, Gibson BE, et al. Just re-
ge of disability. 2002. [acesso em 2020 abr 1]. Dis- gionalisation: rehabilitating care for people with di-
ponível em: https://disability-studies.leeds.ac.uk/ sabilities and chronic illnesses. BMC Med Ethics.
wp-content/uploads/sites/40/library/Clark-Lau- 2006; (7):E9.
rence-language.pdf
9. Gallagher E, Alcock D, Diem E, et al. Ethical dilem-
2. Bourdieu P. Language and Symbolic Power. Cambrid- mas in home care case management. J Healthc Ma-
ge: Polity Press; 1992. nag. 2002; 47(2):85-96.
3. Foucault M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Ja- 10. Provincial Rehabilitation Reference Group. Mana-
neiro: Forense Universitária; 2008. ging the seams: Making the rehabilitation system
work for people - The Rehabilitation Reform Initia-
4. Solomon A. Longe da árvore – Pais, filhos e a bus- tive. [acesso em 2020 jun 1]. Disponível em: http://
ca da identidade. São Paulo: Companhia das Letras; www.rehabcarealliance.ca/uploads/File/knowled-
2013. geexchange/Managing_the_Seams_sept_2000.doc.
5. Outhwaite W, Bottomore T. Dicionário do Pensamen- 11. Santos BS. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez;
to Social do Século XX. Rio de Janeiro: Zahar; 1996. 2017.
6. Colaboradores de incidência e prevalência de doenças 12. Organização Mundial da Saúde. Como usar a CIF
e lesões do GBD 2017. Global, regional, and national Um Manual Prático para o uso da Classificação In-
incidence, prevalence, and years lived with disabili- ternacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saú-
ty for 354 diseases and injuries for 195 countries and de. Genebra: OMS; 2013.
territories, 1990-2017: a systematic analysis for the
Global Burden of Disease Study 2017. Lancet. 2018; 13. Masala C, Petretto DR. From disablement to enable-
392(10159):1789-1858. ment: Conceptual models of disability in the 20th
century. Disabil Rehabil. 2008; 30(17):1233-44.
7. World Health Organization. World report on disabi-
lity. Geneva: WHO; 2011. [acesso em 2020 abr 1]. Dis- 14. Amponsah-Bediako K. Relevance of disability mo-
15. Nagi SZ. Some conceptual issues in disability and 25. Diniz D. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense;
rehabilitation. Washington D.C.: American Sociolo- 2007.
gical Association; 1965.
26. Gartner A. Images of the disabled, disabling images.
16. Nagi SZ. Disability concepts revised: Implications New York: Praeger; 1987.
for prevention. Washington, D.C.: National Acade-
mies Press; 1991. 27. Hahn H. Public Support for Rehabilitation Programs:
The Analysis of U.S. Disability Policy. Disab. Hand.
17. Brandt EN, Pope AM. Enabling America: Assessing Society. 1986; (1):121-37.
the Role of Rehabilitation Science and Engineering.
Washington, D.C.: The National Academies Press; 28. Barnes C. British Council of Organizations of Disa-
1997. bled People. Disabled people in Britain and discri-
mination: a case for anti-discrimination legislation.
18. Gaudenzi P, Ortega F. Problematizando o conceito de London: University of Calgary Press in association
deficiência a partir das noções de autonomia e nor- with the British Council of Organizations of Disa-
malidade. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(10):3061-70. bled People; 1991.
19. World Health Organization. International classifi- 29. Oliver M. Understanding disability: from theory to
cation of impairments, disabilities, and handicaps : practice. 2. ed. New York: Palgrave Macmillan; 2009.
a manual of classification relating to the consequen-
ces of disease, published in accordance with resolu- 30. Barnes C. A history of disability in western culture.
tion WHA29.35 of the Twenty-ninth World Health In: Disability studies: Past present and future. Lee-
Assembly. Genebra: WHO; 1980. ds: The Disability Press; 1997.
20. Snyder SL, Mitchell DT. Cultural Locations of Disa- 31. European Physical and Rehabilitation Medicine Bo-
bility. University of Chicago Press. Chicago; 2006. dies Alliance. White Book on Physical and Rehabi-
litation Medicine (PRM) in Europe. Chapter 1. De-
21. Santos W. Deficiência como restrição de participação finitions and concepts of PRM., Eur J Phys Rehabil
social: desafios para avaliação a partir da Lei Brasilei- Med. 2018; 54(2):156-65.
ra de Inclusão. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(10):3007-
15. 32. Harris MR, Ruggieri AP, Chute CG. From clinical re-
cords to regulatory reporting: formal terminologies
22. Diniz D, Medeiros M, Squinca F. Reflexões sobre a as foundation. Health care financing review. 2003;
versão em Português da Classificação Internacional (24):103-20.
de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. Cad. Saú-
de Pública. 2007; (23):2507-10. 33. Mota PHS. Implementação da rede de cuidados à
pessoa com deficiência: contexto, valores e níveis do
23. Barnes C, Oliver M, Barton L. Disability studies to- cuidado. [tese]. São Paulo: Universidade de São Pau-
day. Polity Press. 6. ed. Cambridge; 2002. lo; 2020 .
24. The Union of the Physically Impaire. Fundamental 34. Dubow C, Garcia EL, Krug SBF. Percepções sobre a
Principles of Disability, Union of the Physically Im- Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência em uma
paired Against Segregation. [acesso em 2020 jun 1]. Região de Saúde. Saúde debate. 2018; 42(117):455-67.
Disponível em: https://disability-studies.leeds.ac.uk/
wp-content/uploads/sites/40/library/UPIAS-funda- 35. Sassaki RK. Inclusão: construindo uma sociedade
mental-principles.pdf. para todos. Rio de Janeiro: WVA; 1997.
36. Stevenson A, Lindberg CA. New Oxford American 44. Szwarcwald CL, Viacava F. Pesquisa Mundial de Saú-
dictionary. Oxford University Press; 2010. [acesso de: aspectos metodológicos e articulação com a Or-
em 2020 abr 1]. Disponível em: oxfordreference. ganização Mundial da Saúde. Rev. Bras. Epid. 2008;
com/view/10.1093/acref/9780195392883.001.0001/ 11(supl1):58-66.
acref-9780195392883.
45. Bolderson H, Mabbett D, Hvinden B, et al. Defini-
37. McIntosh C. Cambridge advanced learner’s dictio- tions of disability in Europe: A comparative analy-
nary. 4. ed. Cambridge: Cambridge University Press; sis: Final report. Brunel: Brunel University; 2002.
2013.
46. The Washington Group. The Washington Group Short
38. Canguilhem G. O Normal e o Patológico. 6. ed. Rio Set on Functioning (WG-SS) Brazilian Portuguese
de Janeiro: Forense Universitária; 2009. Translation. 2020. [acesso em 2020 abr 1]. Disponível
em: https://www.washingtongroup-disability.com/
39. Pereira R. Diversidade funcional: a diferença e o his- fileadmin/uploads/wg/Documents/WG-Short-Set-
tórico modelo de homem-padrão. Hist. Ciênc. Saúde -Brazilian-Portuguese-translation-v2020-June-23.
– Manguinhos. 2009; (16):715-28. pdf.
40. Brasil. Constituição, 1988. Constituição da Repúbli- 47. Brasil. Secretaria de Direitos Humanos da Presidên-
ca Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; cia da República; Secretaria Nacional de Promoção
1988. dos Direitos da Pessoa com Deficiência; Coordena-
ção-Geral do Sistema de Informações sobre a Pessoa
41. Brasil. Proposta de Emenda à Constituição nº 25 de com Deficiência. Cartilha do Censo 2010 – Pessoas
2017. Altera os arts. 7º, 23, 24, 37, 40, 201, 203, 208, com Deficiência. Brasília, DF: SDHPR; SNPD; CGSI-
227 e 244 da Constituição Federal para incorporar- PD; 2012.
-lhes a nomenclatura “pessoa com deficiência”, uti-
lizada pela Convenção Internacional sobre o Direi- 48. Sabariego C, Oberhauser C, Posarac A, et al. Measu-
to das Pessoas com Deficiência. Brasília, DF: Senado ring Disability: Comparing the Impact of Two Data
Federal; 2019. Collection Approaches on Disability Rates. Int J En-
viron Res Saúde Pública. 2015; 12(9):10329-51.
42. Portugal. Gabinete da Secretária de Estado Adjunta
e da Reabilitação, Secretariado Nacional para a Rea- 49. Simões EJ, Hallal P, Pratt M, et al. Effects of a com-
bilitação e Integração das Pessoas com Deficiência. munity-based, professionally supervised intervention
1o Plano de Acção para a Integração das Pessoas com on physical activity levels among residents of Reci-
Deficiência ou Incapacidade 2006-2009. Lisboa: GSE- fe, Brazil. Am J Public Health. United States. 2009;
AR; SNRIPD; 2006. (99):68-75.