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O Sofista de Platão

Trecho sobre o problema do Falso


[236 – 239] e [262 – 263]
Trad. Jorge Paleikat & João Cruz Costa
Platão. Col. Os Pensadores.
São Paulo: Abril Cultural
1983

ESTRANGEIRO Dele, pois, já nos vem o testemunho.


- É que, realmente, jovem feliz, Entretanto, a própria afirmação o
nos vemos frente a uma questão extre- testemunharia mais claramente, por
mamente difícil; pois, mostrar e parecer pouco que a submetêssemos à prova.
sem ser, dizer algo sem, entretanto, dizer Essa, pois, é que devemos examinar
com verdade, são maneiras que trazem desde logo, se nada tiveres a opor.
grandes dificuldades, tanto hoje, como TEETETO
ontem e sempre. Que modo encontrar, na - Minha opinião será a que tu quiseres
realidade, para dizer ou pensar que o falso Quanto à discussão; cuida tu mesmo da
seja real sem que, já ao proferí-Io, nos melhor maneira de conduzi-Ia e
encontremos enredados na contradição? prossegue; pelo caminho escolhido, eu
Na verdade, Teeteto, a questão é de uma te seguirei.
dificuldade extrema. ESTRANGEIRO
TEETETO Por quê? - Pois bem, comecemos, Dize-me:
atrever-nos-Íamos a proferir de uma ou
ESTRANGEIRO outra maneira o que absolutamente não
- A audácia de uma tal afirmação é é?
supor o não-ser como ser; e, na TEETETO
realidade, nada de falso é possível sem - Como haveríamos de fazê-Io?
esta condição. Era o que, meu jovem, ESTRANGEIRO
já afirmava o grande Parmênides, tanto - Sem, pois, qualquer espírito de
em prosa como em verso, a nós que discussão ou de brincadeira, suponha-
então éramos jovens: "Jamais obrigarás mos que, ponderada seriamente a ques-
os não-seres a ser; Antes, afasta teu tão, alguém que nos ouve tivesse que
pensamento desse caminho de indicar a que objeto se deve aplicar este
investigação." nome de "não-ser"; sabe você que tipo
de objeto ele identificaria, como resposta - Pois, e com isto concordarás,
a que réplica ele daria ao questionador? este “algo” quer dizer precisamente “um”
TEETETO e “alguns”, quer dizer, ou dois ou vários.
- Tua pergunta é difícil e, para um TEETETO
espírito como o meu, diria que é quase - Como não concordar?
completamente insolúvel. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - E, inevitavelmente, quem não
- Em todo o caso, uma coisa é diz alguma coisa, ao que parece,
certa: não se poderia atribuir o não-ser absolutamente, nada diz,
a qualquer ser que se considere. TEETETO
TEETETO - Sim, incontestavelmente,
- Como haveríamos de fazê-Io? ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - Não será mesmo necessário evitar essa
- Ora, se não podemos atribuí-Io concessão, pois que nada dizer é não
ao ser, seria igualmente de todo incorreto dizer? Ao contrário, não será caso de
atribuí-Io ao “algo”. afirmar que o esforçar-se por enunciar o
TEETETO não-ser é nada dizer?
- Como não? TEETETO
ESTRANGEIRO - Aí está quem haveria de pôr um
- Ao que creio, está também claro a nós, ponto final às dificuldades da questão.
que este vocábulo, “algo”, se aplica, em ESTRANGEIRO
todas as nossas expressões, ao ser. Com - Não te exaltes demasiadamente
efeito, é impossível formulá-Ia só, nu, ainda; a questão subsiste, jovem feliz, e a
despido de tudo o que tenha o ser, não é? dificuldade que permanece é a maior e a
TEETETO primeira de todas. Na realidade, ela
- Sim, é impossível. reside no próprio princípio.
ESTRANGEIRO TEETETO
- Considerando a questão dessa forma - Que queres dizer? Explica-te sem
tu concordarás comigo que dizer “algo” é tergiversar.
dizer inevitavelmente pelo menos "um ESTRANGEIRO .
algo”. - Ao ser, creio, pode atribuir algum
TEETETO outro ser.
- Sim. TEETETO
ESTRANGEIRO - Sem dúvida alguma.
ESTRANGEIRO ., desta vez, a unidade?
- Mas poderíamos afirmar como TEETETO
possível que um ser jamais fosse - Manifestamente.
atribuído não-ser? ESTRANGEIRO
TEETETO -Ora, afirmamos que não é justo
- Como afirmá-Io? nem correto pretender atribuir ser e não-
ESTRANGEIRO - Ora, para nós, o ser.
número tem existência. TEETETO
TEETETO - É bem verdade.
- Sim, se há algo com direito a ESTRANGEIRO
esse título é precisamente ele. - Compreendes então que não se
ESTRANGEIRO poderia, legitimamente, nem pronunciar,
- Evitemos, pois, até mesmo a nem dizer, nem pensar o não-ser em si
tentativa de transportar para o não-ser o mesmo; que, ao contrário, ele é
que quer que seja do número, pluralidade impensável, inefável, impronunciável e
ou unidade. inexprimível?
TEETETO TEETETO
- Ao que parece, nós er(aríamos - Perfeitamente.
se assim tentássemos: a razão nos im- ESTRANGEIRO
pede de fazê-Io. - Estaria eu errado, há pouco, ao
ESTRANGEIRO dizer que iria enunciar a maior das
- Como então enunciar totalmente dificuldades a ele relativas?
ou mesmo apenas conceberem TEETETO
pensamento os não-seres ou o não-ser, - Como? Haverá outra, mais grave
sem servir-nos do número? que ainda nos falte enunciar?
TEETETO ESTRANGEIRO
- Explica-te. - E então, surpreendente jovem, só do
ESTRANGEIRO enunciado das- frases precedentes, não
- Ao falarmos dos não-seres não percebes em que dificuldade o não-ser
tentamos aí aplicar o número plural? coloca mesmo a quem o refuta, de modo
TEETETO que tentar refutá-Io é cair em inevitáveis
- Indubitavelmente. contradições?
ESTRANGEIRO TEETETO
- E ao falar do não-ser, de aplicar, - Que disseste? Explica-te mais
claramente. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO - Ora, nós afirmamos que e Impossível a
- Não é em mim que é preciso quem fale com rigor, defini-lo, seja como
procurar esta maior clareza. Eu que, há uno ou como múltiplo, e mesmo
pouco e ainda agora, afirmei como absolutamente impossível de falar dele,
princípio que o não-ser não deve parti- pois, ainda aqui, essa maneira de falar
cipar nem da unidade nem da plural i- lhe aplicaria a forma de unidade.
dade, já ao afirmá-Io eu o disse uno; pois TEETETO
disse "o não-ser". Compreendes - Perfeitamente.
certamente.
TEETETO - Sim.
ESTRANGEIRO
- Instantes antes afirmava ainda
que ele é impronunciável, inefável e
inexprimível. Estás seguindo?
TEETETO
- Sim, como não te seguir?
ESTRANGEIRO
- Tentar aplicar-lhe este "é" não é
contradizer as minhas proposições
anteriores?
TEETETO
- Provavelmente.
ESTRANGEIRO
- E então? Aplicar-lhe não era
dirigir-me, nele, a uma unidade?
TEETETO
- Sim.
ESTRANGEIRO
- E mais: dizendo-o inexprimível,
inefável, impronunciável, eu o expressava
como unidade.
TEETETO
- Como não reconhecê-Io?
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO

- E necessário ter coragem, - Se todos combinam uns com os


Teeteto, por pequeno que seja o outros ou nenhum; ou se uns se prestam
avanço que outras não, e que a uma combinação e outros não.
possamos, a cada passo, progredir.
Desencorajando-nos diante desses TEETETO
primeiros obstáculos, que poderíamos
contra os demais já não avançando - A última hipótese é claramente
sequer um passo, ou mesmo sendo melhor: uns se prestam a ela e outros
impelidos para trás? Como diz o não.
provérbio um tal espírito, fraco, nunca
tomará uma cidade. Já que, por ora, ESTRANGEIRO
meu caro, levamos a termo a
demonstração que dizes, a mais forte - Eis, talvez, o que entendes por
muralha está vencida: o resto será, de isso: aqueles que, ditos em ordem, fazem
agora em diante, fácil e de menor sentido, combinam; os outros, cuja
importância. seqüência não forma sentido nenhum,
não combinam.
TEETETO
TEETETO
- Disseste bem.
- Como assim? Que queres dizer?
ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO
-Elucidemos pois, de início, como
dizíamos há pouco, o discurso e a - O que julguei teres no espírito, ao
opinião, para verificar mais claramente concordares comigo. Possuímos, na
se o não-ser a eles se prende, ou se verdade, para exprimir vocalmente o ser,
são sempre verdadeiros, um e outro, e dois gêneros de expressões.
jamais falsos.
TEETETO
TEETETO
- Quais?
- Sim.
ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO
- os nomes e os verbos como os
- Prossigamos, a exemplo do que chamamos.
dissemos das ideias e das letras, e do
mesmo modo refaçamos esta pesquisa, TEETETO
tomando por objetos os nomes. Este é
um ponto de vista, no qual se deixa - Explica tua distinção.
entrever a solução que procuramos.
ESTRANGEIRO
TEETETO
- O que exprime as ações, nós
- Que questão proporás, pois, a chamamos verbo.
propósito desses nomes?
TEETETO
- Sim. cavalo, e todos os demais nomes que
denominam sujeitos executando ações,
ESTRANGEIRO há, ainda aqui, uma série da qual jamais
resultou discurso algum; pois, nem nesta,
- Quanto aos sujeitos que executam nem na precedente, os sons proferidos
essas ações, o sinal vocal que a eles se indicam, nem ação, nem inação, nem o
aplica é um nome. ser, de um ser, ou de um não-ser, pois
não unimos verbos aos nomes. Somente
TEETETO unidos haverá o acordo e, desta primeira
combinação nasce o discurso que será o
- Perfeitamente. primeiro e o mais breve de todos os
discursos.
ESTRANGEIRO
TEETETO
- nomes apenas, pronunciados uns
depois dos outros, jamais formam um - Que entendes com isso?
discurso, assim como, verbos
pronunciados sem o acompanhamento de ESTRANGEIRO
algum nome.
- Ao dizer: o homem aprende não
TEETETO reconheces ali um discurso, o mais
simples e o primeiro?
- Eis o que eu não sabia.
TEETETO
ESTRANGEIRO
- Para mim, sim.
- É que certamente tinhas outra
coisa em vista, dando-me, há pouco, teu ESTRANGEIRO
assentimento; o que eu queria dizer era
que uma mera seqüência de nomes não -É que, nesse esse momento, ele
formam um discurso. nos dá alguma indicação relativa a coisas
que são, ou se tornaram, ou foram, ou
TEETETO serão; não se limitando a nomear, mas
afirmando algo, entrelaçando verbos e
- O que você quer dizer? nomes. Assim, dissemos que ele discorre,
e não somente que nomeia, e, a esse
ESTRANGEIRO entrelaçamento, demos o nome de
discurso. '
- Por exemplo, anda, corre, dorme,
e todos os demais verbos que significam TEETETO
ação; mesmo dizendo-os todos, uns após
outros, nem por isso formam um discurso. - Justamente.

TEETETO ESTRANGEIRO

- Naturalmente. - Assim, pois, do mesmo modo que,


entre as coisas, umas concordam
ESTRANGEIRO mutuamente, outras não; assim, também,
nos sinais vocais, alguns deles não
- E se dissermos ainda: leão, cervo, podem concordar, ao passo que outros,
por seu mútuo acordo, criaram o discurso. TEETETO

TEETETO - Se puder, assim farei.

- Perfeitamente exato .. ESTRANGEIRO

ESTRANGEIRO - Teeteto está sentado; será um


longo discurso?
- Mais uma pequena observação,
TEETETO ,
TEETETO
- Não; aliás, bem curto.
- Qual?
ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO
- Cabe-te, pois, dizer a propósito de
- O discurso, desde que ele é, é quem e sobre o que ele discorre.
necessariamente um discurso sobre
alguma coisa; pois, sobre o nada, é TEETETO
impossível haver discurso.
- Evidentemente, a propósito de
TEETETO mim e sobre mim.

- Certamente. ESTRANGEIRO

ESTRANGEIRO - E este?

- Não será necessário, também, que TEETETO


ele possua uma qualidade determinada?
- Qual?
TEETETO
ESTRANGEIRO
- Sem dúvida.
- Teeteto, com quem agora con-
ESTRANGEIRO verso, voa.

- Tomemos, pois, a nós mesmos, TEETETO


por objeto de nossa observação.
- Aqui, ainda, só há uma resposta
TEETETO possível: a propósito de mim e sobre
mim.
- É o que devemos fazer.
ESTRANGEIRO.
ESTRANGEIRO
- Mas cada um desses, discursos
- Vou pronunciar diante de ti um tem, necessariamente, uma qualidade.
discurso, unindo um sujeito a uma ação
por meio de um nome e de um verbo; e tu TEETETO
dirás sobre o que é esse discurso.
- Sim .
ESTRANGEIRO - Assim, o último discurso que fiz a
teu respeito deve, em primeiro lugar, e
- Que qualidade devemos, pois, tendo em vista o que definimos como a
atribuir a um e outro? essência do discurso, ser, necessaria-
mente, um dos mais breves.
TEETETO
TEETETO
- Poderemos dizer que um é falso,
outro verdadeiro. - Pelo menos é o que resulta de
nossas conclusões de há pouco.
ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO
- Ora, aquele que, dentre os dois, é
verdadeiro, diz, sobre ti, o que é, tal como - Deve, em segundo lugar, referir-se
é. a alguém.

TEETETO TEETETO

- Claro! - Certamente.

ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO

- E aquele que é falso diz outra - Ora, se não se refere a ti, não se
coisa que aquela que é. refere, certamente, a ninguém mais.

TEETETO TEETETO

- Sim. - Evidentemente.

ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO

- Diz, portanto, aquilo que não é. - Não discorrendo sobre pessoa


alguma, não seria então, nem mesmo um
TEETETO discurso. Na verdade demonstramos que
é impossível haver discurso que não
- Mais ou menos. discorra sobre alguma coisa.

ESTRANGEIRO -TEETETO

- Ele diz, pois, coisas que são, - Perfeitamente exato.


outras que aquelas que são a teu
respeito; pois, como dissemos, ao redor ESTRANGEIRO
de cada objeto há, de certo modo, muitos
seres e muitos não-seres. - Assim, o conjunto formado de
verbos e de nomes, que enuncia, a teu
TEETETO respeito, o outro como sendo o mesmo, e
o que não é como sendo, eis, exata-
- Certamente. mente, ao que parece, a espécie de con-
junto que constitui, real e verdadeira-
ESTRANGEIRO mente, um discurso falso.
TEETETO - Sabemos, além disso, que há,
no discurso, o seguinte ...
- É a pura verdade.
TEETETO
ESTRANGEIRO
- O quê?
- E então? Não é evidente, desde já,
que o pensamento, a opinião, ESTRANGEIRO
imaginação, são gêneros suscetíveis, em
nossas almas, tanto de falsidade como de - Afirmação e negação.
verdade?
TEETETO
TEETETO
- Sim, sabemos.
- Como?
ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO
- Quando, pois, isto se dá na
- Compreenderás mais facilmente a alma, em pensamento, silenciosa-
razão se me deixares explicar em que mente, haverá outra palavra para
eles consistem e em que diferem um dos designá-Io além de opinião?
outros.
TEETETO
TEETETO
- Que outra palavra haveria?
- Explica.
ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO
- Quando, ao contrário, ela se
- Pensamento e discurso são, pois, apresenta, não mais espontaneamente,
a mesma coisa, salvo que é ao diálogo mas por intermédio da sensação, este
interior e silencioso da alma consigo estado de espírito poderá ser correta-
mesma, que chamamos pensamento. mente designado por imaginação, ou
haverá ainda outra palavra?
TEETETO
TEETETO
- Perfeitamente.
- Nenhuma outra.
ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO
- Mas a corrente que emana da
alma e sai pelos lábios em emissão - Desde que há, como vimos,
vocal, não recebeu o nome de discur- discurso verdadeiro e falso, e que, no
so? discurso, distinguimos o pensamento
que é o diálogo da alma consigo
TEETETO mesma, e a opinião, que é a conclusão
do pensamento, e esse estado de
- Éverdade. espírito que designamos por
imaginação, que é a combinação de
ESTRANGEIRO sensação e opinião, é inevitável que,
pelo seu parentesco com o discurso,
algumas delas sejam, algumas vezes,
falsas.

TEETETO

- Naturalmente.

ESTRANGEIRO

- Percebes como descobrimos a


falsidade da opinião e do discurso bem
mais prontamente do que esperáva-
mos, quando, há bem pouco, receá-
vamos perder o nosso trabalho, em-
preendendo tal pesquisa?

TEETETO

- Sim, percebo.

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