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CAPÍTULO 1

VERDADE, DESCRIÇÃO E IDENTIFICAÇÃO


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Uma maneira natural de ver a conexão de uma afirmação com a realidade
é como uma descrição: um enunciado verdadeiro descreve um aspecto do
mundo, um enunciado falso não. Assim como descrevemos objetos,
propriedades de objetos, relações entre objetos, etc., também descrevemos
estados de coisas, situações, circunstâncias e afins, e estes são tipicamente
descritos por enunciados (frases assertóricas). A verdade de uma afirmação está
precisamente nesta descrição da realidade. A verdade da afirmação de que
estou em meu estúdio agora está em eu estar em meu estúdio agora mesmo;
isto é, em um certo estado de coisas. A afirmação de que eu estou na minha sala
de estar agora, por outro lado, não descreve um aspecto do mundo e não é
verdade.
Esta visão da verdade remonta pelo menos a Platão, e é a espinha dorsal
de todos os relatos realistas da verdade. Embora geralmente não formulado em
termos de descrição e estados de coisas, o ponto fundamental de uma
concepção filosófica realista da verdade é que a verdade está na realidade ou é
uma expressão da realidade. Isto parece bastante natural, mas há dificuldades
em elaborar a visão com precisão. Algumas dessas dificuldades estão
relacionadas à noção de falsidade.
Eu disse que um enunciado verdadeiro descreve um estado de coisas e
que um enunciado falso não descreve. No entanto, parece que tanto enunciados
verdadeiros como falsos descrevem o mundo e que a diferença entre eles é que
enquanto enunciados verdadeiros descrevem o mundo corretamente,
enunciados falsos descrevem o mundo incorretamente. Se enunciados
verdadeiros descrevem o mundo, descrevendo estados de coisas, em que
sentido os enunciados falsos descrevem, pois eles não podem descrever o
mundo, pois nesse caso seriam verdadeiros. O que eles descrevem então? Esta
é uma versão do problema de não ser de Platão1.

1
2. Plato’s most systematic discussion of these questions is in the Sophist beginning
in 236. The problem of falsity is neatly set up in 240d-241a:
STR. But, again, false opinion will be that which thinks the opposite
of reality, will it not?
THEAET. Yes.
STR. You mean, then, that false opinion thinks things which are
not?
THEAET. Necessarily.
STR. Does it think that things which are not, are not, or that things
which are not at all, in some sense are?
THEAT. It must think that things which are not in some sense are
– that is, if anyone is ever to think falsely at all, even in a slight
degree.
STR. And does it not also think that things which certainly are, are
not at all?
THEAET. Yes.
STR. And this too is falsehood?
THEAET. Yes, it is.
STR. And therefore a statement will likewise be considered false, if
it declares that things which are, are not, or that things which are
not, are.
THEAET. In what other way could a statement be made false?
STR. Virtually in no other way; but the sophist will not assent to
Pode-se abordar esse problema postulando possíveis estados de coisas:
enunciados verdadeiros descrevem estados de coisas que ocorreram;
enunciados falsos descrevem possíveis estados de coisas que não se
atualizaram no mundo. Isso é análogo a posição filosófica segundo a qual
descrições definidas como "o atual rei da França" descrevem indivíduos
possíveis que podem acontecer de não existir (como neste caso particular). E os
problemas são semelhantes nos dois casos. Em particular, assim como a
descrição definida pode descrever um objeto "impossível" ("círculo quadrado",
"O maior primo", etc.), um enunciado pode descrever um estado de coisas
"impossível"; por exemplo, 2 + 2 = 5. Isso significa que, segundo esse tipo de
abordagem, para trabalhar de maneira uniforme deve-se permitir entidades
impossíveis, bem como entidades possíveis.

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É mais natural dizer que um enunciado falso descreve o mundo no sentido
de que afirma algo de caráter identificador sobre o mundo, e não no sentido de
que existe um estado de coisas possível que é descrito por ele. Enunciados
verdadeiros e falsos descrevem o mundo na medida em que afirmam algo que
tenha um caráter de identificação sobre o mundo, mas enunciados verdadeiros
identificam algo enquanto enunciados falsos não. Isso é de fato paralelo ao que
acontece com as descrições definidas. A descrição definitiva "o elefante em meu
estúdio agora" tem um caráter de identificação, mas não identifica nada porque
não há nenhum elefante no meu estúdio agora. Da mesma forma, a afirmação
de que estou na minha sala de estar agora tem um caráter identificador, mas não
identifica nada porque eu não estou na minha sala agora; esse estado de coisas
não ocorreu.
O caráter descritivo ao qual estou me referindo é o de envolver condições
de identidade que podem ser cumpridas por no máximo uma coisa – um objeto,
um estado de coisas, uma propriedade, etc. Há condições de identidade para
que algo seja um elefante em meu estúdio agora e, embora possa haver muitos
elefantes em meu estúdio agora, só pode haver no máximo uma coisa que seria
o elefante em meu estúdio agora. O mesmo se aplica a afirmação de que estou
na minha sala de estar agora; há condições de identidade para eu estar na minha
sala de estar agora e, embora estas condições possam ser satisfeitas de muitas
maneiras diferentes, só pode haver um estado de coisas de eu estar na minha
sala agora.
Um aspecto em que parece haver assimetrias entre descrições e
enunciados é em relação à negação, e muitas questões tradicionais sobre
enunciados dizem respeito à negação. Na verdade, uma vez que qualquer falso
enunciado pode ser transformado em um enunciado verdadeiro por meio da

this. Or how can any reasonable man assent to it, when the expressions
we just agreed upon were previously agreed to be inexpressible,
unspeakable, irrational, and inconceivable? Do we understand his
meaning, Teeteto?
THEAET. Of course we understand that he will say that we are contradicting
our recent statements, since we dare to say that falsehood
exists in opinions and words; for he will say that we are thus forced
repeatedly to attribute being to not-being, although we agreed a
while ago that nothing could be more impossible than that.
A recent discussion of the development of Plato’s thought on these issues is Denyer
Language, Thought and Falsehood in Ancient Greek Philosophy.
negação, e qualquer enunciado negativo verdadeiro tem uma contraparte falsa,
perguntas sobre falsidade andam de mãos dadas com perguntas sobre negação.
A negação dá origem a outros aspectos do problema do não-ser. O que é negar
a existência? Alguém está negando a existência de algo? Para negar que haja
um elefante em meu estúdio agora seria natural apelar para a propriedade de
ser um elefante em meu estúdio agora e tomar a negação da existência como
uma negação de que essa propriedade foi instanciada. Para o enunciado de que
eu estou na minha sala de estar agora podemos usar uma abordagem
semelhante. Podemos dizer que essa afirmação é falsa, porque a relação "está
em" não ocorre (ou não é instanciado) entre mim e a minha sala de estar, nessa
ordem, nesse momento. Ou em outras palavras, dizer que o estado de coisas de
eu estar na minha sala agora não existe, ou não ocorre, é dizer que eu não tenho
a relação "está dentro" com a minha sala de estar, agora.

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Mas a afirmação de que eu não estou na minha sala agora é verdadeira,


logo, de acordo com uma visão da verdade como descrição, deve identificar um
estado de coisas. Qual situação é essa? Pode parecer natural que o estado de
coisas que estaria envolvido na verdade deste enunciado seria o estado de
coisas de eu estar em meu estúdio agora, mas é bem claro que o enunciado de
que eu não estou na minha sala agora não pode ser usado para identificar esse
estado de coisas. Se, por outro lado, dissermos que o estado de coisas
identificado por este enunciado é o estado de coisas de eu não estar em minha
sala de estar agora, então podemos nos perguntar que tipo de estado de coisas
(aspecto da realidade) é esse? Há tantos lugares em que não estou nesse
instante; devemos dizer que em cada caso há um estado de coisas de eu não
estar lá?
Bem, por que não? Posso dizer que o estado de coisas identificado
consiste de ter a relação "não estar na” com a minha sala de estar, nesse
instante. Isso pode parece estranho se pensarmos no “não estar em algum lugar”
como uma espécie de falta, mas se pensarmos na relação de "estar em" entre
duas coisas, poderíamos pensar também na negação dessa relação: a não tem
a relação de “está em" com b. “Não estar na minha sala de estar” é uma relação
tão “real” com a sala de estar quanto a relação de “estar na sala de estar”. Da
mesma forma, dizer que nada instancia a propriedade de “ser um elefante no
meu estúdio agora” é dizer que tudo instancia a propriedade de "não ser um
elefante em meu estúdio agora”. Isso é essencialmente ideia de Platão, parece-
me.
Platão identificou fortemente a verdade com a realidade; o que é verdade
é o que é, o que é real. Suas formulações variam um pouco, mas elas sempre
sugerem essa correlação estrita entre verdade e ser. Às vezes a sugestão é de
uma identificação entre o Ser e a Verdade, diretamente. Outras vezes sua
sugestão vai mais nas linhas de um acordo ou relação de compatibilidade. Isto
é o que o levou a um exame detalhado do problema da falsidade. A falsidade é
uma atribuição de realidade ao que não é real? Seria a falsidade possível então?
Sua conclusão foi a de que o não-ser que está envolvido na falsidade não é uma
expressão do que não é real, em sentido literal, e não torna a falsidade
impossível ou sem sentido.
Os exemplos de Platão de uma afirmação verdadeira e de uma afirmação
falsa são: "Teeteto está sentado" e "Teeteto está voando". Em ambos os casos
há um sujeito (Teeteto). Além disso, em ambos os casos propriedades que são
atribuídas a sujeitos no mundo normalmente (sentado, voando) estão
envolvidas. O primeiro enunciado é verdadeiro, porque afirma coisas de Teeteto
que são (sentando) como são - Teeteto está sentado. A segunda afirmação é
falsa porque afirma sobre Teeteto coisas que são (voando) como elas não são -
Teeteto não está voando. O não-ser que está envolvido na falsidade do
enunciado pode ser pensado como uma falta de ajuste (ou combinação) de
Teeteto com a propriedade “voar”. Esta falta de ajuste é algo, no entanto, porque
pode ser expressa pela afirmação de que Teeteto não está voando, e "não voar"
é uma propriedade “real” (que pode ser atribuída a sujeitos no mundo). Segundo
essa abordagem, a falsidade da afirmação de que Teeteto está voando é
explicada pela verdade da afirmação de que Teeteto não está voando.
A solução de Platão pressupõe que a descrição feita por afirmações se
devam às conexões entre os vários termos (singular e geral) que compõem a
afirmação com aspectos da realidade2. A afirmação de que Teeteto está sentado
descreve a realidade no sentido em que diz do que é (Teeteto, sentado) que é
assim e assim. O assim e assim é a participação de Teeteto na forma “Sentado”,
que é de fato um aspecto da realidade - e uma característica do Teeteto. Assim,
o enunciado descreve o que é como é e é verdadeiro. A afirmação de que
Teeteto está voando também descreve a realidade no sentido em que diz do que
é (Teeteto, voando) que é assim e assim. O assim e assim é a participação de
Teeteto na forma “voando”, que neste caso não é um aspecto da realidade.
Assim, o enunciado descreve o que é como não sendo e é, portanto, falso. Mas
a “não participação” de Teeteto na forma “voando” não é uma falta, um nada; é,
sim, uma participação na forma “Outro-que-voando”. A forma “outro-que-
voando”, por sua vez, é uma combinação da forma “Alteridade” com a forma
“voando”. Este é um aspecto da realidade também e uma característica do
Teeteto; assim, o que explica a falsidade da afirmação é uma característica da
realidade3. Em termos de estados de coisas, podemos dizer que a verdade da

2
Estamos usando em nosso curso a premissa de que apenas a parte nominal (o nome
próprio ou termo singular) se conecta ao mundo.
3
I don’t mean to be giving a textual account of this difficult and controversial matter here,
but merely my understanding of Plato’s view. In Plato’s Theory of Knowledge Cornford translates
the passage in Sophist 263a-d as follows:
Estrangeiro. I will make a statement to you, then, putting together a thing with an action
by means of a name and a verb. You are to tell me what the statement is about.
Teeteto. I will do my best.
Estrangeiro. ‘ Teeteto sits’ – not a lengthy statement, is it?
Teeteto. No, of very modest length.
Estrangeiro. Now it is for you to say what it is about – to whom it belongs.
Teeteto. Clearly about me: it belongs to me.
Estrangeiro. Now take another.
Teeteto. Namely -?
Estrangeiro. ‘ Teeteto (whom I am talking to at this moment) flies.
Teeteto. That too can only be described as belonging to me and about me.
Estrangeiro. And moreover we agree that any statement must have a certain character.
Teeteto. Yes.
Estrangeiro. Then what sort of character can we assign to each of these?
Teeteto. One is false, the other true.
Estrangeiro. And the true one states about you the things that are as they are.
Teeteto. Certainly.
afirmação de que Teeteto está sentado está no estado de coisas que é a
participação de Teeteto na forma “voando”, e que a falsidade da afirmação
“Teeteto está voando” está no estado de coisas que é a participação de Teeteto
na forma “outro-que-voando”. Usando a terminologia das propriedades, pode-se
dizer que o primeiro estado de coisas consiste na combinação do Teeteto com a
propriedade "sentado", e o segundo estado de coisas consiste na combinação
do Teeteto com a propriedade "não voando".
Além da questão de saber se essa é uma interpretação correta de Platão,
pelo menos em linhas gerais, essa abordagem do problema da falsidade e da
negação parece-me basicamente coerente. Ele pode ser questionado por várias
razões, no entanto. Para começar, há o apelo a uma ontologia de formas, ou
propriedades, e os problemas que comumente estão associados a essa
abordagem filosófica. Em segundo lugar, há a questão da legitimidade de tais
propriedades como "não voar". Em terceiro lugar, há uma questão de saber se
esse tipo de abordagem funciona, em geral, para enunciados que possuam uma
estrutura mais complexa. Comentarei alguns desses pontos mais tarde, mas
primeiro há ainda a questão de como alguém deve expressar a relação entre o
falso enunciado e a realidade em termos de estados de coisas. Embora se possa
dizer que o primeiro enunciado identifica o estado de coisas da participação de
Teeteto em “voando”, ou de Teeteto ter a propriedade "sentado", não se pode
dizer corretamente que a segundo enunciado identifica o estado de coisas da
participação de Teeteto em “outro-que-voando”, ou de ter a propriedade "não
voando".
No livro "A Filosofia do Atomismo Lógico", Russell assumiu a posição
segundo a qual uma afirmação verdadeira aponta para a realidade e que uma
afirmação falsa aponta para longe da realidade. Segundo Russell, é o estado de
coisas (ou fatos) o sentar de Teeteto que faz a afirmação de que Teeteto está
sentado verdade; o enunciado aponta para esse estado de coisas é, portanto,

Estrangeiro. Whereas the false statement states about you things different
from the things that are.
THEAET. Yes.
STR. And accordingly states things that are-not as being.
THEAET. No doubt.
STR. Yes, but things that exist, different from things that exist in
your case. For we said that in the case of everything there are many
things that are and also many that are not.
THEAET. Quite so
STR. So the second statement I made about you . . . must be about
something.
THEAET. Yes.
STR. And if it is not about you it is not about anything else.
THEAET. Certainly.
STR. And if it were about nothing, it would not be a statement at
all; for we pointed out that there could not be a statement that was
a statement about nothing.
THEAET. Quite true.
STR. So what is stated about you, but so that what is different is
stated as the same or what is not as what is – a combination of verbs
and names answering to that description finally seems to be really
and truly a false statement.
THEAET. Perfectly true.
Although I don’t agree with Cornford’s interpretation of the passage
(Op. Cit., pp. 312-317), he also discusses it in terms of states of affairs.
verdadeiro. Novamente pode parecer natural dizer que é esse mesmo estado de
coisas que faz a afirmação de que Teeteto está voando falso, e que ele também
tornaria falso um número indefinido de outros enunciados, todos apontando para
longe da realidade - por exemplo, as afirmações de que Teeteto está correndo
(é um corrente), ou de que ele está subindo as escadas, etc. Mas o que dizer da
afirmação de que Teeteto não está voando? Que estado de coisas torna esse
enunciado verdadeiro? De acordo com a minha formulação de que a conexão
entre um enunciado e a realidade seria de descrição da segunda pela primeira,
não poderíamos dizer, com efeito, que a afirmação de que Teeteto não está
voando aponta para o fato de que Teeteto esteja sentado.
Pelas razões expostas acima, Russell, do mesmo modo como Platão, é
levado à visão de que aquilo que é expresso em um enunciado negativo não é
uma falta de realidade, mas um aspecto da realidade; ele postula o fato negativo
de Teeteto não voar. Isto é, ele rejeita a ideia de que é uma relação, ou falta de
relação, da afirmação de que Teeteto está voando com o fato de Teeteto estar
sentado, o que faz dessa afirmação uma afirmação falsa. Sua visão é que cada
afirmação aponta para ou para longe de um fato positivo ou negativo. A
afirmação de que Teeteto está sentado aponta para o fato positivo do estar
sentando de Teeteto; a afirmação de que Teeteto não está sentado aponta para
longe desse mesmo fato. A afirmação de que o Teeteto não está voando aponta
para o fato negativo de Teeteto não voar, e a afirmação de que Teeteto está
voando para longe deste fato negativo.
A preocupação de Russell era exatamente igual à de Platão; analisar
falsidade em termos de realidade. Pode-se realmente interpretar o fato negativo
de Teeteto 'não voando como a combinação de Teeteto com a propriedade "Não
voar". Russell não faz isso, e não dá nenhuma análise real da estrutura dos fatos
negativos, mas a este respeito as soluções são bastante semelhantes - e Russell
ficou tão irritado com seus fatos negativos quanto Platão ficou sobre suas
combinações “Outro-que-não-X”.
Com relação à questão que estamos discutindo, no entanto, o problema
é mais como apontar para longe de um fato. O que é apontar para longe de um
fato? Como compreender essa metáfora? Afirmações parecem estar
direcionados para a realidade ao tentarem descrevê-la de alguma forma; dizer
que afirmações falsas apontam para longe da realidade se parece com não dizer
nada. Como uma afirmação aponta para longe da realidade? Poderíamos dizer
que a descrição "o elefante em meu estudo agora" aponta para longe da
realidade? Se eu confundir uma rocha à distância com um elefante e disser "isso
é um elefante”, estou apontando para longe da realidade? A menos que se dê
mais conteúdo específico para a noção de apontar para fora, isso parece ser
uma mera solução terminológica para o problema.
Pode parecer mais natural entender a ideia de Platão como uma
formulação da teoria da verdade como correspondência. Pode-se dizer que a
verdadeira afirmação descreve a realidade como ela é, porque a afirmação
corresponde ao estado atual do mundo, enquanto que o enunciado falso
descreve o mundo como ele não é, porque não coincide com o estado do mundo.
A análise da falsidade de Platão ainda seria válida e mostraria que isso não
envolve um apelo à irrealidade (mundo possíveis ou a imaginação). Pode-se
levantar perguntas sobre a natureza da correspondência, no entanto.
A ideia geral da teoria da verdade como correspondência é que umo
enunciadoé verdadeira quando corresponde (ou concorda com) a realidade, e
falsa quando isso não acontece. Essa teoria tenta preservar a concepção original
da verdade como “ser” mudando o fardo da explicação para a noção de
“correspondência”. Mas, como Frege e outros argumentaram, não é de todo
claro que tipo de correspondência está em questão aqui. Uma correspondência
entre o que e o quê? Entre o que o enunciado diz e como o mundo é, seria a
sugestão mais natural de resposta. Se esta é uma relação entre dois “algos”,
porém, então estamos de volta ao problema de especificar o que na realidade
corresponde (ou não) ao conteúdo (ou descrição) do enunciado, qual é esse
conteúdo e o que é a noção apropriada de “correspondência”. Acho que a visão
da verdade como correspondência é bastante compatível com a visão da
verdade como identificação, e que a ideia de Frege de que a verdade é uma
forma de denotação, que é uma forma de identificação, é uma interpretação
natural da noção de “correspondência”, se alguém pensa em declarações como
descrições - como Frege faz em "Sobre o sentido e a referência".
Para Frege, ambos enunciados, os verdadeiros e os falsos, denotam, e o
que eles denotam são os valores verdadeiros o verdadeiro e o falso - que são
objetos lógicos. Eu vejo uma conexão bem próxima entre as ideias de Frege e
de Platão. Para Frege, a afirmação de que Teeteto está voando também envolve
um objeto, Teeteto, um conceito (ou propriedade), voar e uma falta de ajuste
entre o objeto e o conceito - o objeto não se enquadra no conceito. Esta falta de
ajuste entre objeto e conceito é aquilo que Frege se refere a circunstância de
que a afirmação é falsa e isso que ele chama de “o Falso”. Da mesma forma, o
ajuste entre Teeteto e sentado, ou seja, a circunstância de que Teeteto se
enquadra no conceito sentado, é transformada por Frege em um objeto que ele
chama de “a verdade”. Declarações verdadeiras e falsas referem-se à realidade,
mas em ambos os casos sua determinação como verdadeira e falsa pela
realidade é interpretada “globalmente” por Frege, com todas os enunciados
verdadeiros denotando O Verdadeiro e todas as falsas denotando O Falso.
Esta identificação global de todas as condições nas quais as sentenças
verdadeiras são verdadeiras com O Verdadeiro, e vice-versa é bastante
estranha, e novamente tem a cara de uma solução meramente terminológica.
Mesmo assim, Frege sustentou que os enunciados, verdadeiros ou falsos, não
poderiam se referir a aspectos isolados da realidade; ele argumentou que sua
conexão com a realidade deve ser, por assim dizer, in toto. No entanto, Frege
sustentou que seria possível discernir no caso de cada enunciado verdadeiro ou
falsa quais características específicas da realidade que estariam envolvidas em
sua verdade ou falsidade. Isto é um característica do juízo, que conecta o sentido
expresso pelo enunciado (o pensamento) com seu valor de verdade.
A meu ver, portanto, a análise de Frege sobre a verdade e a falsidade não
é longe daquela de Platão e Russell. Acho também que se pode aceitar a
abordagem denotacional de Frege sobre a conexão entre afirmações e a
realidade sem comprometer-se com os valores da verdade; isto é, pode-se
combinar a visão de Frege da verdade como denotação com a visão de Russell
da verdade em termos de fatos ou estados de coisas.
Isso não quer dizer que não existam diferenças fundamentais nas
posições de ambos os filósofos. Por um lado, há o argumento de Frege de que
não é possível tratar os aspectos específicos da realidade que contribuem para
a verdade de um enunciado como uma unidade ontológica; algo como um fato
russeliano, por exemplo. Comentarei este argumento e suas ramificações um
pouco mais tarde. Por outro lado, Russell tinha argumentos no sentido de que
não é possível tratar a verdade como uma forma de denotação. Russell
sustentava que, se uma declaração verdadeira denotasse um fato, então uma
declaração falsa não denotaria nada e seria absurda - um mero ruído. Esta é
uma versão do problema do não-ser de Platão novamente, e é uma das
principais razões para a concepção Russelliana da verdade e da falsidade como
um apontamento ou afastamento dos fatos. O argumento de Russell de que, se
a verdade fosse uma forma de denotação, então enunciados falsos seriam sem
sentido, reflete outro desacordo importante entre Frege e Russell sobre o
conteúdo de afirmações.
Para Frege, um enunciado expressa um pensamento objetivo, que é o
seu sentido. Um sentido, em geral, é o que contém um modo de apresentação.
Um objeto pode ser apresentado de várias maneiras por meio de suas
propriedades e suas relações com outros objetos, e cada maneira de apresentá-
lo é um sentido dele. Mas Frege também sustentou que um sentido não precisa
ser um sentido de alguma coisa, e ilustra isso com nomes e descrições como
"Odysseus" e "a série que converge menos rapidamente”. Uma sentença que
contém termos sem denotação pode expressar um sentido, mas não é nem
verdadeira nem falsa. A explicação para isso é que o sentido expresso por uma
sentença (o pensamento expresso por ela) depende somente dos sentidos
expressos por suas partes e não de suas denotações. Uma vez que os sentidos
são parte da realidade para Frege, mesmo o conteúdo objetivo de enunciados
que não são verdadeiros nem falsos são explicados inteiramente apelando-se a
realidade.
Russell rejeita a distinção de Frege entre sentido e denotação e seu
tratamento de sentenças contendo termos não denotativos é bastante diferente.
Mas se alguém olhar para a solução de Russell em termos de propriedades,
notará que ela também é uma solução ontológica. A afirmação “o atual rei da
França é careca” é falsa, de acordo com Russell, precisamente porque nenhum
particular instancia exclusivamente a propriedade de ser atualmente um rei da
França. Isso significa que o enunciado teria de ter um tema, um sujeito lógico,
mas esse tema ou sujeito lógico não poderia ser um suposto rei atual da França,
porque não existe uma coisa que possua a propriedade de ser o atual rei da
França. Se o sujeito desse enunciado fosse o que quer que fosse nomeado pela
descrição "o atual rei da França ", então não haveria sujeito e o enunciado seria
sem sentido. Para Russell esse enunciado não é sem sentido (absurdo); ele é
claramente falso.
Claro, isso não resolve o que fazer com enunciados contendo nomes não
denotativos em vez de descrições. Como se analisa o enunciado “Pégaso não
existe”, ou a afirmação de que Pégaso está voando? Assumindo que estes
enunciados dizem algo (não são absurdos), o que a maioria das pessoas
tenderia a concordar, a questão é se esses enunciados são verdadeiros, falsos
ou nenhum dos dois casos.
Para Russell, a primeira afirmação é verdadeira e a segunda falsa. Mas o
que a primeiro enunciado diz? Se nós acreditarmos que está negando a
existência de Pégaso, parece que voltamos ao problema do não-ser; ao que
estamos negando existência? Por outro lado, não parece existir uma propriedade
sobre a qual estaríamos negando fosse unicamente instanciada. A sugestão de
Russell era que talvez não parecesse, mas, de fato, existe tal propriedade. Um
nome próprio significa ou abrevia uma descrição definida, e o que estamos
negando é que a propriedade (ou combinação das propriedades) envolvidas na
descrição seja unicamente instanciada. Assim, se "Pégaso" abrevia "o cavalo
alado capturado por Bellerophon", a afirmação de que Pégaso não existe nega
que a propriedade de ser um cavalo alado capturado por Bellerophon seja
instanciada de forma única. Assim sendo, a afirmação é verdadeira. E
precisamente porque a propriedade não é unicamente instanciada, Russell
mantém que a afirmação de que Pégaso está voando é falsa.
Mas há dificuldades com essa abordagem. A ideia de que nomes
abreviam descrições definidas tem consequências indesejáveis e parece muito
improvável que se enquadre na prática linguística atual. Uma primeira
consequência é que, uma vez que a tese se aplica a todos os nomes, não apenas
nomes que não denotam, isso implica que quando eu digo que Russell era um
lógico, eu não estou falando sobre Russell, mas sobre alguma propriedade ou
propriedades (que podem ou não individualizar Russell). Isso parece muito
pouco plausível.

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