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DA CONCEPÇÃO DE DEFICIÊNCIA AO ENFOQUE DA

NEURODIVERSIDADE

Ana Beatriz Machado de Freitas1

Resumo: Apresentam-se considerações acerca da designação deficiência, quando remetida ao


público das necessidades educacionais especiais. Observa-se que os critérios para
encaminhamento ao atendimento educacional especializado são pautados prioritariamente na
identificação de deficts, sob referências do modelo médico. Em contraposição, alguns
pesquisadores e algumas pessoas em situação de deficiência têm sustentado que o não
funcionamento de um dos órgãos dos sentidos ou o funcionamento neurológico distinto da
maioria da população não caracterizaria deficiência, mas sim diferenças no desenvolvimento,
inclusive de constituição cultural. No Brasil chamam atenção a esse respeito, no meio acadêmico,
os Estudos Surdos e pesquisas sobre percepções. Em nível internacional, evidencia-se o
movimento neurodiversidade, encampado por sujeitos com transtorno do espectro autista (TEA).
Defende-se que seus modos de se comportar e se relacionar seriam neurologicamente
determinados, porém não entendidos como patologia, mas como diferença humana. O debate
contribui para reflexões sobre a efetivação da educação inclusiva em termos atitudinais e sobre
a relevância de se conhecer acerca de variações do neurofuncionamento.

Palavras-chave: inclusão, diversidade, neurodiversidade, autismo.

FROM CONCEPTION OF DISABILITY TO THE NEURODIVERSITY APPROACH


Abstract: It shows considerations about the term disability, when attached to people with special
educational needs. It is observed that the criteria for referral to the specialized educational service
are given priority in the identification of deficts, under the medical model references. In contrast,
some researchers and some people in disability situation have argued that the non-functioning of
one of the sense organs or the distinct neurological functioning, compared with the majority
population, would not characterize disability, but rather differences in development, even in the
cultural constitution. In Brazil, the Deaf Studies and researches on perceptions call attention to
this theme in academic circles. At the international level, it is emerging the neurodiversity
movement, carried out by subjects with autism spectrum disorder (ASD). It is argued that their
behavior and relation ways would be neurologically determined, however not understood as a
pathology, but as a human difference. The discussion contributes to reflections on the inclusive
education effective in attitudinal aspects e on the relevance of knowing about neurofunctional
variations.

Keywords: inclusion, diversity, neurodiversity, autism.

Deficiência: dilemas da conceituação


Um desdobramento da educação na diversidade é o desafio da
escolarização das pessoas com necessidades educacionais especiais, público
que, conforme a legislação brasileira (BRASIL, 2010) abrange condições de
deficiência física, intelectual, sensorial ou múltipla, transtornos do

1 Pedagoga pela UFG; Mestre em Psicologia e Doutora em Educação pela PUC Goiás.
Instituições de atuação: Instituto Federal de Goiás – Câmpus Goiânia Oeste e Faculdade de
Inhumas.
E-mail: bianapoeta@gmail.com

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desenvolvimento (como o autismo) e indivíduos com altas
habilidades/superdotação. Os principais obstáculos não advêm da condição
orgânica, em si mesma, mas das barreiras culturais, desde as barreiras físicas
(de ausência ou precariedade de recursos ou instalações para acessibilidade –
arquitetônica, técnica/tecnológica, comunicacional) às atitudinais, isto é, atitudes
de preconceito ou de negação da possibilidade de uma participação ou
desempenho, o que muitas vezes ocorre por desconhecimento das
necessidades específicas requeridas pelos sujeitos - por exemplo, a
necessidade de uma explicação denotativa (não metafórica), ao falar, ou a
supressão de um determinado ruído do ambiente, medidas que podem
importantes para a sociabilização de uma pessoa com espectro autista.
Sabe-se que as pessoas com deficiência enfrentam o preconceito da
baixa expectativa aprendizagem e/ou de produtividade social. Essa
subestimação é histórica, haja vista que essa população foi e ainda é
considerada majoritariamente, senão exclusivamente, digna de cuidados
básicos de vida diária, assistência social e médica/clínica, em detrimento da
escolarização. A necessidade de cuidados de saúde “naturalmente” inviabilizaria
condições para frequência à escola. Na modernidade, especialmente nos
séculos XIX e XX, escolas e classes especiais foram instituídas como
possibilidades de educação escolar para pessoas com deficiência, em geral sob
fundação, supervisão e/ou orientação de profissionais da medicina. Mesmo na
atualidade, sob o referencial da educação inclusiva, observam-se determinações
do modelo médico, haja vista que a distinção dos “alunos especiais” - e
consequente encaminhamento para o Atendimento Educacional Especializado
(AEE) - ocorre conforme caracterização clínica de uma patologia.
Vista por esse prisma, a população das pessoas com necessidades
educacionais especiais seria caracterizada pela apresentação de alguma
anormalidade biológica, e assim abrange não só as condições de deficiência,
mas também indivíduos com altas habilidades/superdotação, pelo fato estarem
acima da curva de normalidade, conforme testes psicométricos; portanto, fora
dela. No entanto, considerando que o desenvolvimento humano é constituído do
entrelaçamento das funções biológicas com as determinações socioculturais,
seria possível classificar um segmento populacional somente pela exibição de
uma funcionalidade biológica, seja diminuída (ou então ausente), seja ampliada?

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Eric Plaisance (2010) observa que a organização Mundial de Saúde, ao
longo de sua história, propôs várias definições e modelos de compreensão de
deficiência. A classificação de 1980 a definia como desvantagem social, em
razão de uma insuficiência ou limitação do indivíduo posta em relação com a
capacidade socialmente esperada. Já a Classificação mais recente, a CIF-
Classificação Internacional de Funcionalidade, publicada em 2001, valoriza o
funcionamento global da pessoa nos níveis: orgânico, de atividades e de
participação social, “[...] e o conjunto é relacionado a fatores contextuais,
ambientais e pessoais. a dimensão social na configuração da deficiência”
(PLAISANCE, 2010, p. 27).
O autor mostra, assim, o quanto tem-se procurado ampliar a conceituação
e a compreensão de deficiência, de maneira eu o referencial não fique
estritamente sujeito a critérios que avaliem o perfil clínico (biológico),
desconsiderando a imbricação pessoa-contexto. Na França, ainda, conforme,
alguns autores propõem o termo “pessoa em situação de deficiência”, sob o
argumento de que a “anormalidade” biológica, por si mesma, não deixa o sujeito
submetido à condição de ineficiência ou menor eficiência; já a falta de
adaptações do ambiente, sim, deixaria o sujeito em tal situação. A Grã-Bretanha
e outros países europeus preferem o termo necessidades educativas especiais,
posteriormente adotado por organismos internacionais, como a ONU e Unesco,
por não comportar uma linguagem medicalizante e pela potencial abrangência,
uma vez que subentende-se que qualquer pessoa ao longo da vida escolar pode
enfrentar dificuldades que necessitem de um apoio diferenciado (PLAISANCE,
2010).
Em suma, se o suporte social proporcionar autonomia, ao corresponder
às necessidades da pessoa para ação e participação plena no trabalho, na
escola, no ir e vir, nos meios de transporte, no lazer, no acesso a instituições e
ambientes, enfim, na vida social, não se evidenciariam deficiências dos
indivíduos, mas diferenças circunstanciais, quanto ao suporte requerido para
determinado desempenho. Por essa premissa, tanto as tecnologias assistivas,
quanto as adaptações curriculares, ambientais, arquitetônicas, comunicacionais,
bem como as atitudes, desde as políticas públicas ao plano interpessoal, devem
estar atentas a especificidades e necessidades que advêm não diretamente do
“defeito” biológico, mas sim do que este, na relação com a cultura, no

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desenvolvimento humano, determina como diferença nos modos de agir,
produzir, perceber e se relacionar com o mundo.
Apesar das importantes reflexões quanto às redefinições terminológicas,
na busca de designações que não soem discriminatórias, Plaisance (2010)
observa que mesmo as expressões adotadas nessa perspectiva são
incorporadas a discursos que adotam, concomitantemente, termos e referências
medicalizantes. Tal contradição, a nosso ver, é própria das sociedades
contemporâneas na discussão da diversidade, da identidade de populações que
há bem pouco tempo não pertenciam à dinâmica sociocultural com cidadania
ativa e participativa. Nesse processo, desafio são postos à educação, no sentido
de, de fato, nas suas práticas, para além da legislação, atender a todos
qualitativamente. E para que haja essa concretização, é preciso conhecer o
“novo” alunado, suas diferenças/especificidades
As conceituações, na ciência, não definidas e redefinidas com vistas à
melhor compreensão e consenso para estudos. A linguagem escolhida reflete
representações que um grupo que a adota (e mais amplamente, a
sociedade/cultura, se esse grupo a representa) tem acerca do fenômeno ou
“objeto” em questão. Portanto, a postulação de uma linguagem ou designação
objetiva se dá sob alicerces da subjetividade social, por isso não é perene e está
sujeita a questionamentos e redefinições por outros sujeitos, grupos
epistemologias e conforme momentos históricos.
Vale lembrar que desde 1946 a Constituição da Organização Mundial da
Saúde (OMS) define saúde como “um estado de completo bem-estar físico,
mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de
enfermidade” (USP, 1946/2016). Entretanto, a concretização dessa definição em
termos materiais e atitudinais ainda é um desafio do presente século, visto que
na subjetividade social dominante concebe-se saúde como estado físico de não-
doença.

Em situação de diferença
Nessa discussão inserem-se pessoas e grupos que, ainda que sejam
diagnosticadas, na ótica clínica, com um diferencial patológico, não se
consideram doentes ou com deficiência. Eles sustentam que sua diferença
biológica determinou diferenças na linguagem, no comportamento, nas formas

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se relacionar, as quais são afirmativas de uma identidade (pessoal e coletiva).
As comunidades surdas são precursoras mundiais dessa perspectiva,
principalmente por possuírem um idioma próprio, e afirmam-se como cultura
(cultura surda) com necessidades pedagógicas, valores e temáticas a serem
apresentados, reivindicados e discutidos. No Brasil, no campo acadêmico,
ganham destaque os Estudos Surdos, formalizados em pesquisas e publicações,
entre elas a Revista Estudos Surdos (2006-2009)2.
Mais recentemente, sobretudo em países como Estados Unidos e
Austrália, o discurso de pessoas com autismo tem vindo a público. Ao mesmo
tempo, aumentam o interesse e as pesquisas científicas sobre essa população.
Não há consenso sobre as causas das características autistas, mas sabe-se que
sua manifestação está relacionada ao funcionamento diferenciado de várias
áreas cerebrais. Do ponto de vista médico, um funcionamento patológico, mas,
para muitos sujeitos com espectro autista, trata-se de uma diversidade de
funcionamento. Daí a designação neurodiversidade, que se converteu em
denominação de um movimento afirmativo de identidade.
Ortega (2009, p. 72) menciona que o termo foi cunhado pela socióloga
Judy Singer em 1999. Singer foi diagnosticada como pessoa com síndrome de
Asperger, denominação atualmente não empregada como patologia à parte, mas
com caracterização pertencente a um amplo leque: o do transtorno do espectro
autista (TEA), conforme a mais recente versão do Manual Diagnóstico de
Psiquiatria, DSM-V (APA, 2013).
Desde meados da década de 1980, pessoas com autismo têm se
destacado por demonstrar capacidades não só intelectuais, mas também de
expressão da sua história e subjetividades (como as pioneiras autobiografias da
norte-americana Temple Grandin e a da australiana Donna Williams) 3 e
superação das dificuldades quanto à socialização. Assim, especialmente nos
países desenvolvidos anglófonos, instituições de defesa de direitos das pessoas
com espectro autista, geridas por elas mesmas, têm sido fundadas, como a

2 A Revista Estudos Surdos foi organizada pela Dra. Ronice Quadros, professora da UFSC.
Disponível em: <http://www.editora-arara-azul.com.br/ParteA.pdf >
3 Em 1986 Temple Grandin publicou a autobiografia Emergence: labeled autistic, traduzida no

Brasil como: Uma menina estranha (edição esgotada), e em 1992 Donna Williams publicou
Nobody Nowhere: the extraordinary autobiography of an autistic girl; em português traduzido
como: Meu mundo misterioso – testemunho excepcional de uma jovem autista.

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ASAN – Autistic Self Advocacy Network e a GRASP (Global Regional Asperger
Syndrome Partnership), referidas por Dubin (2011). Existem também, em
diversos países, como o Brasil, associações de pais e amigos, que reivindicam
direitos (políticos, educacionais, de atendimentos/tratamentos especializados).
Conforme relata Ortega (2009), movimentos e associações
representativas dos direitos dos autistas vêm se multiplicando, porém nem
sempre se coadunam. O autor aponta duas correntes: uma é formada por
familiares de pessoas com autismo, principalmente por aqueles cujos filhos
apresentam características mais acentuadas do espectro (o que é descrito como
“baixo funcionamento”4) e por pesquisadores de tratamentos e intervenções mais
precisas; visam à melhoria das características típicas do transtorno ou até a cura.
A outra perspectiva é liderada por autistas de alto funcionamento e posiciona o
autismo como diferença humana, à semelhança de diversidades quanto à etnia,
orientação sexual, nacionalidade e dominância lateral (ser destro ou canhoto).
Para eles, é absurdo buscar a cura do autismo ou empreender tentativas de
revertê-lo sob referenciais da normalidade dominante, pois não se trataria de
uma doença, e sim de um funcionamento neurológico diferenciado -
neurodiversidade. A reivindicação aí emerge quanto ao reconhecimento de uma
identidade, à semelhança do que reivindicam as comunidades surdas.
A questão é polêmica porque, se essa última postura evoca contestação
do “modelo médico”, por outro lado reveste-se de uma identidade social que
pode subsumir presunções de transcendência do espectro ou desprezar a busca
por atenuar certas características que, para alguns sujeitos, podem ser
pessoalmente desfavoráveis. O desenvolvimento humano e seus processos de
constituição, nas suas singularidades/existências, sempre se projetam para além
dos “rótulos”, sejam clínicos, sejam. Diz a jovem canadense Carly Fleischmann
(HISTÓRIA DE CARLY, 2011): “Sou autista, mas isto não define quem eu sou”5.
Na mesma direção, apresenta-se Donna Williams, em declaração transcrita por
Temple Grandin (GRANDIN, 2006, p. 50, tradução nossa): “Autismo não sou eu.

4 Dubin (2011) questiona a distinção alto e baixo funcionamento porque ela se atém
prioritariamente à expressão ou não da fala, isto é, parte do pressuposto de que os sujeitos que
não falam seriam menos desenvolvidos cognitivamente.
5 O excerto aparece legendado em português no documentário História de Carly – autismo

severo (2011), disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=M5MuuG-WQRk>. Não é


informada a autoria das traduções.

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O autismo é apenas um problema no processamento de informação que controla
quem eu sou”6. Já Temple Grandin e Jim Sinclair, psicólogo autista e cofundador
(com Donna Williams) da Autism Network International, entendem o autismo
como inseparável de si (GRANDIN, 2006; SINCLAIR, [entre 2000 e 2013]).
Jim Sinclair é mais enfático na defesa da identidade autista: contesta a
atual expressão politicamente correta “pessoa com autismo” e advoga a
assertiva “pessoa autista”; argumenta que o autismo não é algo que “estaria
com” a pessoa, como se eventualmente pudesse ser tirado, à semelhança de
uma roupa; é algo central da personalidade. Por isso, alerta: “Se você olha para
uma pessoa autista como se ela fosse somente ‘uma pessoa’ e tenta fingir que
o autismo não está lá, então não somente você não está vendo a pessoa como
um todo, você está negando uma parte muito importante daquela personalidade”
(SINCLAIR, [entre 2000 e 2013], p. 2, tradução nossa)7. Adiante, acrescenta que
presencia o acentuamento de ansiedade, angústia, raiva, ressentimentos e
depressão em autistas submetidos a intervenções que procuram ajustá-los e/ou
socializá-los conforme padrões que não respeitam suas identidades
“neurotípicas”, como afirma, e seus interesses.
As características autistas, por si mesmas, não são encaradas como
problema a ser curado, até mesmo porque podem ser a razão de conquistas
importantes. Nick Dubin, bacharel em Comunicação e especialista em
Psicologia, diagnosticado Asperger aos 27 anos de idade, atribui seu sucesso
profissional a essa condição, ao fato de ter persistência, curiosidade e foco. Para
ele, a “cura” do autismo é um objetivo ilusório (DUBIN, 2011).
São sugestivas, portanto, a partir desses argumentos e depoimentos,
interrogações para estudos da diversidade, quando a diferença em questão
aparece relacionada, direta ou indiretamente, a uma referência biológica. Marcas
de diferenças ou deficiências?
O espectro autista, assim como a surdez, apresenta muitos gradientes. É
compreensível que famílias de autistas com baixo funcionamento desejem
melhora de seus filhos, no sentido de que descobertas científicas contribuam

6 “Autism is not me. Autism is just an information processing problem that controls who I am”
7 “If you look at an autistic person as just ‘a person’ and try to pretend the autism isn’t there, then
you not only aren’t seeing the whole person, you’re denying a very important part of that
individual’s personhood”

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para reduzir aspectos que dificultam a comunicação, o desenvolvimento do
potencial cognitivo a sociabilidade e a tolerância a estímulos sensoriais e a
mudanças de rotina. Igualmente compreensível, no caso de perdas de audição,
é a busca por uma habilitação ou reabilitação da capacidade auditiva e da fala.
Assim, uma pessoa surda pode se sentir pertencente à cultura surda,
principalmente se veio a se desenvolver sob a língua de sinais como idioma
primeiro e principal e se suas relações sociais e percurso escolar transcorreram
entre surdos, ao passo que outros, pela maior convivência com ouvintes e pelo
menor domínio (ou não domínio) da língua de sinais (se foram oralizados, por
exemplo), podem não se sentir culturalmente surdos.
Enfim, afirmar-se pela diferença ou deficiência (ou ainda pela
possibilidade de conjugação de argumentos dos dois posicionamentos)
dependerá, além das ofertas sociais de acessibilidade e da concepção
sociocultural acerca do que se compreende como deficiência, das histórias
pessoais, dos processos subjetivos vivenciados nas relações humanas, na
cultura e consigo mesmo, no que cada indivíduo se sente e se concebe como
ser e como pertencente. Assim, há que se ponderar acerca de radicalismos que
podem se desdobrar, na defesa de uma perspectiva tomada como generalizante
e mais favorável para todo um grupo de pessoas que, por mais que se
assemelhem por uma condição, diferem-se em tantas outras características,
desejos e opiniões. Contributos das ciências (da Saúde e da Educação) podem
servir à melhoria da qualidade de vida, do aprendizado e da inclusão
socioeducacional. O problema ocorre quando intervenções são sugeridas ou
impostas tão somente em nome de um ideal de normalização.
Como a educação da pessoa em situação de deficiência só recentemente
vem ocorrendo na escola comum, não é simples nem “natural” aos professores
compreender e atender às necessidades educacionais do aluno “especial”. A
presença de um intérprete de Libras, para alunos surdos, do uso de programas
computacionais específicos, para alunos cegos ou com paralisia, ou a
estruturação de uma rotina para alunos com TEA são mudanças técnicas muitas
vezes necessárias e que dependem do conhecimento de características de um
tipo de deficiência. No entanto, o êxito depende menos desse conhecimento e
muito mais de se conhecer cada sujeito e seus modos de perceber, interagir e
aprender nas suas relações humanas e com o ambiente, sem perder de vista as

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possibilidades do contexto próximo e macro (histórico-cultural e econômico e
sociopolítico).
No Brasil têm sido desenvolvidas pesquisas, principalmente na
perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, que destacam quão
fundamental é a contextualização das intervenções pedagógicas e do
conhecimento das condições socioculturais do educando, da família e da escola,
inclusive na imbricação com a efetividade das políticas públicas e com a
formação/qualificação de profissionais, no propósito e desafio de consolidação
da educação inclusiva. Outros estudos, sob abordagem fenomenológica, como
os de Masini et al. (2012), enfocam diferenciais das experiências perceptivas de
sujeitos privados de um ou mais sentidos (como visão e audição), conhecimentos
que revelam, para o professor, enfrentamentos, necessidades e percepções
provavelmente não imaginados.
Em relação ao TEA, recentemente defendemos uma tese em que
destacamos o prisma das experiências perceptivas em relatos autobiográficos
(FREITAS, 2015). Constatamos que é comum o argumento de que o cérebro
funciona de maneira distinta; assim, isso não só vem sendo comprovado pela
ciência, mas sentido, de fato, pelos sujeitos com espectro autista.
Acrescentamos que essas sensações se coadunam com um corpo
autopercebido como sincrético ao se por em intencionalidade para agir e
interagir.
Os argumentos em prol do reconhecimento da neurodiversidade, ainda
que passíveis de críticas, fomentam uma reflexão acerca do se defende e
implanta/implementa como educação especial na perspectiva da educação
inclusiva, desde a formação do professor. O funcionamento neuronal de um
organismo afetado por algo que impacta o funcionamento biológico natural em
algum âmbito (motor, sensorial, cognitivo) se processa de forma diferenciada,
até como forma de compensação para que ocorra vida e desenvolvimento.
Assim, em sentido lato, o público das necessidades educativas especiais seria o
da neurodiversidade.
O radical “neuro” convida ao conhecimento do que perpassa esse âmbito,
para entendermos necessidades, características e potenciais dessa diversidade,
ainda que pretensão não seja empreender uma pedagogia reabilitativa sob
referência do criticado modelo médico. Certamente, como todo conhecimento,

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não será suficiente para efetivar a inclusão educacional; porém, é um estudo
componente no processo de aprender com as diferenças. A consideração de
determinantes biológicos não implica caracterizar os sujeitos por esses
aspectos, uma vez que o todo ser humano é multideterminado
socioculturalmente e desenvolve diferenciais subjetivos.

SÍNTESE Considerações/Síntese
- A educação das pessoas com necessidades educacionais especiais é bastante
recente na história. Acreditava-se que uma anormalidade biológica demandaria
cuidados de saúde e, consequentemente, inviabilizaria a escolaridade, assim
como outras atividades socialmente produtivas, de eficiência.
- A designação “deficiência” tem sido discutida mundialmente, por vezes
questionada, sob o argumento de que ela não estaria “no” sujeito. A condição de
deficiência no desenvolvimento humano é situacional, ou seja, não é definida
pela biologia, mas pela diferença na oferta do suporte sociocultural para que o
sujeito desempenhe determinada ação/ participação com efetividade e
autonomia;
- Apesar das sugestões de mudanças na nomenclatura, constata-se ainda, no
teor dos discursos referentes à educação inclusiva, referências do modelo
médico.
- Pessoas e grupos de pessoas autistas e surdas e também alguns
pesquisadores vêm reivindicando sua identidade pessoal e cultural pelas
características que apresentam (linguísticas, comportamentais, perceptuais);
portanto, não se vêm em condição de deficiência ou com uma patologia a ser
tratada.
- Estudos acadêmicos e movimentos/organizações sociais referentes às
pessoas em situação de deficiência, no Brasil e em outros países, vêm discutindo
questões de direitos (políticos, sociais, educacionais) e também referentes à
identidade;
- A perspectiva da neurodiversidade defende o TEA como diferença humana no
modo de funcionamento neurológico, mas não patologia ou deficiência. Trataria-
se de uma identidade, constituição do ser. Contudo, tal perspectiva não é
consensual, nem entre pessoas com TEA e seus familiares, nem entre
estudiosos;

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- Ainda que critique o modelo médico, a neurodiversidade traz, na própria
denominação, a marca da necessidade do olhar para as diferenças do
funcionamento neuronal
- Cabe refletirmos como a educação especial na perspectiva inclusiva vêm sendo
considerada e efetivada em termos atitudinais no atendimento às necessidades
específicas: situações de deficiência e/ou diversidade humana?

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