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Apontamentos sobre a teoria da correspondência - corrente filosófica

largamente utilizada para fundamentar a verdade real no processo penal


Felipe Martins Pinto

Historicamente, diversos adjetivos foram empregados e ainda o são


em conjunto com a palavra verdade para estabelecer o objetivo do processo
penal: verdade objetiva, verdade real, verdade processual, verdade
histórica etc. E todas as expressões, de maneira indistinta, designam um
mesmo conceito que enceta a ideia da possibilidade de obter o
conhecimento absoluto sobre a verdade no processo penal, uma perfeita
correspondência do enunciado com a realidade
No processo penal pátrio e em diversos ordenamentos ali enígenas,
arrasta-se, ainda com bastante fôlego e com poucos questionamentos, o
legado inquisitorial da verdade processual segundo a teoria da
correspondência, seja por cômoda ignorância ou por uma ingenuidade
funcional.
A j ustiça moderna obedece ainda ao idealismo metafísico
das antigas escolas; serve ainda para aplicar um artigo do
Códi go Penal a uma pessoa vi va , doloroso manequi m, do
qual o j uiz não conhece, na realidade ou por ficção legal,
nem as condições pessoais, nem a vida física, intelectual
e moral, e do qual ele não sabe mais nada, após havê -l o
marcado com o selo da lei 1.

A verdade foi objeto de estudos de Aristóteles em diversos escritos


e, para ilustrar a apresentação sobre a teoria da correspondência, merece
destaque o trecho do texto Categorias capítulo 12:
Se, com efeito, o homem existe, a proposição pela qual nós
dizemos que o homem existe é verdadeira; e,
reciprocamente, se a proposição pela qual nós dizemos que
o homem existe é verdadeira, o homem exist e. Contudo, a
proposição verdadeira não é de modo al gum causa da
existência da coisa; ao contrário, é a coisa que parece ser,
de algum modo, a causa da verdade da proposição, pois é
da existência da coi sa ou da sua não existência que

1
FE R RI, E nr ico . O s c r i min o so s n a a r te e n a li t era tu ra . T rad . Da g ma Zi m mer ma n n ,
P o rto Al e gr e : Ri car d o Len z, 2 0 0 1 . p . 2 4 .
dependem a verdade ou a falsidade da proposição. (14b16 -
23) 2

A verdade no processo penal ainda está atrelada a um juízo sobre


a relação de conhecimento entre o sujeito que conhece e o fato por
conhecer. Haverá êxito se existir adequação, identidade ou conformidade
entre a representação do fato pelo sujeito que busca conhecê-lo e o próprio
fato, como realidade ontológica.
Os ensinamentos de Aristóteles são o gérmen da teoria da
correspondência a qual teve um grande incremento no século XX,
especialmente através das teorias de Russell, Wittgenstein e,
posteriormente, Austin.
A teoria da correspondência concebe verdadeira a proposição capaz
de reproduzir o acontecimento, projetar a ocorrência concreta ou refletir
o fato e se escorou na ideia de que a realidade pode ser perfeitamente
refletida através de enunciados, ou seja, entende possível a existência de
uma verdade absoluta como imagem do mundo real.
Essa corrente filosófica considera que a verdade de uma sentença
ou enunciado consiste em sua coincidência com a realidade, operação esta
na qual se estriba o tradici onal e ultrapassado objetivo do processo penal:
a averiguação objetiva da verdade histórica.
O fato mostrado como possí vel deve converter -se em
realidade afirmativa ou negativa em t odos os seus
antecedentes e consequências j uridicamente relevantes. A
premissa menor do silogismo j udicial deve integrar -se
completamente, através de operações práti cas e críticas
dirigidas a obter a verdade do aconteci mento j ulgável.
Deve revi ver -se o passado em sua reconstrução e
reprodução através das manifestações atuais. 3

2
ARIST ÓT E LE S. Ca teg o ria s : tr ad ução , i n tro d u ção e co me n tár io s d e Ri card o d o s
Sa n to s. P o r to : P o r to Ed i to r a, 1 9 9 5 . p . 1 2 3 .
3
No o ri g i na l, E l h e ch o m o st ra d o co mo p o s ib le d e b e co n v er ti r se em rea lid a d a fi rma ti va
o n eg a t iva e m to d a s su s a n te ced en te s y co n secu en ci a s ju ríd ica men t e re leva n te s. La
p re mi s sa m en o r d el s il o g is mo ju d ic ia l d eb e in teg ra r se co mp le ta m en te , a t ra vé s d e
o p era c io n e s p rá c ti ca s y c rí ti ca s d i ri id a s a o b ten e r la v erd a d d e l a co n tec im ien to
ju zg a b le. Deb e re vi vi r se el p a s a d o em su reco n s tru cció n y r ep r o d u cc ió n a tra v é s d e
la s a c tu a l es ma n i fe sta ci o n es . I n , O LM ED O, J o rge A. C lar iá. o p c it . t. I. p . 2 2 5 ss.
(T rad ução l i vr e) .
Wittgenstein 4 defendeu que a significação detinha uma essência
invariável, uma dimensão metafísica 5. A correspondência consistiria em
um isomorfismo estrutural entre a estrutura de uma proposição e aquela
do fato. Assim, através de “[...] uma linguagem perf eitamente clara, o
arranjo das palavras em uma proposição atômica verdadeira refletiria o
arranjo das coisas simples no mundo ” 6, estas são, em linhas gerais, a ideia
da filosofia do atomismo lógico 7.
Russell acrescenta à versão de Wittgenstein (metafísica atomista)
a necessidade de uma linguagem ideal e desenvolve uma teoria
epistemológica que não altera fundamentalmente a essência da explicação
da verdade, a partir da qual, as coisas logicamente simples, desprezadas
por Wittgenstein, passaram a ser concebi das como dados dos sentidos, cujo
conhecimento era apreendido de maneira direta por familiaridade. 8 Dentro
desse contexto, a capacidade de correspondência de uma proposição
estaria condicionada à sua composição por nomes de objetos de
conhecimento por fami liaridade.
Por fim, Austin introduz uma visão centrada em relações
convencionais entre as palavras e o mundo e rompe a ideia do isomorfismo
estrutural entre proposição e fato.
A correspondência é explicada mediante dois tipos de
‘correlação’:
(i) ‘convenções descriti vas’, correlacionando palavras com
tipos de situação
e
(ii) ‘convenções demonst rativas’, correlacionando palavras
com situações específicas.
A idéia é que no caso de um enunciado tal como ‘Estou
com pressa’, proferido por s em t, as convenções
descritivas correlacionam as palavras com as situações nas
quais alguém está com pressa, e as convenções
demonstrati vas correlacionam as palavras com o estado de
s em t, e que o enunciado é verdadeiro se a situação

4
W it t ge n st ei n, o r i g i na l me nt e co r re sp o nd i st a, p o s terio r me nt e, ad ere à co rr e nte
p rag mat i sta , s e g u nd o a q ua l o si g n i fi cad o d e u m c o nc ei to d e ve se r d ad o p e la re fere nc ia
às co ns eq uê nc ia s p r áti ca s o u e xp eri me nt ai s d e s u a ap l ica ção .
5
CO N DÉ, M a ur o Lúc i o Lei tão . A s te ia s d a ra zã o : W it t ge n st ei n e a cri se d a
racio n al id ad e mo d er na. B elo Ho r izo n te : Ar g v me nt v m, 2 0 0 4 . p . 5 1 .
6
H AAC K , S u sa n. Fi lo so f ia d a s ló g ic as. São P a ul o : Ed . d a UN ESP , 2 0 0 2 . .p . 1 3 3 -1 3 4 .
7
O a to mi s mo ló gi co fo i cr i ad o p o r W it t ge n st e in , ma s R u s sel l fo i q u e m d i v u l go u
p ri me iro a f ilo so fi a a t o mis ta, e m s ua s co n fe rên ci as d e 1 9 1 8 , j á q u e a o b ra d e
W itt g e n ste i n so b r e a ma tér i a, o T ra ta c tu s fo i p u b lic ad a so me n te e m 1 9 2 2 .
8
H AAC K , S u sa n. o p c it . .p . 1 3 4 .
específica relacionada com as palavras por (ii) é do tipo
correlacionado com as palavras por (i). 9

9
Ib d em .p . 1 3 5 -1 3 6 .

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