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Clínica da normalidade *

GRENOBLE, 25 DE JANEIRO DE 2004

Vou, então, necessariamente, prestar hol)1enagem à qualidade e à


gravidade de seus trabalhos, o que vem para mim como uma respos-
ta at~nta e amistosa ao que pode afirmar no livro que os retém e não
apenas vocês, devo dizer. 1 Eu gostaria então, talvez, de aproveitar
essa ocasião para precisar com vocês alguns pontos.
Eu faria, se me permitem, uma rápida ressalva quanto ao título
de suas jornadas. Não estou certo, com efeito, de que se possa falar
'1
de formas não estruturadas do sintoma. Nem que fosse porque o
sintoma se basta a si mesmo para introduzir, de saída, o que vai ftm-
cionar como limite; é certamente uma de suas funções e, ao mesmo
tempo, eu diria, retroativamente, se fosse necessário, organizar uma
estrutura lá onde podíamos ter o sentimento de que ela faltasse. Por
outro lado, o fato de sermos sensíveis a todas essas mudanças que eu
evoco
. ' das quais. nos
, falamos, não quer dizer
. que entremos no que
sena um a a-estrutura. A estrutura, que estimamos como sendo de- ...r ,j
.
nte na organização psíquica de uma criatura humana, permi-

• Conferê • ·
osmrollJa·ji
· ncia pron unc1a
· da nas jornadas da Association lacanienne mternatwna
· · 1e mtltu
· · la d as
' N..
E - I:ho
. armas estrutu ra das, 1ormas
,, não estruturadas?. - r-
de Freud R. mme sans gravité - jouir à tout prix (Éditions Denoel, Paris, 2002; no Brasil: Cia.
' Iode Janeiro, 2003) . .

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152 CHARLES MELMAN

1
to-me lembrar-lhes que é a da linguagem e is
. d b. 1 . ' so apesar dos p
sos atuais a 10 ogia, que tende, como ciência do . rogres.
. 1· .. , . minante as b
tmr a mgmstlca, e que gostaria de fazer preval ecer o que se ' .u Sti-
relação direta do organismo com seu meio ambie nte. Apesar ria urna
I bém dos progressos na qualidade, na beleza das imagens que nostarn.-
1f propostas, tudo isso só adquire seu valor, só toma s . sao
I . . eu 1ugar, JUsta-
1 mente como tentativa de resolver os impasses , as dific uld ades rrn- .
1 postas por essa estrutura, a da linguagem. Então podemos d.
1 '
1 o fato de assistir, de maneira que pode surpreender, a uma mutação
\· cultural não quer dizer que ao mesmo tempo estejamos soltos assim
\ no espaço e que venha a nos faltar aquilo que continuam sendo os
constrangimentos, certamente os da linguagem; desde que aprecie-
1
\ mos esses modos de defesa coletivos, como eu dizia ainda agora, que
as promoções da biologia e da imaginária podem constituir.
Eu lhes farei observar que a estrutura com a qual pareceria que
i estamos lidando hoje em dia é justamente aquela do Outro em seu
1
' estado, por assim dizer, virgem, ingênuo, inocente, a estrutura da
linguagem antes que a castração venha introduzir aí esse estranho
mecanismo que faz, como vocês sabem, da perda, da amputação do
que haveria de mais caro, a condição do desejo. Mas isso nem sern-
. . d. .. de um produto, urn
pre fu nc1onou assim, esse 1sposmvo; trata-se
ean-Jacques
momento, justamente, da nossa evolução cultural e, como J !
/ , , l dessa re1e·
\ salientou há pouco, a instalação do falo não e separave . da-
fim soc1e
rência que veio do Nome-do-Pai, por exemplo. Mas, en '
i . . ., .
des funcionaram perfeitamente e, alias, contmuam ce
rtamente a
fun·
,., que
. . . . - de frustraça 0
c10nar, orgamzadas sobre os efeitos de pnvaçao ou tração
1·sso a cas
a linguagem é capaz de nos propiciar, sem que por ,., 0 da vida-
seJa. uma cond'1çao
- d etermmante,
· · da manutença doZ hOJ·e
eu d.ma,
. e se pro
Quanto a mim, eu tenderia, portanto, a ver isso qu ,., 0 seL estou
em dia mais como o que seria um retorno a fontes, eu na diria - p~r
. s que eu si·
certamente indo um pouco rápido demais, ma rnos co11 _
. devesse d·ria
1
que não? - pagãs, por exemplo, sem que por isso . Bll
dos hvres- e se
derar que funcionaríamos como elétrons torna terne!lt
Paren
até que, muito pelo contrário, nessa liberdade queª
A PRÁTICA PSICANALÍTI CA HOJE 15 3

a nossa, somos mais servos do que nunca, é bem fácil


coroou - . d . .
dernons rrá-lo. Entao
, vou evitar . ar uma de vidente, isso não é da
nossa esfera, mas e o que posso simplesmente
- dizer para responder
aoque me pareceu esse tom de deploraçao que eu acreditéi perceber
eJTI particular.

oominique Janin Duc: Não foi o tempo todo assim.

Charles Melman: Não foi o tempo todo assim, então peço perdão
por não ter estado aqui nos momentos em que foi alegre. Eu lamen-
to não ter podido compartilhá-los, mas não é porque a posição do
psicanalista talvez esteja mudando que, por isso, ela esteja em vias
de desaparecer. E tudo o que vocês justamente vêem ao redor e o
que funciona também nos ambulatórios, mas igualmente nos con-
sultórios, testemunha exatamente o contrário. E é isso que eu pude
dizer aos nossos amigos belgas, por exemplo, já faz alguns anos -
que o futuro estava diante deles. Por futuro, entendo sua honorável
atividade social.
Então, nada de nostalgia, nada de saudade, 2 não vamos começar
a cantá-la em relação a essas grandes neuroses que foram aquelas \
que permitiram o nascimento da psicanálise, mas das quais estaría-
mos em vias de sair para formas clínicas que, é claro, ainda situamos
muito mal. Por quê? Eu gostaria muito rapidamente, muito sucinta-
mente, de chamar sua atenção para o fato de que aquilo que chamá-
vamos, que continuamos a chamar de nossa normalidade, a norma-
lidade, como dizia corajosamente Lacan por ocasião das suas apre-
sentações de paciente, quando havia um paciente que ele podia cons-
tata • ,·
r que era normal, lhe acontecia de acrescentar: evidentemente e
0
que há de pior. Trata-se de um gracejo aparente, pois enfim, seja-
mos sé · l ·
nos por um instante, isso que chamamos de norma , isso em
que esperamos poder reintroduzir o paciente em sofrimento, que

'N .T, _ saud d


ª e: em português no original.
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vem a nós e que se acha daí apartado isso é


/ , o quê? É
/ como vocês o vêem se desfraldar sob seus olh · 0 lllunct0
/ os. Quero d·12 tal
lo que pelo menos pode parecer sua loucura er naqu·
' sua selva . ,_
crueldade, sua estupidez, as mais explícitas É i geria e S1J
. , . sso o nor111a1 a
ponto de vista podenamos nos permitir esses . · Deqlle
\ . qua1ificativo
considerar como altamente sintomático esse nor J? s Para
\ . . . ma. De que 0
de vista? Sena de um ponto de vista simplesment P nto
e moral? Se.
, um ponto de vista religioso, dizendo "é mesmo O m d · na de
1 A • • , un o, que
da, que decadenc1a, que golpe baixo, que erro"? Claro ue _ qlle-
. 1 , b, q 0 ao. Po.
d emos s1mp esmente, a1 tam em, constatar que nossa d . .
_ , A ependenc1a
em relaçao a estrutura pode fazer com que a vida privad .
. , a, soc1aJ, se
orgamzasse para nos do modo como vemos isto é com es
' , sa cruel-
dade, essa selvageria e esse absurdo. E vou me dedicar a lhes dar
assim uma ilustração muito rápida, na qual, acho, vocês reconhece-
rão o bem-fundado do que estou assinalando.
/. O eu se constitui nesse dispositivo especular que põe i(a) em
) relação, em ligação com i'(a). Daí resulta imediatamente o quero-
l dos vocês experimentam em sua vida cotidiana, o fato de que o en-
contro especular se dá sempre num dispositivo tensionado por um
ideal i(a) e que a partir daí qualquer encontro especular é organiza-
do por essa concorrência, essa agressividade, esse conflito a fim de
saber como é que vai se decidir, de saída, o que está em jogo nesse
encontro, isto é, saber quem é que está ali em posição de ideal, quem
é que está em posição de i'(a). É o mais comum, evidentemente, dos
• assim!
encontros, o encontro elementar, aquele a dois, e mesmo
Chamo a atenção de vocês para isso que é bizarro nesse fato que
- . .( ) entretanto,
mereceria nos interrogar: é que Lacan nao diz z <p O que, d
, , 1"(,)' Nós to 0 5
nos pareceria ser bem mais evidente. Como e que e ª .· ·Jhante,
, O mais bn
seríamos as imagens desse objeto que e decerto oca...
- , . não prov
mas que também é o da <dejeção. E engraçado, isso e seja
nos , homologamos, isso não '-----espanta!
. Entao- s uponharnos qué i(q,),
. omento,se
1(cp), porque acontece que seja i(cp), mas, nesse m rn é ains-
.
isto , se a instância que suporta a qua1·d
e, d dessa image• não te'IJI
I a e
- . 1a
t anc1a c:•1 1ca,
· - o o b"Jeto a, pois
e nao . b em, nesse caso voces

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