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O PENSAMENTO - UMA INVESTIGAÇÃO LÓGICA (*)

Gottlob Frege

Assim como a palavra 'belo' à estética e 'bem' à ética, 'verdade' indica à lógica a direção.
É certo que todas as ciências têm a verdade como fim; mas a lógica ocupa-se dela de um
modo muito diverso. Ela relaciona-se com a verdade um pouco como a física com o peso
ou com o calor. Descobrir verdades é a tarefa de todas as ciências; à lógica cabe discernir
as leis da verdade. A palavra 'lei' é usada em dois sentidos. Quando falamos de leis morais
e civis, temos em mente prescrições que devem ser obedecidas, mas com as quais os
acontecimentos nem sempre estão de acordo. Leis da natureza são o que há de geral no
acontecimento natural, que a elas sempre se conforma. É antes nesse último sentido que
falo de leis da verdade. Claro que não se trata aqui do que ocorre, mas do que é. Das leis
da verdade resultam prescrições para o tomar algo por verdadeiro (Fürwahrhalten), o
pensar, o julgar, o inferir. É assim que também se fala de leis do pensamento. Mas com
isso surge o perigo de se confundirem coisas diferentes. Pode-se entender a expressão
'lei do pensamento' como se fosse ‘lei da natureza’, tendo-se em mente traços gerais do
pensar como ocorrência anímica. Uma lei do pensamento nesse sentido seria uma lei
psicológica. E assim chega-se à opinião de que a lógica trata do processo anímico do
pensar e das leis psicológicas segundo as quais este ocorre. Mas com isso seria mal
interpretada a tarefa da lógica, pois a noção de verdade não obteria o lugar que lhe é
devido. O erro, a superstição, tem as suas causas, tanto quanto o conhecimento correto.
O tomar algo falso por verdadeiro e o tomar algo verdadeiro por verdadeiro dependem de
leis psicológicas. Uma derivação a partir dessas leis e uma explicação de um fenômeno
anímico que resulta em uma opinião não pode jamais substituir uma prova daquilo a que
esse tomar por verdadeiro se refere. Mas não é possível que leis lógicas também tenham
tomado parte nesses processos anímicos? Isso eu não quero contestar. Mas quando se
trata da verdade, só a possibilidade não basta. É possível que também o não-lógico tenha
participado e que ele tenha apartado o processo da verdade. Só podemos decidir sobre
isso após termos chegado a conhecer as leis da verdade; mas então provavelmente
poderemos dispensar-nos da derivação e da explicação do processo anímico, se o que nos
interessa decidir é se o tomar por verdadeiro em que ele resulta, é justificado. Para excluir
qualquer mal-entendido e para evitar que se possa obliterar as fronteiras entre psicologia
e lógica, concebo como a tarefa da lógica encontrar as leis da verdade, e não as do tomar
por verdadeiro ou do pensar. Nas leis da verdade desdobra-se o significado da palavra
'verdade'.
Primeiro, porém, tentarei esboçar muito cruamente os contornos daquilo que quero
chamar de verdade nesse contexto, de maneira a tentar afastar os modos de uso desviantes
de nossa palavra. Ela não deve ser aqui usada no sentido de 'veracidade' ou 'autenticidade',
nem da maneira como por vezes aparece no tratamento de questões artísticas, quando, por
exemplo, se fala sobre a verdade na arte, quando a verdade é apresentada como a
finalidade da arte, quando se fala da verdade de uma obra de arte ou de um sentimento
verdadeiro. Também se costuma antepor a palavra 'verdade' a uma outra palavra, para se
dizer que se quer entender essa última em seu sentido próprio e não adulterado. Também
esse modo de uso está fora do caminho aqui perseguido. O que tenho em mente é a
verdade cujo conhecimento é colocado como a finalidade da ciência.
Gramaticalmente, a palavra 'verdadeiro' parece designar uma propriedade. Isso nos
sugere uma delimitação mais estreita do domínio no qual a verdade é predicada, onde ela
pode entrar em questão. Encontramos a verdade predicada de figuras, representações,
frases e pensamentos. Nota-se claramente que coisas visíveis e audíveis aparecem junto
a coisas que não podem ser percebidas pelos sentidos. Isso indica que deslocamentos de
sentido ocorreram. Com efeito: é uma figura, como mera coisa visível e tocável,
propriamente verdadeira? e uma pedra, uma folha, não são verdadeiras? Evidentemente,
não chamaríamos a figura de verdadeira se não houvesse uma intenção envolvida. A
figura deve representar algo. Também a representação não é em si chamada de verdadeira,
a não ser com respeito a uma intenção de que ela deva corresponder a algo. Com base
nisso pode-se supor que a verdade consiste na correspondência de uma figura com aquilo
que é afigurado. Uma correspondência é uma relação. Mas isso é contradito pelo uso da
palavra 'verdade', que não é um termo relacional, não contendo nenhuma indicação de
uma outra coisa, à qual algo deva corresponder. Se eu não sei que uma figura tem o
propósito de representar a catedral de Colônia, então não sei com o que devo comparar a
figura para decidir se ela é verdadeira. Uma correspondência só pode ser perfeita se as
coisas que se correspondem coincidem, ou seja, se elas simplesmente não são diferentes.
A autenticidade de uma cédula bancária só pode ser comprovada, na medida em que tenta
fazê-la coincidir estereoscopicamente com uma cédula autêntica. Mas a tentativa de fazer
coincidir estereoscopicamente uma peça de ouro com uma nota de vinte marcos seria
ridícula. Comparar uma representação com uma coisa só seria possível se a coisa também
fosse uma representação. E, então, se a primeira correspondesse perfeitamente à segunda,
elas coincidiriam. Ora, isso é precisamente o que não se pretende quando se define a
verdade como correspondência de uma representação com algo real. Pois aqui é essencial
que o real seja distinto da representação. Mas então não pode haver nenhuma
correspondência perfeita, nenhuma verdade perfeita. Mas então absolutamente nada
poderia ser verdadeiro; porque o que é apenas em parte verdadeiro é não-verdadeiro. A
verdade não admite um mais ou um menos. Ou será que sim? Não se pode estabelecer
que a verdade ocorre quando a correspondência se dá de uma certa maneira? Mas qual?
O que precisaríamos então fazer para decidir se algo é verdadeiro? Precisaríamos
investigar se seria verdade que - algo como uma representação e algo real - se
correspondem da maneira estabelecida. E com isso estaríamos novamente diante de uma
questão da mesma espécie, e o jogo poderia começar outra vez. Assim fracassa essa
tentativa de explicar a verdade como correspondência. Mas assim fracassa também
qualquer outra tentativa de definir a verdade. Pois em uma definição devem ser
especificadas certas características. E pela aplicação a qualquer caso particular surgiria
sempre a questão de se saber se seria verdade que as características estariam presentes.
Girar-se-ia então em círculos. Isso torna provável que o conteúdo da palavra 'verdade'
seja sui generis e indefinível.
Quando se diz que uma figura é verdadeira, não se quer propriamente predicar alguma
propriedade que pertença à figura em completa independência de outras entidades; o que
se tem em vista com isso é uma coisa completamente diversa, e o que se quer dizer é que
a figura corresponde de algum modo a essa coisa. "Minha representação corresponde à
catedral de Colônia" é uma frase, e trata-se da verdade dessa frase(**). Assim, aquilo que
é impropriamente chamado de verdade de figuras e representações reduz-se à verdade de
frases. O que denominamos uma frase? Uma seqüência de sons. Mas isso só quando ela
tem um sentido, sem que se queira dizer com isso que cada seqüência significativa de
sons seja uma frase. E quando dizemos que uma frase é verdadeira, temos em mente
simplesmente o seu sentido. Disso resulta que aquilo a respeito do que a verdade
legitimamente pode ser questionada é o sentido da frase. Mas não seria o sentido de uma
frase uma representação? Seja como for, a verdade não consiste na correspondência do
sentido com alguma outra coisa, pois nesse caso a questão sobre a verdade reitera-se ao
infinito.
Sem querer dar uma definição, chamo de pensamento algo sobre o que a verdade pode
ser legitimamente colocada em questão. Também o que é falso conto como sendo um
pensamento, tanto quanto o que é verdadeiro(1). Posso então dizer: o pensamento é o
sentido de uma frase, com o que não quero afirmar que o sentido de toda frase seja um
pensamento. O pensamento, que em si mesmo é não-sensível, veste-se com a roupagem
sensível da frase, tornando-se assim apreensível para nós. Dizemos que a frase expressa
um pensamento.
O pensamento é algo não-sensível, e todas as coisas perceptíveis aos sentidos devem
ser excluídas do domínio daquilo acerca do que a verdade pode legitimamente entrar em
questão. A verdade não é uma propriedade que corresponde a uma espécie particular de
impressão sensível. Assim, ela distingue-se nitidamente de propriedades
denominadas por palavras como 'vermelho', 'amargo', 'cheirando a sabugueiro'. Mas não
vemos que o sol nasceu? E não vemos então que isso também é verdadeiro? Que o sol
nasceu, não é nenhum objeto emitindo raios que alcançam meus olhos; não é uma coisa
visível como o próprio sol. Que o sol nasceu é reconhecido como verdadeiro com base
em impressões sensíveis. Todavia, o ser verdadeiro não é nenhuma propriedade
perceptível aos sentidos. Também o ser magnético é reconhecido em uma coisa com base
em impressões sensíveis, embora essa propriedade, tanto quanto a de ser verdadeiro, não
corresponda a nenhuma espécie particular de impressão sensível. Até aqui essas
propriedades concordam. Mas para reconhecermos um corpo como sendo magnético,
precisamos recorrer a impressões sensíveis. Por outro lado, se eu considero verdadeiro
que nesse momento não sinto odor algum, não faço isso com base em impressões
sensíveis.
Ainda assim dá o que pensar, que nós não possamos reconhecer em coisa alguma uma
propriedade sem com isso ao mesmo tempo considerar verdadeiro o pensamento de que
essa coisa tem essa propriedade. Assim, a cada propriedade de uma coisa associa-se uma
propriedade de um pensamento, qual seja, a de ser verdadeiro. Também é digno de nota
que a frase “Sinto odor de violetas” tenha o mesmo conteúdo que a frase “É verdade que
sinto odor de violetas”. Parece, pois, que nada é adicionado ao pensamento por eu ter-lhe
atribuído a propriedade de ser verdadeiro. Contudo, não é um grande sucesso quando o
cientista, após longa hesitação e laboriosas investigações, finalmente pode dizer: “O que
eu havia conjecturado é verdadeiro”? O significado da palavra 'verdade' parece ser
bastante singular. Não estaríamos aqui tratando de algo que, no sentido usual da palavra,
de modo algum pode ser chamado de propriedade? Apesar dessa dúvida, quero
inicialmente me expressar ainda segundo o uso corrente, como se a verdade fosse uma
propriedade, até que algo mais apropriado seja encontrado.
Para elaborar mais precisamente o que quero chamar de pensamento, distinguirei alguns
tipos de frase(2). Não se negaria que uma frase imperativa tem sentido; mas esse sentido
não é do tipo acerca do qual se questionaria a verdade. Por isso não chamarei o sentido
de uma frase imperativa de pensamento. Igualmente, excluem-se frases que expressam
desejos e pedidos. Só aquelas frases com as quais comunicamos ou asserimos algo é que
podem entrar em consideração. Mas exclamações, nas quais alguém dá livre curso aos
seus sentimentos, gemidos, suspiros, risos, não conto como tais, a menos que, por meio
de convenções especiais, sejam destinadas a comunicar algo. Mas que dizer de frases
interrogativas? Em uma pergunta com pronome interrogativo (Wortfrage), pronunciamos
uma frase incompleta, que somente através da complementação por ela convocada vem a
receber um verdadeiro sentido. As perguntas com pronome interrogativo ficam desse
modo fora de consideração. Outro é o caso de perguntas em forma de frase. Esperamos
ouvir 'sim' ou 'não'. A resposta 'sim' diz tanto quanto a frase assertórica; pois através dela
o pensamento, que já se encontra completo na pergunta, é apresentado como verdadeiro.
Para cada frase assertórica pode ser assim construída uma pergunta. Eis porque uma
exclamação não pode ser vista como uma comunicação: nenhuma pergunta
correspondente pode ser construída. Uma frase interrogativa e uma frase assertórica
podem conter o mesmo pensamento; mas a frase assertórica contém algo mais, a saber, a
asserção. Também a pergunta contém algo mais, a saber, uma convocação. Em uma frase
assertórica devem ser portanto distinguidas duas coisas: o conteúdo, que ela tem em
comum com a pergunta, e a asserção. O primeiro é o pensamento, ou ao menos o contém.
É assim possível expressar um pensamento, sem apresentá-lo como verdadeiro. Em uma
frase assertórica ambos vêm tão unidos, que a separabilidade passa facilmente
despercebida. Distinguimos, por conseguinte:

1. A apreensão do pensamento - o pensar,


2. O reconhecimento da verdade de um pensamento - o julgar(3),
3. A manifestação desse juízo - o asserir.

Ao fazer uma pergunta, já realizamos o primeiro ato. Um progresso na ciência acontece


habitualmente do seguinte modo: primeiro um pensamento é apreendido, tal como ele
poderia vir expresso em uma pergunta; após apropriada investigação, esse pensamento é
finalmente reconhecido como verdadeiro. Expressamos o reconhecimento da verdade na
forma da frase assertórica. Para tal não precisamos da palavra 'verdade'. E mesmo quando
a usamos, a força assertórica como tal não reside nela, mas na forma da frase assertórica;
e onde essa forma perde a sua força assertórica, a palavra 'verdade' também é incapaz de
restituí-la. Isso acontece quando não falamos a sério. Como o trovão e a luta em um teatro,
que são apenas aparência de trovão e de luta, a asserção no teatro é apenas uma asserção
aparente. É apenas representação, ficção. O ator não assere em seu papel; ele também não
mente, mesmo quando diz algo de cuja falsidade está convencido. Na poesia temos o caso
em que, apesar da forma assertórica da frase, pensamentos são expressos sem que eles
sejam realmente apresentados como verdadeiros, embora seja solicitado ao ouvinte um
juízo de assentimento. Assim sendo, mesmo naquilo que se apresenta sob a forma de uma
frase assertórica, pode ser sempre questionado se contém realmente uma asserção. E essa
questão é para ser negativamente respondida quando faltar a necessária seriedade. Se a
palavra 'verdade' for usada junto, isso é irrelevante. Assim se esclarece por que nada
parece ser adicionado ao pensamento quando se lhe atribui a propriedade de ser
verdadeiro.
Uma frase assertórica muitas vezes contém, além de um pensamento e da asserção, um
terceiro componente, ao qual a asserção não se estende. Não raramente ela tem o
propósito de agir sobre o sentimento, o humor do ouvinte, ou de incitar sua imaginação.
Expressões como 'infelizmente' e 'graças a Deus' pertencem a esse componente. Tais
componentes da frase ressaltam-se mais fortemente na poesia, mas raramente estão
completamente ausentes na prosa. Eles tornam-se mais raros em exposições da
matemática, da física ou da química, do que nas da história. O que é chamado de ciências
humanas está mais próximo da poesia e é por isso mesmo menos científico do que as
ciências de rigor, que quanto mais rigorosas mais secas são; pois a ciência de rigor é
direcionada para a verdade e só para a verdade. Assim, todos os componentes da frase
aos quais a força assertórica não se estende, não pertencem à exposição científica. Apesar
disso, mesmo para aquele que vê o risco a eles ligado, eles são por vezes difíceis de ser
evitados. Onde se trata de se aproximar do que é inapreensível ao pensamento pelo
caminho da intuição, esses componentes são plenamente justificados. Quanto mais
rigorosamente científica for uma exposição, menos se fará perceptível a nacionalidade de
seu autor e mais fácil será traduzi-la. Por outro lado, os componentes da linguagem sobre
os quais quero aqui chamar a atenção dificultam em muito a tradução da poesia, tornando
uma tradução perfeita quase sempre impossível; pois é precisamente no tocante a esses
componentes, sobre os quais uma grande parte do valor poético se apóia, que as línguas
mais se diferenciam.
Se uso as palavras 'cavalo', 'rocim' ou 'pileca', não faz qualquer diferença para o
pensamento. A força assertórica não se estende àquilo pelo que essas palavras se
diferenciam. O que pode ser chamado de tonalidade, fragrância, iluminação em um
poema, o que se desenha pelo tom e pelo ritmo, não pertence ao pensamento.
Muito na língua serve para facilitar ao ouvinte a compreensão, por exemplo, a
acentuação de uma parte da frase pela entonação ou pela disposição das palavras. Pense-
se em palavras como 'ainda' e 'já'. Com a frase "Alfredo ainda não chegou" diz-se apenas
que Alfredo não chegou e sugere-se que a sua chegada é esperada; mas sugere-se apenas.
Não se pode dizer que o sentido da frase é falso só porque Alfredo não está sendo
esperado. A palavra 'mas' diferencia-se de 'e' por sugerir que o que a ela se segue está em
oposição ao que a ela precedeu. Tais sugestões discursivas não fazem qualquer diferença
no pensamento. Pode-se transformar uma frase convertendo a voz ativa do verbo em sua
voz passiva e, simultaneamente, transformando o objeto direto em sujeito. Do mesmo
modo pode-se transformar o objeto indireto em sujeito, ao mesmo tempo que se substitui
'dar' por 'receber'. Com certeza tais transformações não são inócuas em todos os aspectos;
mas elas não afetam o pensamento, não afetam o que é verdadeiro ou falso. Se a
inadmissibilidade de tais transformações fosse universalmente reconhecida, então toda
investigação lógica mais profunda poderia ser impedida. É tão importante deixar de lado
distinções que não afetam o cerne da questão, quanto fazer distinções concernentes ao
essencial. Mas o que é essencial depende do propósito. Aquilo que para o lógico é
indiferente pode apresentar-se como o mais importante a uma sensibilidade voltada para
o belo na língua.
Assim, não raramente o conteúdo de uma frase vai além do pensamento nela expresso.
Mas o oposto também é freqüente, a saber: que a simples enunciação verbal das palavras,
a qual pode ser fixada pela escrita ou pelo fonógrafo, não baste para a expressão do
pensamento. O tempus praesens é usado de dois modos: primeiro, para fazer uma
indicação temporal; segundo, para suprimir qualquer limitação temporal, nos casos em
que atemporalidade ou eternidade sejam componentes do pensamento. Pense-se, por
exemplo, nas leis da matemática. Qual dos dois casos tem lugar não é expresso, mas
precisa ser adivinhado. Se com o praesens é para ser feita uma indicação temporal, deve-
se saber quando a frase foi pronunciada para se entender o pensamento corretamente.
Portanto o momento da enunciação é parte da expressão do pensamento. Se alguém hoje
quer dizer o mesmo que havia dito ontem com a palavra 'hoje', ele substituirá essa palavra
por 'ontem'. Embora o pensamento seja o mesmo, aqui a sua expressão verbal precisa ser
diferente de maneira a compensar a mudança de sentido que os diferentes momentos de
enunciação de outro modo provocariam. O caso de palavras como 'aqui' e 'lá' é
semelhante. Em todos esses casos a mera enunciação verbal, que pode ser fixada pela
escrita, não é a completa expressão do pensamento; para a sua correta compreensão
precisa-se do conhecimento de certas circunstâncias que acompanham o falante, as quais
são utilizadas como meios de expressão do pensamento. A elas podem pertencer o
apontar com o dedo, movimentos da mão, olhares. A mesma sequência de sons contendo
a palavra 'eu' na boca de diferentes seres humanos irá exprimir diferentes pensamentos,
dos quais alguns podem ser verdadeiros, outros falsos.
A ocorrência da palavra 'eu' em uma frase dá margem a mais algumas indagações.
Considere-se o seguinte caso. O Dr. Gustav Lauben diz: "Eu fui ferido". Leo Peter ouve
isso e reporta, alguns dias mais tarde: "Dr. Gustav Lauben foi ferido". Exprime essa frase
o mesmo pensamento que aquele proferido pelo próprio Dr. Lauben? Suponha-se que
Rudolf Lingens tenha estado presente quando o Dr. Lauben falou, e que ele agora ouve o
que Leo Peter conta. Se o que é proferido pelo Dr. Lauben e Leo Peter é o mesmo
pensamento, então Rudolf Lingens, que domina perfeitamente a língua alemã e que se
recorda do que o Dr. Lauben disse em sua presença, deve agora, pelo relato de Leo Peter,
saber de imediato que ele fala da mesma coisa. Mas o conhecimento da língua alemã não
é suficiente quando se trata de nomes próprios. Pode bem ser que apenas uns poucos
associem um pensamento determinado à frase "Dr. Lauben foi ferido". Ao perfeito
entendimento pertence nesse caso o conhecimento dos vocábulos ‘Dr. Gustav Lauben'.
Se ambos, Leo Peter e Rudolf Lingens, entendem por 'Dr. Gustav Lauben' o médico que
mora, como único médico, em uma casa bem conhecida por ambos, então ambos
entendem a frase "Dr. Lauben foi ferido" do mesmo modo; eles associam a ela o mesmo
pensamento. Mas também é possível que Rudolf Lingens não conheça pessoalmente o
Dr. Lauben, e não saiba que foi precisamente o Dr. Lauben a pessoa que recentemente
disse: "Eu fui ferido". Nesse caso, Rudolf Lingens não pode saber que se trata da mesma
coisa. Por isso digo em tal caso: o pensamento que Leo Peter manifesta não é o mesmo
que aquele que Dr. Lauben havia proferido.
Suponha-se ainda que Herbert Garner sabe que o Dr. Gustav Lauben nasceu em 13 de
setembro de 1875 em N. N., e que isso não sucedeu com mais ninguém; em compensação,
ele não sabe onde o Dr. Lauben reside agora nem qualquer outra coisa acerca dele. Por
outro lado, Leo Peter não sabe que o Dr. Gustav Lauben nasceu em 13 de setembro de
1875 em N. N. Então, no que diz respeito ao nome próprio 'Dr. Gustav Lauben', Herbert
Garner e Leo Peter não falam a mesma língua, ainda que com esse nome eles de fato
designem o mesmo homem; pois eles não sabem que fazem isso. Herbert Garner não
associa, pois, à frase "Dr. Gustav Lauben foi ferido", o mesmo pensamento que Leo Peter
quer com ela expressar. Para evitar o inconveniente de Herbert Garner e Leo Peter não
falarem a mesma língua, suponho que Leo Peter use o nome próprio 'Dr. Lauben', e que
Herbert Garner use, por sua vez, o nome próprio 'Gustav Lauben'. Então é possível que
Herbert Garner tome por verdadeiro o sentido da frase "Dr. Lauben foi ferido", enquanto,
conduzido ao erro por falsas notícias, tome por falso o sentido da frase "Dr. Gustav
Lauben foi ferido". Assim, dentro das assunções feitas, esses pensamentos são diferentes.
Ao nome próprio importa, portanto, como é apresentada a coisa por ele designada. Isso
pode acontecer de diversos modos, e a cada um desses modos corresponde um sentido
especial da frase contendo o nome próprio. Os diversos pensamentos que decorrem da
mesma frase concordam, certamente, em seus valores-de-verdade, i.é., se um deles é
verdadeiro, são todos verdadeiros, e, se um deles é falso, são todos falsos. Não obstante,
a diferença entre eles é reconhecível. Propriamente, deveria ser exigido que a cada nome
próprio fosse associado um único modo de apresentação da coisa por ele designada. Que
essa exigência seja preenchida é freqüentemente prescindível, embora nem sempre.
Cada um de nós é apresentado a si mesmo de um modo especial e originário, pelo qual
não se é apresentado a mais ninguém. Assim, se o Dr. Lauben pensa que ele foi ferido,
ele toma por base provavelmente esse modo originário pelo qual ele é dado a si mesmo.
E só o próprio Dr. Lauben pode apreender o pensamento assim determinado. Mas ele quis
comunicá-lo a outros. Ele não pode comunicar um pensamento que só ele pode apreender.
Se ele então também diz: "Eu fui ferido", ele deve usar o 'eu' em um sentido que também
seja acessível aos outros, algo como "aquele que nesse momento vos fala"; fazendo isso,
ele põe a serviço da expressão do pensamento as circunstâncias acompanhantes de seu
dizer(4).
Contudo, aqui surge uma questão. É realmente o mesmo pensamento, aquele que
aquele homem primeiro expressou, e que agora esse outro expressa?
O homem ainda não influenciado pela filosofia conhece primeiro coisas que ele pode
ver, tocar, em suma, perceber com os sentidos, como árvores, pedras, casas, e ele está
convencido de que um outro homem pode ver e tocar a mesma árvore, a mesma pedra
que ele vê e toca. Um pensamento não faz parte, obviamente, dessas coisas. Pode ele,
apesar disso, ser posto diante de uma pessoa como sendo o mesmo, tal como acontece
com uma árvore?
Mesmo o homem não-filosófico se vê cedo na necessidade de reconhecer um mundo
interior, diferente do mundo exterior; um mundo de impressões sensíveis, de criações de
seu poder imaginativo, de sensações, de emoções, de sentimentos e de estados de alma;
um mundo de inclinações, de desejos e de volições. Para dispor de uma expressão breve,
quero reunir tudo isso, à exceção das volições, sob o termo 'representação'.
Pertencem então os pensamentos a esse mundo interior? São eles representações?
Volições eles obviamente não são.
Em que as representações diferenciam-se das coisas do mundo exterior? Primeiro:
Representações não podem ser vistas ou tocadas, nem cheiradas, nem degustadas, nem
ouvidas.
Eu faço um passeio acompanhado de alguém. Eu vejo um prado verde; tenho com isso
a impressão visual do verde. Tenho-a, mas não a vejo.
Segundo: representações são tidas. Têm-se sensações, sentimentos, estados de alma,
inclinações, desejos. Uma representação tida por alguém pertence ao conteúdo de sua
consciência.
O prado e as suas rãs, o sol que os ilumina, estão lá, não importa se eu os vejo ou não;
mas a impressão sensível do verde, a qual eu tenho, só existe através de mim; eu sou o
seu portador. Parece-nos disparate supor que uma dor, um estado de alma, um desejo,
vagueiem pelo mundo na independência de um portador. Uma sensação não é possível
sem um ser sensiente. O mundo interior tem como pressuposto aquele do qual ele é mundo
interior.
Terceiro: representações necessitam de um portador. As coisas do mundo exterior são,
em comparação, auto-suficientes.
Meu acompanhante e eu estamos convencidos de que ambos vemos o mesmo prado;
mas cada um de nós tem uma impressão sensível particular de verde. Eu avisto um
morango entre as folhas verdes. Meu acompanhante não o encontra; ele é daltônico. A
impressão de cor que ele recebe do morango não se diferencia perceptivelmente daquela
que ele recebe das folhas. O meu acompanhante vê a folha verde vermelha, ou ele vê o
morango verde? Ou ele vê ambos em uma cor que me é de todo desconhecida? Essas são
questões irrespondíveis, melhor dizendo, absurdas. Pois a palavra 'vermelho', quando não
indica uma propriedade de coisas, mas deve designar as impressões sensíveis pertencentes
à minha consciência, só é aplicável no domínio de minha consciência; pois é impossível
comparar minhas impressões sensíveis com as de um outro. Para tal seria preciso reunir
em uma única consciência uma impressão sensível que pertencesse a uma consciência e
uma impressão sensível que pertencesse a uma outra consciência. Mesmo se fosse
possível que uma representação desaparecesse de uma consciência e que simultaneamente
uma representação emergisse em outra consciência, permaneceria ainda para sempre
irrespondível a questão de se saber se essa seria a mesma representação. Ser conteúdo de
minha consciência pertence, assim, à essência de cada uma de minhas representações,
sendo qualquer representação de um outro, como tal, diferente das minhas. Mas não seria
possível que minhas representações, que todo o conteúdo de minha consciência fosse
simultaneamente também conteúdo de uma consciência mais abrangente, talvez a divina?
Sem dúvida, mas somente se eu próprio fosse parte do ser divino. Mas seriam então
propriamente minhas representações? Seria eu o seu portador? Ora, isso ultrapassa a tal
ponto os limites do entendimento humano, que podemos deixar tal possibilidade fora de
consideração. Em todo caso é impossível a nós homens comparar representações de
outros com nossas próprias. Eu colho um morango; eu o seguro entre os dedos. Agora o
vê também meu acompanhante, o mesmo morango; mas cada um de nós tem a sua própria
representação. Nenhum outro tem a minha representação; mas muitos podem ver a mesma
coisa. Nenhum outro tem a minha dor. Alguém pode ter pena de mim; mas minha dor
pertence sempre a mim e a sua pena a ele. Ele não tem a minha dor e eu não tenho a sua
pena.
Quarto: cada representação tem apenas um portador; dois homens não têm a mesma
representação.
Senão ela subsistiria independentemente desse ou daquele indivíduo. É aquela tília
minha representação? Ao usar a expressão 'aquela tília' nessa pergunta, eu simplesmente
já antecipo a resposta; pois com essa expressão quero designar algo que eu vejo e que
também outros podem observar e tocar. Existem aqui duas possibilidades. Se a minha
intenção é realizada, se designo algo com a expressão 'aquela tília', então o pensamento
expresso na frase "Aquela tília é minha representação" deve ser obviamente negado. Mas
se falho em realizar minha intenção, se eu apenas penso ver sem ver realmente, se a
designação 'aquela tília' é portanto vazia, então eu me perdi, sem saber nem querer, no
domínio da ficção. Então não são verdadeiros nem o conteúdo da frase "Aquela tília é
minha representação", nem o da frase "Aquela tília não é minha representação"; pois em
ambos os casos tenho um enunciado para o qual falta o objeto. A resposta à questão só
pode ser então recusada com a justificativa de que o conteúdo da frase "Aquela tília é
minha representação" é ficcional. Decerto que eu tenho no caso uma representação; mas
não é ela o que tenho em mente com as palavras 'aquela tília'. Também poderia ser que
alguém com as palavras 'aquela tília' quisesse realmente designar uma de suas
representações; ele seria então portador daquilo que quisesse designar com tais palavras;
mas então ele não veria aquela tília, e nenhum outro homem a veria ou seria o seu
portador.
Retornando agora à questão: é o pensamento uma representação? Se o pensamento que
eu enuncio com o teorema de Pitágoras pode ser reconhecido como verdadeiro, tanto por
outros quanto por mim, então ele não pertence ao conteúdo de minha consciência, então
eu não sou o seu portador e posso apesar disso reconhecê-lo como verdadeiro. Se não se
tratasse de modo algum do mesmo pensamento a ser concebido por mim e por um outro
como o conteúdo do teorema de Pitágoras, então não se poderia simplesmente dizer 'o
teorema de Pitágoras', mas sim 'meu teorema de Pitágoras', 'seu teorema de Pitágoras', e
eles seriam diferentes, uma vez que o sentido pertence necessariamente ao teorema. Então
o meu pensamento pode ser conteúdo de minha consciência, como o seu pensamento o
conteúdo da sua. Poderia então o sentido do meu teorema de Pitágoras ser verdadeiro e o
do seu ser falso? Eu disse que a palavra 'vermelho' seria aplicável somente no domínio de
minha consciência, caso ela não apresentasse uma propriedade de coisas, mas devesse
designar algumas de minhas impressões sensíveis. Similarmente, também poderiam as
palavras 'verdadeiro' e 'falso', tal como as entendo, se aplicar somente ao domínio de
minha consciência; tal seria o caso se elas não dissessem respeito a algo cujo portador
não fosse eu mesmo, destinando-se a de algum modo assinalar conteúdos de minha
consciência. Então a verdade ficaria confinada ao conteúdo de minha consciência, e
permaneceria dubitável sobre se algo similar realmente ocorreria na consciência de
outros.
Se cada pensamento requer um portador, a cujo conteúdo de consciência ele pertence,
então ele é pensamento apenas desse portador, e não há nenhuma ciência que seja comum
a muitos, na qual muitos possam trabalhar; nesse caso talvez eu tenha a minha ciência, a
saber, um conjunto de pensamentos dos quais sou o portador, e um outro tenha a sua
ciência. Cada um de nós ocupa-se com conteúdos de sua própria consciência. Uma
contradição entre ambas as ciências é nesse caso impossível; e será simplesmente ocioso
discutir a verdade, tão ocioso e quase tão ridículo quanto seria o caso, se duas pessoas
discutissem se uma nota de 100 marcos é autêntica, no caso em que cada qual tivesse em
mente a nota que ele tivesse em seu próprio bolso e entendesse a palavra 'autêntico' em
seu próprio sentido particular. Se alguém considera os pensamentos como sendo
representações, então aquilo que ele reconhece como verdadeiro é, em sua própria
opinião, conteúdo de sua consciência, e a outros em nada concerne. E se ele ouvisse de
mim a opinião de que pensamentos não são representações, então ele não poderia
contestá-la, pois essa opinião também em nada lhe concerniria.
O resutado parece ser o seguinte: os pensamentos não são nem coisas do mundo
exterior, nem representações.
Um terceiro reino precisa ser reconhecido. O que a ele pertence assemelha-se, por um
lado, às representações, por não poder ser percebido pelos sentidos, e por outro lado às
coisas, por não precisar de nenhum portador ao qual pertença como conteúdo de
consciência. Assim, por exemplo, é o pensamento que proferimos com o teorema de
Pitágoras atemporalmente verdadeiro, verdadeiro independentemente de qualquer pessoa
o tomar por verdadeiro. Ele não precisa de nenhum portador. Ele não é verdadeiro a partir
de quando foi descoberto, assim como um planeta que, mesmo antes que alguém o tivesse
observado, já se encontrava em interação com outros planetas(5).
Mas uma estranha objeção parece chegar-me aos ouvidos. Eu assumi várias vezes que
a mesma coisa que vejo também poderia ser observada por um outro. Mas como seria se
tudo fosse apenas um sonho? Se eu apenas sonhasse meu passeio em companhia de um
outro, se eu apenas sonhasse que minha companhia, como eu, visse o mesmo prado verde,
se tudo isso fosse apenas um teatro representado no palco de minha consciência, então
seria dubitável a própria existência de coisas do mundo externo. Talvez o reino das coisas
seja vazio, e eu não veja coisa alguma, nem homem algum, mas tenha apenas
representações das quais eu mesmo seja o portador. Uma representação, sendo algo que
não existe independentemente de mim mais do que o meu sentimento de cansaço, não
pode ser um homem, não pode contemplar junto a mim o mesmo prado, não pode ver o
morango que eu seguro. Que eu possua apenas o meu mundo interior, ao invés de todo o
mundo circundante, no qual eu suponho me movimentar e agir, é por demais
inacreditável. Essa é, não obstante, uma conseqüência inevitável do princípio de que só
minhas representações podem ser objeto de minha observação. O que se seguiria desse
princípio se ele fosse verdadeiro? Existiriam então outros homens? Isso seria possível;
mas eu não saberia nada acerca deles; pois um homem não poderia ser minha
representação, e, por conseqüência, se nosso princípio fosse verdadeiro, também não
poderia ser objeto de minha observação. E com isso seria retirada a base de todas as
considerações com as quais eu supus que algo seria objeto para um outro da mesma forma
que para mim; pois, mesmo que isso viesse a ocorrer, eu nada saberia a respeito. Ser-me-
ia impossível distinguir aquilo de que eu sou portador daquilo de que eu não sou portador.
Na medida em que julgasse que algo não seria minha representação, eu o faria objeto de
meu pensamento e com isso minha representação. Existe, segundo essa concepção, um
prado verde? Talvez, mas ele não me seria visível. Se um prado não é minha
representação, então ele não pode, segundo nosso princípio, ser objeto de minha
consideração. Mas se ele é minha representação, então é invisível; pois representações
não são visíveis. Eu posso, com efeito, ter a representação de um prado verde; mas ela
própria não é verde, pois representações verdes não existem. Há segundo essa concepção
um projétil com o peso de 100 Kg? Talvez; mas eu não poderia saber nada acerca dele.
Se um projétil não é minha representação, então ele não pode ser objeto de minha
representação, de meu pensamento. Mas se um projétil fosse minha representação, ele
não teria peso algum. Eu posso ter uma representação de um projétil pesado. Essa
representação contém então, como parte constituinte, a representação de peso. Essa
representação parcial não é, no entanto, propriedade da representação completa, tão pouco
como a Alemanha é propriedade da Europa. Disso resulta:
Ou é falso o princípio de que só aquilo que é minha representação pode ser objeto de
minha observação, ou todo o meu saber e perceber limita-se ao domínio de minhas
representações, ao palco de minha consciência. Nesse caso eu teria somente o meu mundo
interior e nada saberia de outros homens.
É estranho como no curso de tais considerações os opostos se convertem um no outro.
Consideremos, por exemplo, um fisiologista dos sentidos. Como convém a um
pesquisador da natureza, ele está desde o princípio muito distante de tomar as coisas que
ele está convencido de que vê e toca por suas representações. Ao contrário, ele acredita
ter nas impressões sensíveis os testemunhos mais confiáveis das coisas, as quais
subsistem na completa independência de seu sentir, de seu representar, de seu pensar, e
prescindem de sua consciência. Ele reconhece fibras nervosas e células ganglionares tão
pouco como conteúdo de sua consciência, que ele é antes tentado, ao contrário, a ver a
sua consciência como dependente de fibras nervosas e células ganglionares. Ele constata
que raios de luz refratados no olho encontram os terminais do nervo óptico e lá produzem
uma modificação, um estímulo. Disso alguma coisa é transmitida, através de fibras
nervosas, a células ganglionares. Isso conduz a talvez outros processos no sistema
nervoso, e sensações de cores surgem, as quais se combinam naquilo que talvez
chamemos de representação de uma árvore. Entre a árvore e minha representação
intercalam-se processos físicos, químicos, fisiológicos. Ao que parece, porém, somente
as ocorrências em meu sistema nervoso se conectam diretamente à minha consciência; e
cada observador da árvore tem os seus processos particulares em seu sistema nervoso
particular. Os raios de luz também podem, antes de penetrarem em meu olho, ter sido
refletidos pela superfície de um espelho, propagando-se então como se fossem
provenientes de um lugar atrás do espelho. Os efeitos sobre o nervo óptico e tudo o que
daí se segue terão lugar exatamente como se os raios de luz fossem provenientes de uma
árvore atrás do espelho e se propagassem sem entraves diretamente até os meus olhos.
Assim é que a representação de uma árvore também pode dar-se, mesmo quando árvore
alguma existe. Também a difração da luz, pela mediação dos olhos e do sistema nervoso,
pode dar lugar a uma representação que não corresponde a nada. A estimulação do nervo
óptico não precisa sequer da luz para ocorrer. Se um raio cai perto de nós, cremos ver
chamas, mesmo quando não podemos ver o próprio raio. O nervo óptico é nesse caso
estimulado por cargas elétricas surgidas em nosso corpo como efeito do raio. Se o nervo
óptico é através disso estimulado do mesmo modo que por raios de luz provenientes de
chamas, então cremos ver chamas. Isso se dá somente pelo estímulo do nervo óptico;
como ele se efetua é indiferente.
Pode ser dado mais um passo adiante. Propriamente falando, esse estímulo do nervo
óptico não é algo diretamente dado, mas mera suposição. Nós acreditamos que uma coisa
independente de nós estimula um nervo e por meio disso produz uma impressão sensível;
mas, estritamente falando, o que vivenciamos é apenas o final desse processo, que se
imprime em nossa consciência. Não poderia essa impressão sensível, essa sensação, que
nós atribuimos a uma estimulação nervosa, ter também outras causas, assim como o
mesmo estímulo nervoso pode surgir por meios diferentes? Se chamamos àquilo que
emerge em nossa consciência de representação, então vivenciamos propriamente apenas
representações, mas não as suas causas. E se o pesquisador quer manter-se distante de
tudo o que for mera suposição, restam-lhe apenas representações; tudo se desfaz em
representações, também os raios de luz, as fibras nervosas e as células ganglionares, com
as quais ele havia começado. Assim ele termina por solapar os fundamentos de sua própria
construção. Tudo é representação? Tudo precisa de um portador, sem o que não possui
nenhuma existência? Eu me considerei como portador de minhas representações; mas não
sou eu mesmo uma representação? Parece-me assim como se eu estivesse deitado em uma
cadeira de repouso, como se visse um par de pontas de botas polidas, a parte da frente de
uma calça, um costume, botões, partes de um paletó, especialmente as mangas, duas
mãos, alguns fios de barba, os difusos contornos de um nariz. E essa união de impressões
visuais, essa representação completa, sou eu mesmo? É também como se eu visse lá uma
cadeira. Isso é uma representação. Eu não me diferencio propriamente tanto assim dela,
afinal não sou eu próprio também uma união de impressões sensíveis, uma representação?
Mas onde está então o portador dessas representações? Como chego a escolher uma
dessas representações e instituí-la como portadora das outras? Porque precisa ser essa a
representação que eu prefiro chamar de eu? Não poderia igualmente escolher para tal
aquela que eu sou tentado a chamar de cadeira? Mas para que, afinal, um portador de
representações? Um portador seria sempre algo essencialmente diverso das
representações que porta, algo independente, que não precisaria de nenhum portador
estranho. Se tudo é representação, então não existe nenhum portador de representações.
E assim assisto novamente a uma conversão ao oposto. Se não há nenhum portador das
representações, então não há também nenhuma representação; pois representações
precisam de um portador sem o qual elas não podem subsistir. Onde não há soberano não
há súditos. A dependência da sensação com respeito àquele que a tem, que me senti
movido a reconhecer, desaparece quando não há nenhum portador. O que eu denominei
representação são então objetos auto-suficientes. Falta então qualquer razão para se
conceder um lugar especial àquele objeto que eu chamo de eu.
Mas é isso possível? Pode ser dada uma vivência sem alguém que a vivencie? O que
seria de todo esse espetáculo sem um espectador? Pode haver uma dor sem alguém que a
tenha? À dor pertence necessariamente o fato dela ser sentida, e ao sentir pertence
ademais alguém que sente. Mas então há algo que não é minha representação e que pode
ser objeto de minha consideração, de meu pensamento; eu próprio sou tal coisa. Ou posso
eu ser parte do conteúdo de minha consciência, enquanto uma outra parte é talvez uma
representação da lua? Tem lugar talvez algo assim quando eu julgo que eu observo a lua?
Então essa primeira parte teria uma consciência, e uma parte do conteúdo dessa
consciência seria outra vez eu. E assim por diante. Que eu estivesse deste modo em mim
mesmo infinitamente encapsulado é de todo impensável; pois então não haveria só um
eu, mas uma infinidade deles. Eu não sou a minha própria representação; e se afirmo algo
sobre mim, por exemplo, que eu no momento não sinto dor alguma, então meu juízo diz
respeito a algo que não é conteúdo de minha consciência, que não é minha representação,
a saber, a mim mesmo. Portanto, aquilo sobre o que enuncio algo não é necessariamente
minha representação. Mas talvez alguém objete: se eu penso que no momento eu não
tenho dor, a palavra 'eu' não corresponde então a algo no conteúdo de minha consciência?
E não é isso uma representação? Pode ser. Com a representação da palavra 'eu' pode vir
associada em minha consciência uma certa representação. Mas nesse caso ela é uma
representação entre outras representações, e eu sou seu portador, como sou portador das
outras representações. Eu tenho uma representação de mim, mas não sou eu essa
representação. É preciso distinguir com rigor entre o que é conteúdo de minha
consciência, a minha representação, e aquilo que é objeto de meu pensamento. É portanto
falso o princípio segundo o qual só pode ser objeto de minha consideração, de meu
pensamento, o que pertence ao conteúdo de minha consciência.
Agora o caminho está aberto para que eu possa reconhecer também um outro homem
como portador auto-suficiente de representações. Eu tenho uma representação dele; mas
não a confundo com ele próprio. E se enuncio algo sobre meu irmão, então isso não é
enunciado da representação que tenho de meu irmão.
O enfermo que tem uma dor é portador dessa dor; mas o médico que o trata e que reflete
sobre a causa dessa dor não é portador da dor. Ele não imagina que possa acalmar a dor
de seu paciente anestesiando-se a si mesmo. É verdade que à dor do enfermo pode
corresponder uma representação na consciência do médico; mas essa última não é a dor
e não é aquilo que o médico se esforça por extinguir. O médico pode consultar um outro
médico. Então precisa ser distinguido: primeiro a dor, cujo portador é o enfermo; segundo
a representação dessa dor pelo primeiro médico; terceiro a representação dessa dor pelo
segundo médico. Essa representação pertence, com efeito, ao conteúdo da consciência do
segundo médico; ela não é, porém, objeto de sua reflexão, mas talvez um recurso auxiliar
de sua reflexão, como um desenho também pode sê-lo. Ambos os médicos têm como
objeto comum a dor do enfermo, da qual eles não são portadores. Deixa-se ver com isso
que não só uma coisa, mas também uma representação, pode ser um objeto comum do
pensamento para pessoas que não têm tal representação.
Assim me parece que a questão se torna inteligível. Se o homem não pudesse pensar e
tomar como objeto de sua consciência algo do qual ele não é o portador, ele teria
certamente um mundo interior, mas não um mundo circundante. Mas isso não pode
repousar em um erro? Eu estou convencido de que a representação que associo às palavras
'meu irmão' corresponde a algo que não é minha representação e sobre o qual posso dizer
alguma coisa. Mas não posso me enganar quanto a isso? Tais erros acontecem. Caímos,
malgrado as nossas intenções, na ficção. Com efeito! Com o passo, pelo qual eu conquisto
um mundo circundante, exponho-me ao perigo de errar. E aqui deparo-me com mais uma
diferença entre meu mundo interior e o mundo exterior. Eu não posso pôr em dúvida que
tenho a impressão visual do verde; mas que eu vejo uma folha de tília não é tão certo.
Assim encontramos, contrariamente a uma opinião muito difundida, segurança no mundo
interior, enquanto em nossas excursões pelo mundo exterior a dúvida nunca nos abandona
de todo. Não obstante, a probabilidade é aqui em muitos casos dificilmente diferenciável
da certeza, tanto que podemos ousar julgar sobre as coisas do mundo exterior. E
precisamos ousar, mesmo sob o perigo do erro, se não quisermos sucumbir a perigos
muito maiores.
Como resultado das últimas considerações constato o seguinte: nem tudo o que pode
ser objeto de meu conhecimento é representação. Eu próprio não sou, como portador de
representações, uma representação. Nada me impede agora de reconhecer outros homens
como portadores de representações, à semelhança de mim mesmo. E se a possibilidade
uma vez é dada, a probabilidade é muito grande, tão grande que ela não se distingue mais
da minha concepção de certeza. Haveria de outro modo uma ciência da história? Não
seria, se fosse de outro modo, cada doutrina da obrigação e cada direito ilusório? O que
restaria da religião? Também as ciências da natureza só poderiam ser valorizadas como
ficções, à semelhança da astrologia e da alquimia. Portanto, as reflexões que coloquei em
pauta, sob o pressuposto da existência de outros homens além de mim mesmo, que podem
junto a mim tomar a mesma coisa como objeto de suas considerações, de seu pensamento,
permanecem essencialmente não debilitadas em sua força.
Nem tudo é representação. Posso assim reconhecer também o pensamento que outros
homens, tanto quanto eu, podem apreender, como independente de mim. Eu posso
reconhecer uma ciência, a qual muitos se aplicam em pesquisar. Nós não somos
portadores dos pensamentos como somos portadores de nossas representações. Nós não
temos um pensamento tal como temos uma impressão sensível; nós também não vemos
um pensamento, tal como vemos uma estrela. Por isso é aconselhável escolher aqui uma
expressão especial. A palavra 'apreender' serve para tal propósito. À apreensão(6) do
pensamento deve corresponder uma faculdade mental especial, o poder de pensar. Pelo
pensar não produzimos pensamentos, mas os apreendemos. Pois o que chamei de
pensamentos está na mais estreita conexão com a verdade. O que reconheço como
verdadeiro eu julgo como sendo verdadeiro na completa independência do meu
reconhecimento de sua verdade, independentemente mesmo de eu pensar nisso. À
verdade de um pensamento não pertence o nele pensar. "Fatos! Fatos! Fatos!", exclama o
pesquisador da natureza, quando ele quer proclamar a necessidade de uma fundamentação
segura da ciência. O que é um fato? Um fato é um pensamento que é verdadeiro. O
cientista da natureza certamente não irá reconhecer como o fundamento seguro da ciência
algo dependente dos mutáveis estados de consciência humanos. O trabalho da ciência não
consiste em um criar, mas em um descobrir de pensamentos verdadeiros. O astrônomo
pode aplicar uma verdade matemática na investigação de acontecimentos há muito
passados, que ocorreram quando ainda não havia ninguém na terra que reconhecesse a
sua verdade. Ele pode fazer isso porque a verdade de um pensamento é atemporal.
Portanto, tal verdade não pode ter surgido primeiro com a sua descoberta.
Nem tudo é representação. Senão a psicologia conteria todas as ciências em si ou seria,
ao menos, o mais alto juiz sobre todas as ciências, dominando também a lógica e a
matemática. Mas nada deixaria a matemática mais incompreendida que a sua
subordinação à psicologia. Nem a lógica nem a matemática tem como tarefa investigar a
mente e os conteúdos de consciência, cujo portador é o homem individual. Talvez se
pudesse antes assinalar como sua tarefa a investigação da mente: da mente, não das
mentes.
A apreensão do pensamento pressupõe alguém que o apreenda, um ser pensante. Ele é
então o portador do pensar, mas não do pensamento. Ainda que o pensamento não
pertença ao conteúdo de consciência do ser pensante, deve haver algo em sua consciência
que tenha em vista o pensamento. Mas isso não pode ser confundido com o pensamento
como tal. Também Algol, como tal, é algo diverso da representação que alguém tem de
Algol.
O pensamento não pertence nem ao meu mundo interior, como representação, nem ao
mundo exterior, o mundo das coisas perceptíveis aos sentidos.
Este resultado, por mais forçosamente que ele possa advir do que foi exposto, não será
talvez aceito sem resistência. A alguns parecerá, eu penso, impossível obter conhecimento
de algo que não pertença ao seu mundo interior, a não ser pela percepção sensível. De
fato, a percepção sensível é freqüentemente vista como sendo a mais segura, até mesmo
como a única fonte de conhecimento para tudo o que não pertence ao mundo interior. Mas
com que direito? À percepção sensível pertence, é certo, como constituinte necessário, a
impressão sensível, e essa é parte do mundo interior. Em todo caso, dois homens não
podem ter a mesma impressão sensível, ainda que eles possam ter impressões sensíveis
assemelhadas. Elas sozinhas não nos revelam o mundo exterior. Talvez exista um ser que
tenha apenas impressões sensíveis, sem ver ou tocar coisas. O ter impressões visuais não
é ainda nenhum ver as coisas. Como se dá que eu veja a árvore precisamente lá onde a
vejo? Obviamente, isso depende das impressões sensíveis que tenho, e da espécie
particular daquelas que resultam de eu ver com dois olhos. Em cada uma das duas retinas
surge, fisicamente falando, uma imagem particular. Um outro vê a árvore no mesmo
lugar. Também ele tem duas imagens retinianas, mas elas diferem das minhas. Devemos
supor que essas imagens retinianas são determinantes para nossas impressões.
Conseqüentemente, as impressões visuais que temos não só não são as mesmas, como
diferem marcadamente entre si. E mesmo assim movimentamo-nos no mesmo mundo
exterior. Ter impressões visuais é de fato necessário para se verem as coisas, mas não é
suficiente. O que ainda precisa ser adicionado nada tem de sensível. E isso é exatamente
o que nos descerra o mundo exterior; pois, sem esse algo não-sensível, cada qual
permaneceria fechado em seu mundo interior. Assim, dado que o fator decisivo
permanece no domínio do não-sensível, algo não-sensível, mesmo sem qualquer
colaboração de impressões sensíveis, poderia conduzir-nos para fora do mundo interior e
possibilitar-nos a apreensão de pensamentos. Fora de nosso mundo interior, deveríamos
distinguir o mundo exterior propriamente dito das coisas perceptíveis aos sentidos, e o
reino daquilo que não é sensivelmente perceptível. Para o reconhecimento de ambos os
reinos necessitamos de algo não-sensível; mas na percepção sensível de coisas são
requeridas impressões sensíveis, as quais pertencem inteiramente ao mundo interior.
Assim, a diferença entre os modos pelos quais um pensamento e uma coisa são dados
baseia-se principalmente em algo que não pertence a nenhum dos dois reinos, mas ao
mundo interior. Assim, não posso considerar essa diferença tão grande a ponto de tornar
impossível que sejam dados pensamentos não pertencentes ao mundo interior.
Decerto, o pensamento não é algo que estamos acostumados a chamar de real. O mundo
do que é real é um mundo no qual isso age naquilo, modificando-o e, por sua vez, sofrendo
reações através das quais se modifica. Tudo isso é um acontecer no tempo. Dificilmente
reconheceremos como sendo real o que é atemporal e imutável. É então o pensamento
mutável, ou é ele atemporal? O pensamento que enunciamos com o teorema de Pitágoras
é, não obstante, seguramente atemporal, eterno, imutável. Mas não há também
pensamentos que hoje são verdadeiros, e falsos daqui a seis meses? O pensamento, por
exemplo, de que a árvore que lá se encontra está coberta de folhas verdes não será falso
após seis meses? Não; pois não se trata mais do mesmo pensamento. Por si mesmo, o som
das palavras "Essa árvore tem a copa verde" não basta para a expressão do pensamento,
pois o tempo da fala a ela pertence. Sem a determinação do tempo aqui dada pelo
momento da fala, não temos nenhum pensamento completo, i.é., absolutamente nenhum
pensamento. Só a frase suplementada pela determinação do tempo e em todos os aspectos
completa, expressa um pensamento. Esse último, contudo, caso verdadeiro, o é não só
hoje ou amanhã, mas atemporalmente. O praesens em 'é verdade' não indica, pois, a
atualidade do falante, mas é, se a expressão é permitida, um tempus da atemporalidade.
Quando nós simplesmente empregamos a forma da frase assertórica, evitando a palavra
'verdadeiro', duas coisas precisam ser distinguidas: a expressão do pensamento e a sua
asserção. A determinação do tempo que pode estar contida na frase pertence somente à
expressão do pensamento, enquanto a verdade, cujo reconhecimento é dado pela forma
da frase assertórica, é atemporal. É certo que as mesmas palavras podem, devido à
variabilidade da linguagem, adquirir com o tempo um outro sentido, expressar um outro
pensamento; mas a mudança concerne então ao domínio lingüístico.
Ora, mas que valor poderia ter para nós o eternamente imutável, que nem sofre efeitos
nem os têm sobre nós? Algo inteiramente e sob qualquer aspecto sem efeitos seria
também totalmente irreal e inexistente para nós. Mesmo o atemporal, se é algo para nós,
precisa de algum modo envolver-se com a temporalidade. O que seria para mim um
pensamento que nunca pudesse ser por mim apreendido? Ao apreender um pensamento,
porém, entro em uma relação com ele e ele comigo. É possível que o mesmo pensamento
que hoje é por mim pensado não tenha sido pensado por mim ontem. Com isso é a estrita
atemporalidade do pensamento de fato suspensa. Mas somos inclinados a distinguir entre
propriedades essenciais e inessenciais e a reconhecer algo como atemporal, quando as
mudanças que ele sofre envolvem apenas as suas propriedades inessenciais. Uma
propriedade de um pensamento será chamada de inessencial se ela consiste ou se segue
do fato de ele ser apreendido por um ser pensante.
Como age um pensamento? Por ser apreendido e tomado por verdadeiro. Isso é uma
ocorrência no mundo interior de um ser pensante, que pode ter novas conseqüências nesse
mundo interior, as quais, estendendo-se à esfera da vontade, acabam se fazendo notar no
mundo exterior. Se eu, por exemplo, apreendo o pensamento enunciado pelo teorema de
Pitágoras, uma conseqüência pode ser a de que eu o reconheça como verdadeiro e que,
além disso, eu o aplique ao tomar uma decisão que produz aceleração de massas. Assim
são as nossas ações habitualmente preparadas pelo pensar e pelo julgar. E assim podem
pensamentos ter influência indireta sobre o movimento de massas. O efeito do homem
sobre o homem é no mais das vezes mediado através de pensamentos. Comunica-se um
pensamento. Como isso ocorre? Produzem-se mudanças no mundo exterior comum, as
quais são percebidas por outros, devendo conduzi-los a apreender um pensamento e a tê-
lo por verdadeiro. Os grandes acontecimentos da história do mundo poderiam ser
realizados de outro modo que não pela comunicação de pensamentos? Somos porém
inclinados a considerar os pensamentos irreais, porque eles parecem sem inativos nos
acontecimentos, enquanto o pensar, o julgar, o asserir, o entender, são todos ações
humanas. Quão diversamente real parece um martelo, se comparado com um
pensamento! Quão diversa é a ocorrência da transferência de um martelo daquela pela
qual um pensamento é comunicado! O martelo passa de um domínio de força para um
outro, ele é tomado, sofre uma pressão e com isso muda a densidade, a disposição de suas
partes. Nada disso se dá com o pensamento. O pensamento não abandona, pela
comunicação, o domínio de força de quem o comunica; pois no fundo o ser humano não
tem o menor poder sobre ele. Sendo apreendido, o pensamento causa mudanças, primeiro
só no mundo interior de quem o apreende; mas ele próprio, no âmago de seu ser,
permanece intocado, pois as alterações que ele sofre dizem respeito apenas a propriedades
inessenciais. Falta aqui aquilo que nós reconhecemos em todos os fenômenos naturais: a
ação recíproca. Os pensamentos não são inteiramente irreais, mas a sua realidade é de
uma espécie totalmente diferente da das coisas. E a sua eficiência é liberada através da
ação do ser pensante, sem a qual ele ficaria sem efeito - pelo menos tanto quanto podemos
ver. E realmente, aquele que os pensa não os cria, precisando tomá-los como eles são. Os
pensamentos podem ser verdadeiros sem ser apreendidos por um pensador, e não são
então totalmente irreais, ao menos enquanto eles podem ser apreendidos e através disso
tornados capazes de produzir efeitos.

Notas:
_________
(*) O texto de Frege foi originalmente publicado sob o título de "Der Gedanke - eine
logische Untersuchung", em Beiträge zur Philosophie des deutschen Idealismus, caderno
2, vol. 1, pp. 58-77, 1918-19. "O Pensamento" é a primeira e mais importante de uma
série de três investigações lógicas internamente relacionadas, todas elas publicadas na
mesma revista. A atual tradução, que contou com revisão especializada do professor
Marco A. Ruffino, a quem eu gostaria de agradecer. Ela foi primeiramente publicada nos
Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 3, vol. 8, n. 1, janeiro-junho de 1998,
sendo republicada aqui com permissão do editor.

(**) (N.T.) O termo alemão 'Satz' foi traduzido como 'frase'. A palavra 'Satz' tem sido em
geral traduzida como 'proposição', em parte devido à influência do uso da palavra
'proposition' na literatura filosófica inglesa (Peter Geach, contudo, preferiu em sua
tradução de "O pensamento" a palavra 'sentence'). 'Proposição' é, porém, um termo
ambíguo, que também pode denotar um conteúdo de pensamento que independe de sua
expressão lingüística, o que Frege chama de pensamento. Ora, em português podemos
evitar essa ambigüidade, dado que dispomos da palavra 'frase', um equivalente natural e
semanticamente mais próximo à palavra 'Satz', que significa em Frege (geralmente) frase
com sentido. É verdade que essa tradução mais técnica e menos literal tornou-se usual;
mas é sempre tempo de se tentar corrigi-la.
1. Similarmente já foi dito: "Um juízo é algo que é verdadeiro ou falso". De fato, uso a
palavra 'pensamento' aproximadamente no sentido de 'juízo' nos escritos dos lógicos. Eu
espero que se torne compreensível, no que se segue, porque prefiro a palavra
'pensamento'. Tal explicação tem sido censurada, porque nela é dada uma divisão dos
juízos em verdadeiros e falsos, a qual, de todas as divisões dos juízos talvez seja a menos
significativa. Mas não posso reconhecer como uma insuficiência lógica o fato de que com
a explicação possa ser dada ao mesmo tempo uma divisão. No que diz respeito à
relevância da divisão, não se deve menosprezé-la se, como eu disse, a palavra 'verdade'
indica à lógica a sua direção.
2. Uso a palavra 'frase' aqui não de todo no sentido gramatical, o qual também inclui
frases subordinadas. Isoladamente, uma frase subordinada nem sempre tem um sentido
do qual se pode questionar a verdade, enquanto a combinação de frases, à qual ela
pertence, tem um tal sentido.
3. Parece-me que até agora não se distinguiu suficientemente pensamento de juízo. A
linguagem induz talvez a isso. Nós não temos em frases assertóricas nenhuma parte
específica correspondente à asserção; que se afirme vem já implícito na forma da frase
assertórica. Em alemão temos uma vantagem no fato de que frase principal e a frase
subordinada se distinguem pela ordem de colocação das palavras. Mas é preciso notar
que uma frase subordinada também pode conter uma asserção, e que freqüentemente nem
a frase principal nem a frase subordinada, tomadas em si mesmas, expressam um
pensamento completo, mas só a frase complexa.
4. Não me encontro aqui na feliz situação de um mineralogista, que mostra um cristal de
rocha aos seus ouvintes. Não posso colocar um pensamento nas mãos de meus leitores,
com o pedido de que eles melhor o observem, de todos os lados. Devo satisfazer-me em
apresentar ao leitor o pensamento, que em si é não-sensível, na forma lingüística sensível.
Mas aqui o caráter figurativo da linguagem produz dificuldades. O sensível pressiona-se
sempre de novo, tornando a expressão figurativa imprópria. Assim surge um conflito com
a linguagem, e vejo-me compelido a ocupar-me com a linguagem, embora essa não seja
aqui a minha tarefa específica. Espero ter conseguido esclarecer aos meus leitores o que
quero chamar de pensamento.
5. Vê-se uma coisa, tem-se uma representação, apreende-se ou pensa-se um pensamento.
Quando se apreende ou se pensa um pensamento, não se o cria, mas apenas depara-se
com ele, que já existia antes, e isso em uma certa relação que é diferente das relações do
ver uma coisa e do ter uma representação.
6. A expressão 'apreender' é tão metafórica quanto 'conteúdo da consciência'. A essência
da linguagem não permite algo diverso. O que tenho na mão pode ser considerado como
o conteúdo da mão, mas é conteúdo da mão em um sentido muito diverso dos ossos e
músculos em que ela consiste e das suas tensões.

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