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ENSAIO | ESSAY 847

Deficiência: palavras, modelos e exclusão


Disability: words, models and exclusion

Paulo Henrique dos Santos Mota1, Aylene Bousquat1

DOI: 10.1590/0103-1104202113021

RESUMO Políticas de saúde voltadas para pessoas com deficiência podem ser compreendidas como uma
expressão dos reiterados processos de exclusão e silêncio impostos por relações culturais e políticas.
Entender os diferentes modelos conceituais e as palavras usadas para se referir a esse grupo é essencial
para a mudança dessa perspectiva, bem como para a melhoria de dados epidemiológicos sobre a defi-
ciência. O objetivo deste ensaio é discutir a relação entre modelos teóricos da deficiência, as múltiplas
formas de denominação, a epidemiologia da deficiência e sua relação com políticas públicas. Através da
compreensão da terminologia utilizada para descrever indivíduos com deficiência, da adoção de simi-
laridades linguísticas entre as instâncias formuladoras e implementadoras de políticas, a sociedade e as
próprias pessoas com deficiência poderiam auxiliar nas mudanças de perspectivas de vida ao sugerirem
modificações nas políticas públicas e na forma de cuidado.

PALAVRAS-CHAVE Política de saúde. Estudos sobre deficiências. Pessoas com deficiência.

ABSTRACT Health policies aimed at people with disabilities can be understood as an expression of the
repeated processes of exclusion and silence, imposed by cultural and political relations. Understanding the
different conceptual models and the words used to refer to this group is essential to change this perspective, as
well as to improve epidemiological data on disability. The purpose of this essay is to discuss the relationship
between theoretical models of disability, the multiple forms of denomination, the epidemiology of disability
and its relationship with public policies. By understanding the terminology used to describe individuals with
disabilities, by adopting linguistic similarities between the policy makers and implementers, society and
people with disabilities themselves could assist in changing life perspectives by suggesting changes in public
policies and in the form of care.

KEYWORDS Health policy. Disability studies. Disabled persons.

1 Universidadede São Paulo


(USP) – São Paulo (SP),
Brasil
paulohsmota@gmail.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 45, N. 130, P. 847-860, JUL-SET 2021
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Introdução decorrência das crescentes taxas de incapaci-


dade – secundárias aos avanços tecnológicos,
Políticas de saúde voltadas para as pessoas que preservam e aumentam a expectativa de
com deficiência nas diferentes sociedades vida, ao aumento do número de acidentes de
podem ser compreendidas como a expressão trânsito e por armas, entre outros6. De acordo
de reiterados processos de exclusão social, com a Organização Mundial da Saúde (OMS),
ausências e silêncios. A denominação dada a no ano de 2011, aproximadamente 15% da po-
essa população é a primeira face da exclusão e pulação mundial convivem com algum tipo de
do silêncio. Sucedem-se termos como ‘pessoas incapacidade ou deficiência física, intelectual,
com deficiência’, ‘deficientes’, ‘pessoas espe- mental ou sensorial (cegueira, surdez, entre
ciais’, ‘pessoas com necessidades especiais’, outras), significativa para afetar seu dia a dia.
‘incapazes’, ‘defeituosos’, entre outros. Essas No entanto, historicamente, a variação de meto-
denominações mudam ao longo do tempo, mas dologias de coleta de dados, bem como de con-
não de forma neutra1. Afinal, a linguagem é ceitos e definições entre os países, cria desafios
uma poderosa ferramenta capaz de influenciar para estudos epidemiológicos da deficiência7.
a expressão de concepções; é um instrumento Dentro do espectro de ações relacionadas
político de representação, manifestação, do- ao cuidado em saúde, os principais objetivos a
minação e de poder2. serem alcançados pelas pessoas com deficiên-
A maneira como um fenômeno é deno- cia incluem a melhora da funcionalidade, do
minado tem importantes implicações sobre aprimoramento da qualidade de vida8,9, bem
como a sociedade o compreende. O vocabu- como contribuem para sua participação social
lário representa parte da linguagem humana, e a garantia do acesso a direitos básicos10.
é manifestado para além de substantivos, Pretende-se aqui contribuir para essa
verbos e adjetivos, englobando uma com- discussão, relacionando o reconhecimento
plexa combinação linguística do cotidiano, individual e coletivo sobre o tema. Trata-se,
capaz de influenciar práticas e qualificações portanto, de um exercício de elucidar a exclu-
profissionais que sustentam um sistema de são e o silêncio impostos por relações cultu-
controle social3. Através de termos, concei- rais, sua influência sobre a epidemiologia da
tos e expressões, pode-se determinar certa deficiência e sua expressão sobre distribuições
posição social e servir de recurso para lidar desiguais de poder11.
com problemáticas diárias. Solomon, ao dis- O presente ensaio utiliza como referencial
cutir a complexidade do convívio, da criação e para a terminologia adotada a Classificação
dos cuidados de saúde entre pais e filhos que Internacional da Funcionalidade, Incapacidade
nasceram ou desenvolveram algum tipo de di- e Saúde (CIF). Dessa forma, serão utilizadas
ferença (surdez, nanismo, múltipla deficiência, as definições e traduções oriundas desse do-
entre outras), reforça na fala de seus entre- cumento, ainda que se compreendam suas
vistados a relação entre as palavras utilizadas limitações e as discordâncias entre as tradu-
para descrevê-los e suas experiências4. Afinal, ções existentes12. O termo disability é usado
as concepções por trás das palavras espelham como um resultado complexo da interação
sociedades que garantem ou não o status de entre um problema no corpo e um fenômeno
cidadão. Concepções orientam modelos teó- essencialmente do contexto social. Assume-
ricos de interpretação do fenômeno5, no caso, se o termo incapacidade como sua tradução.
a incapacidade/deficiência. Já ‘deficiência’ é utilizada com o significado
Essas reflexões assumem maior importância de ‘problemas nas funções ou estruturas do
à medida que as políticas públicas voltadas corpo como um desvio significativo ou perda’.
para as populações com incapacidade/defici- O objetivo deste ensaio é compreender os
ência ganham espaço na agenda mundial, em modelos teóricos da deficiência com maior

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presença na literatura, as múltiplas formas Washington, em 1965. Acreditando que a


de denominação e sua relação com a epide- medicina estava exercendo um forte contro-
miologia da deficiência. O reconhecimento le sobre questões ligadas à incapacidade e à
dos modelos impostos e do entendimento das deficiência, introduziu uma visão dinâmica da
palavras utilizadas é necessário para contextu- incapacidade e das consequências funcionais
alização, compreensão e identificação desses de determinadas patologias15.
sujeitos, para que possam ser alvo de políticas Nagi definiu incapacidade, traduzida do
públicas. Inicia-se apresentando os princi- termo inglês disabillity, como a expressão
pais modelos sobre a deficiência no campo da de uma limitação física ou mental em um
saúde. Em seguida, são abordados os significa- contexto social, entre as capacidades pesso-
dos dados às palavras utilizadas para referir-se ais, oportunidades e demandas criadas pelo
a esse grupo e, por fim, discute-se como os ambiente. Utiliza um modelo de quatro con-
diferentes entendimentos podem influenciar a ceitos: Patologia Ativa – estado das defesas e
identificação epidemiológica das pessoas com dos mecanismos de enfrentamento do corpo
incapacidade/deficiência. causado por infecções, trauma, desequilíbrio
metabólico e processos degenerativos da
doença; Deficiência – perda ou anormali-
Modelos conceituais dade no nível do tecido, órgão e do sistema
corporal; Limitação Funcional – capacidade
Modelos são formas de interpretação concebi- do indivíduo em executar tarefas e obriga-
das a partir de recursos cognitivos. Dependem ções de seus papéis habituais e atividades
de quem os constrói, de suas prerrogativas e diárias normais, ou seja, limitações no de-
sua história. No entanto, estão sempre sujei- sempenho de funções definidas como andar,
tos a análises, críticas e testes5. Ao longo do comunicar-se ou raciocinar; e Incapacidade
século XX, diferentes modelos conceituais – expressão de limitações funcionais no
sobre a deficiência foram elaborados. Alguns contexto social, ou seja, o produto da inte-
a compreendem como dependente das carac- ração entre o ser humano e o ambiente que
terísticas do indivíduo (sua patologia e seus é imposto aos indivíduos15.
atributos físicos), levando à construção de Em revisão do modelo, a concepção de in-
ações condescendentes com dependência da capacidade passa a ultrapassar o indivíduo,
sociedade, segregação e discriminação. Outros abrangendo a interação social. Afirma que
atribuem um papel crescente ao ambiente (em somente parte das deficiências precipitam a
seus aspectos físicos) e à participação social, incapacidade. Padrões semelhantes de inca-
colocando os indivíduos em posição de agentes pacidade podem ser resultado de diferentes
da sociedade e compartilhando aquilo que esta formas de comprometimento e limitação na
tem a oferecer. Resulta em escolha, direitos função, concluindo que tipos idênticos de
humanos, integração social, entre outras ações deficiências e de funções podem resultar em
participativas13,14. padrões diferentes de incapacidade16.
Entre os modelos mais comuns, estão: Seus modelos representam avanço no pen-
o modelo proposto por Saad Nagi, o samento crítico da época. No entanto, apesar
Modelo Médico, Modelo Social e o Modelo de referir-se ao ambiente e seu papel na inca-
Biopsicossocial. pacidade, este foi analisado a partir do ponto
de vista das demandas que impõe ao indiví-
Contribuições de Saad Nagi duo, enquanto o processo de incapacitação
foi reduzido a uma afecção das características
Saad Nagi sistematizou o primeiro modelo do estado clínico, das deficiências e de suas
da deficiência no Institute of Medicine of correspondentes limitações de função17.

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Modelo Médico ao corpo individual, e o saber médico seria o


detentor do conhecimento responsável por
No Modelo Médico, os problemas são ineren- curar o indivíduo.
tes aos contornos do corpo e reconhecidos Para Snyder e Michell, o diagnóstico médico
como infortúnios, tragédias pessoais, causa- está envolvido no processo de resposta sem
dos diretamente por uma doença, um trauma, efeito. Isso significa que o ato de diagnosticar
ou condição de saúde. Requerem cuidado torna-se uma resposta para perguntas, tais
individualizado por profissionais de saúde como ‘qual é esta doença?’, ‘qual sua origem?’,
especializados18. mas não responde, em muitas ocasiões, sobre
É ancorado na The International como se dará o tratamento ou se existe algum
Classification of Impairments, Disabilities tipo de tratamento. Profissionais que buscam
and Handicaps (ICIDH), publicada pela OMS a cura e tratamentos a qualquer custo muitas
em 198019. O documento tem por objetivo ana- vezes “subjugam as próprias populações que
lisar, descrever e classificar as consequências pretendem resgatar”20(31).
das doenças, assim como apresentar um fra- A construção de sistemas e serviços de
mework conceitual descrevendo três dimen- saúde baseados exclusivamente nessa pers-
sões: 1) Impairment (Deficiência): perda ou pectiva pode levar a situações nas quais os
anormalidade da estrutura ou função psicoló- profissionais da saúde tenham poder decisó-
gica, fisiológica ou anatômica. Ocorre no nível rio sobre os contornos da vida da pessoa com
do órgão ou da função do sistema, estando pre- incapacidade/deficiência.
ocupada com o desempenho, afetando a pessoa
como um todo; 2) Disability (Incapacidade): Modelo Social
qualquer restrição ou falta da capacidade
(resultante de uma deficiência) de realizar A inclusão do olhar das ciências sociais é
uma atividade dentro da faixa considerada um dos pontos centrais do Modelo Social.
normal para um ser humano; e 3) Handicap Os aspectos relacionados à deficiência como
(Desvantagem): trata-se de uma desvantagem, componentes da diversidade humana, respei-
resultante de uma deficiência ou incapacidade, tando suas necessidades e afirmações políticas,
que limita ou impede a realização de um ‘papel culturais e institucionais, visando à justiça
social normal’ (dependendo da idade, do sexo social, ganham protagonismo21. A deficiência
e de fatores sociais e culturais). é compreendida como uma das muitas varia-
Neste modelo, o objetivo a ser alcançado ções humanas e não mais uma forma de vida
é a cura ou o ajuste do indivíduo para um inferior às demais22. Esse modelo tem origem
estado de ‘quase-cura’, fazendo com que nos movimentos sociais das pessoas com de-
este se encaixe nos padrões da sociedade. O ficiência no Reino Unido. Movimento esse
cuidado com o corpo é o principal proble- que iniciou a discussão sobre a insuficiência
ma a ser enfrentado, gerando, no nível da e a incoerência do modelo biomédico, espe-
produção da política pública, respostas que cialmente no entendimento das experiências
visam a modificar o sistema e os serviços de de desigualdade e opressão vivenciadas pelas
saúde com foco exclusivamente na cura e pessoas com deficiência23.
no tratamento do indivíduo acometido da Esse movimento culmina, em 1975, na
deficiência. A interação com o meio em que formação da Upias (Union of the Physically
está inserido é descartada. Impaired Against Segregation), que desen-
A representatividade desse modelo e os volve o seu próprio modelo sobre a deficiên-
termos utilizados por ele não foram bem cia, conhecido internacionalmente como o
aceitos pelas pessoas com deficiência, uma Modelo Social da Deficiência. Foi publicado
vez que a experiência da deficiência é reduzida no documento denominado ‘Fundamental

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Principles of Disability’, no qual o processo negligencia tanto as capacidades quanto


de incapacitação é entendido, também, como as necessidades desses indivíduos, criando
responsabilidade da sociedade através das continuamente estereótipos26.
formas como os deficientes são isolados e ex- As desvantagens experimentadas se origi-
cluídos da plena participação na sociedade24. nam na dificuldade de adaptação do ambiente
Parte do pressuposto de que a incapacidade e da estrutura social às suas necessidades. Não
é um problema criado socialmente através da decorrem de inabilidades dessas pessoas em
integração dos indivíduos com a sociedade. se adaptarem às demandas da sociedade27.
A gestão desses problemas envolve a respon- Sendo a origem dessas desvantagens rela-
sabilização coletiva da sociedade visando à cionada a falhas da estrutura e do ambiente
realização de modificações ambientais para social, a melhor estratégia para alteração desse
proporcionar a completa participação de todas padrão seria através de mudanças político-
as pessoas. É uma perspectiva complexa, pois, -institucionais, ou seja, mudanças nas políti-
ao mesmo tempo que exige que o poder de cas públicas, nas leis e mudanças de atitudes
tomada de decisão seja dado às pessoas com dos indivíduos endógenos e exógenos a esse
incapacidade/deficiência, necessita que os for- contexto. Para tal, são necessários modelos de
muladores de política compreendam o ponto proteção garantidos por lei, representação e
de vista da vida dessas pessoas. participação no processo político e integra-
A rejeição ao Modelo Médico e a noção de ção nas políticas sociais, assim como todos os
que a deficiência precisa ser simplesmente demais cidadãos28.
‘corrigida’ ganha força. Uma primeira geração Oliver resume uma versão extrema do
de acadêmicos passa a se ater para a comple- Modelo Social ao defender que a incapaci-
xidade do conceito que, longe de ser equiva- dade não tem relação com o corpo, sendo
lente a um corpo com lesão, também sinaliza somente uma consequência da opressão
a estrutura social que oprime a pessoa que social29. Solomon discorda dizendo que essa
apresenta um corpo atípico18. frase é falsa e ilusória, ainda que contenha
Mais recentemente, uma segunda geração um desafio válido para se rever o pressuposto
de estudiosos fomentou diversas revisões das contrário predominante de que a deficiência
teorias sociais de opressão pelo corpo seme- reside toda na mente ou no corpo da pessoa
lhantes às de outras temáticas, como o femi- com deficiência. Exemplifica afirmando que
nismo, as teorias de gênero e antirracistas, que “A capacidade é uma tirania da maioria. Se a
também denunciaram construções históricas maioria das pessoas pudesse bater asas e voar,
de opressão21. Utilizam a opressão do corpo não fazê-lo seria uma incapacidade”4(43).
deficiente de forma análoga ao sexismo. As Barnes não nega a importância de inter-
mulheres são oprimidas por causa do sexo, venções individuais na vida de pessoas com
bem como os deficientes eram oprimidos incapacidade/deficiência, sejam elas medi-
por causa do corpo com lesões. Sustenta-se, camentosas, educacionais, focadas na rea-
dessa maneira, a tese dos deficientes como bilitação cinético-funcional ou intelectuais,
minoria social25. mas destaca suas limitações ao promover o
Defensores do Modelo Social entendem empoderamento e a inclusão em uma socie-
que gestos e ações com caráter paternalista dade construída por ‘pessoas não deficientes’
e benevolente devem ser totalmente des- para ‘pessoas deficientes’. Inclui em seu pen-
prezados. As limitações impostas na educa- samento não somente os sistemas e serviços
ção, na saúde, no transporte, no trabalho e de saúde, mas, também, os sistemas de edu-
em outros não são simplesmente produtos cação, informação e comunicação, ambien-
de sua condição biológica, mas ocorrem, tes de trabalho, assistência social, transporte
também, porque o conjunto da sociedade inacessível, construções públicas e privadas, a

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ocupação do espaço urbano e a desvalorização sendo uma fonte rica de termos, conceitos e
de pessoas com deficiência através de imagens relações para terminologias formais. Delimita
negativas nas grandes mídias30. um ponto de partida para o desenvolvimento
Ampliar o foco restrito ao biológico requer do conhecimento do campo32.
ampla mudança social, alterando o status- Segundo a CIF, o termo ‘deficiência’ cor-
-quo. Assim, oferecer um acesso a direitos responde somente às alterações nas funções
básicos igualitário à pessoa com deficiência ou estruturas corporais, apenas no corpo.
é um direito que se deve almejar. Já o termo ‘incapacidade’ é dado de forma
abrangente, incluindo limitações de atividades,
Modelo Biopsicossocial restrições à participação e nas estruturas cor-
porais. Indica aspectos negativos da interação
O Modelo Biopsicossocial foi proposto pela entre um indivíduo (com uma determinada
OMS em 2001, a partir de revisão de modelo condição de saúde) e seus fatores contextuais
classificatório da ICIDH, incorporando aspec- (fatores ambientais ou pessoais)12.
tos do Modelo Médico e do Social. Segundo Reconhece que toda a população é passível
ele, a pessoa que não pode deslocar-se até seu de algum grau de deficiência e incapacidade.
trabalho pode apresentar diferentes condições Assim, não fornece limites para definir quem
associadas a essa tarefa, seja ela pela ampu- tem alguma incapacidade ou não. Constituiu-
tação de um membro (biológico), por não ter se em uma ferramenta dos profissionais de
transporte público de qualidade (ambiental) ou saúde que trabalham com a funcionalidade
por não ter condições financeiras de adquirir humana, de policy-makers que visam a moldar
uma cadeira de rodas (social e ambiental), de os sistemas de saúde em resposta às necessi-
modo que a sua participação é afetada12. dades funcionais dos indivíduos e de pesqui-
O exemplo acima expande a questão dos sadores e acadêmicos31,32.
cuidados em saúde, assim como a dos direitos Masala e Petretto acreditam que o modelo
sociais. A visão não é mais restrita ao entendi- proposto pela CIF não é claro quando trans-
mento hegemônico, como aquele representado posto de sua base teórica para a prática, já
pela pessoa com desvio ou perda em alguma que não consegue identificar a incapacidade
função de seu corpo, mas é extrapolada pelo como um processo dinâmico. Os problemas
que ela de fato é capaz de realizar em seu meio. e os limites podem derivar do fato de ela ser
Trata-se de um modelo que não dita quem é resultado de um modelo multidisciplinar
‘normal’ e quem é ‘incapaz’, que permite que em vez de um modelo interdisciplinar. Essa
uma pessoa ou um grupo possa ser identificado escolha essencial perdeu-se na criação das
como tendo suas ‘capacidades’ e ‘incapacidade’ taxonomias classificatórias, que contêm uma
dentro de cada contexto. A mudança ocorre classificação mais detalhada de limitações
no referencial. O problema em questão não funcionais e estruturais, mas uma classificação
está mais restrito ao corpo, mas está presente menos detalhada de atividades, participação
nas interações entre condições de saúde, ati- e fatores ambientais. Por outro lado, apontam
vidades, participação social, fatores pessoais que outros modelos têm utilização restrita,
e ambientais e as funções do corpo. enquanto a CIF é atualmente conhecida
A partir dessa visão, é criada a CIF, publicada mundialmente13.
e utilizada em 191 países12. Trata-se, também, Modelos teóricos são construções hipoté-
de um sistema informacional de referência ticas, formas de explicação de um fenômeno
que visa a padronizar a descrição da saúde, a visando à análise de uma realidade. Estão an-
funcionalidade e a incapacidade em todos os corados no local e no momento histórico em
níveis da saúde, incluindo educação, social que são construídos e na compreensão social
e laboral31. É baseada em visão acadêmica, do fenômeno. São redutíveis ao trabalhar com

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uma porção finita do objeto a ser representado ‘deficiência’, são: ‘incapacidade’, ‘limitação’ e
e, diferentemente de teorias, são pontuais, ‘desvantagem’12.
não almejando criar um sistema geral de ex- O adjetivo ‘defeituoso’ também já foi muito
plicação. Os modelos aqui apresentados são utilizado para retratar essas pessoas e é carre-
vulneráveis a esses pontos de análise. São gado de estigma e influência social negativos.
construções que representam o momento e É comum que profissionais de saúde, serviço
o local de onde partem. social e educação utilizem termos para se referir
Desta forma, os Modelos Médico e Social à ‘deficiência’ como ‘doença’, ‘síndrome’ e ‘con-
partem justamente do seu local de origem e dição’, que fazem parte do vocabulário comum,
buscam compreender a deficiência e o proces- com pouca diferenciação do seu real significado,
so de incapacidade. O primeiro, sendo direcio- tornando-se tão pejorativos quanto.
nado para o ajuste do corpo; e o segundo, para Sassaki sustenta que a tradução correta da
os aspectos sociais e das relações humanas. terminologia disability (utilizada na língua
O caminho para a compreensão da deficiên- inglesa para se referir a esse amplo grupo de
cia e da incapacidade e para a aplicação prática indivíduos) para o português seria ‘deficiência’,
do Modelo Biopsicossocial é, no entanto, com- uma vez que a palavra permanece no vocábulo
plexo. Estudos têm demonstrado que gestores do senso comum dos indivíduos com ‘defi-
e profissionais de saúde possuem uma visão ciências’ e dos profissionais de reabilitação.
tecnicista, focada no ajuste do corpo através de Ao defender o uso de terminologias do senso
ações curativas e restaurativas, sendo refletida comum, trata como uma infelicidade o uso da
na organização dos serviços de saúde33,34. terminologia ‘incapacidade’ pela CIF35.
Os diferentes modelos oferecem subsídios No Brasil, o documento da CIF foi traduzido
para a construção de relações entre a sociedade por especialistas na área, após debate técnico,
e a pessoa com incapacidade/deficiência. O sig- e utiliza alternativa à tradução usual. Emprega
nificado das palavras utilizadas é essencial para o termo ‘incapacidade’ quando se refere a di-
compreender como estas traduzem tais relações. sability, e ‘deficiência’ quando quer referir-se
a impairment12. A CIF, por tratar-se de uma
classificação proposta pela OMS para reconhe-
O significado das palavras cimento desses indivíduos, toma a dianteira
numa nova abordagem quanto ao tema.
O que é ‘deficiência’? Trata-se de um estado, Os significados das palavras, ou seja, aquilo
um momento, uma construção, uma condição, que entendemos delas, também são diferentes
uma certeza ou uma incerteza? Quem se con- dependendo da cultura na qual a linguagem é
sidera ‘deficiente’? Trata-se de ser ‘deficiente’ utilizada. O termo disability tem como significado,
ou estar ‘deficiente’? A ‘deficiência’ significa segundo o dicionário ‘The new Oxford American
possuir alguma ‘incapacidade’? A pessoa com Dictionary’, o seguinte: uma condição física ou
‘deficiência’ terá sempre uma ‘incapacidade’ ou mental que limita os movimentos, sentidos ou
pode ser capaz de realizar suas atividades de atividades de uma pessoa36. Já o ‘Cambridge
vida diária e laborais? Essas questões são com- Dictionary’ traz como significado: uma doença,
plexas e certamente não possuem um único lesão ou condição que torna difícil para alguém
significado tanto para a pessoa com deficiência fazer algo que outras pessoas fazem37.
quanto para pesquisadores, formuladores de A CIF descreve a disability como um fe-
políticas e formadores de opinião. nômeno complexo resultante da interação
Com o destaque que o tema vem conquis- entre um problema no corpo e um fenômeno
tando no mundo, novas palavras e novos con- essencialmente social. E o termo impairment
ceitos são incorporados ao discurso35. Algumas como uma deterioração do funcionamento de
das palavras que passam a ser usadas, além de uma parte, órgão ou sistema do corpo humano,

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que pode ser temporária, permanente e pode orienta a utilização de forma simultânea das
resultar em uma doença ou lesão. Já handcap palavras ‘incapacidade e deficiência’, visando
é uma condição na qual uma parte do corpo a estabelecer uma transição progressiva de
ou da mente foi permanentemente danificada nomenclatura, assim como fora realizado na
ou não funciona normalmente. Espanha, onde o termo minusvalias foi subs-
Para Diniz, o uso do termo incapacidade tituído por discapacitad42.
pela CIF ignora as contribuições do Modelo Atualmente, deficiência pode apresentar
Social. Além disso, afirma que a tradução da diferentes entendimentos, e os atores parti-
versão brasileira deve ser revista, buscando cipantes dos processos políticos precisam se
legitimidade e acuidade do campo22. confrontar com problemas complexos e mal
Canguilhem38, em sua obra ‘O normal e definidos devido ao significado dado à palavra.
o patológico’ (1978), afirma que a anomalia Podem haver diferentes opiniões sobre causa
é um fato estritamente biológico, do corpo. e efeito, tipos de intervenções ou adequação
Pereira utiliza essa proposição para conferir das soluções propostas, incertezas substan-
o mesmo significado à deficiência. Trata-se ciais quanto às consequências financeiras das
de um fator biológico de diferenciação física, mudanças de políticas ou visões e opiniões
sensorial, orgânica ou intelectual, que produz conflitantes das diferentes partes envolvidas.
uma ‘diferença funcional’39. Desta forma, o meio e a sociedade são atores
Mesmo utilizando a base conceitual da CIF, centrais para o desempenho das capacidades
o documento ‘World Report on Disability’, pro- individuais. Dificuldades de acesso não são
duzido pela OMS, em 2011, tem a tradução para meramente resolvidas através de programas
a língua portuguesa como descrito por Sassaki35. de mobilidade urbana, alterações na infraes-
Outras publicações de documentos oficiais brasi- trutura ou por mudanças na sinalização vol-
leiros utilizam nomenclaturas distintas, como a tadas para deficiências visuais ou auditivas.
Política Nacional de Saúde da Pessoa Portadora Dependem de encadeamento lógico da tomada
de Deficiência – pessoa portadora de deficiência de decisão política, que visa a construir ‘pontes
– e o programa Viver Sem Limites, do Governo de informação’ através de versões de letras
Federal – pessoa com deficiência. Em 2019, o impressas, sem renunciar à linguagem de sinais
Senado Federal aprovou proposta de emenda ou a outras formas de comunicação.
constitucional uniformizando as menções às A definição deve ser capaz de reconhecer os
pessoas com deficiência na Constituição, uma efeitos que o meio socioambiental exerce sobre
vez que nesta também ocorre a utilização de o indivíduo. Somente quando um problema é
diferentes nomenclaturas40,41. bem definido as formas de intervenção política
Em Portugal, a recomendação dada pelo podem ser definidas com maior acurácia e me-
Ministério da Saúde é que o termo ‘deficiência’ lhores estudos podem ser realizados, visando
não exprime um conceito claro. Defende-se a resultados que impactem positivamente a
que seja utilizado ‘incapacidade’, englobando vida desses indivíduos43.
os diferentes níveis de limitações funcionais
relacionados com a pessoa, o meio social e
ambiental. Incapacidade expressa aspectos Diferentes significados
negativos e positivos da interação entre um e suas interpretações
indivíduo com problemas de saúde e o seu
meio físico e social em substituição ao termo
para a epidemiologia da
‘deficiência’, que se configura mais restritivo deficiência
e distante do Modelo Social. No entanto, o
documento reconhece que o termo ‘deficiente’ Dificuldades em padronizar conceitos relati-
ainda é referência para a língua portuguesa e vos a essa temática geram problemas práticos

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em diferentes níveis, desde a pesquisa epi- são importantes para estimar a prevalência de
demiológica até a construção de políticas incapacidade, bem como para compreender a
públicas44. A identificação desses sujeitos e prática de reabilitação.
as estimativas serão dependentes de fatores O ‘World Report on Disability’ apresenta
históricos, culturais e de identidade, que irão dois modelos para estimar a população com
moldar, dentro daquela sociedade, o indivíduo deficiência e incapacidade: a Pesquisa Mundial
que será classificado como incapaz, capaz, de Saúde e a Carga Global de Doenças, ambas
deficiente, limitado, entre outros, e o modo com limitações técnicas e conceituais, não
como os dados são coletados. devendo ser compreendidas como definitivas
Nesse contexto, deve-se ter o cuidado de para o campo7.
distinguir descrições objetivas da experiência A primeira foi realizada em entre 2002 e
e a satisfação do sujeito. Embora igualmente 2004, em 70 países. O módulo referente ao
significativas, as informações sobre defici- estado de saúde utilizou questões baseadas
ência são descrições objetivas, enquanto as na CIF, sendo mensuradas pelas incapacida-
informações sobre a incapacidade são com- des relativas à mobilidade, ao autocuidado, à
plexas. Os dados sobre participação social, visão, audição e respiração, bem como aquelas
qualidade de vida, bem-estar e satisfação são que afetam as atividades usuais, a energia, a
úteis para o planejamento de políticas de vitalidade e o sono44. O objetivo principal não
saúde, mas esses podem ou não ser relevantes era observar as incapacidades individuais,
a depender da experiência, da deficiência e mas almejava-se obter substrato abrangente
das capacidades individuais. da funcionalidade humana. A taxa média de
Muitos usos estatísticos de dados de defici- prevalência na população adulta com dificul-
ência ou incapacidade não requerem o estabe- dades funcionais significativas foi de 15,6%,
lecimento de limites. Por exemplo, estatísticas com variação entre 11,8% em países de maior
que resumem a saúde da população podem renda, e 18,0% nos de renda mais baixa. Para
incorporar elementos relacionados à deficiência dificuldades muito significativas, foi estimada
ou à incapacidade num continuum de estado de uma média de 2,2%. A prevalência da incapa-
saúde. Nesse tipo de abordagem, não existe a cidade nos países de renda mais baixa entre
necessidade de definição de quem se considera pessoas com idades de, ao menos, 60 anos foi
como incapacitado ou deficiente e quem não. de 43,4%, se comparada à de 29,5% nos países
Durante as décadas finais do século XX com renda mais elevada7.
e início do século XXI, o desafio de se es- O segundo conjunto de estimativas sobre
tabelecer um consenso para a terminologia a prevalência das incapacidades é oriundo
‘deficiência’ e para a ‘incapacidade’ foi pre- do estudo sobre a Carga Global de Doenças.
ponderante para a dificuldade de realização O primeiro estudo sobre a Carga Global de
de trabalhos epidemiológicos sobre o tema31. Doenças foi encomendado nos anos 1990
Por sua abrangência e tradução para diferentes pelo Banco Mundial, com objetivo de avaliar
línguas, a CIF acabou se destacando e estabele- o peso relativo da mortalidade precoce e
cendo uma proposta de unidade. Ainda assim, incapacidade oriundas de diferentes defici-
o estado atual da epidemiologia da deficiência ências, lesões e fatores de risco. Esse estudo
tende a confundir duas experiências distintas: utiliza como parâmetro de medição os anos
problemas que as pessoas experimentam ao de vida ajustados pela incapacidade. Essa é
realizar ações que dependem inteiramente uma medida que se refere aos anos de vida
de seu estado físico de saúde e problemas saudáveis perdidos em virtude da morta-
resultantes da interação entre seu estado de lidade ou de determinada incapacidade7.
saúde, ambientais e fatores pessoais. Apesar Dados de pesquisas e censos nacio-
de serem diferentes, ambas as perspectivas nais não podem ser comparados entre si

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diretamente, bem como não podem ser com- de financiamento para a política social (seja
parados às estimativas utilizadas pela Carga centralizado ou descentralizado) e o grau de
Global de Doenças ou a Pesquisa Mundial confiança e accountability dos profissionais
de Saúde devido à falta de padronização envolvidos nas políticas sociais45.
dos conceitos e modelos de análise. Países Palavras utilizadas e os significados
em desenvolvimento tendem a ter taxa de atribuídos a elas, assim como os diferen-
prevalência menor para deficiência e inca- tes modelos de concepção da deficiência
pacidade, pois utilizam dados fornecidos podem levar a diferentes compreensões do
pelos estudos censitários e medidas base- fenômeno. Tais diferenças podem dificultar
adas em uma limitada seleção ou conceito o reconhecimento dessa população, suas
de deficiência. Por outro lado, países mais necessidades e, em consequência, a adoção
ricos tendem a reportar maiores taxas, pois de políticas públicas eficazes.
coletam seus dados através de pesquisas es- No Brasil, utiliza-se o termo deficiência
pecíficas e mensuram as incapacidades e as tanto para indicar um problema no corpo
restrições para realizar atividades. Fatores (impairment) como para determinar a in-
como esses influenciam estudos de compa- teração entre um problema físico com a
rabilidade nos níveis internacional, nacional participação e as tarefas executadas (disa-
e subnacional7. bility). O uso de uma mesma palavra para
Taxas de prevalência surgidas em ambas indicar duas situações diferentes acarreta
as análises citadas, bem como nos censos na- problemas de entendimento na sociedade,
cionais, são influenciadas diretamente pela academia e nas políticas públicas.
definição utilizada de incapacidade e deficiên- A duplicidade de conceitos oriundos do
cia. Diferentes escolhas nos limiares resultam termo deficiência provoca problemas para a
em números diferentes, mesmo utilizando construção de políticas públicas. O Censo de
abordagens relativamente similares. A falta 2010, com questões baseadas nas utilizadas
de padronização por parte dos autores e dos pelo Grupo de Washigton46, utiliza perguntas
agentes censitários entre os conceitos utiliza- referentes a dificuldades em realizar atividades
dos para definir o que seria uma pessoa com para identificar o percentual de deficientes, o
deficiências gera dados discrepantes entre que é uma lógica que é imprópria e incoerente.
cada estudo. Esse é um ponto metodológico O resultado é tornar um problema de interação
que deve ser considerado nessas análises. entre o indivíduo, o meio e sua ação em um
Países de maior renda tendem a considerar problema restrito ao corpo. Por essa classifi-
o Modelo Social sobre o Modelo Médico em cação, 23,9% da população brasileira possui
suas definições de políticas públicas, enquanto algum tipo de deficiência, no entanto, baseado
países de média e baixa renda têm preferência no tipo de pergunta, a resposta deveria ser
pelo Modelo Médico. Esse também é um fator que 23,9% dos brasileiros têm algum tipo de
que pode modificar os resultados7. incapacidade, sendo 18,6% visual, 7,0% motora,
O relatório elaborado pela Universidade 5,1% auditiva e 1,4% intelectual47.
de Brunel, do Reino Unido, com foco nas de- Já em 2018, houve a atualização do dado
finições para a incapacidade em diferentes restringindo o problema àquelas pessoas que
países europeus, apresenta dois parâmetros têm ‘muita dificuldade’ e ‘não conseguem’
de determinação: o grau de medicalização e fazer algo, o que pode gerar a criação de
a extensão do poder discricionário na tomada políticas públicas voltadas somente para os
de decisões políticas. A incapacidade nesses indivíduos com maiores comprometimen-
países pode estar relacionada às caracterís- tos. A formulação política, a partir desse
ticas fundamentais subjacentes às tradições novo olhar, pode ser focalizada somente
de política social de cada Estado, o padrão naqueles indivíduos nos quais a sociedade,

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Deficiência: palavras, modelos e exclusão 857

literalmente, enxerga a deficiência, e não Existe uma dificuldade a ser enfrentada


naqueles que têm incapacidades funcionais pelos institutos de estatística no mundo: a
menores, mas que, ainda sim, restringem sua produção mais ampla de informações sobre
participação em atividades cotidianas. as pessoas com deficiência. Somente assim, o
Essa proposta privilegia o Modelo Médico, planejamento e o monitoramento de políticas
afastando-se da perspectiva biopsicossocial ao públicas podem ser realmente efetivos49.
caracterizar como indivíduo com deficiência Incapacidade é um termo que deveria ser
somente aquele que relata ter “muita dificul- aplicável a todas as pessoas sem segregação
dade” ou que “não consegue de modo algum” e estratificação entre grupos. Deve ser capaz
desempenhar uma determinada função. de descrever a experiência da incapacidade
A partir desse ponto de vista, as ações irão através das diferentes áreas da funcionalidade
privilegiar somente indivíduos com problemas humana43. A compreensão da terminologia
corporais visíveis ao outro: o sujeito cadeiran- utilizada para descrever indivíduos sob ação
te, amputado, surdo, cego, o deficiente intelec- de incapacidades e a adoção de similarida-
tual. Abre-se espaço para o que Oliver chama des linguísticas visando à homogeneização
de deficiência como Tragédia29. As pessoas são do diálogo entre as instâncias formuladoras
tratadas como vítimas das circunstâncias. O e implementadoras de políticas, a sociedade
conceito de deficiência é reduzido, por pro- e as pessoas são necessidades que poderiam
fissionais de saúde, a problemas exclusivos do auxiliar nas mudanças de perspectivas de vida
corpo. A predisposição pela concepção médica ao sugerirem modificações nas políticas pú-
é compreendida como um sinal de que o pres- blicas e na forma de cuidado.
tador de serviços deve focar-se no tratamento
e na reabilitação da deficiência, dos proble-
mas inerentes ao corpo33. Esse é o caminho Considerações finais
mais simples para os profissionais, serviços
de saúde e formuladores de políticas, uma vez Deficiência é uma palavra que carrega estigma.
que é evidente o predomínio de um modelo Ao manter o uso da palavra, mantém-se a
de cuidado voltado para a doença, centrado lógica centrada na doença, no problema e na
nos serviços de saúde e nos procedimentos34. restrição. Falar sobre as capacidades e inca-
A variabilidade conceitual e de definição pacidades de cada pessoa é expandir a visão,
não tem apenas impacto imediato nas estima- é compreender relações sociais, é permitir
tivas de incapacidade, mas pode contribuir em uma participação mais igualitária e tolerante
médio e longo prazo para soluções políticas na sociedade.
inconsistentes ou insuficientes. Ao ignorar Conceitos oriundos dos modelos estudados
os indivíduos com menos restrições, deixa-se perpetuam desigualdades e fomentam proces-
essas pessoas mais vulneráveis para aumentar sos de exclusão. Sem compreender a dinâmica
seu grau de incapacidade. Formuladores de entre o indivíduo, a deficiência e a incapaci-
políticas precisam estar cientes de que essas dade e sem conhecer suas reais dimensões,
pessoas correm o risco de desenvolver níveis a elaboração e a implementação de políticas
mais altos de incapacidade e que suas neces- públicas para essa população tornam-se um
sidades são tão significativas quanto as das desafio ainda maior, pois não se compreenderá
pessoas facilmente identificáveis com defi- quem é o foco das ações. Um passo importante
ciências graves. As intervenções direciona- a ser dado é a separação entre incapacidade
das também a esse grupo com níveis leves e e deficiência, a fim de desvelar as reais ne-
moderados de incapacidade teriam, em geral, cessidades individuais e coletivas, atuando
um impacto populacional maior do que as sobre as atividades, a participação social e
intervenções apenas para os graves48. sobre o corpo.

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858 Mota PHS, Bousquat A

Colaboradores da versão final do manuscrito. Bousquat A


(0000-0003-2701-1570)* contribuiu para a
Mota PHS (0000-0003-3507-3958)* contri- concepção, a revisão crítica do conteúdo e a
buiu para a concepção, o planejamento, a ela- aprovação da versão final do manuscrito. s
boração do rascunho e participou da aprovação

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