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Unitermos: humor; irracionalismo; "Não, por favor, nem tente tual! Prefiro comprar um compu-
abertura de sentidos. me disponibilizar alguma coisa, tador novo a reinicializar o anti-
que eu não quero. Não aceito go. Até porque eu desconfio que
nada que pessoas, empresas ou o problema não seja assim tão
organizações me disponibilizem. grave. Em vez de reinicializar,
Resumo É uma questão de princípios. Se talvez seja o caso de simples-
Este artigo pretende tratar do humor você me oferecer, me der, me mente reiniciar, e pronto.
pela via dos vícios de linguagem, tendo vender, me emprestar, talvez eu
como moldura teórica o pensamento venha a topar. Até mesmo se
Por falar nisso, é bom que
de Sergio Paulo Rouanet. você saiba que eu parei de utili-
você tornar disponível, quem zar. Assim, sem mais nem me-
sabe, eu aceite. Mas, se você nos. Eu sei, é uma atitude um
insistir em disponibilizar, nada tanto quanto radical da minha
feito. parte, mas eu não utilizo mais
Caso você esteja contan- nada. Tenho consciência de que
do comigo para operacionalizar a cada dia que passa mais e
algo, vou dizendo desde já: mais pessoas estão utilizando,
pode tirar seu cavalinho da chu- mas eu parei. Não utilizo mais.
va. Eu não operacionalizo nada Agora eu só uso. E recomendo.
para ninguém. Tampouco Se você soubesse como é mui-
compactuo com quem to mais elegante, também dei-
operacionalize. Se você quiser, xaria de utilizar e passaria a
eu monto, eu realizo, eu aplico, usar.
eu ponho em operação. Se você
Sim, estou me associando
pedir com jeitinho, eu até
à campanha nacional contra os
implemento.Mas, operacionalizar,
verbos que acabam em "ilizar".
jamais.
Se nada for feito, daqui a pouco
O quê? Você quer que eu eles serão mais numerosos do
agilize isso para você? Lamen- que os terminados simplesmen-
to, mas eu não sei agilizar nada. te em "ar". Todos os dias os
Nunca agilizei. Está lá no meu maus tradutores de livros de
currículo: faço tudo, menos marketing e administração
agilizar. Precisando, eu apres- disponibilizam mais e mais ter-
so, eu priorizo, eu ponho na fren- mos infelizes, que imediatamen-
te, eu dou um gás. Mas agilizar te são operacionalizados pela
- desculpe, não posso, acho que mídia, reinicializando palavras
matei essa aula. que já existiam e eram perfeita-
* Psicanalista, membro do CPB, mestre em Outro dia mesmo queriam mente claras e eufônicas.
Comunicação e Cultura Contemporâneas
(FACOM/UFBA) e doutora em Ciências reinicializar meu computador. A doença está tão dissemi-
Sociais (UFBA). Só por cima do meu cadáver vir- nada que muitos verbos hones-
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Ainda sobre o humor, à luz de Freud e Pirandello
tos, com currículo de ótimos ser- Não vou tratar dos modis- É interessante notar que o
viços prestados, estão a ponto mos da língua - tema importan- sentimento do contrário, essen-
de cair em desgraça entre pes- te - mas do humor que se pode cial na disposição humorística
soas de ouvidos sensíveis. De- construir a partir disso. postulada por Pirandello, não
pois que você fica alérgico a Ah, o humor! deixa de estar presente na for-
disponibilizar, como você vai mulação freudiana do desloca-
admitir, digamos, "viabilizar"? É Depois de ter pesquisado e mento do investimento afetivo
triste demorar tanto tempo para escrito sobre o humor em Freud do pólo do desprazer ao pólo do
a gente se dar conta de que e Pirandello, achei que pouca prazer, característico do proces-
"desincompatibilizar" sempre foi coisa teria a dizer sobre isso. Os so do humor. Ao evitar um senti-
um palavrão. dois autores - na aproximação mento que esperávamos como
que fiz deles - dão conta deste inerente à situação, poupando
Precisamos reparabilizar tema de modo tão abrangente um desprazer, isso implica em
nessas palavras que o pessoal e tão profundo, que restaria, ao reconhecê-lo, para podermos
inventabiliza só para menos para mim, muito pouca transpô-lo, ainda que tal proces-
complicabilizar. Caso contrário, coisa a ser dita. Talvez seja útil so possa se dar inconsciente-
daqui a pouco nossos filhos vão lembrá-los do que falava Freud mente.
pensabilizar que o certo é ficar e Pirandello sobre o humor. Mas
se expressabilizando dessa não vou gastar muito tempo com Estive mergulhada, tam-
maneira. Já posso até ouvir as isso, o ensaio sobre o qual me bém, num texto que escrevi so-
reclamações: "Você não vai me refiro está publicado na revista bre o estilo shandiano, analisa-
impedibilizar de falabilizar do Cógito volume 6, de 2004. do brilhantemente por Sérgio
jeito que eu bem quisibiliser". Paulo Rouanet, o qual apresen-
Problema seu. Me inclua fora Mas só para lembrar um tei em outra jornada do Círculo
dessa". pouco o que há em comum en- Psicanalítico da Bahia (publica-
tre eles: para ambos os autores, do na revista Cógito, V. 09- Ano
Esse texto foi escrito por o humor é distinto do cômico, 2008, sob o título "Tristram
Ricardo Freire, publicitário, ar- talvez por ser rebelde; para Shandy: um estilo a se conside-
ticulista do Estadão, em oito de Pirandello, é uma arte de exce- rar para o diálogo entre literatu-
junho de 2007. Não sei se é exa- ção; para Freud, é um talento ra e psicanálise") e que tem
tamente um texto humorístico, raro e precioso; os aspectos muito a ver com humor e as pa-
no sentido dado ao humor por dolorosos da alegria e os risí- lavras. Falar o quê, depois dis-
Pirandello. Talvez seja apenas veis da dor são os pressupos- so tudo?
irônico, crítico. Circulou na tos filosóficos do humorismo,
internet há algum tempo atrás, para Pirandello, que concebe o Mas, evidentemente, penso
muitos de vocês devem tê-lo re- sentimento do contrário. E, para - como psicanalista, adepta da
cebido. Nem sei se está tão atu- Freud, o humor serve para en- teoria da complexidade e da ló-
al assim, mas chama a nossa frentarmos as adversidades da gica paraconsistente como
atenção para a questão dos vida: os afetos dolorosos são paradigmas atuais do conheci-
modismos da língua, dos quais poupados e substituídos pela mento - que não é possível es-
muitas vezes não nos damos atitude humorística. Para am- gotar o que pode ser dito de
conta. Lembram-se do "a nível bos, enfim, a disposição de es- qualquer tema de que se trate,
de?" Até o inevitável "colocar pírito humorístico vem da infeli- por mais que inúmeros autores
uma questão"? Tudo virou ques- cidade dos homens. E, já tenham tratado, com seus
tão, nada de polêmica, assun- finalmente, a natureza do humo- incontáveis e diferentes pontos
to, tema, matéria, controvérsia rismo, para Pirandello, são to- de vista. Sempre faltará algo,
ou simplesmente idéia! No mo- das as ficções da alma, todas para nossa sorte!
mento, o gerundismo está ata- as criações do sentimento e, Então, com muita resistên-
cando a nossa língua, talvez por para Freud, são as ilimitadas cia, fui atrás de outra aborda-
via de traduções mal feitas do espécies que correspondem à gem sobre o humor. É difícil fa-
inglês. natureza do sentimento. lar sobre o humor, tanto quanto
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Denise Maria de Oliveira Lima
preender o ponto de vista do aqui da música popular brasilei- Ou seja, é possível, sem a
outro e refutá-lo, para manipular ra, riquíssima de exemplos de leitura constante dos clássicos
variáveis, para argumentar e composições complexas, ou de e não clássicos da literatura, ter-
contra-argumentar, nas palavras interpretações complexas, mos um linguajar que possa dar
de Rouanet, que acrescenta: como vemos com João Gilber- conta das contradições comple-
"ter acesso a esse código é uma to etc. Bach já foi analisado à luz xas e riquíssimas, próprias de
condição necessária, embora da matemática, suas composi- todos nós? E a última pergunta:
não suficiente, para que o indi- ções melódicas, aparentemen- é possível dizer, com humor, pa-
víduo possa pensar, agir, parti- te simples, são de uma comple- lavras que instigam à abertura
cipar, como ser humano e como xidade que nós, leigos, não de sentidos, em vez de encerrá-
cidadão" (ROUANET, 1987, p. entendemos. Mas não é preci- las em significado estanque e
136). so entender dessa complexida- estéril?
de para apreciarmos a sua mú-
Ou seja, sem o acesso ao
sica.
código elaborado, os indivíduos
dificilmente terão condições Penso que podemos trans-
cognitivas para pensar de um por esse exemplo para a litera-
modo totalizante, que os possi- tura, para a língua. Que pode
bilite a refletir sobre a complexa proporcionar, para todos nós,
sobredeterminação dos fenô- um deleite, um prazer imenso e,
menos, inclusive sobre as con- mais ainda, um questionamento
seqüências desta polêmica. sobre o que traz, para o indiví-
Não se trata, para Rouanet, de duo e à sociedade, aquilo que
manter o indivíduo somente em é elaborado com refinamento,
guetos lingüísticos - talvez ne- sutileza, agudeza, ou seja, atra-
cessários, em certas faixas vés de um complexo código que,
etárias - mas de criarmos con- ao não submergir às elabora-
dições para que todos tenham ções mais fáceis, menos traba-
acesso à língua culta, a usar um lhosas, nos incitam a pensar o
código mais rico, "que lhes per- que nunca havíamos pensado!
mitam estruturar cognitivamente Não sou especialista, mas,
sua própria prática, com vistas mesmo como leiga, achei inte-
a transformá-la". ressante dar destaque a essa
reflexão, já que trabalhamos
Aqui faço uma digressão
com as palavras. Não só as pa-
para lembrar da recente apre-
lavras que ouvimos, escreve-
sentação da Orquestra Sinfôni-
mos ou lemos, mas as palavras
ca do Estado de São Paulo,
que dizemos aos nossos paci-
uma das melhores do mundo.
entes. E aqui tenho uma pergun-
Com sua interpretação sensível,
ta: imersos que estamos em
brilhante, fez com que pessoas
determinada vertente teórica,
como alguns de nós, que não
correríamos o risco de empo-
gostamos muito de Mahler, pas-
brecer nosso vocabulário, ado-
sássemos a vibrar com suas
tando automaticamente expres-
composições! sões do jargão psicanalítico
O código da música dita eru- específico de cada escola?
dita ou clássica é, evidentemen- Mesmo entre nossos pares, que
te, mais complexo e rico do que não ousam perguntar o que sig-
outras composições, ainda que nifica tal ou qual expressão?
bonitas - e não estou falando Apenas a repetem?
FREUD, S. El humor. in: Obras Completa de Sigmund Freud. trad. Luis Lopez-
Ballesteros y de Torres. Madrid: Biblioteca Nuova, 1973.
PIRANDELLO, L. O Humorismo. trad. Davi Macedo. São Paulo: Experimento,
1996.
ROUANET, S. P. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras,
1987.