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Gottlob Frege
Assim como a palavra 'belo' à estética e 'bem' à ética, 'verdade' indica à lógica a direção.
É certo que todas as ciências têm a verdade como fim; mas a lógica ocupa-se dela de um
modo muito diverso. Ela relaciona-se com a verdade um pouco como a física com o peso
ou com o calor. Descobrir verdades é a tarefa de todas as ciências; à lógica cabe discernir
as leis da verdade. A palavra 'lei' é usada em dois sentidos. Quando falamos de leis morais
e civis, temos em mente prescrições que devem ser obedecidas, mas com as quais os
acontecimentos nem sempre estão de acordo. Leis da natureza são o que há de geral no
acontecimento natural, que a elas sempre se conforma. É antes nesse último sentido que
falo de leis da verdade. Claro que não se trata aqui do que ocorre, mas do que é. Das leis
da verdade resultam prescrições para o tomar algo por verdadeiro (Fürwahrhalten), o
pensar, o julgar, o inferir. É assim que também se fala de leis do pensamento. Mas com
isso surge o perigo de se confundirem coisas diferentes. Pode-se entender a expressão
'lei do pensamento' como se fosse ‘lei da natureza’, tendo-se em mente traços gerais do
pensar como ocorrência anímica. Uma lei do pensamento nesse sentido seria uma lei
psicológica. E assim chega-se à opinião de que a lógica trata do processo anímico do
pensar e das leis psicológicas segundo as quais este ocorre. Mas com isso seria mal
interpretada a tarefa da lógica, pois a noção de verdade não obteria o lugar que lhe é
devido. O erro, a superstição, tem as suas causas, tanto quanto o conhecimento correto.
O tomar algo falso por verdadeiro e o tomar algo verdadeiro por verdadeiro dependem de
leis psicológicas. Uma derivação a partir dessas leis e uma explicação de um fenômeno
anímico que resulta em uma opinião não pode jamais substituir uma prova daquilo a que
esse tomar por verdadeiro se refere. Mas não é possível que leis lógicas também tenham
tomado parte nesses processos anímicos? Isso eu não quero contestar. Mas quando se
trata da verdade, só a possibilidade não basta. É possível que também o não-lógico tenha
participado e que ele tenha apartado o processo da verdade. Só podemos decidir sobre
isso após termos chegado a conhecer as leis da verdade; mas então provavelmente
poderemos dispensar-nos da derivação e da explicação do processo anímico, se o que nos
interessa decidir é se o tomar por verdadeiro em que ele resulta, é justificado. Para excluir
qualquer mal-entendido e para evitar que se possa obliterar as fronteiras entre psicologia
e lógica, concebo como a tarefa da lógica encontrar as leis da verdade, e não as do tomar
por verdadeiro ou do pensar. Nas leis da verdade desdobra-se o significado da palavra
'verdade'.
Primeiro, porém, tentarei esboçar muito cruamente os contornos daquilo que quero
chamar de verdade nesse contexto, de maneira a tentar afastar os modos de uso desviantes
de nossa palavra. Ela não deve ser aqui usada no sentido de 'veracidade' ou 'autenticidade',
nem da maneira como por vezes aparece no tratamento de questões artísticas, quando, por
exemplo, se fala sobre a verdade na arte, quando a verdade é apresentada como a
finalidade da arte, quando se fala da verdade de uma obra de arte ou de um sentimento
verdadeiro. Também se costuma antepor a palavra 'verdade' a uma outra palavra, para se
dizer que se quer entender essa última em seu sentido próprio e não adulterado. Também
esse modo de uso está fora do caminho aqui perseguido. O que tenho em mente é a
verdade cujo conhecimento é colocado como a finalidade da ciência.
Gramaticalmente, a palavra 'verdadeiro' parece designar uma propriedade. Isso nos
sugere uma delimitação mais estreita do domínio no qual a verdade é predicada, onde ela
pode entrar em questão. Encontramos a verdade predicada de figuras, representações,
frases e pensamentos. Nota-se claramente que coisas visíveis e audíveis aparecem junto
a coisas que não podem ser percebidas pelos sentidos. Isso indica que deslocamentos de
sentido ocorreram. Com efeito: é uma figura, como mera coisa visível e tocável,
propriamente verdadeira? e uma pedra, uma folha, não são verdadeiras? Evidentemente,
não chamaríamos a figura de verdadeira se não houvesse uma intenção envolvida. A
figura deve representar algo. Também a representação não é em si chamada de verdadeira,
a não ser com respeito a uma intenção de que ela deva corresponder a algo. Com base
nisso pode-se supor que a verdade consiste na correspondência de uma figura com aquilo
que é afigurado. Uma correspondência é uma relação. Mas isso é contradito pelo uso da
palavra 'verdade', que não é um termo relacional, não contendo nenhuma indicação de
uma outra coisa, à qual algo deva corresponder. Se eu não sei que uma figura tem o
propósito de representar a catedral de Colônia, então não sei com o que devo comparar a
figura para decidir se ela é verdadeira. Uma correspondência só pode ser perfeita se as
coisas que se correspondem coincidem, ou seja, se elas simplesmente não são diferentes.
A autenticidade de uma cédula bancária só pode ser comprovada, na medida em que tenta
fazê-la coincidir estereoscopicamente com uma cédula autêntica. Mas a tentativa de fazer
coincidir estereoscopicamente uma peça de ouro com uma nota de vinte marcos seria
ridícula. Comparar uma representação com uma coisa só seria possível se a coisa também
fosse uma representação. E, então, se a primeira correspondesse perfeitamente à segunda,
elas coincidiriam. Ora, isso é precisamente o que não se pretende quando se define a
verdade como correspondência de uma representação com algo real. Pois aqui é essencial
que o real seja distinto da representação. Mas então não pode haver nenhuma
correspondência perfeita, nenhuma verdade perfeita. Mas então absolutamente nada
poderia ser verdadeiro; porque o que é apenas em parte verdadeiro é não-verdadeiro. A
verdade não admite um mais ou um menos. Ou será que sim? Não se pode estabelecer
que a verdade ocorre quando a correspondência se dá de uma certa maneira? Mas qual?
O que precisaríamos então fazer para decidir se algo é verdadeiro? Precisaríamos
investigar se seria verdade que - algo como uma representação e algo real - se
correspondem da maneira estabelecida. E com isso estaríamos novamente diante de uma
questão da mesma espécie, e o jogo poderia começar outra vez. Assim fracassa essa
tentativa de explicar a verdade como correspondência. Mas assim fracassa também
qualquer outra tentativa de definir a verdade. Pois em uma definição devem ser
especificadas certas características. E pela aplicação a qualquer caso particular surgiria
sempre a questão de se saber se seria verdade que as características estariam presentes.
Girar-se-ia então em círculos. Isso torna provável que o conteúdo da palavra 'verdade'
seja sui generis e indefinível.
Quando se diz que uma figura é verdadeira, não se quer propriamente predicar alguma
propriedade que pertença à figura em completa independência de outras entidades; o que
se tem em vista com isso é uma coisa completamente diversa, e o que se quer dizer é que
a figura corresponde de algum modo a essa coisa. "Minha representação corresponde à
catedral de Colônia" é uma frase, e trata-se da verdade dessa frase(**). Assim, aquilo que
é impropriamente chamado de verdade de figuras e representações reduz-se à verdade de
frases. O que denominamos uma frase? Uma seqüência de sons. Mas isso só quando ela
tem um sentido, sem que se queira dizer com isso que cada seqüência significativa de
sons seja uma frase. E quando dizemos que uma frase é verdadeira, temos em mente
simplesmente o seu sentido. Disso resulta que aquilo a respeito do que a verdade
legitimamente pode ser questionada é o sentido da frase. Mas não seria o sentido de uma
frase uma representação? Seja como for, a verdade não consiste na correspondência do
sentido com alguma outra coisa, pois nesse caso a questão sobre a verdade reitera-se ao
infinito.
Sem querer dar uma definição, chamo de pensamento algo sobre o que a verdade pode
ser legitimamente colocada em questão. Também o que é falso conto como sendo um
pensamento, tanto quanto o que é verdadeiro(1). Posso então dizer: o pensamento é o
sentido de uma frase, com o que não quero afirmar que o sentido de toda frase seja um
pensamento. O pensamento, que em si mesmo é não-sensível, veste-se com a roupagem
sensível da frase, tornando-se assim apreensível para nós. Dizemos que a frase expressa
um pensamento.
O pensamento é algo não-sensível, e todas as coisas perceptíveis aos sentidos devem
ser excluídas do domínio daquilo acerca do que a verdade pode legitimamente entrar em
questão. A verdade não é uma propriedade que corresponde a uma espécie particular de
impressão sensível. Assim, ela distingue-se nitidamente de propriedades
denominadas por palavras como 'vermelho', 'amargo', 'cheirando a sabugueiro'. Mas não
vemos que o sol nasceu? E não vemos então que isso também é verdadeiro? Que o sol
nasceu, não é nenhum objeto emitindo raios que alcançam meus olhos; não é uma coisa
visível como o próprio sol. Que o sol nasceu é reconhecido como verdadeiro com base
em impressões sensíveis. Todavia, o ser verdadeiro não é nenhuma propriedade
perceptível aos sentidos. Também o ser magnético é reconhecido em uma coisa com base
em impressões sensíveis, embora essa propriedade, tanto quanto a de ser verdadeiro, não
corresponda a nenhuma espécie particular de impressão sensível. Até aqui essas
propriedades concordam. Mas para reconhecermos um corpo como sendo magnético,
precisamos recorrer a impressões sensíveis. Por outro lado, se eu considero verdadeiro
que nesse momento não sinto odor algum, não faço isso com base em impressões
sensíveis.
Ainda assim dá o que pensar, que nós não possamos reconhecer em coisa alguma uma
propriedade sem com isso ao mesmo tempo considerar verdadeiro o pensamento de que
essa coisa tem essa propriedade. Assim, a cada propriedade de uma coisa associa-se uma
propriedade de um pensamento, qual seja, a de ser verdadeiro. Também é digno de nota
que a frase “Sinto odor de violetas” tenha o mesmo conteúdo que a frase “É verdade que
sinto odor de violetas”. Parece, pois, que nada é adicionado ao pensamento por eu ter-lhe
atribuído a propriedade de ser verdadeiro. Contudo, não é um grande sucesso quando o
cientista, após longa hesitação e laboriosas investigações, finalmente pode dizer: “O que
eu havia conjecturado é verdadeiro”? O significado da palavra 'verdade' parece ser
bastante singular. Não estaríamos aqui tratando de algo que, no sentido usual da palavra,
de modo algum pode ser chamado de propriedade? Apesar dessa dúvida, quero
inicialmente me expressar ainda segundo o uso corrente, como se a verdade fosse uma
propriedade, até que algo mais apropriado seja encontrado.
Para elaborar mais precisamente o que quero chamar de pensamento, distinguirei alguns
tipos de frase(2). Não se negaria que uma frase imperativa tem sentido; mas esse sentido
não é do tipo acerca do qual se questionaria a verdade. Por isso não chamarei o sentido
de uma frase imperativa de pensamento. Igualmente, excluem-se frases que expressam
desejos e pedidos. Só aquelas frases com as quais comunicamos ou asserimos algo é que
podem entrar em consideração. Mas exclamações, nas quais alguém dá livre curso aos
seus sentimentos, gemidos, suspiros, risos, não conto como tais, a menos que, por meio
de convenções especiais, sejam destinadas a comunicar algo. Mas que dizer de frases
interrogativas? Em uma pergunta com pronome interrogativo (Wortfrage), pronunciamos
uma frase incompleta, que somente através da complementação por ela convocada vem a
receber um verdadeiro sentido. As perguntas com pronome interrogativo ficam desse
modo fora de consideração. Outro é o caso de perguntas em forma de frase. Esperamos
ouvir 'sim' ou 'não'. A resposta 'sim' diz tanto quanto a frase assertórica; pois através dela
o pensamento, que já se encontra completo na pergunta, é apresentado como verdadeiro.
Para cada frase assertórica pode ser assim construída uma pergunta. Eis porque uma
exclamação não pode ser vista como uma comunicação: nenhuma pergunta
correspondente pode ser construída. Uma frase interrogativa e uma frase assertórica
podem conter o mesmo pensamento; mas a frase assertórica contém algo mais, a saber, a
asserção. Também a pergunta contém algo mais, a saber, uma convocação. Em uma frase
assertórica devem ser portanto distinguidas duas coisas: o conteúdo, que ela tem em
comum com a pergunta, e a asserção. O primeiro é o pensamento, ou ao menos o contém.
É assim possível expressar um pensamento, sem apresentá-lo como verdadeiro. Em uma
frase assertórica ambos vêm tão unidos, que a separabilidade passa facilmente
despercebida. Distinguimos, por conseguinte:
Notas:
_________
(*) O texto de Frege foi originalmente publicado sob o título de "Der Gedanke - eine
logische Untersuchung", em Beiträge zur Philosophie des deutschen Idealismus, caderno
2, vol. 1, pp. 58-77, 1918-19. "O Pensamento" é a primeira e mais importante de uma
série de três investigações lógicas internamente relacionadas, todas elas publicadas na
mesma revista. A atual tradução, que contou com revisão especializada do professor
Marco A. Ruffino, a quem eu gostaria de agradecer. Ela foi primeiramente publicada nos
Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 3, vol. 8, n. 1, janeiro-junho de 1998,
sendo republicada aqui com permissão do editor.
(**) (N.T.) O termo alemão 'Satz' foi traduzido como 'frase'. A palavra 'Satz' tem sido em
geral traduzida como 'proposição', em parte devido à influência do uso da palavra
'proposition' na literatura filosófica inglesa (Peter Geach, contudo, preferiu em sua
tradução de "O pensamento" a palavra 'sentence'). 'Proposição' é, porém, um termo
ambíguo, que também pode denotar um conteúdo de pensamento que independe de sua
expressão lingüística, o que Frege chama de pensamento. Ora, em português podemos
evitar essa ambigüidade, dado que dispomos da palavra 'frase', um equivalente natural e
semanticamente mais próximo à palavra 'Satz', que significa em Frege (geralmente) frase
com sentido. É verdade que essa tradução mais técnica e menos literal tornou-se usual;
mas é sempre tempo de se tentar corrigi-la.
1. Similarmente já foi dito: "Um juízo é algo que é verdadeiro ou falso". De fato, uso a
palavra 'pensamento' aproximadamente no sentido de 'juízo' nos escritos dos lógicos. Eu
espero que se torne compreensível, no que se segue, porque prefiro a palavra
'pensamento'. Tal explicação tem sido censurada, porque nela é dada uma divisão dos
juízos em verdadeiros e falsos, a qual, de todas as divisões dos juízos talvez seja a menos
significativa. Mas não posso reconhecer como uma insuficiência lógica o fato de que com
a explicação possa ser dada ao mesmo tempo uma divisão. No que diz respeito à
relevância da divisão, não se deve menosprezé-la se, como eu disse, a palavra 'verdade'
indica à lógica a sua direção.
2. Uso a palavra 'frase' aqui não de todo no sentido gramatical, o qual também inclui
frases subordinadas. Isoladamente, uma frase subordinada nem sempre tem um sentido
do qual se pode questionar a verdade, enquanto a combinação de frases, à qual ela
pertence, tem um tal sentido.
3. Parece-me que até agora não se distinguiu suficientemente pensamento de juízo. A
linguagem induz talvez a isso. Nós não temos em frases assertóricas nenhuma parte
específica correspondente à asserção; que se afirme vem já implícito na forma da frase
assertórica. Em alemão temos uma vantagem no fato de que frase principal e a frase
subordinada se distinguem pela ordem de colocação das palavras. Mas é preciso notar
que uma frase subordinada também pode conter uma asserção, e que freqüentemente nem
a frase principal nem a frase subordinada, tomadas em si mesmas, expressam um
pensamento completo, mas só a frase complexa.
4. Não me encontro aqui na feliz situação de um mineralogista, que mostra um cristal de
rocha aos seus ouvintes. Não posso colocar um pensamento nas mãos de meus leitores,
com o pedido de que eles melhor o observem, de todos os lados. Devo satisfazer-me em
apresentar ao leitor o pensamento, que em si é não-sensível, na forma lingüística sensível.
Mas aqui o caráter figurativo da linguagem produz dificuldades. O sensível pressiona-se
sempre de novo, tornando a expressão figurativa imprópria. Assim surge um conflito com
a linguagem, e vejo-me compelido a ocupar-me com a linguagem, embora essa não seja
aqui a minha tarefa específica. Espero ter conseguido esclarecer aos meus leitores o que
quero chamar de pensamento.
5. Vê-se uma coisa, tem-se uma representação, apreende-se ou pensa-se um pensamento.
Quando se apreende ou se pensa um pensamento, não se o cria, mas apenas depara-se
com ele, que já existia antes, e isso em uma certa relação que é diferente das relações do
ver uma coisa e do ter uma representação.
6. A expressão 'apreender' é tão metafórica quanto 'conteúdo da consciência'. A essência
da linguagem não permite algo diverso. O que tenho na mão pode ser considerado como
o conteúdo da mão, mas é conteúdo da mão em um sentido muito diverso dos ossos e
músculos em que ela consiste e das suas tensões.