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Mariângela Gama de Magalhães Gomes

C h i a v e l l i Fa c e n d a Fa l a v i g n o
Jéssica da Mata
[Orgs.]

E ss a c o l e ç ã o de a r t i g o s se a p o i a s o b r e o s a c ú -
1. Laços desfeitos, vínculos cons-
mu l o s de u m a pro du ç ã o i n t e l e c t u a l d e a l t a
truídos: um estudo sobre valores
6. Trabalho no cárcere feminino: qu a l i da de , a pre se n t a n do o a t ua l e s t á g i o d e d e -
morais e práticas legais
sentidos e perspectivas nos centros se nvo l v i m e n t o t e ó r i c o s o bre a o r d e m p a t r i a r-
Alessandra de Andrade Rinaldi
de ressocialização paulistas c a l de g ê n e ro e a br i n do a s p o s s i b i l i d a d e s p a r a
Camilla Marcondes Massaro qu e o t e m a s e j a a di a n t e a bo r d a d o c o m a i n d a 2. Abuso sexual nos transpor tes
m a i o r pro f u n di da de , po t e n c i a l i z a n d o a c o m b a - públicos: problematização do direi-
7. Blaming the victim: o compor ta- t i v i da de e a a ss e r t i v i da de n a l u t a a n t i p a t r i a r c a l . to penal sexual sob a per spectiva
mento vitimal à luz da criminolo- de gênero

de
gia feminista
Amanda Bessoni Boudoux Salgado
Daniela Car valho Portugal
3. O patriarcalismo tardio como
8. Violência do gênero no Brasil: causa do superencarceramento de
ambiguidades da política criminal mulheres no Brasil
Debora Diniz; Sinara Gumieri

de
Ana Carla Harmatiuk Matos; Tani
9. Feminicídio, invisibilidade e Maria Wurster
espetacularização: refinamento da 4. O fantasma do macho no corpo
análise típica a par tir dos marca- travesti: violência, reconhecimento e
dores de gênero [orgs.]
poder jurídico
Julia Somberg; Paula Rocha Gouvêa

Jéssica da Mata
C h i a v e l l i F a c e n d a Fa l a v i g n o
Mariângela Gama de Magalhães Gomes
Brener ; Marcelo Maciel Ramos uma abordagem sob a ótica das ciências criminais Ana Gabriela Braga; Victor Siqueira
Serra
10. O tráfico das mulheres: constru- 5. As famílias de presos e os efeitos
ção social da “mula” como vítima do sociais do cárcere: revisão bibliográ-
tráfico de pessoas fica e novos desafios para a produ-
Tatiana Theodoro Gasparini ção futura
Bruna Rachel de Paula Diniz

ISBN 978-85-8425-958-8

editora
de
uma abordagem sob a ótica das ciências criminais
Mariângela Gama de Magalhães Gomes
C h i a v e l l i Fa c e n d a Fa l a v i g n o
Jéssica da Mata
[Orgs.]

de
uma abordagem sob a ótica das ciências criminais
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Copyright © 2018, Os Autores.
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Catalogação na Publicação (CIP)


Ficha catalográfica

Questões de gênero: uma abordagem sob a ótica das ciências criminais. GOMES,
Mariângela Gama de Magalhães; FALAVIGNO, Chiavelli Facenda; MATA,
Jéssica da. [Orgs] -- Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.

Bibliografia.
ISBN: 978-85-8425-958-8

1. Direito Penal. 2. Direitos Fundamentais. 3. Estudos de Gênero. I. Título.

CDU343 CDD341.5
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22º CONCURSO DE MONOGRAFIAS DE CIÊNCIAS


CRIMINAIS – IBCCRIM
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24º SEMINÁRIO INTERNACIONAL


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Ana Paula da Silva
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Tânia Andrade

NÚCLEO DE PUBLIC AÇÕES


S U P E RV I SÃO
Willians Meneses

EQUIPE
Rafael Vieira
Taynara Lira
Sumário

Apresentação  13

1. Laços desfeitos, vínculos construídos: um estudo


sobre valores morais e práticas legais  15
Alessandra de Andrade Rinaldi

2. Abuso sexual nos transportes públicos:


problematização do direito penal sexual
sob a perspectiva de gênero  37
Amanda Bessoni Boudoux Salgado

3. O patriarcalismo tardio como causa do


superencarceramento de mulheres no Brasil 63
Ana Carla Harmatiuk Matos
Tani Maria Wurster

4. O fantasma do macho no corpo travesti:


violência, reconhecimento e poder jurídico  85
Ana Gabriela Braga
Victor Siqueira Serra
5. As famílias de presos e os efeitos sociais do
cárcere: revisão bibliográfica e novos
desafios para a produção futura  121
Bruna Rachel de Paula Diniz

6. Trabalho no cárcere feminino: sentidos e perspectivas


nos centros de ressocialização paulistas  147
Camilla Marcondes Massaro

7. Blaming the victim: o comportamento


vitimal à luz da criminologia feminista  173
Daniela Carvalho Portugal

8. Violência do gênero no Brasil: ambiguidades


da política criminal  195
Debora Diniz
Sinara Gumieri

9. Feminicídio, invisibilidade e espetacularização:


refinamento da análise típica a partir dos
marcadores de gênero  209
Julia Somberg
Paula Rocha Gouvêa Brener
Marcelo Maciel Ramos

10. O tráfico das mulheres: construção social da


“mula” como vítima do tráfico de pessoas  233
Tatiana Theodoro Gasparini

Os(as) Autores(as)  273


Apresentação

A desigualdade de gênero no Brasil é caracterizada pela ostensibilidade


da violência que lhe é constitutiva. A força com que se impõem a dominação
e a exploração de gênero no país é materializada tanto nos corpos das nume-
rosas vítimas de violência doméstica, transfobia e mortes em decorrência de
abortos clandestinos, quanto no crescimento vertiginoso do encarceramento
feminino dos últimos anos. Este, aliás, que se dá sobre uma estrutura que
não abarca de nenhuma forma as necessidades ínsitas do indivíduo mulher.
A própria estrutura da prisão, pensada para o masculino, funciona como mais
uma forma de violência.
A crueza da ordem patriarcal – que pode ser vislumbrada a todo momento
em fatos cotidianos como campanhas publicitárias, diferenças salariais, etc. – tem
sido objeto de uma intensa polarização política entre os setores progressistas
– destacadamente, os movimentos feministas e LGBT – e os conservadores –
representados, sobretudo, por lideranças parlamentares e organizações políticas
de forte orientação religiosa, cuja atuação enviesada em muito vilipendia a
laicidade do Estado e, em consequência, a efetividade democrática.
É com orgulho, portanto, que apresentamos o livro “Questões de gênero:
uma abordagem sob a ótica das ciências criminais” obra que deve somar-se
às inúmeras e honrosas batalhas travadas pela igualdade de gênero em nosso
país, fundamentais para a defesa da democracia brasileira. A academia, por-
tanto, vem também colaborar nessa luta e nesse debate, que se dá pelo viés
das mais diversas áreas pertinentes às ciências criminais, como o direito e o
processo penal, a criminologia, a política criminal, a antropologia, a sociologia,
etc., e também por meio das mais diversas metodologias de investigação. Essa
coleção de artigos se apoia sobre os acúmulos de uma produção intelectual
de alta qualidade, apresentando o atual estágio de desenvolvimento teórico
sobre a ordem patriarcal de gênero e abrindo as possibilidades para que o

13
tema seja adiante abordado com ainda maior profundidade, potencializando
a combatividade e a assertividade na luta antipatriarcal.
Sem confundir objetividade científica com assepsia política, justamente
por compreender o caráter intrinsecamente político da crítica, o trabalho
condensado nesse livro contribui para a construção de ferramentas teóricas
adequadas para compreender, criticar e transformar as relações assimétricas
de poder baseadas no gênero. Os artigos desta coleção abordam diferentes
articulações entre a normatividade de gênero, a violência e os processos de
criminalização, tratando de temas centrais como a violência doméstica, o
despreparo das prisões brasileiras para o atendimento de necessidades básicas
das mulheres cis e transgênero, o crescimento do encarceramento feminino e
as próprias estratégias de emancipação e rompimento das barreiras impostas
pelo patriarcado.
O IBCCRIM, engajado nessa causa, espera contribuir para que, por meio
desta obra, mais um passo seja dado na discussão e na construção de ideias
que possam, paulatinamente, alterar essa realidade tão desigual. Mais que isso:
almeja-se fazer questionamentos e gerar inquietudes, dando luz e voz àquelas
que se encontram submetidas aos mais diversos tipos de violência, que tomam
forma não apenas nas ruas e prisões, mas também no interior de suas casas,
tendo por algozes, por vezes, os próprios familiares, as corporações ou, ainda,
um Estado que é cada vez mais atuante para aprisionar, mas bastante omisso
para proteger e planejar políticas públicas de inclusão.

São Paulo, julho de 2018

Mariângela Gama de Magalhães Gomes


Chiavelli Facenda Falavigno
Jéssica da Mata
[Orgs.]

14
Laços desfeitos, vínculos construídos:
um estudo sobre valores morais
e práticas legais

Alessandra de Andrade Rinaldi 1

1. Introdução
De acordo com os dados produzidos pelo Ministério da Justiça, por
meio do Levantamento Nacional de Informações penitenciárias (INFOPEN
Mulheres-2014), há 37.380 mulheres presas no Brasil, de um total de 579.7811
pessoas custodiadas no sistema penitenciário. A população carcerária feminina
é, em sua maioria, composta por jovens, com filhos, provenientes de classes
populares e com baixa escolaridade – 68% delas foram aprisionadas em razão
de envolvimento com tráfico de drogas.
A partir de informações contidas nesse relatório, “no período de 2000
a 2014, a população carcerária feminina aumentou 567%, enquanto a média
de crescimento masculino, no mesmo período, foi de 220%” (p. 5). Nota-se,
portanto, um crescimento expressivo do número de mulheres presas e, em
consequência, do número das que têm seus filhos na prisão.1
De acordo com a Constituição Federal Brasileira (CF) de 1988, artigo 5º
inciso L, as mulheres presidiárias têm asseguradas condições para que possam
permanecer com seus filhos durante o período de amamentação.2 Além da

1
“No computo geral da população prisional em junho de 2014, [..]constam ainda as infor-
mações sobre pessoas custodiadas em carceragem de delegacias ou estabelecimentos similares
administrados pelas Secretarias de Segurança Pública. As informações sobre essa população
foram coletadas junto à Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justi-
ça, e perfazem um total de 27.950 pessoas custodiadas. Somadas aos dados coletados pelo
INFOPEN, temos uma população prisional total de 607.731 pessoas privadas de liberdade
em todo o país”. (p.7)
2
De acordo com Ventura, Simas e Larouzé (2015), a partir da Constituição Federal, os Estados
deveriam disciplinar a situação das mulheres que têm filhos em presídios, mas segundo as
pesquisadoras há baixo índice de regulações específicas. No entanto, segundo as mesmas, há

15
legislação citada, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/1990, e
o Código Civil de 2002 (Lei 10.406/2002) também dispõem sobre a díade
presa/ filhos.
Apesar desses dispositivos, não existe uma normatização nacional capaz
de prescrever de que forma os estabelecimentos prisionais devem fazer valer
o que está previsto. Segundo a Lei de Execuções Penais, art. 82 § 2o , “os
estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário,
onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no
mínimo até 6 (seis) meses de idade”.3  
Segundo Santa Rita (2007), como a previsão legal está dirigida aos
berçários, fica a cargo das instituições a decisão sobre as diferentes formas de
assegurar a permanência da díade mãe/bebê nesse cenário. Dessa maneira,
há uma grande variação de atendimentos que dependem das gestões das
Secretarias Estaduais de Segurança Pública. Há unidades que destinam celas
para que a criança fique em companhia da mãe; há as que possuem berçários;
existem aquelas que criaram um espaço específico (unidade materno-infantil)
para a permanência das presas e de seus filhos.
As variações não se restringem às nomenclaturas e às modalidades de
atendimento, mas também se manifestam quando o assunto é o tempo de
permanência da criança com a mãe. De acordo com Santa Rita (2007), há
instituições que garantem esse acolhimento exclusivamente durante o pe-
ríodo da amamentação. Outras mantêm o vínculo por um ano e há as que,
possuindo creches em suas instalações, garantem a convivência entre mãe e
filho por até três anos. Tal diversidade de atuação gera dificuldade para que
se garantam direitos nesses espaços penitenciários.

2. Objetivo
Nota-se uma vasta legislação que visa assegurar às mulheres presidiárias
condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período
de amamentação, bem como para que não percam o “poder familiar” pelo

algumas leis infraconstitucionais que também tratam do assunto, como, por exemplo, a Lei
7.210/1984 (Lei de Execução Penal – LEP. A execução penal tem por objetivo efetivar as
disposições da sentença ou decisão criminal.), que instituiu o acompanhamento médico à
mulher presa e ao filho recém-nascido (art. 14 § 3º); a obrigatoriedade de berçário e local de
amamentação até seis meses de idade (art. 83 § 2º); a obrigatoriedade de local para gestante
e parturiente, e creche para crianças maiores de seis meses e menores do que sete anos (art.
89).Vale ressaltar que a LEP sofreu alterações com a promulgação da Lei 11.942/2009 que
determinou a permanência da criança com sua genitora em berçários por um período de,
no mínimo, seis meses. Essa mesma lei, em seu art. 117., inciso III e IV, abre a possiblidade
de uma presa gozar benefício do regime aberto em residência particular, caso a “condenada”
seja gestante ou tenha filho menor ou com deficiência física ou mental.
3
(Redação dada pela Lei nº 11.942, de 2009)

16
fato exclusivo de cumprirem pena em regime fechado.4 Apesar disso, pouco
se sabe, na prática, como essas decisões de manutenção ou ruptura de vínculos
são tomadas, tanto do ponto de vista do Poder Judiciário quanto das apenadas.
Que tipo de trabalho é realizado pelas equipes de psicólogos e assistentes
sociais que atuam em âmbito carcerário com mulheres que têm seus filhos
em prisões e terão que se afastar de sua prole após o período previsto por lei?
Em âmbito das ciências sociais no Brasil, há poucas pesquisas produzidas
sobre o que leva profissionais da área da infância e da juventude a produzir
ou refutar a ideia de que uma mãe/um filho devam ser separados. No que
tange às mulheres presas, por exemplo, inúmeras pesquisas são feitas sobre
o exercício da maternidade em presídios ou sobre a relação entre mulheres
presas e seus familiares.5 No entanto, como ressalta Uziel et al (s.d.), há pou-
cas reflexões sobre as práticas de justiça (SCHUCH, 2009) responsáveis por
gerenciar a separação da díade mãe-bebê, no caso das condenadas ao regime
fechado. Pouco se sabe sobre a relação entre as decisões judiciais e as escolhas
femininas por manter ou não o vínculo com seus bebês, após o período de seis
meses de amamentação, previsto na Lei de Execuções Penais (Lei 7210/1984).
Sendo assim, a intenção desse texto – parte de uma pesquisa mais am-
pla–6 é abordar como a esfera da execução penal em parceria com a Justiça da
Infância e da Juventude vem atuando em suas práticas e decisões para manter
ou romper vínculos familiares entre mulheres presas e seus filhos nascidos na
prisão. Como práticas legais e sanções morais sobre “genitores” e suas proles
se materializam nesse cenário?

4
Na Lei 12.962/2014, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 19§
4º, está disposto que “será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe
ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas por responsável
ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade responsável, independente de
autorização judicial”. Nessa mesma Lei, no artigo 23§2º, está determinado que “a condenação
criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese
de condenação por crime doloso, sujeito à pena de reclusão contra o próprio filho ou filha”.
Já o Código Civil de 2002 prevê em seus art. 1637 e 1638 suspensão de poder familiar, se-
gundo Fay de Azambuja “nas hipóteses em que pai ou a mãe são condenados por sentença
irrecorrível em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão” (2013, p.50).
5
Ver: RAMPIN (2013); SANTA RITA (2006); LAGO (2014); FRANCO (2007); OR-
MENÕ (2013); OLIVEIRA MELLO (2014).
6
A proposta da pesquisa é apreender as diversas práticas estatais na produção e na ruptura
de vínculos entre crianças, jovens e suas famílias. Para tanto, além da etnografia na UMI,
almejo compreender como são conduzidas as “ações de destituição de poder familiar”
(DPF) de crianças e jovens em processo de adoção. Interessa também analisar como são
julgadas essas ações quando “genitoras” cumprem pena privativa de liberdade em instituições
prisionais. Pesquisa apoiada pelo CNPQ (bolsa de produtividade) e pela FAPERJ (APQ1
E-26/010.002184/2015). Além do apoio dado pelas agências de fomento, esta foi apro-
vada pelo Comitê de Ética da UFRRJ (protocolo nº 601/2015) e pela Escola de Gestão
Penitenciária CI SEAP (EP nº072).

17
Em razão de tais questões, almejei realizar etnografia na unidade mater-
no-infantil. A UMI, embora anexa ao presídio feminino Talavera Bruce, guarda
autonomia administrativa em relação àquele presídio. Apesar de não se tratar ne-
cessariamente de um presídio e ser administrado pela SEAP (Secretaria do Estado
de Administração Penitenciária), faz parte de suas dependências, em Bangu, no
Rio de Janeiro. Trata-se de uma instituição onde as “internas” ficam com seus
bebês que nasceram no sistema prisional até que estes completem seis meses de
vida. Segundo Rinaldi e Sales (2017), no oitavo mês de gestação, as mulheres que
estão em outras unidades prisionais do Estado do Rio de Janeiro são transferidas
para a Penitenciária Talavera Bruce. Após o parto, são direcionadas à UMI, onde
ficam em contato integral com o filho. Após esse período, as crianças são “desli-
gadas”7 das mães/presas e podem ter três destinos: ficar com a “família extensa”
(avós maternos, paternos e tios, tanto da mãe quanto do pai), ir para as casas de
acolhimento ou para “famílias acolhedoras”;8 ou, em último caso, ser encaminhadas
para adoção (após processo de destituição do poder familiar).
Através desta etnografia na unidade materno-infantil, intencionei apreender
as formas de gestão estatal sobre a manutenção e separação da díade interna/
bebê, além da vivência de mulheres presas com seus filhos, por meio de entre-
vistas com as pessoas selecionadas.Além disso, busquei apreender as visões sobre
múltiplas formas de maternidade, vínculos e rupturas por meio de entrevistas
realizadas com psicólogas e com assistentes sociais, com agentes penitenciários
e com os profissionais do quadro administrativo que atuam nessa unidade.
A ideia era entender o papel dos profissionais da gestão penitenciária
na construção da vinculação entre crianças nascidas no cárcere e as famílias
de origem das mães (e outros possíveis guardiões). Qual o papel dessa equipe
na produção de “convencimento” de juízes da infância e da juventude a fim
de que essa criança permaneça vinculada às redes familiares e aos guardiões
indicadas pelas “internas”?

3. A entrada no campo
A gestão da unidade materno-infantil está submetida à Secretaria de
Estado de administração Penitenciária (SEAP). Por esse motivo, para que eu

7
O “desligamento” acontece de três em três meses, determinado pelo Juiz da Vara da Infância
e da Juventude. Nesse dia, as mães e seus filhos são separados. A criança ficará sob guarda
provisória de um familiar ou responsável legal e a mãe continuará cumprindo sua sentença
em regime fechado.
8
O Programa “Família acolhedora” consiste em cadastrar famílias para receberem e acolhe-
rem em suas casas, por um determinado período, crianças ou adolescentes em situação de
risco pessoal e social, representando possibilidade de continuidade da convivência familiar
em ambiente sadio para a criança ou adolescente. A família assume o papel de preparar o
acolhido para o retorno da família biológica ou para a adoção definitiva.

18
pudesse entrar na instituição, tive que solicitar autorização à Escola de Gestão
Penitenciária da SEAP, abertura de processo administrativo para a realização
da etnografia. Esse procedimento consistiu no envio do projeto de pesquisa e
da autorização dada pelo Comitê de Ética da Universidade da qual faço parte.
Após a avaliação desses documentos, pude ingressar na Unidade.
Ao chegar à UMI, estava tomada de receio, uma vez que nunca tinha
entrado no sistema prisional. Notei que havia um enorme portão cinza com
uma pequena janela, através da qual me apresentei e mostrei a autorização
de pesquisa. Pela fresta da janela, vi um balcão de recepção e um detector de
metais, por onde supostamente deveria passar.
Após um lapso de tempo, o portão foi aberto por um agente peniten-
ciário. Tratava-se da entrada do presídio Talavera Bruce, uma instituição total,9
nos termos de Erving Goffman (GOFFMAN, 1974, p. 11) – ou seja, um local
onde mulheres apenadas ou as que esperavam suas sentenças estavam separadas
do convívio da sociedade e tinham suas vidas gerenciadas por um corpo de
profissionais que as disciplinavam (FOUCAULT, 1991).
Ingressei na instituição depois que os agentes confirmaram, por meio
de um sistema de rádio, a veracidade do documento. Assim que passei pelo
detector de metais, caminhei pela instituição em companhia de uma pro-
fissional responsável por me conduzir até a UMI. Ao circular nesse cenário,
observei que à direita do portão principal estava o Presídio Talavera Bruce
e, à frente, havia uma capela, situada entre o referido presídio e a unidade
materno-infantil para onde me dirigia.
Ao continuar o percurso, avistei uma casa de muros e de grades baixas e
um jardim. Notei, então, que havia chegado à UMI. Tive a sensação de estar
me aproximando de uma residência do subúrbio carioca; e tal arquitetura
provocou a equivocada sensação de que a instituição total (GOFFMAN, 1974)
havia sido deixada para trás.
Ao entrar na UMI, percebi a presença de diferentes agentes penitenciárias,
posicionadas em lugares estratégicos, cujo propósito era garantir a disciplina
(FOUCAULT, 1991, p.127) no local. 10Isso me levou à reflexão de que, apesar

9
De acordo com Goffman (1974, p. 11), uma instituição total é um local onde indivíduos
são separados do convívio da sociedade por um período de tempo. Suas vidas são geren-
ciadas por um corpo de profissionais que buscará disciplinar (FOUCAULT, 1991) seus
comportamentos e suas subjetividades.
10
De acordo com Michel Foucault (1991) o mundo ocidental, a partir da segunda metade
do século XVIII, produziu mudanças nas formas e nos regimes de penalidades. Essas trans-
formações geraram suavização das leis e dos castigos, através da substituição do suplício do
corpo, uma forma “negativa” de repressão, pela disciplina, uma política positiva de coerção.
A disciplina, presente não exclusivamente em instituições prisionais, mas em várias de
nossas práticas quotidianas, é um dispositivo de poder capaz de produzir controle, sujeição,
“docilização” e “utilidade” dos corpos e mentes dos sujeitos. Essa política do domínio se

19
da arquitetura “cordial”, trata-se de uma unidade do sistema prisional que
deve garantir a disciplina das “internas/mães”, evitando que se transformassem
em “multidões perigosas”. A arquitetura refletia a ambiguidade institucional:
tratava-se ao mesmo tempo de uma unidade materno-infantil e um “anexo”
do presídio Talavera Bruce. Dessa forma, fui me dando conta de que aquele
era um lugar onde mães “internas” entravam para cuidar de seus filhos, assim
como era um espaço onde presas deveriam ser controladas.
Continuei a andar pelos corredores da UMI e entrei no setor da adminis-
tração geral, onde me apresentei; sob a supervisão de uma agente penitenciária,
conheci o restante das imediações, composto por um posto de atendimento
social e psicológico, por um auditório, por duas varandas, por salas da direção
e da administração. Além disso, visitei o alojamento onde ficam as “internas” e
seus bebês – dividido em alas de acordo com a faixa etária dos infantes, além da
cozinha coletiva, da enfermaria, da sala de psicomotricidade e do espaço para
oficinas, oferecidas por ONGs (Organizações não governamentais) às presas/mães.
Nesse primeiro contato, fui informada de que, no prazo de uma semana,
ocorreriam “audiências de desligamentos”, ou seja, algumas internas seriam
transferidas para outros presídios e seus filhos seriam encaminhados por um juiz
da Vara da Infância e da Juventude aos guardiões legais, que se encontrariam
fora da UMI. Ao solicitar autorização para participar desse momento, obtive a
informação de que, como se tratava de um rito legal conduzido por um juiz
da área da Infância e da Juventude, seria esse profissional o responsável por
julgar o pedido. Posto isso, procurei o magistrado que, em posse do projeto
de pesquisa, concedeu a autorização.
Uma semana antes da audiência de “desligamento”, iniciei a pesquisa
de campo. A atividade inicial consistiu em entrevistas com cinco internas
que seriam “desligadas” de seus filhos. Ao longo do trabalho, realizei outras
entrevistas com o corpo técnico da UMI: assistente social, psicóloga, agente
penitenciária, além de muitas conversas informais com membros da direção
e com as mulheres encarceradas.
O trabalho consistiu em dois meses de convivência por meio de en-
contros semanais, através dos quais participei de cultos religiosos e oficinas de
artes oferecidas por ONGs conveniadas com a UMI por intermédio da SEAP.
Mantive contato com as “internas” e com suas crianças por meio de conversas
supervisionadas pelas agentes penitenciárias. Apesar de ter sido bem acolhida
pela equipe profissional da Unidade, com manifestações positivas à pesquisa, o
contato com as apenadas sofreu os efeitos da vigilância hierárquica (FOUCAULT,
1991, p. 154), reveladora do poder disciplinar presente naquela instituição.

mantém, posto que organiza as subjetividades das pessoas, produzindo nas mesmas a inter-
nalização da ideia de que estão sob permanente vigilância.

20
Ao longo da etnografia, estive em posições distintas e desconfortáveis.
Apesar da aceitação de minha presença, o quadro de funcionárias me via
como uma espécie de “avaliadora externa”, cujo trabalho consistia em apontar
as “falhas” da administração na gestão da díade mãe/bebê. As internas me
associavam às “instâncias de poder”, cujo lugar era o de gerenciamento de
informações sobre seus destinos e o de seus bebês. Pude perceber isso quando
comecei a conviver com as mães da UMI. Tive tal percepção no dia em que
conversava com Mariana11 sobre o “desligamento”, que viria a acontecer em
maio de 2016. Foi então que Joana, outra interna, se aproximou de mim
e perguntou em tom de sussurro: “o que você sabe sobre o desligamento?
Mudou a data?” Ao que respondi: “Sei o que vocês me contam, nada mais
[...]”. Notei assim que essas mães pressupunham que eu compartilhava com
a direção da Unidade informações sobre as suas vidas.
Além disso, fui interpretada em outro contexto do campo como intrusa.
Fui vista como uma pessoa que chega num espaço privado (a UMI signifi-
cando uma casa de família) para assistir ao sofrimento alheio (o momento de
separação de mães/internas e seus bebês). Isso aconteceu durante uma das
atividades, que consistiu em minha participação na audiência de “desliga-
mento”. Era um dia de muita comoção por conta das separações que iriam
ocorrer. Por isso, todos os funcionários da UMI, mulheres em sua maioria,
demonstravam muita tristeza.
Eu estava em uma área externa, próxima ao local onde acontecem
os atendimentos psicossociais e conversava com a psicóloga sobre a minha
presença em campo naquele dia delicado. Decidimos em conjunto que seria
importante solicitar também às “internas” e aos seus familiares a autorização
para que eu assistisse as audiências. Assim o fiz e, após esse momento, entrei
na sala da direção e subitamente fui indagada por uma agente penitenciária:

– Você é a pesquisadora?
Eu disse: – Sim.
Então, ela respondeu: – Ah, você não devia estar aqui. Você não é
bem-vinda. Hoje é um dia muito triste e íntimo.

Escutei aquela advertência muita constrangida e, assim, entendi que era


vista como uma intrusa, que assistia passivamente a dor do outro (SONTAG,
1993, p. 37). Era como se estivesse tentando compartilhar um sofrimento12
que era incapaz de sentir. Com isso, compreendi que a Unidade tinha duplo

11
Os nomes que usarei serão fictícios. Darei nomes a elas para evitar que minha escrita retire
suas identidades. No entanto, ao citar o corpo de funcionários, preferi não nomeá-los.
12
Uso o sentido de sofrimento segundo Kleinman (2000, p.227), ou seja, entendo-o como
resultado da consciência histórica do testemunho, cujo contexto é sempre o das relações

21
sentido para seu corpo de profissionais e para as “internas”. Era, ao mesmo
tempo, uma “uma prisão” e uma “casa”, compostas por mulheres (profissionais
da UMI) com a função de vigiar e acolher outras mulheres (as presas) e seus
bebês. Por conta dessa duplicidade de sentidos, comportamentos antagônicos
como controle, vigilância e afetos regiam as relações entre mulheres ligadas
entre si por meio de seus bebês.
Nesse cenário institucional, agentes penitenciárias, psicólogas, assistentes
sociais, membros da diretoria (também mulheres), internas e suas crianças
convivem durante um tempo restrito, sob a disciplina prisional, mas também
estabelecem laços em razão do convívio com os infantes. Sendo assim, não
só as internas/mães sofriam com a separação que estava por vir, mas todas as
pessoas relacionadas compartilhavam a dor da perda anunciada (a entrega dos
bebês para as famílias guardiãs).
Por esse motivo, a agente penitenciaria disse que eu não era bem-vinda.
Não havia compartilhado com elas nenhum momento que dissesse respeito
ao exercício da maternidade daquelas mulheres. Por isso, minha participação
nesse contexto representava mais uma violação, uma vez que não conhecia
nenhuma daquelas moças, não compartilhava suas histórias, não conhecia seus
filhos. Ao longo do tempo, esse estado das coisas foi sendo transformado, na
medida em que passei a ser mais uma mulher que se relacionava com outras,
por meio de bebês que em breve não estariam mais na Unidade.

4. A unidade materno-infantil:
vidas ligadas e separadas
Até o ano de 2005, funcionava dentro do Presídio Talavera Bruce uma
creche denominada Madre Tereza de Calcutá. Segundo Musumeci e Ilgenfritz
(2002), era um espaço destinado aos filhos de presidiárias entre zero a seis
anos “que habitavam quartos coletivos e eram cuidados pelas internas” (2002,
p. 26). Entretanto, como o espaço era restrito, nem todas conseguiam estar
junto de sua prole. Meninas e meninos permaneciam nesse cenário coletivo
até os seis anos de idade, sem receberem nenhum tipo de escolarização.Viviam
como se estivessem apenados.
De acordo com Santa Rita (2007), tal creche – Madre Tereza de Cal-
cutá – esteve vinculada à administração da penitenciária até 2005. Naquele
ano, a Secretaria de Estado de Estado de Administração Penitenciária criou a
unidade materno-infantil, após a promulgação do decreto nº 38.073, de 02
de agosto de 2005. Posteriormente a esse ato, a UMI passou a ter um corpo
de técnicos próprio, que em sua maioria é de mulheres, composto por uma

de poder. Trata-se de um sentimento resultante de dimensão de uma violência produzida


pela estrutura social e da limitação da capacidade de atuação dos sujeitos.

22
diretoria e uma vice-diretoria, um quadro administrativo, agentes penitenci-
ários, enfermeira, psicóloga e assistente social.
Segundo entrevista realizada com uma agente penitenciária que traba-
lhou nessa instituição há tempos atrás, a creche era um lugar onde as crianças
ficavam até serem encaminhadas para um “abrigo”.13 Além da idade, não havia
critério para a escolha de quem iria deixar o convívio materno. Segundo
disse, “era um verdadeiro sofrimento, porque de repente ocorria a separação
entre a mãe, a crianças e as outras pessoas com as quais o infante convivia”.
Para essa agente, a transformação da creche em unidade materno-infantil
foi longa e dolorosa. Existiam vozes dissonantes e alguns não acreditavam
que a mudança proposta daria certo. No entanto, segundo sua narrativa, um
episódio foi tomado como emblemático para que membros da administração
da penitenciária Talavera Bruce chegassem à conclusão de que o estado das
coisas deveria ser alterado.
Tratava-se da história de um menino asilado que perguntou a um dos
membros da administração:“Meu alvará de soltura chegou? Por que esse alvará
demora tanto a chegar?”. As pessoas envolvidas com a instituição, de acordo
com sua perspectiva, começaram a levar em conta o fato de que crianças, ao
ficarem asiladas nas creches, acabavam sendo “condenadas” ao aprisionamento
junto com suas mães.
Esse “fato”, segundo a entrevistada, fez com que os membros da gestão
penitenciária considerassem que a instituição estava encarcerando tanto a
mãe quanto a criança “e decidissem que aquilo não iria mais acontecer”. Esse
“mito de origem da UMI” me levou a pensar que a linguagem de direitos da
criança e do adolescente é uma economia moral (FASSIN, 2014)14 importante
nesse cenário.
A partir da criação da UMI, as “internas” e seus filhos nascidos em cár-
cere ficaram submetidos a um novo modelo de gestão de suas vidas. A SEAP
entendeu que as presas tinham o “direito” de permanecer com suas crianças
nascidas em cárcere, mas essas, entretanto, não deveriam ser condenadas às
penas recebidas por suas genitoras. O resultado foi a reorganização da forma
de permanência da díade mãe/bebê no sistema prisional em questão. A partir
de então, as internas e seus filhos nascidos em cárcere deveriam permanecer
juntos até quando o bebê completasse seis meses de idade, abarcando, assim,
o período da amamentação.

13
Instituições de acolhimento destinadas ao amparo de crianças e de adolescentes afas-
tados judicialmente de suas famílias em razão de medidas protetivas ou de destituição
de poder familiar.
14
De acordo com Fassin (2014) o termo abarca uma economia de valores morais de um dado
momento, capazes de definir o escopo de políticas e práticas estatais voltadas à gestão da
vida humana.

23
Apesar de existir essa previsão legal, pude perceber, por meio da pesquisa
de campo, que a UMI é, de fato, o local onde esse par “mãe/bebê” permanece.
Entretanto, há uma flexibilização quanto ao tempo de permanência e isso
depende de inúmeros fatores. Por exemplo, caso haja a possibilidade de a ape-
nada obter um “livramento condicional”,15 se esta puder receber o benefício
de cumprir sua pena em “regime aberto” e se isso ocorrer em um momento
próximo ao “desligamento” da criança da Unidade. Nessas situações, a admi-
nistração penitenciária, em acordo com a Justiça da Infância e da Juventude,
pode decidir pelo alargamento do tempo de permanência da “interna” e do
infante na entidade para que, dessa forma, possam sair juntos de lá.
Segundo alguns relatos de pessoas do quadro profissional, tais estratégias
são tomadas para que seja evitado o “acolhimento” de crianças em institui-
ções ou em “famílias acolhedoras”,16 medida tomada somente quando não
há possibilidade de integrá-las às redes familiares e/ou sociais da “interna”.

5. A atuação da equipe técnica


Segundo a Lei 12.962/2014, que alterou o Estatuto de Criança e do
Adolescente (1990), está determinado no artigo 23§2º que “a condenação
criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, ex-
ceto na hipótese de condenação por crime doloso, sujeito à pena de reclusão
contra o próprio filho ou filha” .17 Nessa mesma Lei, em seu artigo 19§ 4º, está
disposto que “será garantida a convivência da criança e do adolescente com a
mãe ou o pai privado de liberdade, por meio de visitas periódicas promovidas
por responsável ou, nas hipóteses de acolhimento institucional, pela entidade
responsável, independente de autorização judicial”.
Assim, a administração da UMI, apoiada nesses dispositivos legais, conduz
suas práticas através da atuação dos profissionais da psicologia e do serviço

15
Para tanto, a apenada deverá ter cumprido um terço da pena se for ré primária, metade
da pena se for reincidente e dois terços se cometeu “crimes hediondos” (ver LEP nº
7210-1984).
16
Família acolhedora é um serviço de acolhimento feito para evitar a institucionalização de crian-
ças e adolescentes em situação de “abandono” ou “negligência”. É realizado por intermédio
de famílias cadastradas na justiça da infância e da juventude, que acolhem temporariamente
esses meninos e meninas.Ver MDS. Serviço de Acolhimento a Família Acolhedora. Disponível em:
<http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/protecaoespecial/altacomplexidade/servico-de-a-
colhimento-em-familia-acolhedora>. Acesso em: 12 ago. 13.
17
As razões que levam à “suspensão” ou à “destituição do poder familiar” estão previstas tanto
nos artigos 1637 e 1638 do Código Civil de 2002, quanto no artigo 24 do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA). Segundo os comentários sobre o ECA produzidos por
Rossato (2012), “o art. 24 do Estatuto traz a regra de que a perda e a suspensão do poder
familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos
pela legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres
e obrigações que alude o art. 22” (2012, p. 170).

24
social. Essa equipe técnica presta atendimento às “internas” e às respectivas
famílias. Além disso, produz relatório psicossocial sobre o par mãe/bebê a ser
remetido à Justiça da Infância e da Juventude e ao Ministério Público para a
composição do processo de guarda da criança nascida nesse contexto.18
Esses profissionais buscam garantir que as crianças nascidas nesse siste-
ma prisional, ao terem de ser desligadas da instituição, continuem a manter
vínculos com suas mães. Para tanto, psicólogos e assistentes sociais conduzem
suas atividades de maneira a encontrar alguém que possa ser o guardião legal
da criança.
A ideia é que seja uma pessoa que mantenha o elo entre a(o) filha(o)
e a presa, levando a primeira a visitar as unidades prisionais para qual a se-
gunda será transferida. O responsável legal garantirá, assim, a continuidade
da convivência, bem como cuidará do infante até que a presa possa reaver
judicialmente a guarda do filho.
A partir de várias conversas informais que mantive com funcionários da
UMI, percebi que a indicação desse responsável legal garante o cuidado da
criança, evitando, inclusive, a condução desta às instituições de acolhimento.
No entanto, isso não promove a continuidade do elo mãe/bebê, uma vez que
grande parte dos guardiões reside em cidades distantes de onde a apenada
cumpre pena. O vínculo dessa díade dificilmente é mantido também porque
muitos desses guardiões não possuem renda suficiente para a condução das
crianças aos presídios.
Retornando à atuação do setor de psicologia e do serviço social, segundo
entrevistas realizadas com a assistente social e com psicóloga da Unidade, o
trabalho dessa equipe consiste em fazer contato com o potencial guardião,
segundo a vontade da “interna”. Em grande parte, mães, irmãs, primas e tias
das apenadas ficam com a incumbência de cuidar do bebê. Além dessas, sogras,
ex-sogras que não possuem vínculo biogenético com a criança, madrinhas
e amigas compõem o rol de pessoas que irão assumir os cuidados com o/a
infante no período do cumprimento da pena. No caso das presas que possuem
companheiros/pais que reconheceram a paternidade dos bebês, esses pode-
rão ser os guardiões dos bebês. Nessas situações, não há necessidade de que
participem de audiência de “desligamento”, uma vez que o registro paterno
lhes confere o direito de guarda unilateral do filho.Vale ressaltar que, após sair
da prisão, a interna pode reaver a guarda do filho.
Nesse contexto de produção de novas conexões de parentesco (CARS-
TEN, 2000; IVENGSON, 2007), o trabalho dessa equipe é, além de escutar
a vontade da “interna” sobre quem ela deseja que cuide de seu filho, analisar
por meio de saber pericial (FOUCAULT, 2001) se há possibilidade de aco-
18
Não obtive autorização para pesquisar esse material.

25
lhimento. Os “indicados” são convidados a falar com o setor de psicologia e
de serviço social sobre a possibilidade de cuidado com a criança. Entretanto,
potenciais guardiões nem sempre conseguem estar presentes nas visitas agen-
dadas –ora por não serem moradores do município do Rio de Janeiro, ora por
não possuírem condições financeiras para realizar a locomoção até a UMI.19
Retornando à questão dos “indicados” e da atuação da equipe técnica,
segundo relatos de campo, há situações-limites que levam os profissionais a
realizar visitas domiciliares. No entanto, essa é uma ocorrência eventual. Em
grande parte dos casos, esse setor irá aferir se “há condições” para a efetivação
da guarda futura por meio de entrevistas com os pretensos guardiões.

6. O exercício da maternidade
e as vozes silenciadas
A unidade materno-infantil é compreendida, por algumas das “internas”,
como um lugar que possibilita o exercício da maternidade – algo até então
não experimentado.20 Janaina, uma das moças com quem pude estar, relatou:
“às vezes, a gente tem que dar com a cara na porta [ser presa] para dar valor
aos filhos. Aqui, comecei a dar valor para o meu filho, mas é difícil não estar
com os outros também [os que não estão na Unidade]”.
Assim, a oportunidade de estar com os filhos no período de asilamento
na UMI é vista de forma positiva. Além disso, a permanência na Unidade é
compreendida como um período através do qual é possível “refletir sobre a
vida e buscar mudanças”. Segundo uma conversa informal que estabeleci com
uma agente penitenciária, por meio do exercício da maternidade as presas
podem se redimir ao optar por não continuar no mundo do crime.
Em razão de a UMI se organizar a partir da economia moral(FASSIN,
2014), suportada na ideia que a maternidade pode representar uma possibili-
dade de saída do mundo do crime, há uma condução institucional que visa à
promoção do exercício maternal em sua plenitude. Ao longo do trabalho de
campo, notei que as mulheres dedicam grande parte do dia à maternidade e
dividem seu tempo entre o exercício maternal e a execução de tarefas como
limpeza, arrumação e preparo de alimentos.
Entretanto, existem muitas vozes para controlar esse “exercício”. Agentes
penitenciárias e membros da direção ficam incumbidos de “pedagogizar” essas

19
Como muitas “internas” foram transferidas de presídios localizados em diferentes cidades do
Estado do Rio de Janeiro porque estavam grávidas, parte de suas redes pessoais e familiares
está em local distante da UMI.
20
Vale ressaltar que a maioria das “internas” é jovem, com menos de trinta anos e que já
possui outros filhos, além daquele que nasceu no decurso da pena. Esses filhos ficam sob a
guarda de parentes e de amigos, e, em poucos casos, sob os cuidados dos pais.

26
mulheres, transferindo-as da condição de presas para a de mães. Para tanto,
produzem a pedagogia da maternidade, ensinando a importância da amamen-
tação, do cuidado e do afeto para com a criança. Há um trabalho incessante
de assepsia da criminalidade, calcada na produção das mães materializadas em
suas performances de cuidado e de afeto.
As “internas” são levadas pela gestão da UMI a cuidar de seus filhos.
Para tanto, são rigorosamente controladas nesses exercícios tanto pelas agentes
penitenciárias, quanto pelas próprias colegas, que controlam umas às outras.
Segundo uma das entrevistadas disse, caso fujam de um “ideal de cuidado”,
deixando seus bebês com as fraldas sujas, recusando-se a amamentá-los ou
alimentá-los ou deixando-os chorar por muito tempo, podem ser advertidas
ou mesmo punidas, criando-se dificuldades para que consigam benefícios no
regime de cumprimento ou no tempo da pena.
Entretanto, segundo informação fornecida por profissionais da Unidade,
ao longo do último ano (2017) houve apenas um procedimento disciplinar, o
que se contrapõe à ponderação da apenada. Apesar de os dados contradizerem
a “interna”, é importante considerar que a mesma pode ter feito uso de minha
presença como pesquisadora para manifestar e/produzir seu descontentamento
acerca da dinâmica de funcionamento da entidade.
Além dessa narrativa de descontentamento, ao longo do trabalho de
campo presenciei outras queixas de mães da UMI, possivelmente decorrentes
dessa política institucional. Estava na Unidade em uma manhã de quarta-feira,
dia reservado para as minhas visitas. Costumava participar com as internas
de cultos evangélicos, realizados semanalmente. Sempre após esse momento,
permanecia em uma varanda grande, na área externa, em frente ao alojamento
central. Esse era o lugar onde tinha autorização para estar, pois não podia entrar
em qualquer outro espaço sem a presença de uma agente, visto que essa era a
maneira que possuíam de resguardar a minha segurança dentro da instituição.
Dessa maneira, minha circulação ficava restrita às áreas externas e à sala da
direção da Unidade. Por esse motivo, escolhi a varanda como um lugar onde
podia escutar as histórias dessas mulheres e, ao mesmo tempo, conviver com
elas e com os seus bebês. Inevitavelmente, foi criado um vínculo entre nós.
Em muitos momentos, me pediam ajuda nos cuidados com os filhos. Dessa
forma, começávamos nossas conversas compartilhando histórias sobre gravidez,
parto e maternidade. Em uma dessas manhãs, conversava com Juciana. Após
me pedir uma oração, ela diz:

– Não tenho com quem deixar meu filho [após o término do


período de amamentação e no momento em que ocorrer o desliga-
mento]. Meu companheiro já tem namorada e meu filho não é dele.
Eu indago: – Por que não procura o pai biológico dela?

27
Juciana responde: – Não sei onde ele mora e prefiro que meu filho
vá para uma família acolhedora. Assim, a família traz ela para me
visitar no presídio. Não quero mais ficar aqui na UMI. Não quero
que procurem meu companheiro. Quero sair daqui na próxima
audiência de desligamento.

Juciana possuía outros sete filhos, distribuídos entre diferentes familiares


e amigos. Quando a oitava criança nasceu, já estava presa. Por isso, foi en-
caminhada à UMI e, nesse contexto, foi informada pela assistente social da
Unidade que nenhum de seus familiares estava disposto a receber seu bebê,
após sua transferência para outro presídio. Dessa maneira, a única possibilidade
para que o vínculo mãe/filho não se rompesse seria se o seu companheiro
aceitasse ter a guarda do infante. Como o parceiro de Juciana não era o pai
biológico do menino, tal saída deveria ser “trabalhada” pela equipe técnica
da UMI, que procuraria convencê-lo a tal feito.
Para tanto, ela precisaria ficar mais tempo na Unidade, de forma a que
a equipe técnica pudesse procurar esse parceiro e, assim, conseguisse esse
encaminhamento. Segundo seu relato, ela não aguentaria prolongar o tempo
de estada na UMI. Preferia que seu filho fosse para uma “família acolhedora”
logo que chegasse o momento de ser transferida para outro presídio. Não via
qualquer possibilidade de ficar mais tempo “no inferno” [a UMI]. Supus na
queixa demonstração de um enorme desagrado que Juciana sentia em relação
ao fato de que naquela instituição estava submetida a um controle total a
partir de sua performance maternal.
Ao longo da etnografia, outras mulheres expressaram seus desagrados
em relação à UMI, descrita como um lugar “insuportável”, onde são coti-
dianamente vigiadas nos cuidados com seus filhos. Sobre isso Aline, mãe de
Joel, disse: “aqui a gente pode tomar uma anotação de bobeira. Se a gente
deixa o bebê sozinho, se a gente deixa de dar banho[...].Tem sempre alguém
tomando conta da gente”.
Além dessas questões, a pesquisa me possibilitou notar que nem sempre
as “internas” desejam ficar com seus filhos. Quando isso ocorre, segundo re-
latos de algumas moças, a direção da instituição, a equipe técnica (psicólogas
e assistentes sociais) e as agentes penitenciárias, por vezes esforçam-se para
demovê-las da decisão, argumentando sobre a importância do cuidado de
uma mãe para com o filho e ressaltando o valor que a amamentação tem na
vida de um bebê.
De acordo com alguns desses profissionais, ao contrário do que as
apenadas dizem, a Unidade busca fazer valer suas escolhas. Segundo rela-
taram, a prática institucional é voltada para garantir o direito da mãe presa
de permanecer ou de abdicar do bebê, conforme sua escolha. Apesar de a
equipe técnica entender que suas condutas levam em conta os direitos (das

28
mulheres e das crianças), assim como suas visões de mundo e os “desejos das
internas”, nem todas as apenadas compartilham da mesma ótica. Segundo
algumas interlocutoras, os profissionais desse sistema agem buscando produ-
zir um vínculo entre elas e seus bebês. Dessa maneira sentem-se forçadas a
permanecer com a prole da qual irão se separar dentro de pouco tempo. Para
outras, essa conduta, apesar de forçosa, é positiva posto que lhes permite rever
a posição de recusa do filho, tendo assim a possibilidade da experiência da
maternidade. Sobre isso, Daiana disse: “Quando cheguei aqui, queria mandar
o bebê embora. Ele chorava muito. Daí as pessoas daqui [corpo técnico e
profissional] conversaram comigo e disseram que esse era o momento do filho
e que depois [após o período de amamentação] ia ter o desligamento. Aí eu
fiquei, né? Hoje que peço desculpas para ele [demonstrando arrependimento
ao filho porque quis a separação]”.

7 . D o r, v i o l ê n c i a e s e p a r a ç ã o
Apesar de todo esse esforço institucional em promover o exercício da
maternidade, a experiência de campo possibilitou apreender que essas mu-
lheres, juntamente com seus filhos, sofrem em razão da maneira como a UMI
está estruturada para funcionar. O ápice do sofrimento ocorre nas “audiências
de desligamento”, um evento crítico21 (DAS, 2011) que altera tanto a vidas das
“internas” quanto a de seus filhos.
O “desligamento”, termo que se refere à separação da díade mãe/bebê,
é um rito legal conduzido por um/uma magistrado da área da Infância e da
Juventude. Este ocorre no espaço da instituição, em presença de um repre-
sentante do Ministério Público da Infância e da Juventude, de um defensor
público, de membros da direção da Unidade, da equipe técnica (psicólogo e
assistente social), da “interna”, da criança e dos familiares/pretensos guardiões.
É um rito de instituição (BOURDIEU, 1989) por meio do qual a/o
juiza transfere a guarda da mãe para uma pessoa que se tornará a responsável
legal pelo infante ao longo do cumprimento da pena. Além disso, é um mo-
mento de instrução legal dada pelo juiz aos guardiões sobre o trâmite legal
para a continuidade do processo de guarda.22
Esse ritual legal (GARAPON, 2015) ocorre na sala da direção da Uni-
dade, sem grandes formalidades. Quanto à disposição espacial, o magistrado

21
A autora compreende um evento crítico como sendo circunstâncias provocadas por brutali-
dades institucionais como o Estado, a família, grupos religiosos e/ou econômicos.Tratam-se
de situações que produzem efeitos nos sujeitos, em seus corpos e em suas formas de vida.
22
Caso seja proposto por membro da família, correrá em uma Vara de família. Se o guardião
for alguém com laços de afinidade com a mãe, o processo deverá tramitar em uma Vara da
Infância da Juventude e do Idoso.

29
ocupa uma mesa central e ao seu lado permanece o promotor de justiça e o
defensor público. Em um sofá, posicionado em frente a essa mesa, ficam as
internas, os futuros guardiões e as crianças, espaço que remete a um banco dos
réus (RINALDI, 1999). Em posição lateral, ficam a psicóloga e a assistente
social, sem lugares determinados.
Os membros da direção, assim como os agentes penitenciários, podem
entrar e sair da sala. Esse trânsito depende da demanda do magistrado, que,
por vezes, pede esclarecimentos sobre a situação do processo penal da “in-
terna”, quando vislumbra a possibilidade de que criança e mãe possam sair
juntas da Unidade, mesmo que para isso a decisão seja a de mantê-las mais
tempo na instituição.
A audiência é iniciada quando, após convocação por um agente peni-
tenciário, mulheres, seus filhos e futuros responsáveis entram na sala. Logo
a seguir, o juiz produz indagações à “interna” sobre o crime cometido e o
tempo de pena. São perguntas sem cunho moral, cujo propósito é verificar se
a apenada tem chance de receber algum benefício no cumprimento da pena
e, com isso, ter a possibilidade de sair da UMI com seu bebê.
Não há normatizações para esse procedimento e, por isso, o magistrado
age com bastante discricionariedade. Suas decisões são tomadas com base
nas leis, nas leituras dos prontuários das internas, assim como nas narrativas
que elas produzem. Tal cenário me leva a pensar que as práticas legais, nesse
caso, são invadidas e ampliadas pelas vozes dessas mulheres das margens 23 (DAS;
POOLE, 2004). É possível aventar a hipótese de que juízes da Infância e da
Juventude, mesmo que submetidos às leis , tornam-se sensíveis às demandas
dessas mulheres, incorporando, quando há possibilidade legal, suas demandas
em suas práticas de justiça, como será visto a seguir.

8 . O “d e s l i g a m e n t o ” : u m a e x p e r i ê n c i a d e d o r
Para algumas das “internas” com as quais convivi, a UMI é geradora de
suas dores e sofrimentos, uma vez que lhes possibilita o exercício pleno da
maternidade, ao mesmo tempo em que lhes “retira esse direito”, quando são
obrigadas a se separar de suas crianças, após o término do período de ama-
mentação. Escutei muitos relatos de dor em face da espera dessa separação,

23
Das e Poole (2004) consideram “margens do Estado”: “El primer enfoque dio prioridad
a la idea de margen como periferia em donde están contenidas aquellas personas que se
consideran insuficientemente socializadas en los marcos de la ley” [..]Un segundo enfoque
relacionado con el concepto de margen [...]gira en torno a los temas de legibilidad e ilegi-
bilidad Reconocemos que las prácticas de relevamiento documental y estadístico del estado
están al servicio de la consolidación del control estatal sobre los sujetos, las poblaciones, los
territorios y las vidas.[...] Un tercer enfoque se concentra en el margen como el espacio
entre los cuerpos, la ley y la disciplina” (2004, p.24-25).

30
como se fosse uma espécie de “morte anunciada”. Por meio dessas narrati-
vas, notei que a expectativa sobre a chegada do “desligamento” revela uma
“precariedade” (BUTLER, 2015) do vínculo mãe/bebê criado/mantido e
rompido pelo sistema penitenciário.
Além das entrevistas com as “internas”, presenciei suas experiências de
separação, por meio de pesquisa etnográfica em audiências de desligamento.
Assisti a algumas dessas sessões e descrevo a seguir uma delas.Trata-se daquela
que envolvia o destino de Joelma e de seu bebê.
Joelma entrou na sala de audiências visivelmente entristecida como as
outras mães que passaram por aquela sala. O que a diferenciava era o fato de
não conseguir conter o choro. A jovem carregava seu bebê no colo e, ao seu
lado, estava a futura guardiã, a avó paterna da criança. Após iniciado o ritual,
a apenada foi indagada pelo juiz sobre o crime cometido, ao que respondeu:
“Fui sentenciada a sete anos e dois dias por roubo. Serei transferida para Ben-
fica[ presídio] e lá vou cumprir pena em regime semiaberto. Mas lá isso não
funciona. Não vou conseguir sair do presídio para ver meu filho. Conversei
com a defensora [pública] e ela me disse que tem chance de eu sair e ficar
em prisão domiciliar daqui a dois meses”.
Joelma pretendia, com essa narrativa, fazer com que o magistrado de-
cidisse pela sua permanência na Unidade por mais dois meses. Dessa forma,
sairia da entidade, após esse período, juntamente com seu bebê. Com essa
decisão, queria evitar a dor da separação.
Passado esse momento, o juiz pediu para que a as “partes” deixassem
o recinto e convocou a direção da Unidade. O magistrado, em parceria
com o representante do Ministério Púbico, solicitou à direção vistas do
prontuário da apenada, demonstrando disposição para acatar o pleito.
No entanto, após o esclarecimento de que o requerimento de benefício
da pena, feito pela Defensoria Pública, havia sido indeferido, ordenou a
convocação das “partes”, informando que não seria possível mantê-las
mais tempo na UMI. Por isso, haveria que nomear a avó paterna a guardiã.
Dessa forma, a criança teria de deixar a instituição, assim como Joelma
haveria que ser transferida para outro presídio. Com a voz embargada,
rendeu-se à dor da separação e foi submetida à experiência do limite de
sua capacidade de ação frente àquela violência institucionalizada, deixando
passivamente a sala.
Fim da audiência e início de outra, resolvi sair daquele ambiente, cami-
nhei até a área externa. Lá pude ver Joelma chorando muito, porque havia
acabado de “entregar” seu filho para a avó materna, que deixava a UMI com
a criança no colo sem olhar para trás. Nesse momento, não só essa mulher
sofria, mas grande parte dos profissionais da Unidade compartilham a sua dor,

31
sofrendo os efeitos desse evento crítico e testemunhando juntas como o direito
e a lei tornam-se veículos de produção de seus vínculos e de seus sofrimentos.

9. Considerações finais
A etnografia realizada leva-me a pensar que os profissionais da unidade
materno-infantil, assim como os integrantes da Justiça da Infância e da Ju-
ventude atuam em suas práticas e decisões baseados na concepção de que as
presas possuem o direito de permanecer com seus filhos. Além disso, agem
sob a ótica de que existe um elo de consanguinidade entre a “interna” e seu
filho. Em consequência dessas concepções, o bebê nascido do ventre da mulher
encarcerada é mantido temporariamente em sua companhia.
Creio que esses gestores tomam a linguagem dos direitos da mulher
presa assim como a concepção de que família e parentesco decorrem de elos
biológicos como fundamentos para que a díade mãe/bebê seja conduzida
à UMI. Com base na concepção de que a “interna” possui direitos em face
da criança e mantém conexões biogenéticas com a mesma, os gestores da
Secretaria de Estado de Gestão Penitenciária garantem a existência da UMI.
No entanto, apesar de essa prática de justiça estar pautada nos direitos
da mulher presa e na simbologia biogenética, essas concepções só garantem
que a “interna” e seu filho fiquem juntos por um breve período. Suponho
que isso se deva à sobreposição do direito da criança ao da mulher encarce-
rada. Dito de outra forma, por meio do compartilhamento da visão de que
a criança é um “sujeito de direitos” e, por isso, não deve ser condenada às
mesmas penas que a sua genitora, profissionais da Secretaria de Estado de
Administração Penitenciária e da Justiça da Infância e da Juventude optam
pela ruptura “temporária” do vínculo. Entretanto, porque acreditam que a
conexão de parentesco foi estabelecida pelos laços de sangue, assim como
pelo afeto construído pedagogicamente durante o asilamento na unidade, os
mesmos profissionais se esforçam por conectar a criança, após o desligamento,
às redes de parentesco e/ou de solidariedade da “interna”, de forma a garantir
a perpetuação do vínculo maternal por meio da substituição da mãe presa
por avós, tias, madrinhas etc.
Como expressei no começo do artigo, há inúmeras formas de atendi-
mento da díade mãe presa e seu bebê nascido dentro do sistema prisional. A
gestão da vida desse par varia segundo as Secretarias Estaduais de Segurança
Pública. Há diferenças que dizem respeito à acomodação mais ou menos
humanizada, à forma de convivência entre “internas” e seus bebês e ao tempo
de permanência, por exemplo.
A pesquisa realizada tratou de um ponto etnográfico de apenas uma
dessas maneiras de gestão. Por meio dessa metodologia, a proposta não foi

32
compreender a amplitude do sistema, mas apreender a visão sobre o fun-
cionamento da UMI. Do ponto de vista das “internas”, pude notar uma
exaltada queixa sobre a experiência ambígua que a Unidade lhes possibilita:
a garantia do exercício da maternidade de uma criança da qual será separada
em um breve período de tempo. Do ponto de vista da gestão da institui-
ção, notei uma preocupação em resguardar os direitos das apenadas e de
seus filhos e um movimento de reflexão crítica sobre suas práticas, além de
uma abertura para o diálogo com outras instâncias que não as vinculadas
ao sistema prisional.
Apesar de a pesquisa ser restrita a essa experiência, considero relevante
a imersão analítica nesse cenário e a produção de dados que possibilitem a
realização de trabalhos comparativos futuros, capazes de adensar informações
sobre práticas existentes no sistema prisional que se aproximem ou se afastem
desta. Creio que esse mergulho etnográfico pode contribuir para a reflexão
sobre esta e outras experiências voltadas a essas populações.
Por fim é importante ressaltar que essa pesquisa foi desenvolvida antes
de o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir, no dia 20 de fevereiro de
2018, que mulheres grávidas e mães de crianças de até 12 anos que estejam
em prisão provisória (ou seja, que não foram condenadas) terão o direito de
deixar o sistema prisional e ficar em prisão domiciliar até ser sentenciada.Tal
decisão do STF foi resultado do habeas corpus 143.641, protocolado em 2017
pelo coletivo de advogados com apoio da Pastoral Carcerária, de defensorias
públicas de diversos Estados e do Instituto Alana, uma ONG que defende os
direitos das crianças.
Entretanto tal dispositivo não contempla mulheres que praticaram crimes
com violência ou grave ameaça e contra seus descendentes. De acordo com
tal ato jurídico, os juízes de primeira instância terão até sessenta dias para
colocar isso em prática. De acordo com informações coletados em campo,
pude saber que, apesar de muitos habeas corpus estarem sendo impetrados,
grande parte das ações tem sido negada por esses magistrados. Relava-se,
dessa forma a relevância da continuidade de pesquisas voltadas a mensurar os
efeitos desse dispositivo no cenário etnografado.

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36
Abuso sexual nos
transportes públicos:
problematização do direito penal
sexual sob a per spectiva de gênero

Amanda Bessoni Boudoux Salgado1 2

1. Introdução
A temática dos crimes sexuais e da repressão da sexualidade é extrema-
mente antiga. Talvez seja em razão desse fato que a abordagem da questão
necessariamente adote um caráter de polêmica, haja vista que os debates asso-
ciados à sexualidade trazem à tona opiniões exaltadas, preconceitos e crenças
conflitantes entre si. É o desafio de se tentar racionalizar o problema, na dog-
mática jurídico-penal, com todos os aspectos históricos e sociológicos a ele
vinculados, os quais frequentemente dizem respeito a concepções individuais.
Aliada a essa dificuldade, há ainda a perspectiva de gênero, que deve
permear a discussão dos delitos sexuais, uma vez que a associação corrente
da figura feminina à sexualidade produz fortes impactos nas diversas formas
de violência perpetradas diariamente contra as mulheres. Por esses motivos
é que se afirma a centralidade daquela figura, para o bem ou para o mal, na
construção legislativa a respeito dos crimes sexuais e a necessidade de uma
abordagem de gênero na aplicação da lei penal.
Conscientes de todas essas dificuldades, as reflexões que se seguem bus-
carão evidenciar algumas das principais fissuras ainda existentes na legislação
brasileira referentes aos crimes sexuais, constantes do Título VI do Código
Penal. Este objetivo será perseguido tomando como central uma discussão
que recentemente obteve grande repercussão nacional: a verificação de um
número crescente de abusos2 sexuais cometidos contra mulheres em transportes

1
Doutoranda em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia pela Faculdade de Direito
da USP. Advogada criminalista.
2
Ressalte-se que a opção pelo termo “abusos” sexuais e não “assédio”, por exemplo, deu-se
de modo a evitar a identificação com a figura do art. 216-A do Código Penal, que tipifica

37
públicos como ônibus, trens e metrôs, trazendo à baila o aspecto defensivo da
liberdade de autodeterminação sexual, isto é, o direito a não sofrer qualquer
espécie de intromissão para a realização de atos sexuais sem consentimento.
Inicialmente, como elementos introdutórios para a discussão, são situadas
algumas observações de ordem histórica para avaliar a influência da moralida-
de no tratamento dos delitos sexuais, enfatizando-se a presença constante do
Direito Penal nesse contexto. Em seguida, analisa-se a centralidade da figura
da mulher no âmbito da violência sexual, como reflexo da desigualdade de
gênero há muito construída e até mesmo corroborada pelas conformações
sociais anteriores, bem como as noções de violência e consentimento no estudo
dos crimes sexuais, avaliando-se a relevância deste último para o afastamento
da tipicidade ou da antijuridicidade. Por fim, chega-se à controvérsia do en-
quadramento típico dos abusos sexuais praticados em transportes públicos,
debatendo-se algumas propostas legislativas que se relacionam não somente
com esse problema específico, mas também com a temática da reforma do
Direito Penal Sexual em geral, certamente bastante conflituosa, que não pode
negligenciar o respeito e a promoção dos direitos das mulheres.

2. Breve histórico: a sexualidade e o


protagonismo do direito penal
No que concerne à evolução histórica do Direito Penal Sexual, cumpre
afirmar desde já a centralidade de um conceito: o de moralidade. Com efeito,
desde a sua primeira conformação nos diferentes ordenamentos jurídicos,
os crimes sexuais parecem permanecer sempre atrelados à ideia de moral e,
em determinados períodos, até mesmo de repressão ao sexo, intimamente
associado à figura da mulher como sedutora.
Na Idade Antiga, especialmente na Grécia, verificava-se uma tolerância
quanto às práticas sexuais, inclusive a homossexualidade e a prostituição. Em
Roma, observa-se uma modificação de paradigma, com a mitigação dessa
liberdade;3 porém, com uma permissividade moral seletiva, que se restringia
ao chamado pater famílias.4 Essa situação é consequência da essencialidade do

o assédio sexual (no qual o agente se beneficia de posição hierárquica superior ou ascen-
dência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função). A expressão “abuso” é mais
abrangente, não se referindo a um único tipo de conduta.
3
Em Roma, a homossexualidade passou a ser considerada um “vício grego”, somente sendo
aceita se praticada com escravos mediante prostituição, ainda que persistisse a sua associação
a uma real fraqueza de caráter. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Crimes sexuais: bases
críticas para a reforma do direito penal sexual. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 77.
4
SOUZA, Luciano Anderson de. Crimes sexuais: reflexões críticas. In: SILVEIRA, Renato
de Mello Jorge; RASSI, João Daniel (Org.). Estudos em homenagem a Vicente Greco
Filho. v. 1.São Paulo: LiberArs, 2014. p. 325-338.

38
núcleo familiar na conformação social romana, baseando-se na liderança de
um chefe que ditava o poder e posteriormente o transmitia ao filho mais
velho, o varão. As filhas, por outro lado, eram vistas como moedas de troca
para a manutenção ou aquisição de poder por meio do casamento, o que já
revelava uma situação de desigualdade com relação à mulher, bem como as
raízes da obsessão pela virgindade.
No período da Idade Média, especialmente a partir do século XI, a
centralidade do pensamento religioso e o fortalecimento do poder da Igreja
provocaram um verdadeiro incremento da repressão à sexualidade, refor-
çando também a distinção de gêneros. A figura da mulher adquire absoluta
identificação com o mal, com o perverso: a caça às bruxas é um reflexo desse
pensamento e uma clara tentativa de controle da sexualidade.5
O desenrolar da história permite a observação de uma alternância de
períodos caracterizados por menor e maior repressão à sexualidade, valori-
zando-se o pudor e a virgindade, muito embora não fosse abolida a ideia de
prostituição, que permaneceu em épocas modernas, adquirindo no século
XIX espaços de tolerância na medida em que se considerava um “mal ne-
cessário” para os homens e até mesmo um fator de proteção às jovens, como
se operasse uma substituição da criminalidade sexual.6
O século XX sofre mudanças significativas no que se refere à visão do
sexo como um tabu e à emancipação da mulher. O cenário da Segunda Guerra
Mundial provoca uma necessidade de incorporação das mulheres às atividades
profissionais, ocupando papéis originalmente masculinos. A partir de então, a
mulher passa a integrar o mercado de trabalho de modo crescente e a modificar
o padrão familiar liderado por um chefe homem. Os movimentos feministas das
décadas de 60 e 70 causam uma verdadeira “revolução sexual”, colaborando para
a desmistificação do sexo e integrando-o ao cotidiano das pessoas, mormente
após o surgimento de medicamentos anticoncepcionais.7
A regulação estatal nas questões sexuais ocorre especialmente com o
recurso ao Direito Penal, motivo pelo qual se pode falar na existência de um
Direito Penal Sexual. Sua conformação básica abarca não somente pondera-
ções de gênero (como será ressaltado no tópico seguinte), mas uma sensível
5
SILVEIRA, op. cit., p. 90.
6
SILVEIRA, op. cit., p. 97. Sobre esse movimento pendular entre abrandamento e inten-
sificação da repressão em matéria sexual: “Exemplificativamente, com o Renascimento,
houve certa mitigação, mas com a Reforma religiosa, intensificou-se o controle. Já com
o Romantismo e o desenvolvimento industrial, retornou-se a um momento de modera-
ção. Após a Primeira Guerra Mundial, a seu turno, houve recrudescimento. Nos anos de
1960-1970, novamente, deu-se um abrandamento, em razão da revolução de costumes e
do movimento feminista.” SOUZA, op. cit., p. 339.
7
Ver a respeito: BOCK, Gisela. História, história das mulheres, história do gênero. Penélope:
Fazer e desfazer História, n. 4, p. 147-178, nov. 1989.

39
interferência da moral sexual,8 que persiste até os dias atuais, frequentemente
de modo camuflado. O questionamento faz ressurgir o debate acerca da
separação histórica entre Direito e moral: por mais que esta represente um
referencial ao Direito, não pode submetê-lo a uma relação de dependência,
isto é, o discurso dos conteúdos morais não pode prevalecer, sob pena de serem
construídos tipos penais sem qualquer bem jurídico concretamente tutelado.
Em matéria de crimes sexuais, no entanto, a interferência da moral ad-
quire significativa amplitude. O Direito Penal há muito assume um verdadeiro
protagonismo no tratamento da sexualidade, o que se evidenciou pela tentativa
de se conferir proteção às mulheres “honestas” e aos menores contra tudo que
apresentasse relação com o sexo.9 No Direito Romano, por exemplo, eram
diferenciados três grandes grupos de delitos de natureza sexual: inicialmente,
havia o grupo de crimes que afetavam a liberdade sexual, como o estupro. De
outro lado, havia aqueles que infringiam simplesmente a moralidade sexual
ou o conceito da sociedade a respeito dos limites das relações sexuais que
os indivíduos poderiam estabelecer entre si, sendo característica desse grupo
a conjunção carnal com mulher que não fosse a esposa e que não tivesse a
prostituição como profissão (era o castigo do estupro de mulher virgem ou
de viúva honesta); integrando esse grupo também condutas como a sodomia
e o “pecado nefando” da homossexualidade. A terceira categoria de delitos
era composta pelas condutas que atentavam contra a ordenação familiar, a
exemplo da bigamia e do adultério.10
Já no século XXI, a lei penal brasileira sofreu profundas modificações
nessa temática, as quais sinalizaram necessária adaptação do Código Penal
(CP) a uma nova conformação social. A Lei 11.106/2005 foi responsável pela

8
A “moral sexual” está associada à percepção da sociedade acerca do positivo e do negativo,
do correto e do incorreto, sob uma perspectiva ética. Observa Silveira: “[...] o próprio
conceito de ‘moral sexual’ deve ser percebido como a consciência ética de um povo em
um determinado momento histórico, bem como pela capacidade deste de compreender e
distinguir o bem do mal, o honesto do desonesto. O mal, o errado, o desonesto, portanto,
deveriam ser reprimidos pela lei, com fim de preservação da própria superestrutura social.”
SILVEIRA, op. cit., p. 123.
9
Bastante sintomática é a repercussão que tomaram, recentemente, as críticas a uma perfor-
mance realizada no Museu de Arte Moderna, em São Paulo, no mês de setembro de 2017.
A apresentação foi acusada de “incitação à pedofilia” (termo que, observe-se, diz respeito
a uma doença) após uma criança que se encontrava entre os espectadores ter interagido
com o artista, nu, tocando em sua perna e em sua mão. A criança estava acompanhada
da mãe. O museu se manifestou esclarecendo que a sala da performance estava sinalizada
quanto ao conteúdo de nudez e que o trabalho não possuía conteúdo erótico. Museu em
SP é acusado de pedofilia após performance com nudez. Folha de S. Paulo. Disponível
em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/09/1922810-na-internet-museu-e-
-acusado-de-pedofilia-apos-performance-com-nudez.shtml>. Acesso em: 25 out. 2017.
10
BEGUÉ LEZAÚN, J. J. Delitos contra la libertad e indemnidad sexuales. Barcelona:
Editorial Bosch, 1999. p. 11-12.

40
revogação dos crimes de sedução, rapto violento ou mediante fraude, rapto
consensual, adultério e da hipótese de extinção da punibilidade pelo casa-
mento com a vítima nos crimes contra os costumes (art. 107, inciso VII), bem
como do inciso VIII do mesmo artigo, que previa a extinção da punibilidade
pelo casamento da vítima com terceiro, para o caso de crimes ocorridos sem
violência real ou grave ameaça.
Por sua vez, a Lei 12.015/2009 trouxe reforma mais incisiva, a come-
çar pela modificação do Título VI do Código Penal para “crimes contra a
dignidade sexual”, superando o entendimento de que se tutelavam os “bons
costumes” da sociedade. O estabelecimento da ação penal pública condicio-
nada à representação da vítima, salvo em caso de menor de 18 anos ou pessoa
vulnerável (art. 225, CP), e a nova redação de diversos tipos penais, como
a união de estupro e atentado violento ao pudor (art. 213), bem como do
crime de manutenção de casa de prostituição (art. 229)11 demonstraram uma
necessária tentativa de racionalização dos crimes sexuais.
Não obstante os avanços obtidos com tais mudanças legislativas, as quais,
mesmo tardias, trouxeram novas perspectivas para a sistematização dos crimes
sexuais e para a sua interpretação sob a perspectiva de gênero, as experiências
contemporâneas e o aumento da velocidade do desenvolvimento sexual tor-
nam visíveis, ainda, alguns resquícios da repressão à sexualidade, com fortes
doses de paternalismo,12 a exemplo da presunção de violência (estupro de

11
A atual redação do art. 229 do Código Penal exige que no estabelecimento em questão
ocorra “exploração sexual”, haja ou não intuito de lucro. Em sua formulação anterior, o
tipo penal permitia que até motéis fossem considerados casas de prostituição, pois bastava
que o lugar fosse destinado a encontros para fim libidinoso. Em recente decisão relativa
a suposta casa de prostituição mantida pelo empresário Oscar Maroni em São Paulo, o
Superior Tribunal de Justiça manteve a absolvição sob o entendimento de que o crime só
resta configurado quando o local é voltado exclusivamente para a prática de atos libidinosos
mediante pagamento (AgRg no Recurso Especial n° 1.424.233 - SP).
12
A propósito, a coerente observação de Silveira: “Como se sabe, a ideia primeira do que
se pode ter por paternalismo, ainda que com nítida pecha de crítica liberal, diz respeito
à proteção das pessoas contra elas mesmas. Disso se distanciaria uma eventual boa razão
para dada criminalização, vista como útil a evitar dano físico, psíquico ou econômico do
agente a si mesmo.Tratar-se-ia, sim, em certa medida, quiçá da ideia de se defender pessoas
vulneráveis de danos produzidos por terceiros. Muito próximo de uma legitimação moral
do Direito Penal, por vezes acaba sendo percebido em relações unicamente moralistas e
despidas de uma própria concepção de bem jurídico protegido”. SILVEIRA, op. cit., p.
147. O autor menciona uma interessante classificação das leis coercitivas paternalistas entre
paternalismo puro e impuro. O primeiro seria aquele referido a leis aplicáveis a uma única
parte ou sujeito, a exemplo da criminalização do suicídio, do uso de drogas e do exercício
da prostituição; o segundo estaria relacionado às leis que afetam ambas as partes, como na
eutanásia e na venda de drogas. É de se observar que, ao menos tendo por consideração a
legislação penal, os exemplos mais emblemáticos de paternalismo residem na repressão à
sexualidade e às drogas (neste último caso, especialmente, com forte participação no aumento
da população carcerária brasileira, masculina e feminina).

41
vulnerável) no ato sexual com menor de 14 (catorze) anos (art. 217-A, CP) e
da responsabilização da figura do “cliente” da pessoa entre 14 e 18 anos que
exerce a prostituição (art. 218-B, inciso I),13 inclusive com a cominação de
pena bastante severa, maior, por exemplo, que a de crimes como o de redução
a condição análoga à de escravo e o tráfico de pessoas (arts. 149 e 149-A).
Nota-se que o Código Penal comete uma série de incoerências no que diz
respeito à proporcionalidade das penas. O momento de repressão, que parece
ser a característica predominante da atualidade, reforça um expansionismo
penal que não abandonou por completo a influência das divergências morais.

3. A centralidade da figura da mulher


O estudo do Direito Penal Sexual, muito pelas raízes de moralidade
que o construíram e que ainda hoje se manifestam, inevitavelmente traz em
seu bojo a discussão de igualdade e desigualdade entre homens e mulheres,
na medida em que a sua formação histórica (como visto, por exemplo, no
Império Romano) fundamentou-se no estabelecimento de papéis sociais
divididos segundo o gênero.
A busca por reprimir a sexualidade fez com que a figura da mulher fosse
associada unicamente à reprodução da espécie, restringindo sua existência às
relações privadas e intrafamiliares, ao passo que o universo público adquiria
uma característica eminentemente masculina. Esse cenário, consistente no
fator cultural que em muito dificultou e dificulta a inserção das mulheres
nos espaços públicos, acentuado pela ideia de submissão e inferioridade da
figura feminina, contribui para que elas sejam a grande maioria das vítimas
de crimes sexuais,14 motivo pelo qual se impõe o seguinte questionamento:

13
A criminalização se estende também ao local em que se verifiquem tais práticas, nos termos
do dispositivo: “Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de
exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou defici-
ência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir
ou dificultar que a abandone:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.
§ 1° Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se tam-
bém multa.
§ 2° Incorre nas mesmas penas:
I - quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18
(dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste artigo;
II - o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local em que se verifiquem as práticas
referidas no caput deste artigo.
§ 3° Na hipótese do inciso II do § 2°, constitui efeito obrigatório da condenação a cassação
da licença de localização e de funcionamento do estabelecimento.”
14
Nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) estimou, com base em
informações coletadas em 2011 pelo Sistema de Informações de Agravo de Notificação do
Ministério da Saúde (Sinan), que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no

42
“trata-se, aqui, de um real Direito Penal Sexual ou de simples Direito Penal
de gênero?”.15
A subordinação da mulher, para Carole Pateman, deriva da existência de
um contrato sexual oculto, que é pressuposto do contrato social estabelecido
entre indivíduos para a formação do Estado moderno. Segundo a autora, tudo
o que os contratualistas pregam, ou seja, a liberdade individual e a igualdade,
implica um contrato sexual pelo qual as mulheres são sujeitas aos homens,
numa relação necessária entre o domínio público e o privado: “os homens
passam de um lado para outro, entre a esfera privada e a pública, e o mandato
da lei do direito sexual masculino rege os dois domínios.”16 Nesse sentido,
as mulheres estariam excluídas do contrato social, que vende uma igualdade
fictícia, sendo que o contrato sexual, do qual as mulheres são objeto, seria o
meio de assegurar o direito natural dos homens sobre elas.17
As reflexões de Pateman (em obra publicada pela primeira vez em
1988) fornecem uma importante revisão da construção da sociedade sob a
ótica da teoria política. A recuperação da história do contrato sexual revela a
amplitude dos desafios que as mulheres têm de enfrentar em direção a uma
igualdade de fato, para além do reconhecimento jurídico.18 Essa dificuldade
de superação da história de sujeição feminina reflete-se emblematicamente
na violência sexual, na violência de gênero e na construção do Direito Penal.
Veja-se o simbolismo trazido pelos arts. 215 e 216 do Código Penal de
1940, na sua redação original, referentes aos crimes de posse sexual mediante
fraude e atentado ao pudor mediante fraude: o primeiro consistia em “ter
conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude”; e, o segundo, em

Brasil, sendo que 89% das vítimas são do sexo feminino e 70% dos estupros são cometidos
por parentes, namorados, amigos ou conhecidos da vítima. Em detalhes: CERQUEIRA,
Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo
os dados da Saúde. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brasília, 2014.
15
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal sexual ou direito penal de gênero? In:
REALE JÚNIOR, Miguel; PASCHOAL, Janaína (Coord.). Mulher e direito penal. Rio
de Janeiro: Forense, 2007. p. 330.
16
PATEMAN, Carole. O contrato sexual.Trad. Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1993. p. 29.
17
Assevera Pateman: “O pacto original é tanto um contrato sexual quanto social: é sexual
no sentido de patriarcal – isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as
mulheres –, e também sexual no sentido de estabelecimento de um acesso sistemático dos
homens aos corpos das mulheres.” PATEMAN, op. cit., p. 17.
18
A propósito, a Constituição Brasileira de 1934 já estabelecia essa igualdade, nos seguintes
termos: “Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo
de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classes social, riqueza, crenças
religiosas ou ideias políticas” (art. 113, 1). A Constituição de 1988, em vigor, reforça que
“homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”
(art. 5º, I).

43
“induzir mulher honesta, mediante fraude, a praticar ou permitir que com
ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”.19 Nesses dois
casos, percebe-se que a configuração do crime dependia de um julgamento
moral a respeito da conduta do sujeito passivo: protegia-se apenas a mulher
considerada “honesta” no sentido de honra, decoro, decência, excluindo-se
a mulher “pública” (diga-se daquela acostumada a ter relações sexuais com
diversos homens) e a prostituta.20 A tutela restrita às mulheres consideradas
honestas refletia a distinção do conceito de honestidade para homens e
mulheres: no primeiro caso, aproxima-se muito mais do aspecto financei-
ro, enquanto que, no segundo, assume caráter nitidamente sexual.21 Com
o advento da Lei 11.106/2005, a exigência de “honestidade” foi retirada
dos tipos penais, e a figura do atentado violento ao pudor mediante fraude
(posteriormente revogado pela Lei 12.015/2009) passou a ser aplicável tanto
para mulheres quanto para homens.
De modo semelhante, originalmente o crime de estupro tinha como
sujeito passivo somente a mulher (nesse caso, a lei não fazia distinção em
favor da mulher honesta), enquanto o homem podia ser vítima do crime de
atentado violento ao pudor, definido como “constranger alguém, mediante
violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique
ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Como se sabe, a reforma de
2009 equiparou essa conduta ao tipo penal do estupro (art. 213, CP), que
passou a incidir tanto na hipótese de conjunção carnal quanto em outros
atos libidinosos. Eliminou-se a restrição do sujeito passivo à mulher, en-
tendendo-se, a partir de então, que os homens também poderiam ser víti-
mas desse crime, o que representou enorme avanço para o alcance de um
Direito Penal Sexual racional e afastado de concepções morais. A mudança
de redação do tipo penal de estupro, de “constranger mulher” para “cons-
tranger alguém” permite, ainda, que seja discutido o estupro de travestis,
transgêneros e transexuais.
A propósito, é importante lembrar que o feminismo foi um dos fatores
responsáveis por impulsionar o movimento vitimológico a partir da década
de 1970, com a chamada “redescoberta” da figura da vítima e a realização de
esforços para a valorização de seus anseios, expectativas e necessidades. Poste-
riormente, o surgimento da vitimodogmática, como uma dogmática aplicada
à vítima, em que se vislumbram hipóteses de sua participação na criação do

19
Cf. PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
20
PASCHOAL, Nohara. O estupro: uma perspectiva vitimológica. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2014. p. 48.
21
Cf. SILVEIRA. Direito penal sexual...: p. 336.

44
comportamento delituoso, permitiu a crítica do movimento feminista, mor-
mente nos crimes sexuais, à figura da “vítima-provocadora”.22
Esse problema revela-se no fato de que, mesmo com a retirada de
expressões relativas à honestidade da mulher do texto legal, como visto,
é ainda comum a apreciação de aspectos subjetivos (tais como hábitos,
moradia, profissão, vestimentas e exercício da maternidade), de modo a
influir na aplicação da lei penal pelos tribunais.23 A discussão do papel social
comumente atribuído à mulher e o grau de correspondência da vítima
com esse modelo, no caso concreto, frequentemente torna-se relevante
para o desfecho do processo, assim como as imagens que são construídas
para os agressores. Tal atitude, caracterizada como manifestação da vitimi-
zação secundária (aquela provocada pelas instâncias formais de controle
social), contribui em muito para agravar o espectro de subnotificação dos
delitos sexuais.

4. Reflexão crítica quanto ao bem jurídico


tutelado pelo direito penal sexual
A discussão concernente ao bem jurídico tutelado pelos crimes sexuais
é antiga e necessária. Tomando por base a premissa de que o critério inicial
de legitimação de uma incriminação penal é a proteção a bens jurídicos (e
abstraindo-se a questão do desenvolvimento evolutivo do conceito de bem
jurídico, que se distancia do escopo desta análise), a indagação quanto ao que
pretende tutelar o Direito Penal Sexual é indispensável ao seu estudo. Para
além da interferência da moral sexual, já referida anteriormente, tradicional-
mente já se falou em pudor, honestidade, bons costumes e, mais recentemente,
liberdade sexual e dignidade sexual.
O Direito Penal, como visto, consistindo no meio mais gravoso de
controle das condutas humanas, não pode se prestar a tutelar conteúdos

22
A respeito, comenta Ana Sofia Schimidt de Oliveira: “Houve uma repulsa inicial ao estu-
do etiológico da vitimização, incentivada pelo movimento feminista que via na discussão
acerca da culpabilidade da vítima uma grave ameaça aos direitos da mulher”. OLIVEIRA,
Ana Sofia Schimidt. Vitimologia e mulher. In: REALE JÚNIOR, Miguel; PASCHOAL,
Janaína (Coord.). Mulher e direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 69.
23
Em 2015, a Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça lançou interessante
pesquisa na qual se discute, no âmbito de processos de homicídio e tentativas de homicídio
contra mulheres, o reconhecimento de papéis sociais que tendem a ser expostos como
justificativa para agressões: MACHADO, Marta Rodriguez de Assis (Coord.). A violên-
cia doméstica fatal: o problema do feminicídio íntimo no Brasil. Brasília: Ministério da
Justiça, Secretaria da Reforma do Judiciário, 2015. Ressalte-se ainda que, a partir de março
de 2015, o feminicídio passou a constar no Código Penal brasileiro como qualificadora do
crime de homicídio (Lei 13.104/2015), suscitando novas e polêmicas discussões a respeito
da violência e da igualdade de gênero.

45
morais,24 na medida em que sua função não é a de orientar o comportamento
humano de acordo com o que a sociedade considera correto, do ponto de
vista unicamente moral, sobretudo em sociedades pluralistas e democráticas.
Por mais que o Direito Penal esteja sob a influência das concepções sociais
dominantes, não se pode pretender que ele atue como norma de motivação
para a reprodução de condutas moralmente desejadas.25 Nesse sentido, as
ideias de pudor, honestidade e bons costumes parecem traduzir nada mais
que uma espécie de moral vigente em determinado contexto de tempo e
espaço; e, principalmente no caso da honestidade (especialmente dirigida à
mulher, como estabelecia o texto legal), certa moral subjetiva, que não pode
ser determinada pela avaliação das práticas sexuais do indivíduo.26 Além disso,
tais concepções são extremamente indeterminadas e nebulosas, o que poderia
levar a interpretações baseadas essencialmente em critérios extrajurídicos.
Nos idos dos anos 90, tinha-se por satisfatória a consideração de que
os crimes sexuais protegiam a liberdade sexual.27 Desde 2009, o Título VI do
Código Penal brasileiro adota a denominação de “crimes contra a dignidade
sexual”. No entanto, mesmo a noção de dignidade mostra-se imprecisa,
não obstante o seu papel como fundamento do Estado Democrático de
Direito, constitucionalmente previsto. Silveira aponta que a interpretação
mais adequada a ser dada ao conceito de dignidade, no que diz respeito
ao Direito Penal Sexual, é a da “necessidade de autodeterminação de uma
pessoa poder escolher sua disponibilidade sexual”.28 Os crimes sexuais,
portanto, também com base em Roxin,29 teriam por objetivo tutelar a dig-
nidade humana especificamente num contexto de autodeterminação, ou

24
Como assevera Roxin, o Projeto Alternativo alemão de Código Penal, apresentado em 1966,
precisava que as penas servem para a proteção de bens jurídicos, defendendo, portanto, a
impunidade de ações imorais, porém não lesivas a direitos de qualquer pessoa (e com isso
advogava por uma ampla liberalização do Direito Penal Sexual). ROXIN, Claus. Derecho
penal – parte general – tomo I. 2. ed. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y
García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 52.
25
Begué Lezaún completa: “[...] assumida esta última posición dejaríamos de lado quizá el
princípio más característico del derecho penal cual es su carácter fragmentario y olvidaríamos
que el derecho penal tiene como su misión fundamental el proteger de la criminalidad los
bienes dignos, necesitados y susceptibles de protección frente a aquellos ataques que los
lesionen o pongan en peligro.” BEGUÉ LEZAÚN, op. cit., p. 14.
26
No mesmo sentido: SOUZA, op. cit., p. 341.
27
A liberdade sexual deve ser entendida, segundo Begué Lezaún, como o direito a decidir
quando, como e com quem manter relações sexuais, mas também à própria formação des-
te critério: a liberdade sexual estende-se ao livre desenvolvimento da sexualidade, como
elemento integrante do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade.
BEGUÉ LEZAÚN, op. cit., p. 13.
28
SILVEIRA. Crimes sexuais...: p. 167.
29
ROXIN, op. cit., p. 53.

46
seja, de livre exercício da sexualidade conforme a própria vontade, sem que
contra ela seja oposta qualquer invasão com vistas à prática de atos sexuais.
É mais do que a liberdade sexual, da qual não dispõem vítimas incapazes
por quaisquer motivos (idade, doença mental, ingestão de substância que
causa perda de consciência): o que lhes falta é justamente a possibilidade
de escolher, ou seja, de se autodeterminar.
Embora o Código Penal não traga nenhuma referência à auto-
determinação como objeto de tutela nos crimes sexuais, preferindo a
denominação “dignidade sexual”, com a subdivisão em capítulos relati-
vos a “crimes contra a liberdade sexual”, “crimes sexuais contra vulne-
rável”, “lenocínio e tráfico de pessoa para fim de prostituição ou outra
forma de exploração sexual” e “ultraje público ao pudor”, permanece
indispensável a ponderação quanto ao que idealmente se entende por
“dignidade sexual”, cabendo aqui, ainda que de modo implícito, a ideia
de autodeterminação sexual. Esse sentido confere maior precisão ao
objeto do Direito Penal Sexual, como critério de legitimação imediato
para os tipos penais a ele referidos.
Com essas premissas, inevitável a crítica de que, mesmo com a iniciativa
de racionalização da Lei 12.015/2009, a reforma não foi coerente na totalidade
dos dispositivos do Título VI, subsistindo termos de caráter fundamentalmente
moral, como a noção de “ultraje ao pudor” (capítulo VI), e até mesmo tipos
penais sem bens jurídicos correspondentes (ou sem base legítima para sua
existência). É o caso do crime de escrito ou objeto obsceno (art. 234, CP)30,
que criminaliza as condutas de fazer, importar, exportar, adquirir ou ter
sob guarda escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno,
para fins de comércio, distribuição ou exposição pública. Por certo, a única
justificativa possível para a tipificação desses atos parece ser a regulação do
comportamento e da vida social em conformidade com o que se considera
ilibado e moralmente aceitável, podendo-se considerar o recurso à chave
hermenêutica da adequação social como corretivo típico para tais condutas.

30
“Art. 234 - Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de comércio,
de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer
objeto obsceno:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.
Parágrafo único - Incorre na mesma pena quem:
I - vende, distribui ou expõe à venda ou ao público qualquer dos objetos referidos
neste artigo;
II - realiza, em lugar público ou acessível ao público, representação teatral, ou exi-
bição cinematográfica de caráter obsceno, ou qualquer outro espetáculo, que tenha
o mesmo caráter;
III - realiza, em lugar público ou acessível ao público, ou pelo rádio, audição ou recitação
de caráter obsceno.”

47
5. Violência e consentimento
nos crimes sexuais
O debate acerca da “resposta” penal cabível nos casos de abuso sexual
em locais de amplo acesso ao público, como os transportes coletivos, re-
quer, de início, algumas considerações sobre a noção de violência nos atos
sexuais, visando à interpretação do sentido em que o termo é empregado
pela legislação penal. O tipo penal tomado por base para essa discussão
é o do art. 213 do Código Penal brasileiro, ou seja, o crime de estupro,
definido da seguinte forma: “constranger alguém, mediante violência ou
grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com
ele se pratique outro ato libidinoso”. O dispositivo menciona dois tipos de
violência: a vis corporalis, que implica a realização de atos físicos violentos
com o objetivo de vencer a resistência da vítima; e a vis compulsiva ou
psíquica, pela qual o ofensor compele a vítima a ceder aos seus propósitos
sexuais mediante algum tipo de coação psicológica que provoque nesta
última o temor de um dano grave, pessoal e iminente, de modo que a
oferta de resistência é inibida no nível psíquico, frente à hipótese de um
mal ainda maior.31
A violência que caracteriza o Direito Penal Sexual é tida como diversa
da violência intrínseca que guarda todo ato sexual: ela é o meio utilizado
para atentar contra a autodeterminação sexual da vítima, motivo pelo qual
deve ser inconsentida.32 A relação entre violência e consentimento torna-se
bastante peculiar no tratamento dos vulneráveis, que a legislação considera
como os indivíduos menores de 14 anos, os que, por enfermidade ou defici-
ência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática do ato
ou que, por qualquer outra causa, não possam oferecer resistência.
Nesses casos, há uma presunção de violência pautada na ideia de ino-
cência desses sujeitos em relação ao conhecimento dos fatos sexuais, razão
pela qual não se poderia dar valor ao consentimento. Persistem, no entanto,
dúvidas quanto à natureza dessa presunção, se relativa ou absoluta. A questão
é complexa e mobiliza opiniões diversas. De todo modo, o que é importante
considerar, a nosso ver, é que a atuação do Direito Penal com base em verdades
absolutas pode dar lugar a cenários extremamente problemáticos. Mesmo a
seleção de uma idade limite, a partir da qual se entende haver possibilidade de
discernimento do indivíduo acerca dos atos praticados e do consentimento
dirigido à prática de relações sexuais, é duvidosa, pois nunca pode ser tida

31
Neste sentido: BEGUÉ LEZAÚN, op. cit., p. 21-23.
32
“A se ter a criminalização, imprescindível é o dissenso no ato, e a particular relatividade
deste ato não consentido.” SILVEIRA. Crimes sexuais...: p. 212.

48
como absoluta, especialmente tendo em vista a velocidade com que a socie-
dade se transforma e adquire novas percepções de sexualidade.33
A esse respeito, Roxin afirma que a concreta capacidade de compreensão
e de julgamento é uma questão de fato que não depende de limites etários.34
Uma alternativa razoável é a utilização do critério legal de menoridade
estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90),
segundo o qual se considera criança a pessoa menor de 12 anos; entre 12 e
18 anos de idade, é adolescente. Essa previsão, como também apontam Greco
e Rassi, pode facilitar a interpretação da lei penal no sentido de se admitir
prova contrária à presunção de violência e de ausência de consentimento,
ao menos para os menores com idade a partir de 12 anos.35 Ressalte-se que
a vulnerabilidade por enfermidade, doença mental ou por situação que im-
possibilite a capacidade de resistência é constatada sempre no caso concreto,
tratando-se, portanto, de presunção relativa.
No âmbito do Direto Penal Sexual, o consentimento36 (emitido
por escrito, por fala, por gestos ou, de acordo com o caso concreto, por
omissão, mas de toda forma inequívoco), mesmo não estando previsto de
forma explícita na norma codificada, uma vez que diz respeito a interesse
individual (no caso, a autodeterminação sexual), pode configurar causa
de exclusão da tipicidade. A despeito das diferentes posições doutrinárias
quanto à consideração do consentimento como excludente de tipicidade
ou de ilicitude, bem como à sua distinção em relação ao acordo,37 adotamos

33
Esse problema revela-se nitidamente nos casos em que o sujeito ativo desconhece a idade
da vítima ou sequer suspeita se tratar de pessoa menor de 14 anos, portadora de alguma
enfermidade ou doença mental, casos em que estaria afastada a responsabilidade por erro de
tipo. A esse respeito, observa Silveira: “Diversos autores clássicos ponderam que a anteposi-
ção de um limite fixo para a definição da violência presumida, ainda que justificável, não
seria justo, jurídico, tampouco legalmente aceitável que isso se dê de forma juris et de jure.
Ponderável, assim, sempre a avaliação ex post do ocorrido sob pena de gritante injustiça.”
SILVEIRA. Crimes sexuais...: p. 220.
34
ROXIN, op. cit., p. 538.
35
GRECO, Alessandra Orcesi Pedro; RASSI, João Daniel. Crimes contra a dignidade
sexual. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 116.
36
Importante a ressalva de que o consentimento não deve ser confundido com a au-
tocolocação em perigo da vítima. Esta última existe quando o indivíduo, por meio
de uma ou mais condutas, cria um perigo para si mesmo (suas ações contribuem
para a organização da lesão), ao passo que no consentimento ele se expõe, de modo
consciente, a um perigo causado exclusivamente por terceiro. Cf. GRECO; RASSI,
op. cit., p. 88.
37
Greco e Rassi resumem tais posições em três direções: “(a) aquela que distingue acordo de
consentimento, considerando o primeiro como causa de atipicidade e o segundo como causa
de justificação (doutrina dualista); (b) a posição que considera supérflua a distinção entre
acordo e consentimento, e considera que todo o consentimento exclui o tipo (doutrina

49
a chamada teoria unitária ou da atipicidade, que não faz distinção entre
acordo e consentimento.38 Esse é o entendimento de Roxin, para quem todo
consentimento eficaz exclui o tipo, em consonância com a teoria liberal do
bem jurídico referido ao indivíduo. Segundo o autor, o fundamento para a
exclusão da tipicidade pelo consentimento reside justamente na liberdade
de ação de quem consente, tendo em vista que os bens jurídicos se orientam
ao livre desenvolvimento do indivíduo.39 Disso resulta que o consentimento
eficaz não produz desvalor do resultado, tampouco desvalor da ação e, por
consequência, tipo delitivo.
No entanto, o consentimento não é eficaz para excluir a tipicidade
em todos os casos. Somente podem ser objeto de consentimento os bens
jurídicos individuais, afastando-se a sua aplicabilidade em relação àqueles
difusos ou coletivos, pois o particular não pode consentir, de modo válido,
com a lesão de bens jurídicos dirigidos à coletividade.40 E mesmo dentre
os bens individuais, há tipos com nula ou limitada possibilidade de con-
sentimento: é o caso, por exemplo, dos crimes sexuais em que se presume
a impossibilidade de decisão livre da vítima, pela incapacidade de discerni-
mento para a prática do ato, e dos crimes em que o bem jurídico afetado
é a vida humana.41
Após essas considerações a respeito da noção de violência nos crimes
sexuais, passamos à problematização central relativa ao enquadramento típico
de abusos sexuais ocorridos em meios de transporte público, cujas vítimas são,
na grande maioria, do sexo feminino, questionando em seguida a necessidade
de alterações legislativas no Título VI do Código Penal brasileiro, como medida
para a salvaguarda dos direitos das mulheres.

unitária ou da atipicidade); e (c) a corrente que distingue entre acordo (causa de atipicida-
de) e consentimento excludente do tipo e consentimento excludente da antijuridicidade
(doutrina diferenciadora).” GRECO; RASSI, op. cit., p. 93.
38
Por outro lado, para a teoria dualista, o acordo excluiria a tipicidade porque implicaria a
ausência de elemento essencialmente integrante do tipo, não lesionando o bem jurídico
protegido pela norma em questão. O consentimento, por sua vez, seria uma causa de
justificação na medida em que, a despeito do consentimento do titular do bem jurídico, a
lesão subsistiria, como no caso do crime de dano. Em detalhes sobre a concepção dualista:
ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal: contributo
para fundamentação de um paradigma dualista. Coimbra: Coimbra Editora, 1991; também
PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido na teoria do delito.
3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
39
ROXIN, op. cit., p. 517.
40
Id., ibid., p. 526-527.
41
Em relação ao bem jurídico individual vida, observa Roxin:“un consentimento precipitado
o influido por alteraciones psíquicas desconocidas puede causar daños irreparables, de modo
que la víctima debe ser protegida también de sí misma.” ROXIN, op. cit., p. 529.

50
6. Os abusos sexuais praticados
contra mulheres em transportes
públicos: resposta penal
Um dos grandes problemas envolvendo a tipificação e interpretação dos
crimes sexuais veio à tona com especial vigor neste ano de 2017, embora não
se tratasse efetivamente de novidade na discussão do Direito Penal Sexual: o
crescimento dos números de abusos sexuais cometidos em transportes públicos,
mediante condutas que, embora apresentem certas variações, demonstram um
modus operandi similar. Dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado
de São Paulo (SSP) revelaram o registro de quase 400 casos de abusos sexuais
em transportes públicos da região metropolitana até o final de setembro de
2017. Foram registrados exatamente 391 casos até o dia 28 de setembro, o
que resulta numa média de 1,4 casos por dia.42 Os casos mais emblemáticos
foram os de ejaculação em passageiras de ônibus,43 sendo que houve liberação
dos ofensores após audiências de custódia.
Imediatamente os casos tomaram conta das redes sociais e dos noticiá-
rios, causando revolta e indignação diante do que resulta, em verdade, de uma
lacuna legislativa para o tratamento dessas condutas. Embora tal percepção não
tenha sido unânime, restando opiniões no sentido de que os fatos ocorridos
poderiam ser descritos pelo tipo penal de estupro (art. 213, CP), a análise
ponderada e racional não permite apontar a presença de constrangimento
mediante violência ou grave ameaça no sentido dado pelo dispositivo (de
forçar, coagir), que requer ao menos uma intromissão indesejada em simili-
tude ao estupro, na forma de ataque sexual. A ausência de efetiva ameaça e
de coação das vítimas à prática do ato com os ofensores, nos casos de ejacu-
lação, dificultam a aplicação do art. 213, muito embora tais condutas tenham
nitidamente violado a autodeterminação das vítimas na medida em que lhes
foi tolhida a possibilidade de escolher acerca de sua disponibilidade sexual
especificamente em relação à prática daquele ato (no sentido defensivo, foi
violada a liberdade de autodeterminação).

42
Em 2017, os números de abusos sexuais em transportes da capital e região metropolitana
de São Paulo aumentaram 20% em relação ao mesmo período no ano de 2016 (de janeiro
a julho de 2017 foram 288 ocorrências em trens, metrô e ônibus, ao passo que no ano
anterior foram registradas 240 ocorrências no mesmo intervalo). SP registra quase 400 casos
de abuso sexual no transporte público este ano. G1. Disponível em: <https://g1.globo.
com/sao-paulo/noticia/sp-registra-quase-400-casos-de-abuso-sexual-no-transporte-publi-
co-este-ano.ghtml>. Acesso em: 02 nov. 2017.
43
Mulher sofre assédio sexual dentro de ônibus na Avenida Paulista. G1. Disponível em:
<https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/mulher-sofre-assedio-sexual-dentro-de-oni-
bus-na-avenida-paulista.ghtml>. Acesso em: 02 nov. 2017.

51
A conduta praticada por aqueles ofensores foi tida como uma contra-
venção penal, qual seja, a de importunação ofensiva ao pudor constante do
art. 61 do Decreto-lei n. 3.688/1941, sujeita a pena de multa.44 Em termos de
proporcionalidade, parece pouco eficaz para coibir a reincidência e outras prá-
ticas análogas, do mesmo modo que a aplicação do tipo penal de estupro para
conduta menos gravosa do que aquelas em que se verifica um constrangimento
da vítima no sentido de lhe restringir a liberdade física mediante violência ou
grave ameaça, com o intuito de com ela praticar sexo ou outro ato libidinoso,
contra a sua vontade, parece inadequada do ponto de vista da razoabilidade.45
O tipo penal da violação sexual mediante fraude (art. 215, CP)46 também
foi apontado como possível acusação em um dos casos nos quais o ofensor
ejaculou numa mulher em ônibus na Zona Leste da cidade de São Paulo. A
vítima relatou que sentiu um movimento, depois um “negócio” caindo em
sua perna e algo pingando em seu pé.47 Em audiência de custódia, o ma-
gistrado adotou o entendimento de que não houve crime sexual mediante
fraude pela falta de contato entre o indiciado e a vítima que pudesse indicar
engano. A sentença observou que “sem o emprego de fraude não há crime”,
determinando a soltura do averiguado.48
44
“Art. 61. Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo
ao pudor: Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.”
45
Diverso foi o tratamento dado nos casos em que os ofensores esfregaram o órgão genital nas
vítimas. Numa dessas situações, a vítima relatou ter o ofensor colocado o pênis para fora da
calça, segurado sua cintura e começado a se esfregar, fato ocorrido num ônibus em setembro
de 2017, na Zona Norte de São Paulo. De modo semelhante, um homem que já havia sido
detido anteriormente por ejacular em uma mulher foi preso, na mesma semana, por esfregar
o pênis na perna de outra mulher em ônibus, sendo, nesse segundo episódio, denunciado por
estupro, entendendo o Ministério Público que houve constrangimento da vítima pelo emprego
de violência física para a prática do ato libidinoso, já que a vítima teria tentado se esquivar, mas
foi segurada pelo acusado, que forçou o contato com o pênis ereto. Em audiência de custódia,
o juiz determinou a prisão preventiva do indiciado, que registra nove ocorrências anteriores
por importunação ofensiva ao pudor e ato obsceno. BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo. Termo de audiência de custódia (processo n° 0007791-65.2017.8.26.0635),
São Paulo, 3 set. 2017. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/PublicacaoADM/Handlers/
FileFetch.ashx?id_arquivo=93906>. Acesso em: 03 nov. 2017.
46
“Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante
fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se
também multa.”
47
“Homem é agredido e preso por ejacular em mulher em ônibus na Zona Leste de SP”.
G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/homem-e-agredido-e-
-preso-por-ejacular-em-mulher-em-onibus-na-zona-leste-de-sp.ghtml>. Acesso em: 03
nov. 2017.
48
Juiz manda soltar homem que ejaculou em mulher em ônibus na Zona Leste de SP. G1.
Disponível em: <https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/juiz-manda-soltar-homem-que-
-ejaculou-em-mulher-em-onibus-na-zona-leste-de-sp.ghtml>. Acesso em: 03 nov. 2017.

52
Sendo assim, parece haver de fato uma lacuna na legislação penal atual,
que se torna incapaz de orientar os aplicadores do Direito quanto à resolu-
ção de situações de abuso em transportes e locais públicos tais como as que
se verificam de modo acentuado na cidade de São Paulo, demonstrando ser
incapaz, também, de fornecer qualquer expectativa de segurança às vítimas,
haja vista a improbabilidade de redução das ocorrências e a ausência de me-
canismos retributivos e educativos direcionados aos ofensores.
Esforços para a modificação da situação já foram sinalizados: a Comis-
são de Constituição e Justiça do Senado aprovou, no dia 27 de setembro de
2017, duas propostas que visam inserir um tipo penal intermediário entre o
estupro e a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, sendo
que ambas foram aprovadas pelo plenário do Senado Federal e encaminhadas
para revisão da Câmara dos Deputados. O primeiro projeto (Projeto de Lei n°
8830/2017) é de autoria do senador Humberto Costa e pretende o acréscimo
de um artigo 216-B ao Código Penal, tipificando o crime de “molestamento,
importunação ou constrangimento ofensivo ao pudor” e revogando o art. 61
da Lei das Contravenções Penais. Propõe-se a seguinte redação ao dispositivo:

Art. 216-B. Molestar, importunar ou causar constrangimento a


alguém de modo ofensivo ao pudor, ainda que sem contato físico,
atentando contra sua dignidade sexual.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.
Parágrafo único. Se a conduta ocorre em transporte público ou
em outro lugar aberto ao público, a pena é aumentada de 1/6 (um
sexto) até 1/3 (um terço).49

A segunda proposta (Projeto de Lei n° 8834/2017), de autoria da se-


nadora Marta Suplicy, tipifica o crime de “molestamento sexual”, revoga a
contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor e ainda altera o Có-
digo de Processo Penal (CPP) para modificar as medidas cautelares diversas da
prisão (art. 319, CPP). Altera as hipóteses de internação provisória do acusado
quando houver laudo preliminar pericial concluindo pela inimputabilidade ou
semi-imputabilidade do agente ao incluir, além dos casos de crimes praticados
com violência ou grave ameaça ou havendo risco de reiteração, a possibilidade
da internação provisória nos crimes contra a liberdade sexual, incluindo como
medida cautelar a frequência obrigatória a tratamento ambulatorial, conforme

49
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 8830/2017. Acrescenta art. 216-B ao
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar o crime
de molestamento, importunação ou constrangimento ofensivo ao pudor, e revoga o art.
61 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais).
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPro-
posicao=2155631>. Acesso em: 03 nov. 2017. Texto Original.

53
prazos e condições fixados pelo juiz. O tipo penal de molestamento sexual
é proposto nos seguintes termos:

Art. 216-B. Molestar, importunar ou causar constrangimento a


alguém mediante prática de ato libidinoso realizado sem violência
ou grave ameaça, independentemente de contato físico:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.50

Além dos projetos mencionados, cumpre ressaltar ainda a proposta


recentemente incluída pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher
da Câmara dos Deputados no Projeto de Lei 5452/2016, de autoria da
senadora Vanessa Grazziotin, que originalmente pretendia alterar o Código
Penal tipificando o crime de “divulgação de cena de estupro” e prevendo
causas de aumento de pena para o crime de estupro cometido por duas
ou mais pessoas (o “estupro coletivo”). Posteriormente, foi adotado subs-
titutivo ao projeto de lei para, dentre outras alterações, tipificar o crime
de “importunação sexual”, tendo em vista a atenção nacional obtida pelos
casos de abuso sexual em transportes coletivos. O dispositivo é redigido
da seguinte maneira:

Art. 215-A. Praticar, na presença de alguém e sem a sua anuência,


ato libidinoso, com o objetivo de satisfazer sua própria lascívia ou
a de terceiro:
Pena – reclusão, de um a cinco anos, se o ato não constitui crime
mais grave.51

É de se observar que esse projeto, com a subemenda substitutiva ado-


tada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, que abarca

50
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 8834/2017. Acrescenta art. 216-B ao
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar o crime de
molestamento sexual; altera o art. 319 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941
(Código de Processo Penal), para modificar as hipóteses de internação provisória; e revoga
o art. 61 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais).
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPro-
posicao=2155637>. Acesso em: 03 nov. 2017. Texto Original.
51
BRASIL. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Subemenda substitutiva
ao substitutivo ao Projeto de Lei n. 5.452, de 2016, adotado pela Comissão de Defesa
dos Direitos da Mulher. Tipifica os crimes de importunação sexual e de divulgação de
cena de estupro; altera para pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes
contra a dignidade sexual; estabelece causas de aumento de pena para esses crimes; e cria
formas qualificadas dos crimes de incitação ao crime e de apologia de crime ou criminoso.
Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;j-
sessionid=4A80BD08F81E0219C3F3A173111D0DF7.proposicoesWebExterno1?cod-
teor=1630255&filename=Tramitacao-PL+5452/2016>. Acesso em: 27 fev. 2018. Texto
Original.

54
também alterações sugeridas em outros projetos de lei,52 apresenta alguns
excessos no tratamento dos crimes sexuais. Apesar do escopo positivo de
evitar a ocorrência de mais episódios absurdos e lamentáveis tais como os
de estupros coletivos ocorridos no Piauí e no Rio de Janeiro, as legislações
surgidas em resposta a clamores populares (aqui incluídas as demandas fe-
ministas que em certas ocasiões podem se perder no discurso punitivista),
geralmente logo após eventos que provocam comoção nacional, tendem a
adotar um rigor e uma característica predominantemente repressiva, que
extrapola os limites do Direito Penal em Estados Democráticos. Com efeito,
a insegurança é associada “à ideia simplista de que o Direito Penal teria
o condão de solucionar tais problemas com a criminalização de variadas
condutas e o endurecimento e alargamento das penas impostas”53, com a
manifestação de uma postura emergencial.
A proposta inserida no Projeto de Lei n° 5.452/2016 de modificação
do art. 217-A do CP, relativo ao crime de estupro de vulnerável, para carac-
terizá-lo como a conjunção carnal ou prática de outro ato libidinoso com
menor de 14 anos, “independentemente de consentimento” é questionável,
pois a verificação do consentimento pode ser relevante, conforme discutido
anteriormente, considerando o desenvolvimento fisiopsicológico da vítima
no caso concreto (incorre-se, aqui, em perigo representado pela inclusão de
verdades absolutas no sistema do Direito Penal). A verificação inequívoca
de consentimento, nos casos em que o menor ou a menor esteja em plenas
condições de manifestar tal entendimento, deve ser devidamente considerada
para fins de atribuição de responsabilidade por estupro, ato que pressupõe
violência ou grave ameaça.
Ainda, o mesmo projeto pretende alterar a redação do art. 225 do CP54,
tornando a ação penal cabível nos crimes definidos nos Capítulos I e II do
Título VI (crimes contra a liberdade sexual e crimes sexuais contra vulnerável)
pública incondicionada para todos os casos, o que poderia configurar nova
violência dirigida à vítima, na medida em que esta, mesmo com idade supe-
rior a 18 anos, não teria mais possibilidade de decidir acerca do tratamento
dos fatos pelas autoridades oficiais. Estaríamos, portanto, diante de grande
retrocesso no que concerne à valorização da figura da vítima.

52
Projetos de Lei n° 5.798 de 2016, nº 2.265 de 2015, nº 5.435 de 2016, nº 5.710 de 2016,
nº 5.796 de 2016, nº 5.649 de 2016, nº 6.971 de 2017 e 8.403 de 2017.
53
SOUZA, Luciano Anderson de. Expansão do direito penal e globalização. São Paulo:
Quartier Latin, 2007. p. 155.
54
“Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante
ação penal pública condicionada à representação. Parágrafo único. Procede-se, entretanto,
mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou
pessoa vulnerável.”

55
Entre as causas de aumento do art. 226 do CP,55 foi proposto o aumento de
um terço na pena se o crime é cometido “em local público, aberto ao público
ou com grande aglomeração de pessoas, ou em meio de transporte público”,
ou “durante a noite, em lugar ermo, com o emprego de arma, ou por qualquer
meio que dificulte a possibilidade de defesa da vítima”. Sugere-se o aumento de
um a dois terços se o crime é praticado em concurso de dois ou mais agentes
ou “para controlar o comportamento social ou sexual da vítima” (estupro cor-
retivo), não obstante o aumento para o concurso de pessoas já esteja previsto,
embora em menor medida (de quarta parte) no inciso I do art. 226 do CP.
As grandes inovações sugeridas são, em resumo, a de um tipo menos gra-
voso que o estupro, aplicável, por exemplo, aos casos de abusos em transportes
coletivos e a de criminalização da oferta, troca, disponibilização, transmissão,
venda, distribuição, publicação ou divulgação de imagens ou vídeos de estupro,
bem como de cenas de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da
vítima (a prática de revenge porn).56
A relatora do projeto na Comissão de Constituição e Justiça e de Ci-
dadania, Deputada Federal Laura Carneiro, votou pela constitucionalidade,
juridicidade, boa técnica legislativa e pela aprovação do projeto de lei e de
todos os seus apensos, na forma da Subemenda Substitutiva Global apresentada.
Verifica-se que o Projeto de Lei 5.452/16 é, em certos pontos, bastante
problemático, orientando-se no sentido da tendência atual de repressão a
questões relacionadas à sexualidade, ainda que busque o fortalecimento da
segurança em geral, sobretudo das mulheres. No que tange ao enquadramento
típico das condutas de abuso sexual em transportes coletivos, é desejável que a

55
“Art. 226. A pena é aumentada:
I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas;
II – de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, com-
panheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título
tem autoridade sobre ela.”
56
É ressalvada a hipótese de publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadê-
mica.Veja-se o inteiro teor da redação proposta:“Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar,
transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio,
inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática,
fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou estupro
de vulnerável ou que faça apologia ou induza sua prática, ou, sem o consentimento da
vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:
Pena – reclusão, de um a cinco anos, se o fato não constitui crime mais grave.
Aumento de pena
§ 1º A pena é aumentada de um a dois terços se o crime é praticado por agente que man-
tém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima, ou com o fim de vingança
ou humilhação.
§ 2º Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput em publicação
de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que
impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, se ela for maior
de dezoito anos.”

56
lacuna seja preenchida por um dispositivo adequado, que talvez venha a inau-
gurar o debate acerca da necessidade de uma nova tentativa de racionalização
da legislação referente aos crimes sexuais. O maior problema está, justamente,
na adequação e na precisão legislativa que tal iniciativa exige.
O projeto de novo Código Penal brasileiro (Projeto de Lei do Senado
n° 236/2012) traz um tipo penal específico referente a condutas diversas do
estupro vaginal, anal ou oral, sob a denominação de “molestamento sexual”:

Art. 182. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça,


ou se aproveitando de situação que dificulte a defesa da vítima, à
prática de ato libidinoso diverso do estupro vaginal, anal e oral:
Pena – prisão, de dois a seis anos.
Parágrafo único. Se o molestamento ocorrer sem violência ou grave
ameaça, a pena será de um a dois anos.57

O projeto prevê, ainda, o molestamento sexual de vulnerável como sendo o


constrangimento de alguém que tenha até doze anos (reduz, portanto, a idade limite
para a consideração de vulnerabilidade de catorze para doze anos), ou portador de
enfermidade ou deficiência mental, bem como quem não possa oferecer resistência
à prática de ato libidinoso diverso do estupro vaginal, anal ou oral, sem exigência
de violência ou grave ameaça, estabelecendo pena de quatro a oito anos de prisão.
A proposta do “molestamento sexual” no projeto de novo Código Pe-
nal parece ser uma alternativa a ser considerada, pois não só promove uma
gradação de lesividade em relação a atos libidinosos menos invasivos que a
violação vaginal, anal ou oral, que continuariam sendo caracterizados como
estupro, como também parece abranger, com algum esforço interpretativo, a
maior parte dos abusos sexuais praticados nos transportes públicos, especial-
mente em seu parágrafo único, que se refere ao molestamento sem violência
ou grave ameaça. Muito embora o Projeto de Lei n° 8834/2017 tenha a
vantagem de se referir expressamente à desnecessidade de contato físico, a
utilização dos verbos “importunar” e “causar constrangimento”, este último
no sentido de embaraço, situação moralmente desconfortável, parece ser aberta
demais, podendo causar dificuldades na sua interpretação ou uma ampliação
temerária do alcance da norma.
Para além de um tipo penal construído em conformidade com os
princípios informadores do Direito Penal Sexual (segundo Silveira: inter-
venção mínima, in dubio pro libertate e tolerância58), é importante que outras

57
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n° 236, de 2012 (Novo Código Penal). Disponível
em: < http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404>. Acesso
em: 03 nov. 2017.
58
SILVEIRA. Crimes sexuais...: p. 178-184.

57
medidas sejam pensadas para evitar que as mulheres sofram abusos sexuais
nos transportes e nos espaços públicos em geral: sabe-se que a lei não é
solução instantânea para todos os distúrbios da sociedade, e menos ainda o
anseio popular de promover justiça por meio da agressão dirigida aos ofen-
sores, numa aproximação à ideia de “gestores atípicos da moral” (atypische
Moralunternehmer), bem lembrada por Silva Sánchez como uma das causas da
expansão do Direito Penal.59
O problema, especialmente no que se refere à vitimização da mulher,
reside no fator histórico-cultural que dificulta a consideração dos abusos e
constrangimentos tidos por assédio como questões a serem tratadas com se-
riedade. O apoio físico e psicológico às vítimas é essencial para esse propósito,
assim como a elaboração de mecanismos para tornar os espaços públicos menos
hostis e inseguros para a população em geral. Com esse intuito, as empresas
de transporte coletivo de São Paulo lançaram recentemente uma campanha,
coordenada pelo Tribunal de Justiça do Estado, contra o abuso sexual em
ônibus, trens e metrôs, com o treinamento de mais de mil funcionários para
receber denúncias de modo a não constranger as vítimas. Ainda, foram con-
cebidos programas de reeducação para os abusadores como penas alternativas
aos delitos de menor potencial ofensivo (como o de ato obsceno), com o
objetivo de evitar a reiteração das condutas.60

7. Considerações finais
A partir da crítica incisiva a um Direito Penal Sexual orientado por
considerações de ordem moral, argumentou-se a necessidade de reacender
o debate a respeito dos crimes sexuais na legislação brasileira, apontando-se
ainda alguns resquícios de moralidade e da tentativa de guiar o comporta-
mento humano, notadamente o da mulher, sujeita aos julgamentos morais
da sociedade e dos representantes das instituições oficiais, de acordo com o
que se considera adequado ou “normal” em matéria de sexualidade ou na
conduta feminina. Como se viu, desde uma perspectiva histórica, o elemento
repressor sempre se fez presente, em maior ou menor grau, na tipificação dos
delitos sexuais, a despeito dos significativos avanços obtidos nos séculos XX e
XXI, contribuindo para tanto a emancipação da mulher e a sua inclusão nos
espaços públicos, antes dominados e construídos pelo homem.
59
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal
nas sociedades pós-industriais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 80 e ss.
60
CPTM, Metrô e EMTU se unem contra abuso sexual nos transportes. Governo do
Estado de São Paulo. Disponível em: < http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/
cptm-metro-e-emtu-se-unem-contra-abuso-sexual-no-transporte-coletivo/>. Acesso em:
03 nov. 2017.

58
Com apoio na teoria liberal do bem jurídico, a compreensão de legiti-
midade dos crimes sexuais mudou a partir do reconhecimento de que a tutela
deve se dirigir, nesses casos, ao indivíduo, e não a uma percepção coletiva de
moral sexual capaz de turbar a convivência social. A partir de então, diversos
autores observaram que o Direito Penal Sexual tem o objetivo de proteger a
liberdade de autodeterminação dos indivíduos no que se refere à prática da
sexualidade, como aspecto essencial para a promoção da dignidade humana.
Sob tais premissas, pretendeu-se discutir questões essenciais para a configura-
ção de um Direito Penal Sexual racional, não perdendo de vista a necessária abor-
dagem de gênero, a se tomar como ponto de partida o acalorado debate suscitado
pelos registros de abusos sexuais praticados em transportes públicos, especialmente
na região metropolitana de São Paulo. Por mais que se tenha ressaltado que o
expansionismo penal, na forma de novas tipificações ou do recrudescimento de
penas, inclusive no que se refere à proteção dos direitos da mulher, pode conduzir
a uma postura emergencial pouco comprometida com os ideais democráticos e
pluralistas da sociedade e do Direito, espera-se que a identificação de problemas
para os quais a legislação atualmente não possui respostas adequadas possa fomentar
o surgimento de iniciativas para aperfeiçoar o tratamento dado aos crimes sexuais
pelo Código Penal brasileiro. Assim, podem ser abarcadas também as relevantes
denúncias expostas pelos movimentos feministas em relação à crescente hostili-
zação dos ambientes públicos na perspectiva da mulher.
Certo é que o debate sobre o enquadramento típico dos abusos sexuais
verificados em ônibus, trens e metrôs possibilitou uma nova problematização
do Direito Penal Sexual e reforçou os discursos concernentes à criação de
novos instrumentos em defesa das mulheres, ressaltando a necessidade de se
questionar, dentre outras matérias, a vulnerabilidade de determinados sujeitos,
a relevância do consentimento e as diversas formas de violência sexual.
Se considerarmos que uma reforma se mostra necessária para a busca
de um nível ainda maior de racionalidade na legislação penal, a alteração
com vistas a abarcar condutas atentatórias à liberdade de autodeterminação
sexual ocorridas sem violência ou grave ameaça pode ser bastante positiva.
No que se refere aos abusos cometidos em transportes públicos, na grande
maioria das vezes contra mulheres, é necessário ainda um trabalho de fôlego
para criar mecanismos que, para além da retribuição, possam contribuir para
a minimização do problema, de modo a evitar uma percepção de segurança
meramente ilusória, apoiada exclusivamente na promessa de punição.

Referências
ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito
penal: contributo para fundamentação de um paradigma dualista. Coimbra:
Coimbra Editora, 1991.

59
BEGUÉ LEZAÚN, J. J. Delitos contra la libertad e indemnidad sexu-
ales. Barcelona: Editorial Bosch, 1999.
BOCK, Gisela. História, história das mulheres, história do gênero. Penélope:
Fazer e desfazer História, n. 4, p. 147-178, nov. 1989.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 8830/2017. Acrescenta art.
216-B ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal),
para tipificar o crime de molestamento, importunação ou constrangimento
ofensivo ao pudor, e revoga o art. 61 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outu-
bro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Disponível em: <http://www.
camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2155631>.
Acesso em: 03 nov. 2017. Texto Original.
______. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 8834/2017. Acrescenta art.
216-B ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal),
para tipificar o crime de molestamento sexual; altera o art. 319 do Decreto-Lei
nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para modificar
as hipóteses de internação provisória; e revoga o art. 61 do Decreto-Lei nº
3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Disponível
em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?i-
dProposicao=2155637>. Acesso em: 03 nov. 2017. Texto Original.
______. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Subemenda subs-
titutiva ao substitutivo ao Projeto de Lei n. 5.452, de 2016, adotado pela Co-
missão de Defesa dos Direitos da Mulher.Tipifica os crimes de importunação
sexual e de divulgação de cena de estupro; altera para pública incondicionada a
natureza da ação penal dos crimes contra a dignidade sexual; estabelece causas
de aumento de pena para esses crimes; e cria formas qualificadas dos crimes
de incitação ao crime e de apologia de crime ou criminoso. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessioni-
d=4A80BD08F81E0219C3F3A173111D0DF7.proposicoesWebExterno1?-
codteor=1630255&filename=Tramitacao-PL+5452/2016>. Acesso em: 27
fev. 2018. Texto Original.
______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Diário
Oficial da União, Poder Executivo, Rio de Janeiro, 16 jul. 1934. Disponível
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60
______. Decreto-lei n. 3688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções
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61
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Acesso em: 02 nov. 2017.

62
O patriarcalismo tardio como
causa do superencarceramento
de mulheres no Brasil
Ana Carla Harmatiuk Matos1
Tani Maria Wurster2 3

1 . I n t ro d u ç ã o
A realidade concreta atual das mulheres encarceradas brasileiras é
emblemática de sua especial vulnerabilidade. Segundo dados do Infopen
Mulheres,3 o único levantamento oficial já elaborado com recorte de
gênero, o número de mulheres custodiadas em 2014 correspondia a 6%
do total de presos no Brasil.
No período entre 2000 e 2014, no entanto, o aumento da população
carcerária feminina correspondeu proporcionalmente a mais do que o dobro
do aumento do encarceramento masculino, 567% e 220,20% respectivamente,
revelando a existência de fatores que alteraram ou a lógica do cometimento
do crime, ou o sistema que conduz ao seu aprisionamento.
A mulher presa é em sua maioria jovem (50% tem entre 18 e 29 anos),
negra (67%), pobre, possui baixa escolaridade (62% não possuem ensino
fundamental completo), tem filhos e é a responsável pelo sustento da família.
Em 80% dos casos de encarceramento, há histórico de violência familiar ou
estatal anterior à prisão.

1
Doutora e mestre pela Universidade Federal do Paraná. Mestre em Derecho Humano pela
Universidad Internacional de Andalucia. Professora de Direito na Universidade Federal do
Paraná. Advogada.
2
Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Juíza Federal no Paraná.
3
BRASIL. Ministério da Justiça. Levantamento Nacional de Informações Peniten-
ciárias, Infopen Mulheres. Junho de 2014. Disponível em: http://www.justica.gov.br/
noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-in-
fopen-mulheres.pdf. Acesso em: 04 out. 2016.

63
Condicionamentos de ordem cultural e social imputaram à mulher
singularidades relacionadas à sua saúde, à relação com a família, cuidado com
os filhos, gravidez e amamentação.
Embora muito se tenha avançado em termos de reconhecimento de
direitos em favor da mulher desde que Mary Wollstonecraft4 defendeu o di-
reito básico de educação formal às mulheres e declarou a independência como
a grande bênção da vida e a base de toda a virtude, não há dúvidas de que
a mulher ainda é a principal responsável pelos cuidados do lar, da família e
dos filhos.
Tais particularidades, de modo especial o seu confinamento histórico ao
âmbito doméstico, que por tanto tempo lhes roubou o direito ao trabalho, à
voz, às decisões sobre suas próprias vidas e seus corpos, continuam a impor ao
feminino especial condição de vulnerabilidade, circunstâncias essas que se en-
contram à margem da perspectiva de tratamento adotado pelo sistema de justiça.
O presente estudo pretende discutir em que medida a dominação patriarcal
atua para alocar a mulher em lugares de inferioridade e submissão, invisibilizar
a condição feminina, naturalizando-a e, sutil e inconscientemente, determina
o modo como os atores do sistema de justiça medem a mulher e impõem, em
razão dessa medida, graves violações de direitos com perspectiva de gênero.

2 . A v u l n e ra b i l i d a d e q u e c a r a c t e r i z a o f e m i n i n o
A vulnerabilidade é sem dúvida uma marca que atinge a população
carcerária em geral, homens e mulheres5. A inter-relação entre gênero e vul-
nerabilidade6, no entanto, apresenta-se como uma realidade cruel no ambiente
carcerário em razão de singularidades que caracterizam o feminino.
Tal conexão se relaciona à destinação histórica e cultural da mulher ao
universo doméstico e ao cuidado com os filhos.
Recente pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisas Econômicas–
(IPEA)7 indicou que, enquanto a mulher dispensa 2/3 do seu tempo ao

4
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. Trad. Ivania
Pocinho Motta. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 17.
5
O Infopen 2016 revelou que 61% da população carcerária em geral, homens e mulheres,
são analfabetos, ou possuem o ensino fundamental incompleto. Disponível em: http://
depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorio_2016_22-11.pdf/view.
6
Para o sociólogo Lindomar Wessler Boneti, a partir de um estudo elaborado na penitenciária
feminina do Paraná, há evidente correlação entre vulnerabilidade, perda da autonomia,
exercício de atividade de risco e prisão. (BONETI, Lindomar Wessler; LANGNER, Ana
Lúcia. A construção social do crime: o caso da penitenciária feminina do Paraná. Palestra
proferida no XX Congresso Internacional de Sociólogos de Língua Francesa. Montreal:
Université du Québec à Montréal, jul. 2016).
7
IPEA. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/li-
vros/170904_uso_do_tempo_e_genero.pdf.

64
trabalho doméstico e 1/3 à esfera pública, a relação entre casa e trabalho é
a inversa em relação aos homens, na ordem de 1/3 e 2/3 respectivamente.
São elas, portanto, as principais responsáveis pelo cuidado com os filhos,
doentes e idosos.
O especial pertencimento à esfera doméstica atribui ao feminino um
sentido de imanência: as mulheres laboram em atividades repetitivas, de
manutenção, de nutrição. Atuam em trabalhos domésticos compatíveis com
a maternidade. Os labores domésticos “encerram-na na repetição e na ima-
nência; reproduzem-se dia após dia sob uma forma idêntica que se perpetua
quase sem modificação através dos séculos. Não produzem nada de novo”.8
Às atividades masculinas, ao contrário, se liga um sentido de transcen-
dência: os homens criam instrumentos novos, inventam, forjam o mundo.“O
caso do homem é radicalmente diferente; ele não alimenta a coletividade à
maneira das abelhas operárias mediante simples processo vital, e sim com atos
que transcendem sua condição animal”.9
O poder simbólico que parte do paradigma do trabalho masculino para
atribuir valor ao trabalho feminino acaba por desmerecer o labor desenvolvido
majoritariamente por mulheres.
O confinamento histórico da mulher ao espaço doméstico determina
e constitui historicamente as percepções daquele que pode ser considerado
capaz de exercer trabalho produtivo; no caso, o homem. O homem enquanto
provedor. A mulher, mesmo que se reconheça seu trabalho, e que seja ele um
trabalho tão duro e cansativo quanto o do homem, é tomada como mera
auxiliar, que desempenha trabalho eventual e complementar.10

8
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Trad. Sérgio Milliet. 2. ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. p. 102.
9
BEAUVOIR, op. cit., p. 102.
10
Na obra História das Mulheres no Ocidente, Joan W. Scott faz um relato histórico sobre
a mulher trabalhadora, no qual afirma: “A identificação do trabalho feminino com certo
tipo de empregos e como mão-de-obra barata foi formalizada e institucionalizada de vá-
rias maneiras durante o século XIX, de tal modo que se tornou axiomática, uma questão
de senso comum. Até aqueles que procuravam mudar o estatuto do trabalho feminino se
viram na situação de ter de argumentar contra o que era tido como ‘fatos’ observáveis. Estes
‘fatos’ não existiam objetivamente, mas eram produzidos por histórias que sublinhavam os
efeitos causais da separação entre lar e trabalho, por teorias de economistas políticos e por
preferências de contratação dos empregadores que criavam uma força de trabalho claramente
segregada pelo sexo. (...) E apesar de existirem importantes diferenças nacionais (por exem-
plo, entre os teóricos franceses e os britânicos), assim como diferentes escolas de economia
política dentro do mesmo país, alguns princípios básicos eram comuns a todos. Entre eles,
a noção de que o salário de um homem tinha de ser suficiente não só para a sua própria
subsistência mas também para manter uma família, pois de outro modo, assinalava Adam
Smith, ‘a raça de tais trabalhadores não poderia durar para além da primeira geração’. Pelo
contrário, do salário de uma esposa, ‘tendo em conta a atenção que necessariamente tinha
que dar aos filhos, não se esperava mais do que o suficiente para o seu próprio sustento.”

65
A ordem masculina, a partir da qual se interpretam os dados, os fatos e
o mundo, impõe, portanto, que o trabalho invisível e não remunerado seja
encargo da mulher.
Assim, elas dedicam proporcionalmente mais tempo aos menores e
ao trabalho doméstico, o que lhes priva de destinar seu tempo ao trabalho
produtivo, aquele a que se atribui valor e é remunerado, aquele realizado no
espaço público.11
Desse modo, ao dedicarem a maior parte do seu tempo a um trabalho sem
valor, acabam por se tornar uma categoria economicamente mais vulnerável,
de modo especial se forem as únicas responsáveis pelo sustento dos filhos.
Exemplificativo dessa situação é o fato de as mulheres receberem em mé-
dia 70% do salário dos homens;12 bem como a sobrerrepresentação da pobreza
em famílias do tipo “mulher sem cônjuge” em que há presença de filhos.13
O relatório do Infopen Mulheres14 levantou dados significativos a respeito
de quem é a mulher privada de liberdade; e, de modo muito especial, sobre a
sua condição social. Impressionantes 50% da população carcerária feminina
possuem o ensino fundamental incompleto, e apenas 11% terminaram o en-
sino médio, o que revela o baixo grau de escolaridade desse grupo. 50% das
detentas se encontram na idade entre 18 e 29 anos, e são solteiras.15
Mais de dois terços são negras, grupo reconhecidamente mais vulnerá-
vel. O Brasil tem 55,6 milhões de mulheres negras, que chefiam 41,1% das
famílias negras e recebem, em média, 58,2% da renda das mulheres brancas,
de acordo com os dados de 2015 extraídos do Retrato das Desigualdades

(SCOTT, Joan W. A mulher trabalhadora. In: DUBY, Georges; PERRT, Michelle (Org.).
História das mulheres no Ocidente. Edições Afrontamento, p. 454-456).
11
O fato de que o trabalho doméstico da mulher não tenha uma retribuição em dinheiro
contribui realmente para desvalorizá-lo, inclusive a seus próprios olhos, como se este tempo,
não tendo valor de mercado, fosse sem importância e pudesse ser dado sem contrapartida,
e sem limites, primeiro aos membros da família, e sobretudo a crianças (já foi comentado
que o tempo materno pode mais facilmente se interrompido), mas também externamente,
em tarefas de beneficência, sobretudo para a Igreja, em instituições de caridade ou, cada
vez mais, em instituições e partidos (BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad.
Maria Helena Kühner. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. p. 117).
12
IPEA. Mulheres e trabalho: breve análise do período 2004-104, www.ipea.gov.br/
portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160309_nt_24_mulher_trabalho_marco_2016.
pdf. Acesso em: 06 out. 2016.
13
______. A face feminina da pobreza: sobrerrepresentação e feminização da pobreza no
Brasil, Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1137.
pdf. Acesso em: 25 jan. 2017.
14
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento nacional de informações penitenciárias.
Infopen Mulheres, jun. 2014. Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-
-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.
pdf. Acesso em: 04 out. 2016.
15
Idem.

66
de Gênero e Raça. Entre 2003 e 2013, houve um aumento de 54% no nú-
mero de assassinatos de mulheres negras, enquanto houve redução em 10%
na quantidade de assassinatos de mulheres brancas. No quadro diretivo das
maiores empresas no Brasil, as negras são apenas 0,4% das executivas – apenas
duas num total de 548 executivos e executivas.16
Sobre outros marcadores que acompanham o feminino, relevantes são
os dados do Relatório Mulheres sem Prisão, elaborado pelo Instituto Terra,
Trabalho e Cidadania,17 cuja pesquisa analisou 265 autos de prisão em flagrante
de mulheres das cidades de São Paulo e Guarulhos.
Segundo o relatório, dados sobre o endereço de residência das detentas
pesquisadas demonstraram que 12,4% delas declararam estar em situação de
rua, ou seja, sem residência. Ainda, as quatro regiões da cidade de São Paulo
que mais concentram o endereço das mulheres presas correspondem às regi-
ões da cidade com maior número de domicílios em áreas de vulnerabilidade
social alta ou muito alta, de acordo com o parâmetro do Atlas Socioassistencial.
Como revelou a pesquisa A face feminina da pobreza: sobrerrepresentação e
feminização da pobreza no Brasil, a presença de filhos é marca característica dessa
situação de desvantagem econômica, de modo especial no caso da mãe solteira.18
O Infopen 201619 pretendeu coletar informações sobre a quantidade de
filhos das pessoas privadas de liberdade no Brasil.Tais dados estavam disponíveis,
porém, para parcos 9% da população prisional. Segundo esse levantamento,
53% dos homens presos não têm filhos, enquanto entre as mulheres, 74%
têm pelo menos um filho.
Ainda, um levantamento realizado pela Fiocruz20 traçou o perfil da
população feminina encarcerada que vive com seus filhos, bem como as
condições e práticas relacionadas à atenção à gestação e ao parto durante o
encarceramento.
O relatório Nascer na prisão, gestação e parto atrás das grades21 concluiu que
a maioria das presas está em idade fértil e estima-se que 6% estejam grávidas.
16
ONU. Disponível em: https://nacoesunidas.org/onu-mulheres-brasil-nomeia-tais-araujo-
-como-defensora-dos-direitos-das-mulheres-negras/.
17
INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA - ITTC. Relatório mulheres
sem prisão, 2016. Disponível em: http://ittc.org.br/mulheresemprisao/.
18
IPEA. A face feminina da pobreza: sobrerrepresentação e feminização da pobreza no
Brasil. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1137.
pdf. Acesso em: 25 jan. 2017.
19
INFOPEN. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/rela-
torio_2016_22-11.pdf/view. Acesso em: 21 fev. 2018.
20
LEAL, Maria do Carmo et al. Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil.
Ciênc. Saúde Coletiva [online], v. 21, n. 7, p. 2061-2070, 2016. Disponível em: http://
dx.doi.org/10.1590/1413-81232015217.02592016.
21
Idem.

67
Ainda, mais de um terço das detentas tiveram quatro ou mais gestações; e
20% tinham cinco filhos ou mais, sendo que 8% já tinham tido outro filho
durante o encarceramento anterior. A pesquisa revelou ainda que 56% das
mães declararam-se solteiras, sendo um terço delas chefes de família, ou seja,
mulheres responsáveis pelo sustento de seus parentes e responsáveis pelo
cuidado das crianças.
A inter-relação entre gênero e outras vulnerabilidades sociais se evidencia
no cárcere quando se analisam os dados a respeito do número de mulheres
presas em razão do tráfico de drogas e suas consequências em termos de
encarceramento em massa.
Do total de mulheres encarceradas, impressionantes 62% respondem por
crimes relacionados ao tráfico de drogas, enquanto na população carcerária
masculina esse percentual é de 26%.22
Pesquisas23 revelaram que a grande parte de mulheres presas por tráfico
de drogas é de rés primárias, possuem bons antecedentes, não praticaram
crimes com violência ou grave ameaça e são as principais responsáveis pelo
sustento dos filhos. Na referida pesquisa, das 141 entrevistadas, 79,72% nunca
portaram arma.
Tais mulheres, embora desempenhem papel de menor relevância na
‘cadeia produtiva’ do tráfico,24 circunstância que reproduz a desvantagem
econômica já reconhecida em outras esferas, estão proporcionalmente mais
expostas ao encarceramento em razão desse tipo de delito do que os homens,
condição responsável pelo aumento expressivo do número de mulheres em
privação de liberdade.

22
INFOPEN 2016. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/
relatorio_2016_22-11.pdf/view.
23
ARGUELLO, Katie; MURARO, Mariel. Las mujeres encarceladas por tráfico de drogas en
Brasil: las muchas caras de la violencia contra las mujeres. Onati Socio - Legal Series,
v. 5(2), 2015.
24
Idem. Aunque los medios de comunicación y el sentido común reproduzcan el estereotipo
de(a) traficante como un ser “malo” y “peligroso(a)”, a quién debe ser destinado el
“derecho penal del enemigo” (Jakobs), es decir, el derecho penal sin salvaguardas
existentes en el derecho penal del ciudadano, se sabe que la “guerra contra las
drogas” se centra en los(las) distribuidores(as) del tráfico (“aviones”, “esticas”,
“mulas” etc.), la mayoría preso(a) sin llevar armas. Esta era la situación exacta que
encontramos en el Presidio Femenino de Piraquara (prisión de seguridad máxima)
en la cual estas mujeres son tratadas como si fueran “muy peligrosas”, pero la
mayor parte jamás se alzó en armas una vez en la vida, y son “minoristas” del
tráfico, o sea, no han recibido grandes beneficios en la actividad. La mayor parte
informa que el tráfico incluso llegó a ser un medio de supervivencia, la situación era
tan precaria que máximo pagaban el alquiler, la comida, el agua, la luz, tan
modesto, ya que casi todas vivían en barrios muy pobres. Los delitos de estas
mujeres son delitos de personas indefensas que vivieron la mayor parte de su vida
en la pobreza. p. 406.

68
“A deletéria política penal de guerra às drogas tem sido a grande respon-
sável pelo aumento do encarceramento nos últimos anos”25 e tem produzido
profundo impacto sobretudo para as mulheres. Desde 2000 até 2014, o au-
mento da população carcerária feminina foi mais que o dobro do crescimento
do aprisionamento masculino.
Reproduzindo uma realidade existente em todo o continente americano,26
as mulheres presas por tráfico de drogas fazem parte do contingente de “varejistas
do tráfico, ou seja, não auferem grandes lucros na atividade”27 e não apresentam
alta periculosidade. Muitas delas foram presas portando pouca quantidade de
drogas, e se encontram no mais baixo nível da cadeia do crime organizado.28
A aplicação de penalidades extensas, de regime de cumprimento da pena
mais gravosos bem como a utilização em grande escala das prisões preventivas
nos casos de crimes relacionados às drogas têm imposto às mulheres no Brasil
uma punição desproporcional, com repercussões de gênero.
Percebe-se, portanto, que o lugar que a mulher majoritariamente ocupa
na sociedade é reproduzido na lógica do aprisionamento e cumprimento da
pena. O modo peculiar como é aprisionada a mulher no país lhe sonega a
condição de indivíduo, mediante a violação sistemática e institucionalizada
de direitos humanos imposta pelo sistema carcerário brasileiro.

3 . A rc a b o u ç o n o r m a t i vo re c o n h e c e d o r d e d i re i t o s
q u e n ã o u l t ra p a s s a m o s m u ro s d a s p r i s õ e s
As singularidades que marcam o universo feminino não passaram des-
percebidas pelo sistema normativo nacional e convencional.
A Constituição Federal garante no art. 5º a igualdade entre homens e
mulheres (I), a proibição de tortura e tratamento desumano e degradante
(III), o direito à individualização na pena (XLVI), à integridade física e moral
(XLIX) e a proibição de penas cruéis (XLVI, e).

25
ARGUELLO; MURARO, op. cit. (tradução livre).
26
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Mujeres, políticas de
drogas y encarcelamiento. Una guia para la reforma de las políticas en América Latina
y el Caribe. Disponível em: https://www.oas.org/es/cim/docs/WomenDrugsIncarcera-
tion-ES.pdf.
27
ARGUELLO; MURARO, op. cit. (tradução livre).
28
Las mujeres encarceladas por delitos de drogas rara vez son una verdadera amenaza para
la sociedad; la mayoría son detenidas por realizar tareas de bajo nivel pero de alto riesgo.
Y sin embargo, están recluidas con sentencias escesivamente largas, cuando no en prisión
preventiva. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Mujeres,
políticas de drogas y encarcelamiento. Una guia para la reforma de las políticas en
América Latina y el Caribe. p. 10. Disponível em: https://www.oas.org/es/cim/docs/
WomenDrugsIncarceration-ES.pdf).

69
O texto constitucional prevê ainda que nenhuma pena passará da pessoa
do condenado (XLV); e, especificamente sobre as mulheres, que a pena será
cumprida em estabelecimentos distintos de acordo com o sexo (XLVIII); e
que às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer
com seus filhos durante o período de amamentação (L).
A Lei de Execução Penal, a seu turno, embora tímida no reconhecimento
das especificidades da condição feminina, de modo especial singularidades re-
lacionadas à sua saúde, à relação com a família, cuidado com os filhos, gravidez
e amamentação, garante à mulher presa acompanhamento médico específico,
principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido (art.
14, §3º), assim como espaço adequado para gestante (art. 89) e berçário, onde
as presas possam cuidar de seus filhos e amamentá-los (art.83, §2º). Prevê ainda
a existência de creche para abrigar crianças maiores de seis meses e menores
de sete anos, assegurado atendimento por pessoal qualificado e horário de
funcionamento que garanta melhor assistência à criança e à mãe (art. 89).
Legislação protetiva recentemente editada, o Estatuto da Primeira In-
fância assegura a todas as mulheres acesso a programas e políticas de saúde da
mulher e planejamento reprodutivo; e, às gestantes, nutrição adequada, atenção
humanizada à gravidez, ao parto, ao puerpério e atendimento pré-natal, peri-
natal e pós-natal no âmbito do Sistema Único de Saúde (art. 8º). Reconhece,
ademais, o direito a um acompanhante de sua preferência durante o parto (art.
8º, §6º). Não distingue, como não poderia deixar de fazê-lo, a mãe presa da
gestante em liberdade, e reafirma a necessidade de o poder público garantir
à grávida e à mulher com filho na primeira infância, que se encontrem sob
custódia do Estado, um ambiente que atenda às normas sanitárias e assistenciais
do Sistema Único de Saúde para acolhimento do filho.
Avanço no reconhecimento da situação vulnerável em que se encon-
tram a gestante e a mãe encarcerada; bem como da necessidade de assegurar
o melhor interesse das crianças e adolescentes sob seus cuidados é o dispo-
sitivo do Estatuto da Primeira Infância que alterou o art. 318 do Código de
Processo Penal para reconhecer o direito da substituição da prisão preventiva
pela prisão domiciliar no caso de gestantes e mulheres com filhos de até doze
anos de idade.
Isso porque condicionamentos de ordem cultural e social, de modo
especial o seu histórico pertencimento ao universo doméstico, imputaram
à mulher singularidades relacionadas à sua saúde, à relação com a família,
cuidado com os filhos, gravidez e amamentação.
O legislador assumiu a presença dessas especificidades que marcam o
encarceramento feminino, da fragilidade física e emocional da gestante, da
indispensabilidade dos cuidados com o feto e o recém-nascido, das crianças
e adolescentes em geral; e, em compasso com o princípio de que a prisão

70
preventiva é medida excepcional, reconheceu que a prisão domiciliar é a
melhor opção para essas mulheres e seus filhos.
Tais comandos normativos ecoam dispositivos de tratados internacionais
de direitos humanos que o Estado Brasileiro se obrigou a cumprir; entre
eles, o Pacto de San José da Costa Rica e a Convenção para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra a Mulher; e, de modo especial, as Regras de
Bangkok, regras das Nações Unidas para tratamento de mulheres presas e
medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras.
As Regras de Bangkok reconhecem a presença de necessidades distintas
das mulheres presas e impõem adequado tratamento a tais condições, inclusive
no que diz respeito à suspensão da medida privativa de liberdade por período
que leve em consideração o melhor interesse da criança.
As regras para tratamento de mulheres presas determinam ainda o dever
do Estado de registrar o número e dados pessoais dos filhos das mulheres que
ingressam nas prisões, bem como acompanhar a situação de custódia e guarda.
Impõem acomodação adequada, que satisfaça necessidades específicas de higiene,
cuidados com a saúde, gestação e amamentação; e proximidade da residência da
família. Proíbem a utilização de métodos de inspeção e revista corporais ínti-
mos e invasivos em visitantes, bem como exigem o treinamento específico das
agentes prisionais que atendam às especificidades do encarceramento feminino.
Vedam a imposição de sanções disciplinares de isolamento e segregação que
impeçam ou interrompam a amamentação e o contato com os filhos e família,
bem como o uso de algemas durante o parto. Exigem o respeito ao melhor
interesse da criança, quando proferidas decisões sobre autorizar, ou não, os
filhos a permanecerem com suas mães na prisão. Impõem também o respeito
aos direitos dos menores a terem acesso a serviços de saúde e de educação.
Por fim, as Regras de Bangkok determinam que penas não privativas
de liberdade para mulheres gestantes e mulheres com filhos serão preferidas
sempre que for possível e apropriado, sendo a pena de prisão considerada
apenas quando o crime for grave ou violento, ou a mulher apresentar ameaça
contínua, sempre velando pelo melhor interesse dos menores.
Não é exagero lembrar, ademais, o art. 227 do texto constitucional, que
impõe como dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à dignidade, ao respeito, à
liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Relevante notar, ademais, a decisão adotada pelo Supremo Tribunal
Federal no Habeas Corpus 118.533,29 que entendeu que o tráfico privilegiado

29
HC nº 118533/MS, relatora Min. Carmén Lúcia,Tribunal Pleno, julgamento 23/06/2016.
Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do-

71
não configura crime hediondo, em razão da desproporcionalidade entre as
sanções penais e as ações praticadas, no caso, por réus primários, de bons
antecedentes e que não integrem organização criminosa.
A interpretação adotada pelo Supremo Tribunal Federal, embora apli-
cável indistintamente para homens e mulheres, impacta de modo especial
no encarceramento feminino. A decisão reconheceu a especial condição das
mulheres, encarceradas majoritariamente e desproporcionalmente em razão
de crimes relacionados ao tráfico, sem, contudo, fazerem parte de organiza-
ções criminosas; ao contrário, pertencendo ao nível mais baixo da cadeia de
comando do crime, caracterizadas como primárias e de bons antecedentes.
Fixado o arcabouço normativo que prescreve os parâmetros que deveriam
nortear as decisões judiciais sobre encarceramento de mulheres, bem como as
condições nas quais deveria se dar a sua segregação, uma passada de olhos sobre
a realidade das decisões judiciais e das penitenciárias femininas de pronto revela
que o cotidiano não poderia ser mais diferente do que a prescrição legal.
Evidente, portanto, que as normas reconhecedoras de direitos presentes
em disposições constitucionais, convencionais e internas não ultrapassam os
muros das prisões e constituem mera ficção legal.
Como explicar que, apesar do conteúdo da norma do art. 318 do Código
de Processo Penal, diuturnamente mulheres grávidas ou com filhos, primárias
e com bons antecedentes, continuam a ser encarceradas, portando pequenas
quantidades de drogas?
Fatores sutis e subliminares atuam para que decisões judiciais continuem
a silenciar a respeito das especificidades do universo feminino – em especial
a vulnerabilidade que marca o extrato que compõe a maioria das mulheres
presas – e a encarcerá-las em razão de crimes relacionados ao tráfico de pe-
quenas quantidades de drogas, praticados sem violência ou grave ameaça,30
ou por furtos de pequena monta.

4. A dominação masculina
Apontadas acima as peculiaridades que envolvem o feminino, bem como
que o arcabouço normativo aplicável ao sistema penitenciário não alcança a
maioria das mulheres, pobres, negras, solteiras e com filhos, cabe nesta parte
do trabalho a tarefa de procurar compreender quais fatores culturais, sociais e
históricos atuam no sistema de justiça que impedem a implementação de tais
prescrições reconhecedoras e protetivas dos direitos mais básicos das mulheres.

cID=11677998.
30
Segundo dados do Infopen 2016, 62% das mulheres foram presas em razão de crimes
relacionados ao tráfico de drogas, e 20% em razão de roubos ou furtos.

72
No histórico e simbólico voto proferido no Habeas Corpus 143.641,31 no
qual foi concedida ordem de natureza coletiva para substituir a prisão preven-
tiva pela domiciliar em favor de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas
ou mães de crianças e deficientes, desde que estejam sendo processadas por
crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, ou contra seus descendentes,
o Relator Min. Ricardo Lewandowski levantou suspeitas sobre os motivos
dessa completa dessintonia entre as prescrições legais e as decisões judiciais:

Há, como foi reconhecido no voto, referendado por todos os


ministros da Corte, uma falha estrutural que agrava a ‘cultura do
encarceramento’ vigente entre nós, a qual se revela pela imposição
exagerada de prisões provisórias a mulheres pobres e vulneráveis.Tal
decorre, como já aventado por diversos analistas dessa problemática,
seja por um proceder mecânico, automatizado, de certos magistrados,
assoberbados pelo excesso de trabalho, seja por uma interpretação
acrítica, matizada por um viés punitivista da legislação penal e pro-
cessual penal, cujo resultado leva a situações que ferem a dignidade
humana de gestantes e mães submetidas a uma situação carcerária
degradante, com evidentes prejuízos para as respectivas crianças.32

Para além do impacto que o viés punitivista brutalmente impõe a


esse grupo aqui estudado, o presente trabalho pretende discutir outro fator
que determina o proceder mecânico e automatizado dos juízes e interfere para
uma interpretação acrítica da legislação penal e processual penal (assim como
ocorre nos demais ramos do Direito), a que Pierre Bourdieu nomeou de
dominação masculina.33
Na obra homônima, o antropólogo e sociólogo francês trata de naturali-
zação da divisão sexual dos corpos, a qual atribui historicamente às mulheres
a posição inferior, submissa, a partir do paradigma da ordem masculina.34

31
HC 143.641, relator Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 20/02/2018. Dispo-
nível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641fi-
nal3pdfVoto.pdf.
32
HC 143.641, voto do Relator Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 20/02/2018,
p. 9. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC-
143641final3pdfVoto.pdf.
33
BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 13. ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.
34
Essa distinção socialmente construída tem o propósito de reservar às mulheres os lugares
inferiores, a submissão:“Inscrita nas coisas, a ordem masculina se inscreve também nos cor-
pos através de injunções tácitas, implícitas nas rotinas da divisão do trabalho ou dos rituais
coletivos ou privados (...). As regularidades da ordem física e da ordem social impõem e
inculcam as medidas que excluem as mulheres das tarefas mais nobres (...), assinalando-lhes
lugares inferiores (...), atribuindo-lhes tarefas penosas, baixas, mesquinhas (BORDIEU, op.
cit., p. 34).

73
Sustenta a existência de uma “sociedade organizada de cima para baixo se-
gundo o princípio androcêntrico”.35
Pierre Bourdieu analisa a posição ocupada pela mulher sob a perspectiva
da dominação masculina, e a ela atribui um sentido de dóxa: 36 aquilo que
é apreendido em determinado momento histórico como verdade óbvia ou
evidência natural.37
Nesse sentido, “a força da ordem masculina se evidencia no fato
de que ela dispensa justificação; a visão androcêntrica impõe-se como
neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem
legitimá-la”. 38
É atributo da dominação masculina, no sentido proposto pelo autor, por-
tanto, a naturalização da construção simbólica da divisão entre os sexos que
aloca a mulher em posição de inferioridade. Ele retrata na obra a dificuldade,
para não dizer a incapacidade de todos, homens e mulheres, colocarem em
questão o locus ocupado historicamente pela mulher, resultado de um pro-
cesso de des-historicização da história,39 que atua de modo circular,40 do qual
não se vê saída:

Como estamos incluídos, como homem ou mulher, no próprio


objeto que nos esforçamos por apreender, incorporamos, sob a
forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação, as
estruturas históricas da ordem masculina; arriscamo-nos a recorrer,
para pensar a dominação masculina, a modos do pensamento que
são, eles próprios, produtos da dominação.41

35
Id. ibid., p. 9.
36
“É a concordância entre as estruturas objetivas e as estruturas cognitivas, entre a conformação
do ser e as formas do conhecer, entre o curso do mundo e as expectativas a esse respeito,
que torna possível esta referência ao mundo que Husserl descrevia com o nome de ‘atitude
natural’, ou de “experiência dóxica.” (BORDIEU, op. cit., p. 17).
37
Para o autor, “a experiência apreende o mundo social e suas arbitrárias divisões, a começar
pela divisão socialmente construída entre os sexos, como naturais, evidentes, e adquire, assim,
todo um reconhecimento de legitimação. (BORDIEU, Pierre. A dominação masculina.
Trad. Maria Helena Kühner. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. p. 17).
38
Idem, p. 18.
39
Ibidem, p. 10).
40
Dado o fato de que é o princípio de visão social que constrói a diferença anatômica e que é
esta diferença socialmente construída que se torna o fundamento e a caução aparentemente
natural da visão social que a alicerça, caímos em uma relação circular que encerra o pensa-
mento na evidência de relações de dominação inscritas ao mesmo tempo na objetividade,
sob forma de divisões objetivas, e na subjetividade, sob forma de esquemas cognitivos que,
organizados segundo essas divisões, organizam a percepção das divisões objetivas. (BOR-
DIEU, op. cit., p. 20).
41
Id. ibid., p. 13.

74
A dominação masculina está de tal forma ancorada em nosso incons-
ciente42 que é a partir dela que criamos nossas percepções e expectativas;43
por meio das quais interpretamos o mundo.44
Nesse contexto, qual o lugar da mulher na ordem do mundo atual? Para
Bourdieu (ainda), o lugar da submissão e da inferioridade.
Apesar dos enormes avanços no que diz respeito ao reconhecimento
de direitos às mulheres, que as colocam em posição de igualdade formal em
relação aos homens, o paradigma a partir do qual se interpretam os fatos e o
mundo (e esses mesmos direitos, portanto) é o paradigma androcêntrico, que
aloca a mulher nas posições inferiores, de menor dignidade.
E o que impede que se operem mudanças é exatamente a sutileza com
a qual opera a dominação, quase imperceptível, inconsciente. “A violência
simbólica, como se sabe, não opera na ordem das intenções conscientes.”45
Como mudar a realidade daquilo que não se percebe? 46
Segundo Bourdieu, “se é totalmente ilusório crer que a violência sim-
bólica pode ser vencida apenas com as armas da consciência e da vontade
é porque os efeitos e as condições de sua eficácia estão duradouramente
inscritas no mais íntimo dos corpos sob a forma de predisposições (apti-
dões, inclinações)”.47

42
A naturalização e o caráter dóxico da dominação masculina constitui tão profundamente as
“estruturas sociais” que influencia intimamente os “esquemas cognitivos”, a ponto de Pierre
Bordieu aludir constantemente à dominação como pertencente à ordem das coisas,“como
se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável” (BORDIEU,
op. cit., p. 17).
43
“A violência simbólica se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode
deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à dominação) quando ele não dispõe,
para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua relação com ele, mais do
que instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo mais
que a forma incorporada da relação de dominação, fazem essa relação ser vista como
natural.” (BORDIEU, op. cit., p. 47).
44
Essa noção de que as diferenças sexuais “organizam todo o cosmos” remete à ideia invocada
por Antonio Manuel Hespanha na obra Imbecillitas. Segundo o autor português, a ordem das
coisas fundamenta as hierarquias sociais no Antigo Regime e, em sendo um fato dado e não
construído histórica e socialmente, é indiscutível e imutável. Ou seja, no Antigo Regime,
a cada ser humano cabia um lugar na ordem das coisas, lugar este a partir do qual se media
ou determinava o status das pessoas, seus direitos e deveres. (António Manuel Hespanha,
Imbecillitas. As bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades do Antigo Regime. São
Paulo: Annablume, 2010. p. 48).
45
BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 13. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. p. 74.
46
“A força simbólica é uma forma de poder que se exerce sobre os corpos, diretamente, e
como que por magia, sem qualquer coação física; mas essa magia só atua com o apoio de
predisposições colocadas, como molas propulsoras, na zona mais profunda dos corpos.”
(BORDIEU, op. cit., p. 50).
47
Id. ibid., p. 51.

75
Assim, como se fora uma predeterminação da ordem das coisas, sutilmente
e inconscientemente, o direito aprecia a mulher e seu status a partir da visão
androcêntrica da realidade, alocando-a na posição do outro.48 “É característico
dos dominantes estarem prontos a fazer reconhecer sua maneira particular
como universal”,49 maneira particular esta que dá sentido e reconhecimento
a todo o mundo.
A mulher é medida a partir de uma régua construída sob o ponto de
vista do masculino, o que faz dela o outro desviante.50
Neste sentido, a historiadora francesa Michelle Perrot afirma que quando
a mulher ultrapassa o espaço da reclusão e passa a ser observada, ela é registra-
da a partir da perspectiva patriarcal e a atenção que desperta é reduzida por
estereótipos – afinal, na história, os observadores e escritores são homens51.
Das mulheres se fala “para dizer o que elas são ou o que elas deveriam
fazer”.52 É da natureza das coisas que seja o outro. O masculino é o absoluto,
o reto, e o feminino o relativo, o desviante.
A invisibilidade, aliás, é outra consequência da visão androcêntrica que es-
trutura as relações sociais e, como consequência, o sistema de justiça.A régua que
mede as mulheres não enxerga o feminino, senão para impor-lhes estereótipos.
A invisibilidade é uma marca que acompanha histórica e culturalmente
a mulher, produto da reserva do espaço privado à mulher, determinado pela
dominação masculina. Esse apagamento acompanha as mulheres em diversos
ambientes públicos, no trabalho, na política, nos espaços de poder. No espaço
do cárcere não é diferente.
Histórica e culturalmente, à mulher foi reservado o espaço privado, do
lar, do recato, da maternidade. O espaço público, da luta, da razão e do pen-
samento, aquele que merece destaque e interesse, é associado ao masculino.

48
Os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações
de dominação, fazendo-as assim ser vistas como naturais. (BORDIEU, op. cit., p. 46).
49
BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 13. ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. p. 78.
50
Por conseguinte, a representação androcêntrica da reprodução biológica e da reprodução
social se vê investida da objetividade do senso comum, visto como senso prático, dóxico,
sobre o sentido das práticas. E as próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particu-
larmente, às relações de poder em que se veem envolvidas esquemas de pensamento que
são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições
fundantes da ordem simbólica. Por conseguinte, seus atos de reconhecimento são, exata-
mente por isso, atos de reconhecimento prático, de adesão dóxica, crença que não tem que
se pensar e se afirmar como tal e que ‘faz’, de certo modo, a violência simbólica que ela
sofre. (BORDIEU, op. cit., p. 45).
51
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres.Trad. Angela M. S. Côrrea. 2. ed. São
Paulo: Contexto, 2016. p. 17.
52
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres.Trad. Angela M. S. Côrrea. 2. ed. São
Paulo: Contexto, 2016. p. 22.

76
Nas palavras de Susan Moller Okin,53 as mulheres são vistas como
naturalmente inadequadas à esfera pública. Para Michelle Perrot,54 as mulheres
são invisíveis: “porque são pouco vistas, pouco se fala delas”. Enquanto “os
homens são indivíduos, pessoas, trazem sobrenomes que são transmitidos”,
as mulheres têm apenas um nome.55
Reconhecido, dessa forma, que locus ocupado pela mulher está na dife-
rença e no desvio, fazendo dela invisível, cabe aqui atentar para as consequências
que a dominação masculina e a visão androcêntrica do Direito impõem na
conformação do sistema de encarceramento em massa das mulheres.
5 . O o u t ro e n c a rc e ra d o
A visão androcêntrica que determina as relações sociais e estrutura o
mundo se apresenta de modo muito particular no fenômeno do cárcere.
A prática do encarceramento reproduz a lógica da dominação patriarcal
já existente nos mais diversos espaços sociais, qualificada pela peculiaridade
de que o locus da criminalidade, bem como o sistema que determina o en-
carceramento, é o locus por excelência do masculino.
Sobre o sistema de encarceramento como uma resposta do Estado ao
fenômeno da criminalidade, Zygmunt Bauman alerta que o refugo humano
necessita ser lacrado em contêineres fechados com rigor,56 contêineres esses forne-
cidos pelo sistema penal.
Se a condição de preso, qualquer que seja seu sexo, lança o indivíduo
em situação de completa invisibilidade, caracterizado como refugo humano,
excessivo e redundante,57 submetido a um processo de desumanização e exclusão,
de subtração do rosto do outro, extraindo-lhe a condição de sujeito moral,58
a invisibilidade que qualifica o feminino destina as mulheres à condição de
sujeitos apagados de vista,59 ou o refugo do refugo.
53
OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Revista de Estudos Feministas,
Florianópolis, p. 308.
54
A invisibilidade das mulheres permeia todo trabalho de Michelle Perrot na obra Minha
história das mulheres. Para a historiadora francesa, “escrever a história das mulheres é sair do
silêncio a que estavam confinadas”. Afirma que a história é o que acontece e o relato que
se faz dela, e que as mulheres ficaram muito tempo fora dos relatos, fora do tempo, fora
dos acontecimentos. São invisíveis. (PERROT, Michelle. Minha história das mulheres.
Trad. Angela M. S. Côrrea. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016. p. 16).
55
PERROT, op. cit., p. 17.
56
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de
Janeiro: Zahar, 2005. p. 108.
57
Idem, p. 12.
58
ARENDT, Hannah. Eichmannn em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal.
Trad. José Roberto Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
59
CAMPOS, Carmen Hein. Criminologias feministas: três possibilidades para a configu-
ração de um campo de estudo. Disponível em: www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=-

77
As relações sociais e, do mesmo modo, o Direito, ao enquadrar a mulher
no paradigma masculino, invisibilizam as particularidades do feminino. A
mulher, enquanto mulher, não existe para o sistema penal.
Conforme demonstrou o Infopen Mulheres,60 as mulheres estão encarce-
radas majoritariamente em estabelecimentos mistos, projetados e construídos
originariamente para abrigar homens. Em tais espaços, embora haja uma
divisão entre o alojamento masculino e o feminino, o conjunto arquitetô-
nico é único. Nesses limites, a estrutura de atendimento e a lógica da sua
administração se aplicam a todas as áreas, as quais são sustentadas a partir da
perspectiva do confinamento masculino.
Dados mostram que ser mulher é absolutamente irrelevante para o
sistema penitenciário.
Os dados do Infopen Mulheres61 revelam que apenas 7% dos estabele-
cimentos prisionais são voltados exclusivamente ao público feminino, o que
não significa dizer que tenham sido pensados para abrigar mulheres. Em geral,
são espaços criados para encarcerar homens, que foram (mal) adaptados para
confinar mulheres.
Nesse contexto, não surpreende que apenas um terço das unidades pri-
sionais exclusivamente femininas disponham de cela adequada para gestantes
e um terço possua berçário, número que cai para 6% e 3% respectivamente,
no caso de estabelecimentosmistos, que são 93% do total das unidades prisio-
nais no país. A arquitetura também se configura, portanto, como um espaço
representativo da dominação masculina.
O relatório “Nascer na prisão, gestação e parto atrás das grades”62 de-
monstra com precisão as consequências dessa perspectiva que se imprime
nas prisões de mulheres. Segundo o resultado da pesquisa, que se debruçou
sobre a realidade de gestantes em situação de privação de liberdade, o acesso à
assistência pré-natal foi inadequado para 36% das mães,63 sendo que 8% delas
relataram a demora de mais de 5 horas no atendimento, a contar do início

c112115f1c81e4f4.
60
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações Penitenci-
árias, Infopen Mulheres, jun. 2014. Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/
estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mu-
lheres.pdf. Acesso em: 04 out. 2016.
61
Idem.
62
LEAL, Maria do Carmo et al. Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil.
Ciênc. Saúde Coletiva [online], v. 21, n.7, p.2061-2070, 2016. Disponível em: http://
dx.doi.org/10.1590/1413-81232015217.02592016.
63
O índice de atendimento adequado de mulheres fora do sistema prisional, atendidas pelo
SUS, Sistema Único de Saúde, foi de 76%, segundo a pesquisa “Nascer no Brasil”. (LEAL,
op. cit.)

78
do trabalho de parto. Durante o período de hospitalização, 15% relataram ter
sofrido algum tipo de violência física, verbal ou psicológica.64
A já citada pesquisa sobre o parto no ambiente do cárcere indica o uso de
algemas na internação para o parto, relatado por mais de um terço das mulheres,
sendo que, em 8% dos casos,65 a mulher permaneceu algemada mesmo durante
o parto, “não lhes tendo sido permitido os benefícios da deambulação e da livre
movimentação que são recomendados para o melhor desempenho nessa ocasião”.66
Como explicar que uma mulher permaneça algemada durante o trabalho
de parto, momento em que obviamente não oferece nenhum tipo de perigo?
Cabe ainda mencionar, para os objetivos aqui propostos, questões rela-
cionadas ao Estatuto da Primeira Infância.
Segundo o relatório da Fiocruz, 40% das mulheres não receberam visita
de parentes67 ou amigos durante a gestação; e o início do trabalho de parto
foi informado à família em apenas 10% dos casos, sendo que 16% delas rece-
beram a visita do pai da criança. Somente 3% tiveram assegurado o direito a
um acompanhante durante o parto.68
A pesquisa revelou ainda a ruptura dos laços sociais das mulheres grávi-
das ou com filhos, em evidente descompasso com as previsões das regras de
Bangkok. Nesse caso, a punição pelo crime não se limita à esfera jurídica da
mulher, mas se estende a seus filhos e família. O fato de ser mãe de inúmeros
filhos e de ser majoritariamente a responsável pelo seu sustento não impede
que venha a ser deles separada.
Como as delegacias de polícia são locais inadequados para alojar as
mulheres, cujo baixo número de prisões em comparação ao encarceramento
masculino não justifica a criação de espaço especial para recebê-las nas cidades
do interior, elas são em geral encaminhadas a presídios femininos nas capitais,
unidades prisionais que possibilitam a segregação entre homens e mulheres.
A transferência, no entanto, significa distanciar as mulheres do seu domicílio.
Esse deslocamento priva as detentas da convivência com os seus familiares
no momento da gestação e do parto, intensificando a lógica da invisibilidade
que as acompanha desde o momento anterior à prática do crime.

64
Idem, p. 2061.
65
LEAL, op. cit., p. 2066.
66
Idem.
67
A distância relatada por familiares das mulheres privadas de liberdade na Penitenciária
Feminina do Estado do Paraná se constitui um limitador para as visitas, particularmente
se somado à questão econômica dos mesmos familiares (LANGNER, Ana Lúcia. A visita
da família na penitenciária feminina do Estado do Paraná: relação com o contexto
prisional, escolaridade e condição social. Dissertação. (Mestrado em educação) – Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, 2016. p. 76.
68
LEAL, op. cit., p. 2065.

79
Assim, reserva-se à mulher presa dois destinos: ou é detida em unidade
prisional sem nenhuma estrutura para atender às singularidades que caracteri-
zam o feminino (em relação à sua saúde, gravidez, amamentação) e permanecer
em local próximo à família, ou é transferida para uma unidade específica de
aprisionamento feminino, longe dos parentes e amigos.
A esse respeito, o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania desenvolveu
uma pesquisa ao longo de dois anos com o objetivo de compreender quais
dinâmicas do sistema de justiça criminal dificultam a aplicação de alternativas
à prisão provisória para mulheres.69
No relatório Mulheres sem Prisão, foram analisados 265 autos de prisão
em flagrante, 275 folhas de antecedentes, 258 decisões interlocutórias, 151
pedidos de habeas corpus e 180 denúncias, no período do segundo semestre
de 2014,70 ocasião em que se “buscou apurar, no conteúdo dos documentos
que constituem a investigação preliminar, como se materializa (ou não) a
argumentação de gênero para mulheres selecionadas pelas agências estatais
de controle”.71
No universo das 258 decisões judiciais analisadas, apenas 7 mobilizaram
de alguma maneira questões de gênero (tais como responsabilidade pelos filhos,
quantidade de filhos, idade dos menores, gravidez, gravidez sem a companhia
do pai, aplicação das regras de Bangkok), sendo que 3 delas relacionaram-se
à revista vexatória como a circunstância que ensejou a prisão, sem nenhuma
consideração sobre a grave lesão de direitos em razão da violação da intimidade.
A pesquisa revelou ainda a precária mobilização das questões de gênero
pela defesa: apenas 20 habeas corpus utilizaram algum elemento de argumenta-
ção com base no gênero, em sua maioria relacionados à maternidade. Mesmo
havendo a estimativa de que 80% das mulheres presas são mães, os pedidos
de prisão albergue domiciliar foram raros.
Por fim, e não mais surpreendente, das 181 denúncias analisadas pelo
Relatório Mulheres sem Prisão, apenas 4 mencionaram algum aspecto
relacionado a gênero: duas denúncias de mulheres transgênero, e duas mu-
lheres denunciadas por tráfico em que as prisões em flagrante ocorreram
na revista vexatória.
Nesse contexto, se a invisibilidade é uma peculiaridade que acompanha
a história das mulheres em geral, e se a prisão é o depósito por excelência

69
ITTC - Instituto Terra Trabalho e Cidadania. Relatório mulheres sem prisão. Disponível
em: http://ittc.org.br/wp-content/uploads/2017/03/relatorio_final_online.pdf. p. 19.
70
A análise é, portanto, anterior à publicação do Marco Legal da Primeira Infância, Lei
13.257/16, que ampliou as hipóteses de concessão de prisão domiciliar para mães de filhos
de até 12 anos, gestante, ou responsáveis por pessoa com deficiência.
71
ITTC, op. cit., p. 21.

80
daqueles de quem preferimos não lembrar,72 armazém de corpos dóceis,73 uma
prisão de mulheres constitui-se em um lugar de esquecidas, cemitério dos vivos.74
“A mulher é, antes de tudo, uma imagem. Um rosto, um corpo, vesti-
do ou nu. A mulher é feita de aparências.” Essas são as palavras de Michelle
Perrot75 para descrever a importância do corpo para a mulher. O corpo é o
caso das mulheres. No curso da história, segundo a historiadora, corpo do-
minado, subjugado, roubado e comprado. O uso do corpo da mulher para
infligir crueldades ou subjugar o sujeito é tão antigo quanto se pode lembrar,
a começar pelo uso do estupro como arma de guerra.
Não surpreende que o patriarcado tenha elegido o abuso institucio-
nalizado do corpo da mulher para lhe infligir pena, cumprindo uma função
não declarada do Direito Penal, qual seja, confiná-la no espaço da submissão
e da inferioridade.

6. Conclusão
Os dados a respeito do encarceramento feminino no Brasil revelam
que a especial condição de vulnerabilidade a que estão submetidas as mu-
lheres nos mais diversos espaços da sociedade se reproduz cruelmente no
ambiente do cárcere.
Ao lado disso as mulheres são as principais responsáveis pelo cuidado
com os filhos, com os doentes e os idosos. Elas dedicam proporcionalmente
mais tempo aos menores e ao trabalho doméstico, o que as priva de destinar
seu tempo ao trabalho produtivo, aquele a que se atribui valor e é remunerado.
Tais fatores agravam sua condição econômico-social, especialmente se forem
as únicas responsáveis pelo sustento dos filhos.
As pesquisas ainda indicam que a mulher presa é em sua maioria jovem,
negra, pobre, tem filhos, possui baixa escolaridade, é a responsável pelo sus-
tento da família, e foi condenada por crime relacionado ao tráfico de drogas.
Embora desempenhem papel de menor relevância na ‘cadeia produtiva’
do tráfico, estão proporcionalmente mais expostas ao encarceramento em
razão desse tipo de delito do que os homens, condição preponderantemente
responsável pelo aumento expressivo do número de mulheres em privação

72
SÁ, Priscilla Placha. Eles (não) são recicláveis. Revista da Faculdade de Direito, Curitiba,
UFPR, n. 53.
73
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete,
42. ed. Petrópolis:Vozes, 2014. p. 135.
74
LEMBRUGER, Julita. Cemitério dos vivos: análise sociológica de uma prisão de mu-
lheres. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.
75
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres.Trad. Angela M. S. Côrrea. 2. ed. São
Paulo: Contexto, 2016. p. 49.

81
de liberdade. O aprisionamento em massa por crimes de tráfico de drogas
impõe às mulheres uma punição desproporcional, com repercussões de gênero.
A ousadia da mulher criminosa, que trai a sua destinação cultural de
permanecer no âmbito doméstico, do recato, da decência, do cuidado do lar, do
marido e dos filhos, e que invade inadvertidamente o universo do masculino,
condena essa mulher ao desprezo social, moral e institucional.
As singularidades que marcam o universo feminino não passaram des-
percebidas pelo sistema normativo nacional e convencional.
A Constituição Federal, a Lei de Execuções Penais, o Estatuto da Primeira
Infância recentemente editado, assim como a Regras de Bangkok, assumiram
a presença dessas especificidades que marcam o encarceramento feminino, da
fragilidade física e emocional da gestante, da indispensabilidade dos cuidados
com o feto e o recém-nascido, e dos menores em geral, e, em compasso com
o princípio de que a prisão preventiva é medida excepcional, reconheceram
que a prisão domiciliar é a melhor opção para essas mulheres e seus filhos.
Apesar das prescrições normativas, a análise das decisões judiciais e do
contexto das penitenciárias femininas revela a falta de efetividade dos direitos
das mulheres.
Apesar dos enormes avanços no que diz respeito ao reconhecimento
de direitos a mulheres, que as colocam em posição de igualdade formal em
relação aos homens, o paradigma a partir do qual se interpretam os fatos e o
mundo (e esses mesmos direitos, portanto) é o paradigma androcêntrico, que
aloca a mulher nas posições inferiores, de menor dignidade.
Assim, como se fora uma predeterminação da ordem das coisas, sutilmente
e inconscientemente, o Direito aprecia a mulher e seu status a partir da visão
androcêntrica da realidade, alocando-a na posição do outro.
A dominação masculina, sutil e inconscientemente, atua de modo a
determinar a forma como os atores do sistema de justiça medem a mulher:
invisibilizam as singularidades do universo feminino e impõem em razão dessa
medida graves violações de direitos com perspectiva de gênero.
A condição feminina é em geral invisibilizada e, quando mobilizada, é
utilizada em prejuízo da mulher.
Não surpreende que o patriarcado tenha elegido o abuso institucio-
nalizado do corpo da mulher para lhe infligir pena, cumprindo uma função
não declarada do Direito Penal, qual seja, confiná-la no espaço da submissão
e da inferioridade.

Re f e rê n c i a s
ARENDT, Hannah. Eichmannn em Jerusalém. Um relato sobre a bana-
lidade do mal. Trad. José Roberto Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia

82
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83
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WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher.
Trad. Ivania Pocinho Motta. São Paulo: Boitempo, 2016.

84
O fantasma do macho
no corpo travesti:
violência, reconhecimento e poder jurídico
Ana Gabriela Braga1
Victor Siqueira Serra2 4

1. Introdução
Questões de gênero têm conquistado cada vez mais espaço nos debates
públicos e acadêmicos, especialmente pela mobilização dos movimentos
feministas e LGBT.3 Como consequência, o Direito – enquanto sistema
jurídico e campo de produção de conhecimento – tem sido cada vez mais
pressionado a se reinventar e adaptar às demandas de sujeitos e sujeitas his-
toricamente oprimidas.
Travestis são corpos designados homens ao nascer e que, no percurso
de suas vidas, “feminilizam-se” de diversas formas. O gênero feminino
que constroem para si sobre o corpo tido culturalmente como masculino
representa um deslocamento radical das normas sociais em vigor e desafia
o binarismo do sistema sexo-gênero. Ao desestabilizar as expectativas so-
ciais de continuidade entre corpos e desejos, ao rejeitar a masculinidade

1
Doutora e mestre em Direito Penal e Criminologia pela USP/Universitat de Barcelona.
Professora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp. Coordenadora do NEPAL
(Núcleo de Estudos e Pesquisa em Aprisionamentos e Liberdades) e do C.E.L. (Grupo de
Extensão Cárcere, Expressão e Liberdade).
2
Mestre em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp. Membro
do DIVERGENTES (Grupo de Pesquisa em Gênero, Direito, Poder e Resistências), do
NEPAL (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Aprisionamentos e Liberdades) e do C.E.L.
(Grupo de Extensão Cárcere, Expressão e Liberdade).
3
Estamos cientes das disputas em torno da sigla e das nomenclaturas, em especial das pessoas
intersexuais e dos termos “travestis”,“transexuais” e “transgêneros”. Consideramos primordial
que se discutam as diversas identidades e processos sociais que as produzem, mas preferimos
utilizar neste trabalho a sigla aprovada na 1ª Conferência Nacional GLBT, que também é
mais comumente utilizada em movimentos e teorias sociais.

85
e reivindicar a feminilidade, as travestis habitam um lugar ininteligível,
e, conforme discutiremos, abjeto. Elas são consideradas ambíguas, nem
homens nem mulheres, ou um pouco homens e um pouco mulheres, e
essa ambiguidade coloca em questão seu lugar enquanto sujeitos de di-
reitos. Loucas, perigosas, agressivas, imorais – são representações comuns
da subjetividade travesti produzidas e reproduzidas pelas diferentes esferas
de controle social.
Um dos grandes desafios na construção de uma teoria crítica,4 quando
parte do campo jurídico, é compreender o universo de relações de poder
e disputas que ocorrem no espaço entre o “dever ser” dos textos legais e a
“realidade” e, mais que isso, o papel produtivo que o sistema de justiça exerce
nesse processo. Do ponto de vista da criminologia crítica, propomos pensar
os processos sociais de produção e reprodução de desigualdades e violências a
partir dos discursos e práticas da justiça. Nesse espaço de disputa entre o que
diz a lei, como é aplicada e os efeitos dessa aplicação, agem diversas institui-
ções e personagens, que produzem saberes que legitimam ou questionam o
funcionamento do sistema de justiça.
O presente trabalho objetiva compreender, de forma geral, os proces-
sos de subjetivação marcados pelo gênero e constituídos pelo Direito; e, de
forma específica, as posicionalidades e atributos da figura travesti no discurso
jurídico paulista. Em um momento em que Direito é cada vez mais incitado
a produzir saber, dizer sobre, as demandas dos “subalternos”5 na porta da
justiça, a presente análise pretende contribuir com o debate, operando com
as categorias gênero, violência, punição e processos sociais de criminalização.
Mais especificamente, articulamos nossas discussões do campo com o que se
denominou “criminologia feminista”6 e com as reflexões que estamos de-
senvolvendo em pesquisa de mestrado,7 desde uma perspectiva que considera
o poder jurídico “resistente aos desafios postos pelo conhecimento e crítica
feministas”, o que faz com que o Direito “deva continuar um foco importante
para o trabalho feminista, não tanto para conquistar reformas legais (ainda

4
Utilizamos aqui “teoria crítica” como uma referência ao conjunto de movimentos teó-
ricos e políticos que pretendem contestar as desigualdades que estruturam as sociedades
contemporâneas, e não uma corrente específica. Ver, por exemplo, o debate entre Judith
Butler e Nancy Fraser: BUTLER, J. Meramente cultural. Revista Ideias, Campinas, v. 7,
n. 2, p. 227-248, mar. 2017. Disponível em: <https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/
ideias/article/view/2708/2139>. Acesso em: 12 nov. 2017.
5
Esse conceito e o poder de fala subalterna são explorados no texto: SPIVAK, G. C. Pode
o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
6
Sobre esse tema, ver CAMPOS, C. H. Criminologia feminista: teoria feminista e críticas
às criminologias. São Cristóvão: Lumen Juris, 2017.
7
Pesquisa provisoriamente intitulada “Pessoa afeita ao crime”: criminalização de travestis e
o discurso judicial criminal paulista, registrada na CAPES sob n. 1642950.

86
que muitas sejam úteis), mas para desafiar um significante tão importante do
poder masculino”.8
Ao analisar os discursos de desembargadores(as) do Tribunal de Jus-
tiça de São Paulo em crimes que envolvem travestis, talvez seja possível
compreender, como propõe Débora Figueiredo, “as formas através das
quais a linguagem contribui para processos de controle e dominação
social” e, nesse movimento, contribuir para um processo emancipatório,
pois só se pode “resistir e modificar um sistema de opressão e dominação
que opera através da linguagem se estivermos conscientes dos conceitos
e noções naturalizadas, não problematizadas, que se escondem por detrás
da linguagem”.9
Tal tentativa se dá em meio a múltiplas disputas políticas, como o
lugar de travestis e pessoas trans no feminismo; o lugar do feminismo na
criminologia e da criminologia no feminismo; os processos que cons-
tituem o desvio – da lei penal e das normas de gênero – e penalizam
seletivamente desviantes; o lugar da teoria nas movimentações sociais e
delas na produção teórica. Nesse cenário, propomos compreender de que
forma uma amostra do discurso judicial captura a subjetividade travesti,
e as representa em seus discursos, produzindo e reproduzindo práticas
culturais de sexo e gênero.
Para a presente análise, selecionamos 50 decisões criminais do Tribunal
de Justiça de São Paulo, por meio da ferramenta de busca do próprio site,
que tinham como palavra-chave “travesti”. Este texto começa descrevendo
esse percurso metodológico, com algumas observações acerca do discurso
judicial, nossa fonte de dados. Em seguida, recorremos aos nossos marcos
teóricos para pensar o corpo travesti, matriz heterossexual e performa-
tividade de gênero. Para introduzir a análise do campo, trazemos alguns
apontamentos quantitativos sobre travestis e o sistema de justiça criminal
paulista, que nos deu um panorama das circunstâncias e representações em
que a travesti aparece no discurso do tribunal. Em um segundo momento,
propomos análises qualitativas dessas mesmas decisões, tentando compreender
como se dá discursivamente a operação de produzir e reproduzir a marca do
desvio no corpo travesti. Ao final, dialogamos com algumas chaves teóricas
que podem ajudar a pensar nosso corpo empírico, e a relação entre gênero
e justiça de forma geral.

8
SMART, Carol. Feminism and the power of law. London, New York: Routledge,
1989. p. 2.
9
FIGUEIREDO, D. Gênero e poder no discurso jurídico. Revista de Ciências Humanas,
Florianópolis, v. 15, n. 21, p. 37-52, jan. 1997. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/
index.php/revistacfh/article/view/23353>. Acesso em: 16 dez: 2017. p. 50.

87
2. Método e fonte de pesquisa:
a n a l i s a n d o d i s c u r s o s d o Tr i b u n a l
de Justiça de São Paulo
Pensar as formas pelas quais travestis ingressam no sistema de justiça
criminal e como são tratadas depois dessa captura, inclusive discursivamente,
nos abriu um amplo leque de possibilidades metodológicas. São poucas as
pesquisas referentes a essa temática no campo do Direito; e muitos os aspectos
ainda desconhecidos. A dificuldade de composição de amostras representativas
e a ausência de dados sistematizados são fatores que dificultam abordagens
generalizantes – as quais requereriam uma pesquisa de fôlego. Por isso, e por
apostar no potencial do olhar micro e contextual para desvelar o funciona-
mento do sistema de justiça, recorremos à pesquisa empírica qualitativa, capaz
de produzir análises profundas a partir de amostragens menores e campos
mais restritos.
Desde nossa perspectiva criminológica, todas as instituições e personagens
do controle formal ou informal poderiam se tornar um campo fértil para se
pensar o Direito em ação: “pistas de prostituição”, ações policiais, delegacias,
defensorias públicas, ministérios públicos, magistraturas, instituições de saúde
e educação, políticas públicas – boa parte do universo que cruza questões
criminais e travestilidade está ainda em aberto, obscuro, desconhecido.
Nossa formação como juristas e os entraves práticos – de burocracia e de
inserção nas redes de relações travestis – fizeram com que adiássemos qualquer
tentativa etnográfica e voltássemos olhos e ouvidos ao funcionamento do
sistema jurídico. Afinal, se procuramos contribuir deste lugar específico para
o campo da criminologia crítica feminista, devemos nos debruçar sobre o
papel do Direito – mais especificamente, do Direito Penal e dos processos de
criminalização – na produção e reprodução de desigualdades e estereótipos;
assim como no nosso papel enquanto acadêmicas(os), na produção desses
discursos e representações.
Para tentar compreender esse emaranhado de perguntas sobre o fun-
cionamento do sistema penal em relação às travestis, utilizaremos a análise
crítica do discurso em acórdãos criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo.
A escolha do campo e da metodologia foram concomitantes e se fundam na
afirmação de que os discursos jurídicos

refletem e ajudam a consolidar a estrutura social vigente, marcada


por discriminações de gênero e relações de poder. Através da in-
vestigação das ideologias que permeiam estes textos legais, assim
como das relações sociais que os mesmos criam para seus produtores
(juízes, advogados, etc.) e seus consumidores (réus, vítimas, etc.), a

88
análise do discurso jurídico aqui proposta pretende encorajar uma
leitura crítica, e consequentemente uma forma de resistência, à
visão sexista do mundo transmitida por muitas sentenças legais.10

Nomeamos de discurso jurídico todos os textos e argumentos trazidos


por desembargadores(as) em seus votos, transcritos na forma de acórdão. Isso
significa que, eventualmente, podemos estar analisando trechos de livros ou
jurisprudências. No entanto, é importante frisar, não nos debruçamos sobre
as diferentes fontes de produção de conhecimento jurídico. Restringimo-nos
especificamente aos argumentos e à linguagem desenvolvidos dentro dos
acórdãos, pois ainda que em parte tenham sido extraídos de outros contextos,
representam – ou ao menos pressupõe-se que representem – o pensamento
de quem os mobiliza.
Nesse sentido, é importante afirmar que “o discurso que se apresenta
nos acórdãos é indireto, filtrado e recontado pelo Estado”, num exercício de
produção de verdade institucional, mas que “apesar da mediação dos discursos
pelos magistrados, não é possível apagar completamente da narrativa os modos
como determinadas pessoas vivenciam a realidade”.11
A escolha pela análise de acórdãos se deu porque essas decisões de se-
gunda instância exercem o duplo poder de legitimar (ou não) as práticas do
sistema formal de controle e de consolidar entendimentos em determinadas
matérias. Por um lado, no julgamento dos recursos, o Tribunal decide sobre o
funcionamento do sistema de justiça criminal como um todo, estabelecendo
legalidades e proibições, e consolidando uma narrativa sobre o conflito cri-
minalizado e acerca das personagens envolvidas. Por outro lado, acórdãos “são
instrumentos importantes para fundar e consolidar paradigmas jurídicos”, pois
devido à sua função processual e posição hierárquica, são utilizados na prática
para indicar aos juízes não apenas “a possibilidade de julgar da forma desejada,
mas, também, indica a chance do tribunal, em sede de recurso, reformar a
decisão caso não decida da forma requerida”.12
A coleta dos dados foi feita diretamente no site do Tribunal de Justiça de São
Paulo, restrita a casos criminais,13 a partir da palavra-chave “travesti”. O recorte
temporal abarcou os anos de 2013 (a partir da primeira sentença disponível
10
FIGUEIREDO, D. Gênero e poder no discurso jurídico. Revista de Ciências Humanas,
Florianópolis, v. 15, n. 21, p. 37-52, jan. 1997. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/
index.php/revistacfh/article/view/23353>. Acesso em: 16 dez. 2017. p. 44.
11
COACCI,T. A pesquisa com acórdãos nas ciências sociais: algumas reflexões metodológicas.
Revista Mediações, Londrina, v. 18, n. 2, p. 86-109, dez. 2013. p. 102.
12
COACCI,T. A pesquisa com acórdãos nas ciências sociais: algumas reflexões metodológicas.
Revista Mediações, Londrina, v. 18, n. 2, p. 86-109, dez. 2013. p. 106.
13
Utilizamos a ferramenta para filtros de busca disponibilizada pelo próprio site do Tribunal
na opção “pesquisa avançada”.

89
virtualmente) até fevereiro de 2017. Essa primeira operação na ferramenta de
busca nos levou a 397 acórdãos. Por limites de tempo e espaço, escolhemos
analisar no presente trabalho os 50 (cinquenta) mais recentes,14 e são eles que
constituíram o corpus empírico da nossa análise. Ainda que as decisões estejam
disponíveis para consulta pública, trocamos os nomes das pessoas citadas nas
decisões, para evitar qualquer tipo de constrangimento, o que entendemos um
cuidado necessário dentro da nossa perspectiva de ética em pesquisa.
A decisão de constituir o Tribunal de Justiça de São Paulo como fonte
de pesquisa se deu pela nossa familiaridade com o judiciário paulista,15 pelo
acesso público e relativamente simples a um número relevante de processos;
e pelo contato com trabalhos que abordam a travestilidade tendo como
campo o Estado de São Paulo16 – os quais nos permitiram pensar o contex-
to sociopolítico das travestis em outras interfaces com o sistema de justiça
criminal paulista.
A presente análise foi dividida em duas dimensões. Em um primeiro
momento, buscamos sistematizar quantitativamente (ainda que sem pretensão
de generalizações) nossa amostra nas seguintes categorias: tipo de ação; posição
processual ocupada pela travesti; tipo penal; resultado; tema transversal – de
forma que tivéssemos um panorama17 do nosso corpus empírico e do contexto
jurídico-processual das decisões. Em um segundo momento, a partir da análise
de discurso, buscamos compreender de forma mais ampla como é o processo
de representação das travestis nos discursos dos acórdãos; e, de forma mais
específica, as consequências jurídicas de tais representações.

14
A data aqui referida é da publicação dos acórdãos, não dos fatos criminalizados, ou seja, não
necessariamente a decisão mais recente se refere ao “crime” mais recente, por exemplo.
15
O programa de pós-graduação a que estamos vinculadas se encontra no estado de São
Paulo, e as trajetórias profissionais e acadêmicas de ambas autoras também se deram pre-
dominantemente neste mesmo território.
16
Ver, por exemplo, os trabalhos sobre prostituição travesti: PELUCIO, L. Na noite nem todos
os gatos são pardos: notas sobre a prostituição travesti. Cadernos Pagu, Campinas, n. 25, p.
217-248, Dec. 2005, e PATRIARCA, L. As corajosas: etnografando experiências travestis
na prostituição. 2015. 130 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo; MOIRA, A.
E se eu fosse puta. 1. ed. Sorocaba: Hoo Editora, 2016; sobre violência e assujeitamento
BUSIN,V. M. Morra para se libertar: estigmatização e violência contra travestis. 2015.
290 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Filosofia, Universidade de
São Paulo, São Paulo; e sobre gênero e sexualidade no sistema prisional, ZAMBONI, M.
O barraco das bichas na cadeia dos coisas: notas etnográficas sobre a diversidade sexual e de
gênero no sistema penitenciário. In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MER-
COSUL, n. 11. 2015, Montevideo; e PADOVANI, N. C. Sobre casos e casamentos:
afetos e “amores” através de penitenciárias femininas em São Paulo e Barcelona. 2015. 398
f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
17
Representado em tabela em Anexo.

90
Contudo, antes de enfrentar a análise, recorremos aos nossos marcos
teóricos para, na próxima sessão, pensar teoricamente a relação entre a ma-
triz heterossexual que baliza a sociedade e o Direito, o corpo travesti e sua
performatividade.

3. Corpo travesti, matriz heterossexual


e performatividade de gênero
Anne Fausto-Sterlling, em seu ensaio Dualismos em duelo,18 parte das dis-
cussões sobre pessoas intersexuais19 para derrubar definitivamente a noção de
que o binarismo sexual é uma realidade pré-cultural. Pelo contrário, diferentes
parâmetros são utilizados na construção do sexo (gametas, níveis hormonais,
anatomia, funcionalidades do corpo), fazendo com que qualquer rotulação
de alguém como homem ou mulher seja uma decisão social. “O sexo de um
corpo é simplesmente complexo demais. Não existe isso ou aquilo. [...] Além
disso, nossas crenças sobre o gênero também afetam o tipo de conhecimento
que os cientistas produzem sobre o sexo”. 20 Entender o sexo como uma
construção social não significa ignorar que diferenças existam, mas que essas
diferenças são organizadas de forma opressiva, inscrevendo corpos em uma
suposta normalidade que atende a interesses muito específicos.
Em A história da sexualidade (v. I), Foucault apresenta diversos conceitos
que permitem novas análises sobre o desenvolvimento histórico das formas
de classificação e gestão de indivíduos, famílias e populações. Destacamos
brevemente duas dimensões do conceito de biopoder. A primeira, centrada
no corpo individual, tornou papel da produção de conhecimento científico
determinar, padronizar e otimizar as funções do corpo. A segunda, centrada na
gestão da população, produziu e interpretou dados sobre mortalidade, níveis
de saúde, longevidade. Uma pluralidade de práticas e discursos, especialmente
científicos e jurídicos, participaram da consolidação do modelo social atual
por meio da “inserção dos corpos no maquinário da produção e o ajuste dos
fenômenos da população ao processo econômico”.21
Nesse sentido, construções sociais não devem ser compreendidas como
ilusões. Elas são reais, organizam a sociedade, produzem relações desiguais. A

18
FAUSTO-STERLING, A. Dualismos em duelo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 17-18, p.
9-79, 2002.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-83332002000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:  06  jan.  2018.  p. 25.
19
Pessoas intersexuais já foram chamadas de hermafroditas, termo atualmente recusado por
muitas delas, inclusive por movimentos organizados.
20
FAUSTO-STERLING, A. op. cit., p. 25.
21
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 13. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 1999. p. 141.

91
radicalidade de uma crítica que considere o próprio sexo como construção
social está na possibilidade de se analisar os processos que transformam um
corpo em um corpo sexuado – consequentemente carregado de expectativas
de gênero. Abandona-se, assim, a divisão entre sexo/gênero, e novas possibi-
lidades de análise emergem.

Embora este texto verse sobre gênero, discuto regularmente o


modo como as ideias de raça e gênero surgem a partir de supostos
subjacentes sobre a natureza física do corpo. Entender como operam
raça e gênero – em conjunto e independentemente – nos ajuda a
compreender melhor como o social se torna corporificado.22

Não por acaso, Butler desenvolve seu Problemas de gênero23 a partir de


reflexões sobre o sujeito “mulher” representado pelo feminismo, com per-
guntas como quem são as mulheres e quais processos sociais as constroem
como mulheres. Para ela, ser mulher (ou homem, ou travesti, ou qualquer
outra das categorias atualmente em disputa) não esgota o que aquela pessoa
é e, portanto, gênero não deve ser a única chave de análise social. A partir de
sua concepção foucaultiana de poder, Butler afirma que

Uso o termo matriz heterossexual ao longo de todo o texto para


designar a grade de inteligibilidade cultural por meio da qual os
corpos, gêneros e desejos são naturalizados. Busquei minha referên-
cia na noção de Monique Wittig de “contrato heterossexual” e, em
menor medida, naquela de Adrienne Rich de “heterossexualidade
compulsória” para caracterizar o modelo discursivo/epistemoló-
gico hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume
que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino
expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um
sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido opo-
sicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da
heterossexualidade.24

Nesse quadro, ser travesti significa ter um corpo considerado masculino,


“de homem”, mas que incorpora comportamentos, estéticas e, consequen-
temente, certo “lugar social” considerados femininos, “de mulher”. Mas esse
processo de incorporação é atravessado também pela classe social, pela raça,

22
FAUSTO-STERLING, A. Dualismos em duelo. Cadernos Pagu, Campinas, n. 17-18, p.
9-79, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-83332002000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:  06  dez.  2017.  p. 25.
23
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008. p. 13.
24
Ibid., p. 216.

92
pelas redes de apoio (político, financeiro e afetivo). Falar em uma identidade
travesti, portanto, é reconhecer um processo de construção que ao mesmo
tempo aproxima e afasta diferentes corpos que contrariam as normas de sexo e
gênero: mulheres masculinizadas, homens afeminados, gays, bissexuais, lésbicas,
travestis, transexuais e intersexuais, principalmente.
A desestabilização das identidades sexuais – seja pela criação de “novas”
ou por práticas que “confundem” as já existentes – são consideradas estraté-
gias de resistência ao binarismo de sexo e gênero. E toda estratégia pensada
e adotada como forma de contrapor a organização social estabelecida pode
conquistar transformações, ser absorvida ou gerar reações violentas. A possi-
bilidade de “subversão” é, então, contextual. O que se observa em relação às
travestis é que, apesar de algumas conquistas, seus corpos – que rompem com
as expectativas culturais – estão submetidos a diversos processos de exclusão,
marginalização e, no limite, de criminalização.
Segundo Jorge Leite Júnior, Foucault demonstrou que desde o final do
século XVIII ocorreram mudanças políticas e epistemológicas que constituíram
uma divisão rígida entre “dois sexos distintos e opostos, cada um possuindo
uma psique característica. Daí em diante, os limites entre masculinidade e
feminilidade, suas normas sadias e seus desvios patológicos serão constante-
mente reorganizados”25 até os dias de hoje. Nesse processo, também surge o
discurso de que é preciso “defender a sociedade”, constituindo uma guerra
sempre silenciosa, que não se dá apenas no sentido institucionalizado e oficial
entre nações ou no partidarismo burocratizado, mas, principalmente,“na luta
cotidiana e mesquinha por justificar, legitimar e legalizar formas de controle
social que privilegiem determinados grupos em relação a outros”.26
Entre os “inimigos” internos surgidos desde então, estão os “desviantes”
sexuais, catalogados e descritos a partir do “pseudo-hermafrodita da ciência,
fruto da epistémê moderna e gerador de vários dos ‘desvios’ ou ‘identidades’
sexuais que vão se desenvolver no século XX, como travestis e transexuais”.27
Por meio da patologização, criou-se e ainda hoje se mantém a “normalidade”
na qual travestis e transexuais devem ser “integradas”. Para isso, diversas formas
de controle social vigiam e gerenciam corpos e sexualidades, “especialmente
através do conhecimento e reconhecimento de suas ‘parafilias’ e ‘transtornos’”.28
Durante o século XX, o desenvolvimento da ciência moderna tomava
como fundamental a questão das roupas para caracterizar as pessoas travestis.

25
LEITE JÚNIOR, J. Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias “travesti”
e “transexual” no discurso científico. São Paulo: Annablume, FAPESP, 2011. p. 217.
26
Idem.
27
Idem, p. 218.
28
Idem.

93
Com a “interiorização de onde se buscar a masculinidade ou a feminilidade,
a partir de então, a diferenciação passou a ser cada vez mais revelada pela
‘identidade’ de gênero”.29 O alinhamento às normas de gênero torna certos
corpos inteligíveis, possíveis, e tais normas não são facilmente questionadas.
Por outro lado, “o que é constante e cotidianamente questionado e cobrado
é a melhor ou pior adequação a estas normas, expressas através da performati-
vidade de gênero”.30 Nesse sentido, vale notar que diversas pesquisas indicam
que o processo transexualizador em vigor no Brasil,31 no qual pessoas travestis
e transexuais devem passar por terapia compulsória de ao menos dois anos
para ter acesso a tratamentos hormonais, à cirurgia de transgenitalização32 e
à retificação jurídica de documentos,33 condiciona a própria compreensão
dessas pessoas sobre si mesmas.34
Como são essas normas que ajudam a configurar o que entendemos por
“humano”, ainda segundo Jorge Leite Júnior, “quanto mais próxima está a
performatividade de uma pessoa do ideal de uma “verdadeira” feminilidade ou
masculinidade, mais esta pessoa será compreendida como humana”,35 sendo
que o grau de legitimidade de tal humanidade está intimamente associado à
não ambiguidade. Dessa forma, não é qualquer performatividade de gênero
que será legitimada. O que os discursos médicos e jurídicos esperam não são
“valores agressivos, extrovertidos e fortemente interpretados como ‘racionais’,

29
LEITE JÚNIOR, J. Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias “travesti”
e “transexual” no discurso científico. São Paulo: Annablume, FAPESP, 2011. p. 218.
30
Idem.
31
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 457, de 19 de agosto de 2008. Disponível em:
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/sas/2008/prt0457_19_08_2008.html. Acesso
em: 19 fev. 2018.
32
O que popularmente se conhece como “mudança de sexo” tem como nomenclatura
mais técnica “transgenitalização” ou “redesignação/readequação sexual”, que consiste
principalmente na neocovulcoplastia e neofaloplastia. Outras cirurgias retiram “caracteres
secundários”, como remoção de mamas e pomos-de-adão, e outras modificam os corpos
de outras formas. Todas são precedidas e na maioria das vezes acompanhadas e sucedidas
pelo processo de hormonização.Ver, por exemplo: GUIMARÃES JUNIOR, A. R.; BAR-
BOZA, H. H. G.; SCHRAMM, F. R. O protocolo clínico saúde integral para travestis vis
à vis o processo transexualizador no atendimento de necessidades e especificidades dessas
populações: reflexões à luz da bioética. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero
9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Florianópolis: Universidade Federal de
Santa Catarina, 2010. Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/9>. Acesso em:
20 nov. 2015.
33
FACHIN, L. E. O corpo do registro no registro do corpo: mudança de nome e sexo
sem cirurgia de redesignação. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 1, [s. n], p. 39-
65, set. 2014.
34
BORBA, R. (Des)aprendendo a ser: trajetórias de socialização e performances narrativas
no processo transexualizador. 2014. 205 f.Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Fa-
culdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
35
LEITE JÚNIOR, J. op. cit. p. 219.

94
mas sim ainda a dos valores maternais, polidamente contidos e sensíveis”36.
Ou seja, a feminilidade cobrada como legítima para travestis e transexuais é
calcada em estereótipos associados aos “padrões femininos burgueses desen-
volvidos no século XVIII e adaptados ao século XXI”.37
Contudo, a perspectiva de gênero de forma isolada não dá conta de pen-
sar as experiências da maior parte das travestis, que se tornam especialmente
vulneráveis ao sistema de justiça criminal devido à pouca escolaridade,38 à
baixa renda, ao exercício da prostituição,39 à constante e generalizada violên-
cia a que estão submetidas. Nesse sentido, o marco interseccional se mostra
fundamental para aprofundar as reflexões aqui iniciadas.
Para Carmen Hein de Campos, a palavra “mulher” não deve ser consi-
derada como tendo um sentido único, pois toda pessoa se constitui de muitas
características – uma teia de diferenças que compõe um “lugar” social.40 O
“lugar da mulher” – e também o dos homens, das travestis, de todas as pessoas
– não se constrói em um espaço alheio, antes ou fora da cultura, mas dentro
da existência social. Gênero, assim, se torna “uma forma de conceitualizar,
de entender, de explicar certos processos e não as mulheres”.41 Nossa pro-
posta, portanto, é partir dessa compreensão de gênero enquanto conjunto
de processos sociais para incorporar à criminologia feminista outros olhares
possíveis. Do estudo das mulheres para os estudos de gênero; da criminologia
sobre mulheres para uma criminologia sobre processos de engendramento42 do
discurso jurídico.

36
Ibid.
37
Ibid.
38
ANDRADE, L. N. Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa.
2012. 279 f.Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal
do Ceará, Fortaleza.
39
PELUCIO, L. Na noite nem todos os gatos são pardos: notas sobre a prostituição traves-
ti. Cadernos Pagu, Campinas, n. 25, p. 217-248, dez. 2005.
40
CAMPOS, C. H. Violência de gênero e o novo sujeito do feminismo criminológico. In:
Seminário Internacional Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades, Desloca-
mentos. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2010. p. 17.
41
LAURETIS,T. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, H. B. Tendências e impasses:
o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242. p. 215.
42
Aqui nos referimos a expressão de Carmem Hein de Campos, que “na falta de uma melhor
tradução para gendered, utilizo a expressão ‘engendrado’ para referir que são marcadas pelo
gênero, isto é, construídas a partir do gênero” – o que significa que “estabelecidos como
um conjunto de referências, os conceitos estruturam a percepção e a organização simbólica
de toda a vida social” e “na medida em que estas referências estabelecem distribuições de
poder o gênero torna-se envolvido na concepção e na construção do poder em si mesmo”.
Para maiores detalhes, conferir CAMPOS, Carmen Hein de.“Razão e sensibilidade: teoria
feminista do direito e Lei Maria da Penha”. In: ______. (Org.). Lei Maria da Penha
comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2011, p. 1-12. p. 3.

95
As disputas políticas entre as correntes feministas, os movimentos
sociais e o Direito, tornam imprescindível analisar as articulações entre
diferentes marcadores sociais da diferença e o poder punitivo. Não basta
isolarmos um conjunto de processos (“questões de gênero e sexualidade”
ou “violência contra mulheres, pessoas trans e travestis”) de todo o con-
texto social. É preciso compreendê-lo em relação ao contexto econômico,
político-institucional, cultural.

4. Apontamentos quantitativos sobre travestis


e o sistema de justiça criminal paulista
Muito embora não seja possível, a partir da nossa pequena amostra,
construir uma base de dados generalizável sobre travestis no sistema de justiça
criminal paulista, nos pareceu importante sistematizar algumas informações
quantitativamente. Para tanto, de cada uma das 50 decisões extraímos as se-
guintes informações: tipo de ação/recurso; posição processual ocupada pela travesti;
tipo penal; resultado; tema transversal –reunidas em tabela apresentada em Anexo.
Os dados apresentados nesta seção servem como ponto de partida para nossas
teorizações e análises, e ajudarão especialmente na compreensão do corpo
empírico que constitui a pesquisa.
Dos cinquenta43 acórdãos analisados, nenhum trata a travesti no femi-
nino. Um deles reproduz as falas de uma das testemunhas no feminino, mas
ao longo do texto do próprio desembargador todos os pronomes que se
referem à travesti são masculinos. O discurso jurídico produz verdades sobre
os corpos e, para nossa análise, produz essa suposta coerência e normalidade
inevitáveis, tratando como homem quem obviamente não se identifica dessa
forma e nem é assim considerado por parte da sociedade.
As marcas no corpo, a corporificação deslocada das normas de sexo, gê-
nero e sexualidade são visíveis o suficiente para torná-las vítimas recorrentes
de agressões e assassinatos.44 No entanto, não parecem visíveis o suficiente
para que o Poder Judiciário reconheça a identidade de gênero reivindicada
e reinventada das travestis. Nas ocasiões em que o nome social era sabido,
foi representado como “vulgo” na frente do nome de registro e nunca
mais mencionado no documento escrito. Considerando que ao longo dos

43
Saliente-se que em alguns casos há mais de uma travesti envolvida. Na tabela ao final, estão
identificadas quais e o lugar ocupado por cada uma delas.
44
Importante destacar a ausência de estudos formalizados e financiados para que se dimensione,
ao menos parcialmente, essas violências. Nosso argumento se fundamenta em especial nestes
dois estudos: JESUS, J. G. Transfobia e crimes de ódio: assassinatos de pessoas transgênero
como genocídio. História Ágora, [s. l.], v. 16, n. 2, p. 101-123. 2013; e LOPES, F. H. Corpos
trans! Visibilidade das violências e das mortes. Revista Transversos. Rio de Janeiro, Vol.
05, nº. 05, pp. 08-22, Ano 02, dez. 2015.

96
acórdãos foi possível identificar flexões de gênero segundo a identificação
das partes,45 depreende-se que a recusa em tratar no feminino as travestis
é uma escolha deliberada. Um controle político sobre quem pode se dizer
mulher. A recusa em reconhecer a feminilidade das travestis, reatualizada
pelo judiciário, as coloca em um limbo de gênero, em um corpo estranho,
o fantasma do macho no corpo feminino, que causa uma série de ruídos no
campo jurídico, principalmente no processo de reconhecimento de sujeitos
e sujeitas de direitos.
A figura da travesti no processo aparece envolta em histórias de vio-
lência, nas quais figuram como acusadas em grande parte das narrativas, e
vítimas em poucas outras. Quase metade dos acórdãos – 24 deles – tratam de
conflitos em que as travestis são rés ou corrés. Em onze deles, identificamos
o lugar da travesti como “bode expiatório”: são trazidas nas narrativas sem
nem ao menos serem identificadas (discursiva ou juridicamente), servindo
apenas como terceira pessoa apontada como responsável pela conduta des-
crita no processo. Em oito dos casos, são vítimas de agressões. Em seis, elas
presenciaram os fatos tidos como criminosos, embora em apenas quatro
tenham prestado depoimento como testemunhas – nos outros dois, outras
testemunhas dizem que havia travestis no momento dos fatos, ainda que
não pudessem identificá-las.
Trinta e um dos casos que chegaram à segunda instância46 envolvem a
prostituição, direta ou indiretamente. Essa categoria só foi acionada nos casos
em que “trabalho sexual”,“programa”,“serviço sexual” ou “prostituição” apa-
reciam explicitamente nas narrativas. Em 23 dos acórdãos, o crime em questão
é patrimonial, sendo dois deles latrocínios e os outros 21 roubos e furtos de
pequenas quantidades e apenas três com lesões corporais como resultado. Em
dez decisões, o tema do tráfico e/ou uso de drogas ilícitas também é expli-
citado, direta ou indiretamente, sendo dois a respeito de receptações dolosas
de armas do circuito de distribuição de drogas e todos os outros o tipo penal
específico do tráfico. Em outros onze acórdãos, o crime debatido é o homicídio,
tanto na forma consumada quanto tentada, sendo que em apenas um deles a

45
Para se referir à figura processual abstrata do réu, por exemplo, desembargadores utilizaram
tratamento masculino, e para se referir à figura processual abstrata da vítima, utilizaram
tratamento feminino.
46
Segundo Thiago Coacci, “cada estado possui seu Tribunal, que é responsável pela adminis-
tração da justiça no estado, criação de novas comarcas, extinção de comarcas existentes e
etc., bem como por exercer a função de segunda instância (processar e julgar os recursos)
e em casos excepcionais de sua competência originária, exercer a função de primeira
instância”, COACCI, T. A pesquisa com acórdãos nas ciências sociais: algumas reflexões
metodológicas. Revista Mediações, Londrina, v. 18, n. 2, p. 86-109, dez. 2013. p. 97.
Para nossa coleta, como já dito, a busca foi circunscrita aos casos classificados no servidor
do Tribunal como criminais.

97
travesti é autora (contra outra travesti); 47 em um outro, é testemunha48 e, em
outro, são mencionadas duas espectadoras dos fatos, que não foram arroladas
como testemunhas nem interrogadas49 – totalizando, portanto, nove vítimas
da violência, em conflitos sangrentos e bastante violentos, como dezenas de
facadas, espancamentos coletivos e repetidos disparos de arma de fogo.50
Dos 23 acórdãos, em que travestis são autoras (rés), dezenove culminaram
em condenação, dentre as quais treze em regime inicial fechado; seis em regime
semiaberto,51 duas em regime aberto e quatro absolvições e substituição de
penas privativas de liberdade por penas restritivas de direito.
De todos os acórdãos nos quais travestis eram vítimas – todos eles
envolvendo homicídios consumados ou tentados –, seis resultaram em pro-
núncia ou condenação, dois tiveram extinta a punibilidade por prescrição e
em um houve absolvição – curiosamente, a tentativa de homicídio de uma
travesti contra outra. Em um deles,52 o relator qualifica o autor (réu) como
homofóbico e afirma que “por motivo torpe (homofobia), mediante recurso
que dificultou a defesa da vítima (‘inopinado golpe com cabo de enxada que
atingiu a cabeça da vítima por trás, sem que houvesse prévia razão ou anúncio’),
o acusado matou a vítima”, fundamentando toda sua decisão condenatória
nos relatos de testemunhas, que

47
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação n. 0000551-87.2001.8.26.0052, da 3ª Câmara
Criminal Extraordinária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 12
de setembro de 2013. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2017.
48
Id. Recurso em Sentido Estrito n. 0001576-91.2008.8.26.0052, da 8ª Câmara Criminal
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 27 de setembro de 2012.
Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2017.
49
Id. Recurso em Sentido Estrito n. 0001944-15.2009.8.26.0457, da 7ª Câmara Criminal do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 28 de abril de 2011. Disponível
em: <http://www.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2017.
50
Como se pode verificar na tabela em anexo, nos referimos aos acórdãos 0001944-
15.2009.8.26.0457; 0001758-43.2009.8.26.0052; 0000983-87.1993.8.26.0052; 0000324-
19.2009.8.26.0052; 0000071-55.2014.8.26.0052; 0000061-27.2006.8.26.0590; 0000038-
94.2014.8.26.0301; 0000019-09.2010.8.26.0114 e 0000551-87.2001.8.26.0052.
51
Como vem sendo discutido pela criminologia há algumas décadas, pouquíssimas comarcas
no Brasil possuem estabelecimentos para cumprimento de pena de prisão em regime semia-
berto. Normalmente, devido a essa ausência, e contra o disposto pelos princípios clássicos
do direito penal, as pessoas condenadas a este regime prisional acabam no fechado. Não
foi possível identificar se é este o caso nos acórdãos da nossa amostra.
52
SÃO PAULO.Tribunal de Justiça. Recurso em Sentido Estrito n. 0000038-94.2014.8.26.0301,
da 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 29 de
setembro de 2016. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2017.
Não é possível extrair dos acórdãos se a pessoa se identifica como travesti ou é assim classi-
ficada pelo sistema de justiça. No entanto, independente de como ela se apresente (“muito
feminina” ou “ambígua”, mulher ou “bicha”), a confusão entre identidade de gênero e
orientação sexual perpetrada pelo tribunal, consciente ou inconscientemente, reforça os
estereótipos e a desumanização a que nos referimos neste texto.

98
noticiaram que o acusado aborreceu-se com o fato de um travesti
(a vítima) ter agredido Rogério,53 seu conhecido, e que por isso
surpreendeu a vítima golpeando-a por trás com um cabo de ma-
chado na cabeça, o que lhe provocou a morte.54

Ao tratar a vítima no masculino, inclusive utilizando o nome de


registro, e afirmar que a motivação da agressão foi homofóbica, o desem-
bargador subsome, “confunde” orientação sexual e identidade de gênero,
como se “homem homossexual” e “travesti” representassem as mesmas
pessoas e os mesmos processos sociais. Essas distinções foram estabelecidas
pelos saberes e poderes médicos e jurídicos, mas são reivindicados pelas
próprias pessoas homossexuais, travestis e transexuais com o processo
histórico de formação de identidades políticas, ainda que alguns dos es-
tudos etnográficos apresentados ao longo deste trabalho indiquem que as
próprias pessoas ditas LGBT, em alguns contextos, aproximem ou igualem
essas nomeações.
Do nosso ponto de vista, fundado na análise crítica de discurso e
na criminologia crítica, é importante ressaltar que o reconhecimento de
vulnerabilidade presente nesse acórdão, a contextualização da conduta e
das partes envolvidas, que fazem com que o motivo do homicídio seja
qualificado como torpe, não aparece em outros julgamentos, em especial
quando travestis são posicionadas como autoras. Conforme trataremos
na próxima sessão, a representação da autoria travesti constrói-se a des-
peito de sua vulnerabilidade social, sendo caracterizadas como perigosas
e violentas a priori.
Segundo Márcio Zamboni, em etnografia em uma prisão masculina
de São Paulo,

a ambivalência da pista como um cenário onde podem ser praticados


tanto a prostituição quanto o crime permite a elas elaborarem de
diferentes formas a trajetória que as levou “da pista para a cadeia”.
Samanta tem a estratégia inversa. Se vendo como alguém do crime,
ela afirma que frequentava a pista apenas para roubar – que em
algumas ocasiões até se fazia passar por prostituta para roubar as
mariconas, mas que seu negócio era mesmo o crime. Em ambos os
casos, concepções de gênero e sexualidade são mobilizados como
importantes elementos na constituição das narrativas: “apesar de
homossexual meu negócio é roubar, não me prostituir” ou “eu
sou homossexual, portanto apesar de eventualmente roubar meu

53
Ainda que os acórdãos sejam documentos públicos, e neles constem nomes de registro,
optamos por utilizar ao longo do trabalho pseudônimos.
54
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. op. cit,. p. 4 e 8.

99
negócio é a prostituição”. A associação entre crime e masculinida-
de, prostituição e feminilidade está implícita em ambos os casos.55

A ambivalência da pista, entre o crime e a prostituição, narrada por


Zamboni, aparece como chave interessante para pensar que são esses os lugares
associados à travesti na nossa amostra do sistema de justiça paulista.
Este breve panorama nos parece indicar um emaranhado de relações
de poder e exploração produzido na pista56, na noite, no trabalho sexual, na
exposição a diversas formas de violência, na construção de uma identidade
marginal cuja marginalidade é replicada pelas instituições, pelos discursos de
poder e, finalmente, naturalizadas e introjetadas por grande parte das pró-
prias travestis. Esses múltiplos processos de conformação e assujeitamento,
que transformam travestis em pessoas abjetas, de um ponto de vista queer, ou
“improdutivas”,57 de um ponto de vista marxista, devem ser pensados em
relação ao funcionamento do sistema de justiça criminal.

5. “Pessoa afeita ao crime”: apontamentos


qualitativos sobre travestis e o
discurso judicial do TJSP
As narrativas dos acórdãos criminais percorrem uma teia de relações
perpassada pela prostituição, a violência, pelo envolvimento com drogas e

55
ZAMBONI, M. O barraco das bichas na cadeia dos coisas: notas etnográficas sobre a diversidade
sexual e de gênero no sistema penitenciário. In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA
DO MERCOSUL, n. 11. 2015, Montevideo. p. 10.
56
Não queremos dizer, com isso, que toda forma de trabalho sexual seja violenta. Existem
diferentes maneiras de se organizar a prostituição, desde “casas” comandadas por homens,
mulheres ou travestis, que podem explorar economicamente suas trabalhadoras ou não, até
a pista, denominação de algumas regiões do país para o exercício da prostituição na rua.
Cada região e cada tipo de trabalho tem particularidades, mas todos lidam com disputas
entre cafetões e cafetinas, trabalhadoras e o poder policial – que pode ser violento ou não,
corrupto ou não. Especificamente em relação às travestis, questões geográficas e geracionais
são fundamentais para se compreender a prostituição e suas consequências na vulnerabilidade
em relação ao sistema de justiça criminal.Ver, por exemplo, NASCIMENTO, S. Corpo-afeto,
corpo-violência: experiências na prostituição de estrada na Paraíba. Revista Ártemis, [s. l.],
v. 18, n. 1, pp. 69-86, jul.-dez. 2014 e SANDER,V.; OLIVEIRA, L. H. “Tias” e “novinhas”:
envelhecimento e relações intergeracionais nas experiências de travestis trabalhadoras sexuais
em Belo Horizonte. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 69-81, jul.-dez. 2016.
57
ENGELS, F. Origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo:
Global, 1985. p. 6. Não pretendemos com o uso deste termo pressupor que o marxismo
como um todo analisa o trabalho sexual – muitas vezes violento e mal remunerado, ou
puramente sem remuneração – como improdutivo. Nos alinhamos ao pensamento materialista
que considera não haver um “fora” do processo de produção e circulação, bem como ao
pensamento pós-estruturalista que considera não haver um “fora” da cultura. Nos referimos,
portanto, a um deslocamento para as margens, e não para fora, do sistema produtivo.

100
a precariedade de moradia. Mas mais do que a experiência dessas travestis,
a análise do discurso judicial criminal permite desvendar as decisões polí-
ticas de proteger, reconhecer e de criminalizar determinadas subjetividades.
Permite compreender a construção narrativa que juízes e desembargadores
fazem delas, os juízos de valor reatualizados, desvelando, dessa forma, os
mecanismos de seletividade permeados por processos profundos de reviti-
mização e criminalização.
Da análise dos discursos dos acórdãos, depreendemos uma série de falas
nas quais o Tribunal de Justiça de São Paulo constrói a travestilidade como
sinônimo de prostituição, violência e crime. E é essa mesma representação das
travestis como desajustadas e perigosas, (re)produzida pelo sistema de justiça,
que fundamentará seu ajuste ao papel de acusada, criminosa, desajustada. O
sistema de justiça criminal concretiza as expectativas sociais e ele mesmo
as produz, em um processo que se mantém por meio da vulnerabilização e
criminalização de grupos específicos – no que se denominou chamar em
criminologia “profecias que se autocumprem”, self-fulfilling prophecy.
O criminólogo argentino Gabriel Anítua narra a contribuição para a
abordagem microssociológica do inglês Dennis Chapman, que relaciona as duas
categorias em debate (bode expiatório e profecia que se autocumpre) na sua análise:

constatava que o que determina que uma pessoa seja condenada ou


não é a sua condição de classe subalterna, que dessa forma preenche
e reproduz o estereótipo. Este indivíduo pertencente às camadas
mais baixas servira em sua estereotipação – na qual também inter-
vêm a publicidade jornalística e a ficção – para reafirmar à maioria
definir-se como ‘não delinquente’ [sic], sendo, portanto, um ‘bode
expiatório’ da sociedade. Chapman chegava a essas conclusões
ao analisar o funcionamento concreto das relações entre vítimas,
funcionários e suspeitos, nas quais percebia a imunidade de certos
indivíduos em posições vantajosas e a vulnerabilidade de quem pre-
enche o estereótipo que, assim, é uma profecia que se autocumpre.58

A reflexão acima ajuda-nos a pensar o funcionamento do sistema de


justiça criminal, no tocante à produção de subjetividade no discurso jurídico;
na medida em que as categorias bode expiatório e profecia que se autocumpre estão
em relação o tempo todo, já que o bode expiatório, de desviante, marginal, cri-
minal é o destino do corpo travesti, profetizado e reafirmado na cena jurídica.
No acórdão 0000383-52.2007.8.26.0286, a defesa do réu por tráfico de
drogas foi indicar uma travesti como a “verdadeira responsável” pelo crime.

58
ANITUA, G. I. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan,
Instituto Carioca de Criminologia, 2008. p. 584.

101
Os debates no acórdão, entretanto, indicam que a investigação foi deslocada
para a questão genérica se travestis vendiam drogas em determinada locali-
dade. Como contraponto à tese defensiva, de que a droga encontrada pela
polícia no chão próximo ao réu era de propriedade desconhecida, uma das
testemunhas afirmou que “o réu é usuário de drogas e que já foi internado
várias vezes. Nunca ouviu comentários de que seja traficante. Não sabe dizer
se travestis vendem drogas no local da prisão. Sabe que o traficante do local
dos fatos foi morto”.59
Esse caso desvela a operação de captura da subjetividade individual
daquela pessoa, em um processo de categorização de um grupo desviante e
todos os estereótipos associados a ele. Aponta como a lente de representações
discursivas se articula com a análise da conduta individual e a construção da
subjetividade. Aqui, fica evidente uma vinculação direta entre pessoas de certa
identidade e dessa identidade com o crime, pois a presença de travestis no
local dos fatos, por si só, poderia ter legitimado a tese defensiva, ainda que
nenhuma outra prova fosse apresentada. Não se discutem as condutas daquela
pessoa, que no caso é uma travesti, mas a própria travestilidade é mobilizada
pelo sistema de justiça como sinal de periculosidade. Mais do que possível
criminosa, a travesti é representada como provável criminosa.
No acórdão 0000374-82.2011.8.26.0114, a acusação busca deslegitimar
uma testemunha de defesa ao vinculá-la a um ambiente tido como imoral
– descrito ao longo do acórdão como um espaço de convivência e trabalho
sexual de travestis. O desembargador, ao construir sua argumentação, reproduz
informações surgidas ao longo da investigação que afirmam que o corréu,
cuja condenação a mais de 20 anos de prisão foi confirmada pelo Tribunal,

foi chamado pela vítima para realizar um “programa” no banheiro


do terminal do Mercado Municipal. Então, passados alguns minu-
tos, resolveu ir ao aludido local, ocasião em que presenciou uma
contenda entre Nivaldo e a vítima, que culminou com agressões
físicas de ambas as partes. Diante disto, tomou iniciativa tão somente
de apartá-los. No mais, afirmou que a vítima costumava frequentar
aquele local, antro de prostituição e de tráfico de drogas.60

O desembargador, ao mobilizar esse argumento levantado pelo corréu


para eximir-se de responsabilidade pelos fatos, parece buscar reafirmação da

59
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação n. 0000383-52.2007.8.26.0286, da 1ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 19 de junho de
2009. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2017.
60
SÃO PAULO.Tribunal de Justiça. Apelação n. 0000374-82.2011.8.26.0114, da 15ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 6 de fevereiro de
2014. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2017. p. 4.

102
periculosidade da travesti ré, já que não consta na decisão referência a exames
de corpo de delito para apurar se houve ato sexual ou qual narrativa as agressões
parecem confirmar. Do ponto de vista da narrativa jurídica, o peso da palavra
aparece intimamente relacionado com a credibilidade da personagem; nesse
caso, colocá-la à margem faz parte da operação de desacreditar sua fala. Na
dúvida entre duas versões possíveis, opta-se pela produção de provas da que
se considera mais provável – ou seja, não são diversas provas se contradizendo,
permitindo a quem julga produzir uma resposta jurídica próxima à “verdade”;
são estereótipos fundamentando uma investigação seletiva que culmina em
uma condenação que aparenta ser a única cabível.
A presunção de que o convívio com pessoas e espaços comumente em
conflito com a lei faz com que a travesti seja uma desviante concretiza, na
verdade, essa expectativa do desvio e insere as travestis capturadas nas malhas
de marginalização do sistema de justiça criminal.61 Também se destaca a esco-
lha por utilizar o termo antro no discurso judicial, para designar o ambiente
de comércio sexual e de drogas ilícitas, e por associação com a travesti. Na
definição do dicionário,62 antro é “1 Caverna, gruta natural, que serve de
abrigo para animais selvagens; 2 Habitação escura, miserável, insalubre; 3
Esconderijo de bandidos, viciados, malandros; 4 Lugar de diversão sórdido,
de baixa categoria, mal frequentado”.
Nesse sentido, a produção da imagem das travestis como abjetas, desvian-
tes das normas de gênero, morais e sociais, sustenta um processo de criminaliza-
ção em muitas dimensões. A mais direta delas é aquela que interpreta a própria
travestilidade como um perigo à ordem pública, associando-a diretamente
com a figura criminosa. No acórdão 0000345-80.2014.8.26.0355, legitima-
-se a abordagem policial – que culminou na prisão em flagrante por porte
ilegal de arma (forjado, segundo as rés) – por um suposto “comportamento
suspeito”. Sob o ponto de vista jurídico e discursivo, é preciso compreender o
que caracteriza um comportamento como suspeito, como uma possibilidade
iminente de perigo. É preciso investigar quais marcadores tornam alguém uma
probabilidade criminosa. No acórdão 0000663-30.2011.8.26.0400, a travesti
é descrita por um dos policiais que testemunha no caso como “conhecido

61
Destacamos, dentre a vasta produção criminológica, os efeitos psicológicos da prisonização
BRAGA, A. G. Preso pelo Estado, vigiado pelo crime: as leis do cárcere e a construção
da identidade na prisão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013; e os efeitos sociológicos da prisão,
como a difícil recolocação no mercado de trabalho e os gastos financeiros e emocionais das
famílias para manter e depois receber de volta pessoas em privação de liberdade GODOI,
R. Para uma reflexão sobre os efeitos sociais do encarceramento. Revista Brasileira de
Segurança Pública, São Paulo, v. [s. n.], p. 138-154, fev.-mar. 2011.
62
AULETE, Caldas. Novíssimo Aulete: dicionário contemporâneo da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Lexikon, 2011, p. 121.

103
pela prática de furtos e roubos”,63 muito embora não constem nos autos
qualquer comprovação de antecedentes criminais. No acórdão 0000589-
67.2015.8.26.0583, o desembargador afirma que a travesti ré – tratada por
ele como réu – tem “personalidade voltada para práticas criminosas”, muito
embora no parágrafo anterior tenha afirmado que “a comprovação de con-
denação transitada em julgado não consta nos autos”.64
Também faz parte do processo de vulnerabilização de travestis a presun-
ção de associação com a prostituição, o que reafirma a centralidade que nossas
normas culturais atribuem à prostituição na formação da identidade travesti.65
No acórdão 0000659-81.2009.8.26.0458, o desembargador dispende várias
páginas para discutir a necessidade de se afastar o garantismo66 e as críticas
teóricas da aplicação do Direito Penal, sob pena de incentivar a criminalidade
e a impunidade. No único parágrafo em que descreve a conduta e as partes,
define a ré como “travesti por ofício”67 – o que, ao longo do texto, se mostra
como a presunção de que travestis são prostitutas. É também a reafirmação
de que por trás daquela figura feminina, que “se veste de mulher” para se
prostituir, existe, “na verdade”, um homem.
O fato de que, conforme já dito, 90% delas de fato dependam do traba-
lho sexual, não significa que a prostituição seja constitutiva da travestilidade,
tampouco que essa atividade legitime aplicação diferenciada das leis penais.
Embora seja de se esperar que o sistema de justiça criminal faça essa vin-
culação, é importante que se teça uma crítica à essencialização categórica;
nesse sentido, a designação “travesti por ofício” é outra pérola desses discursos:
a expressão é uma síntese da associação simbiótica entre travesti e mercado
da prostituição presente na sociedade e nos discursos jurídicos.

63
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação n. 0000663-30.2011.8.26.0400, da 1ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 6 de outubro de
2014. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2017. Nas transcrições
diretas dos discursos jurídicos, mantemos o pronome (masculino, via de regra) utilizado
pelos desembargadores para referirem-se às travestis.
64
Id. Apelação n. 0000589-67.2015.8.26.0583, da 13ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 26 de janeiro de 2017. Disponível em: <http://
www.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2017.
65
O papel que a prostituição e os espaços geográficos em que ocorre têm na formação his-
tórica (coletiva e individual) da identidade travesti é mais profundamente explorado em
alguns dos trabalhos indicados em nossas referências.
66
Denomina-se “garantismo” uma vertente de pensamento jurídico-criminológico que pre-
tende conter possíveis violações a direitos individuais perpetradas pelo sistema de justiça,
especialmente o criminal.
67
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação n. 0000659-81.2009.8.26.0458, da 4ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 10 de maio de 2011.
Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2017.

104
No acórdão 0002310-14.2008.8.26.0320, em que as partes se desen-
tenderam e uma delas, num momento de raiva, rasgou a bolsa da outra,
foi constatado que “o réu e a vítima se conheciam, os dois eram ‘garotas
de programa’ – ele como travesti”.68 As aspas sobre a expressão “garotas de
programa” pode indicar, por um lado, que o desembargador não reconhece
a travesti como uma identidade feminina e, por outro, pode significar uma
desqualificação do trabalho sexual, principalmente porque a ocupação
profissional das partes não nos parece ter qualquer relevância para a tipi-
ficação da conduta analisada, já que o desfecho processual foi a absolvição
por atipicidade, por estar “ausente o dolo específico (vontade do agente
de subtrair e apoderar-se definitivamente de coisa alheia móvel)”.69 Na
maior parte dos outros casos de furto da nossa amostra, não há registro da
ocupação exercida pelas partes. De qualquer forma, a explicitação da iden-
tificação da travesti como homem (ainda que feminilizado), em contraste
com a mulher cisgênera,70 ela sim mulher e prostituta “de verdade”, parece
indicar ao mesmo tempo que a travesti é uma tentativa impossível de ser
mulher e que ela é, necessariamente, prostituta. O fantasma do macho e
a impossibilidade de ser uma mulher é recorrente nos discursos do TJSP.
No acórdão 0002311-62.2010.8.26.0050, a travesti é literalmente descrita
como um homem “vestido de mulher”.71
A expressão que nomeou essa sessão, como ilustra nossa hipótese de
trabalho, está no acórdão 0000178-96.2014.8.26.0635. Essa narrativa foi
fonte especialmente importante para as reflexões que desenvolvemos. Em
seu depoimento,

a vítima disse que foi abordada pelo réu, “que se vestia como um
travesti”, na via pública, oferecendo-lhe um programa sexual. Logo
depois, Erick passou a exigir dinheiro e agredi-lo, quebrando seus
óculos e subtraindo-lhe a quantia de dez reais. Ato contínuo, um
comparsa do acusado se aproximou e retirou a carteira de seu bol-
so. O recorrente o agredia com murros no rosto. Os agentes não
empreenderam fuga e permaneceram no local. Acionada a polícia,

68
SÃO PAULO.Tribunal de Justiça. Apelação n. 0002310-14.2008.8.26.0320, da 11ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 30 de novembro de
2011. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2017. p. 2.
69
Idem. p. 7.
70
“Cisgênero”, ou “cis”, se refere a pessoas que se identificam e são identificadas pelo sexo/
gênero que lhes foi atribuído ao nascer. Ou seja, é um conceito que as contrapõem a pessoas
“transgênero”, “transexuais” ou “trans”.
71
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação n. 0002311-62.2010.8.26.0050, da 2ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 6 de junho de 2011.
Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2017.

105
somente o apelante foi preso, pois o comparsa não foi encontrado.
Nada foi recuperado.72

O caso, interpretado juridicamente como um roubo qualificado pelo


concurso de agentes, resultou em condenação altíssima: sete anos, nove me-
ses e dez dias de reclusão, com regime inicial fechado – mesmo que os bens
supostamente roubados e a suposta comparsa não tenham sido encontrados.
A palavra da vítima foi tomada, nesse caso, como prova inconteste quando
somada aos depoimentos dos policiais militares que lavraram o boletim de
ocorrência, muito embora eles não tenham presenciado os fatos. Não aparece
no acórdão qualquer menção a exame de corpo de delito ou qualquer outra
prova das marcas de agressão contra a vítima. Além disso, a defesa alega que a
agressão decorreu de um desentendimento sobre programa sexual; contudo,
nenhum exame pericial foi requisitado para descobrir se, de fato, houve relação
sexual entre as partes. O acórdão é omisso em relação ao contato e contrato
sexual entre a travesti e a vítima.
Afirma o desembargador que,“entre as palavras do apelante, pessoa afeita
ao crime, e as das testemunhas e da vítima, fez bem a sentença em prestigiar as
destas últimas” e, por fim, que o regime inicial fechado “revela-se pertinente,
em face da gravidade do crime, que demonstra a periculosidade concreta do
agente”.73 Aqui, dois destaques: primeiro, a chave da periculosidade – juízo que
desde a reforma do Código Penal de 1984 ficou dogmaticamente restrito
aos inimputáveis – para pensar a responsabilidade travesti, reativando o “di-
reito penal do autor” e a criminalização de identidades. Depois, a dimensão
concreta do perigo está na existência do corpo travesti, independentemente
de sua responsabilidade ou da força do conjunto probatório. A decisão apaga
a disputa entre a palavra da suposta vítima e da suposta ré, a falta de provas e
o caráter político da decisão. Nesse caso, a prova de materialidade e autoria
não está no corpo de delito ou nos pertences supostamente roubados, mas
na presunção de que ser travesti é ser criminosa.
Desse acórdão, mobilizamos outro tema presente em diversos casos da
nossa amostra, aparecendo explicitamente nas narrativas de dez acórdãos:
o desentendimento durante pagamento de serviço sexual. Todos os casos
em que isso aconteceu transformaram-se em processos de furto, roubo
e/ou lesão corporal, nos quais a travesti foi lançada à posição de autora
dos crimes/ré no processo. Outra classificação jurídico-penal para esses

72
SÃO PAULO.Tribunal de Justiça. Apelação n. 0000178-96.2014.8.26.0635, da 11ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, 17 de fevereiro de
2016. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br/>. Acesso em: 01 dez. 2017.
73
Idem.

106
mesmos fatos – caso fosse reconhecido o contrato sexual e a legitimida-
de jurídica e política das travestis enquanto sujeitas de direitos – seria a
aplicação do tipo:

Exercício arbitrário das próprias razões


Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão,
embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena - detenção,
de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente
à violência. Parágrafo único - Se não há emprego de violência,
somente se procede mediante queixa.74

Para que essa outra classificação fosse possível nos casos em questão,
seria necessário comprovar ao longo do processo que, de fato, houve uma
relação sexual, e que o trabalho sexual também constitui uma prestação
de serviço legítima, ainda que não regulada por leis ordinárias. O próprio
artigo 129 do CP, que trata da lesão corporal (um dos crimes imputados
às travestis nesses casos) prevê uma diminuição de pena juridicamente
cabível, desde que se considere o trabalho sexual legítimo. Diz o parágrafo
4° que “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante
valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em
seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um
sexto a um terço”.
A riqueza das decisões, expressões, associações para nosso campo de
análise está em compreendê-las como construção discursiva da persona-
gem travesti, situando-a em lugares físicos e simbólicos, posicionando-a
na relação jurídica e na qualificação dos fatos. Foi possível identificar nos
discursos do Tribunal de Justiça de São Paulo os mesmos processos de
criminalização observados por Bruno Carvalho no discurso midiático.
Para o autor, “as palavras inscrevem, e muitas vezes prescrevem aquilo que
parecem apenas descrever”.75 Nesse sentido, os discursos – especialmente os
jurídicos – são focos de articulação de poder, em movimentos contínuos
e difusos de negação e produção de verdades,76 travestindo a existência
de pessoas afeitas ao crime.

74
BRASIL. Código Penal. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em:
01 fev 2018.
75
CARVALHO, Bruno Robson de Barros. Tá pensando que travesti é bagunça?: re-
pertórios sobre travestilidade, em contextos de criminalidade, em jornais de Pernambuco.
2014. 126 f. Dissertação (mestrado em Psicologia). Universidade Federal de Pernambuco.
Recife, 2014. p. 64.
76
FOUCAULT, Michel. Historia da Sexualidade I: a vontade de saber. 13. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 1999.

107
6. Produção do corpo abjeto
A compreensão do sexo como construção cultural desloca a análise
da transformação de um dado natural em um social, para os processos que
instituem certos corpos como mulheres, outros como homens, tornando-os
abjetos quando não se encaixam nesse duplo (como, por exemplo, bichas,
sapatões, travestis, transexuais). Mais do que isso, direciona as análises para os
processos que atribuem – seletiva e desigualmente – humanidade a certos
corpos. Para Butler,

como se sabe, as tipologias são exatamente o modo pelo qual


a abjeção é conferida: considere-se o lugar da tipologia dentro
da patologização psiquiátrica. Entretanto, prevenindo qualquer
mal-entendido antecipado: o abjeto para mim não se restringe de
modo algum a sexo e heteronormatividade. Relaciona-se a todo
tipo de corpos cujas vidas não são consideradas ‘vidas’ e cuja ma-
terialidade é entendida como ‘não importante’. [...] Posso verificar
isso na imprensa alemã quando refugiados turcos são mortos ou
mutilados. [...] Assim, recebemos uma produção diferenciada, ou
uma materialização diferenciada, do humano. E também recebemos,
acho eu, uma produção do abjeto.77

O processo produtivo descrito por Butler, lido à luz do nosso campo


de pesquisa, nos permite pensar engendramento – neologismo proposto por
Carmen Hein Campos para a expressão gendered, a qual ela define como
marcas, referências e conceitos que estruturam a percepção e a organização
simbólica de toda a vida social a partir do gênero 78 –, a partir da operação
discursiva que produz essas referências, sentido este a que a própria expressão
engendrar,79 em português, nos remete, fazendo a tradução nos parecer ainda
mais acertada.
As operações discursivas engendram as categorias sexuais “homem” e
“mulher”, por meio de uma teia complexa de relações sociais que condicionam
reprodução, sexualidade, identidade de gênero, feminilidades, masculinidades,
77
PRINS, BAUKJE; MEIJER, IRENE COSTERA. Como os corpos se tornam matéria:
entrevista com Judith Butler. Revista Estudos Feministas, Florianópolis,  v. 10, n. 1, p.
155-167,  jan  2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex-
t&pid=S0104-026X2002000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:  22  fev.  2018.  p.
162.
78
CAMPOS, Carmen Hein de.“Razão e sensibilidade: teoria feminista do direito e Lei Maria
da Penha”. In: ______. (Org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva
jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 1-12. p. 3.
79
1. Dar origem a; GERAR: engendrar um filho. 2. Criar, inventar: engendrar planos. AULETE,
Caldas. Novíssimo Aulete: dicionário contemporâneo da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Lexikon, 2011, p. 556.

108
práticas sexuais, modelos de relacionamento e família. Produz sobre esses
corpos significados e expectativas que, quando rompidos ou questionados,
colocam em xeque a humanidade que os habita, lançando-o às margens da
vida social. É um lugar às margens, mas integrante das relações de produção
e circulação – lugar no qual se explora o corpo e o trabalho (mal ou não
remunerado); onde o punitivismo busca alvos para o exercício seletivo de sua
ação; lugar no qual se bate, se prende e se mata gente sem o (re)conhecimento
do poder público.
Pensar os processos de engendramento nas disputas no campo jurídico é
uma tarefa complexa. Inúmeras linhas de força, internas e externas ao Direito,
disputam o saber-poder de definir a partir do gênero. Na luta por reconhecer
como sujeitas de direitos as subjetividades tidas como abjetas, consideramos
o debate acerca da constituição de identidades fundamental, mas, de certa
forma, limitado. Afinal, “o que é significado como identidade não o é num
ponto dado do tempo, depois do qual ela simplesmente existe como uma peça
inerte da linguagem criadora de entidades”.80 A possibilidade de resistência
e transformação está na instabilização da matriz cultural que, por sua vez, se
estabiliza em processos sociais e econômicos mais amplos. Para desestabilizá-la
é preciso que surjam cada vez mais deslocamentos entre corpo, identidade,
expressões e desejos. Falar em termos de uma matriz cultural não significa que
seja “meramente cultural”, necessariamente desvinculada de uma economia
política. Para Butler,

na medida em que os sexos naturalizados funcionam para assegurar


a díade heterossexual como a estrutura sagrada da sexualidade, eles
continuam a subscrever os direitos legais, econômicos e de paren-
tesco, bem como aquelas práticas que delimitam o que será uma
pessoa socialmente reconhecível. Insistir que as formas sociais da
sexualidade não apenas excedem, como ainda confundem os arranjos
heterossexuais de parentesco, bem como a reprodução, é também
argumentar que aquilo que pode ser qualificado como uma pessoa
e um sexo será radicalmente alterado – um argumento que não é
meramente cultural, mas que confirma o lugar da regulação sexual
como um modo de produzir o sujeito.81

Em outras palavras, a construção de categorias como “homem”, “mu-


lher”, “masculino”, “feminino”, em relação umas às outras, é precisamente

80
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008. p. 208.
81
Id. Meramente cultural. Revista Ideias, Campinas, v. 7, n. 2, p. 227-248, mar. 2017. Dispo-
nível em: <https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ideias/article/view/2708/2139>.
Acesso em: 12 nov. 2017. p. 246.

109
o que permite pensar que podem ser rearranjadas, reconstruídas de outras
formas. Nesse sentido, identidades nomeiam processos sociais complexos,
que permitem compreender certas experiências comuns a grandes grupos
de pessoas, muito embora essas semelhanças sejam atravessadas por inevitáveis
diferenças. O desafio para o Direito está em trabalhar com a instabilidade
e fluidez na organização das categorias sexo, gênero, orientação sexual, de
modo que o reconhecimento dos sujeitos e sujeitas de direito não seja feito
às custas do enquadramento ou alinhamento dessas pessoas às expectativas
jurídicas e sociais.
A representação de travestis pelos discursos do Tribunal de Justiça de
São Paulo é marcada por fantasmas que, sistematicamente invocados, mate-
rializam-se. A periculosidade, a afeição ao crime, o vínculo quase necessário
com a prostituição e o tráfico de drogas, a “mentira” do “homem” atrás ou
por dentro da travesti são estereótipos, construções sociais que ao surgirem
no discurso jurídico assombram ações policiais, lavraturas de boletins de
ocorrência, produção de provas, tipificação de condutas, fixação de penas e
regimes de cumprimento.
Para Butler, “discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se acomodam
em corpos; os corpos na verdade carregam discursos como parte de seu
próprio sangue”.82 Para nós, o funcionamento do Tribunal de Justiça parece
consolidar juridicamente expectativas sociais, criminalizando corpos travestis
por meio de fantasmas discursivos, relacionados à ambiguidade que habita o
corpo travesti, que desconcerta o binarismo social e os limites das categorias
jurídicas; muitas vezes, à custa de suas vidas e sangue.

7. Considerações finais
Do campo desta pesquisa e das reflexões por ele suscitadas podemos
afirmar que o sistema de justiça criminal produz nas suas práticas e discursos
a subjetividade travesti como criminosa, perigosa e prostituída. A aplicação da
lei penal é, desse ponto de vista, um processo produtivo de construção de
subjetividades desviantes, processo este que produz mais precariedade em
termos de acesso a direitos, especialmente no tocante ao reconhecimento da
travesti como sujeita de direitos.
O desvio se torna crime quando a instrução criminal é permeada de
inconsistências procedimentais e interpretativas que, em seu funcionamento

82
PRINS, BAUKJE; MEIJER, IRENE COSTERA. Como os corpos se tornam matéria:
entrevista com Judith Butler. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n.
1,  p. 155-167,  jan.  2002.   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?scrip-
t=sci_arttext&pid=S0104-026X2002000100009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 
22 fev. 2018. p. 163.

110
sistemático (agências formais e informais de controle – polícias, ministérios
públicos, juízes de primeira instância, para então chegar aos desembargadores),
criminalizam travestis, reforçando o lugar social abjeto delas e a seletividade
do sistema de justiça criminal.
A travesti tem sua palavra silenciada e ignorada em detrimento do peso
de testemunhos policiais e da palavra da vítima no processo de convencimento
do juízo. Não por acaso, o mesmo peso não é dado à palavra de mulheres
vítimas de violência sexual e de gênero.83 É a abjeção que faz com que tra-
vestis ocupem lugares precários no sistema produtivo – o trabalho sexual sem
regulamentação, permeado por violência e exploração – e, quando capturadas
pelo sistema de justiça criminal, sejam deslegitimadas e criminalizadas exata-
mente por ocuparem esses espaços.
Entre os índices assustadores de violência e os indícios sólidos de re-
produção de desigualdades no sistema de justiça criminal, a tutela penal para
travestis e outras dissidências de gênero parece cada vez mais uma ilusão.

O problema não é o travesti. A questão é quem os mata, espanca e


desdenha.Talvez possamos estabelecer uma linha de comunicação
entre o risinho no canto da boca do intelectual macho – ou do
gay respeitável – com a bala que fere o travesti. O risinho cria,
na verdade, a ambiência que naturaliza a decisão de apertar o
gatilho. [Sic]84

Os discursos jurídicos, carregados de representações desviantes e crimi-


nalizadoras da travesti, como o “risinho”, legitimam as violências – e consti-
tuem eles mesmos a própria violência. Ao controlar quem pode reivindicar a
identidade feminina e constituir a travesti como “pessoa afeita ao crime”, o
83
Diversas pesquisas da criminologia feminista apontam neste sentido.Verificar, por exemplo,
FIGUEIREDO, D. C.Vítimas e vilãs, “monstros” e “desesperados”. Como o discurso judi-
cial representa os participantes de um crime de estupro. Revista Linguagem em (Dis)
curso, Tubarão, v. 3, n. 1, p. 135-155, jul.-dez. 2002.;VIEIRA, S. G. Discursos judiciais
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prostituição e trabalho sexual escravo. São Paulo: NETPDH; Cultura Acadêmica, 2013.
(Tutela penal dos direitos humanos, 3). p. 217-230.
84
SILVA, H. R. S. Travestis: entre o espelho e a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. p. 205.
Aqui o autor utiliza pronome masculino, de acordo com o que a maioria das travestis de
seu campo etnográfico reivindicava em 1993. Muito embora, como já discutido, algumas
travestis ainda se identifiquem como “viados”,“bichas”,“mulheres” ou “travestis”, alternada
ou concomitantemente, grande parte dos movimentos organizados atualmente reivindicam
tratamento feminino. Por isso, mantivemos a citação no original, mas adotamos o tratamento
feminino em nosso texto.

111
discurso judicial (re)produz a marginalização e vitimização como constituintes
da experiência travesti hoje no Brasil. E, dentro de um projeto de construção
de uma sociedade justa, livre e igualitária, nos livrar de nossos fantasmas, nos
parece um passo importante.

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A N E XO 1

Lugar Tema
Tipo Resulta-
Acórdão Ação proces- trans-
penal do
sual versal
Roubo
0000017- Apela- Conde- Prosti-
Ré qualifica-
20.2014.8.26.0269 ção nação tuição
do
0000019- Homicí- Pronún- Prosti-
RESE Vítima
09.2010.8.26.0114 dio cia tuição
Roubo
0000030- Apela- Conde- Prosti-
Ré qualifica-
04.2011.8.26.0114 ção nação tuição
do
Homicí-
0000038- Pronún- Prosti-
RESE Vítima dio quali-
94.2014.8.26.0301 cia tuição
ficado
0000061- Apela- Homicí- Pronún- Prosti-
Vítima
27.2006.8.26.0590 ção dio cia tuição
Talvez
0000071- Apela- Tentativa
Vítima - prosti-
55.2014.8.26.0052 ção homicídio
tuição
Roubo
0000178- Apela- Conde- Prosti-
Ré qualifica-
96.2014.8.26.0635 ção nação tuição
do
Presen- Casa de Tráfi-
0000179- Apela- Absolvi-
ciaram prostitui- co de
32.2010.8.26.0438 ção ção
fatos ção drogas
Ré e Recep- Tráfico
0000231- Apela- Absolvi-
bode ex- tação uso de
82.2013.8.26.0483 ção ção
piatório dolosa drogas

116
0000270- Apela- Bode ex- Tráfico de
- -
83.2014.8.26.0050 ção piatório drogas
Homi-
0000324- Apela- Conde-
Vítima cídio -
19.2009.8.26.0052 ção nação
tentado
0000345- Apela- Tráfico de Conde- Prosti-

80.2014.8.26.0355 ção drogas nação tuição
0000365- Apela- Bode ex- Tráfico de Conde-
-
48.2010.8.26.0505 ção piatório drogas nação
0000374- Apela- Conde- Prosti-
Ré Latrocínio
82.2011.8.26.0114 ção nação tuição
0000383- Apela- Bode ex- Tráfico de Conde- Prosti-
52.2007.8.26.0286 ção piatório drogas nação tuição
Furto
0000439- Apela- Bode ex- Conde-
qualifica- -
86.2010.8.26.0575 ção piatório nação
do
Prosti-
Recep-
0000454- Apela- Testemu- Absolvi- tuição e
tação
60.2011.8.26.0271 ção nha ção uso de
dolosa
drogas
Presen- Roubo
0000493- Apela- Conde- Prosti-
ciou qualifica-
69.2012.8.26.0191 ção nação tuição
fatos do
Homi- Extinção
0000551- Apela- Ré e Prosti-
cídio punibili-
87.2001.8.26.0052 ção vítima tuição
tentado dade
0000553- Apela- Conde- Prosti-
Ré Latrocínio
45.2015.8.26.0544 ção nação tuição
0000584- Apela- Bode ex- Tráfico de
- -
35.2010.8.26.0449 ção piatório drogas
0000589- Apela- Conde- Prosti-
Rés Roubo
67.2015.8.26.0583 ção nação tuição
Favores
0000659- Apela- Tráfico de Conde- sexuais

81.2009.8.26.0458 ção drogas nação e uso de
drogas

117
Ré e
0000663- Apela- bode Conde-
Roubo -
30.2011.8.26.0400 ção expirató- nação
rio
0000666- Apela- Conde- Prosti-
Rés Roubo
41.2012.8.26.0564 ção nação tuição
Roubo
0000832- Apela- Conde- Prosti-
Rés qualifica-
90.2011.8.26.0602 ção nação tuição
do
0000872- Apela-
- - - -
61.2007.8.26.0457 ção
0000891- Apela- Bode ex-
Roubo - -
05.2010.8.26.0185 ção piatório
0000983- Homicí- Pronún-
RESE Vítima Cortiço
87.1993.8.26.0052 dio cia
Prosti-
Extinção
0001056- Apela- tuição e
Ré Furto punibili-
30.2006.8.26.0270 ção uso de
dade
drogas
0001088- Bode ex-
RESE Roubo - -
34.2010.8.26.0516 piatório
Prosti-
0001204- Apela- Conde- tuição e
Ré Roubo
06.2012.8.26.0246 ção nação uso de
drogas
0001212- Apela- Conde-
Ré Roubo -
11.2014.8.26.0408 ção nação
Extinção
0001214- Apela- Bode ex- Tráfico de
punibili- -
43.2009.8.26.0638 ção piatório drogas
dade
0001226- Apela- Absolvi-
Ré Roubo -
03.2008.8.26.0344 ção ção
0001342- Apela- Conde-
Ré Roubo -
54.2008.8.26.0038 ção nação
Homicí-
0001576- Testemu- Conde-
RESE dio quali- -
91.2008.8.26.0052 nha nação
ficado

118
Homi-
0001758- Conde-
RESE Vítima cídio -
43.2009.8.26.0052 nação
tentado
Ape-
0001873- lação Bode ex- Tráfico de
- -
54.2007.8.26.0369 com piatório drogas
revisão
Presen- Homi-
0001944-
RESE ciaram cídio - -
15.2009.8.26.0457
fatos tentado
Roubo e
0001963- Apela- Conde-
Ré falsa iden- -
25.2016.8.26.0635 ção nação
tidade
0002015- Apela- Conde-
Ré Roubo -
64.2015.8.26.0050 ção nação
0002016- Apela- Conde-
Ré Furto -
44.2009.8.26.0443 ção nação
0002164- Apela- Conde-
Ré Roubo -
04.2011.8.26.0114 ção nação
0002310- Apela- Absolvi-
Ré Roubo -
14.2008.8.26.0320 ção ção
0002311- Apela- Conde-
Ré Roubo -
62.2010.8.26.0050 ção nação

119
As visitantes de prisões e os
efeitos sociais do cárcere:
revisão bibliográfica e novos desafios
para a produção futura

Bruna Rachel de Paula Diniz1 5

1. Introdução
A presença de mulheres nas dinâmicas do Sistema de Justiça Criminal é
usualmente trazida com dois enfoques nos estudos criminológicos que se guiam
por uma perspectiva de gênero: no primeiro, trata-se da mulher infratora (e por
vezes encarcerada) e, no segundo, das vítimas de violência em razão do gênero.
Simultaneamente e de modo mais amplo, as análises sobre a prisão pro-
priamente têm como sujeito principal de observação o preso encerrado no
interior do dispositivo carcerário. Fato este que torna outros atores, como
agentes prisionais e visitantes, figuras assessórias na compreensão das dinâmicas
que permeiam o cárcere e a relação dele com o seu “exterior”.
Nessa perspectiva, as famílias de pessoas presas e as visitantes de esta-
belecimentos prisionais ficam muitas vezes ausentes da produção teórica
que relaciona a mulher ao sistema penal e são ainda sujeitos secundários nos
estudos sobre prisões.
Constatado esse panorama, algumas tarefas se apresentam como centrais
no atual estágio da literatura sobre famílias de presos. Em primeiro lugar,
faz-se necessário um mapeamento daquilo produzido sobre o tema até o
momento, para que se tenha dimensão do que já foi pesquisado e quais lacunas
potencialmente existem. Por sua vez, também é fundamental compreender
quais marcos teóricos norteiam as análises criminológicas sobre a situação de
visitantes de prisões e se eles trazem as contribuições da Teoria de Gênero.
Para tanto, a proposta deste trabalho norteia-se por estas tarefas descritas. Na
seção inicial, traz-se uma revisão bibliográfica sobre o tema, sendo apresentado

1
Mestranda em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia pela USP. Advogada.

121
um mapeamento das principais produções sobre familiares de presos em
língua inglesa e alemã; e, posteriormente, a literatura brasileira especializada
na questão. Na etapa seguinte, apresenta-se o conceito de estigma, recorrente
nas análises sobre visitantes de estabelecimentos prisionais e verifica-se sua
pertinência e atualidade a partir das contribuições que resgatam a importância
do gênero como marcador social da diferença na Criminologia.
Ao longo do texto, os termos famílias ou familiares de presos e visitantes
de estabelecimentos prisionais são empregados como sinônimos. Sabe-se que
não são todos os membros da família que podem visitar seus parentes presos,
porém há certa proximidade entre aqueles que podem figurar no rol de visitas
e o núcleo familiar mais estreito, composto normalmente pelos pais, cônjuge
ou companheira, filhos e irmãos. Por tal motivo, diversas das obras tratadas
nos pontos seguintes também empregam os termos como equivalentes, com-
partilhando da orientação aqui adotada.
Como último adendo a ser tratado nessa introdução, está o uso do
feminino universal para se referir às visitantes de presos ao longo do texto.
A escolha reflete não apenas a maioria numérica de mulheres dentre todos
aqueles que visitam seus familiares encarcerados, mas também a importância
de trazer visibilidade às mulheres na produção acadêmica, que por vezes pri-
ma pelo uso do universal masculino supostamente dotado de neutralidade.2

2. A produção teórica estrangeira


sobre familiares de presos
2.1. Bibliografia em língua inglesa
(EUA, Reino Unido e Canadá)
Apesar de reduzida quando comparada ao corpo de trabalhos sobre outros
sujeitos da dinâmica prisional, a produção teórica sobre famílias de presos não
permite um levantamento bibliográfico exaustivo contendo tudo que já foi
escrito. Assim sendo, traz-se como ponto de partida o mapeamento feito por
Megan Comfort dos principais trabalhos sobre a temática, que apresenta as
motivações e tendências agrupadoras das diferentes análises sobre visitantes
de prisões produzidos em países de língua inglesa3.

2
O uso do feminino universal para se referir a grupos majoritariamente formados por mu-
lheres tem sua importância traduzida por Marcia Moraes e Alexandra C. Tsallis: “Afirmar o
feminino na ciência é uma forma de convocar as marcas que fazem um olho ver o que vê,
um cientista dizer o que diz. É uma forma de afirmar que não há conhecimento sem marcas,
sem mediações.”. MORAES Marcia,TSALLIS Alexandra. Contar histórias, povoar o mundo:
a escrita acadêmica e o feminino na ciência. Rev. Polis e Psique, Porto Alegre, n. 6, 2016, p. 48.
3
COMFORT, Megan. Doing time together: love and family in the shadow of the prison.
Chicago: Chicago Press, 2008. p. 214-222.

122
O primeiro estudo de relevância publicado sobre familiares de presos
como sujeitos centrais da observação acadêmica foi o livro Prisoners and their
families, de autoria de Pauline Morris, em 1965.4 Na obra, a autora faz amplo
estudo empírico com 588 esposas de presos de diversas localidades da Ingla-
terra e do País de Gales, no qual investigou os problemas econômicos, sociais
e psicológicos das famílias e avaliou a rede de assistência social destinada a
lidar com a problemática da prisão para essas mulheres e seus filhos.
O rigor metodológico da pesquisa, que teve como central a preocupa-
ção em trazer uma amostra diversificada da realidade das famílias de pessoas
encarceradas em parte do Reino Unido, é elogiado pela sua amplitude, o que
é raro nas pesquisas sobre a temática, como será visto.5
A partir da ampla amostra coletada, Morris oferece um panorama sobre
as visitantes de prisões inglesas e do País de Gales e demonstra serem essas
mulheres jovens (mais de 50% das entrevistadas tinham menos de trinta
anos), mães (22% delas tinham dois filhos e 23% três filhos), residentes em
localidades próximas a grandes centros urbanos e dependentes de programas
governamentais de assistência social e ajuda financeira de organizações não
governamentais em razão de desemprego ou baixos salários recebidos (a maior
parte das visitantes tinha renda semanal de 7 a 10 libras).6
Como resultado da análise, definiu-se uma tipologia que traduzia, em
três categorias, os perfis e os problemas das famílias de pessoas presas. Na pri-
meira delas, incluíam-se as ditas “famílias com um problema”, para as quais
o encarceramento é a grande causa de sofrimento e dificuldades de ordem
social e financeira; na segunda, estavam as “famílias problemáticas”, que se
inserem num contexto de sistemática fragilidade social, com destaque para
a pobreza e o uso abusivo de drogas; e a última categoria era composta por
famílias em grau de instabilidade e desorganização tão intenso que a prisão da
figura central masculina era capaz de trazer alívio aos problemas domésticos
e à situação familiar.7
Apesar do refinamento metodológico, não se trata de trabalho restrito ao
meio acadêmico. Ao contrário, Morris demonstra claro interesse na aplicação
prática de suas constatações, tanto para fomentar alternativas para os proble-
mas vivenciados pelas visitantes,8 quanto para, principalmente, a reabilitação
e combate à reincidência dos presos.
A importância da família como instrumento da ressocialização do preso
foi objeto de estudos ainda mais antigos, como a Tese de Lloyd Ohlin, na

4
MORRIS, Pauline. Prisoners and their families. Londres: George Allen & Unwin, 1965.
5
COMFORT, op. cit., 214.
6
MORRIS, op. cit., p. 73-94.
7
Idem, ibidem, p. 24-25.
8
Idem, ibidem, p. 94-99.

123
qual relacionava-se o cumprimento satisfatório de livramento condicional (o
chamado Parole) e a existência de vínculos familiares ativos. Em seus resulta-
dos, o autor aponta que o apoio familiar se traduz em uma condicional sem
infrações em 75% dos casos analisados de presos do Estado de Illinois (EUA).9
Essa tendência de instrumentalização das famílias e do uso dos estudos
para subsidiar reformas no sistema prisional é condensada em relatório de
Kate Vercoe, intitulado Helping prisioners’ families, publicado em 1968 pela
National Association for the Care and Reabilitation of Offenders (NACRO), no
qual eram reunidas as conclusões prévias de Pauline Morris e criticados os
programas de assistência social destinados às famílias, porque se baseavam em
ajudas pontuais, financeiras ou psicológicas, e não resultavam nas mudanças
ditas necessárias para impedir a continuidade delitiva ou a vulnerabilidade
dos membros da família.10
Nas décadas de 1970 e 1980, ainda se perpetuam estudos que dão
continuidade a essa tendência de estudos com enfoque das famílias na resso-
cialização, a exemplo da ampla pesquisa de Norman Holt e Donald Miller
com 412 homens presos, que verificou a pertinência da família como técnica
correcional; e que criticava programas institucionais de prisões que impediam
visitas e o contato familiar continuado.11
Apesar dessa continuidade, os estudos empíricos de tais décadas tornam-se
mais reduzidos e passam a apresentar forte tendência descritiva das esposas e
companheiras de presos como “vítimas” de uma relação afetiva que as levou
à prisão. Stewart Gabel, ao analisar esse corpo de trabalhos, critica suas limi-
tações metodológicas em razão de grupos amostrais muito reduzidos, falta de
consideração das relações familiares anteriores à prisão e pouca diversidade
nos perfis de presos e familiares.12
Dentre esse conjunto de produções criticada está o artigo Hiden victims
of crime, que descreve os familiares de presos como um dos grupos sociais
mais negligenciados dos Estados Unidos e apresenta um estudo empírico

9
OHLIN, Lloyd. The stability and validity of parole experience tables. Tese (Doutorado em So-
ciologia) Universidade de Chicago, Chicago, 1954.
10
VERCOE, Kate. Helping prisoners’ families. Londres: NACRO, 1968.
11
Os autores ainda descrevem que as visitas não tinham qualquer impacto no comportamento
de seus pais/maridos no interior da prisão, mas representavam importante instrumento no
cumprimento de livramento condicional. HOLT, Norman; MILLER, David. Explorations
in inmate-familiy relationships. Sacramento: California Department of Corrections, 1972.
12
Nas palavras do Autor: “The literature reviewed above is heavily descriptive and anecdotal, with few
empirical studies and significant methodological limitations [...]The studies overall have not employed
standardized assessment techniques or instruments, and there is almost no mention in the literature of
the psychometric properties of the questionnaires employed.” GABEL, Stewart. Behavioral problems
in sons of incarcerated or otherwise absent fathers: The issues of separation. Family Process,
n. 3, p. 3, set. 1992.

124
realizado em duas unidades prisionais no estado da Califórnia (EUA). Nele,
são constatados os impactos nocivos da prisão na renda familiar, devido ao en-
carceramento da figura masculina, que usualmente recebia os maiores salários,
e a dificuldade em lidar com o estigma sofrido no contato com as diferentes
instâncias do sistema de justiça criminal e no cotidiano dos familiares.
Outra produção do período, Addressing the social needs of families of prisoners:
a tool for inmate rehabilitation, demonstra a preocupação de seus autores com o
incremento da população carcerária dos EUA e o consequente impacto dela
em um amplo conjunto de famílias. No artigo são trazidos apontamentos já
descritos nos trabalhos desde a década de 1960, referentes às consequências
econômicas e psicológicas para as famílias, em conjunto com pontos que
pouco tinham sido referidos previamente.
Ainda que algumas temáticas não sejam inéditas, há também novas
constatações, dentre as quais está a análise acerca das relações de poder dentro
da família após a prisão, que se alteram quando o responsável pelas decisões
domésticas deixa de ser o homem e passa ser a mulher, gerando, segundo
o autor, frustrações ao preso durante o cumprimento de pena e conflitos
com o retorno do preso a sua casa.13 Por sua vez, o texto também referencia
estudos empíricos realizados em prisões femininas, nas quais o impacto do
encarceramento de mães é bastante nocivo a seus filhos, que acabam por se-
rem cuidados por parentes distantes, dada a usual ausência da figura paterna,
ou por famílias adotivas.14
Esse último ponto, com enfoque nos filhos de pessoas presas, primordial-
mente crianças e adolescentes, torna-se crescente a partir da década de 1990.
Tais estudos permitiram certo deslocamento da visão da família como fator
de ressocialização e trouxeram atenção aos filhos como sujeitos autônomos
de análise15. Megan Comfort, ao discorrer sobre essa produção, descreve seu

13
No original, em inglês: “One subtle change that necessarily occurs during imprisonment is the
replacement of the former head of household by the remaining parent.This creates an issue when the
inmate insists on being involved in day-to-day decisions through correspondence or visits, only to be
frustrated when he is unable to do so. It is further complicated when the inmate returns home to face
strain and conflict as the decision-making role that goes with being head of household is either reoc-
cupied or abandoned.” JORGENSEN, James; HERNANDEZ, Santos; WARREN, Robert.
Addressing the social needs of families of prisoners: a tool for inmate rehabilitation. Federal
Probation, n. 50, p. 49., abr. 1986.
14
No texto consultado: “Zalba’s study of female inmates in the California penal system revealed
that 520 incarcerated mothers had a total of 1,200 minor children. In a society where the primary
caregiver is the mother, her absence is a severe blow to children, often relegating them to the care of
relatives or foster parents.” Idem.
15
Sobre os estudos dos impactos do encarceramento em filhos de presos produzidos na década
de 90 ver: HAIRSTON, Finney. Family Ties during Imprisonment: Important to Whom
and for What. Journal of Sociology and Social Welfare, n. 8, 1991, p. 85-104; HAIRSTON,
Finney. Fathers in Prison in GABEL, K; D, Johson. Children of Incarcerated Parents. New York:

125
forte intuito político, subsidiado pelas práticas de organizações não gover-
namentais atuantes na promoção de direitos de crianças e adolescentes e de
direitos humanos na prisão. Por tal motivo, os estudos eram desenvolvidos
por advogados, psicólogos e assistentes sociais, sendo ínfima a elaboração de
cunho sociológico.16
Além dos trabalhos com enfoque na infância de filhos de presos, sur-
gem também, ao longo da década de 1990, produções voltadas à etnografia
e observação participante de mulheres que acompanham o cumprimento de
penas privativas de liberdade com novos referenciais teóricos, nos quais se
destaca a atenção aos estudos sobre gênero e raça.
Dentre os livros do período mais referenciados nas obras posteriores está
Soledad women: wives of prisioners speak out. Nele, é explícita a contribuição da
epistemologia feminista na elaboração e condução das entrevistas em profun-
didade realizadas com 25 esposas de presos em estabelecimento prisional da
cidade de Soledad, localizada no Estado da Califórnia (EUA).17
Para além das análises que discutem a influência das desigualdades de
gênero, classe e raça nas relações das mulheres entre si, com seus maridos e
com as instituições envolvidas no cumprimento da pena, a obra pode tam-
bém ser entendida como um dos primeiros exemplos de Convict Criminology
(Criminologia dos Condenados)18 nos estudos sobre visitantes de prisões. Isso
porque a autora, Lori Girshick, desenvolveu a pesquisa durante o cumpri-
mento de pena de seu marido; e traz ao longo do texto análises que foram
possíveis pela sua vivência entre a academia e a prisão. Em suas considerações
sobre seu trânsito entre as duas realidades, há a seguinte passagem elucidativa:

Several years ago I invited a deputy district attorney (DA) to speak to a


Law and Society Class I taught at a local community college. As we talked
before class, I mentioned that I was conducting research on wives of priso-
ners. He shook his head and said “Oh that must be interesting. It’s hard
to understand how they go through all that (…) I mean are these women
pathological?”. […] What this DA did not realize was that at the time
I was married to a prisoner whom I had met on the inside. […] I was a
professional, attractive woman, and did not fit the image of prisoner’s wife.

Lexington Books, 1998 e HORNICK, Leslie. Volunteer Program Helps Make Inmates’
Families feel welcome. Corrections Today, n. 5, 1991, p. 184-186.
16
COMFORT, op. cit., p. 217.
17
GIRSHICK, Lori. Soledad women: wives of prisioners speak out. Santa Barbara: Pra-
eger, 1996.
18
Convict Criminology (Criminologia dos Condenados) é o estudo do crime e da punição
realizado por pesquisadores que são presos ou ex-condenados associados à tradição da
criminologia crítica. Sobre suas bases epistemológicas e razões de existência ver: ROSS,
Jeffrey; STEPHEN, Richards. Convict criminology. Belmont: Wadsworth, 2003.

126
This DA displayed the widespread public perception of wives of prisoners:
they are seen as guilty by association, and they are seen as losers. This
perception affects policy decisions, on the one hand, and how the women
view themselves, on the other.19

A contribuição de Lori Girshick foi central para alterar a visão antes


recorrente das visitantes como vítimas de suas relações afetivas; e permitiu
novas abordagens teóricas sobre os conceitos de estigma e da prisionização,
que serão discutidos na segunda parte deste trabalho. De maneira próxima,
Laura Fishman também afirma a importância de sua condição de visitante em
sua investigação; e mostra a experiência de uma unidade prisional localizada
em área rural e predominantemente branca dos Estados Unidos (Estado de
Vermont), que apresenta dados distintos das pesquisas feitas em prisões com
a composição étnica usual da população prisional norte-americana.20
Nos anos 2000, há um incremento da produção, que se expande não
somente em número, mas também tem seu escopo ampliado e passa a tratar
também da forma como o encarceramento afeta os locais de origem e residên-
cias das pessoas presas e de suas famílias. Tal análise congrega os impactos do
processo de encarceramento em massa e os fatores raciais nele determinantes.
Assim, a temática das famílias de presos passa a ser tratada em obras
mais amplas sobre as novas formas que o sistema de justiça criminal toma
a partir da falência do Estado de Bem-Estar Social nos Estados Unidos e
Reino Unido, como em Invisible punishment: the collateral consequences of mass
imprisonment21 e Imprisoning America: the social effects of mass incarceration22. Por
sua vez, a questão racial é encontrada em pesquisas que congregaram dados
empíricos de mulheres negras visitantes de prisões; e demonstraram como
a questão racial é um fator que altera a vivência de tais sujeitos e afeta a sua
percepção e garantia de direitos23.
Apesar do crescente refinamento e variedade das pesquisas na temáti-
ca até a atualidade, ainda é difícil a obtenção de dados quantitativos sobre
visitantes. Os pesquisadores que apresentam dados sobre número de visitas,

19
GIRSHICK, op. cit., p. 9.
20
FISHMANN, Laura. Women at the wall: a study of prisoners’ wives doing time on the
outside. Albany: State University of New York Press, 1990.
21
MAUER, Marc; CHESNEY-LIND, Meda. Invisible punishment: the collateral consequences
of mass imprisonment. New York: The New Press, 2002.
22
PATTILLO-MCCOY, Mary. Imprisoning America: the social effects of mass incarceration.
New York: Russell Sage Foundation, 2004.
23
A forma como a prisão afeta de maneira mais nociva famílias de presos negros americanos
é tratada em uma série de artigos copilados no trabalho: HARRIS, Othelo; MILLER,
Robin (org). Impacts of Incarceration in the African-American Family. New Brunswick:
Transaction, 2003.

127
composição racial, idade e condição econômica das visitantes são limitados
a uma ou poucas prisões e ainda assim enfrentam diversos entraves na coleta
de informações, pois as instituições penais muitas vezes não as têm ou não
as fornecem24.
Hedwig Lee, Lauren Porter e Megan Comfort descrevem outros fatores
que dificultam a coleta de dados quantitativos claros sobre visitantes, como
uniões afetivas não oficiais e filhos que advêm de outros relacionamentos,
fatores que ficam ausentes das poucas estatísticas oficiais. Os dados mais ro-
bustos dos Estados versam sobre crianças e adolescentes e indicam que há 1,7
milhões de crianças com pais presos; sendo que uma criança negra está seis
vezes mais propícia a ter seu pai preso do que uma criança branca.25
Em relação à produção recente, apresentam também relevância as obras
com orientação criminológica que rediscutem as categorias de estigma e
prisionização já mencionadas ao longo deste ponto, refletindo sobre a sua
atualidade, pertinência e novas perspectivas de aplicação a partir da contri-
buição das relações de poder oriundas do gênero nas análises.
Tais propostas figuram tanto em Doing time together, de Megan Comfort,
em que é central a noção de estigma de cortesia e prisionização secundária na
compreensão das trajetórias de mulheres envolvidas amorosamente com presos,
quanto em Marked by association: stigma, marginalization, gender and the families of
male prisioners in Canada, de Stacey Hannen, a qual, ao buscar um referencial
teórico para sua pesquisa empírica com familiares de presos em penitenciária
no Canadá, desenvolveu os conceitos de estigma estrutural e de “sticky stigma”.

2.2. Bibliografia em alemão


Os trabalhos sobre familiares e visitantes de presos produzidos em língua
alemã trazem como referência parte considerável da bibliografia apresentada
no tópico anterior. Tanto é que Prisoners and their families, de Pauline Morris,
é citado como o trabalho que inaugura a temática também nas produções
em alemão26.

24
LEE, Hedwig; PORTER Lauren; MEGAN, Comfort. Consequences of family member
incarceration: impacts on civic participation and perceptions of the legitimacy and fairness
of government. The Annals of the American Academy of Political and Social Science. n. 651, p.
44-73, jan. 2014.
25
No excerto referido original:“Correctional institutions often do not collect information on inmates’
familial or social relationships. Also, non–marital partnerships and the parenting of children from a
partner’s previous relationships typically are not recorded. In addition, few nationally representative
surveys ask respondents about the imprisonment experiences of family members.This makes it difficult
to provide statistics on the exact number of inmates with family members affected by their incarceration,
or demographics of people who experience a loved one’s incarceration.” Idem.
26
Dentre as obras em alemão consultadas, a menção expressa ao livro de Morris está em:
KERN, Julia. Frauen und Partnerinnen von Inhaftierten: Theorie und Praxis. Saarbrücken:

128
Nota-se que o corpo de publicações se torna verificável a partir do final
da década de 1990 e congrega alguns poucos trabalhos nos quais há dados
empíricos sobre a situação dos familiares na Alemanha27. De modo geral, as
análises circundam temáticas já bastante trabalhadas na literatura em inglês,
como os impactos econômicos e psicológicos sofridos após o encarceramento
das figuras paterna ou materna, as consequências para as crianças e o estigma
enfrentado nas relações cotidianas dos familiares.
Em alguns textos há reflexões que trazem o gênero como elemento
importante para a análise e descrevem como a prisão do “chefe de família”
transfere tarefas socialmente consideradas “masculinas” para as mães e esposas,
o que promove certa equalização das relações de poder no interior da família
e possíveis conflitos após a soltura do parente preso.28
Apesar de a produção ser recente e não se debruçar intensamente sobre
as elaborações teóricas feitas previamente, há dois pontos que merecem des-
taque por trazerem questões não tão presentes nos textos em inglês pesqui-
sados. O primeiro deles é a relação entre as violações de direitos vivenciadas
pelas visitantes durante a visita aos estabelecimentos prisionais e em outras
oportunidades em que tomam contato com instituições do sistema de justiça
criminal e o Princípio da Pessoalidade da Pena, também conhecido como
Princípio da Intranscendência da Pena ou Personalidade da Pena.
Na maioria das obras referenciadas na seção anterior, são descritas
tais formas de penalização das famílias, que acabam por ser sancionadas em
conjunto com os presos que são seus parentes. Entretanto, em Gefängnis und
Familie, Helmut Ortner e Reinhard Wetter explicitam a violação ao princí-
pio penal referido e demonstram como a forma de tratamento destinada às
visitantes contraria previsão constitucional expressa de que a pena não pode
ultrapassar a pessoa do condenado.29 De forma semelhante, Julia Kern aponta

VDM Verlag Dr. Müller, 2004.


27
O corpo de trabalhos consultado para elaboração desta revisão bibliográfica foi formado
por obras encontradas a partir das ferramentas de busca do Instituto Max Planck (Max-
-Planck-Institut für ausländisches und internationales Strafrecht) e da Universidade de Freiburg
(Alemanha) e do posterior acesso às obras físicas em suas respectivas bibliotecas.
28
No original em alemão: “Die Frauen haben in der „Knastzeit“ gekernt alleine zu entschieden,
zu managen, für sich und die Kindern zu sorgen. [...] Unrealistisch sind machmal auch die Wünsch
und Vorstellungen in Bezug auf die Partnerschaft. [...] Manche Paare vergessen, dass sie noch nie
Alltag miteinander hatten und träumen von einem gemeisamen Leben, das bislang sehr wenig erprobe
ist.” FRANK, Ingrid. Mitgefangen: Hilfe für Angehörige von Inhaftierten. Berlin: Ch.Links,
2004. p. 128.
29
No trabalho consultado: „In den Aussagen der Familienangehorigen wird immer wider Vorwurf der
„Sippenhaft“ gemacht, dass dis Familie unschuldig mitbestraft wird. [...] Will man sich den offen-
sichtichen Widersinn erklären, daß die Strafjustiz mit der Inhaftierung con Familien mitgliedern die
von ihr verteidigte gesellschaftliche Ordnung z.T. selbst zerstört und gefähdet, muß man u.E., zwei
Charakteristika des Strafrechts bzw. der Strafmaßnahmen heranziehen: die Freiheitsstrafe ist eine

129
que o encarceramento leva a dificuldades financeiras na família, cujo impacto
negativo pode ser compreendido como a extensão da sanção criminal aos
parentes, demonstrando ser irreal o Princípio da Pessoalidade da Pena30.
Outro ponto que se destaca em alguns livros sobre a questão é o forte
intuito pragmático dos trabalhos, que são pensados com rigor acadêmico
e, ao mesmo tempo, são dirigidos a pessoas que têm seus parentes presos e
necessitam de orientações para lidar com os aspectos burocráticos e pessoais
de sua situação.
Nessa linha estão Mein Mann ist im Knast...Was nun?: Ratgeber für Angehöri-
ge von Inhaftierten und Haftenlassenen31 e Inhaftierung betrifft alle in der Familie:
ein Ratgeber für Angehörige von Inhafiterten in Bayern.32 Em ambos os trabalhos,
o primeiro voltado a toda a Alemanha e o segundo concentrado na região da
Baviera, faz-se presente a intenção de congregar a produção acadêmica que
identifica os problemas vivenciados pelas famílias com informações práticas
sobre programas de assistência e seguridade social a elas destinados, além de
exposição sobre direitos garantidos aos presos e visitantes.
De maneira próxima, há ainda alguns trabalhos que analisam o sucesso de
iniciativas voltadas à educação em direitos de famílias de presos e seus filhos. No
artigo Ich besuche dich im Gefängnis: eine Website (nicht nur) für Kinder von Gefange-
nen é investigada a criação e recepção pelo público de um website criado para
filhos de presos alemães33 e em Mitgefangen: Hilfe für Angehörige von Inhaftierten
é feito o mesmo em relação a grupos de apoio de familiares que discutem suas
dificuldades durante o cumprimento da pena de seus filhos e maridos.34
Por fim, como panorama geral tem-se, como na bibliografia em inglês,
dados quantitativos insuficientes acerca das famílias e das visitantes em escala

totale staatliche Reaktion auf eine patielle „Abweichung“, und das Strafrecht kennt keine gesellschaftlich
organisierten Subjekte, sondern nur den „Einzeltäte“.“ ORTNER, Helmut; WETTER, Rei-
nhard. Gefängnis und Familie: Protokolle,Texte, Materialien. Berlin: Krammer, 1978. p. 15-18.
30
„Diese finanzielle Armut der Familie con Inhaftierten ist letzlich als okonomische Mitbestrafung
nicht verurteilter Menschen zu interpretieren. Die Theorie von individualstrafe zeigt hier als nicht
real. Man sanktioniert nicht einzelne Individuen, sondern ggfs., auch Personen in einem soziale Be-
ziehungsgefelecht, insbesondern Familien“ KERN, Julia. Frauen und Partnerinnen von Inhaftierten:
Theorie und Praxis. Saarbrücken.VDM Verlag Dr. Müller, 2004. p. 23.
31
CLEPHAS, Heike. Mein Mann ist im Knast... Was nun?: Ratgeber für Angehörige von
Inhaftierten und Haftenlassenen. Munster: Chance, 2011.
32
KAWAMURA-REINDL, Gabriele. Inhaftierung betrifft alle in der Familie: ein Ratgeber
für Angehörige von Inhafiterten in Bayern. Zeitschrift für Strafvollzug und Straffälligenhilfe,
n. 55, p. 33-36, 2006.
33
WICHMANN, Cornelius. Ich besuche dich im Gefängnis: eine Website (nicht nur) für
Kinder von Gefangenen in Zugriffsrechte erwerben. In: Halbhuber-Gassner, Lydia. Einloggen
Wenn Inhaftierung die Lebenssituation prägt Lokale Unterstützungsangebote und Online-Beratung
für Angehörige. Freiburg im Breisgau: Lambertus Verlag, 2017. p. 159-171.
34
FRANK, op. cit.

130
nacional; e os estudos empíricos têm enfoque majoritariamente qualitativo e
local. Em conjunto há também uma série de fóruns de discussão na internet
feitos para familiares de presos, que são espaços de interação para solução de
dúvidas práticas e de elaboração de questões muitas vezes deixadas somente
aos trabalhos acadêmicos.35

2.3. Revisão bibliográfica da


produção brasileira
As primeiras menções à visitantes de estabelecimentos prisionais no
Brasil se inserem em obras sobre o direito de presos receberem visitas ín-
timas durante o cumprimento de pena restritiva de liberdade. No livro A
questão sexual nas prisões, de Lemos de Britto, publicado em 1934, discutia-se
a pertinência em permitir que visitantes mulheres adentrassem as prisões para
manterem relações sexuais com presos, como já ocorria em alguns países à
época, como México e União Soviética.
Na obra de Lemos Britto fica evidente a função da visitante como
instrumento de controle dos impulsos sexuais do preso, que, em sua visão,
sofria uma séria emasculação ao ter que viver na ausência de mulheres. Em
suas palavras: “São ex-homens. Sem comunicação com o mundo exterior,
eles acabam, nas largas penas, esquecidos de si mesmos […] [E]m cada célula
se processa uma tragédia sexual”.36
Ao longo do texto são avaliadas as propostas de visitas íntimas como
soluções a condições vistas como patológicas à época, como relações ho-
mossexuais entre presos; e descreve-se a visita como um objeto de desejo
sexual oriundo de um preso descontrolado – caracterização esta que fica clara
quando Lemos de Brito narra o pedido de liberdade de um preso à direção da
penitenciária onde se encontrava, pois seu antigo companheiro de cela teria
conhecido sua filha durante as visitas e poderia violentá-la ao sair.37 Assim, se
de um lado havia presos descontrolados e reféns de seus instintos, do outro
estavam visitantes mulheres, cuja função era primordialmente sexual.
Nas décadas que seguem é praticamente inexistente a produção nacional
sobre familiares de presos. Encontram-se alguns trabalhos esparsos sobre a
criminalidade feminina e a prisão de mulheres, os quais mencionam a ausência

35
Dentre os fóruns de discussão com maior atividade figuram: https://knastforum.de/ e
http://www.knastcafe.de/.
36
BRITTO, José Gabriel. A questão sexual nas prisões. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos,
s/d. p. 46.
37
BEATTIE, Peter. “Cada homem traz dentro de si sua tragédia sexual”: visitas conjugais,
gênero e a questão sexual nas prisões (1934), de Lemos Britto in MAIA, Clarissa et. al.
(org.) História das Prisões no Brasil. vol. 2. São Paulo: Rocco Digital, 2009. p. 95.

131
de visitas e os problemas que o encarceramento traz aos filhos de detentas,
como em Cemitério dos vivos, de Julita Lembruger.38
Nos anos 80 e 90, a temática ainda carece de trabalhos dedicados exclu-
sivamente às visitantes; e pode ser verificada de maneira residual em produções
que tratavam da relação entre a prisão e os moradores de regiões periféricas de
grandes cidades, sendo inclusive levantada a questão de gênero em alguns deles.
Tais artigos e livros publicados – como Ser mulher, mãe e pobre39 e Malandros, mar-
ginais e vagabundos & a acumulação social da violência no Rio de Janeiro40 – cumprem
o importante papel de demonstrar a permeabilidade da prisão em face do seu
entorno e os fluxos de ideias, pessoas e poder que se estabelecem.
Essa constatação é central para compreender que as visitantes não são
meramente acessórias na dinâmica prisional ou cumprem uma função pon-
tual ao adentrarem o cárcere; e que, ao contrário, elas personificam a saída da
cultura da prisão para os locais de origem das visitas (e dos presos) e trazem
o mundo “exterior” para o interior dos estabelecimentos prisionais.
A partir dos anos 2000, é visível o aumento do interesse acadêmico
na temática, com a publicação de diversos estudos empíricos, sendo alguns
deles etnográficos, com familiares em prisões de diversas localidades do país.
Neles, são empregados os conceitos já amplamente utilizados na literatura
norte-americana de estigma e, por vezes, de prisionização secundária. Nessa
linha, o trabalho de Megan Comfort é um referencial teórico recorrente na
produção nacional41.
No conjunto de obras que trazem reflexões sobre visitantes mulheres
adultas, sejam elas esposas, companheiras, mães ou irmãs, o gênero é elemen-
to central nas análises da forma como as relações de poder entre homens e
mulheres são afetadas pela pena42. Apesar de essa proposta teórica não ser

38
LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres.
2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
39
FONSECA, Claudia. Ser Mulher, Mãe e Pobre. in PRIORE, Mery. (org). História das Mulheres
no Brasil, 2a ed. São Paulo: Contexto, 1997.
40
MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: a acumulação social da violência no Rio de
Janeiro [Tese de Doutorado em Sociologia]. Programa de Pós-graduação em Sociologia
e Ciências Políticas do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, IUPERJ/
UCAM, 1999.
41
A referência ao trabalho de Megan Comfort e ao conceito de prisionização secundária
em trabalhos nacionais é feita por Rafael Godoi: “Comfort (2003) formulou a hipótese
de “prisionização secundária”, como um dos processos que afetam principalmente as
mães, esposas e namoradas de presos que continua - mente passam pela experiência de
visitação em uma unidade prisional.” GODOI, Rafael. Para uma reflexão sobre os efeitos
sociais do encarceramento. Revista Brasileira de Segurança Pública. São Paulo, ano 5, ed 8,
fev/mar 2011, p. 140.
42
Dentre os trabalhos com substrato etnográfico que refletem sobre a visitação e o gênero está
a produção de Giane Silvestre. SILVESTRE, Giane. Dias de visita: uma sociologia da punição

132
inovadora, já que era encontrada na produção estrangeira, como descrito nas
seções anteriores, há artigos que elencam a influência das redes de poder das
chamadas “facções criminosas” como um terceiro elemento de sua análise.43
Além das publicações que tratam propriamente dos familiares que re-
alizam visitas às prisões, há também um olhar acadêmico sobre os filhos de
presos e as formas como essas crianças e adolescentes entendem a prisão e
são por ela afetados. De maneira próxima, os trabalhos sobre encarceramento
feminino e maternidade na prisão, que também se tornam expressivos no
período, tratam da problemática dos efeitos da pena para filhos de presas.44
Na produção mais recente, há também trabalhos cujo tema central é a
revista íntima imposta às visitantes de prisões, obrigadas a se desnudar e ter sua
genitália meticulosamente inspecionada. O interesse acadêmico e midiático
sobre a questão tem estreita relação com as campanhas de organizações de
direitos humanos que buscaram a aprovação de leis estaduais e da Lei 13.271,
que proibiu a prática nacionalmente em 2016.45
Como síntese das formas que o direito de visitação apresentou na exe-
cução penal no Brasil, encontra-se trabalho da descreve três visões distintas
sobre as famílias no Brasil ao longo da história. No primeiro momento,
que vai até o final da década de 80, a presença da família era vista como
um elemento central para ressocialização e recuperação do preso, posicio-
namento que muda nos anos 90, quando ocorre uma série de limitações às
pessoas que poderiam figurar no rol de visitas, com exclusão de amigos e
familiares de graus distantes. Nesse segundo momento, as famílias passam a
ser vistas como suspeitas e como agentes que levam informações do inte-
rior da prisão para “organizações criminosas”; por isso as visitas deveriam

e das prisões. 2011. Dissertação [Mestrado em Sociologia] – Universidade Federal de São


Carlos, São Paulo, 2011. e SILVESTRE, Giane. Prisões, Sociedade e Punição: As Penitenciárias
e suas Relações com o Município de Itirapina. Trabalho de Conclusão de Curso [Graduação
em Ciências Sociais] – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista,
Marília –SP, 2007.
43
Sobre a temática da relação das visitantes com as redes de poder das chamadas ‘’Facções
Criminosas’’, ver: LAGO, Natália. Mulher de preso nunca está sozinha: gênero e violência
nas visitas à prisão. ARACÊ – Direitos Humanos em Revista, ano 4, n. 5, fev. 2017; e LIMA,
Jacqueline de. Mulher fiel: as famílias das mulheres dos presos relacionados ao Primeiro
Comando da Capital. 2013. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade
Federal de São Carlos, São Carlos, 2013.
44
Sobre a temática, ver: MOURA, Maria Jurema. Mulher, tráfico de drogas e prisão. Fortaleza:
Eduece, 2012; e BRASIL. Ministério da Justiça. Secretaria de Assuntos Legislativos. Dar à
luz na sombra: condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres
em situação de prisão. Brasília: Ministério da Justiça, IPEA, 2015.
45
DUTRA,Yuri Frederico. A inconstitucionalidade da revista intima realizada em familiares
de presos, a segurança prisional e o princípio da dignidade da pessoa humana. Novos Estudos
Jurídicos, Itajaí, v. 13, n. 2, p. 93-104, jul./dez, 2008.

133
ser limitadas ao mínimo de pessoas possível, com a menor permanência
necessária e o máximo controle.46
Na conjuntura atual do sistema prisional brasileiro, a autora aponta que
as visitas ainda são mantidas para que haja estabilidade necessária nas relações
de poder que envolvem a prisão. Proibir ou limitar o acesso de visitantes se
tornou motivação de rebeliões; e o convívio minimamente pacífico entre
presos e administração penitenciária tem nas visitas um fator determinante. 47
Assim como descrito em relação à literatura estrangeira, a ausência de
dados empíricos nacionais claros sobre visitantes impede análises quantita-
tivas sobre o perfil daqueles que figuram no rol de visitas. Os poucos dados
existentes se limitam à realidade de alguns Estados; e os relatórios do Depar-
tamento Penitenciário Nacional (DEPEN) trazem poucos elementos sobre
visitantes, limitando-se a descrever a quantidade de presos que recebe visitas
regulares e o número de estabelecimentos que apresentam locais específicos
para realização da visita social e da visita íntima.48 Dessa forma, é crucial no
desenvolvimento de pesquisas futuras a presença de tais dados quantitativos
de forma metodologicamente adequada, para que se possa verificar como as
conclusões de ordem qualitativa e local dialogam com a realidade nacional.

3. Estigma e gênero nas análises


criminológicas sobre familiares de presos
3.1. O estigma como referencial teórico
A produção teórica objeto da revisão bibliográfica apresentada tem na
figura do estigma um elemento central para a análise das relações sociais vi-
venciadas pelas famílias de presos após seu contato com o cárcere. O conceito
tem sua formulação teórica desenvolvida na obra de Erving Goffman, soció-
logo estadunidense que se insere na tradição do Interacionismo Simbólico49.

46
DUARTE,Thais Lemos. Encontros no cárcere “ontem” e “hoje”: histórico da visitação ao
sistema prisional do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 25,
n. 134, p. 437-477, ago. 2017.
47
Idem.
48
Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) de 2014
revelaram que somente 43% das unidades carcerárias nacionais têm informações completas
sobre as visitas recebidas. Apesar da ausência de alguns estados, como São Paulo e Rio de
Janeiro, foi calculada uma média nacional de 1,6 visitas por pessoa presa a cada mês. Por sua
vez, em apenas 37% dos estabelecimentos prisionais têm local específico para visita social
e 31% para visita íntima. BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional
de Informações Penitenciárias, 2014. Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/
mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.
pdf. Acesso em 19 mai. 2018.
49
Nos apontamentos de Eugênio Zaffaroni, o Interacionismo Simbólico se fundava nas ideias
de George Mead, para quem todos temos um Self que se vai formando pelas exigências

134
A definição de estigma vem da observação da forma como interagem
diferentes grupos sociais quando travam relações interpessoais, nas quais am-
bos os sujeitos envolvidos na relação em análise enfrentam diretamente suas
causas e efeitos. Assim, o estigma é propriamente a criação de uma identidade
virtual degradada, atribuída aos sujeitos que apresentam caraterísticas que não
correspondem aos padrões hegemônicos de aparência e comportamento.50
Com esse ponto de partida, Goffman prossegue descrevendo que a de-
finição de tais padrões permite classificar atributos dos sujeitos em “normais”
ou “desviados”; e nessas categorias inseri-los para definir a quem será atribuída
a mencionada identidade virtual “estragada e diminuída”.51
Essa determinação de atributos e sua designação a membros de grupos
sociais inferiorizados não ocorre necessariamente de maneira intencional
e representa mais que um mero conjunto de preconceitos. Isso porque, nas
formas de análise do Interacionismo Simbólico, é primordial a percepção
de como o estigma se dá nas relações cotidianas interpessoais, já que é
somente com a reprodução, introjeção e reiteração dessa nova forma de
identidade degradada que se pode verificar a presença de uma condição
estigmatizada. A simples imposição verticalizada de um atributo inferior
não traz necessariamente os mesmos efeitos e não traduz o conceito em
sua complexidade.
Nessa lógica, o estigma não se dá de maneira regrada em todas as relações
de que participa o indivíduo que é dela portador. Goffman descreve que um
atributo tido como negativo na concepção cultural hegemônica pode ser
interpretado de maneiras distintas, a depender da interação social, da mesma
forma que uma pessoa estigmatizada também pode adotar estratégias para
esconder ou minimizar as reações desfavoráveis que recebe.52
Tal possibilidade de revelar ou negociar os efeitos do estigma é o elemen-
to empregado para distinguir as duas formas em que ele pode se apresentar.
A primeira delas é a dos indivíduos ditos desacreditados, compreendida pelas
pessoas que são automaticamente associadas a atributos pejorativos e dificil-
mente conseguem ocultá-los, como seria o caso daqueles que apresentam
deformidades corporais. Por sua vez, na expressão da outra forma que pode
tomar o estigma, estão os indivíduos desacreditáveis, os quais têm a possibilidade

de papéis dos demais indivíduos e um Eu que é o que criamos para nós mesmos. Assim
sendo, o pressuposto teórico que orientava as pesquisas eram a presença de indivíduos em
comunicação que compartilham símbolos que orientam mutuamente seus comportamentos.
ZAFFARONI, Eugenio. La Cuestión Criminal. Buenos Aires: Planeta, 2013, p. 154.
50
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.Tradução
de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. 4. ed. Rio de Janeiro: LCT, 1988. p. 8.
51
Idem, ibidem, p. 7.
52
Idem, ibidem, p. 81.

135
de revelar ou esconder sua condição por meio de estratégias que desenvolvem
no convívio social; aqui poderiam ser classificadas as visitantes de presos.53
A menção a presos e seus familiares não é central em Estigma: notas so-
bre uma identidade deteriorada, trabalho em que Goffman inaugura seu estudo
destinado ao estigma. Entretanto, mesmo nessas formulações de cunho mais
geral, já era descrita a forma como o estigma de um sujeito com atributos
considerados negativos é transferido às pessoas que com ele se relacionam.
Aos indivíduos que recebem o estigma por associação, é dada a denomi-
nação de “pessoa informada”, que passa a ser considerada socialmente como se
fosse uma extensão do sujeito estigmatizado; como se um só fossem. Dentre
os exemplos dados de pessoas informadas figura expressamente a menção à
“filha do ex-presidiário”54; e destaca-se no texto a transcrição de uma carta
de uma menina que procura ajuda por ser filha de um preso já liberto:

Sou uma menina de 12 anos que é excluída de toda atividade social


porque meu pai é um ex-presidiário. Tento ser amável e simpática
com todo mundo, mas não adianta. Minhas colegas de escola me
disseram que suas mães não querem que elas andem comigo - pois
isso não seria bom para a sua reputação. Os jornais fizeram publi-
cidade negativa de meu pai e apesar de ele ter cumprido sua pena
ninguém esquecerá do fato.55

Em Manicômios, prisões e convênios, o estudo do estigma se acopla aos


efeitos que as chamadas Instituições Totais têm na formação de identidades
virtuais degradadas atribuídas aos cativos. As famílias, na obra, não recebem
análise própria sobre sua condição, porém têm seu papel mencionado em
passagens centrais.
De início, ao descrever no que consiste uma Instituição Total, Goffman
afirma que a presença da família é incompatível com a forma de encerramento
de pessoas que tais instituições pretendem empreender.Ademais, a possibilidade
de convivência doméstica fora do ambiente institucional é uma prerrogativa
dada aos funcionários e dirigentes, que se valem dessa convivência para que
“escapem da tendência dominadora da instituição total” 56.
Os dias de visita são descritos como uma forma de exibição institucional,
na qual os dirigentes teriam o cuidado de preparar as instalações e as pessoas
privadas de liberdade para receber seus familiares. Assim, a visita torna-se uma

53
Idem, ibidem, p. 28.
54
É pertinente notar que o único exemplo trazido por Goffman em relação a familiares de
presos é de uma mulher.
55
Idem, ibidem, p. 32.
56
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 22.

136
“excursão festiva, para qual a administração pode fazer uma grande prepara-
ção”57 e não corresponde ao cotidiano dos estabelecimentos.
A família, portanto, é vista com desconfiança e ressalvas por parte da-
queles que controlam o cotidiano institucional, que a entendem como um
agente externo à dinâmica usual de controle e estigmatização dos internos,
necessária para seu funcionamento. Apesar disso, Goffman adverte que as
visitas, ainda que representem essa “ameaça”, também acabam por legitimar
a existência das Instituições Totais, na medida em que indicariam que não há
uma separação absoluta entre o ambiente interno e a sociedade.

Qualquer que seja o efeito de tais visitas sobre os padrões diários,


parecem servir como uma recordação, a todos no estabelecimento,
de que a instituição não é um mundo inteiramente isolado [...].
Os internados parecem supreendentemente dispostos a acreditar
nisso. Evidentemente, através dessa crença, podem sentir que têm
um status no mundo mais amplo, embora através da condição que
os afasta desse mundo.58

Tais formulações teóricas foram empregadas como referenciais da produ-


ção descrita na parte inicial desse trabalho para analisar o tratamento degradante
conferido social e institucionalmente às visitantes de prisões e os filhos de
pessoas presas. Entretanto, apesar das possibilidades interpretativas conferidas
pela obra de Erving Goffman, críticas e reformulações foram propostas para
que a noção de estigma pudesse ainda ser empregada nas análises sobre os
sujeitos em questão.

3.2. Reflexões sobre o estigma a


partir das análises de gênero e
da realidade brasileira
As contribuições de Goffman e de outros autores do Interacionismo
Simbólico foram assimiladas e adaptadas inicialmente na produção estadu-
nidense, sendo nela central os conceitos de prisionização secundária e de
estigma de cortesia presentes nos trabalhos de Megan Comfort.
Por prisionização entende-se o processo de assimilação da forma de
vida, moral, costumes e cultura geral do ambiente carcerário que acontece
em algum grau com pessoas presas ao serem encarceradas. O conceito tem
sua formulação original na obra de David Clemmer, autor do Interacionismo
Simbólico, que compartilhou em grande medida pressupostos metodológicos

57
Idem, ibidem, p. 24.
58
Idem, ibidem, p. 92-93.

137
e analíticos de Goffman.59 Por sua vez, a prisionização secundária compre-
ende essa assimilação por parte das visitantes, que apresentam um status de
“quase-presas” ao compartilharem o cotidiano da prisão e seus impactos em
sua identidade social.60
Outro conceito empregado nas análises mais recentes é o de estigma de
cortesia, que já havia sido formulado nos trabalhos de Goffman e é apropriado
para tratar das famílias que compartilham o mesmo descrédito e degradação
em sua identidade social, em razão da prisão.
Nas duas elaborações fica evidente a forma como os efeitos da pena privativa
de liberdade extrapolam a figura do preso e atingem seus familiares.Tal constata-
ção é usualmente acompanhada em estudos nacionais e internacionais de dados
empíricos que evidenciam a forma como esse compartilhamento do estigma está
atrelado às relações familiares e afetivas entre presos (prisionizados em primeiro
grau e estigmatizados imediatamente) e suas esposas, namoradas, mães ou outros
familiares (prisionizadas em segundo grau e estigmatizadas por cortesia).
Com o substrato empírico que evidenciou o vínculo entre o compar-
tilhamento do estigma e as relações de gênero que perpassam a experiência
prisional, autoras como Stacey Hannen passaram a investigar a forma como
ser mulher impactava a absorção da identidade deteriorada dos homens com
os quais se relacionam.
Para explicar a correlação entre gênero e acoplamento do estigma, Han-
nen descreve que o primeiro é um dado central para que o estigma “grude”
em familiares de presos, de modo que as mulheres seriam contaminadas pe-
los presos a elas associados de maneira mais intensa que seus “equivalentes”
masculinos na família.61
A primeira hipótese levantada para explicar essa constatação tem suas
bases na concepção de que o papel da família é determinante na perpetuação
da criminalidade e na “criação do criminoso”, pois estaria nela o germe de
uma educação deficitária e de traços morais degenerados. Essa associação
entre famílias ditas “desestruturadas” e indivíduos com pouco autocontrole
e tendências ao cometimento de crimes se faz presente não somente no
imaginário social, como também apresentou certa elaboração acadêmica.
A defesa da desorganização familiar como fator criminógeno é descrita
no trabalho de Travis Hirchi e Michael Gottfredson, que pretende apresentar

59
No trabalho de Clemmer, a prisionização é descrita como:“the taking on, in greater or less
degree, of the folkways, mores, customs, and general culture of the penitentiary.” CLEM-
MER, Donald. The Prison Community. New York: Holt, Rinehart and Winston, 1940.
60
COMFORT, Megan. Doing time together… p. 15-16.
61
HANNEN, Stacey. Marked by association: stigma, marginalization, gender and the families of male
prisioners in Canada. 2008.Tese (Doutorado em Sociologia) – Carleton University, Otawwa,
Ontario. p. 66.

138
uma teoria geral sobre os fatores que levam ao cometimento de crimes e
descreve que a instituição familiar é a principal instância socializadora. Na
visão dos autores, a família deveria se estruturar de maneira sólida e tradicional,
seguindo papeis claros para homens e mulheres na criação dos filhos e na
execução das tarefas domésticas para evitar a criminalidade.62
Apesar dessa suposição ter respaldo na opinião pública e em parcela da
produção teórica, autores como Rafael Godoi e Stacey Hannen a refutam,
primeiramente pela ausência de qualquer respaldo empírico e, principal-
mente, por estarem ausentes da reflexão os fatores sócioeconômicos que
envolvem a criminalização primária de condutas e a forma como opera a
criminalização secundária de indivíduos nas sociedades modernas, pautada
pela seletividade penal.63
Ainda que desprovida de fundamento, a assunção de que falhas no
papel socializador da família levaria o indivíduo ao crime (e à prisão) tem
ressonância e relaciona-se com a forma pela qual o estigma afeta de maneira
mais intensa as figuras femininas das entidades familiares. Isso porque, sendo
a figura materna a principal responsável pelo cuidado dos filhos, os desvios
por ela praticados seriam resultado de uma falha em seu papel de mãe e, no
limite, de mulher na sociedade patriarcal.64
Por sua vez, ao considerar o estigma de cortesia de mulheres que
se relacionam amorosamente com pessoas presas, há outra hipótese que
também evidencia a forma como as relações de gênero incidem no aco-
plamento do estigma. Nesse caso, o compartilhamento se deve à associação
de mulheres à figura masculina de seus parceiros, como se sua identidade
fosse deles decorrente.
Ademais, para tais mulheres há uma condenação moral praticamente
inevitável de suas escolhas, que será determinante para a “fixação” do estigma.
Isso porque, frente ao aprisionamento de seu parceiro afetivo, a companheira

62
GOTTFREDSON, Michael; Hirschi, Travis. A general theory of crime. Stanford: Stanford
University Press, 1990, p. 90-97.
63
No trecho original, em inglês: “These feelings of shame and stigma are linked to their belief
in the normative cultural assumptions of western societies that bad parenting and negative familial
socialization are root causes of criminality. The family, therefore, is viewed as somehow culpable in
the deviation of the family member. Furthermore, one might suggest that if bad parenting and bad
families are culpable for the criminal actions of a family member, then others who belong to the same
family may also be seen as susceptible to engaging in criminal acts, since they have been socialized
in the same environment” HANNEN, Stacey. Marked by Association: Stigma, Marginalization,
Gender and The Families of Male Prisioners in Canada, op. cit., p. 65-66. e GODOI, Rafael.
Para uma reflexão sobre os efeitos sociais do encarceramento. Revista Brasileira de Segurança
Pública, São Paulo, ano 5, edição 8, 2011, p. 139-153.
64
No original em inglês: “One might hypothesis that the greater impact of courtesy stigma is due, at
least in part, to patriarchal social norms that link the identity of women to their families as caregivers
and as an extension (property) of the male partner”. HANNEN, op. cit., p. 66.

139
tem dois caminhos a seguir: um primeiro, em que mantém o relacionamento
e compartilha a pena, e um outro, em que decide encerrar a relação e da
prisão se afastar.
No caso de a escolha ser a primeira, o compartilhamento do estigma
criminoso decorreria da aceitação do desvio praticado por seu parceiro e a
recepção quase que consciente deste. Tal caminho caracterizaria essas visi-
tantes de estabelecimentos prisionais como “mulheres de bandido”, que só
poderiam se encontrar em relacionamentos dessa natureza, pois elas próprias
teriam uma identidade moral degradada65.
Por outro lado, caso a mulher decida romper os vínculos afetivos, há
ainda assim uma condenação moral de seu comportamento, em razão do
abandono de seu parceiro em situação difícil, e o qual requer apoio. Nessa
hipótese, o rechaço à escolha se faz presente no discurso das próprias visitantes,
que descrevem as mulheres que “abandonam” seus maridos no decorrer do
cumprimento da pena como “fáceis” ou “que não são ‘da caminhada’, pois
estariam interessadas apenas no que os companheiros lhes proporcionavam
antes da prisão.66
A forma como as relações de gênero informam os impactos que a prisão
tem para aqueles que nela estão por longos períodos ou em trânsito demonstra
como as formulações do Interacionismo Simbólico são úteis, mas deixam de
lado aspectos que vão além das interações interpessoais.
Rafael Godoi faz ressalva próxima, ao descrever como o uso de referen-
ciais do Interacionismo para analisar as relações que se desenvolvem na prisão
carece de elementos estruturais, como a influência de fatores econômicos e
sociais; e ainda tem como pressuposto a ideia de que o ambiente prisional é
um universo encerrado que pouco dialoga com o que se passa para fora de
seus muros.67
As contribuições da Criminologia Crítica traduzem a importância de
se considerar o encarceramento e seus efeitos dentro das relações sociais mais
amplas. Como tratado na revisão bibliográfica inicial, há um espalhamento da
cultura prisional em localidades periféricas nos grandes centros urbanos do
Brasil, que se dá na forma de gírias, costumes e compartilhamento de redes
de poder.68 Desse modo, ao mesmo tempo em que a prisão também extrapola

65
BARCINSKI, Mariana et al. Guerreiras do cárcere: uma rede virtual de apoio aos familiares
de pessoas privadas de liberdade. Temas psicol., Ribeirão Preto, v. 22, n. 4, dez. 2014.
66
Idem.
67
GODOI, op. cit.
68
SÜSSEKIND, Elizabeth. Estratégias de Sobrevivência e de Convivência nas Prisões do Rio
de Janeiro. 2014. Tese (Doutorado em História) - Centro de Pesquisa e Documentação
de História Contemporânea do Brasil CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, Rio de
Janeiro, 2014.

140
seus muros, seus efeitos e o estigma criminoso passam a ser compartilhados
não apenas por pessoas que têm efetivamente parentes presos, mas também por
todos os moradores de tais localidades, os quais também são compreendidos
socialmente como suspeitos e potencialmente criminosos.
Tais apontamentos são importantes para demonstrar como tais reformula-
ções dos conceitos originais de estigma e prisionização retomam suas propostas
iniciais e conferem a eles pertinência e atualidade na análise das visitantes de
estabelecimentos prisionais a partir da inclusão do gênero como elemento
que resgata a dimensão estrutural. Entretanto, para que o estudo sobre famílias
de presos e sobre as relações sociais que permeiam o cárcere consiga elencar
fatores sociais e econômicos e aliá-los à observação do cotidiano das visitantes,
é necessário que sejam mobilizados outros marcadores sociais da diferença, com
destaque para dados de classe e raça. Nessa linha, a tarefa da produção futura
no estudo de famílias de presos é a de agregar a contribuição da Criminologia
Crítica, na precisão que apresenta para relacionar estrutura social e os efeitos
da prisão; e a riqueza da observação, antes encontrada nas pesquisas dos autores
do Interacionismo Simbólico, hoje traduzida em investigações etnográficas.

4. Conclusões
A produção teórica voltada à análise das famílias de presos e das vi-
sitantes de estabelecimentos prisionais tem suas primeiras publicações em
língua inglesa, com destaque para os trabalhos produzidos sobre a realidade
norte-americana e do Reino Unido.
No primeiro momento da bibliografia em inglês, as famílias são um
instrumento para a ressocialização e para a redução da reincidência, sendo
estudadas com claro intuito prático de reduzir os efeitos nocivos da prisão
na vida dos condenados e na orientação de políticas públicas voltadas à as-
sistência social das famílias.
Em uma segunda etapa, a produção reúne estudos empíricos com amplo
substrato etnográfico, fruto de observação participante de pesquisadoras,
nos quais as visitantes são caracterizadas primordialmente como vítimas
de seus relacionamentos afetivos que as levaram ao compartilhamento da
experiência prisional.
No corpo mais recente da produção, a visão da família como vítima de
suas relações se torna um olhar sobre as experiências das visitantes, a partir
de sua vivência cotidiana e dos efeitos que tem o encarceramento em massa
na trajetória dos grupos sociais por ele afetados, compostos majoritariamente
por negros economicamente marginalizados.
A produção em língua inglesa não só inaugura de maneira expressiva o
estudo sobre familiares como também consolida diversas das questões pes-

141
quisadas dentro dessa problemática, dentre as quais figuram as consequências
financeiras e psicológicas da prisão na família, os reflexos vividos pelos filhos
crianças e adolescentes e os impactos nos relacionamentos afetivos de presos
e visitantes. Ademais, nessa revisão bibliográfica demonstra-se recorrente o
uso de referenciais teóricos do Interacionismo Simbólico, com destaque para
os conceitos de estigma e prisionização.
A revisão feita em língua alemã, com produções sobre a realidade de
famílias na Alemanha e Suíça, tem grande respaldo nos estudos empíricos
anteriores realizados nos Estados Unidos e no arcabouço conceitual neles
empregado. O que se destaca nesse conjunto de trabalhos é o interesse recor-
rente em produzir materiais com respaldo acadêmico dirigidos à informação
e orientação dos familiares de pessoas presas.
No Brasil, os trabalhos especializados em familiares passam a ganhar
certa expressão apenas nos anos 2000, quando pesquisadores iniciam inves-
tigações majoritariamente qualitativas sobre visitantes de estabelecimentos
prisionais em diversas localidades do país. Em grande parte dessa produção,
são abordadas as questões centrais que já apareciam na bibliografia em in-
glês e compartilhados os referenciais teóricos estrangeiros originários do
Interacionismo Simbólico.
O histórico anterior a esse momento da produção nacional consiste
em livros e artigos que, desde os anos 30, traziam menções pontuais ao
papel das famílias no cumprimento da pena ou a enxergavam como um
instrumento para aliviar o sofrimento envolvido com o encarceramento
ou evitar a reincidência. Apesar da ausência de autonomia da temática das
visitas nas análises sociológicas sobre o funcionamento do sistema penal
brasileiro, encontradas nos anos 80 e 90, tais trabalhos foram de valia para
demonstrar a permeabilidade da prisão e as trocas entre o ambiente interno
e o seu exterior.
Dentre os conceitos empregados nos estudos nacionais e internacio-
nais sobre a temática das formulações sobre visitantes de estabelecimentos
prisionais, a categoria do estigma desenvolvida por Erving Goffman é a que
encontra maior ressonância.
Ainda que famílias de presos não tenham figurado como elementos
centrais nas obras em que Goffman desenvolveu o estigma, ele apresenta
conceitos como o de “pessoa informada”, que permite compreender como
a criação de uma identidade virtual deteriorada para o indivíduo primaria-
mente estigmatizado é compartilhada por seus parentes e pessoas próximas.
Essas propostas analíticas da sociologia clássica das prisões, verificadas em
Goffman e em outros autores como David Clemmer, criador do conceito de
prisionização, podem ser criticadas sob a ótica da Criminologia Crítica. Isso
porque o Interacionismo Simbólico tinha como pressuposta a ideia de que

142
o ambiente prisional é um universo cerrado e apartado do meio social, que
apresentaria uma dinâmica própria.
Possibilidades de superação dessa aparente contradição entre as di-
mensões estrutural e da observação das relações interpessoais, no caso das
famílias, surgem com estudos que reformulam os conceitos de prisionização
e de estigma, com atenção às relações de poder baseadas no gênero. Nelas é
evidenciada uma correlação entre o fato de se ser mulher e a incidência do
estigma, além de se explicar a crença hegemônica de que a desestruturação
familiar e a criação dita deficitária das mães seriam razões determinantes para
o cometimento de crimes.
Em um balanço final acerca do que já foi produzido até o momento,
duas tarefas demonstram-se relevantes para avanços teóricos. A primeira é o
aprimoramento da coleta e sistematização de dados nacionais sobre o perfil
das famílias de pessoas presas, das visitantes de prisões e das condições de
visitas, informações até hoje ausentes das pesquisas sobre o sistema prisio-
nal brasileiro. Por fim, é também importante que as pesquisas qualitativas e
etnográficas considerem as contribuições de cunho estrutural, atentando-se
a fatores econômicos e sociais em suas análises, bem como que as pesquisas
que se orientam pela Criminologia Crítica também não percam de vista a
vivência cotidiana das famílias e as formas como elas próprias entendem sua
experiência dentro e fora da prisão.

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146
Tr a b a l h o n o c á r c e r e f e m i n i n o :
sentidos e per spectivas nos centros de
ressocialização paulistas1
Camilla Marcondes Massaro2 6

1. Introdução
Certamente, o trabalho penal é parte essencial das formas punitivas, e
em especial da pena privativa de liberdade desde as Casas de Correção – que
originaram as prisões modernas –, sempre acompanhando o desenvolvimento
do sistema capitalista e orrespondendo às suas necessidades.3
Na atualidade não é diferente. O contexto sócio-histórico, a partir do
qual empreendemos a análise do trabalho penal feminino hodierno, tem como
referência as reformulações do modo de produção capitalista advindas com a
crise do Welfare State, que inauguram a fase que István Mészáros (2011) define
como crise estrutural do sistema do capital, isto é, o momento a partir do qual
o sistema do capital apresenta sinais de profundo esgotamento civilizatório,
tornando-se ferozmente desumano e destrutivo.
Buscando soluções para retardar seu colapso, o sistema do capital pro-
cura reestruturar-se em todas as suas ramificações: na esfera da produção, da
reprodução, na esfera subjetiva, política e ideológica, inclusive forçando uma
nova sociabilidade. Em termos econômicos e políticos, o marco da resposta
à crise é a implantação das políticas neoliberais nos países centrais, a partir
1
O presente artigo é derivado da pesquisa que resultou em tese de doutorado defendida
no ano de 2014. A referida pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Secretaria da Adminstração Penitenciária do estado de São Paulo CEP/SAP sob o registro
número 007/2012.
2
Doutora em Ciências Sociais pela UNESP Araraquara. Mestre em Educação Escolar pela
UNESP Araraquara. Professora da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-Campinas.
3
Como apontam, dentre outras, as análises de: Guimarães (2007); Melossi; Pavarini (2010);
Rusche; Kirchheimer (2008).

147
da década de 1970; e nos países periféricos, incluindo o Brasil, nos anos de
1990, após o Consenso de Washington, com todas as suas consequências.4 No
que se refere ao mundo do trabalho, um intenso processo de reestruturação
produtiva é iniciado no mesmo momento.
Mudanças são operadas também nas formas de controle social com vistas
à contenção dos reflexos sociais advindos da crise pelo crescente cerco às
parcelas mais afetadas da população, cujo ápice é a criminalização da pobreza
e o encarceramento em massa.
Somados, esses mecanismos do sistema do capital – para se reerguer diante
da crise derradeira, visando à retomada de positivos índices de acumulação
–, trazem consequências nefastas à classe trabalhadora como um todo e, de
modo particularmente mais acentuado, para as mulheres.
Os dados mais recentes mostram que o Brasil, com 726.712 pessoas
presas (INFOPEN, 2017), é o terceiro país que mais encarcera no mundo,
ficando atrás dos EUA, China e Rússia (ICPS, 2018).5
Em termos gerais, o total de presos no Brasil corresponde a uma taxa de
aprisionamento perto de 350 para cada 100 mil habitantes no mesmo período.
64% das pessoas presas estão registradas como negras (pretas ou pardas soma-
das), sendo que, na população brasileira em geral, esse percentual é de 53%
(INFOPEN, 2017). Além disso, temos alarmantes 32% das pessoas presas ainda
sem condenação. Perto de 25% do total de presos responde ou foi sentenciado
por delitos referentes à Lei de Drogas e 38% por dolo contra o patrimônio.
Juntos, os crimes que se relacionam diretamente a dois elementos essenciais
de reprodução do modo de produção capitalista: a propriedade privada e os
lucros estratosféricos advindos da produção, circulação e consumo de subs-
tâncias ilícitas, correspondem à mais de 60% do total de pessoas presas no país.
No tocante ao gênero, embora o número de mulheres presas seja percen-
tualmente muito inferior em relação à população carcerária masculina, dados do
relatório INFOPEN Mulheres referentes a junho de 2014 (INFOPEN, 2015b)
apontam que, entre os anos 2000 e 2014, enquanto a população prisional bra-
sileira aumentou 260%, o número de mulheres presas teve um crescimento de
567%, passando de 5.601 para 37.380. Conforme os últimos dados disponíveis,
as mulheres correspondem a 5,8% das prisões no sistema penitenciário, com
42.355 presas. É importante ressaltar que em relação aos crimes cometidos
observa-se uma inversão por gênero: 62% das mulheres estão presas por crimes
relacionados à Lei de Drogas e 20% por roubo ou furto, enquanto em relação
4
Ver ensaio de Ricardo Antunes (2007 – anexo V, p.229-249).
5
No Brasil, os dados são disponibilizados semestralmente. No fechamento do presente artigo,
os dados disponíveis eram referentes a junho de 2014. Em relação aos dados globais, o ICPS
centraliza as informações de cada país, não havendo exata correspondência entre as datas
de referência.

148
aos homens presos eram, na mesma data, 26% por crimes relacionados à Lei de
Drogas e 37% crimes contra o patrimônio (INFOPEN, 2017).
Sobre o trabalho penal, tema central do presente artigo, os dados mais
recentes apontam que 15% das pessoas presas no país, ou seja, 95.919,6 estavam
alocadas em alguma atividade laboral, sendo 87% no interior das unidades
prisionais, seja prestando serviço a empresas, seja em atividades de apoio,
como cozinha, lavanderia, faxina, manutenção ou serviços administrativos.
Embora o trabalho penal atinja percentualmente poucos indivíduos presos,
se considerarmos o crescimento exponencial da população prisional no país
nas últimas décadas, vemos que essa é uma forma de superexploração da força
de trabalho potencialmente relevante em tempos de crise.
A análise aqui apresentada resulta do esforço de compreensão sobre o
tema, empreendido através de pesquisa em três unidades femininas de Cen-
tros de Ressocialização (CRF) no Estado de São Paulo, em que, durante o
cumprimento (ou a espera) de sentença em regime fechado de mulheres,
empresas instalam pequenas unidades de produção e contratam essas presas
para a execução de diferentes tarefas.7
O enfoque nas unidades femininas se deu por entendermos que o
aumento exponencial de mulheres presas por crimes relacionados à Lei de
Drogas, além das consequências individuais, como o afrouxamento ou mesmo
o rompimento dos vínculos familiares, acarreta graves problemas sociais, dentre
os quais o empobrecimento da mulher e seus filhos após a prisão, uma vez
que grande parte das mulheres presas eram as únicas provedoras financeiras
da família; e a situação de vulnerabilidade a qual essas famílias são expostas.
Neste artigo, nos interessa discutir quais são os principais aspectos das
atividades de trabalho realizadas no interior das unidades prisionais analisa-
das; como o ideário vigente a respeito do mundo do trabalho é visto e em
que medida é incorporado pelos sujeitos que compõem esse complexo, com
enfoque na perspectiva das mulheres entrevistadas.

2. Crise estrutural e mudanças


no mundo do trabalho
A ativação dos limites absolutos do sistema do capital significa que cada
vez mais, e em escala constante, teremos que lidar com as implicações catastró-
6
Em dezembro de 2014, 115.794 pessoas presas estavam alocadas em postos de trabalho, o
que correspondia a 20% da população prisional do país (INFOPEN, 2015a). Em comparação
com junho de 2016, vemos um corte de quase 20 mil vagas de trabalho.
7
Ao todo, foram realizadas 65 entrevistas, sendo 61 analisadas na tese: 44 mulheres presas, duas
diretoras e um funcionário das unidades, 12 representantes das empresas que contratam essa
força de trabalho, uma representante da FUNAP e uma da Pastoral Carcerária. O Estado
de São Paulo foi escolhido por ser responsável pelo maior número de encarceramentos,
representando 33% do total nacional (INFOPEN, 2017).

149
ficas de um sistema em que prevalece o domínio do capital sobre o trabalho,
da riqueza sobre a sociedade, do valor de troca sobre o valor de uso; de modo
que “afeta a totalidade de um complexo social em todas as relações com suas
partes constituintes” (MÉSZÁROS, 2010, p.69-71, destaque do original).
Essa nova fase é marcada pela transnacionalização8 e financeirização da
economia, que rearticulam as formas de acumulação do capital.
Não obstante seu caráter global, as intensas transformações sociais,
econômicas, políticas e ideológicas advindas do processo de crise estrutural
ecoam fortemente, principalmente no ideário, na subjetividade e nos valores
que constituem a classe trabalhadora atual, ou a classe-que-vive-do-trabalho,
conforme conceituação de Antunes (2007), uma vez que é sobre essa classe
que recaem aquelas que consideramos suas consequências imediatamente mais
desastrosas: o desemprego crônico, com a eliminação de uma infinidade de
postos de trabalho e o desemprego estrutural, isto é, a inserção no mundo do
trabalho de forma cada vez mais precária. Entretanto, todo indivíduo continua
sendo essencial para a esfera do consumo.
A transnacionalização da economia opera modificações na divisão in-
ternacional do trabalho, com a fragmentação da cadeia produtiva em diversos
espaços do globo, sendo os países da periferia do capitalismo o locus privile-
giado da concorrência em busca de menores custos de produção. Conforme
analisa Pochmann (2012, p.29), esse movimento imprime às corporações
transnacionais a “[...] capacidade de considerar o mundo inteiro como espa-
ço relevante para suas decisões de investimento e produção, provocando, por
consequência a reorganização do processo produtivo em grandes extensões
territoriais [...]”, propiciado por uma nova revolução tecnológica e pela im-
plantação da produção nos moldes toyotistas, que servem aos propósitos do
sistema capitalista no contexto de crise estrutural.
Com o esgotamento do modelo de crescimento do período anterior e
a implosão do Welfare State, a reestruturação produtiva é um dos principais
processos empreendidos pelo capitalismo nesse contexto, tendo como mote
a chamada “acumulação flexível”,9 cujos principais elementos são, de modo

8
Conforme a caracterização de Alan Bihr (2010, p.109, destaque do original), a transnacio-
nalização da economia ocorre num sentido duplo “[...] seus movimentos constitutivos ao
mesmo tempo atravessam as diferentes economias nacionais, prejudicando sua coerência
e autonomia, e ultrapassam-nas, ao procurarem emancipar-se dos limites do Estado-nação,
sem, entretanto consegui-lo totalmente”.
9
Conforme a caracterização de David Harvey (2005, p.140-141), para o qual a acumulação
flexível “[...] se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, nos mercados de trabalho,
dos produtos e dos padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores da
produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros,
novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecno-
lógica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do

150
sintético: produção vinculada à demanda; variada, heterogênea e diversificada;
fundamentada no trabalho em equipe, com funções multivariadas e flexíveis;
e com o melhor aproveitamento do tempo, acarretando uma intensificação
da exploração do trabalho10 (ANTUNES, 2007).
Em linhas gerais, a reestruturação produtiva modifica a organização do
trabalho e traz significativas alterações em suas relações, através da precari-
zação, pautada principalmente na desregulamentação; na flexibilização do
trabalho e do trabalhador; na terceirização;11 na feminização; no trabalho em
tempo parcial; informal; temporário, conformando o que Mészáros (2011)
compreende como formas de desemprego estrutural.
É importante ressaltar que o desemprego estrutural, longe de significar
um processo de estagnação do capitalismo, está centrado na criação de vagas de
empregos cada vez mais precarizadas e também na ampliação dos “ramos ilegais”,
como o tráfico de drogas.Além disso, destaca-se que, diferentemente dos países
centrais, a expansão do mundo do trabalho se dá nos países da América Latina
por um acentuado processo de superexploração, que articula essencialmente
“[...] salários degradados, jornadas de trabalho extenuantes e extrema intensidade
nos ritmos e tempos de trabalho” (ANTUNES, 2011, p.32).
Nesse sentido, ante a necessidade do aumento da taxa de exploração
pelas empresas capitalistas, as unidades prisionais também parecem se confi-
gurar como locus de concorrência, uma vez que a própria legislação garante
a precariedade dos contratos de trabalho.12 Sem desconsiderar a diferença
entre as corporações transnacionais e as empresas que transferem parte de seu
processo produtivo para as unidades prisionais focalizadas,13 entendemos que

desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por
exemplo, um vasto movimento de emprego no chamado ‘setor de serviços’, bem como
conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas”. Assim,
“Esses poderes aumentados de flexibilidade e mobilidade permitem que os empregadores
exerçam pressões mais fortes de controle do trabalho sobre uma força de trabalho de qualquer
maneira enfraquecida [...]. A acumulação flexível parece implicar níveis relativamente altos
de desemprego ‘estrutural’ (em oposição a ‘friccional’), rápida destruição e reconstrução de
habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais e o retrocesso do poder sindical
– uma das colunas políticas do regime fordista”.
10
Sobre a intensificação do trabalho ver Dal Rosso (2008).
11
A aprovação da lei nº 13.429 de 31 de março de 2017 (Brasil, 2017), contribui para agravar
ainda mais tal situação ao permitir a terceirização das atividades-fim. Sobre os diversos
aspectos da terceirização na atualidade ver Druck; Franco (Orgs.) (2007).
12
No Brasil, é a Lei de Execução Penal (LEP), Lei n. 7210 de 11 de julho de 1984, que
regulamenta o trabalho no interior das penitenciárias, considerando as recomendações
internacionais na elaboração dos artigos sobre essas atividades (Brasil, 1984a; 2003; 2010;
2011). Os principais artigos que dispõem sobre o trabalho penal são: 28, 29, 31 a 34, 41,
126 e 127.
13
Das quais, dentre as empresas analisadas na pesquisa, somente uma é de grande porte, com
alcance internacional.

151
a utilização do trabalho penal pode ser analisada na mesma direção, tendo em
vista que diminui consideravelmente os custos da produção, principalmente
pela compressão dos salários e pela liberação quanto aos encargos trabalhis-
tas, sendo exercido no mesmo espaço da esfera reprodutiva, afora poder ser
remanejado ou interrompido, caso a empresa julgue melhor.
Além disso, o trabalho penal atende a uma das modalidades mais atin-
gidas pela precarização do trabalho decorrentes da divisão internacional do
trabalho hodierna, a montagem dos produtos, tarefa destinada principalmente
à força de trabalho feminina, ideologicamente justificada pelos atributos
específicos das mulheres como a delicadeza, o “tato feminino”, e pela maior
facilidade no trato com as mulheres, conforme apontaram os representantes
das empresas entrevistados.
Em nosso entendimento, o trabalho penal responde ainda, na atualidade,
a outro elemento característico do momento atual, citado por Pochmann
(2012): a terceirização de atividades de apoio à produção e que não necessa-
riamente demandam trabalhadores qualificados.14 O caso de uma das empresas
analisadas exemplifica essa questão: dentre os produtos vendidos, a indústria
mecânica fornece grampos para cabo de aço, mas segundo o representante
entrevistado, os grampos pequenos não são produzidos pela referida empresa,
são comprados de outra empresa e montados pelas mulheres presas em um
dos CRF estudados.
O aumento exponencial do desemprego também se configura enquanto
componente essencial para entendermos esse momento de crise estrutural e
seus desdobramentos. Conforme apontam, dentre outros, Antunes (2007) e
Pochmann (2012), os índices de desemprego vêm sendo suavizados, pois as
formas mais precarizadas de emprego, resultantes da desregulamentação das
condições de trabalho e do processo de flexibilização que ampliam intensa-
mente os trabalhos em tempo parcial e temporários, não são contabilizadas
nos dados oficiais.15 Assim, perante as estatísticas, esses trabalhadores do de-
semprego estrutural são considerados empregados, embora possam ficar sem
emprego de um dia para o outro. Da mesma forma, o crescente contingente
que superlota as instituições penais não compõe os índices de desemprego.16
Como o desenvolvimento do modo de produção capitalista não se dá
de maneira homogênea, as consequências desse processo também têm con-

14
Entendemos que esses elementos fazem parte do que Harvey (2004) caracteriza como
“acumulação por espoliação” estruturante do modo de produção capitalista. Para o autor
(2004, p.124) “O que a acumulação por espoliação faz é liberar um conjunto de ativos
(incluindo a força de trabalho) a custo muito baixo (e, em alguns casos, zero)”, como é o
caso da permissão estatal para a superexploração do trabalho penal.
15
Para uma discussão mais detalhada, ver Pochmann (2012, especialmente p.100-110).
16
Segundo apontam Zackseki (2002); Jinkings (2013).

152
tornos distintos. Assim, os níveis de desemprego e de desigualdade salarial se
apresentam de forma diferente, tanto entre as nações do centro e da periferia
quanto dentro de cada país.
Desse modo, para combater a ideologia de que as políticas sociais do
Welfare State eram responsáveis pela manutenção do desemprego devido
à garantia de renda por meio dos auxílios sociais, a adoção do receituário
neoliberal opera a desregulamentação e a chamada flexibilização das leis tra-
balhistas, transformando em regra a precarização das condições de trabalho,
o que oprime ainda mais a classe-que-vive-do-trabalho.
Tais medidas, além de serem ineficazes no combate ao desemprego,
configuram o retrocesso permanente no que se refere aos direitos histo-
ricamente conquistados pela classe trabalhadora e aos direitos humanos,17
afora a crescente criminalização – tanto dos movimentos sociais quanto dos
indivíduos, principalmente os pobres – através do endurecimento penal e do
encarceramento em massa.
Embora o discurso oficial dos apologetas do neoliberalismo aponte be-
nesses na implementação dessas políticas em termos globais, concretamente
os resultados são catastróficos do ponto de vista social, mostrando claramente
que a não intervenção do Estado ocorre somente na esfera das responsabi-
lidades sociais.
Balizando os aspectos materiais e simbólicos do desmonte das políticas de
bem-estar com o advento do neoliberalismo,Wacquant (2007) analisa que esse
movimento pode ser entendido como uma pujante intervenção na economia
uma vez que remodela a individualidade da classe trabalhadora, deslocando
o eixo de cidadãos portadores de direitos sociais a trabalhadores flexíveis,
responsáveis pelo seu próprio sucesso ou fracasso no mundo do trabalho;
(re)sacraliza o trabalho, tornando-o uma obrigação moral pela ideologia de
que todo emprego é um bom emprego; impele os pobres para os postos de
trabalho mais desqualificados e sub-remunerados, contribuindo para docilizar
os trabalhadores e minar possibilidades de organização e resistência coletiva.18
Prova disso é que sob a vigência do neoliberalismo, os mecanismos de
controle social se acirram, no intento de tornar a violência estrutural, na qual
se funda o modo de produção capitalista e a violência criminal decorrente
dela, sinônimas, marcando a transformação do Estado Social em Estado
Penal. Nesse processo, há concentração de monumentais esforços estatais na
elaboração e aplicação de políticas de controle social e repressão, em que o

17
Que no caso das pessoas privadas de liberdade é a regra e não a exceção.
18
Autores como Bihr (2010); Bernardo (2009); Oliveira (2004) dentre outros analisam as
consequências da reestruturação produtiva para a organização e resistência coletiva dos
trabalhadores.

153
encarceramento em massa é emblemático, permitindo inclusive a extração de
lucros de várias formas, como, por exemplo, com a terceirização de diversos
serviços vinculados aos sistemas prisionais, às propostas de privatização de
unidades prisionais inteiras e também com a superexploração do trabalho penal.
Considerando o contexto do desemprego estrutural, concordamos com
Wacquant (2001, p.43) quando ele diz que no momento em que impera a
desregulamentação do trabalho formal, os empregos mais degradantes não
podem esperar a boa vontade e a iniciativa dos trabalhadores. As condições
desses postos são tão precárias que eles passam a ser destinados justamente à
população que tem menores chances de buscar vagas em condições melhores,
dando origem nos EUA ao que o autor chama de Workfare, que, em linhas
gerais, institui naquele país o “[...] trabalho assalariado forçado, em condições
que ferem o direito social e o direito trabalhista para as pessoas ‘dependentes’
das ajudas do Estado [...]” e que atinge sobretudo as mulheres, principais
titulares dos auxílios sociais.19
No Brasil, embora esse processo ainda não aconteça de fato,20 podemos
pensar de forma mais atenta em que medida o cumprimento da pena de prisão
em um local com condições menos indignas, condicionado à obrigatoriedade
da aceitação de um dos postos de trabalho oferecidos, como é o caso dos
CR, se assemelha ao mecanismo acima descrito. Não é à toa que segundo
Wacquant (2007), com o processo de reestruturação produtiva, já em meados
da década de 1990, o primeiro empregador nos EUA é uma multinacional
do trabalho precário.21
Se a década de 1970 marca o início do processo de reestruturação pro-
dutiva nos países centrais, esse momento histórico é significativo também pela

19
Muitas vezes mulheres que têm seus companheiros atrás das grades. O Workfare se destina
também à população que cumpre algum tipo de pena fora da prisão, como os que estão
em liberdade condicional.
20
Embora não aconteça, já há um projeto de lei sobre o tema: projeto de lei nº 2105/2015, da
Deputada Federal Geovânia de Sá (PSDB/SC); ver Massaro (2015). Além disso, uma medida
chama a atenção: o governo federal alterou a lei que rege o seguro desemprego. Uma das
principais mudanças é a obrigatoriedade de matrícula em um curso de capacitação gratuito,
para que os trabalhadores que solicitem o auxílio pela terceira vez em 10 anos possam ter
direito ao seguro desemprego. Nesse sentido, concordamos com Wacquant (2007) que uma
das maneiras de inculcar toda essa gama de aspectos ideológicos necessários ao trabalhador
no contexto da chamada “acumulação flexível” é o oferecimento de cursos e oficinas de
empreendedorismo, além de atividades que estimulem e preparem o profissional para o
desenvolvimento das habilidades e competências necessárias ao mundo atual, tanto para os
cidadãos vinculados a algum tipo de auxílio social, como àqueles que estão encarcerados,
que embora sejam vazios de conteúdo aproveitável, servem para disciplinar e inculcar a
individualização das responsabilidades. Essas atividades são recorrentes nas unidades prisionais,
como vimos nas entrevistas, inclusive por demanda dos próprios presos.
21
A Manpower Incorporated (Wacquant, 2007, p.105-106).

154
luta das mulheres contra a opressão de gênero, tanto no espaço doméstico
quanto na esfera do trabalho.22
As lutas feministas conquistaram uma gama de direitos que permitiram
maior inserção das mulheres no mundo do trabalho assalariado. Entretanto,
essa abertura se deu com a maior precarização da força de trabalho como
um todo, já que vem sendo inserida principalmente nos empregos do
setor de serviços, terceirizados, em tempo parcial, temporários, informais
e/ou aqueles realizados em domicílio; e mesmo quando pertencentes ao
setor produtivo são permeados por distinções, como nos postos e nos sa-
lários, reforçando a diferenciação na divisão sexual do trabalho, fator que
se agrava ainda mais quando inserida a questão racial (HIRATA, 2012;
NOGUEIRA, 2004).
Pensando nas intersecções entre a chamada acumulação flexível e a fe-
minização do trabalho, Nogueira (2004) aponta que essa lógica se relaciona
ao aumento do emprego para as mulheres, uma vez que muitos trabalhos pre-
carizados são realizados em período parcial, possibilitando à mulher trabalhar
enquanto os filhos estão na escola. Isso se repete quando o trabalho ocorre
no espaço doméstico, intensificando a exploração pelo caráter duplicado do
trabalho feminino, isto é, o cumprimento da dupla jornada – dentro e fora
de casa, ou dentro e fora da fábrica.23
Tal contexto permite apontar a razão da afirmação de Mészáros (2010,
p.83) de que

O capital ajuda a liberar as mulheres para melhor poder explorá-


-las como membros de uma força de trabalho muito mais variada
e convenientemente ‘flexível’. Ao mesmo tempo precisa manter a
sua subordinação social em outro plano – para a reprodução sem
problemas da força de trabalho e a perpetuação da estrutura familiar
predominante –, a fim de salvaguardar sua própria dominação como
senhor absoluto do próprio sociometabolismo.

Conforme sinaliza Nogueira (2004), a reestruturação produtiva na


América Latina acentua a desigualdade de gênero na esfera produtiva e, ainda
que haja tendências favoráveis (diminuição da diferença de participação entre
homens e mulheres, inclusive no trabalho informal; leve diminuição da dife-
rença salarial que permanece alta), perduram fortes tendências desfavoráveis

22
Luta essa que na atualidade adquire contornos de uma verdadeira batalha, contra a ofen-
siva conservadora que pretende proibir qualquer discussão acerca de gênero na educação
brasileira, capitaneada pelo movimento Escola Sem Partido.
23
Especificamente sobre o trabalho produtivo mesclado ao espaço doméstico, duas mulheres
entrevistadas afirmaram ter trabalhado em casa produzindo para a indústria de calçados.
Sobre o processo de reestruturação produtiva no setor calçadista ver Navarro (2004, 2006).

155
às mulheres (aumento da taxa de desemprego; aumento da participação em
trabalhos informais; aumento do número de trabalhadoras sem proteção social).
Nesse sentido, concordamos com a assertiva de Antunes (2007, p.109,
destaque do original) de que a entrada das mulheres na esfera produtiva,
embora reconhecidamente um avanço no sentido histórico, faz parte

[...] do processo de emancipação parcial das mulheres, tanto em relação


à sociedade de classes quanto às inúmeras formas de opressão masculina,
que se fundamentam na tradicional divisão social e sexual do trabalho.
Mas – e isso tem sido central – o capital incorpora o trabalho feminino
de modo desigual e diferenciado em sua divisão social e sexual do trabalho.

Assim, embora se reconheça que as políticas neoliberais e o processo de


reestruturação produtiva acarretaram uma piora na situação da classe trabalha-
dora como um todo, concordamos com Nogueira (2004) que “a precarização
tem sexo” e esse elemento é possível devido principalmente à legitimação
social de que cabe à mulher conciliar a vida familiar e a profissional.
É importante ressaltar que a perpetuação da mulher como responsável
pela esfera doméstica não é neutra; e se faz fundamental para a manutenção
das relações de poder basilares do sistema do capital. De modo que a dupli-
cidade do trabalho feminino é parte de um movimento de dupla exploração
pelo capital, pela extração de mais-valia no trabalho produtivo e utilização do
tempo gratuito despendido no trabalho doméstico, a partir do qual a mulher
possibilita sua própria reprodução, de seu marido e filhos, trabalhando, por-
tanto, para a reprodução do capital.
Para tanto, homens e mulheres são criados para ocupar papéis distintos na
esfera reprodutiva, aos homens cabendo as posições de mando e dominação,
ao passo que às mulheres, cabe obediência. É por esse viés que buscamos com-
preender o crescente número de mulheres presas por crimes relacionados ao
tráfico de entorpecentes atualmente, conforme apontamos no início do artigo.
Vemos, portanto, que, no momento de crise estrutural do capital, às mu-
lheres cabem obstáculos ainda maiores na árdua tarefa em que a sobrevivência
se transforma. As que permanecem em liberdade, muitas vezes sozinhas ou
com os companheiros presos, têm que enfrentar dupla ou tripla jornada de
trabalho: nos empregos parciais, mal remunerados, informais, precários e em
casa, no cuidado dos filhos e do lar. Para elas a assistência social é feita em
tom de favor, como se não houvesse direitos sociais; e os que ainda resistem
são cada vez mais precários, além da burocracia para consegui-los. Àquelas
que recorrem à delinquência e à criminalidade, ou que são inseridas pelas
escolhas afetivas e são presas, ao optarem por cumprir a pena em uma unidade
prisional, com condições menos nefastas de sobrevivência, resta ocupar um
posto de trabalho assalariado forçado, superexplorado.

156
Analisando a situação da classe trabalhadora no contexto da crise estru-
tural, Alan Bihr (2010, destaque do original) distingue a fragmentação dessa
classe em três grandes conjuntos: os trabalhadores estáveis; aqueles que são
excluídos da esfera do trabalho por longa duração ou mesmo para sempre e,
entre esses dois grupos, o que caracteriza como “massa flutuante de trabalha-
dores instáveis”, formada por um leque de situações como: trabalhadores por
subcontratação ou encomenda; em tempo parcial; temporários; estagiários e
os da “economia subterrânea”, ou seja, os que trabalham de forma clandestina.
Essa gama de relações de trabalho corresponde à reação do modo de
produção capitalista para buscar sair da crise hodierna pela tentativa de ul-
trapassar os limites do fordismo, introduzindo novas formas de exploração
do trabalho através da instauração do que Bihr (2010, destaque do original)
denomina “nova ordem produtiva”, isto é, da reestruturação dos moldes pro-
dutivos experimentada de três formas: na fábrica difusa, que espalha a produção
pelo espaço social, contribuindo para aumentar os contratos terceirizados e
o trabalho por encomenda; na fábrica fluida, que busca produzir sem tempo
morto nem interrupções, através da automação da produção e da intensi-
ficação do trabalho organizado por equipes em que cada membro é capaz
de intervir de diferentes formas ao mesmo tempo; e na fábrica flexível que
ajusta sua capacidade produtiva à demanda que pode variar tanto em volume
quanto em composição, rompendo com a rigidez da produção fordista através
de trabalhadores flexíveis, capazes de trabalhar em diferentes postos e com
diferentes materiais; e também à flexibilização das relações de trabalho e dos
salários, resultando na “[...] abolição dos limites mínimos de salário [...]” (p. 92).
Nuances dessas diversas formas estão presentes nas atividades de
trabalho oferecidas nas unidades prisionais analisadas, dando ao tema em
questão contornos de maior complexidade em suas funções e sentidos,
como veremos a seguir.

3. Funções e sentidos do trabalho penal


no atual contexto brasileiro
Assim como nos países do centro do capitalismo, o Brasil também
constrói, reforma e reelabora suas políticas de controle social no compasso
das demandas do modo de produção capitalista; não apenas no que se refere
à adoção do encarceramento em massa como resposta às consequências mais
nefastas do processo de crise estrutural sobre a população mais pobre, mas
também na readequação da exploração da força de trabalho do contingente
em privação de liberdade.
Todavia, cabe a questão: se em outros momentos históricos o trabalho no
cárcere foi empregado para suprir a necessidade de força de trabalho, controlar

157
os salários mantendo as condições de vida da classe trabalhadora no patamar
mínimo para a reprodução da força de trabalho, sendo a privação da liberdade
utilizada como punição nos períodos de saturação do mercado de trabalho,24
para que serve a exploração da força de trabalho contida atrás das grades no
momento atual, se o desemprego atinge grande parcela da classe trabalhadora?
Buscando respostas a essa indagação, avaliamos ser relevante compreen-
der qual a importância que o trabalho tem para as mulheres presas ouvidas,
abordando esse tema durante as entrevistas – nas quais ficou nítida a separação
que fazem entre a vida dentro e fora da prisão, falando em separado sobre
o trabalho durante a privação de liberdade e o trabalho fora das grades. Um
elemento recorrente foi a distinção entre os frutos advindos do trabalho e
os ganhos provenientes das atividades ilícitas, ressaltando o maior valor do
“dinheiro conquistado pelo suor do trabalho”.
Para entendermos essa questão, destacaremos os principais elementos
concernentes à oferta de trabalho nas unidades prisionais analisadas, como
os tipos de trabalho realizados, os valores pagos pelas empresas, o significado
que essas atividades adquirem durante a privação da liberdade e os sentidos
que essas atividades podem ter ao término do cumprimento da pena, ou da
absolvição – no caso das presas em caráter provisório.
Os trabalhos ofertados pelas empresas no interior das unidades prisio-
nais são essencialmente precários, manuais, simples, repetitivos, monótonos,
cansativos e, embora sejam considerados como um novo aprendizado pelas
mulheres entrevistadas, não qualificam essas presas-trabalhadoras para as de-
mandas do mundo do trabalho fora dos muros.25
Em relação aos tipos de trabalho realizados, um aspecto chama a atenção:
os empresários justificaram a escolha pelas unidades femininas principalmente
por enaltecerem as “qualidades” das mulheres, como a “delicadeza”, a “habilidade
com trabalhos manuais”, dentre outros, todas elas permeadas de argumentos
que reforçam a divisão sexual do trabalho, inclusive por critérios biologizantes.
Dois padrões foram observados nas 14 empresas existentes26 nas unidades
analisadas: o envio de 100% de algumas atividades específicas de sua produção

24
Ver, dentre outros, Guimarães (2007); Melossi; Pavarini (2010); Rusche; Kirchheimer (2008).
25
As atividades realizadas nas unidades analisadas são: embalagem de grelhas e conexões de
PVC; embalagem de fio terra para fogão e refrigerador; montagem e embalagem de grampos
para cabo de aço; colagem de rótulos em embalagens de cosméticos; corte e acabamento
em peças de borracha técnica; montagem de sacolas de lojas; acabamento e embalagem de
meias infantis; acabamento em palitos de madeira para churrasco; cravejamento e acaba-
mento de anéis e alianças; colocação de argolas para linha em varas de pesca; acabamento e
embalagem de fitas e cachepôs decorativos; montagem de cigarros de palha; montagem de
bandeirinhas de festa junina; confecção de rede para colocar capacete na garupa da moto.
26
A pesquisa de campo foi realizada entre outubro de 2012 e dezembro de 2013.

158
para execução nas unidades prisionais27, o que impede a comparação entre as
condições e os equipamentos de trabalho na fábrica e no CRF; ter dentro da
fábrica setores que realizam os mesmos trabalhos que os enviados às prisões;
em sua maioria28 em condições e com equipamentos similares.
No que se refere à organização do trabalho, dois formatos são utilizados:
por equipe de produção ou por produção individual; em ambos os casos, com
uma meta estabelecida, com exceção de uma empresa que pagava um valor
fixo diário às presas contratadas.
Conforme descreve uma reeducanda29: “Então, agora nós estamos traba-
lhando com ralo, mas, a gente trabalha com os canos também. A gente etiqueta e sela
para mandar para a firma, faz embalagem. [...] Nós trabalhamos bem. É uma equipe.
A equipe da gente é maravilhosa, porque a gente brinca, dá risada, trabalha junto, tipo
assim, o mais difícil é porque a gente está presa, né? Fora isso, a gente convive muito
bem aqui com as meninas, mesma coisa que fosse uma família.Tem uma menina que
é encarregada. Ela ajuda, também, ela explica. Eu aprendi com elas, como etiquetar,
como embalar, tudo. Ela explica, e depois a gente trabalha tudo junto. [...] Cada uma
faz uma coisa, e na hora de embalar... Daí a gente embala tudo junto, uma equipe”.30
A partir do trecho destacado, percebemos como o ideário da empresa e
do profissional flexível é levado pela contratante à unidade prisional. As tarefas
enviadas dependem da demanda das empresas, podendo variar em maior ou
menor diversidade. O trabalho é organizado por equipe de produção, descrita
como uma família que se integra harmonicamente, coordenado e supervi-
sionado por uma encarregada, que também ensina as tarefas às novatas. Além
disso, descreve a divisão do trabalho da equipe conforme a necessidade da
produção: selar, etiquetar e embalar.31
Para outra entrevistada: “Bom, o meu caso eu faço cravação, que é cravar as
pedrinhas nos anéis, e faço quebra de canto, que é um tipo de lixa que deixa o anel
abaulado. [...] O serviço geralmente é coletivo, né? Existe as meninas que fazem o
motor, lixa, as que fazem só cravação, existe as que só revisam, que revisionam o ser-
viço que a gente fez, tem a que fecha, que embala. Quando tem que embalar vai todo

27
Em um caso específico, havia a divisão entre trabalho domiciliar e penal.
28
Com exceção de duas empresas que possuem máquinas mais modernas na fábrica.
29
Reeducanda é a designação dada às mulheres presas nas unidades dos CRF.
30
Reeducanda nº3.
31
Análises a respeito das diferentes configurações do trabalho em equipe de produção podem
ser encontradas, dentre outros, nos estudos de Hirata (2012), Bernardo (2009), Navarro
(2006), Oliveira (2004), além das importantes publicações organizadas por Antunes; Silva
(2004), Antunes (2006, 2013) e Sant’Ana, et. al. (2010) que focalizam a complexidade, a
heterogeneidade e as consequências do processo de reestruturação produtiva em diferen-
tes ramos de produção no Brasil. A obra de Hirata (2012) tem por foco divisão sexual do
trabalho no capitalismo contemporâneo.

159
mundo junto. A gente trabalha realmente numa equipe. [...] cada uma ganha pelo fato
da sua produção. Porque também não seria justo, tem muitas que não vão trabalhar,
tem umas que fazem menos, tem umas que fazem mais, né? Também não seria justo
dividir igualmente para quem não trabalha, né?, para quem não se esforça para ganhar
seu pagamento, seu salário”.32
A partir do relato acima, vemos que dentro da mesma empresa há, por
um lado, a ideia de trabalho em equipe, na qual, mesmo com a divisão de
tarefas, todas as contratadas conhecem e realizam as diferentes etapas dessa
parte da produção quando necessário e, por outro, a fragmentação da equipe
pela remuneração por produção individual justificada pelo fato de que umas
se dedicam mais que outras ao trabalho.
É importante ressaltar que a diversidade de empresas que alocam força
de trabalho nas prisões reflete diferentes formas de organização do trabalho
no interior das unidades prisionais, mais ou menos vinculadas aos aspectos
da reestruturação produtiva, à medida que as empresas-sede tenham ou não
passado por esse processo, em maior ou menor grau.
Além disso, concordamos com a constatação de Antunes (2007, p.125,
destaque do original) de que se pode presenciar “[...] particularmente no
universo do trabalho terceirizado e precarizado, uma enorme expansão de atividades
laborativas manuais em inúmeros setores [...]”. Entendemos que essas atividades
são privilegiadas pelas empresas para serem excutadas no interior das unidades
prisionais, pois, devido à forma precária de realização, elas demandam pou-
ca qualificação, pouco investimento em infraestrutura e possibilitam maior
compressão dos salários.
A supervisão do trabalho é feita de três maneiras: na sede da empresa,
sendo a produção devolvida para a unidade prisional para reparos em caso de
problemas; através de funcionários da empresa que cumprem sua jornada de
trabalho no interior da unidade prisional; pelas próprias presas-trabalhadoras
que ocupam o cargo de “coordenadoras”. Nesses casos, a empresa fornece
um pequeno treinamento para possibilitar que as contratadas possam resolver
problemas vinculados à produção.
Segundo relato de uma reeducanda que ocupa a posição de coordenação:
“Eu sou a coordenadora, eu faço a chamada, eu tenho que cuidar das tesouras, das
coisas que não podem ficar com as presas. E... eu não posso faltar, né?, e eu que ensino
as meninas novas que vão chegando, vou ensinando a fazer as redinhas. Isso daí é
uma responsabilidade, porque é difícil. [...] Então, é, tipo assim, tem meninas que não
gostam, né?, de trabalhar. Aí eu enfrento, escuto, tem que engolir, porque coordenadora
tem que aguentar, porque senão, já pensou se eu fosse explosiva?”.33

32
Reeducanda nº 46.
33
Reeducanda nº 34.

160
No fragmento destacado, é possível perceber a incorporação do ideário
do controle dos trabalhadores por eles próprios, revelado na fala da entrevistada
que exerce a função de coordenadora da oficina de trabalho. Ela afirma ter
que cuidar dos itens que não podem “ficar com as presas”, não se incluindo
no grupo de presas; demonstra ter introjetado a responsabilidade da função
a ponto de não poder se ausentar, além de ter que ensinar o ofício às ini-
ciantes. A entrevistada também destaca o que para ela é a parte mais difícil
em ser coordenadora: ter que lidar de forma profissional com as desavenças
e conflitos com as demais trabalhadoras alocadas na mesma empresa, tendo
que “engolir e aguentar”.
Em relação às unidades dos CRF analisadas, percebemos diversos tra-
ços elencados por Bihr (2010), começando por se tratar de empregos que
correspondem às alocações destinadas à chamada “massa flutuante”, prin-
cipalmente por se referir à subcontratação e às atividades por encomenda,
uma vez que as empresas levam trabalho para as mulheres presas conforme a
demanda de volume e produto da empresa. Além disso, verificamos a mescla
de diferentes formatos de organização do trabalho nas oficinas montadas
nas unidades analisadas.
Em primeiro lugar, observamos o elemento característico da “fábrica
difusa”, considerando as oficinas instaladas nas instituições prisionais como
uma parte da empresa que foi deslocada. Também existem componentes
da “fábrica fluida” nas empresas que organizam as presas-trabalhadoras em
equipes de trabalho e, além da diversificação da produção por demanda de
volume e composição em algumas empresas, levando às presas quantidades
e produtos variáveis.
Nesse sentido, embora os trabalhos oferecidos às mulheres presas entre-
vistadas não correspondam às características da automação da produção, uma
vez que para as unidades prisionais os equipamentos – quando são levados
– são simples e muitas vezes já obsoletos, encontramos diversos elementos
que os caracterizam enquanto parte da organização da produção e do traba-
lho decorrente do processo de reestruturação produtiva, confirmando que a
oferta de trabalho penal continua acompanhando as necessidades do modo
de produção capitalista.
Para compreendermos de maneira aprofundada os sentidos que o tra-
balho penal adquire no contexto atual, é importante destacarmos algumas
reflexões sobre as formas de remuneração aplicadas, bem como dos interesses
e vantagens advindos dessas atividades.
Sobre a remuneração, percebemos que há grande discrepância entre a
letra da lei e a prática no interior das unidades prisionais, a começar pelo
fato de que há diversas empresas que firmam parcerias sem a interlocução

161
da FUNAP,34 diretamente com a unidade prisional.35 E são justamente essas
empresas as que mais descumprem a LEP no que tange à remuneração. Além
disso, em mais de uma empresa, o pagamento da remuneração prevista na lei,
ou seja, 3/4 do salário mínimo vigente,36 está condicionado ao alcance da
meta estabelecida. Em caso de não cumprimento, o pagamento é realizado por
uma forma a qual Marx (1985) dedicou um capítulo exclusivo:“O salário por
peça”, para quem essa se configura como a forma de salário mais adequada
ao modo de produção capitalista.37
Considerando as diferenças do processo produtivo hoje e no momento
em que Marx escreveu, entendemos que com o salário por peça, embora
seja “[...] apenas uma forma modificada do salário por tempo”, “[...] é natu-
ralmente de interesse pessoal do trabalhador aplicar sua força de trabalho o
mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista elevar o grau normal
de intensidade”.38 (MARX, 1985, p.142-143)
Segundo apontaram as presas entrevistadas, nessa modalidade de salário,
a quantia recebida chega a ser ínfima, considerando tanto o valor do salário
mínimo vigente quanto as necessidades básicas de cada presa. Algumas mu-
lheres relataram receber R$ 50,00 ao final do mês.
Ademais, o salário por peça traz a diferenciação da remuneração con-
forme as características individuais dos trabalhadores, como habilidade, força,
dentre outras que, se para o capitalista não decorrem em grandes mudanças,
pois tais disparidades são compensadas pelo conjunto dos trabalhadores, in-
dividualmente a quantia recebida faz muita diferença para a sobrevivência.
O autor adverte ainda que se por um lado essa forma de salário dá ao
trabalhador a sensação de liberdade em produzir o quanto quiser, por outro
lado aumenta a concorrência entre eles, inclusive colocando-os uns contra os
outros. Essa questão é bem visível quando a produção é organizada em equipe.
34
Criada em 1976 e atualmente vinculada à Secretaria da Administração Penitenciária de
São Paulo (SAP), a FUNAP – Fundação “Professor Dr. Manoel Pedro Pimentel” – é a a
instância oficial de interlocução da alocação de força de trabalho dos presos e de outras
atividades no Estado de São Paulo, que planeja, desenvolve e avalia os programas de formação
profissional, emprego e renda, educação, lazer, esporte e cultura para os presos e egressos
das unidades prisionais estaduais.
35
Das 14 empresas que alocavam força de trabalho presa no momento da pesquisa, apenas
seis tinham contrato mediado pela FUNAP.
36
Todos os contratos mediados pela FUNAP, aos quais tivemos acesso, têm como referência
o salário mínimo vigente no ano de 2012, R$622,00.
37
Em relação às empresas analisadas, a remuneração variou entre R$0,00426 e R$0,18 a
peça, sendo a meta dúzias, milheiros ou unidades, dependendo da empresa e do produto.
A única exceção foi a empresa de borracha técnica que pagava R$15,00/dia de trabalho,
independente da produção e da meta.
38
O outro elemento do salário por peça é o prolongamento da jornada de trabalho por
interesse pessoal do próprio trabalhador, o que é proibido para os presos-trabalhadores.

162
Em relação aos principais interesses das empresas, bem como às vanta-
gens da contratação de trabalho penal, embora alguns entrevistados tenham
apontado preocupações com a responsabilidade social, foi difícil não elencar
os interesses econômicos, uma vez que a modalidade de contratação por
nós analisada traz uma economia entre 50% e 70% a cada contrato no que
se refere aos custos com o trabalhador, como direitos trabalhistas e demais
benefícios como auxílio alimentação e transporte. Outro fator preponderante
mencionado pelos representantes das empresas foi a questão logística de levar
e retirar a produção no mesmo local, com funcionárias que não faltam ao
trabalho devido a problemas com transporte, com os filhos ou com o clima.
A partir das entrevistas realizadas, compreendemos também que, em-
bora o trabalho penal não apresente componentes importantes que marcam
o processo de reestruturação produtiva, como a automação e a utilização
de mecanismos de maior incorporação dos conhecimentos dos trabalhado-
res – visto que as atividades são essencialmente manuais e não demandam
qualificação –, possui dois elementos essenciais na mediação da “captura”
da subjetividade do trabalhador pelo capital, conforme sugere Alves (2011,
p.120-121): “[...] os mecanismos de contrapartida salarial (as novas formas de
pagamento) e de gestão da organização do trabalho (o trabalho em equipe)
que sedimentam os consentimentos espúrios”.39
O primeiro mecanismo corresponde às formas de disputas individuais
com prêmios, bônus, e o pagamento por peça, como ocorre com as mulheres
presas que contribuem para o proveito do capital no qual “[...] o essencial
é instaurar, por um lado, um elo direto entre o desempenho do negócio e
o comportamento dos operários ou empregados” (ALVES, 2011, p.122); o
segundo é o estímulo ao comprometimento do trabalhador através da pressão
realizada pelas equipes de trabalho em cada indivíduo, acentuando a explora-
ção do trabalhador por seus pares – como vimos acima na referência a Marx
(1985) – e aumentado pela supervisão dos coordenadores de equipe que, nas
unidades prisionais analisadas, têm remuneração fixa, além do pagamento pela
produção caso acumulem as funções.
Nas entrevistas com as reeducandas, procuramos desvendar quais eram
suas compreensões acerca dos motivos pelos quais as empresas contratam mu-
lheres presas nos CRF. As respostas variaram em quatro sentidos: a certeza de
que essa modalidade de trabalho é lucrativa para os empresários; a ideologia

39
Segundo o autor (2011, p.125) “Por ‘medo do desemprego’ o trabalhador assalariado ‘con-
sente’ maior nível de exploração de sua força de trabalho e renuncia a direitos sociais e
trabalhistas, por exemplo”. No caso dos CRF, entendemos que a maximização da exploração
da força de trabalho do contingente preso além de ser consentida por aqueles que aceitam
ir para essas unidades em que o trabalho é obrigatório, por serem lugares menos nefastos
para a sobrevivência, há a permissão legal em relação à retirada dos direitos trabalhistas.

163
amplamente difundida de que as empresas oferecem uma oportunidade para
as presas; a dúvida sobre os reais motivos, mas algumas reflexões a respeito; e a
falta de opinião sobre o tema. Uma única entrevistada apontou as habilidades
femininas como o principal motivo.
Na entrevista com a representante da Pastoral Carcerária, também bus-
camos entender qual a sua visão acerca de temas como a remuneração e os
tipos de trabalho penal na atualidade, como destacamos a seguir:
“Eu acho que o certo, bom, o certo seria um trabalho de verdade, que ajude ela
a aprender alguma coisa que ela pode usar depois. Sabendo que isso não vai acontecer
nunca, o segundo certo seria, quem faz os contratos é o Estado, é FUNAP, é o presídio.
[...] negociar então um contrato de seis horas, ou quatro, para que ela possa estudar,
para que ela possa desenvolver outras atividades. [...] Acho que o certo seria garantir
as leis trabalhistas, [...] pelo menos garantir um salário justo, onde tem essa tal de
produção, no geral, ganham tipo trinta, cinquenta ... Então quem coloca a meta da
produção coloca super alta, para impossibilitar... Se a lei fala que tem que garantir
dois terços do salário mínimo, então tem que garantir! Por que a gente precisa cumprir
a lei e o Estado não precisa?”.40

4. O trabalho durante e após a privação da


liberdade: sentidos e expectativas
A partir da reflexão sobre os tipos de trabalho, das remunerações ofe-
recidas, dos interesses e das vantagens do trabalho penal para os empresários,
compreendemos que no momento de crise estrutural a superexploração da
força de trabalho das mulheres presas, travestida de interesse e responsabilidade
social, serve para o aumento do lucro a partir do oferecimento de atividades
de trabalho intensivo, somadas à compressão dos salários legalmente referendada.
Todavia, não é somente pela importância para os empresários que as
atividades de trabalho penal devem ser analisadas. Essas atividades adquirem
diversos significados tanto para as mulheres presas quanto para a rotina insti-
tucional, conforme buscamos aprender nas entrevistas realizadas.
Do ponto de vista institucional, as entrevistas revelaram que os prin-
cipais sentidos do trabalho penal são: ocupação do tempo – essencial para
manter a disciplina na unidade prisional –; inculcar nas reeducandas os
hábitos necessários ao trabalho; e a necessidade financeira tanto para aju-
dar a família quanto para manter as mulheres presas na esfera do consumo
mesmo durante a reclusão.41

40
Membro da Pastoral Carcerária Nacional (PC).
41
Nas unidades analisadas, os três principais destinos da remuneração indicado pelas mulheres
entrevistadas foram respectivamente: comprar itens de higiene, limpeza e alimentação; enviar

164
Para a maioria das mulheres presas entrevistadas, são múltiplos os signi-
ficados que o trabalho adquire durante a privação de liberdade: criar hábitos
que contribuam para seguirem a vida longe das atividades ilícitas; a remição
da pena; poder ocupar o tempo; e trabalhar para se manter e ajudar a família.
Tal preocupação se torna ainda mais factível considerando que, segundo o
último relatório do INFOPEN (2017), enquanto 53% dos homens presos em
junho de 2016 não tinham filhos, 74% das mulheres privadas de liberdade eram
mães. Dessas, 37% tinham pelo menos 3 filhos. Nesse aspecto específico, fica
claro que mesmo privadas de liberdade essas mulheres continuam carregando
a responsabilidade com o cuidado dos filhos, socialmente arraigada como uma
das principais distinções dos papeis sociais por gênero.
Esses elementos aparecem imbricados na fala de grande parte das ree-
ducandas ouvidas, como nos trechos destacados abaixo:
“A importância porque, eu acho assim, eu trabalhando aqui dentro, me esfor-
çando para trabalhar dentro de uma cadeia, do mesmo jeito que eu me esforço aqui
eu posso me esforçar lá fora. Quando eu sair daqui eu não optar pelo tráfico, mas sim
pelo serviço. [...] Como eu levanto seis horas da manhã aqui para trabalhar, lá fora
eu também posso levantar esse horário, pegar ônibus e tudo o que tem que fazer e
trabalhar também. [...]”.42
“Bom, a importância em primeiro lugar é ocupar a cabeça, né? [...] Principal é
ocupar a cabeça. Segundo lugar, acho que é ter um ganho para você ter que se manter
aqui dentro, não ter que depender da família. Porque acho que as coisas lá fora também
não estão fáceis. E, outra coisa é a remição, né?, porque quem pega uma sentença aí,
que seja de dois, três ou quatro anos, você está trabalhando, cada três dias, você ganha
um, né? [...]”.43
Considerando que a ideologia da ressocialização é elemento fundante da
política penal brasileira – pelo menos em seu aspecto formal –, entendemos
ser essencial refletir sobre os sentidos que o trabalho penal pode adquirir para
o momento posterior ao cumprimento da pena – ou à absolvição no caso
das mulheres em regime provisório. É importante destacar que compreender
essa questão também traz à tona elementos que possibilitam analisar a eficácia
que a proposta dos CR pode ter, ou não, no plano concreto. Nesse sentido
é elucidativo – do ponto de vista institucional – o trecho destacado a seguir:
“[...] É difícil falar, né?, porque é um trabalho assim que não tem uma... Não é
um curso profissionalizante, elas não saem profissionalizadas, né?. [...] eu não saberia
te dizer se contribui. Se fosse uma coisa que desse uma profissão... [...]”.44

para a família e guardar para quando sair da prisão.


42
Reeducanda nº 41.
43
Reeducanda nº 32.
44
Direção da primeira unidade analisada.

165
A partir do trecho acima, vemos o reconhecimento dos limites dessas
atividades na propagada ressocialização, principalmente pelo fato de as vagas
das empresas não estarem conectadas à oferta de profissionalização das reedu-
candas. Além disso, não existem mecanismos de acompanhamento das egressas
pelos CRF, o que torna praticamente impossível verificar a contribuição dessas
unidades na propalada ressocialização das ex-presas.
A maioria dos representantes das empresas ouvidos afirmou que os
trabalhos por eles oferecidos podem ser de grande valia para as presas-tra-
balhadoras. Os argumentos utilizados versaram principalmente sobre dois
aspectos: o aprendizado de uma nova atividade, que pode servir na procura
de emprego, e a adaptação à rotina do mundo do trabalho, como ter horários
para acordar, saber trabalhar em equipe, conhecer a rotina do processo pro-
dutivo, ter responsabilidade. Um dos entrevistados afirmou contribuir para
a qualificação de um tipo de profissional escasso no ramo da empresa, como
destacado a seguir:
“Bom, no nosso caso é uma pessoa já mais especializada para o mercado de
trabalho, vai ter a prática, né?, do que a gente produz, no caso. É uma mão de obra
bem minuciosa e bem escassa aqui no mercado […]. Então, formando esse pessoal lá,
a gente acaba beneficiando nós mesmos aqui, nossos colegas do mercado de trabalho
também, né?. [...] Então, a gente acaba colaborando nesse aspecto, da formação, de dar
realmente uma profissão, uma coisa diferenciada no mercado”.45
Em relação às possibilidades de contratação de egressos do sistema penal,
quase todos os entrevistados das empresas afirmaram não ter problemas em
adicionar ao quadro de funcionários pessoas que tivessem passado pela prisão.
Todavia, apenas em quatro dessas empresas tal situação já havia acontecido.
As mulheres presas ouvidas apontaram diversos sentidos que o trabalho
realizado na privação de liberdade pode adquirir após o tempo de prisão,
como a utilidade do dinheiro que conseguiram guardar e a visão positiva
que a opção pelo trabalho na prisão pode gerar nas pessoas que estão do lado
de fora. Os três aspectos mais citados foram a inserção na rotina de trabalho,
principalmente a obrigação de acordar cedo; o aprendizado de novas atividades
que podem contribuir para a contratação posterior – mesmo que em outros
ramos de atividade; e a mudança de perspectiva de vida. Duas entrevistadas
citaram a importância dos cursos de qualificação, como o de manicure, pois
permite o trabalho autônomo; e outra afirmou que a experiência na prisão
não vai alterar sua vida posterior, pois nunca foi vinculada ao crime. Apre-
sentamos abaixo alguns trechos das entrevistas com as presas:
“Ah, a trabalhar em equipe, porque de doméstica você trabalha praticamente sozi-
nha, né? Eu tinha muito isso de eu não querer saber escutar, ou eu achar que eu tinha
45
Representante da empresa nº 9.

166
que fazer as coisas do meu jeito. […] E em equipe não, você precisa um do outro, você
tem que reconhecer que você precisa daquela pessoa, por mais que você não goste dela,
você tem que saber [...] eu não sabia trabalhar da forma que eu sei trabalhar hoje.”46
“Importância que eu vou adquirir um conhecimento a mais, porque eu acho que
é bom a gente sempre estar adquirindo conhecimento, né?, sempre estar aprendendo
alguma coisa.”47
“[...] mas agora está tendo um curso de manicure, pedicure. [...] Então, quando
eu sair, eu pretendo assim, me registrar... Me registrar assim, vou na prefeitura, vou me
cadastrar, vou fazer o negócio de autônoma lá, de manicure autônoma. E eu pretendo
fazer unha a domicílio. Porque aí ninguém precisa saber que eu fui presa.”48
Muitas mulheres presas ouvidas também falaram sobre suas perspectivas,
planos e sonhos para a vida fora da prisão. Duas dimensões abordadas tiveram
destaque: estar perto dos filhos e ter uma “vida digna” pelo trabalho, embora
reconheçam as dificuldades enfrentadas por terem antecedentes criminais.49
Quatro entrevistadas manifestaram o desejo de iniciar ou voltar a cursar o
ensino superior.50
É importante destacar que, de todas as entrevistadas, somente duas men-
cionaram utilizar as atividades realizadas durante a privação de liberdade em
suas vidas futuras, uma na empresa a qual estava vinculada dentro do CRF e
outra que pretende trabalhar como manicure. As demais afirmaram o desejo
de retornar aos trabalhos e seguir com os planos que faziam antes da prisão.

5. Considerações finais
Nas unidades analisadas, “ressocialização” – no plano formal – significa
fornecer durante a privação da liberdade condições de vida, estudo e trabalho
positivas o suficiente para que, depois de libertadas, as mulheres possam seguir
suas vidas sem retornarem ao mundo do crime.
Porém, com a pesquisa realizada, foi possível compreender que no plano
concreto as atividades de trabalho desenvolvidas remetem essencialmente às
possibilidades de superexploração do trabalho das presas e, se exercem alguma

46
Reeducanda nº 45.
47
Reeducanda nº 22.
48
Reeducanda nº 20.
49
Nenhuma presa ouvida fez menção ou demonstrou conhecer a Reabilitação Criminal –
disposta no Capítulo VII, arts. 93 a 95 do Código Penal (Brasil, 1984b) – que assegura o
sigilo sobre o processo e condenação do requerente podendo ser solicitado após dois anos
ou da extinção da pena ou do término de sua execução. Tomamos conhecimento sobre
esse dispositivo na entrevista com a representante da FUNAP.
50
A Reeducanda nº 8 afirmou pretender ingressar em psicologia e a Reeducanda nº 22, no
curso de direito; a Reeducanda nº 12 pretende retomar o curso de fisioterapia; e a Ree-
ducanda nº 24, o de ciências biomédicas.

167
influência para a vida dessas mulheres após o cumprimento da pena, essa
influência se vincula, em última análise, à adaptação às atividades de trabalho
típicas do desemprego estrutural.
Além disso, entendemos que a ideia de que aceitar o trabalho oferecido
no cumprimento da pena traz maiores possibilidades de ressocialização após
adquirir a liberdade acaba por introjetar a responsabilidade pelo fracasso in-
dividual, caso a prometida (re)inserção não ocorra.
Conforme vimos, embora adquirindo contornos e distintas funciona-
lidades, o trabalho penal é elemento central da punição através da privação
de liberdade, possuindo um sentido permeado por complexas nuances que
envolvem o cumprimento da pena e o porvir, os interesses instituicionais,
empresariais e as aspirações do contingente preso, principalmente no caso
das mulheres que continuam sendo, ou pelo menos se sentindo responsáveis
pela satifação das necessidades básicas de seus filhos.
Tais questões se mostram ainda mais relevantes no momento em que se
discute o processo de privatização do sistema prisional brasileiro, como vem
ocorrendo no Senado Federal (2017), uma vez que o trabalho penal é parte
fundamental das experiências privadas já existentes no Brasil e no mundo.

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168
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171
“Blaming the victim:
O comportamento vitimal à luz
da cr iminologia feminista”

Daniela Carvalho Portugal 1 7

1. Introdução
É certo que a “culpa da vítima”, há muito, é objeto de estudo do Direito
Civil, mais especificamente quando da análise da (ir)responsabilidade civil do
agente pelo ato danoso praticado; todavia, na esfera penal, vem se mostrando
crescente o número de teses que buscam ampliar a responsabilidade da própria
vítima pela tutela dos seus bens, até o extremo de considerá-la responsável
pelo ato agressivo sofrido.
Assim, são estudadas as contribuições da vitimologia na compreensão
da origem do delito e na análise do tratamento dispensado pelas instâncias de
controle àqueles que sofrem um delito. Nesse sentido, apresentam-se as diferen-
tes categorias vitimais estudadas no âmbito da compreensão da crimogênese.
Posteriormente, avalia-se de que maneira o patriarcalismo, o androcen-
trismo, o machismo e a misoginia são fatores culturais que atuam de maneira
determinante na definição do conceito social de “vítima”. Em seguida, avalia-se
de que forma esta significação social repercute na compreensão jurídica da
mulher enquanto vítima de violência.

1
Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBA/Edital 003/2010).
Possui graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA/2004-2008) e
̃ (UFBA/2009-2011). Possui curso
mestrado em Direito Público por esta mesma instituiçao
de Aperfeiçoamento em Ciências Criminais e Dogmática Penal Alemã pela Georg-August
Universität Göttingen, GAUG - Alemanha. É professora Assistente de Direito Penal da
Faculdade de Direito UFBA.Professora de Direito Penal da Faculdade Baiana de Direito
e da Escola de Magistrados da Bahia (EMAB), sendo a docência a principal atividade
profissional exercida. Conselheira Estadual da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do
Estado da Bahia (OAB/BA). danielacarvalhoportugal@gmail.com

173
Em seguida, intenta-se refletir sobre a forma como o sistema jurídico
opera na interpretação do comportamento vitimal feminino, bem como no
julgamento da conduta agressiva praticada contra a mulher.
Por fim, apresenta-se uma aproximação entre a criminologia feminista e
os estudos vitimológicos, a fim de se refletir, de maneira crítica, sobre a forma
como a mulher é tratada pelo sistema repressivo, bem como a sobrevitimização
por ela sofrida quando demanda a tutela de proteção do Estado.

2. A nova criminologia à luz da vitimologia


Tradicionalmente, os estudos criminológicos estiveram restritos à com-
preensão do crime e do criminoso. José Ingenieros, em 1913, ao analisar o
legado do pensamento lombrosiano e da Escola Positiva do Direito Penal,
comemorava o que reputou ser o surgimento de uma moderna concepção do
delito, cujos campos de estudo eram sistematizados pelo autor: etiologia crimi-
nal, responsável pela compreensão das causas determinantes do crime; clínica
criminológica, interessada nos caracteres fisiopsíquicos dos delinquentes; e a
terapêutica criminal, atenta às medidas de profilaxia e de repressão aplicáveis2.
Lombroso, Garofalo e Ferri são considerados fundadores da Escola Positivista
do Direito Penal e da Criminologia. Em sua conhecida obra “O Homem Delin-
quente”, de 1876, inspirado pelo positivismo evolucionista de Darwin, sustentava
que a delinquência deveria ser compreendida não como fruto de circunstâncias
sociais desfavoráveis, mas como uma doença hereditária - uma tendência atávica
para o mal, negando o livre arbítrio e justificando, para os criminosos natos, a
imposição da morte ou da pena perpétua3. O autor italiano também cuidou de
examinar, especificamente, o comportamento da mulher, tendo publicado em
1893 a obra “A Mulher Delinquente, a Prostituta e a Mulher Normal”, em que
analisa diferentes perfis da mulher criminosa, inclusive avaliando a forma como a
infelicidade conjugal impacta no cometimento de crimes por mulheres4.
Zaffaroni acrescenta que a antropologia criminal lombrosiana, lastreada
no ideal da burguesia europeia da “arte pela arte”, no século XIX, foi responsá-
vel por personificar estereótipos de delinquentes a partir de perfis antiestéticos
para os padrões hegemônicos, construindo as relações pobre-delinquente-feio
ou selvagem-delinquente-feio5.

2
INGENIEROS, José. Criminología. Madrid: Daniel Jorro, 1913, p. 84-85.
3
LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Tradução Sebastião José Roque. São Paulo:
Icone, 2007, passim.
4
Cf. LOMBROSO, Cesare; FERRERO,William. The female ofender. New York: D. Appleton
and Company, 1898, passim.
5
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Criminología. Aproximación desde um margen.V. 1. Bogotá:
Temis, 1988, p. 157-158.

174
Para o autor, a criminologia etiológica, durante anos, foi responsável por
promover um reducionismo biológico direcionado a aparelhar práticas racistas
e genocidas, a serviço de grupos conservadores, e ainda se mantém viva nos
pensamentos criminológicos que depreciam ou simplesmente ignoram a
tutela de direitos humanos6.
O nascimento de uma “nova criminologia” passa a ser anunciado, em
especial, a partir da ampliação do objeto de estudo do referido saber, quando
se agregam, também, investigações acerca da vítima do delito e do controle da
criminalidade. Explica Antonio Beristain que a origem da vitimologia estaria
relacionada à reação que se teve em face do processo de macrovitimização
da II Guerra Mundial, em especial com a resposta dos judeus ao holocausto
e a busca por medidas de reparação a partir de 19457.
O autor cita a celebração, em Jerusalém, do Primeiro Simpósio Inter-
nacional sobre Vitimologia, realizado no ano de 1973, bem como do Terceiro
Simpósio Internacional de Vitimologia, ocorrido em Münster, na Alemanha,
que marca a fundação da Sociedade Mundial de Vitimologia8. Portanto, os
estudos vitimológicos surgem como reação ao “apartheid criminológico”9 da
etiologia biopsicológica.
Ao se referir aos primeiros tratadistas no estudo da Vitimologia, Man-
zanera esclarece que Benjamin Mendelsohn pode ser considerado o criador
deste campo do conhecimento científico, que se ocupou do tema desde
1937, expondo suas primeiras publicações em 1940, posteriormente vindo a
elaborar sua obra mais conhecida, em 1956 – “La Victimologie”.Também cita
o estudo publicado pela Universidade de Yale, em 1948, de Han Von Hentig,
intitulado “The criminal and his victim”.10
Hans von Hentig, no trabalho intitulado “Remarks on the Interaction fo
Perpetrator and Victim”, publicado em 1940, defendia que, da mesma forma que
a criminologia havia constatado a existência de “criminosos natos”11, seria

6
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Criminología. Aproximación desde um margen.V. 1. Bogotá:
Temis, 1988, p. 244.
7
BERISTAIN, Antonio. Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia. Tradução
Cândido Furtado Maia Neto. Brasília: Universidade de Brasília, p. 83.
8
BERISTAIN, Antonio. Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia. Tradução
Cândido Furtado Maia Neto. Brasília: Universidade de Brasília, p. 83.
9
Expressão utilizada por Zaffaroni. Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Criminología. Aproxi-
mación desde um margen.V. 1. Bogotá: Temis, 1988, p. 191.
10
MANZANERA, Luis Rodríguez. Victimologia. Estudio de la víctima. 7. ed. México: Porrua,
2002, p. 16-17.
11
Vale recordar, nesse sentido, outro trabalho publicado pelo autor, em que relaciona o “negro”
à maior probabilidade de cometimento do crime, em que Hentig defende que vincular
a “raça” à criminalidade significa simplificar um problema que é, em essência complexo,
mas sustenta que o componente racial, aliado a questões geográficas como movimentos

175
lógico reconhecer a existência de “vítimas natas”, responsáveis por se auto
ferir e autodestruir por intermédio de um “estranho”12. As perigosas ideias
sustentadas pelo autor já fundamentavam, na análise da relação interativa entre
os sujeitos ativo e passivo do crime, a culpabilização da vítima pelo delito
por ela sofrido.
Marvin E. Wonfgang e Simon I. Singer, em 1978, publicaram o estudo
“Victim Categories of Crime”, diferenciando as hipóteses de “victim proneness”,
“victim contribution” e “victim provocation”. No primeiro caso, destacam uma
maior propensão de determinados sujeitos, motivados por traços de perso-
nalidade biopsicossociais, e se dirigirem em direção a situações criminosas, o
que resultaria maior probabilidade de vitimização. Já a contribuição vitimal
poderia representar, segundo os autores, um passo além da mera negligência,
chegando a citar como exemplo a conduta de mulheres que atraem o agres-
sor para o local do fato - situação narrada a partir das contribuições de von
Hentig. Já a provocação vitimal, por sua vez, seria uma espécie de contribuição,
desta diferindo apenas em virtude de a provocação representar estágio acima
da contribuição.13
Encerram os referidos autores que as pesquisas acerca da contribuição
da vítima são úteis à administração da justiça criminal, uma vez que orientam
programas de prevenção ao crime, além de servirem para a determinação da
extensão da punição do agressor, bem como da indenização devida à vítima14.
Portanto, cuida-se de pensamento que fundamenta as propostas teóricas de
exclusão da responsabilidade penal do agressor pela odiosa via da culpabili-
zação do sujeito passivo do delito15.
O referido pensamento, construído sob um olhar androcêntrico e ma-
chista, irá pautar o pensamento vitimológico contemporâneo, restando man-
tidas as classificações voltadas à definição das formas de contribuição vitimal.
Nesse sentido, a vitimologia, de acordo com Leah E. Daigle e Lisa R. Muftic,
é responsável pelo estudo das causas de vitimização, analisando suas causas e

migratórios, aliado às restrições sociais que daria origem à criminalidade. O autor defendia,
portanto, que a má conduta resulta do conflito entre as inclinações humanas e as restrições
sociais - perspectiva notadamente racista e xenofóbica. Cf. HENTIG, Hans Von. Criminality
of the Negro, 30 Am. Inst. Crim. L. & Criminology 662, 1939-1940.
12
HENTIG, Hans von. Remarks on the Interaction fo Perpetrator and Victim, 31 Am. Inst.
Crim. L. & Criminology 303, 1940-1941, p.303.
13
WOLFGANG, Marvin E.; SINGER, Simon I.Victim Categories of Crime, 69 J. Crim. L.
& Criminology 379, 1978, p.389-390.
14
WOLFGANG, Marvin E.; SINGER, Simon I.Victim Categories of Crime, 69 J. Crim. L.
& Criminology 379, 1978, p.391.
15
Cf. SCHÜNEMANN, Bernd. A posição da vítima no Sistema da justiça penal: um modelo
em três colunas. In: SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal
e filosofia do direito. Coord. Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013.

176
consequências, bem como a forma como os diversos segmentos sociais irão
lidar com a vítima do crime16. Explicam as autoras que os primeiros tratados
acadêmicos sobre o tema ocupavam-se de investigar quanto a vítima contri-
bui para a sua própria vitimização, desenvolvendo-se os conceitos de “victim
precipitation”, “facilitation” e “provocation”17.
A diferença entre as referidas categorias, conforme advertem as autoras,
não é clara: precipitação vitimal é definida a partir da noção de que algumas
vítimas são responsáveis pela própria vitimização, exemplificada nas situações
em que a vítima insulta seu agressor; a facilitação vitimal, diferentemente, teria
lugar quando a própria vítima, não intencionalmente, acaba por facilitar o
cometimento do delito, a exemplo dos casos de vítimas de furtos que esque-
ceram seus pertences em locais públicos; a vítima provocadora, por sua vez, seria
aquela que determina a prática do delito, exemplificada nos casos em alguém
reage a um assalto, matando o assaltante18.
Não há como compreender a nocividade do estabelecimento de tais
categorias vitimais sem que estas sejam entendidas como produto cultural,
em que a interpretação da crimogênese não só reflete as expectativas sociais
da classe social dominante, como também coloca a justificativa da segregação
social à serviço desta.
Portanto, a elaboração discursiva do conceito social de “vítima” nada tem
a ver com a concepção jurídica de sujeito passivo do delito, de maneira que o
agir vitimal desviante aos padrões impostos legitima, não raro, a inversão de polos,
reposicionando o ofendido a fim de colocá-lo na posição de autor da lesão sofrida.

2.1. As diferentes categorias de vítima quanto


à interferência na crimogênese
Ressalte-se, de início, que as diversas propostas classificatórias direcio-
nadas a categorizar as espécies de vítima são inabarcáveis, motivo pelo qual
o referencial teórico aqui trabalhado conjuga as classificações propostas por
Eliás Neuman e Gerardo Landrove Díaz.
Neuman, ao classificar as vítimas individuais a partir da atitude vitimal,
subdivide-as em vítimas a) sem atitude vitimal; b) com atitude vitimal culposa; e
c) com atitude vitimal dolosa. No primeiro grupo, estão os inocentes e aqueles
que, eventualmente, resistem ao ato de agressão; no segundo19, o autor agrupa
16
DAIGLE, Leah E.; MUFTIC, Lisa R. Victimology. California: Sage, 2016, p. 01.
17
DAIGLE, Leah E.; MUFTIC, Lisa R. Victimology. California: Sage, 2016, p. 02.
18
DAIGLE, Leah E.; MUFTIC, Lisa R. Victimology. California: Sage, 2016, p. 02-03.
19
O autor não diferencia, substancialmente, as vítimas provocadoras, cooperadoras e solicitantes.
Quanto às vítimas provocadoras, refere-se como exemplo a legítima defesa. Neste sentido,
aquele que sofre uma lesão lícita em decorrência de ter partido dele uma agressão injusta é

177
as vítimas provocadoras, cooperadoras e solicitantes; no terceiro, de outro lado,
estão as vítimas por determinação própria, como é o caso do suicídio20-21.
Gerardo Landrove Díaz classifica as vítimas em diferentes espécies, tra-
tando das vítimas não participantes; vítimas participantes; vítimas familiares;
vítimas coletivas; vítimas especialmente vulneráveis; vítimas simbólicas e falsas
vítimas. As vítimas não participantes, também chamadas de vítimas fungíveis,
são aquelas reputadas pelo autor inteiramente inocentes ou vítimas ideais. São
sujeitos anônimos, que em nada interferem para o desencadeamento da con-
duta delitiva. Fala-se em “fungíveis” especialmente porque é nesse sentido
que toda e qualquer pessoa da sociedade é uma vítima em potencial para
um delito qualquer22.
Esta espécie classificatória se divide em vítimas acidentais e indiscrimi-
nadas. No primeiro caso, em que pese a vítima não tenha em nada influen-
ciado a prática delitiva, constrói-se um tênue e circunstancial vínculo entre
ofendido e ofensor. São os sujeitos que são colocados por azar no caminho
dos delinquentes, consoante esclarece o autor - é o caso do sujeito que se
encontra em uma agência bancária no exato momento em que indivíduos
iniciam a prática de um crime de roubo23.
Já as vítimas indiscriminadas, também subespécie de vítimas fungíveis,
não apresentam nenhum vínculo, nem mesmo tênue, com o ofensor, em
que o autor cita como exemplo os sujeitos passivos atingidos diretamente
com atentados terroristas. De outro lado, as vítimas participantes, também
chamadas de “infungíveis”, são aquelas que desempenham um certo papel na
origem do delito, voluntariamente ou não, representando, em linhas gerais,
ofendidos que, de algum modo, facilitaram, ou mesmo geraram a vitimização.
A supracitada espécie se divide, segundo o autor, em vítimas alternativas e
vítimas voluntárias – no primeiro caso, o ofendido se coloca, deliberadamente,
na condição de vir a ser uma vítima, dependendo do azar ou da sorte a sua
efetiva condição de vitimização, a exemplo dos casos de duelo.24
Note-se que, quando se fala “deliberadamente”, a expressão utilizada
para designar a mencionada espécie classificatória não se refere à vontade de

uma vítima provocadora. Os cooperadores, de outro lado, são os coadjuvantes - não são os
efetivos provocadores da lesão, mas com ela colaboram. Já quanto aos solicitantes, o autor
cita, como exemplo, os casos de eutanásia a pedido.
20
O autor esclarece que a referência às terminologias “doloso” e “culposo” não assume a
conotação dogmático-penal, apenas retratando uma atitude vitimal.
21
NEUMAN, Elías. Victimología. El rol de la víctima en los delitos convencionales y no
convencionales. 2. ed. Buenos Aires: Editorial Universidad, 1994, p.57.
22
DÍAZ, Gerardo Landrove. Victimologia.Valencia: Tirant lo Blanch, 1990, p. 39.
23
Id. Ibd. loc. cit.
24
Id. Ibd. loc. cit.

178
assumir a condição de vítima em si, isto é, à vontade de se sofrer a lesão, mas,
unicamente, à anuência em se submeter a uma situação de perigo a partir da
qual será possível se desencadear (ou não) um processo concreto de vitimização.
Sobre a matéria, todavia, retornar-se-á mais adiante, quando do tratamento
da colocação em perigo por parte do ofendido.
Em sentido diverso, as vítimas voluntárias são aquelas que, segundo
Gerardo Landrove Díaz, “participam” do próprio delito, ou seja, são aqueles
que instigam o resultado ocorrido ou, mais ainda, que, livremente, o pac-
tuam - é o caso, por exemplo, da eutanásia a pedido25. Neste sentido, mais
adiante, cuidar-se-á de diferenciar, no campo da dogmática penal, a autolesão;
a heterolesão consentida; a autocolocação em perigo e a heterocolocação em
perigo consentida para que se verifique a que categoria vitimal pertencem
as mencionadas espécies comportamentais referidas pela dogmática penal.
O autor ainda trata das vítimas familiares como tipologia que leva em
conta a especial situação das vítimas pertencentes a um mesmo grupo familiar
do infrator, destacando que, em geral, as vítimas aqui padecem de situação de
maior vulnerabilidade, tais como mulheres e crianças, fator que incrementa
os graves danos psicológicos sofridos por esses sujeitos26.
As vítimas coletivas, de outro lado, ampliam a concepção individual de
vítima para alcançar uma pluralidade de ofendidos, como é o caso de crimes
contra pessoas jurídicas, ou mesmo para provocar uma despersonalização do
sujeito passivo, que passa a ser marcado pela coletivização e anonimato em
razão da sua indeterminabilidade concreta, quando se falará em “vítimas ocul-
tas”27. É o que ocorre, por exemplo, com os já mencionados “crimes vagos”.
As vítimas especialmente vulneráveis, por sua vez, muito embora não
cheguem a representar um grupo de vítimas natas, são identificadas em razão
da evidente maior probabilidade de se converterem em vítima de um deter-
minado delito, sobretudo por conta de fatores sociais e pessoais peculiares,
que acabam por destacá-las dentre os demais da coletividade, acarretando
uma espécie de “predisposição criminógena”28.
Por seu turno, as vítimas simbólicas são aquelas cujas razões de seu atin-
gimento estão relacionadas ao grupo que representam. É dizer, significa que
foram lesionadas especialmente para que, simbolicamente, fosse atingido todo
o grupo a qual representam, atacando-se, com isso, um determinado grupo
de valores; ideologias ou convicções políticas, por exemplo29.

25
DÍAZ, Gerardo Landrove. Victimologia.Valencia: Tirant lo Blanch, 1990, p. 39.
26
Id. Ibd. loc. cit.
27
Id. Ibd., p.41.
28
Id. Ibd., p.42.
29
DÍAZ, Gerardo Landrove. Victimologia.Valencia: Tirant lo Blanch, 1990, p.43.

179
Por fim, as falsas vítimas são aquelas que simulam, pelas mais variadas
razões, um processo de vitimização, atuando, conscientemente, no sentido de
lançar uma falsa imputação contra outrem (quando serão chamadas de vítimas
simuladoras); ou ainda quando imaginam, equivocadamente, terem sido alvo
de uma agressão criminal30-31.

2.2. A vítima e a crimogênese: sobre


a victim precipitation e suas
consequências dogmáticas no
ordenamento jurídico-penal brasileiro
Explica Sumalla que, no campo da vitimologia, passou-se a tratar do
conceito de victim precipitation, entendido como o contributo da vítima na
criminogênese, isto é, a observação da conduta do ofendido como atitude
provocadora do delito ou, em menor medida, a verificação da existência de
um complexo vínculo psicológico entre vítima e autor32.
Acrescenta o autor que a noção de victim precipitation teve sua origem
nos Estados Unidos a partir de uma investigação promovida por Wolf-
gang, segundo a qual 26% dos homicídios ocorridos na Filadélfia foram
marcados pelo fato de ter sido a vítima a primeira a exercer uma atitude
de violência física - dado este que, em estudos posteriores, foi elevado
para a ordem de 38%33.
Em seus estudos, Martin E. Wolfgang apontava que, por diversas vezes,
especialmente nos casos de homicídio, a vítima oferecia um contributo signi-
ficativo para o ato criminoso, figurando uma das principais causas do delito34.
Wolfgang apontou os estudos criminológicos de Hans Von Hentig como
o mais útil corpo teórico acerca da análise da relação entre vítima e ofensor,
sobretudo por ter sido pioneiro em se dedicar ao estudo da contribuição da

30
Id. Ibd., p. 43.
31
Cf. LOPES JR, Aury; DI GESU, Cristina Carla. Falsas Memórias e Prova Testemunhal no
Processo Penal: Em Busca da Redução de Danos. Revista de Estudos Criminais. Abr./Jun.
de 2007. Cf. CARVALHO, Salo de. Memór ia e Esquecimento nas Práticas Punitivas. In:
GAUER, Ruth Maria Chittó Gauer (Org.). Criminologia e Sistemas Jurídico-Penais
Contemporâneos. Porto Alegre: Edipucrs, 2008. Cf. SANTOS, Renato Favarin dos; STEIN,
Lilian Milnitsky. A influência das emoções nas falsas memórias: uma revisão crítica. Psicologia
USP, São Paulo, julho/setembro, 2008, 19(3), 415-434. Disponível em: http://www.scielo.
br/pdf/pusp/v19n3/v19n3a09.pdf. Acesso em 20 de dezembro de 2013.
32
SUMALLA, Josep M. Tamarit. La víctima en el Derecho Penal. De la víctimo-dogmática a
una dogmática de la víctima. Pamplona: Aranzadi Editorial, 1998, p.18.
33
Id. Ibd. loc. cit.
34
WOLFGANG, Martin E.Victim precipitated criminal homicide. In: Journal of Criminal Law
and Criminology. v. 48, may-june 1957, n. 1, 1957, p.01.

180
vítima na origem do crime, valendo-se da expressão “duet frame of crime” para
se referir a tal fenômeno35.
Valendo-se do estudo empírico do crime de homicídio, Wolfgang sus-
tentava que tal espécie delitiva era marcada pela existência de uma (1) pro-
vocação; (2) a ação passional do autor na causação da morte; (3) o autor da
lesão seguiu a provocação antes de cessarem os impulsos passionais delitivos36.
O autor identifica, pois, um vínculo causal entre a provocação, o impulso
passional (the heat of passion) e o homicídio37.
É com base nesta observação empírica que Martin E. Wolfgang, já
na década de 50, apresentava o termo “victim precipitated” como aplicável à
caracterização de todos os homicídios em que se observou a vítima como
um precipitador direto e positivo no crime38.Trata-se, portanto, da caracte-
rização dos casos em que o próprio ofendido, valendo-se, aqui, da tradução
livre das palavras do autor, foi “o primeiro a iniciar o jogo ou recorrer à
violência física”39.
Esclarece Josep Sumalla, nesse sentido, que os estudos sobre a relação
entre o comportamento da vítima e o fato criminoso se desenvolveram, ini-
cialmente, no campo da vitimologia, ciência que teria completado a análise
crimonológica do delito, que, tradicionalmente, ignorava a importância da
vítima no evento delitivo. Todavia, de acordo com o autor, os estudos viti-
mológicos em torno da conduta do ofendido passaram a ser questionados
quanto às consequências político-criminais e dogmáticas da victim precipitation.
Passa, com isso, a ser repensada a tradicional e impessoal imagem de debili-
dade associada ao ofendido, do que se extrai a concepção de que o titular do
bem jurídico, e não somente o Estado, deve assumir uma função de tutela40.
Esclarece ainda que, no campo político criminal, os estudos vitimológicos
acabaram por determinar uma mudança de paradigma, buscando-se propostas
desformalizadoras, além de formas de reparação do dano e mecanismos de
conciliação entre autor e vítima. De outro lado, a vitimologia também passou
a projetar mudanças no campo da dogmática jurídica. Passou-se a diferenciar
as noções de vítima e de sujeito passivo do delito, terminologias que, tra-
dicionalmente, sempre foram apresentadas como equivalentes. Isto porque,

35
VON HENTIG, Hans. The criminal and his victim. New Haven:Yale University Press, 1948,
p. 383-385.
36
WOLFGANG, Martin E. op. cit., p.02.
37
Id. Ibd. loc. cit.
38
Id. Ibd. loc. cit.
39
Id. Ibd. loc. cit.
40
SUMALLA, Josep M. Tamarit. La víctima en el Derecho Penal. De la víctimo-dogmática a
una dogmática de la víctima. Pamplona: Aranzadi Editorial, 1998, p.19-20.

181
historicamente, pensava-se no sujeito passivo do delito como um ser débil,
beneficiário de uma atuação protetora do Estado.41
Bernd Schünemann, modernamente, apresenta-se como um dos grandes
críticos ao paternalismo jurídico-penal, opondo-se não só ao paternalismo
direto, caracterizado pela tutela de autolesões, como também ao paterna-
lismo indireto, marcado pela intervenção penal na ocasião de heterolesões
validamente consentidas. Segundo o autor, em lugar de uma política crimi-
nal paternalista, caberia ao Estado tão somente prestar auxílio por meio de
medidas assistenciais.42
Assim, com o avançar dos estudos da vitimologia, passa-se a questionar se,
necessariamente, o sujeito passivo de um delito se encontra em uma posição
de vulnerabilidade, e se também ele não seria responsável pela tutela, ao lado
do Estado, dos seus bens jurídicos.
Explica Sumalla que tal pensamento encontra sua origem na superação da
noção impessoal de sujeito passivo como vítima e beneficiário de uma atuação
protetora do Estado em prol de uma nova concepção segundo a qual o titular
do bem jurídico assume uma posição de protagonismo e, com isso, uma parcela
de responsabilidade ante o ordenamento jurídico. Desta maneira, de acordo
com o autor, uma das preocupações contidas nesses estudos consiste em avaliar
como a contribuição da vítima ao fato delitivo afeta a punibilidade do compor-
tamento do sujeito ativo. Significa dizer que a base deste pensamento consiste
na constatação da existência de vítimas corresponsáveis pelo fato - observação
a partir da qual se estabelece o princípio da autorresponsabilidade da vítima.43
Cabe, então, investigar quais as consequências dogmáticas que o com-
portamento da vítima vem assumindo modernamente, investigando-se quais
são as consequências jurídicas hoje relacionadas à responsabilidade do ofen-
dido na gênesis do crime, bem como os impactos de uma dogmática penal
androcêntrica, machista e sexista na construção do referido pensamento.
Jaume Solé Riera, analisando a realidade espanhola, destaca que, em
que pese as antigas instituições processuais tenham passado, modernamente,
por um certo rejuvenescimento, ainda há que se redefinir o papel que se
outorga à vítima no processo penal44. De acordo com o doutrinador, a tutela
constitucional dos direitos fundamentais por parte do Estado deve ser igua-

41
Id. Ibd. loc. cit.
42
SCHÜNEMANN, Bernd. A crítica ao paternalismo jurídico-penal: um trabalho de Sísifo?
In: Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís Greco (Coord).São
Paulo: Marcial Pons, 2013, p.108-109.
43
Id. Ibd., p.21.
44
RIERA, Jaume Solé. La tutela de la víctima en el proceso penal. Barcelona: Jose maria Bosch
Editor, 1997, p.12.

182
litária, resguardando-se um sistema de garantias não só para o infrator, como
também para a vítima45.
Também retratando a realidade espanhola, Myriam Moreno destaca a
Lei de Assistência às Vítimas da Criminalidade, nº 35, de 1995, que incorpora
em seu artigo 15.3 o reconhecimento de uma série de direitos das vítimas,
em que se pode citar o direito à tutela efetiva; o direito a ser parte processual;
o direito à reparação, dentre outros.
Pedro Bertolino, analisando a proteção assegurada à vítima pelo ordena-
mento argentino, destaca que a vítima se inclui no âmbito de previsão contido
no art. 33 da Constituição da Nação Argentina, de 1994. Isto porque o refe-
rido dispositivo, ao definir que os direitos e garantias enumerados consagram
apenas um rol exemplificativo, torna possível, sem maiores esforços, pensar a
vítima também como titular de um direito jurisdicional.46
Raúl Oliveros, retratando a realidade chilena, assinala que a Constituição
Política da República, desde a reforma introduzida pela Lei nº 18.825, de 1989,
passou a prever um programa de proteção a direitos fundamentais. Em decorrência
dessa diretriz, estabeleceu-se um estatuto garantístico aplicável dentro e fora de
processos jurisdicionais. É por esta razão que o autor defende um redimensiona-
mento do papel da vítima no processo penal, para que lhe seja assegurada a ampla
possibilidade de atuação processual para a defesa dos seus direitos.47
Alfredo Kronawetter, retratando a realidade da dimensão assumida pela
vítima no ordenamento paraguaio, revela que o sistema político vigente é
marcado por uma desvalorização da vítima como um programa de política
processual48. É por esta razão que as possibilidades de intervenção processual
por parte do ofendido são extremamente restritas49.
Myriam Moreno atenta para os movimentos sociais voltados para a defesa
dos direitos das vítimas, destacando, no âmbito internacional, a Declaração
das Nações Unidas sobre os Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas da
Criminalidade e de Abuso de Poder, de 198550.
No Brasil, a Declaração foi adotada por meio da Resolução 40/34, de 29
de novembro de 1985, da Assembleia Geral, ocasião em que o ordenamento

45
Id. Ibd., p.14.
46
BERTOLINO, Pedro J.; GOITÍA, Carlos Alberto; FERNANDES, Antonio Scarance;
OLIVEROS, Raúl Tavolari; KRONAWETTER, Alfredo Henrique; BERMÚDEZ,Víctor
Hugo. La víctima en el proceso penal. Su régimen legal en Argentina, Bolivia, Brasil, Chile,
Paraguai, Uruguai. Buenos Aires: Depalma, 1997, p.22-23.
47
Id. Ibd., p.163-165.
48
Id. Ibd., p.183.
49
Id. Ibd., p.185.
50
MORENO, Myriam Herrera. La hora de la víctima. Compendio de victimología. Madrid:
Editoriales de derecho reunidas, 1996, p.269.

183
brasileiro se insere em um contexto internacional de cooperação para a defesa
e proteção das vítimas51.
Vale destacar, no ordenamento brasileiro, a Lei nº 9.807, de 1999, respon-
sável por estabelecer normas para a organização e a manutenção de programas
especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas; por instituir o
Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas; e por dispor sobre
a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado
efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal.
De acordo com o mencionado diploma normativo, em seus arts. 1º e 2º,
o Estado se compromete a manter um programa político de tutela de direitos
humanos, que compreende a adoção de medidas voltadas à proteção da inte-
gridade física e psicológica da vítima. As providências de proteção, todavia, nos
termos do art. 10 da Lei, pode ocorrer nas hipóteses de solicitação da própria
vítima, bem como em razão de decisão do conselho deliberativo tomada nos
casos de prática, por parte do ofendido protegido, de conduta incompatível52.
Cabe mencionar, outrossim, as propostas de reparação verificadas na Lei
dos Juizados Especiais Criminais, Lei nº 9.099, de 199553; a introdução, no
Código de Processo Penal, da previsão de fixação de valor mínimo indeni-
zatório na sentença criminal (art. 387, inciso IV, CPP, introduzido pela Lei nº
11.719, de 2008); bem como as medidas protetivas de urgência previstas pela
Lei nº 11.340, de 2006, que cria mecanismos destinados a coibir a prática
de violência doméstica e familiar; ou ainda a Lei nº 13.641, de 2018, que
criminaliza o descumprimento das referidas medidas protetivas.
No que diz respeito às consequências dogmáticas para a victim precipitation
referidas pelo Código Penal brasileiro, tem-se, no ordenamento pátrio, o fun-
damento legal referido no art. 59, norma penal não incriminadora de natureza
complementar responsável por “fornecer princípios gerais para a aplicação da

51
Câmara dos Deputados. Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Comitê Brasileiro
de Direitos Humanos e Política Externa. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/
atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direi-
tos-humanos-e-politica-externa/AplicDecPricBasJustVitCriAbuPod.html> Acesso em: 01
de fevereiro de 2014.
52
Vale destacar que a Lei não disciplina rol taxativo ou enumerativo que indique eventuais
situações de incompatibilidade, também não havendo entendimento jurisprudencial
consolidado acerca da matéria. O TRF-5, ao julgar um caso de exclusão do programa
de proteção, chega a concluir pela “ausência de dano ao protegido pela ausência do
devido processo legal”. Cf. TRF-5, AC 408036/PB (2004.82.00.013061-0), origem: 3ª
Vara Federal da Paraíba (Competente p/ Execuções Penais), Rel. Desembargador Federal
Vladmir Souza Carvalho.
53
A mencionada lei impõe a observância aos institutos da transação penal e da composição
dos danos civis, que funcionam, em maior ou menor grau, como forma de reparação para
a vítima da infração de menor potencial ofensivo.

184
lei penal”54 segundo a qual o juiz, quando da aplicação da pena, deverá levar
em consideração o comportamento da vítima para fins de aplicação da pena base.
A introdução da análise do comportamento da vítima como critério
de aplicação da pena foi inovação trazida com a reforma da parte geral do
Código Penal em 1984, por meio da Lei nº 7.209/1984. Vale destacar que
a mencionada inserção, nos termos do item 50 da exposição de motivos da
Reforma da Parte Geral, fez “referência expressa ao comportamento da vítima,
erigido, muitas vezes, em fator criminógeno, por constituir-se em provação ou
estímulo à conduta criminosa, como, entre outras modalidades, o pouco recato da
vítima nos crimes contra os costumes”55.
De acordo com Ricardo Schmitt, a referida circunstância judicial com-
preende a análise tanto da provocação, quanto da negligência por parte do ofen-
dido, de modo que, se, em algum momento, a vítima facilitou a ocorrência do
delito, ou, ainda, se estimulou, de algum modo, a prática deste, o seu compor-
tamento será analisado como circunstância judicial favorável ao sentenciado56.
Explica o autor que a mencionada inovação jurídica teria derivado da
crescente importância da vitimologia no direito penal atual, assinalando, ade-
mais, que a ênfase no papel da vítima no cenário jurídico brasileiro atual teria
se acentuado após o advento da Lei nº 9.099/9557. Reconhece, todavia, que,
apesar de a vítima estar ganhando progressiva importância para a dogmática
jurídica, o sistema jurídico pátrio está mais voltado à garantia e proteção da
pessoa do réu do que com preocupações acerca da vítima58.
De acordo com José Antonio Paganella Boschi, a circunstância judicial
irá favorecer o agente quanto se provar que a vítima exerceu um estímulo à
prática delitiva, provocando instigando desafiando ou, simplesmente, autocolo-
cando-se em perigo59. Segundo o autor, o ofendido, intencionalmente ou não,
acaba por contribuir para que o autor do fato atuasse em desconformidade
com as normas jurídicas60.

54
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Impetus,
2008, p.22.
55
BRASIL, Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Exposição de
Motivos nº 2011 de 9 de maio de 1983. Disponível em < http://www2.camara.leg.br/legin/
fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-exposicaodemotivos-
-148972-pe.html> acesso em 19 de junho de 2018.
56
SCHMITT, Ricardo. Sentença penal condenatória.Teoria e prática. 8. ed. Salvador: Juspodivm,
2013, p.139.
57
Id. Ibd., p.139.
58
Id. Ibd., p.139.
59
BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 5. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2011, p.181.
60
Id. Ibd. loc. cit.

185
Esclarece Ricardo Schmitt que, com a previsão da análise da conduta
da vítima como circunstância judicial de pena, caberá ao magistrado exami-
nar em que medida o ofendido contribuiu para a ação delituosa, sem que,
de modo algum, seu comportamento provocador ou arriscado acarrete a
justificação do crime61.
À guisa de elucidação, Ricardo Schmitt se arrisca a exemplificar com-
portamentos temerários ou descuidados que acarretam a favorabilidade da
circunstância judicial, bem como aqueles que não gozariam de força suficiente
para tanto. Neste passo, cuida da vítima de furto que não toma os devidos
cuidados na guarda da coisa e da vítima de crime sexual que trajava roupa
provocante no momento do fato. Para o autor, somente no primeiro exemplo
se estaria diante de uma circunstância favorável, enquanto que, no segundo,
não seria possível reprovar o comportamento da vítima em razão de ninguém
ser obrigado a se trajar com recato62.
O autor chega a acrescentar que a circunstância judicial em comento
“não pode ser valorada para fins de recrudescimento da pena-base do con-
denado”63. Significa dizer que, caso a vítima tenha se portado com extremo
zelo para a tutela de seus bens e, ainda assim, tivesse o agente cometido o
delito, nada haveria que se valorar; de outro lado, caso tenha atuado de forma
negligente ou provocadora, sua atitude deveria ser ponderada como circuns-
tância judicial favorável64.
Também no art. 65, inciso III, alínea “c”, do Código Penal, torna-se a
fazer menção ao comportamento da vítima para atenuar a pena daquele que
cometeu o crime sob a influência de violenta emoção, provocada por ato
injusto da vítima.
Para além dos arts. 59 e 65, em outros momentos o Código Penal
brasileiro confere tratamento específico para o comportamento da vítima. É
o caso do art. 121, § 1º, e do art. 129, § 4º, segundo o qual, para os crimes
de homicídio e de lesão corporal, respectivamente, a injusta provocação da
vítima valerá como causa de diminuição de pena.Vale que, ao contrário do
que se encontra na redação disciplinada no art. 65, nos dois referidos delitos
o legislador faz menção ao domínio de violenta emoção. Esclarece Ricardo

61
SCHMITT, Ricardo. op. cit., p.140.
62
Id. Ibd. loc. cit.
63
Id. Ibd. loc. cit.
64
O mencionado entendimento se coaduna com orientação jurisprudencial pacificada
pelo Superior Tribunal de Justiça, que compreende o comportamento da vítima como
circunstância neutra ou favorável, inapto a funcionar como elemento prejudicial na
fixação da pena-base. Cf. STJ, HC 245665 / AL, 5ª Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro,
DJe 03/02/2014.

186
Schmitt se tratar de uma diferença de intensidade, de modo que o domínio
seria mais determinante do que a mera influência65-66.
Ainda na parte geral do Código Penal, vale dizer que, caso o compor-
tamento da vítima extrapole os limites de uma mera provocação, passando a
figurar injusta agressão, esta será repelida por meio de conduta típica, porém
lícita, nos termos dos arts. 23 e 25, CP, desde de que o ato lesivo seja propor-
cional à lesão injusta sofrida67.
Assim, viu-se que o comportamento da vítima, provocador ou negligente,
assume, na dogmática penal brasileira, tratamento no campo das consequências
jurídicas do delito, isto é, quando da fixação da pena. Excepcionalmente, o
comportamento agressivo por parte do ofendido poderá justificar a própria
lesão, assumindo a legítima defesa a natureza de causa extintiva da ilicitude.
Analisou-se, portanto, de que forma a vitimologia concebe o estudo da
victim precipitation e quais consequências jurídicas a interferência da vítima
na crimogênese hoje assumem perante a legislação penal brasileira em vigor.
Ocorre que, como já tratado, as diferentes formas comportamentais da vítima
já passam a ser associadas, modernamente, a outras consequências dogmáticas,
mesmo que não legalmente previstas.
É o caso, por exemplo, das consequências hoje relacionadas à autolesão; à
lesão consentida; ao comportamento vitimal arriscado, dentre outras situações
fáticas. Entretanto, essas categorias não são interpretadas de maneira neutra,
cabendo analisar quais fatores sociais são determinantes na classificação das
diferentes formas de interferência da vítima na crimogênese, bem como na
avaliação das consequências jurídicas modernamente relacionadas a tais espécies
de victim precipitation.

3. Comportamento vitimal à luz da


criminologia feminista
Tratar de uma criminologia feminista significa, primeiramente, com-
preender que a história é escrita por sujeitos no tempo e no espaço, e que
as palavras traduzem uma, dentre inúmeras perspectivas de vista possíveis.

65
SCHMITT, Ricardo. Sentença penal condenatória.Teoria e prática. 8. ed. Salvador: Juspodivm,
2013, p.190.
66
Vale ressaltar que, quando os arts. 121, § 1º e 129, § 4º, ambos do Código Penal, fazem
menção ao domínio de violenta emoção, esta suposta perda de controle da situação, le-
vando à prática do delito, não é capaz de romper a estrutura analítica de crime, somente
interferindo, pois, na punibilidade do agente, de modo que o art. 28, CP, antecipa eventuais
questionamentos acerca da matéria, determinando que a emoção e a paixão não afastam a
imputabilidade penal.
67
SCHMITT, Ricardo. Sentença penal condenatória.Teoria e prática. 8. ed. Salvador: Juspodivm,
2013, p.140.

187
Considerando a exclusão social, política, cultural e econômica das mulheres,
nota-se que estas sempre ocuparam um papel marginal nas narrativas da his-
tória a partir de seus sujeitos dominantes.
Desta maneira, a história da mulher acaba por ser lida nas entrelinhas
do discurso normativizado. Em tal cenário, o Direito se apresenta como uma
das instituições de controle, responsável não pela punição do delito apenas,
mas, antes, pela sua própria criação. A criminologia crítica já demonstrou que
a origem mais remota do crime se dá com o próprio processo de criminali-
zação, evidenciando que a tipificação do delito sempre traduzirá os interesses
hegemônicos de tutela.
Com isso, em se reconhecendo que a tipificação delitiva não é neutra,
nota-se que, ao se criminalizar uma determinada conduta, já se sabe, precisa-
mente, contra quem a respectiva norma se projetará. Em última análise, pois,
o Direito Penal criminaliza pessoas, não comportamentos; por outro lado, não
protege pessoas, mas interesses.
Demorou-se para notar, todavia, que a imposição de pena pela via do
sistema institucionalizado de tutela não se dá, exclusivamente, pela condução
ao cárcere. A negativa da tutela devida a determinados sujeitos é, também,
uma forma que o Estado encontra de direcionar seu aparato de forma contra
determinados sujeitos considerados indesejáveis.
Por tal razão, o discurso teórico de culpabilização da vítima é um ins-
trumento colocado à serviço da violência institucionalizada contra a mulher,
apresentando suposta consistência teórica guiada a enunciar, com um novo
discurso, as antigas práticas de marginalização e subalternização da mulher
na sociedade. A autorresponsabilização do sujeito passivo pelo delito sofrido
configura, pois, instrumento dogmático de opressão de gênero, desincumbindo
o agente estatal de seu inafastável ônus de tutela.
Impõe-se analisar, nesse sentido, a forma como a criminologia positiva
do século XIX colocou o pensamento atavista à serviço da estigmatização
social da mulher, bem como a forma como a mulher alheia aos padrões da
belle époque foi relacionada à noção de sujeito desviante e, portanto, incapaz
de ocupar, de maneira legítima, a condição de vítima de um delito. Aliado à
definição da mulher criminosa, a construção etiológica das “vítimas natas”
também se edificou a partir de um discurso jurídico androcêntrico, marcado
pela completa exclusão da mulher enquanto sujeito pesquisador, restringin-
do-a a mero objeto de estudo.
Cesare Lombroso, em seus estudos sobre o perfil da mulher criminosa,
dedica especial atenção à análise das prostitutas, apresentando fotografias de
prostitutas francesas e russas, relacionando-as à prática de crimes de homicídio
e atos de violência, bem como a características atávicas na caracterização da

188
criminosa feminina68. Soraia Rosa Mendes explica que a mulher, no paradigma
lombrosiano, é construída como inerte e passiva, mais adaptável à lei do que
o homem, todavia possuidora de personalidade fria, calculista e malévolas,
sendo elas classificadas em criminosas natas, ocasionais, histéricas, passionais,
suicidas, lunáticas, epilépticas e insanas69.
A natureza feminina também foi alvo de atenção Freud. O autor, em
1925, publicou em sua autobiografia que a primazia fálica foi responsável,
no desenvolvimento sexual infantil, por diferenciar os sexos em “de posse
de pênis” ou “castrado”, destacando que “o complexo da castração, com
isso relacionado, torna-se muito importante para a formação do caráter e da
neurose”70. No mesmo ano, ao publicar “Algumas consequências psíquicas
da diferença anatômica entre os sexos”, afirmou que a garota se depara com
o órgão sexual masculino, em comparação ao seu, “pequeno e oculto, e passa
a ter inveja do pênis”, fator que produziria na mulher uma cicatriz marcada
pelo seu complexo de inferioridade71.
O pensamento androcêntrico que marca a construção do pensamento
científico da virada do século XIX para o século XX acaba, consequente-
mente, por se refletir, também, na construção da dogmática jurídico-penal,
notadamente estruturada em uma compreensão sexista e machista do delito.
Note-se, por exemplo, os ensinamentos de Hungria, Lacerda e Fragoso ao se
referirem ao crime de estupro, ressaltando que “o dissenso da vítima deve ser
sincero e positivo, manifestando-se por inequívoca resistência. Não basta uma
platônica ausência de adesão, uma recusa meramente verbal, uma oposição
passiva ou inerte” (grifos do autor)72. O mencionado entendimento, por sua
vez, ainda resta presente na argumentação persuasiva dos tribunais brasileiros.
Destaca Sandra Harding que os estudos da ciência multiculturais e
pós-coloniais mostram como os padrões de objetividade, racionalidade, bom
método, e mesmo boa ciência foram definidos de maneira completamente

68
LOMBROSO, Cesar; FERRERO,William. The Female Offender. New York: Appleton and
Company, 1898, p. 111.
69
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva,
2014, p. 43.
70
FREUD, Sigmund. “Autobiografia” (1925). Obras Completas em 20 volumes.Volume 16. O
eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). Coordenação de Paulo César de
Souza. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 99.
71
FREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos
(1925). Obras Completas em 20 volumes. Volume 16. O eu e o id, “autobiografia” e outros
textos (1923-1925). Coordenação de Paulo César de Souza.Tradução Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 261.
72
HUNGRIA, Nelson; LACERDA, Romão Côrtes de; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Co-
mentários ao Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.Volume VIII.
Arts. 197 a 249. 5. ed. Forense: Rio de Janeiro, 1981, p.107.

189
distanciada das práticas associadas ao feminino, não considerando ideais huma-
nos, mas tão somente uma forma historicamente específica da masculinidade73.
Portanto, é necessário questionar os padrões convencionais de objetivida-
de e racionalidade a partir de epistemologias feministas, reconhecendo-se que,
da mesma forma que homens e mulheres se ocupam de diferentes atividades
em virtude das expectativas e papeis sociais que lhes são atribuídos, também
serão responsáveis por desenvolver formas distintas de conhecimento74.
A autora então destaca o surgimento da Standpoint Theory entre as dé-
cadas de 70 e 80 como expressão de uma teoria crítica feminista voltada a
desconstruir o conhecimento hegemônico e convencional a partir da recom-
preensão das relações que se estabelecem entre a produção de conhecimento
e as práticas de poder75.
Desta maneira, é necessário estabelecer o feminismo como standpoint para
uma nova investigação científica do crime, considerando que “as mulheres
trazem uma visão externa e estranha da ordem social. Pois as mulheres não
contribuíram com a conformação desta ordem, menos ainda com a produção
do conhecimento hegemônico”76.
Por tais razões, sustenta Soraia Mendes, com acerto, que “a investigação
feminista supõe, justamente, a possibilidade de confrontar a experiência ‘como
mulher’ com o conhecimento hegemônico”77. Com isso, a democratização
do discurso impõe o acolhimento de novos pontos de vista na narrativa, na
desconstrução e na reconstrução do discurso hegemônico. A atenção ao lugar
de fala na produção do conhecimento jurídico passa a se apresentar, nesse
contexto, como um dos elementos mais relevantes no processo de legitimação
do discurso.
A abertura para novos olhares na compreensão da gênese do delito
implica, naturalmente, a releitura de tradicionais discursos interpretativos,
a exemplo da abordagem de Isaac Charam, quando este define critérios de
prevenção ao estupro insinuando que os estupradores possivelmente deixariam
a mulher livre caso ela gritasse ou resistisse fisicamente78. Impõe, também,

73
HARDING, Sandra. Gênero, democracia e filosofia da ciência. RECIIS – R. Eletr. de Com.
Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.163-168, jan.-jun., 2007, p.166.
74
Id. Ibd. p.167.
75
HARDING, Sandra. Introduction: Standpoint Theory as a Site of Political, Philosophic,
and Scientific Debate. In: The Feminist Standpoint Theory Reader. New York: Routledge,
2004, p. 1.
76
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva,
2014, p.79.
77
Id. Ibd. loc. cit.
78
CHARAM, Isaac. O estupro e o assédio sexual. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos,
1997, p. 243.

190
uma desconstrução do “comportamento da vítima” enquanto circunstância
judicial neutra ou favorável ao agente sentenciado, primeiro identificando
se tratar de dispositivo legal não neutro e direcionado à culpabilização da
mulher (conforme se fez constar da própria Exposição de Motivos), para em
seguida compreender os efeitos prejudiciais da valoração jurídica da chamada
contribuição vitimal.
Portanto, a (re)compreensão da origem do crime a partir de uma pers-
pectiva feminista é imprescindível para um novo estudo vitimológico, em
que o comportamento social da mulher não seja interpretado como prática
de estímulo ou induzimento à prática delitima, em especial no que tange aos
crimes de violência doméstica e contra a dignidade sexual.

4. Considerações finais
Portanto, de tudo o quanto foi exposto, é possível notar que a interpreta-
ção jurídica da mulher enquanto vítima de delitos é tradicionalmente colocada
à serviço de um modelo social misógino e patriarcal, sendo negada a efetiva
proteção àquelas que não se enquadram nas expectativas sociais burguesas.
A avaliação da precipitação vitimal enquanto fundamento para a inversão
dos polos vítima-agressor na infração penal, socorre, não raro, a elementos
discriminatórios de gênero, sendo colocados como instrumentos de culpabi-
lização da mulher e, consequentemente, de sua sobrevitimização.
A violência estatal que se projeta contra a mulher tem como uma de
suas faces mais cruéis a invisibilização das agressões por ela sofridas, o que
se apresenta quando a intepretação da crimogênese posiciona a vítima da
agressão como culpada ou provocadora do delito sofrido.
Compreende-se, equivocadamente, que o reconhecimento da presunção
de inocência em favor do réu faz derivar como consequência a suposição
da dissimulação da vítima em suas alegações, o que se agrava a partir do
momento em que a análise do comportamento desta é capaz de produzir
alguma vantagem ao acusado, a exemplo da valoração do comportamento da
vítima nas circunstâncias judiciais de dosimetria de pena, ou da incidência da
causa de diminuição de pena no tipo penal de homicídio com fundamento
na injusta provocação da vítima.
A recompreensão da mulher enquanto vítima de agressão à luz de uma
vitimologia feminista não nega ao réu no processo penal o respeito a suas
garantias e direitos fundamentais, mas apenas impõe o devido cuidado e tutela
dos direitos da mulher, evitando a sua vitimização secundária.
Além disso, o olhar feminista para a crimogênese leva à compreensão
hoje da hoje naturalizada opressão direcionada contra a mulher pelo Di-
reito e outras instâncias institucionais de controle. Abrem-se novos olhares

191
interpretativos, novas vias de resistência e de enfrentamentos, novas soluções
projetadas contra um sistema repressivo patriarcalista.

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194
Violência do gênero no Brasil:
Ambiguidades da política criminal1

Debora Diniz2
Sinara Gumieri3 8

1. Introdução
O Brasil não é um país seguro para as mulheres. Os números mostram que
os homens morrem mais do que as mulheres pela violência.4 Mas as mulheres
morrem de um jeito que só amedronta quem sobrevive no corpo sexado
como feminino: elas morrem de feminicídio. As rotas genealógicas indicam
que o neologismo foi inaugurado recentemente como palavra para a agenda
do feminismo latino-americano e caribenho,5 e já é um tipo ou qualificador
do crime de homicídio em pelo menos 14 países da região.6 Feminicídio é

1
As autoras declaram não ter havido financiamento ou qualquer benefício de fontes co-
merciais para realização deste trabalho. Declaram ainda não haver conflito de interesses que
comprometam a cientificidade do presente trabalho.
2
Doutora em antropologia pela Universidade de Brasília. Professora na Faculdade de Direito
da Universidade de Brasília. Pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.
3
Mestra em Direito pela Universidade de Brasília. Pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.
4
WAISELFISZ, Julio. Mapa da violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil. Brasília:
Secretaria de Políticas para as Mulheres, ONU Mulheres, Organização PanAmericana da
Saúde/Organização Mundial da Saúde. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.
org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2018.
5
LAGARDE Y DE LOS RÍOS, Marcela. Antropología, feminismo y política: violencia femi-
nicida y derechos humanos de las mujeres. In: BULLEN, Margaret; MINTEGUI, Carmen
Diez (Org.). Retos teóricos y nuevas prácticas. Donostia: Ankulegi Antropologia Elkartea, 2008.
p. 209-239.
6
ONU MULHERES. Diretrizes nacionais feminicídio: investigar, processar e julgar com pers-
pectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Brasília: ONU Mulheres, Secretaria de
Políticas para Mulheres/Ministério da Mulher, da Igualdade Racial e dos Direitos Huma-
nos, Secretaria Nacional de Segurança Pública/Ministério da Justiça, 2016. Disponível em:

195
tentativa de dar palavra própria a um escândalo de violência – nos termos da
lei brasileira, feminicídio é quando se mata porque a vítima é uma mulher
e as razões da matança são o menosprezo ou discriminação às mulheres ou
as relações afetivas, sexuais, ou de dependência entre o homem e a mulher,
também conhecidas como violência doméstica, conforme concepção da Lei
Maria da Penha.
A Lei Maria da Penha e a Lei de Feminicídio se distanciam no marco nor-
mativo brasileiro pela história de uma década.7 A primeira, Lei 11.340/2006,
não criou novos tipos penais, mas sim estabeleceu uma definição de violência
doméstica e familiar contra mulheres, que poderia ser física, psicológica, sexual,
moral ou patrimonial. A Lei Maria da Penha prevê mecanismos de prevenção
e assistência a mulheres vítimas de violência na casa, com diretrizes específicas
de como a autoridade policial e o judiciário devem tratar os casos. Uma das
principais inovações dessa Lei são as medidas protetivas de urgência, ordens
judiciais que buscam garantir a interrupção das agressões contra a vítima.
O apelido da Lei 11.340/2006 é uma homenagem à Maria da Penha,
uma mulher sobrevivente da tortura na casa.8 Seu marido a espancou até
imobilizá-la – as cicatrizes da violência sofrida a deixaram em uma cadeira
de rodas, e sua história fez com que grupos feministas acusassem o Brasil de
desrespeitar acordos internacionais de proteção às mulheres.9

<http://www.spm.gov.br/central-de-conteudos/publicacoes/2016/livro-diretrizes-nacio-
nais-femenicidios-versao-web.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2018.
7
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial da República Federativa
do Brasil, 8 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 20 fev. 2018.
BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, 10 mar. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2015/lei/L13104.htm>. Acesso em: 20 fev. 2018.
8
FERNANDES, Maria da Penha Maia. Sobrevivi... posso contar. Fortaleza: Armazém da Cul-
tura, 2010.
9
Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de duas tentativas de homicídio cometidas pelo
então marido, Marco Antônio Heredia Viveiro, em 1983. Na primeira agressão com arma de
fogo, Marco Antônio atirou em Maria da Penha enquanto ela dormia, deixando-a paraplégica.
Na segunda, ele tentou eletrocutá-la no banho. Maria da Penha conseguiu separar-se do
agressor, que foi denunciado pelo Ministério Público em 1984. A sentença condenatória por
um tribunal do júri saiu apenas oito anos depois, em 1991. A defesa do agressor recorreu
e, em 1995, um recurso interposto fora do prazo legal foi aceito pelo Judiciário e levou à
anulação da condenação original. Uma nova sentença condenatória foi proferida por um
novo júri em 1996, e o agressor recorreu novamente. Quando Maria da Penha denunciou
o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, apoiada pelo Centro pela Justiça
e pelo Direito Internacional (CEJIL) e pelo Comitê Latino-Americano de Defesa dos
Direitos da Mulher (CLADEM), a justiça brasileira movimentava há 15 anos o processo,
o agressor se mantinha em liberdade. Após o Estado Brasileiro ser responsabilizado pela
CIDH por omissão, tolerância e negligência no enfrentamento à violência doméstica em
2001 (CIDH, 2001), um consórcio de organizações não governamentais (composto pelo

196
Em 2015, como em um segundo capítulo da Lei Maria da Penha,
aprovou-se na Lei de Feminicídio – Lei n. 13.104/2015 – uma alteração do
Código Penal para que o homicídio de mulheres pelas relações de afeto ou
conjugalidade fosse um crime com nome próprio. O feminicídio foi defini-
do legalmente no Brasil como uma qualificadora do homicídio. Homicídios
simples têm pena prevista de seis a vinte anos; para homicídios qualificados,
a pena é de doze a trinta anos. Além disso, a Lei do Feminicídio estabelece
causas de aumento de pena se o crime for praticado contra mulheres grávidas
ou recém-paridas, contra mulheres com menos de 14 anos, com mais de 60
anos ou com deficiência, ou ainda se for cometido na presença de ascendentes
ou descendentes da vítima. Nomear feminicídio seria, portanto, uma forma
de punir melhor e com precisão, a partir das origens da barbárie sexualizada.
São os corpos sexados no feminino os que mais experimentam diferentes
formas de violência, descritas no debate político brasileiro como violência de gênero.
Neste ensaio, provocamos o sentido da expressão, violência de gênero, pensando-a
como violência do gênero.10 Não se trata de substituir a preposição para inaugurar
novidade, mas de resgatar a gramática do poder que anima tanto a fúria de homens
matadores de mulheres quanto a inteligibilidade da proteção sob a lei penal. Há um
regime de poder que despossui as mulheres, até mesmo do direito à sobrevivência
sem violência, e é a ele que reservamos o conceito de patriarcado, sendo o gênero
uma das normas de regulação política dos corpos.11 Ao traçar o funcionamento da
gramática patriarcal é que ousamos estranhar a aliança feminista com o discurso
punitivo como forma de justiça ou promoção da igualdade no Brasil.

2. Gênero e Lei Maria da Penha:


do corpo à casa
Simone de Beauvoir e Judith Butler podem ser entendidas como ícones
de transição para o pensamento feminista acadêmico no Brasil nos últimos

CLADEM/Brasil, CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, CFEMEA –


Centro Feminista de Estudos, Assessoria IPE – Instituto para a Promoção da Equidade e
THEMIS – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero) iniciou uma ação de advocacy feminista
em 2002, que culminou na aprovação da Lei Maria da Penha em 2006.
CAMPOS, Carmen Hein de. Apresentação. In: CAMPOS, Carmen Hein de (Org.). Lei Maria
da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011.
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS Humanos - CIDH. Relatório n.
54/01: Caso n. 12.051. Maria da Penha Maia Fernandes contra Brasil. 2011. Disponível
em: <https://cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm>. Acesso em: 20 fev. 2018.
10
DINIZ, Debora. Feminismo: modos de ver e mover-se. In: GOMES, Patrícia, DINIZ,
Debora, SANTOS, Maria Helena e DIOGO, Rosália Diogo (Org.). O que é feminismo?
Lisboa: Escolar Editora, 2015. p. 47-60.
11
DINIZ, Debora; COSTA, Bruna; GUMIERI, Sinara. Nomear feminicídio: conhecer, simbo-
lizar e punir. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 23, n. 114, p. 225-239, mai./jun. 2015.

197
trinta anos12– se a primeira inspirou os estudos de gênero, a segunda, os es-
tudos de sexualidade.13 Se Beauvoir anunciava que gênero seria a categoria
analítica a ser enfrentada para entender questões como violência ou mater-
nidade, Butler pensaria nos corpos como matéria plástica para a socialização
e para a criação irreverente pela repetição sempre original da expectativa de
papeis de gênero. Beauvoir e Butler inspiraram grupos geracionais e políticos
diferentes para o feminismo acadêmico brasileiro, mas iluminaram de maneira
semelhante o conceito de gênero – gênero é o vivido; sexo ou inexiste, ou
sempre foi gênero.
Gênero passou a ser categoria analítica e populacional para a política
criminal no Brasil na última década. A incorporação da categoria parte de
inspirações teóricas conhecidas, mas não é determinada por coerência a elas:
desenvolve-se em meio a disputas sobre punição e normalização. A Lei Ma-
ria da Penha inaugura a incorporação da categoria gênero nas políticas de
governo a partir de um marco específico de teorias feministas – as relações
entre os papéis de gênero é o que animaria a violência contra a mulher: “(...)
configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou
omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual
ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.14 Há mulheres e homens para
a Lei Maria da Penha, ambos pensados em uma forma de linhagem natural:
sexados como femininos e masculinos ao nascer, amadurecem como mulheres
e homens. A sexagem seria um gesto classificatório de visagem da matéria a
partir de critérios biomédicos centrados na genitália. O binarismo original
seria, portanto, fundador das relações de gênero. Nesta compreensão é que os
homens seriam os agressores; as mulheres, as vítimas da violência de gênero
para a política criminal.
Mas a Lei Maria da Penha sugere ainda que mulheres também podem
ser agressoras na casa. Segundo seus termos, uma mulher lésbica pode recla-
mar proteção se agredida por uma companheira com a qual convive, já que

12
DINIZ, Debora; FOLTRAN, Paula. Gênero e feminismo no Brasil: uma análise da Revista
Estudos Feministas. Estudos Feministas, v. 12, p. 245-253, 2004. Disponível em: <https://
periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2004000300026>. Acesso
em: 20 fev. 2018. GROSSI, Miriam Pillar; MINELLA, Luzinete Simões; PORTO, Rozeli.
Depoimentos: trinta anos de pesquisas feministas brasileiras sobre violência. Florianópolis:
Editora Mulheres, 2006.
13
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. de Sergio Millet. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2009.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.Trad. de Renato
Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
14
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial da República Federativa
do Brasil, 8 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 20 fev. 2018.

198
as relações pessoais enunciadas para a caracterização da violência – relações
domésticas, familiares ou íntimas de afeto – “independem de orientação
sexual”.15 Houve quem sugerisse haver na Lei Maria da Penha o primeiro
reconhecimento legal de conjugalidades.16 Essa fissura deve ser analisada com
cautela, pois é ambígua no que se entende como uma conquista para novas
formas de vivência de gênero ou de afeto.
Em 2006, a partir da edição da Lei Maria da Penha, mulheres lésbicas
poderiam ser denunciadas por agressões a companheiras, mas não podiam
demandar o instituto civil do casamento: o reconhecimento das uniões civis
entre pessoas do mesmo sexo teve início com a decisão do Supremo Tribunal
Federal na ADPF 132, em 2011.17 Assim, o gesto de aparente ampliação das
vivências de gênero realizado por uma lei criminal nos parece ter outros marcos
de inteligibilidade: o primeiro é que, se somente corpos sexados como femini-
nos e identificados como mulheres seriam os protegidos pela política criminal,
o conteúdo de gênero da Lei Maria da Penha seria um retorno ao binarismo
original da matéria; o segundo seria a ampliação das linhagens punitivas de
controle do Estado brasileiro, pois não se subvertem padrões binários de gênero
classificatório dos corpos, mas se garantem novos alcances à punição.
A disputa em torno da compreensão de gênero na identificação de
vítimas da violência patriarcal ganhou visibilidade também com a intensa
controvérsia política que a demanda de corpos desviantes da norma heteros-
sexual provoca para a aplicação da Lei Maria da Penha. Litígios envolvendo
travestis e mulheres trans provocam o conteúdo de gênero da Lei no sentido
de afastá-lo da reprodução do binarismo original para incluir na categoria
mulher identificações que desafiam a sexagem masculina do nascimento, e
que requerem proteção ao experimentar precarizações em relações de afeto
e dependência com homens.
Mas há ainda litígios que buscam incluir homens gays no marco protetivo
da Lei Maria da Penha, com apoio de juristas feministas, sob o argumento
da igualdade de famílias fora da heteronorma: a violência doméstica ocorre
na casa; a casa abriga a família; as famílias têm múltiplos formatos sexuais.18

15
Idem, ibidem.
16
PIOVESAN, Flávia; PIMENTEL, Silvia. A Lei Maria da Penha na perspectiva da respon-
sabilidade internacional do Brasil. In: CAMPOS, Carmen Hein de (Org.). Lei Maria da
Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris,
2011. p. 101-118.
17
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 132/RJ. Min. Rel. Ayres Britto. Diário de
Justiça Eletrônico, 13 out. 2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/
verProcessoAndamento.asp?incidente=2598238>. Acesso em: 20 fev. 2018.
18
DIAS, Maria Berenice;e REINHEIMER, Thiele Lopes. Violência doméstica e as uniões
homoafetivas. Compromisso e atitude Lei Maria da Penha. 2013. Disponível em: <http://

199
Esse deslocamento do gênero nos corpos para o gênero no espaço da casa
permitiria um traçado genealógico de ontologias fundadoras da cultura bra-
sileira – em Gilberto Freyre, por exemplo, a casa é o espaço da ordenação do
poder patriarcal e os corpos em diferentes hierarquias de subalternidade se
expõem à soberania do patriarca: a escrava, a mulata livre, a sinhazinha branca,
o moleque de engenho.19
O esforço político para o reconhecimento da diversidade das famílias
é parte da desestabilização da ilusão de natureza da sexagem binária, mas
pretender fazê-lo sob a Lei Maria da Penha acrescenta-lhe ambiguidades. A
primeira, que é o principal objeto de crítica feminista, é de que, se se en-
tende que a Lei Maria da Penha aplica-se a todos, incluindo aqueles sexados
machos que se reconhecem como homens, instaura-se uma neutralidade
de sexagem para o risco à violência de gênero, o que poderia terminar por
retornar ao marco anterior de proibição de violência como um crime abs-
trato contra quaisquer corpos. A segunda, silenciada por sua naturalização
na ordem patriarcal de reprodução da vida, é de que se há neutralidade da
sexagem na Lei Maria da Penha, a casa passa a ser assumida como núcleo da
violência – não seriam corpos subalternizados pela moral da sexagem, mas a
casa a matéria a ser protegida. Seria a ilusão de uma ordem não violenta na
casa com qualquer composição familiar o objeto de proteção da Lei Maria
da Penha, um giro louvável de reconhecimento, porém com implicações
de silenciamento para a demanda feminista de que a casa é particularmente
violenta para as mulheres em relações de afeto e dependência dos homens.
Em nome do reconhecimento indireto, pela lei penal, da diversidade sexual
das famílias, a Lei Maria da Penha perderia seu caráter de ação afirmativa
para mulheres: não seria mais um instrumento de aprendizado civilizatório
diante da realidade sociológica da violência de gênero e da negação histórica
de acesso à justiça para mulheres.
Do corpo para a casa provoca um deslizamento sutil, porém importante
para entender o que também movimenta sentidos da Lei Maria da Penha.20 A

www.compromissoeatitude.org.br/violencia-domestica-e-as-unioes-homoafetivas-por-ma-
ria-berenice-dias-e-thiele-lopes-reinheimer/>. Acesso em: 20 fev. 2018.
19
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. São Paulo: Global, 2003.
20
O deslocamento para a proteção da casa é facilmente naturalizado pelo judiciário. Em 2017,
o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia decidiu mudar o nome das Varas de Violência
Doméstica e Familiar para Varas de Justiça pela Paz em Casa, incentivando, ainda, a inclusão
de práticas de justiça restaurativa, com o apoio do Conselho Nacional de Justiça.
AZEVEDO, Donminique. Justiça pela paz em casa? Entenda mudança de nome das Varas
de Violência Doméstica. Correio Nagô, Salvador, 20 ago. 2017. Disponível em: <http://
correionago.com.br/portal/justica-pela-paz-em-casa-entenda-mudanca-de-nome-das-
-varas-de-violencia-domestica/>. Acesso em: 20 fev. 2018.

200
vítima, ao ser qualquer indivíduo em subjugo ao patriarca doméstico, faz com
que as linhagens políticas da Lei Maria Penha se cruzem à luta feminista, mas
ganhem contornos conservadores, evitando gênero como categoria central
ao debate público. Para entender a violência contra as mulheres como um
disciplinamento patriarcal em uma ordem normativa do gênero é preciso,
antes, desnaturalizar as expectativas sobre o feminino e o masculino e his-
toricizá-los na cultura brasileira; por outro lado, ao transformar a Lei Maria
da Penha em marco protetor universal de vítimas nas instituições familiares,
é o doméstico e a casa que retornam à cena, e não exatamente as mulheres
ou as meninas. Passamos das vítimas aos espaços; das mulheres ao patriarca.
A ambiguidade da assunção da casa como a matéria a ser protegida por
uma leitura ampliada na Lei Maria da Penha pode ter ainda outros efeitos de
discriminação interseccional contra mulheres vítimas da violência patriarcal.
A casa pode ser tanto o que representa a existência de vínculos e afetos ig-
norados pelo marco legal, mas também um tipo específico e hegemônico de
vínculo a ser protegido. Em nosso estudo sobre as mortes violentas de mulheres
ocorridas no Distrito Federal, região da capital do país, entre 2006 e 2011,
encontramos que uma em cada três foi morta por feminicídio.21 As vítimas
eram mulheres comuns: tinham entre 15 e 68 anos, metade delas tinha filhos
com os matadores, que eram maridos ou ex-companheiros. Há, no entanto,
um excesso de mulheres negras entre as vítimas: as chances de uma mulher
negra ser vítima de feminicídio na região da capital do país é três vezes maior
que a de uma mulher branca. ­A proporção de mulheres negras mortas na cifra
oculta – isto é, nos casos para os quais após três anos de investigação ainda
não havia avanço nas conclusões policiais – é seis vezes maior do que entre
as mulheres brancas. Mulheres negras também são mortas seis vezes mais em
bares e ruas que mulheres brancas.
Os dados sobre feminicídios na região da capital do Brasil exigem
entender que cor, classe e geografia são também normas de regulação dos
corpos que movimentam o regime de poder do patriarcado, e provocam
diferentes vulnerabilidades na vida das mulheres, de forma interseccional,
isto é, por opressões que se cruzam e se retroalimentam. Mulheres brancas
e negras morrem na casa, mas mulheres negras também morrem na rua. A

BANDEIRA, Regina. Hoje na Bahia a XI Jornada Maria da Penha. Agência Conselho Nacional
de Justiça Notícias, Brasília, 18 ago. 2017. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/
cnj/85252-justica-restaurativa-e-o-destaque-da-xi-jornada-maria-da-penha>. Acesso em:
20 fev. 2018.
21
A tramitação dos processos judiciais analisados nesse estudo é anterior à Lei de Feminicídio,
criada em março de 2015. Falamos em feminicídio, portanto, como categoria analítica para
os casos, embora não fosse ainda uma categoria penal no Brasil.
DINIZ; COSTA; GUMIERI, op. cit.

201
geografia política do feminicídio indica diferentes regimes de precarização
da vida das mulheres pelo racismo da sociedade brasileira – a rua, como era
chamada a senzala no tempo colonial,22 é um espaço de intensa permanência
da mulher negra trabalhadora. A morte em um bar ou em uma esquina é um
indicador da desigual distribuição da vulnerabilidade dos corpos à violência
de gênero. A estratégia de subsumir mulheres a proteções universalizantes já
falhou historicamente; enfrentar a violência contra as mulheres exige visibilizar
e entender as especificidades das precarizações interseccionais vivenciadas.23
Esse é o saldo de nosso esforço em pensar a incorporação da categoria
gênero na política criminal a partir de suas ambiguidades: gênero na Lei Maria
da Penha busca desnaturalizar uma violência contra fêmeas-mulheres que teria
origem na relação afetiva, sexual e de dependência com machos-homens.
Na disputa interpretativa, a demanda por desnaturalização da vivência dos
corpos e afetos é tensionada para incluir, razoavelmente, a violência sofrida
por mulheres cuja identificação desafia a sexagem do nascimento. A tensão
interpretativa pode, no entanto, levar a leituras universalizantes da Lei Maria
da Penha: seu objeto já não seriam as violências contra mulheres, mas qualquer
agressão ocorrida na casa. A expansão da Lei Maria da Penha para homens
gays apaga as precariedades específicas da sexagem das mulheres – sejam as
destinadas por nascimento ou as transformadas pela vivência – que original-
mente se buscava visibilizar. Se a casa e a família como espaço e instituição
de reprodução social passam a ser o núcleo da proteção, a Lei Maria da Penha
perde sua potência de denúncia do patriarcado heterossexista para tornar-se
um instrumento de seu ajuste: a prioridade são famílias não violentas ao invés
de mulheres protegidas contra violência.

3. Gênero e Lei do Feminicídio:


essencialização da vítima perfeita
A Lei do Feminicídio é produto de outro giro interpretativo da cate-
goria gênero em leis penais. O projeto original da Lei do Feminicídio falava
em feminicídio como morte de mulher por razões de gênero, mas a redação
aprovada o define por razões da condição do sexo feminino. A mudança bus-
cava restringir o marco de reconhecimento de vítimas de homens matadores
apenas aos corpos sexados como femininos ao nascer (Campos 2015).24 A

22
REGO, José Lins do. Menino de engenho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
23
FLAUZINA, Ana. Lei Maria da Penha: entre os anseios da resistência e as posturas da mi-
litância. In: FLAUZINA, Ana; FREITAS, Felipe;VIEIRA, Hector; PIRES,Thula. Discursos
negros: legislação penal, política criminal e racismo. Brasília: Brado Negro, 2015. p. 121-151.
24
CAMPOS, Carmen Hein de. Feminicídio no Brasil: uma análise crítico-feminista. Sistema
Penal & Violência, v. 7, n. 1, p. 103-115, jun. 2015. Disponível em: <http://revistaseletronicas.

202
substituição não foi inspirada por controvérsias teóricas se sexo sempre foi
gênero ou se sexo e gênero seriam categorias distintas: a motivação foi ex-
plicitamente discriminatória a formas de vivência de gênero deslocados da
sexagem original.
Ao eliminar gênero do texto legal, buscava-se evitar a incorporação de
corpos fora do binarismo original – como travestis e mulheres trans – como
vítimas de feminicídio. Em um dos episódios do debate legislativo, a herme-
nêutica jurídica que ganhava força para justificar a correção de gênero por
sexo se expressava da seguinte forma:

Observe-se, ainda, que a norma é clara no sentido de que o sujeito


passivo do feminicídio é o do sexo feminino, não estando engloba-
do o transexual, mesmo que obtenha a retificação do seu registro
civil. Mulher é aquela que nasce mulher, ou seja, que em tese possa
procriar e ser mãe. O transexual pode até parecer mulher, mas
não o é para efeitos do Direito Penal, que pressupõe condição de
vulnerabilidade do gênero, o que na maioria das vezes não ocorre
com o transexual, que tem a força e a compleição física do homem,
pelo menos em regra.25

A autoridade jurídica do trecho foi a de um professor, autor de manuais


de Direito Penal, e promotor de justiça – a voz que, futuramente, denuncia-
ria o agressor para a justiça pela lei criminal e ensinaria sobre como fazê-lo.
Segundo o promotor de justiça, mulher seria aquela cujo corpo é frágil, por
isso a exigência do dobramento espontâneo entre sexagem e gênero.Vulnera-
bilidade não seria precarização da vida pelos regimes variados de desigualdade
ao corpo, em que cor e classe se esmiúçam à vida sexada no feminino – vul-
nerabilidade, segundo o promotor de justiça, seria fraqueza para luta. É desse
confuso marco de crença igualitarista por políticas criminais que sintagmas
centrais à vida das mulheres desapareceriam do debate sobre violência – se há
um patriarcado que oprime os corpos das mulheres (e por qualquer regime
de classificação, se o civil ao nascimento, ou o da transformação nos corpos
trans), é um patriarcado com cor e classe, portanto, patriarcado racista classista.
Diferentes giros interpretativos sobre a categoria gênero marcam os pactos
políticos de proteção às mulheres em situação de violência no Brasil na última
década. Na aplicação da Lei Maria da Penha, a potência desnaturalizadora da

pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/article/viewFile/20275/13455>. Acesso
em: 20 fev. 2018.
25
SILVA, César Dario Mariano da. Primeiras impressões sobre o feminicídio – Lei nº
13.104/2015. Ministério Público do Estado de São Paulo, 2015. Disponível em: <http://
www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_criminal/Artigos/Primeiras%20impress%-
C3%B5es%20sobre%20o%20feminic%C3%ADdio.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2018.

203
categoria gênero é apropriada em uma frágil estratégia de reconhecimento
indireto da diversidade de afetos pela ampliação do alcance da punição. Não
recusamos a proteção a homens gays em relações violentas: são legítimas as
demandas singulares de enfrentamento à violência para pessoas fora da hete-
ronorma. Mas, ao se pretender mesclar essas diferentes demandas de reconhe-
cimento sob a Lei Maria da Penha, criada para ser aplicada exclusivamente a
mulheres, a manobra hermenêutica acaba por tratar a proteção às mulheres
como consequência de uma proteção à família, que deve ser estabilizada e
harmonizada. A família é, historicamente, uma categoria da economia mo-
ral da justiça para as mulheres. Sob marcos legais anteriores, a família foi o
pretexto para que não se permitisse que a violência da casa não alcançasse a
polícia ou o judiciário;26 repaginada sob a bandeira da diversidade, a família
ressurge como critério de proteção das mulheres sob a Lei Maria da Penha:
menos pelo direito a uma vida sem violência, e mais porque todas as famílias,
dentro ou fora da heteronorma, devem ser pacíficas.27
Já na Lei do Feminicídio, a resistência conservadora à potência desnatura-
lizadora da categoria gênero tem contornos essencializadores: retirar gênero da
Lei é tentar devolver a conversa sobre direito à vida para a natureza do feminino,
isto é, a sexagem original de uma fêmea para se transformar em mulher como
vítima de um homem.A controvérsia sobre a palavra gênero no texto da Lei de
Feminicídio nos parece uma pista poderosa para reforçar a tese que já sustentamos
para a Lei Maria da Penha: o marco hegemônico de inteligibilidade da violência
contra as mulheres no país é o da violência contra mulheres designadas fêmeas
ao nascer, subalternizadas na família heterossexual e reprodutora.
Os diferentes percursos interpretativos da categoria gênero na Lei Maria
da Penha e na Lei do Feminicídio têm em comum o marco penal. Sabemos
que o castigo é no mínimo insuficiente para interromper e reparar os danos de
agressões sofridas por mulheres, e é desacreditado como estratégia de prevenção
geral da violência. As disputas penais sobre a categoria gênero se movimen-
tam, talvez, menos em função da proteção das mulheres e mais em torno da
normalização da punição, ou seja, daquilo em nome de quê a engrenagem
punitiva do Estado deverá ser movida. A luta por reconhecimento por meio
da punição tende à definição da vítima perfeita, que é a fêmea-mulher-mãe.
Por isso, ousamos provocar o jogo entre preposições para descrever o
marco de poder em curso para animar e conter a violência contra as mulheres

26
CAMPOS. Feminicídio...
27
GUMIERI, Sinara. Lei Maria da Penha e gestão normalizadora da família: um estudo sobre a
violência doméstica judicializada no Distrito Federal entre 2006 e 2012. 2016. Dissertação
(Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2016. Disponível em: http://
repositorio.unb.br/handle/10482/19931. Acesso em: 20 fev. 2018.

204
no Brasil – não seria violência de gênero, mas violência do gênero. Gênero
deve ser entendido como uma norma de formação e conformação dos corpos
sexados, por isso sexo ou gênero seria indiferente para a análise do marco – é
no gesto da sexagem que o patriarcado atualiza suas táticas e tecnologias de
normalização. Mas o gênero não estaria apenas na vivência cotidiana dos corpos
pela sexualidade, mas nas formas de convivência no espaço social ampliado,
isto é, na casa ou nas escolas, na igreja ou no parlamento, nas delegacias ou
nos tribunais. É do patriarcado como regime de poder que precisamos partir
para entender como o gênero é uma tática de poder inscrita nos corpos e nos
discursos. Por isso, o gênero não está apenas nos corpos dos sujeitos sexados,
isto é, dos homens agressores ou das mulheres vítimas, mas no governo das
instituições, proteções e direitos, sendo o braço punitivo um dos mais im-
portantes para pensarmos o gênero como uma norma reguladora dos corpos
e vivências a partir do patriarcado.
Se nosso argumento for razoável, tanto a Lei Maria da Penha quanto a
Lei do Feminicídio são instalações ambíguas para a proteção das mulheres
em um regime de poder patriarcal. Se, por um lado, devem ser consideradas
conquistas civilizatórias – é o governo da vida anunciando que as mulheres
devem ser protegidas e devem viver sem medo de violência – por outro
lado, são atualizações silenciosas da moral patriarcal pela centralidade na
família. O deslizamento controverso para outras formas de vivências dos
corpos como vítimas possíveis da Lei Maria da Penha é um desses sinais:
qualquer sujeito seria vítima na casa, não importa sua sexagem ou gênero.
A pista mais importante, no entanto, é a via punitiva para lutas igualitaris-
tas: não há rompimento com o marco patriarcal de regulação da vida no
gênero, mas controle de seus desvios. A punição ao homem violento ou
ao homem matador pode ser uma forma de proteção às mulheres, mas é
também uma peça fundamental para a garantia da estabilidade da família
para a reprodução social e biológica.

4. Considerações finais
A Lei Maria da Penha é assumida como uma conquista para os movi-
mentos de mulheres no Brasil – seja pelo o uso simbólico do Direito Penal
para afirmar que a vida das mulheres tem valor, seja pela eficácia punitiva
posta em ação, pois se puniria melhor os homens agressores. Há, no entanto,
um marco ambíguo movimentado para a justiça sexual pela via punitiva: a Lei
Maria da Penha é uma lei criminal que traz para si políticas sociais, medidas
protetivas, direitos civis. Uma mulher vítima de violência tem na delegacia
a porta de entrada para a proteção social, e se as medidas protetivas eram já
objeto de disputa pelo judiciário, com as tentativas de revisão legislativa para

205
que as medidas protetivas sejam atribuição imediata da autoridade policial, a
identidade criminal da Lei pode ganhar maior evidência.28
A Lei Maria da Penha prevê, entre dezenas de medidas protetivas, a
possibilidade de determinar ao agressor que garanta a prestação de alimentos
à vítima, ou o encaminhamento da vítima a programas de proteção como
casas abrigos. Para se manterem longe de agressores, mulheres em situação de
violência precisam ter para onde ir, e recursos imediatos para cuidar de si e de
seus filhos. No entanto, em nosso estudo sobre a aplicação da Lei Maria da
Penha no Distrito Federal entre 2006 e 2012, verificamos que essas alternativas
são pouco empregadas: enquanto medidas que determinam que agressores
saiam de casa, fiquem longe e não façam contato com vítima são deferidas
entre 50 e 70% das vezes em que são requeridas; o deferimento de medidas
de prestação de alimentos e encaminhamento a programas de proteção ocorre
em apenas 4 e 33% dos casos, respectivamente.29 (ANIS, 2015).
As justificativas judiciais para a baixa aplicação dessas medidas, quando
existem, são burocráticas: faltariam informações sobre a renda dos agressores,
ou sobre as necessidades de sobrevivência das vítimas. À burocracia que obs-
taculiza direitos mesmo depois de dez anos de implementação da Lei Maria
da Penha, somaríamos outra hipótese: a de que a sensibilidade do Judiciário
seja maior para emitir ordens genéricas de interrupção da violência, com
medidas protetivas impeditivas de contato entre agressores e vítimas, do que

28
O Projeto de Lei da Câmara n. 7/2016, de autoria do deputado Sérgio Vidigal (PDT)
propôs aperfeiçoar o atendimento policial e pericial especializado para mulheres vítimas
de violência doméstica. Estabelecia, entre outras medidas, que em caso de “risco atual ou
iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes, a
autoridade policial, preferencialmente da delegacia de proteção à mulher, poderá aplicar
provisoriamente, até deliberação judicial, as medidas protetivas de urgência previstas no
inciso III do art. 22 e nos incisos I e II do art. 23 desta Lei, intimando desde logo o ofensor”
e que “a autoridade policial poderá requisitar os serviços públicos necessários à defesa da
vítima e de seus dependentes”. O projeto foi aprovado em outubro de 2017, mas a pre-
visão relativa à concessão de medidas protetivas por delegados foi vetada pelo presidente
não-eleito Michel Temer em seguida.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei da Câmara n. 7/2016. 2016. Disponível
em: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125364>. Acesso
em: 20 fev. 2018.
RIBEIRO, Luici.Temer veta possibilidade de delegado autorizar medida protetiva a mulheres
vítimas de agressão. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 09 nov. 2017. Disponível em: <http://
brasil.estadao.com.br/noticias/geral,temer-veta-possibilidade-de-delegado-autorizar-me-
dida-protetiva-a-mulheres-vitimas-de-agressao,70002078026>. Acesso em: 20 fev. 2018.
29
ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA. Implementação de medidas protetivas da Lei Maria da
Penha no Distrito Federal. Brasília: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) e Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (SENASP/
MJ), 2015. Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-content/uplo-
ads/2015/09/Relat%C3%B3rio-Final_Medidas-Protetivas_ANIS-DF.pdf>. Acesso em: 20
fev. 2018.

206
para a necessária interferência em arranjos familiares de recursos e regimes de
dependência que reforçam a vulnerabilidade das vítimas. Essa leitura remete
a nossa tese do marco hegemônico de enfrentamento à violência doméstica
no Brasil: a proteção das mulheres não pode desestabilizar as famílias.
Os dados sobre a aplicação de medidas protetivas sugerem que o marco
punitivo da Lei Maria da Penha tende a se sobrepor àquele da proteção social
das mulheres. Mas como parte do reconhecimento de que a proteção das
mulheres requer ação pública sobre a produção da violência, a Lei Maria da
Penha também prevê outras estratégias de enfrentamento à violência. Para
prevenção, a Lei prescreve gênero, raça e etnia como categorias reflexivas para
escola, meios de comunicação, práticas institucionais de órgãos públicos.30 É
um esforço político muito mais promissor do que o punitivo, em nossa opi-
nião, para a transformação de instituições reprodutoras do poder patriarcal,
que socializam meninas e meninos para hierarquia na casa, no mundo do
trabalho, na política representativa.
Nesse campo em que a implementação da Lei Maria da Penha é ainda
tímida, também nos parece importante mapear os efeitos políticos da categoria
gênero. A intensa reação conservadora tem se concentrado em converter gê-
nero em conceito maldito e apagá-lo de marcos normativos da educação – a
exemplo do que foi feito no texto da Lei de Feminicídio.31 A estratégia de
censura à palavra ganhou força em 2014, nos debates do Plano Nacional de
Educação no Congresso Nacional, e se capilarizou na aprovação dos planos
estaduais e municipais no ano seguinte. A tática conservadora, em particu-
lar da Igreja Católica, um dos principais atores no debate, é falseá-lo com
o apelido de ideologia de gênero,32 que destruiria a família ao reconhecer
como legítimas vivências do corpo e da sexualidade fora da heteronorma. O

30
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial da República Federativa
do Brasil, 8 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 20 fev. 2018.
31
A mesma estratégia conservadora tem ameaçado a Lei Maria da Penha: recente proposta
legislativa na Câmara dos Deputados busca substituir a palavra gênero por sexo no texto
da Lei. A tentativa é impedir que travestis ou transmulheres tenham direito de proteção
pela Lei – a despeito da jurisprudência que já reconhece essa interpretação –, mas também
resistir por diferentes vias argumentativas à adoção do conceito político de gênero por leis,
normas e direitos no Brasil.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei da Câmara n. 7/2016. 2016. Disponível
em: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125364>. Acesso
em: 20 fev. 2018.
32
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Nota da CNBB sobre a
inclusão da ideologia de gênero nos Planos de Educação. 2015. Disponível em: <http://www.
cnbb.org.br/index.php?option=com_docman&view=document&layout=default&alias=-
2265-nota-da-cnbb-sobre-a-ideologia-de-genero&category_slug=notas-e-declaracoes&I-
temid=252>. Acesso em: 20 fev. 2018.

207
horror conservador ao conceito de gênero segue mobilizando projetos legis-
lativos antidemocráticos de censura na educação, como o movimento Escola
sem Partido, mas acaba por também demonstrar a potência do conceito de
gênero para desestabilizar discursos naturalizantes para a desigualdade sexual
sem precisar recorrer à normalização da família.33 É no cerne dessa disputa
política entre punição e transformação da socialização que ora gênero é um
conceito conservador nas políticas criminais para a proteção da família antes
que da mulher; ora se apresenta como conceito perturbador para as políticas
sociais, em particular as educacionais.

Referências
BRASIL. Câmara dos Deputados. 2015. Projeto de Lei n. 477/2015. Disponível
em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPro-
posicao=949119>. Acesso em: 20 fev. 2018.

33
Originado no Projeto de Lei Distrital n. 1/2015, de autoria da deputada distrital Sandra
Faraj (SDD), o programa Escola sem Partido pretende impor uma ilusão de neutralidade
política às escolas, impedindo que professores e estudantes promovam debates sobre opressões
e luta por direitos como componentes curriculares de uma educação comprometida com
a cidadania. Os defensores do programa alegam querer evitar que educadores imponham
suas convicções políticas e religiosas a crianças e adolescentes, mas seu propósito é manter
desigualdades e desresponsabilizar escolas nas lutas por igualdades no país. O projeto do
Distrito Federal veda a “doutrinação política e ideológica em sala de aula” e proíbe pro-
fessores de “introduzir, em disciplina obrigatória, conteúdos que possam estar em conflito
com as convicções morais e religiosas dos estudantes ou de seus pais”. Dispositivos seme-
lhantes estiveram previstos na versão federal do programa, no Projeto de Lei do Senado n.
193/2016, do pastor e senador Magno Malta (PR), que incluía também a determinação
de que “o Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qual-
quer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e
desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica
de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia
de gênero”. O projeto foi arquivado no Senado no final de 2017, mas o senador Malta já
afirmou a pretensão de retomar o projeto em outras versões.
CÂMARA LEGISLATIVA DO DISTRITO FEDERAL. Projeto de Lei n. 1/2015. 2015.
Disponível em: <http://legislacao.cl.df.gov.br/Legislacao/consultaProposicao-1!1!2015!-
visualizar.action>. Acesso em: 20 fev. 2018.
BRASIL. Senado Federal. 2016. Projeto de Lei do Senado n. 196/2016. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125666>. Acesso em:
20 fev. 2018.
CORREIO BRAZILIENSE. Senado arquiva projeto Escola Sem Partido. Correio Braziliense,
Brasília, 08 dez. 2017. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/
eu-estudante/ensino_educacaobasica/2017/12/08/ensino_educacaobasica_interna,646651/
senado-arquiva-projeto-escola-sem-partido.shtml>. Acesso em: 20 fev. 2018.

208
Feminicídio, invisibilidade
e espetacularização:
refinamento da análise típica
a partir dos marcadores de gênero

Julia Somberg1
Paula Rocha Gouvêa Brener 2
Marcelo Maciel Ramos3 9

1. Introdução
“Marido faz mulher refém por ciúmes”,
“Ex-marido espanca e estupra ex-mulher por ciúmes”,
“Suspeito matou e esquartejou mulher para evitar separação”.
Esses são excertos de notícias reportadas em mídias brasileiras. A análise
de manchetes difundidas no país acerca do feminicídio torna evidente a cons-
tante invisibilização do tema, tratado usualmente como passional, resultado
de uma crise no relacionamento ou de ciúmes. O presente trabalho quer
lançar luz sobre o problema, qual seja: a invisibilização e espetacularização
do feminicídio pelos veículos de informação brasileiros.
Pretende-se evidenciar, analisar e problematizar a cultura da violência
contra a mulher que é constantemente amenizada, reproduzida e naturalizada
no país, não obstante os esforços para o seu combate como, por exemplo, a
criação da Lei 13.104 de 2015. Referida lei, ao alterar o art. 121 do Código
Penal Brasileiro,4 adicionando o feminicídio como qualificadora do crime de

1
Estudante de Direito da UFMG; Pesquisadora de iniciação científica no grupo “Ecos
de Liberdade”.
2
Estudante de Direito da UFMG, Pesquisadora de iniciação científica voluntária pelo pro-
grama ICV 04/17.
3
Professor Adjunto da UFMG. Doutor e mestre em Direito pela UFMG/ Institut de la Pen-
sée Contemporaine da Université Paris-Diderot. Pesquisador do Projeto Interinstitucional
Inclusionary Practices, University of Kent (Reino Unido)/UFMG.
4
Assim determina o Código Penal Brasileiro (Decreto Lei nº 2.848, de 7 de dezembro
de 1940):

209
homicídio, penaliza mais gravemente a conduta do homicídio de mulheres
motivado por questões de gênero ou violência doméstica.
A importância do tema da violência contra a mulher se torna ainda mais
relevante diante do fato de que a política legislativa do Estado não impede
o aumento dessa forma de violência. Destaca-se o aumento no número de
casos de homicídio de mulheres por 100 mil habitantes no Brasil desde a
aprovação da Lei Maria da Penha, em 2006. Conforme aponta o Mapa da
Violência de 2015, esse número subiu de 3,9% em 2007 para 4,8% em 2013.
O específico interesse dessa investigação pelos veículos midiáticos advém
do seu forte potencial formador da opinião pública, o que, consequentemente, os
torna importante ferramenta para a mudança ou manutenção do grave quadro de
violência doméstica no país. Destaca-se, ainda, o fato de que a maioria dos indi-
víduos envolvidos em casos de feminicídio têm pouca ou nenhuma experiência
direta com crimes violentos.5 Consequentemente, o entendimento dos mesmos
a respeito de crimes como a violência doméstica é obtido de forma mediata, por
sua construção social, mormente através dos veículos midiáticos.6 Nesse sentido,

o grau em que a mídia provê imagens distorcidas concernentes à


violência doméstica (...), assim como os papéis das vítimas dessa
violência, (...) propaga mitos de que a violência contra a mulher
não é um crime sério, que mulheres são responsáveis (ou em parte
responsáveis) pela sua vitimização, ou ambas.7

Diante disso, para a realização deste trabalho, buscamos analisar a abor-


dagem midiática sobre o tema, mapeando manchetes de jornais e portais
eletrônicos, bem como reportagens que tratam do tema do feminicídio.

“Art. 121. Matar alguém:


Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Feminicídio (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015)
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
Pena - reclusão, de doze a trinta anos”.
5
RICHARDS,Tara N.; GILLESPIE, Lane Kirkland; SMITH, M. Dwayne. An examination
of the media portrayal of femicide-suicides: an exploratory frame analysis. Feminist Crimi-
nology, v. 9, issue 1, p.24-44, jan. 2014.
6
Para leituras que corroboram tal afirmação, ver: RICHARDS; GILLESPIE; SMITH,
op. cit.; MCNEILL, Sandra. Woman killer as tragic hero. In: RADFORD, Jill; RUSSEL,
Diana E. H. Femicide: the politics of woman killing. Nova York: Twayne, 1992. p. 178-18; e
BULLOCK, Cathy Ferrand; CUBERT, Jason. Coverage of domestic violence fatalities by
newspapers in Washington State. Journal of Interpersonal Violence, Washington, v.17, n. 5, p.
475-499, mai. 2002.
7
Tradução do original: “the degree to which the news media provide distorted images concerning
domestic violence (...) as well as victims roles in such violence (...) propagate myths that violence
against woman is not a serious crime, that woman are responsible (or partly responsible) for their
victimization, or both” (RICHARDS; GILLESPIE; SMITH, op. cit., p. 27).

210
Interessante observar que essa abordagem já foi utilizada em inúmeras in-
vestigações nos Estados Unidos, Espanha, México, Peru, dentre outros países.
No entanto, foram realizadas apenas investigações esparsas no Brasil, voltadas
somente para a análise de casos específicos, o que justifica a necessidade e
importância de tal estudo.
Em um primeiro momento será realizada uma breve conceituação do
feminicídio e sua contextualização histórica no cenário brasileiro. Em segui-
da, no terceiro tópico, será apresentado o método da pesquisa, os materiais
levantados e a forma para a realização de sua análise. No quarto ponto será
discutida a abordagem midiática do feminicídio, dividindo-se a análise em
três subtópicos, abordando a invisibilização da mulher, a espetacularização do
feminicídio e a não individualização do feminicídio enquanto violência única
e sistemática. No quinto tópico, será apresentada uma proposta de refinamento
da análise típica da qualificadora do feminicídio no Brasil, utilizando-se os
marcadores de gênero identificados na pesquisa. Por fim, apresentamos as
conclusões finais do trabalho.

2. Breve contextualização sobre o feminicídio


Para iniciar a discussão acerca do feminicídio, importante se faz a
conceituação dessa conduta recentemente introduzida no ordenamento ju-
rídico brasileiro. O debate em torno do tema não é recente. O conceito de
feminicídio, desenvolvido por pensadoras como Diana Russel8, Jill Radford9
e Marcela Lagarde10 (1996), pode ser entendido, sob um panorama geral,
como a expressão mais severa de uma complexa rede de opressões sofridas
pelas mulheres, consequência do machismo e da misoginia. Tais elementos,
internalizados pela sociedade, fazem com que a violência contra a mulher, em
todas as suas formas, seja naturalizada e institucionalizada nas diversas dimen-
sões da vida social, tanto nos meios privados quanto nos domínios públicos.
Nesse sentido, vale destacar a lição de Iris Marion Young, para quem a
opressão a grupos minoritários é estrutural e, por conta de sua naturalização, é
propagada por estruturas da sociedade como a mídia. Nas palavras da autora:

Nesse sentido estrutural estendido, opressão se refere às vastas e


profundas injustiças que determinados grupos sofrem, como uma
consequência de, algumas vezes inconscientes, assunções e reações
de pessoas bem-intencionadas em suas interações ordinárias, na

8
RADFORD; RUSSEL, op. cit., p.178-183.
9
Id., ibid.
10
LAGARDE, Marcela y de Los Ríos. Género y feminismo: desarrollo humano y democracia,
Madrid: 1996.

211
mídia e estereótipos culturais e em características estruturais de
hierarquias burocráticas e mecanismos do mercado – basicamente,
o processo normal da vida cotidiana. (...) As ações conscientes de
diversos indivíduos contribuem diariamente a manter e a repro-
duzir a opressão, mas essas pessoas estão, geralmente, simplesmente
fazendo os seus trabalhos, ou vivendo suas vidas, e não entendem
a si mesmas como agentes da opressão.11

Sobre essa temática, Marcela Lagarde explica de forma clara que o femi-
nicídio é um conceito complexo, resultado de uma construção histórico-social
na qual as mulheres são colocadas em uma posição de inferioridade e subor-
dinação em relação a seus parceiros afetivos, que representam frequentemente
o polo ativo dos crimes de feminicídio. Nesse sentido, afirma:

Para que ocorra o feminicídio concorrem, de maneira geral, o


silêncio, a omissão, a negligência e o envolvimento parcial ou total
de autoridades encarregadas de prevenir e erradicar esses crimes.
Sua cegueira de gênero ou os seus preconceitos sexistas e misóginos
sobre as mulheres.12

11
Tradução nossa do excerto original: “In this extended structural sense oppression refers to
the vast and deep injustices some groups suffer as a consequence of often unconscious assumptions
and reactions of well-meaning people in ordinary interactions, media and cultural stereotypes,
and structural features of bureaucratic hierarchies and market mechanisms— in short the normal
processes of everyday life. (...) The conscious actions of many individuals daily contribute to
maintaining and reproducing oppression, but those people are usually simply doing their jobs or
living their lives, and do not understand themselves as agents of oppression” (YOUNG, Iris M.
Five faces of oppression. In: ASUMAH, Seth N.; NAGEL, Mechthild. Diversity, social
justice, and inclusive excellence: transdisciplinary and global perspectives. Albany: State
University of New York Press, 2014. p.3-32.2014).
12
Tradução nossa do excerto traduzido do original: “El feminicidio es el genocidio contra
mujeres y sucede cuando las condiciones históricas generan prácticas sociales que permiten aten-
tados violentos contra la integridad, la salud, las libertades y la vida de niñas y mujeres. En el
feminicidio concurren en tiempo y espacio, daños contra niñas y mujeres realizados por conoci-
dos y desconocidos, por violentos, -en ocasiones violadores-, y asesinos individuales y grupales,
ocasionales o profesionales, que conducen a la muerte cruel de algunas de las víctimas. No todos
los crímenes son concertados o realizados por asesinos seriales: los hay seriales e individuales,
algunos son cometidos por conocidos: parejas, ex parejas parientes, novios, esposos, acompañantes,
familiares, visitas, colegas y compañeros de trabajo; también son perpetrados por desconocidos y
anónimos, y por grupos mafiosos de delincuentes ligados a modos de vida violentos y criminales.
Sin embargo, todos tienen en común que las mujeres son usables, prescindibles, maltratables y
desechables. Y, desde luego, todos coinciden en su infinita crueldad y son, de hecho, crímenes de
odio contra las mujeres. Para que se de el feminicidio concurren, de manera criminal, el silencio, la
omisión, la negligencia y lacolusión parcial o total de autoridades encargadas de prevenir y erra-
dicar estos crímenes. Su ceguera de género o sus prejuicios sexistas y misóginos sobre las mujeres”
(LAGARDE, Marcela y de Los Ríos. Antropologia, feminismo y políticia: violencia
feminicida y derechos humanos de las mujeres. In: BULLEN, Margaret; MINTEGUI,
Carmen Diez (Coord.). Retos teoricos y nuevas prácticas. In: XI CONGRESO DE
ANTROPOLOGIA, San Sebastian, 2008. p .216)

212
Importante salientar, ainda, que o feminicídio está, em grande parte
dos casos, intimamente ligado à relação afetivo-amorosa entre autor e vítima.
Diz-se isso, pois a relação de subordinação da mulher em relação ao homem
frequentemente caracteriza-se nos relacionamentos íntimos, já que são nesses
espaços que, corriqueiramente, a opressão contra a mulher, já naturalizada, leva
o homem a entender a mulher mais como uma propriedade do que como
uma companheira. Tal situação pode ser explicada, em certa medida, como
uma maneira de autoafirmação da masculinidade, entendida socialmente
como uma posição de dominação e superioridade em relação às mulheres e,
sobretudo, em relação às esposas, namoradas, etc.13
Nesse sentido, afirma Rita Laura Segato acerca da origem violenta e
da presença da dominação no que a autora intitula de “relações de gênero”:

Esta estrutura, a que denominamos “relações de gênero” é, por si


mesma, violentogênica e potencialmente genocida pelo fato de que
a posição masculina só pode ser alcançada e reproduzida como tal
com o exercício de uma ou mais dimensões de formas de domínio
entrelaçadas: sexual, intelectual, econômica, política e bélica. Isso
faz com que a masculinidade, compreendida como atributo, deva
ser comprovada e reafirmada ciclicamente e que, para garantir esse
fim, quando a posição de domínio se encontra ameaçada por uma
conduta que possa prejudicá-la, suspenda-se a emoção individual
e o afeto que possa existir na relação entre um homem e uma
mulher que mantêm um vínculo “amoroso”. O recurso à agressão,
portanto, mesmo no ambiente doméstico, implica a suspensão de
qualquer outra dimensão pessoal do vínculo para dar lugar ao seu
mandato de dominação.14

É nesse contexto que acontecem os casos de feminicídio, nos quais


os homens matam suas parceiras, das mais diversas formas, como expressão

13
Assim sugere: SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Gra-
phium, 2011.
14
Tradução nossa do original: “Esta estructura, a la que denominamos “relaciones de género” es por
sí misma, violentogénica y potencialmente genocida por el hecho de que la posición masculina sólo
puede ser alcanzada y reproducirse como tal, ejerciendo una o más dimensiones de formas de dominio
entrelazadas: sexual, intelectual, económica, política y bélica. Esto hace que la masculinidad como
atributo, deba ser comprobada y reafirmada cíclicamente y que, para garantizar este fin, cuando la
posición de dominio se encuentre amenazada por una conducta que pueda perjudicarlo, se suspenda la
emocionalidad individual y el afecto que pueda existir en una relación entre un hombre y una mujer
que mantengan un vínculo “amoroso”. El recurso a la agresión, por lo tanto, aún en el ambiente
doméstico, implica la suspensión de cualquier otra dimensión personal del vínculo, para dar lugar a su
mandato de dominación” (SEGATO, Laura Rita. Feminicidio y femicidio: conceptualización
y apropriación. In: JIMÉNEZ, Patricia; RONDEROS, Katherine (Ed.). Feminicidio: un
fenómeno global de Lima a Madrid. Bruxelas: Heinrich Böll Stiftung, 2010. p. 5-6. p. 5)
JIMÉNEZ; RONDEROS,

213
máxima de uma rede de opressões perpetradas por eles. A situação fica ainda
mais complexa com o desenrolar dos casos, já que é comum que aconteça a
culpabilização da vítima tanto pela sociedade quanto pelos órgãos do Poder
Judiciário, uma vez que:

(...) homens continuam matando suas parceiras, às vezes com requintes


de crueldade, esquartejando-as, ateando-lhes fogo, nelas atirando e as
deixando tetraplégicas etc. O julgamento destes criminosos sofre, é
óbvio, a influência do sexismo reinante na sociedade, que determina o
levantamento de falsas acusações – devassa é a mais comum – contra a
assassinada. A vítima é transformada rapidamente em ré, procedimento
este que consegue, muitas vezes, absolver o verdadeiro réu. Durante longo
período, usava-se, com êxito, o argumento da legítima defesa da honra,
como se esta não fosse algo pessoal e, desta forma, pudesse ser manchada
por outrem. Graças a muitos protestos feministas, tal tese, sem fundamento
jurídico ou de qualquer outra espécie, deixou de ser utilizada.15

Não bastasse a negligência com que esses casos são tratados pelos próprios
responsáveis pela Justiça, conta-se ainda com o clamor da opinião popular acerca
dos motivos que levaram o homem a cometer tal crime. Não raro nos deparamos
com casos em que o feminicídio é defendido popularmente com argumentos
semelhantes ao antigo tipo penal de legítima defesa da honra, isto é, o autor do
crime teria motivos plausíveis para seu ato caso este tenha tido o propósito de
resguardar sua honra que, nessas situações, pode ser entendida não só como uma
afirmação de sua masculinidade, mas também como uma forma de manutenção
de sua suposta soberania e, consequentemente, sua posição de dominação.
Essa ideia é corroborada pela desembargadora Maria Berenice Dias,
uma vez que

o argumento extralegal da legítima defesa da honra, que vem ser-


vindo como causa de absolvição, revela uma atitude preconceituosa
contra as mulheres. (...) Esse argumento, no entanto, é falacioso,
deixando evidente que seu substrato é de ser a mulher propriedade
do marido, a ele subordinada, e qualquer atitude sua fora das regras
conjugais prescritas consiste em ofensa à honra do cônjuge.16

Se nos anos de 194017 essa linha argumentativa já não possuía tamanha


aceitação, no atual Estado Democrático de Direitos deveria ser tese inadmis-

15
SAFFIOTI, op. cit., p. 46.
16
DIAS, Maria B. A mulher é vítima da justiça. Direito e Democracia, Canoas, v. 1, n. 02, p.
251, 2000.
17
Ano em que foi publicado o atual Código Penal Brasileiro.

214
sível. No entanto, ainda compõe o discurso de parcela da população brasileira.
Sobre essa temática, coloca Maria Danielle Ramos:

A honra masculina é um enunciado que parece não mais fazer parte


dos discursos proferidos em nossa cultura. Seu significado e uso
parecem fazer parte de um passado longínquo, como se fosse algo
que não estivesse de acordo com os arranjos feitos pelas relações
de gênero atuais. Porém, o que se tem visto, hoje em dia, é o uso
indiscriminado desse enunciado para justificar e ainda banalizar
atitudes violentas dos homens contra as mulheres.18

Nesse sentido, a autora sintetiza de forma clara a motivação que embasa


o uso de tal argumentação:

“Ou seja, como a vida da mulher tem sido construída ao longo de sé-
culos como menos valiosa que a vida e a honra dos homens. E como
essa construção propiciou a “legitimação” do direito concedido aos
homens de assassinar suas companheiras ou ex-companheiras”.19

Esse pensamento retrógrado e opressor ainda persiste em nossa atual


sociedade e tem a mídia como um importante mecanismo de difusão e per-
petuação, o que será exposto adiante no presente trabalho.

3. Metodologia
A investigação aqui apresentada é resultado de uma pesquisa documental,
cuja proposta metodológica se voltou para a coleta e análise de reportagens
que abordam diretamente casos de feminicídio, raras vezes retratados dessa
maneira, nos jornais e portais de notícias online do país, a fim de demonstrar
como a violência contra a mulher está naturalizada nos meios de comunicação
e é por eles difundida de forma irresponsável e negligente, evidenciando a
espetacularização e exposição controversa e parcial desses casos.
Para o presente trabalho, foram analisadas notícias, com especial foco
em suas manchetes, fonte primária de acesso do leitor sobre a informação,
extraídas dos principais veículos de informação online tanto nacionais como
estaduais. Os veículos estaduais possuem ampla projeção nacional e referem-se
aos seguintes estados membros do Brasil: Distrito Federal, Mato Grosso do
Sul, Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro.

18
RAMOS, Margarita Danielle. Reflexões sobre o processo histórico-discursivo do uso da
legítima defesa da honra no Brasil e a construção das mulheres. Estudos Feministas, Floria-
nópolis, p. 53-73, jan./abr. 2012.
19
Id., ibid.

215
Foram levantadas, ao todo, 75 notícias da mídia brasileira, concentradas
no período de outubro de 2011 a fevereiro de 2017 utilizando-se para a
busca os termos:“feminicídio”,“violência contra a mulher”,“mulher morre”,
“ciúmes” e “mata mulher”. Das 75 notícias que foram encontradas a partir
desse procedimento, 66 abordam casos específicos de violência, outras nove
tratam do tema de modo mais genérico, referindo-se a políticas públicas sobre
o feminicídio ou seus números conforme alguma pesquisa.
Sobre essa amostragem, a análise se constrói a partir dos diversos com-
ponentes essenciais da notícia: a escolha de palavras e linguagem, o contexto
construído no texto e as fontes de informações citadas nas notícias.20 As no-
tícias foram analisadas em sua íntegra, mas especial importância foi atribuída
às suas manchetes, tendo em vista que:

A escolha de palavras nas manchetes é importante porque transmite


a ideia principal do artigo e permite aos leitores escolherem histórias
de interesse ou importância para eles.Ademais, muitos consumidores
de notícias podem “percorrer” as manchetes em lugar de lerem os
artigos inteiros para obterem informações sobre as notícias. Assim,
é vital que o feminicídio-suicídio seja corretamente intitulado.21

Após a coleta, os materiais foram confrontados com pesquisa bibliográ-


fica e dados quantitativos sobre o feminicídio no Brasil, apontando para o
papel da mídia na manutenção do status quo da espetacularização nos casos de
feminicídio, da invisibilização da mulher, da omissão do termo feminicídio
e, em alguns casos, da culpabilização da vítima. Passa-se então a apresentar os
dados encontrados, em simultânea análise crítica.

4. O discurso midiático sobre o feminicídio no


Brasil: invisibilidade e espetacularização
A partir deste ponto, será demonstrado de que maneira a mídia disse-
mina notícias sobre casos concretos de feminicídio, muitas vezes de forma
irresponsável, refletindo a forma opressora pela qual a sociedade lida com a
questão. Primeiramente, será colocada em debate o modo como os veículos
de informação se utilizam de métodos textuais que criam todo um cenário
teatral, levando ao ponto de o feminicídio ser tratado como um espetáculo.
Não bastasse, a mídia ainda retira da mulher seu lugar de destaque enquanto

20
RICHARDS; GILLESPIE; SMITH, op. cit., p. 28.
21
Tradução nossa do original: “Word choice in headlines is important because it conveys the main
idea of the article and allows readers to choose stories of interest or importance to them. In addition,
many news consumers may “skim” the headlines instead of reading entire articles to gain information
about news.Thus, it is vital that femicide– suicides be correctly titled”. (Id., ibid., p. 38).

216
vítima, por meio de escolhas linguísticas que demonstram, claramente, a
redução da mulher a mero objeto de ação do homem. Por fim, será demons-
trada a invisibilização do feminicídio, não individualizado enquanto forma
sistemática de violência.

4.1. Violência contra a mulher


espetacularizada
Uma primeira forma de propagação da opressão contra a mulher iden-
tificada na abordagem midiática do feminicídio é a sua espetacularização. A
abordagem midiática dos casos de feminicídio no país, voltada para tornar
atrativo o texto e fornecer ao leitor o espetáculo, comumente romantiza os
casos, apresentando-os como uma “crise”, “briga”, “amor frustrado” ou tér-
minos. Sobre essa temática, coloca a juíza Adriana Ramos de Melo:

Temos assistido nos últimos tempos a notícias nos jornais sobre o


assassinato de mulheres pelo marido ou namorado, ex ou atual. Na
verdade, são crimes de violência contra a mulher que denotam a
desigualdade de gênero. São geralmente noticiados como crimes
“passionais”, como uma ocorrência policial comum sem revelar o
que, na verdade, está por trás dessa realidade, o assassinato misógino
de mulheres cometido por homens.22

Por simples que pareça, a escolha da linguagem tem papel central na


mensagem transmitida pela manchete. Diz-se isso em razão da grande influ-
ência que a mídia possui no que tange à formação da opinião popular acerca
de determinados temas.Tal constatação é notável, sobretudo, acerca de crimes
que se tornam famosos na mídia, afetando diretamente o seu julgamento
preliminar, seja pela sociedade no geral, seja pelos próprios órgãos julgadores,
em clara afetação ao próprio Poder Judiciário. Assim, tem-se que a abordagem
feita pelos meios de comunicação acerca de crimes é, em certa medida, a base
para a forma como estes serão vistos pela sociedade, uma vez que:

Pelo procedimento da ampla visibilização, os meios de comunicação


agem como construtores privilegiados de representações sociais
e, mais especificamente, de representações sociais sobre o crime,
a violência e sobre aqueles envolvidos em suas práticas e em sua
coibição. Estas representações sociais se realizam através da pro-
dução de significados que não só nomeiam e classificam a prática
social, mas, a partir desta nomeação, passam mesmo a organizá-la de

22
MELLO, Adriana Ramos de Mello, Feminicídio: breves comentários à Lei 13.104/15.
Direito em movimento, v. 23, p. 47-100, p. 50, 2015.

217
modo a permitir que se proponham ações concretas em relação a
ela. Portanto, o modo como a mídia fala sobre a violência faz parte
da própria realidade da violência – as interpretações e os sentidos
sociais que serão extraídos de seus atos, o modo como certos dis-
cursos sobre ela passarão a circular no espaço público e a prática
social que passará a ser informada cotidiana e repetidamente por
estes episódios narrados.23

Nesse raciocínio, a linguagem e a abordagem midiática são de extrema


relevância no sentido de como os crimes retratados pela mídia serão vistos
pelos seus interlocutores. Por exemplo, briga implica reciprocidade, traz em
sua definição a noção de troca. A gravidade da violência contra a mulher
e dos casos de feminicídio, no entanto, demonstram clara vulnerabilidade
de uma das partes, que de forma alguma está em posição de reciprocida-
de ou em uma simples briga. Outro exemplo comumente encontrado nas
manchetes é a existência de uma crise entre o casal. Ora, a crise entre duas
pessoas pressupõe a insatisfação de ambas, não sendo plausível afirmar que
uma contrariedade recíproca leve uma das partes a atitudes extremas como,
por exemplo, o assassinato da outra. Assim, evidencia-se, novamente, que os
casos em questão dificilmente são uma via de mão dupla, sendo certo que as
mulheres constituem o elo mais desamparado dessas relações.
O termo crise foi associado nas manchetes à criação de um cenário
de patologização do homem, como se a violência fosse o fruto de um mo-
mento pontual e trágico de surto. Nesse sentido Richards et alia: “Defini-
ções limitadas de crime podem ser especialmente relevantes no estudo do
feminicídio-suicídio, uma vez que os suicidas são comumente patologizados
como “doentes” e as mortes de suas vítimas possivelmente vistas como uma
tragédia das circunstâncias”.24
A partir do grande número de casos de feminicídio no país, bem como
de sua frequência, percebe-se um quadro de contínua violência contra as
mulheres, culminando em suas mortes. Nota-se, dessa forma, um cenário
contrário daquele retratado pela mídia, não sendo o feminicídio uma conduta
pontual ou devido a um surto, mas pertencente a um continuum de violência.
A questão é que a ideologia patriarcal do Estado faz com que haja
uma naturalização na própria sociedade da violência doméstica, criando a

23
RONDELLI, Elizabeth. Imagens da violência: práticas discursivas. Tempo Social; Rev. Social.
USP, S. Paulo, v. 10, n. 2, p.145-157, p. 149, out. 1998.
24
Excerto original: “Limited definitions of crime may be especially relevant in the study of femici-
de–suicides since suicide-completers are often pathologized as “sick” and the deaths of their victims
may be seen as a tragedy of circumstance” (RICHARDS,; GILLESPIE; SMITH, op. cit., p. 28,
tradução nossa).

218
ideia de que a vida particular dos cidadãos não deve sofrer qualquer tipo de
intervenção jurídica ou estatal, de que não se deve intervir na vida privada
dos cidadãos, tornando invisível todo o anterior cenário vivido pela mulher.25
Nesse mesmo raciocínio,

integra a ideologia de gênero, especificamente patriarcal, a ideia,


defendida por muitos, de que o contrato social é distinto do con-
trato sexual, restringindo-se este último à esfera privada. Segundo
este raciocínio, o patriarcado não diz respeito ao mundo público
ou, pelo menos, não tem para ele nenhuma relevância. Do mesmo
modo como as relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de
poder contaminam toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa
não apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado.26

O uso de termos como “crime passional”, bem como a forma com que
se constrói o cenário de violência, romantizam a situação, como se amor,
ou demais sentimentos valorados positivamente pela sociedade, estivessem
legitimamente conectados à violência ou como se justificassem a mesma.
“O corpo tinha marcas que nos levam a crer que ele alimentava alguma
paixão por ela. Estas marcas são características da psicopatia quando houve a
rejeição”; “José27 disse ainda que o fato de o suspeito ter procurado a família
dias antes do crime, é outro indício da paixão dele por ela”. Esse trecho foi
extraído da fala de um delegado para uma notícia que relata um dos casos
utilizando o termo “crime passional” na manchete e cria um cenário ro-
mantizado em torno do assassinato de uma criança de nove anos de idade.
Nas 66 manchetes que se referem a casos específicos de violência, a palavra
“ciúmes” foi utilizada 21 vezes; “crime passional”, “briga” e “discussão” foram
25
Vale aqui comentar brevemente sobre a decisão monocrática em sede do Superior Tribunal
de Justiça sobre o HC 394654. Ao analisar a violência contra a mulher, a decisão se enca-
minha para a posição da não intervenção, percebendo o caso como uma questão banal e
da vida privada: “A primeira vista o caso não se revestiria de gravidade a ponto de deixar
o conduzido segregado, uma vez que, ao que tudo indica, a briga ocorreu entre o casal
por questões banais que não vem ao Judiciário intervir”. Somente foi deferido o pedido
de medidas cautelares pela mulher em razão dos antecedentes do homem, marcado por
envolvimento com tráfico, homicídio e ameaças, desvinculados à violência contra a mulher:
“Entretanto, visualizando os antecedentes do conduzido, verifica-se ser pessoa perigosa,
visto que possui antecedentes por tráfico de drogas (fl. 25), responde processo por homi-
cídio, em que foi liberado com medidas cautelares, que não cumpre, já que foi citado por
edital (n. 0002704-34.2014.8.24.0007), possui medida protetiva em vigor contra si que sua
tia ingressou, porque vinha fazendo ameaças a esta e estava com medo do conduzido (n.
0002502-86.8.24.0007) e também responde a outro processo por receptação (0002848-
37.2016.8.24.0007)”. (Brasil, Superior Tribunal de Justiça. Decisão Monocrática, Habeas
Corpus 394654, Santa Catarina, Publicado em 05 de dezembro de 2017).
26
SAFFIOTI, op. cit., p.54.
27
Para citar no presente trabalho, atribuímos um nome fictício.

219
usadas duas vezes cada; uma vez foi utilizado o termo “crise”.Trinta e duas das
manchetes estavam relacionadas à separação ou a algum tipo de rejeição.
Assim, quando a mídia romantiza e naturaliza os casos de feminicídio,
invisibiliza e tira o aspecto basilar da violência contra a mulher, quais sejam:
o machismo e a misoginia. Além disso, ao espetacularizar os fatos, moldam-se
pré-concepções nesse mesmo sentido na sociedade. Por esse motivo, é comum
que feminicídios sejam tratados popularmente como crimes passionais, mo-
tivados por ciúmes, traições e términos, embora sejam, na realidade, crimes
de ódio perpetrado contra as mulheres de diversos segmentos da sociedade.
Destaca-se que

Distinguir a violência doméstica das demais formas de violência é


importante para acuradamente retratar o feminicídio e chamar a
atenção para o mais comum tipo de evento de homicídio-suicídio,
o feminicídio-suicídio. Além disso, linguagem é pensada para ser
extremamente importante em modelar os eventos suicidas de forma
a minimizar a probabilidade de efeitos contagiosos.28

O efeito contagioso de que trata o excerto não se refere apenas a casos de


suicídio, mas pode também ser observado no que concerne à violência contra
a mulher. Pode-se apresentar como exemplo que evidencia a adoção de uma
ideologia de que ciúmes e brigas entre um casal não são motivadas por fatores
de violência de gênero, machismo e misoginia, a seguinte decisão judicial do
Superior Tribunal de Justiça que afasta a aplicação da Lei Maria da Penha:

Conflito de competência. Penal. Juizado especial criminal e juiz de


direito. Crime com violência doméstica e familiar contra mulher.
Agressões mútuas entre namorados sem caracterização de situação
de vulnerabilidade da mulher. Inaplicabilidade da lei nº 11.340/06.
Competência do juizado especial criminal. (...) 2. No caso, não fica
evidenciado que as agressões sofridas tenham como motivação a
opressão à mulher, que é o fundamento de aplicação da Lei Maria
da Penha. Sendo o motivo que deu origem às agressões mútuas
os ciúmes da namorada, não há qualquer motivação de gênero ou
situação de vulnerabilidade que caracterize hipótese de incidência
da Lei nº 11.340/06.29

28
Traduzido do original: “Distinguishing domestic violence from other forms of violence is important
for accurately portraying femicide and drawing attention to the most common type of homicide–suicide
event, femicide–suicide. Furthermore, language is thought to be extremely important in shaping suicide
events in a way that will minimize the likelihood of contagion effects” (RICHARDS; GILLESPIE;
SMITH, op. cit., p. 29).
29
Brasil. Superior Tribunal de Justiça,Terceira Seção. Conflito de Competência 96533. Minas
Gerais, 05 de dezembro de 2008. Relator(a) Ministro OG FERNANDES (1139), Data da

220
Embora a decisão, escolhida pela sua intensidade, refira-se à violência
doméstica e não ao que a Lei brasileira denominou feminicídio, certo é que
a aplicação da qualificadora “feminicídio” no país é influenciada por esse tipo
de abordagem, já que é requisito para o tipo penal a existência de “razões da
condição do sexo feminino”.30 Cria-se, então, a ideia de que o homicídio por
razões de gênero deve ser entendido apenas como aquele realizado por um
sujeito que claramente odeie mulheres, quase em uma analogia aos crimes de
genocídio, desconsiderando o machismo e a misoginia como marcadores da
violência doméstica e crimes supostamente motivados pelo “ciúme”.
No atual Estado Democrático de Direito, a igualdade formal entre
homens e mulheres é garantida constitucionalmente. A ideia de que o ho-
mem possa se impor sobre a mulher em qualquer âmbito da vida pública
ou privada parece inaceitável em tal realidade. No entanto, na prática, não é
o que ocorre, tendo em vista que a igualdade formal não garante, de fato, a
igualdade material. Seguindo esse raciocínio, tem-se que

Nessa diferenciação entre igualdade formal (de direito) e material (de


fato), reproduz-se a distância entre o esperado (no plano normativo)
e o acontecido (no plano da realidade), e a distinção corresponde
a uma suposta diferença entre teoria (igualdade formal) e prática
(igualdade material).31

Em tal panorama, como afastar os “ciúmes” como marcador de motivo


de gênero?
Afinal, como se pode perceber das manchetes analisadas, a alegação do
motivo “ciúme” nada mais é do que a não aceitação da liberdade da mulher
para se autodeterminar, partindo da ideia de que ela seja uma propriedade,
submissa ao espectro de domínio do homem sem que desse domínio seja
permitido a ela jamais sair.

4.2. Mídia e invisibilização: redução


da mulher ao não ser
Neste tópico, procura-se descortinar a invisibilização da mulher pela
abordagem midiática dos casos de feminicídio no país. O que se pretende
nessa abordagem é demonstrar a forte influência da mídia na disseminação da

Publicação/Fonte: 05/02/2009 (destaques da ementa).


30
Art. 121, § 2º,VI do Código Penal Brasileiro (Decreto Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de
1940) e Lei do Feminicídio (Lei nº13.104/15).
31
ROTHENBURG,Walter Claudius. Igualdade material e discriminação positiva: o princípio
da isonomia. Novos Estudos Jurídicos, v. 13, p. 77-92, p. 85, jul./dez. 2008.

221
cultura dominante que, como já demonstrado, é marcada pela manutenção do
status quo, qual seja: machista e misógina. O nosso argumento aqui ampara-se
na teoria de Pierre Bourdieu sobre o poder simbólico:

A cultura dominante contribui para a integração real da classe do-


minante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os
seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração
fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização
(falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da
ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções
(hierarquias) e para a legitimação dessas distinções. Este efeito ide-
ológico, produ-lo a cultura dominante dissimulando a função de
divisão na função de comunicação: a cultura que une (intermediário
de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de
distinção) e que legitima as distinções compelindo todas as culturas
a definirem-se pela sua distância em relação à cultura dominante.32

Inicialmente, pode ser empreendida uma superficial análise gramatical


das manchetes, da qual já se torna evidente a invisibilização da mulher. Per-
cebe-se que, das 66 notícias que relatam casos específicos de violência, em
57 manchetes o homem aparece caracterizado em posição de sujeito ativo
dos períodos gramaticais, o sujeito que faz alguma coisa, que se liga ao verbo,
usualmente no começo das frases (“Homem mata”, “Homem esquarteja”,
“Homem tortura”). A mulher, nessas frases, está reduzida a objeto de ação.
As orações se estruturam de forma similar ao seguinte exemplo: “Inconfor-
mado com fim da relação, homem assassina ex-namorada”. Três manchetes
colocaram a mulher como sujeito das orações, porém como sujeito passivo,
não deixando de tratá-las como objeto da ação do homem.
A essa análise se aplica perfeitamente a afirmação de Richards et alia
sobre como o padrão de escolha da mídia sobre certos tipos de criminosos e
vítimas revela a atribuição de relevância pela sociedade. Nas palavras das autoras:

Os meios jornalísticos de informação são uma parte importante


para esse processo de enquadramento devido ao seu poder de pro-
liferação de algumas visões e de repressão a outras. Adicionalmente,
a mídia frequentemente enfatiza apenas certo tipo de criminosos
e suas vítimas, enquanto minimiza ou ignora outros, e a dissemi-
nação e mensagens poderosas concernentes a quem mais importa
na sociedade.33

32
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico (História & sociedade). Lisboa: Edições 70,
2015, p. 07.
33
Excerto original: “The news media are an important part of this framing process due to their
power to proliferate some views and repress others. In addition, the media frequently emphasize

222
Dessas 66 manchetes, apenas uma descrevia ativamente a mulher, mas de
forma a culpabilizar a vítima. A notícia divulgada em 2013 apresentava como
título: “Ativista feminista cai do 4º andar e diz que foi vítima de machismo”.
Ao se ler a notícia por completo, o que se percebe é que um grupo de amigos
discutia à noite em um apartamento e, após discordar do posicionamento de
um amigo, a mulher em questão “caiu” da janela. Não obstante a vítima e
outras testemunhas terem acusado um homem de jogá-la da janela, a abor-
dagem escolhida foi a de colocar em dúvida as afirmações da mulher, quase
em tom de escárnio.
Interessante ainda destacar a provocação de McNeill, que propõe a
inversão das manchetes para reduzir o homem que comete crimes à posição
de desvalorização e permitir o foco na força da mulher:

E se as histórias fossem diferentes? E se eles dissessem, mesmo


em linguagem jornalística: “Mulher brutalmente assassinada por
marido em homicídio premeditado”? E se eles dissessem que ele
era claramente um covarde inadequado, que não conseguia viver
sozinho após sua mulher o deixar? Ou: e se ele fosse descrito como
um louco desmiolado ou mesmo como um verme? A história
poderia então focar nela e em sua corajosa tentativa de criar uma
nova vida – interrompida.34

Outro ponto que devemos apontar neste momento é a questão da culpa-


bilização da vítima, sobre a qual a promotora de justiça Valéria Scarance coloca:

Esses aspectos – dominação e naturalização da violência – ajudam


a entender a razão pela qual, ainda hoje, afirma-se que a mulher
causa a violência. Nenhum homem agride ou humilha a mulher
no primeiro encontro. A dominação do homem se estabelece
aos poucos. Inicialmente há a conquista e sedução. Depois, sob o
manto do cuidado, tem início o controle, o isolamento da mulher
dos amigos e familiares. Seguem-se ofensas, rebaixamento moral e
agressão física. Estabelecem-se regras: chegar cedo, não fazer ba-
rulho, não usar roupas provocantes, não falar com outros homens,

only certain kinds of criminals and their victims, while downplaying or ignoring others, and
disseminating powerful messages concerning who matters most in society”(RICHARDS;
GILLESPIE; SMITH, op. cit., p. 27).
34
Tradução nossa do seguinte trecho: “What if the stories were different. What if they said, even
in newspaper-speak: “Wife Brutally Slain by Husband in Premeditated Murder”.What if they said
he was clearly an inadequate wimp who couldn’t live on his own after his wife left him? Or what if
he was described as a crazed nutter, or even a worm? The story could then focus on her and her brave
attempt to make a new life -cut short” (MCNEILL, Sandra. Woman killer as tragic hero. In:
RADFORD, Jill; RUSSEL, Diana E. H. Femicide: the politics of woman killing. Nova York:
Twayne, 1992. p. 182).

223
cozinhar e cuidar dos filhos, todas “para o bem da mulher e família”.
O descumprimento dessas regras naturalizadas na relação justifica
para o homem o ato violento e faz com que a vítima seja culpada
pela violência.35

Nesse contexto, apresenta-se mais um caso, trabalhado por duas man-


chetes de diferentes jornais online. Nesse caso, o marido traído assassinou o
amante da mulher, que foi então culpabilizada por ensejar o motivo para o
homicídio. Se ela não houvesse traído e gerado ciúmes, não teria ocorrido
crime. A absurda culpabilização foi tamanha que a mulher chegou a ser presa
em um primeiro momento das investigações.
Avançando a análise a uma visão crítica, para além de seu aspecto
gramatical, vale destacar a lição de Iris Marion Young que, em seu trabalho
“Five Faces of Oppression”, procura criar ferramentas para a análise contextual
da opressão; e para isso sugere o uso analítico de cinco formas de opressão,
as quais, em diferentes contextos e momentos, se combinam de formas di-
versas. São as opressões destacadas pela autora: exploração, marginalização,
impotência, imperialismo cultural e violência. Não há dúvidas de que o
feminicídio consiste em violência; no entanto, interessante para o presente
estudo perceber a inter-relação dessa opressão com a impotência e o im-
perialismo cultural na abordagem midiática.
A impotência é descrita pela autora como: “Esse status impotente é,
talvez, melhor descrito negativamente: aos impotentes falta a autoridade, o
status e o senso de si mesmo que profissionais tendem a ter”.36 Nesse sentido,
da amostra de reportagens levantada, percebeu-se que a maioria das manche-
tes reduz a mulher a uma posição de pouquíssimo destaque, sem qualquer
individualização, relegada a uma posição de impotência. O tratamento que
recebe se reduz a expressões como “ex-mulher”, “ex-namorada”, “esposa”,
“namorada”, todas referentes a um status de vínculo ao homem, haja vista
consistirem em atributo ou característica de um vínculo afetivo. Nos poucos
casos em que foi individualizada a mulher, isso ocorreu para destacar sua
hipossuficiência, sendo utilizados os termos: “jovem”, “menina de 9 anos”,
“estudante”, “mulher de 17 anos”. Na amostra levantada, foi verificada uma
única exceção, uma manchete abordou a mulher como “médica”.

35
FERNANDES,Valéria Diez Scarance. Lei Maria da Penha e Gênero: quem é responsável
pela violência contra as mulheres? Jornal Forense. Disponível em: <http://www.cartaforense.
com.br/conteudo/artigos/lei-maria-da-penha-e-genero-quem-e-responsavel-pela-violen-
cia-contra-as-mulheres/13635>. Acesso em: 09 fev. 2017.
36
Tradução nossa do excerto original: “his powerless status is perhaps best described negatively: the
powerless lack the authority, status, and sense of self that professionals tend to have” (YOUNG, op.
cit., p. 22).

224
Em sentido contrário, em diversas manchetes o homem foi individua-
lizado como um ser. A ele foram atribuídas profissões (“Economista mata a
mulher a facadas após discussão em São Paulo”; “Engenheiro é indiciado por
homicídio de namorada…”;“PM mata esposa...”;“Cozinheiro atropela e mata
a mulher…”; “Aposentado mata a mulher…”; “Corretor suspeito de matar
ex-mulher confessa assassinato…”). E a ele foram atribuídos sentimentos (“Pai
do atirador de Campinas diz que filho era tímido e retraído”); tratado como
um ser de vontades (“não queria a separação”, “inconformado”, “suspeita de
traição”,“sem aceitar término”...) e finalidades (“matou para ela não ir embora”).
Nenhum desses qualificativos foi atribuído às mulheres. Não lhe atri-
buíram a coragem de se separar ainda que sob ameaças, ou o corajoso fim
de proteger os filhos como motivo para permanecer em um relacionamento
abusivo; não lhe atribuíram sentimentos como os sofrimentos e temores frente
à violência, não lhe atribuíram as ações de denunciar e recorrer a diferentes
instituições sem obter a devida proteção.
Quanto ao imperialismo cultural, a autora relaciona o tema à atuação
de grupos hegemônicos pela normalização de seus padrões e formas de
expressão, bem como pela simultânea inferiorização e distorção dos grupos
oprimidos. A identidade normalizada é a da hegemonia; as minorias se re-
duzem a estereótipos e negações.37 Desse processo de imperialismo cultural
emerge a invisibilização, na medida em que somente as formas de expressão
da hegemonia permanecem individualizadas, deixando de ser percebidas
como uma perspectiva, para se tornarem um padrão. Nas palavras da autora:

A invisibilidade se evidencia quando grupos dominantes falham em


reconhecer a perspectiva incorporada em suas expressões culturais
como uma perspectiva. Estas expressões culturais dominantes, frequen-
temente, simplesmente não oferecem espaço para a experiência de
outros grupos; no máximo, apenas mencionando ou se referindo a eles
de maneiras estereotipadas ou marginalizadas. Assim, essa é a injustiça
do imperialismo cultural: a experiência e interpretação dos próprios
grupos oprimidos acerca da vida social encontra pequenas expressões
que tocam a cultura dominante, enquanto esta mesma cultura impõe
sobre o grupo oprimido sua experiência e interpretação da vida social.38

37
YOUNG, op. cit., p.28.
38
Tradução nossa do trecho original: “The invisibility comes about when dominant groups fail to
recognize the perspective embodied in their cultural expressions as a perspective.These dominant cultural
expressions often simply have little place for experience of other groups, at most only mentioning or
referring to them in stereotyped or marginalized ways.This, then is the injustice of cultural imperialism:
that the oppressed group’s own experience and interpretation of social life finds little expression that
touches the dominant culture, while the same culture imposes on the oppressed group its experience
and interpretation of social life” (YOUNG, op. cit., p. 29).

225
Esse fenômeno é percebido nas manchetes que abordam a perspectiva
masculina, misógina e machista do feminicídio, abordagem esta que passa
despercebida pela sociedade, em função da sua naturalização. Destaca-se o
seguinte trecho da obra de Young:

Os culturalmente dominados sofrem uma paradoxal opressão, na


medida em que são eles tanto marcados por estereótipos quanto,
ao mesmo tempo, tornados invisíveis. [...] Assim como todos sabem
que a terra gira em torno do sol, todos sabem que pessoas gays são
promíscuas, que indianos são alcoólatras e que mulheres são boas
com crianças. Homens brancos, por outro lado, na medida em que
escapam a marcação grupal, podem ser indivíduos”.39

Enquanto grupo culturalmente dominado, as mulheres são submetidas


a essa opressão paradoxal, ao mesmo tempo em que somente são indivi-
dualizadas em estereótipos marcados pela impotência, são invisibilizadas,
reduzidas a uma ausência de ação, ausência de história, ausência de escolhas,
ausência. Embora o tratamento midiático conferido à mulher possa pas-
sar despercebido aos olhares comuns, é extremamente problemático. Para
McNeill (1992, p.182) esse tipo de abordagem aliena as mulheres de sua
história, daquilo que é feito contra elas, de seus próprios motivos e escolhas
interrompidos. Em outras palavras, pode-se dizer que a mulher é reduzida
pela mídia ao “não ser”.

4.3. Essa violência tem nome: feminicídio


Pela análise das notícias levantadas, tornou-se evidente que raras vezes se
utiliza o termo feminicídio, restando maquiada essa forma de violência. Em
lugar disso, como apresentado acima, é comum contextualizar os fatos como
uma pontual tragédia, momentânea e dramatizada. Nesse sentido, destaca-se
que apenas nove dentre as 75 notícias levantadas apresentavam o termo femi-
nicídio em suas manchetes.Todas elas tratavam do tema de forma generalizada,
referindo-se a políticas públicas40 ou a dados estatísticos.41

39
Tradução nossa de: “The culturally dominated undergo a paradoxical oppression, in that they are
both marked by stereotypes and at the same time rendered invisible. [...] Just as everyone knows
that the earth goes around the sun, everyone knows that gay people are promiscuous, that Indians are
alcoholics, and that woman are good with children. White males, on the other hand, insofar as they
escape group marking, can be individuals.” (Id., ibid., p. 28).
40
“Cai o número de inquéritos sobre feminicídios no Brasil”;“Ministério Público divulga dados
sobre metas de redução de feminicídio no Brasil”;“Promotoria do Rio cria grupo para combate
a feminicídio” e “Com marcas de ‘feminicídio’, avanço de mortes de mulheres alerta o RN”.
41
“Feminicídio: vidas em risco na América Latina”; “Mapa do Feminicídio: 84 mulheres
foram mortas violentamente no Piauí”; “Mulheres vão às ruas da América Latina e outras

226
Não utilizar o termo feminicídio nas reportagens sobre casos específicos
torna o termo menos palpável e acessível à população, torna-o um termo geral
sobre políticas públicas que não se relacionam com a concretude da violência.
Isso reduz também a percepção da sua gravidade e favorece a romantização
dos casos. Opta-se por deixar o termo alarmante “feminicídio” para utilizar
o ameno e romantizador termo “crime passional”, ou os espetacularizadores
“ataque de fúria” e “crise de ciúmes”. Percebe-se a invisibilização do femi-
nicídio não apenas na escolha da linguagem utilizada, mas também nas fontes
escolhidas para serem entrevistadas nos artigos jornalísticos.
Em uma dessas notícias que utilizou o termo feminicídio, na manchete
“Com marcas de ‘feminicídio’, avanço de mortes de mulheres alerta o RN”,
a posterior explicação do que se tratam as “marcas de feminicídio” repete a
abordagem infeliz das demais 66 reportagens que não utilizam o termo. Além
de sempre aparecer entre aspas ao longo da notícia, o termo foi primaria-
mente explicado como “assassinatos com características de crime passional”,
novamente sendo escolhido um termo que vincula a descrição às paixões e
ao romance.
Ademais, em nenhuma das 75 reportagens foi entrevistado um acadêmi-
co, especialista ou crítico sobre o feminicídio. Richards et alia recomendam
a adequada escolha das fontes a se entrevistar nessas notícias, como forma
de evitar a romantização dos casos ou destacar seus aspectos positivos. Nas
palavras das autoras:

Algumas recomendações para a contextualização dos eventos de


feminicídio e suicídio são pertinentes, tal como não romantizar o
evento ou enfatizar seus traços positivos ou aspectos do iniciador,
incluindo informações de referência e fontes para intervenções
em crises ou abrigos, citando profissionais familiarizados com o
assunto (suicídio, violência doméstica), e evitando ultrassimplificar
suas causas ou apresentar causas desconhecidas ou inexplicáveis.42

Em lugar disso, é comum entrevistar os policiais militares responsáveis


pelo caso, os pais do assassino, vizinhos, familiares diversos e mesmo o próprio
acusado de feminicídio. Às vítimas que sobreviveram não foi dada voz.

regiões contra feminicídio”;“América Latina acorda para os terríveis crimes de feminicídio”


e ”Mapa do feminicídio aponta que 84 mulheres foram mortas violentamente no Piauí”.
42
Tradução nossa do original: “Some recommendations for contextualizing femicide and suicide
events are congruent such as not romanticizing the event or emphasizing the positive traits or aspects
of the initiator, including referral information and sources for crisis intervention or shelters, citing
professionals familiar with the issue (suicide, domestic violence), and avoiding oversimplifying the
causes or presenting the causes as unknowable or unexplainable” (RICHARDS,; GILLESPIE,;
SMITH, op. cit., p. 29).

227
Reduzir o feminicídio a um homicídio comum, sem especificar como
uma violência que merece atenção à parte, reduz a gravidade da violência
contra a mulher e invisibiliza a sua ocorrência. Não obstante todo o espetá-
culo midiático em torno dessa forma de violência, o feminicídio continua
escondido atrás das cortinas.

5. Refinamento da análise típica a partir


dos marcadores de gênero
Até o momento, empreendemos uma análise criminológica sobre a
abordagem midiática do feminicídio. Neste ponto, passaremos à análise jurídica
do feminicídio, na qual os dados levantados assumem maior relevância, uma
vez que a partir deles buscaremos assentar a hipótese de que sua utilização,
enquanto marcadores de gênero, deve funcionar no sentido de refinar a análise
típica sobre os tipos penais.
Como demonstrado acima, não obstante as diversas reformas legislativas
no sentido de intensificar o enfrentamento e combate à violência contra
a mulher, culminando na inserção da qualificadora do feminicídio no Có-
digo Penal, o que se percebe na realidade prática é uma forte dificuldade
e resistência entre os operadores do Direito em aplicar a qualificadora em
questão no caso concreto. Os casos de feminicídio restam então reduzidos,
de forma geral, somente aos crimes de ódio contra mulheres. A figura do
feminicida seria a de um homem que possuiria alguma patologia e teria
desenvolvido profundo ódio por mulheres. Não se percebe o homicídio
motivado por ciúmes, ou por descontentamento com o fim da relação,
como uma questão de gênero.43
Torna-se evidente, então, certa discrepância entre o texto legislativo e
sua efetiva aplicação, o que revela uma defasagem que ultrapassa questões de
domínio técnico e se caracteriza pela ausência de consideração e de conhe-
cimento das especificidades das violências sofridas pelas mulheres.44 Nesse
sentido, em diversos casos de feminicídio, os operadores do Direito deixam de
aplicar essa qualificadora a situações essencialmente machistas, caracterizadas
por marcadores de gênero como o ciúme e a possessão.

43
Brasil, Superior Tribunal de Justiça. Decisão Monocrática, Habeas Corpus 394654, Santa
Catarina, Publicado em 05 de dezembro de 2017; Brasil. Superior Tribunal de Justiça,
Terceira Seção. Conflito de Competência 96533. Minas Gerais, 05 de dezembro de 2008.
Relator Ministro OG Fernandes, Data da Publicação: 05/02/2009; Brasil. Superior Tribunal
de Justiça, Terceira Seção, Conflito de Competência 91980. Minas Gerais, 08 de outubro
de 2008. Relator Ministro Nilson Naves, Data da Publicação: 05/02/2009.
44
PASINATO, Wânia. Acesso à justiça e violência doméstica e familiar contra mulheres: as
percepções dos operadores do jurídicos e os limites para a aplicação da Lei Maria da Penha.
São Paulo: Revista Direito GV, n. 11, p. 407-428, jul./dez. 2015.

228
Importante salientar que não se trata, nesses casos, de simples discussão
ou desentendimento do casal, tal como são retratados pela mídia, como já
demonstrado. Na realidade, trata-se de episódios em que as mulheres não
são vistas como possuidoras de suas subjetividades e direitos, mas sim como
objetos de subjugação do homem, estrutura mantida e perpetuada ao longo
das gerações.
Mas o que são marcadores de gênero? A partir das pesquisas empreendi-
das, marcadores de gênero são aqueles elementos sempre presentes nos casos
de violência de gênero – para os fins deste trabalho, diretamente vinculados
à mulher. A palavra “marcadores” se refere a “um aspecto ou característica
distintivo, indicativo de uma particular qualidade ou condição”. No caso,
marcadores que permitem distinguir as particularidades e condições do gênero
feminino.45 A identificação do feminicídio depende da presença e verificação
desses aspectos, que são uma constante na violência contra a mulher. A partir,
então, da análise de dados empreendida até o momento, é possível evidenciar
os elementos constantes nos casos de feminicídio, os quais, uma vez conside-
rados marcadores de gênero, tornam-se instrumentos, ferramentas essenciais
para a sua identificação.
Como visto anteriormente, o resultado da pesquisa aponta para uma
intensa utilização de termos como “ciúmes” (utilizado 21 vezes), “crime
passional”, “briga” e “discussão” ( identificados duas vezes cada) e uma vez
utilizado o termo “crise”. Dentre as manchetes, 32 estavam relacionadas à
separação ou a algum tipo de rejeição. A repetição desses elementos trans-
forma-os em integrantes dos casos de feminicídio, conduta que vai muito
mais além do mero homicídio por ódio às mulheres, abrangendo todo um
contexto social complexo e violento para as mulheres. É, na realidade, resul-
tado de um continuum de todo um contexto de violências, uma manifestação
da naturalização e legitimação, pela sociedade, pela mídia e, inclusive e não
raramente, pelos operadores do Direito, da violência contra as mulheres – o
que se pode julgar como inadmissível; e que significa uma capitulação seletiva
e descontextualizada da realidade atual.
A identificação desses marcadores nos casos apresentados em juízo
teria uma função essencial no sentido de refinar a leitura do tipo penal
e aplicar adequadamente a qualificadora do feminicídio. O que se quer
propor é um juízo que busque identificar marcadores de gênero, aspectos
constantes da violência contra a mulher como evidentes características
de feminicídio.

45
Tradução nossa de: “A distinctive feature or characteristic indicative of a particular quality
or condition”. Definição disponível em: Oxford Living Dictionaries. Markers. Disponível
em: <https://en.oxforddictionaries.com/definition/marker>. Acesso em: 07 fev. 2018.

229
6. Considerações finais
Diante do exame do material investigado, o que se verificou foi que o
poder dos meios de comunicação hegemônicos na constituição da opinião
pública é utilizado para reproduzir o status quo da opressão contra as mulhe-
res e invisibilizar as inúmeras violências sofridas por elas, reforçando, assim,
a cultura patriarcal.
A análise das manchetes acerca do feminicídio resultou na conclusão de
que a forma como esses crimes são tratados é convergente com a persistência
do patriarcado, do machismo e da misoginia em relevante parcela da popu-
lação. O amplo poder de difusão de informação e formação de opiniões da
mídia contribui de forma grave para a estrutura de manutenção desse status
quo. Cumpre ressaltar que, conforme a lição de Iris M.Young,

opressão também se refere aos constrangimentos sistêmicos sobre


grupos que não são necessariamente o resultado das intenções de
um tirano. A opressão nesse sentido é estrutural, e não apenas o
resultado das escolhas ou políticas de algumas pessoas. Suas causas
estão embutidas em normas, hábitos e símbolos inquestionados, nas
assunções subjacentes às regras institucionais e das consequências
coletivas de seguir essas regras.46

O enfrentamento do feminicídio depende do questionamento de


hábitos enraizados, bem como da revisão crítica da própria linguagem jor-
nalística e do modo de se representar na mídia a violência contra a mulher.
Não mais se deve admitir e tolerar a falta de cuidado e responsabilidade dos
veículos midiáticos de informação ao abordarem os crimes de feminicídio.
Há que se adotar uma postura questionadora e repudiar a reprodução –
muitas vezes inconsciente - das estruturas de opressão e perpetuação da
violência contra a mulher.

Referências
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ções 70, 2015.
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fatalities by newspapers in Washington State. Journal of Interpersonal Violence,
Washington, v.17, n. 5, p. 475-499, mai. 2002.

46
Tradução nossa do seguinte excerto original: “oppression also refers to systemic constraints
on groups that are not necessarily the result of the intentions of a tyrant. Oppression in this sense
is structural, rather than the result of a few people’s choices or policies. Its causes are embedded in
unquestioned norms, habits, and symbols, in the assumptions underlying institutional rules and the
collective consequences of following those rules” (YOUNG, op. cit., p. 05).

230
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231
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232
O tráfico das mulheres:
Construção social da “mula” como
vítima do tráfico de pessoas

Tatiana Theodoro Gasparini1 10

1. Introdução
O presente trabalho é resultado de um estudo feito em 2015 do processo
que leva mulheres a serem encarceradas no Brasil pelo transporte de drogas
entre fronteiras, em papel que ficou popularmente conhecido pelo apelido
pejorativo de “mula”. Seu objetivo foi destrinchar a racionalidade apresentada
pela polícia e pelo judiciário no processo de criminalização secundária que
seleciona um determinado perfil de mulher para o encarceramento.
Desde então, nada mudou na tendência e no perfil de encarceramento
estatístico, tendo continuado o crescimento impressionante de mulheres pobres,
com educação precária, etnicamente minoritárias e vulneráveis encarceradas
no Brasil. Entre 2000 e 2016, a população carcerária feminina cresceu 656%,
enquanto o aumento da população masculina foi de 263%. Esse crescimento
foi exponencial em São Paulo, o estado que concentra a maior população
prisional feminina do país, e 63% de todas as estrangeiras.2
O tráfico de drogas continua a ser o crime que mais encarcera mulheres
no Brasil. Em 2011, 64% da população carcerária feminina havia cometido o
crime de tráfico, nacional e internacional.3 Em 2016, o quadro se mantinha
virtualmente inalterado, com 62% da população feminina presa por crimes
relacionados ao tráfico de drogas, em comparação a 26% dos presos homens.4

1
Mestranda em criminologia na USP. Coordenadora do Centro de Pesquisa e Extensão em
Ciências Criminais – CPECC. Assistente Judiciária.
2
DEPEN. INFOPEN mulheres. 2. ed. Brasília: Ministério da Justiça, 2018. p. 14-15, 49.
3
DEPEN. Mulheres presas – dados gerais. Projeto mulheres/DEPEN. Ministério da Justiça,
2011, p. 67.
4
DEPEN. População carcerária – sintético. Jun/2016.

233
A tendência de sobrerrepresentação feminina nesse crime não é isolada. Entre
2003 e 2004, esses crimes representavam 46% dos casos em El Salvador, 86%
na Nicarágua, 64% na Costa Rica, e 70% na Venezuela.5 Ao tratar exclusi-
vamente de tráfico de drogas, espera-se contribuir para o estudo da escolha
penal preferencial de encarceramento feminino.
A repressão ao tráfico de drogas foi responsável por grande parte do
aumento da população carcerária a partir, principalmente, da nova Lei de
Entorpecentes de 2006.6 Seus efeitos punitivos ficam ainda mais evidentes
em relação às estrangeiras presas no Brasil. Apesar da precariedade dos dados
oficiais em relação a elas, estima-se que 95% das mulheres estrangeiras presas
no Brasil sejam acusadas ou condenadas pelo delito de tráfico de drogas,7 em
sua grande maioria em razão do chamado “tráfico formiguinha”8 (em que
se atravessa a fronteira com quantidades muito pequenas de drogas por vez).
A transnacionalidade do mercado de drogas está na gênese da despro-
porcionalidade de estrangeiras presas por tráfico no Brasil. Características
como a pobreza, o gênero, a nacionalidade e o grau de instrução das mulheres
influenciam nas escolhas das “mulas”, sujeitando-as à exploração acentuada de
seu trabalho pelo mercado do tráfico de drogas e ao tratamento endurecido
do Direito Penal.
Espera-se que a análise da relação dialética das mulheres “mulas” com as
estruturas de dominação sirva para explicitar as contradições entre os objetivos
manifestos do sistema carcerário e sua função real, assim como a exposição das
mulas às práticas de tráfico de pessoas, de forma a contribuir para a discussão
sobre drogas, mulheres e sistema carcerário.
Serão analisados dois materiais empíricos diferentes: uma entrevista com
o delegado-chefe da Polícia Federal do aeroporto de Guarulhos e sentenças
de primeiro e segundo grau, colhidas do Tribunal Regional Federal da 3ª
Região a partir da chave de pesquisa “mula”.
A entrevista com esse delegado se deu pela posição estratégica de Gua-
rulhos como o aeroporto mais movimentado do país, responsável pela prisão
da maior parte das “mulas” estudadas, visando abordar os critérios de seleção
de rés a serem julgadas pelo poder judiciário. Já a escolha da forma de seleção

5
LIMA, Raquel da Cruz. Mulheres e tráfico de drogas: uma sentença tripla – parte I. jun/2015.
ITTC. Disponível em: < http://ittc.org.br/mulheres-e-trafico-de-drogas-uma-sentenca-tripla-
-parte-i/>.
6
HELPES, Sintia Soares. Vidas em jogo: Um estudo sobre mulheres envolvidas com o tráfico
de drogas. São Paulo: IBCCRIM, 2014.
7
Estatística do Projeto Estrangeiras do ITTC. Disponível em: http://ittc.org.br/estrangeiras/.
8
SOUZA, Luísa Luz de. As consequências do discurso punitivo contra as mulheres “mulas” do tráfico
internacional de drogas: ideias para a reformulação da política de enfrentamento às drogas no
Brasil. ITTC. p. 07.

234
dos casos permitiu identificar as histórias dessas mulheres sob as lentes do
judiciário, de forma que a análise dos fatos foi feita a partir de informações
que estiveram disponíveis à Justiça.
Os precedentes que embasaram a pesquisa jurisprudencial foram as
sentenças de primeiro e segundo grau exaradas em todos os casos de mulhe-
res “mulas” julgados pelo 3ª Tribunal Regional Federal entre 01 de outubro
de 2013 e 01 de outubro de 2014, período de um ano em que se procurou
inferir um padrão decisório e suas exceções.
Esse Tribunal foi considerado especialmente relevante por englobar o
Estado do Mato Grosso do Sul, rota de entrada ao Brasil das “mulas” que
trazem as drogas produzidas na América Latina, e o estado de São Paulo, rota
de saída de “mulas” para escoamento de drogas para o mundo.
O critério de seleção utilizado foi: i) o termo “mula”; ii) a partir das
ocorrências encontradas, a identificação de quais decisões se referiam a
mulheres. Após a seleção dos casos, pesquisou-se as decisões de primeira
instância referentes a estes, para compreender as questões mais controversas
e as diferenças interpretativas entre as duas instâncias.
De 131 casos resultantes da pesquisa, 46 referiam-se a mulheres, 82 a
homens, e 3 casos não continham informação acessível sobre o gênero do
réu ou ré. Dos casos referentes a mulheres, 6 estavam em segredo de justiça,
tendo sua análise parcial ou totalmente comprometida. Nos 46 casos analisados,
havia 56 mulheres, sendo 11 brasileiras e 45 estrangeiras. Os casos referentes a
mulheres totalizam 35,11% de todos os casos pesquisados, donde se observa
a já citada sobrerrepresentação de mulheres no tráfico de drogas. Ao longo
deste artigo, serão apresentados trechos do material empírico analisado para
ilustrar os temas de análise que ele suscitou.9
O estudo dos discursos das “mulas” digeridos a partir do ponto de vista
do judiciário, revelados por meio de sentenças criminais, tem como des-
vantagem a perda de parte da fecundidade interpretativa da fala original. Só
teremos acesso às experiências que as “mulas” escolheram compartilhar com
os juízes. Porém, apresenta-se também a oportunidade de identificar quais os
trechos das falas das “mulas” que se apresentam como mais relevantes para os
representantes do poder punitivo, o suficiente para serem citados no momento
de decisão sobre o seu destino.
Os temas de análise são divididos por cada núcleo de significação en-
contrados no material empírico. Os núcleos de significação são montados a
partir do destacamento de discursos (sentenças, falas) que sejam reiterativas,
demonstrem carga emocional ou ambivalências. São “trechos de falas compostos

9
O material completo e sem recortes não será disponibilizado neste meio por impossibi-
lidade espacial.

235
por palavras articuladas que compõem um significado, carregam e expressam a totalidade
do sujeito e, portanto, constituem uma unidade de pensamento e linguagem”.10 Essas
falas (pré-indicadores) são aglutinadas por similaridade, complementaridade
ou contraposição em conteúdos temáticos (indicadores), que por fim são
articulados para revelar a essência dos conteúdos expressos pelo sujeito nos
núcleos de significação.
Procura-se responder às funções concretas da movimentação da máquina
penal para a prisão das “mulas” do tráfico, e romper o silêncio quanto à sua
vitimização pelo tráfico de pessoas, explicitando quem ganha e quem perde
na paz social assegurada pelo Direito Penal.

2. A primeira peneira
O desempenho da Delegacia Especial da Polícia Federal do Aeroporto
Internacional de Guarulhos é impressionante. Em 2014, a delegacia, então
recém-reinaugurada para a Copa do Mundo,11 apreendeu 1.213 quilos de
cocaína, 16,2 quilos de maconha, 6,3 quilos de skunk, 120 gramas de ana-
bolizantes, 182 gramas de lidocaína, 95.603 comprimidos de ecstasy e 1.331
pontos de anfetamina. Segundo as informações do Setor de Comunicação da
Superintendência da PF, “‘mulas do tráfico’ tentam levar drogas dissimuladas
das mais variadas formas em suas bagagens, dentro do estômago, em cápsulas
engolidas, ou mesmo atadas ao corpo. Somente por tráfico de drogas foram
presas 216 pessoas de janeiro a dezembro de 2014”.12
A atuação é capitaneada pelo delegado-chefe de Guarulhos, que foi en-
trevistado para este trabalho. O delegado fez sua carreira na área de segurança
pública. Em sua sala, adornada com fotos de sua família, contou com satisfação
a trajetória que o levou ao aeroporto mais movimentado do país. Foram dois
anos como policial militar, cinco como oficial da Marinha e dezoito anos
como delegado da Polícia Federal. Destes, cinco se passaram em Guarulhos,
na ponta de frente da guerra contra as drogas.
Iniciada a entrevista sobre as “mulas” presas em Guarulhos, o delegado
prefere inicialmente explicar o porquê de o aeroporto ser uma peça-chave para
a economia da droga. “O Brasil é um grande consumidor de cocaína, mas o

10
AGUIAR,Wanda Maria Junqueira; OZELLA, Sérgio. Apreensão dos sentidos: aprimorando
a proposta dos núcleos de significação. Revista Brasileira de Estudo Pedagógicos, Brasília, v.
94, n. 236, p. 309, jan./abr. 2013.
11
SINCOMERCIÁRIOS. Polícia Federal inaugura delegacia no aeroporto. Disponível em:
http://comerciariosdeguarulhos.org.br/index.php/acontece-na-base/74-acontece-na-ba-
se/3403-policia-federal-inaugura-delegacia-no-aeroporto.
12
PF, Superintendência. Investimentos incrementam a eficiência da PF no aeroporto de Guarulhos.
Disponível em: http://www.dpf.gov.br/agencia/noticias/2015/01/investimentos-incre-
mentam-a-eficiencia-da-pf-no-aeroporto-de-guarulhos-sp.

236
Brasil não é produtor de cocaína. Os três únicos do mundo são Peru, Bolívia
e Colômbia. Então o aeroporto de Guarulhos é um aeroporto escoador pro
leste do globo [...] Ásia, Europa, Oceania”.
Sua fala expõe a realidade subjacente à caçada às “mulas”, que é fre-
quentemente recordada pelos juízes para reforçar a necessidade de punições
exemplares: o transporte feito nos aeroportos internacionais serve a um mer-
cado organizado e transnacional que, pela estimativa da ONU, movimentava
em 2005 cerca de 320 bilhões de dólares.13
Se a demanda do tráfico, enquanto mercado lucrativo, é constante, tam-
bém o é a atuação do delegado e de sua equipe. A apreensão de drogas em
Guarulhos cresceu 71% entre 2000 e 2014,14 número que a PF atribui ao uso
coordenado de diversas técnicas repressivas.A atuação conta com equipamentos
tecnológicos modernos, como aparelhos que identificam vestígios da droga, e
body scam para identificar “mulas engolidas”, como conta o delegado:15

- Tem os check points, onde se identifica, se observa as pessoas. A pes-


soa faz o check-in, já é um local onde, se tiver alguma coisa errada,
já acontece a intervenção. Depois, a pessoa faz o embarque; é um
segundo local onde vai haver uma atenção... A mala, quando ela
despacha a mala, também vai haver verificação procurando droga. Os
cachorros são especialmente eficientes. Eles têm uma taxa muito boa
de apreensão. [...] tem a inteligência, como eu falei. Quando fazemos
o perfil, notamos que a pessoa comprou passagem há pouco tempo,
ficou no Brasil pouco. E às vezes a pessoa tá mais nervosa... A partir
do momento que o policial vê alguma coisa suspeita no seu jeito ele
vai ficar mais de olho, vai checar a sua bagagem, a sua mala de mão,
vai passar um sensor, que fala se tem ou não partículas de cocaína, de
droga em você, e se não tem nada, não pegamos nada, a gente faz o
interrogatório mesmo assim porque é possível que você seja engolido.

Foi possível identificar o padrão de fiscalização narrado pelo delegado


em alguns casos em que o trabalho conjunto da Polícia Federal com as com-
panhias aéreas nos check points levou à prisão de “mulas” com a utilização das
técnicas disponíveis para facilitar a fiscalização:

“Segundo a peça acusatória, no dia dos fatos, o APF Maurício


Fernandes Eiras estava realizando fiscalização de rotina no setor de

13
UNODC, World drug report 2012 (United Nations publication, Sales No. E.12.XI.1), p. 60.
14
JUNQUEIRA, Diogo. Apreensão de drogas sobe 71% nos últimos 5 anos. Disponível em:
http://noticias.r7.com/sao-paulo/apreensao-de-drogas-em-cumbica-sobe-71-nos-ulti-
mos-5-anos-09022015.
15
Forma como o entrevistado se refere às mulas que transportam a droga dentro do seu corpo,
em geral engolindo diversas capsulas com alguns gramas de cocaína.

237
esteira de bagagens, quando o cão farejador indicou uma caixa de grande
dimensão.”16 [...].
“A operadora de raio-X chamou os policiais federais, diante de uma
bagagem suspeita. Passou as malas (duas) no raio-X e identificou
substância orgânica”.17 “A testemunha Fernanda disse que se lembra
da ré, que estava em atendimento no check in e o pessoal de segurança
da companhia aérea lhe avisou de uma passageira suspeita, pelo perfil”.18

Ao ressaltar o serviço de inteligência para análise dos dados dos passageiros


(forma de pagamento da passagem, quanto tempo antes do voo o pagamento
foi feito, tempo de estadia no Brasil, entre outras informações), bem como a
tecnologia disponível, o discurso da Polícia Federal, apreendido por meio do
delegado, parece se apoiar em dois pressupostos a serem abordados: i) que a
atividade de fiscalização aparelhada com mais recursos mitiga a subjetividade
dos agentes sobre a figura do “suspeito”; e, portanto, é menos afetada pelo con-
trole social ínsito à seletividade penal; ii) consegue efetivamente desmantelar
a rede organizada do tráfico de drogas, concretizando o objetivo declarado
da política antidrogas de erradicar a compra e venda de drogas no mundo.

2.1. O mito da objetividade na seleção penal


Para melhor proteger o bem jurídico da saúde pública, o delegado procura
demonstrar que sua atividade não se volta a grupos de “indivíduos vulneráveis
selecionados por estereótipos, preconceitos e outros mecanismos ideológicos
dos agentes de controle social”19, em detrimento de outros. Ou seja, apoiando-
-se em critérios aparentemente neutros, a polícia procura ter a capacidade de
contrariar a crítica de que a seleção criminal serve para “a gestão diferenciada
da criminalidade e garantia das relações sociais desiguais da contradição capital/
trabalho assalariado das sociedades contemporâneas”.20 Nesse sentido, afirma:

- A África não é consumidora, mas tem muita “mula” mulher que


vem de lá... A África é um entreposto de drogas que depois vão para
a Europa. Guarulhos tem voos diretos para Johanesburgo e Luanda,
que são parte da fiscalização.

16
GUARULHOS. 6ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0001569-07.2011.4.03.6119. Reg.:
18/11/2011
17
GUARULHOS. 1ª Vara, SJSP.AÇÃO PENAL 0006126-66.2013.4.03.6119. Disp.:
31/01/2014
18
GUARULHOS. 4ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0011753-85.2012.4.03.6119. Reg.:
25/04/2013
19
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 5. ed. - Florianópolis: Conceito
Editorial, 2012. p. 13
20
Idem, ibidem, p. 14.

238
- Mas por que tem mais mulheres que vêm da África, vocês sabem a razão?
- Tem muita que vem da África, mas não só. Essas “mulas”, em
geral, não usam, elas vêm pelo dinheiro.Tem dois tipos de “mula”.
Tem as ocasionais e as que realmente fazem parte da organização
criminosa. Mas a tendência é que a “mula” que vem como oca-
sional, ela vem uma, duas vezes, e às vezes entra, passa a fazer parte
da organização. As “mulas” em geral são pessoas que não têm perfil
cultural, que têm nível socioeconômico baixo; em geral são iletradas, não
falam português... Isso porque estamos falando das “mulas” que levam a
cocaína para fora. Tem também a entrada, a droga que vem pro país. Aí
o foco é em anfetaminas e metanfetaminas, que em geral quem traz são
“mulas” mais jovens, com maior nível socioeconômico e educativo. Isso
porque o Brasil não tem produção relevante de drogas sintéticas.
[...] O tráfico inclusive é feito por universitários, por pessoas com
maior nível cultural, que já tão graduando. Outro dia prendemos
uma menina, bonitinha, educada, parecia tudo certo... Aí eu per-
gunto ‘e aí, o que que aconteceu?’; ‘ah, eu precisava de dinheiro
pra pagar a universidade. Não tava conseguindo terminar e uma
amiga minha falou que eu podia arranjar dinheiro assim e eu ia
conseguir pagar a faculdade’.

A resposta do delegado delineia perfis que a polícia espera encontrar


nas diferentes rotas do tráfico. Por um lado, tem-se que os presos na rota da
exportação da cocaína, trazida do Peru, Colômbia e Bolívia, para então ser
escoada para o resto do mundo por Guarulhos, são geralmente pobres, sem
instrução e com acesso precário a direitos. Já na rota de importação de drogas
sintéticas, como as anfetaminas e o ecstasy, espera-se encontrar estudantes
brasileiros universitários de classe média, jovens “bonitos”.
A Federação Nacional dos Policiais Federais confirma o perfil distinto das
“mulas de exportação”, afirmando que, diferentemente do tráfico de cocaína
para a Europa, em que o tráfico é feito preferencialmente por estrangeiras, o
tráfico de ecstasy para o Brasil é feito geralmente por brasileiros, “jovens de
classe média que acreditam ser possível evitar a repressão ao tráfico pelo fato
de o entorpecente sintético ocupar pouco espaço na bagagem”.21 
Chama a atenção o fato de que a pesquisa jurisprudencial com a chave
“mula” não encontrou ambos os perfis descritos, mas somente o perfil das
“mulas de exportação”. Tal discrepância pode indicar que a palavra “mula”
não é utilizada pelos magistrados para identificar o perfil das pessoas que
importam sintéticos, apesar da similaridade de tarefas. Também pode indicar
uma tendência muito maior de se prender “mulas” de exportação.

21
FENAPEF, Vai cocaína, volta ecstasy. 07 de dezembro de 2009. Disponível em: http://www.
fenapef.org.br/25628.

239
Ambas as possibilidades têm fundamento. Por um lado, a apreensão de
ecstasy em 2014 foi muito inferior à de cocaína. Considerando o peso médio
do comprimido de ecstasy entre 200 mg e 450 mg, a apreensão de 95.603
comprimidos de ecstasy significou um peso entre 19,12 kg e 43,02 kg. Esse
valor é representativamente inferior aos 1.213,00 kg de cocaína apreendidos
pela polícia no aeroporto de Guarulhos na mesma época. Parece haver uma
tendência à prevalência da prisão das pessoas em situação vulnerável sobre a
prisão de “mulas” universitárias de classe média.
Por outro lado, a utilização do termo pejorativo “mula” para este
segundo grupo também pode estar sendo evitada pelo poder judiciário
em razão do termo ser associado ao setor social marginalizado. Con-
forme já denunciado por Baratta, os juristas tendem a preservar incons-
cientemente os réus e rés que advêm dos setores hegemônicos, tendo
a tendência de emitir juízos mais favoráveis a indivíduos do extrato
superior em oposição àqueles que estão na mesma situação advindos
de estratos inferiores.22
Não obstante, reagindo à sugestão de que haveria um perfil fechado
de pessoas que saem com droga, o entrevistado rechaça a hipótese com a
afirmação de que, se isso ocorresse, a fiscalização deixaria de surtir efeito:

- Mas então em geral as “mulas” que saem têm um perfil de serem mais
pobres, de terem menor nível..
- Não dá pra dizer, não tem um só perfil. Em geral podemos dizer
que na saída uns 2/3 são de africanos e europeus, e 1/3 do resto,
incluindo sul-americanos, asiáticos, Oceania... A idade varia de 25
a 50 anos, mas é mais comum que sejam jovens. Mas o que eu digo é
que o perfil da “mula” é o de quem pega um resfriado. Não existe ninguém
que não possa ser “mula”; tem pessoas que carregam bíblias, mas não
são cristãos de verdade. Nós tivemos outro dia uma senhora inglesa,
com mais idade, que estava no Brasil aparentemente a turismo. Nós
pegamos porque não nos prendemos numa cartilha, num procedimento
padrão. Isso não existe. Se a polícia não sai da zona de conforto o tráfico
vai enviar uns bois mandados para a sua cota, sabendo que a polícia só ia
procurar determinadas pessoas.

O delegado-chefe afirma orientar sua equipe a fiscalizar universalmente


os passageiros, tendo ciência de que a prisão preponderante de um único
grupo social torna a fiscalização frágil. Entretanto, sua diligência não encontra
reflexo na realidade carcerária, composta largamente por mulheres em situação
de pobreza, falta de instrução e acesso precário a direitos.
22
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia
do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 175 – 178.

240
Conforme ressaltado pelo Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC),
que trabalha com mulheres estrangeiras presas no Estado de São Paulo desde
2001, a maioria das mulheres presas na América Latina têm em comum a
ausência de antecedentes, a condição de chefes de família em lares mono-
parentais, a baixa escolaridade formal, a dificuldade de acesso a empregos
formais e a condição de arrimo familiar.23
Em relação à nacionalidade predominante, em 2012, 44% da população
carcerária feminina estrangeira no Brasil era do continente americano, 31%
da África, 17% da Europa e 8% da Ásia.24 A ênfase dada pelo entrevistado à
quantidade de presas africanas é refletida na sobrerrepresentação no estado
de São Paulo, que apresentava 38% de africanas, 32% de americanas, 19% de
europeias e 11% de asiáticas.25
A grande utilização de “mulas” africanas pode ser explicada pelo
fortalecimento do papel de Johannesburgo dentro da rota das drogas,
em detrimento de países europeus, o que levou a um crescimento des-
proporcional da nacionalidade sul-africana.26 Já o elevado número de
sul-americanas dá-se em razão da proximidade das fronteiras facilitar o
trajeto, sendo que em geral essas mulheres transportam cocaína de seus
Estados para o Brasil pela via terrestre, podendo continuar o transporte
para o exterior pela via aérea.
O modus operandi dos policiais em Guarulhos não diferiu do observado
no aeroporto de Viracopos. Nas fronteiras terrestres, onde a Polícia Federal
também averigua por amostragem os transeuntes, todas as abordagens estudadas
foram feitas em ônibus na estrada ou nos postos fixos na fronteira.27 O perfil
das “mulas de exportação” nos aeroportos não apresentou variações notáveis
em comparação com o das “mulas de importação” nas fronteiras terrestres, à
parte a maior incidência de latino-americanas.
Face à realidade carcerária, não se sustenta o discurso policial que justifica
a suposta neutralidade da seleção penal a partir da existência de casos excep-
cionais em que o padrão de seleção não foi reproduzido. A criminalização

23
LIMA, op. cit.
24
DEPEN. Dados sobre a população carcerária feminina estrangeira custodiada nas unidades prisionais
do Brasil. Departamento Penitenciário Nacional. Brasília, 2014.
25
Id. Ibidem, pp. 5/6. Estatística calculada a partir dos números absolutos apresentados.
26
MELLO, Patrícia. Sul-africanas já lideram casos de estrangeiras presas em SP. 17 de novembro de
2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/11/1372520-sul-
-africanas-ja-lideram-casos-de-estrangeiras-presas-em-sp.shtml>
27
Da totalidade dos casos, 28 tiveram o flagrante no aeroporto de Guarulhos, dois com a
droga a caminho deste aeroporto e três no de Viracopos. A fronteira terrestre apresentou
10 casos dentro de ônibus indo para São Paulo e um caso na fronteira com a Bolívia. Em
dois casos a informação não estava disponível.

241
ocasional de pessoas dos próprios setores hegemônicos reafirma simbolica-
mente a legitimidade do controle social sem modificar sua estrutura.28
O maior encarceramento de pessoas dos estratos marginalizados, em
operações que dependem da identificação do “comportamento suspeito”, é
facilitado pela perplexidade levantada por sua mera presença nos aeroportos.
O acesso a viagens internacionais é restrito por meio do controle socioeco-
nômico; estratos sociais que possuem determinada cor de pele, roupa, atitude
e nacionalidade. Assim, a compra de passagens internacionais por pessoas que
pertencem a grupos destoantes gera automática estranheza, o que significa maior
facilidade das forças repressivas para a seleção penal. Nesse ponto, o entrevistado
admite que, sendo seu foco a apreensão da maior quantidade de droga possível,
a preocupação com a diversificação da seletividade criminal é secundária:

- Em relação a essa operação mais randômica que o senhor falou, que os


policias não fazem baseados em perfil, ela é bastante comum? Ela é feita,
o quê... em um a cada dez casos?
- Não, eu não oriento os meus policiais a fazer uma taxa de pessoas
de um a cada dez casos, porque se você tem dez casos... O nosso
objetivo aqui é a apreensão e destruição de drogas. Se você tem dez
casos fáceis, em que você sabe que vai ter apreensão e destruição
de drogas porque eles estão no perfil da inteligência, porque eles
já são mais batidos, eu não vou falar pra você deixar de parar uma
pessoa que com mais certeza vai ter droga para fazer um caso mais
difícil. Mas eu incentivo essa boa ousadia do policial de sair da zona
de conforto deles e fazer os outros casos, porque uma coisa que
eu bato muito aqui dentro é que não existe pessoa que não seria
nunca uma “mula”, todo mundo pode ser.

Como ressaltado por Zaffaroni, não há sistema penal no mundo que não
seja seletivo e que não criminalize preferencialmente o que lhe resulta mais fácil
de detectar (as ações mais rudes e grosseiras) e cometidas pelas pessoas que mais
se expõem, por serem mais notórias: o negro se destaca mais que o branco.29
Em grande parte dos casos, o flagrante é atingido a partir do jul-
gamento dos agentes acerca das atitudes suspeitas das passageiras, o que
traduz mecanismos de interpretação que tendem a criminalizar pessoas
em situação vulnerável:30

28
ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal bra-
sileiro – parte geral. 9. ed. Revista dos Tribunais, 2011. p. 76.
29
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La mujer y poder punitivo: vigiladas y castigadas. Trad. nossa.
Lima: Cladem, 1993. p. 90.
30
CARVALHO, Salo de. Política de Drogas: Mudanças e Paradigmas. Revista EMERJ, Rio
de Janeiro, v. 16, n. 63 (Edição Especial), p. 49, out. - dez. 2013.

242
“Foi abordada por agente de Polícia Federal, acionado pela com-
panhia aérea em razão de atitude suspeita da acusada. [...] sua pre-
sença solicitada em virtude de uma passageira suspeita aparentar
nervosismo antes de embarcar.”31 “O APF [...] abordou a acusada, que
apresentava certo nervosismo, na fila do check in para o voo 196, da
empresa aérea TAP, prestes a embarcar para Portugal.”32

2.2. A função extraoficial da fiscalização


A seleção majoritária de mulheres do mesmo perfil pelo controle puni-
tivo cumpre a função extraoficial, não obstante a vontade pessoal de agentes
policiais, de conter os grupos sociais marginalizados pela criminalização sele-
tiva, garantindo a tranquilidade dos setores hegemônicos.33 Por outro lado, a
fiscalização fronteiriça é largamente ineficaz para cumprir seu objetivo oficial
de coibir o tráfico, dando alívio meramente simbólico às expectativas sociais
da guerra contra o tráfico.
A limitação de espaço do microcosmo do aeroporto permite a rara
oportunidade criminológica de se observar, empiricamente, a cifra negra da
criminalidade. As ocasionais operações especiais de fiscalização são respon-
sáveis por atingir levas inteiras de pessoas que normalmente não estariam
na peneira da criminalização secundária. Demonstram a real criminalidade
existente, ao mesmo tempo em que quebram o equilíbrio estabelecido
entre o tráfico e a polícia, sobrecarregando o aparato repressivo, conforme
explicado pelo entrevistado:

- Nós temos um efetivo pequeno. Quando temos muitas apre-


ensões, temos que deslocar agentes para acompanhar os presos;
e o resto fica desfalcado. Por exemplo, fizemos uma operação
em que, de 100 pessoas embarcando para Portugal pela TAP, 22
eram ‘engolidos’. Quinze dias depois, repetimos a operação, para
ver se tinha tido efeito. Foram 24 pessoas. Então, um: o tráfico
não se abate pela prisão de 22 ‘mulas’. Mas isso é indiferente,
o tráfico estar crescendo ou diminuindo. O meu trabalho é a
minha taxa de apreensão sempre crescer, essa é a minha meta.
Dois: a vida vem em primeiro lugar; então, quando pegamos um
‘engolido’ temos que levar ele pro hospital para preservar a vida.
São dois agentes que vão com a pessoa pro hospital. É muito
complicado, sobrecarrega.

31
GUARULHOS. 6ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0000121-28.2013.4.03.6119. Reg.:
04/02/2014.
32
GUARULHOS. 6ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0009714-52.2011.4.03.6119. Reg.:
16/07/2012.
33
ZAFFARONI; PIERANGELI, op. cit., p. 62-77.

243
Vê-se que uma parte considerável das viagens internacionais feitas por
Guarulhos é paga pela economia do tráfico para a realização do transporte de
drogas. O transporte é relevante o suficiente para tornar impossível à polícia
bloqueá-lo. Se fosse possível, isso traria prejuízos enormes às companhias
aéreas, com a possível migração da logística do tráfico para outro porto de
escoamento a longo prazo. Ainda, a prisão ocasional das “mulas” não tem
nenhuma consequência real para a estrutura do tráfico, que simplesmente as
substitui por outras pessoas na semana seguinte.
É sintomático que o delegado afirme que seu objetivo é o crescimento
de suas taxas de apreensão, em lugar do desbaratamento das organizações cri-
minosas que alimentam o transporte. A meta afirmada pelo entrevistado, em
sua racionalidade burocrática, é a única meta que lhe é possível. As ferramentas
repressivas que lhe são dadas não permitem modificar as forças de equilíbrio
da economia da droga. O resultado prático é o alimento à ilusão de combate
ao tráfico de drogas por meio da publicação de números de apreensões e
prisão de bodes expiatórios.
Assim, a polícia é testemunha privilegiada do fracasso da política de
combate às drogas, e mais além, da escolha política do sistema repressivo de
concentrar os seus esforços no encarceramento de grupos à margem dos cen-
tros de poder, de forma a justificar a guerra sem minar a lucrativa economia
que ela alimenta.

- A droga que é de rico aqui não é em outro lugar. [...] é difícil de


chegar; então é muito caro, e os traficantes têm lucros altíssimos. Já na Bo-
lívia, cocaína é droga de pobre porque é produzida lá. Mesma coisa
com heroína. No Oriente Médio é droga de pobre. Os nigerianos
foram identificados já há algum tempo como gerentes do tráfico. A
cadeia não é mais piramidal, a rede do tráfico em que você não tem
mais um chefe, você tem vários gerentes, com relações de trabalho
amigáveis, que dividem o nicho deles e se ajudam. [...] É muito difícil
porque aqui no Brasil eles não tem bens. Eles moram num lugar
ruim, não tem nada.Você vai lá no bairro onde eles moram e eles
não tem nada em casa, estão de chinelo no pé. E quando você vai
ver, lá na Nigéria eles tem tudo, tem empresas, casas, mas aqui não
tem nada a ser apreendido. [...] É complicado. Pra congelar o tráfico
você necessariamente tem que congelar os dados bancários. Senão é
como enxugar gelo. Se você prende o cara, mas não tira o dinheiro, ele
arranja um jeito de continuar o esquema, por isso era importante
congelar os bens. Mas não, não conheço nenhum caso de sucesso.

A política de repressão ao tráfico de drogas mostra sua inocuidade mesmo


em uma delegacia reinaugurada em setembro de 2014, com tecnologia de
ponta e efetivo atuante. Mas a incapacidade de concretizar a meta oficial de

244
impedir o funcionamento desse mercado é traduzida em utilidade econômica
para o próprio mercado, na medida em que este ajusta seus preços de acordo
com a facilidade de oferta, sendo certa a constância da demanda. Apresenta
ainda utilidade ilimitada para encarcerar aqueles em posição marginal à estru-
tura de poder ao escolher preferencialmente pela criminalização de pessoas
em posição subalterna e mal remunerada na economia do tráfico de drogas.

3. A preponderância da classe
A motivação mais suscitada pelas “mulas” para explicar sua atividade
criminosa aos juízes foi a necessidade de acesso à renda. A crescente inserção
das mulheres no tráfico de drogas é marcada pela sua integração precária ao
mercado de trabalho. Um número cada vez maior de mulheres torna-se prin-
cipal provedora de sua família, acumulando o papel tradicional de cuidadora
com responsabilidades sobre a sobrevivência material da família.
Entretanto, em razão de sua classe social e escolaridade, muitas mulheres
são lançadas às condições mais vulneráveis do mercado de trabalho, marcadas
pela informalidade e pela insuficiência da remuneração na garantia de sua
dignidade. Em tal conjuntura, o tráfico de drogas se apresenta como uma
opção de complemento de renda.
Dentre os meios de receita disponíveis, o tráfico é mais acessível às
mulheres, considerando as barreiras de gênero existentes inclusive no âmbito
dos negócios ilícitos, devido ao seu caráter não violento. É, essencialmente,
um negócio consensual de compra e venda que não demanda força física, e
pode ser exercido no âmbito doméstico, espaço historicamente feminino e
que implica a possibilidade de cuidar dos filhos ao mesmo tempo em que
se trabalha.34
Outra razão apontada para a maior participação das mulheres no tráfico
é a sensação de poder que a atividade proporciona à mulher, pelo seu caráter
transgressor. Como argumenta Mariana Barcinski em estudo sobre a partici-
pação das mulheres na rede do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, o poder
é vivenciado pelo desempenho de tarefas reconhecidas como masculinas e
pelo distanciamento estabelecido em comparação com outras mulheres. En-
tretanto, o papel usualmente desempenhado na rede do tráfico, como também
se verifica no presente estudo, é o de tarefas secundárias, menos lucrativas,
ou envolvendo maiores riscos; e mesmo as que desempenham funções mais
prestigiosas descrevem a marcada obediência aos homens.35

34
HELPES, op. cit., p. 62-65.
35
BARCINSKI, Mariana. Centralidade de gênero no processo de construção da identidade
de mulheres envolvidas na rede do tráfico de drogas. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro,
v. 14, n. 5, p. 1843-1853, Dec.  2009. p. 1851-1852.

245
No mesmo sentido aponta estudo de Maria Juruena de Moura, realizado
em 2005 no presídio feminino do Ceará. Este aponta que, apesar do crescimen-
to significativo da participação das mulheres no negócio do tráfico, as tarefas
permitidas a elas são, na maioria dos casos, limitadas a funções subsidiárias ou
de menor relevância. 81,4% das reclusas estudadas por ela trabalhavam como
“mula”, vendedora, retalhista ou pião.36
Isso não significa que não existam mulheres no topo das organizações
criminosas, mas que, a espelho das organizações empresariais, o machismo cria
barreiras significativas à ascensão feminina. A ocupação feminina de posições
superiores no tráfico depende de diversos fatores, podendo ser facilitada pela
classe social, por uma certa “masculinização” comportamental necessária para
reivindicar respeito, assim como pelo uso subversivo de relações com homens,
ocupando seu lugar se morrem ou são presos.37
Apesar das barreiras, as mulheres que ascendem a níveis mais altos da
organização deixam de compor a população-foco da seleção criminal, sendo
praticamente inexistentes dentro do sistema carcerário.
A atividade de “mula de exportação”, no entanto, tem singulari-
dades em relação à de pião ou de “mula” de curtas distâncias na favela.
A viagem por longas distâncias força as mulheres a largar suas vidas por
período sobre o qual elas não têm controle, determinado pela logística
do tráfico:

“O plano inicial era ficar 03 (três) dias; fiquei ao todo 07 (sete) dias no
Brasil”38. [...] Afirmou ter ficado duas semanas no Peru em um hotel,
não fez nada durante esses dias, apenas ficou dentro do quarto e falava ao
telefone com a pessoa que a contratou.”39
“Diante da difícil situação financeira enfrentada em seu país, aceitou
a oferta, tendo chegado ao país um mês antes de ser presa, acompanhada por
um indivíduo desconhecido [...] [teve] despesas custeadas pelo tal Kevin,
tendo permanecido durante todo o tempo no hotel.”40

36
MOURA, Maria Juruena de. Porta fechada, vida dilacerada - mulher, tráfico de drogas e
prisão: estudo realizado no presídio feminino do Ceará. 145 f. Dissertação (Mestrado
em Políticas Públicas e Sociedade) – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza. 2005.
p. 81-82.
37
CAMPBELL, Howard. Female drug smugglers on the US-Mexico border: gender,
crime, and empowerment. Anthropological Quarterly, v. 81, n. 1, p.233-267, 2008. p.
240 – 245.
38
GUARULHOS. 6ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0003836-78.2013.4.03.6119. Reg.:
10/02/2014.
39
GUARULHOS. 5ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0002504-76.2013.4.03.6119. Reg.:
10/02/2013.
40
GUARULHOS. 6ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0007009-47.2012.4.03.6119. Reg.:
05/08/2013.

246
Comparativamente, o envolvimento com o tráfico das “mulas de ex-
portação” não fornece espaço para o desejo de poder e reconhecimento.
No estudo de Barcinski um elemento essencial no discurso das entrevistadas
era a reputação que elas acreditavam ter construído em suas comunidades a
partir do envolvimento com o tráfico, mesmo em posições subordinadas. Já
o transporte internacional significa uma ruptura com a comunidade, o que
dificulta a existência de reconhecimento e valorização da mulher.
Ao contrário, ao aceitar viajar para localidades desconhecidas, com o
financiamento do tráfico, as “mulas” encontram-se em situação de grande
impotência: não conhecem a localidade, não falam a língua nativa e não têm
dinheiro para se manter sozinhas nem para voltar para casa por conta própria.
A impossibilidade de manter as relações sociais e familiares durante o trabalho
como “mula” e o alto risco de prisão inerente ao cruzamento de fronteiras com
drogas podem explicar o fato de que muitas mulas alegam ter sido convencidas
a viajar em razão de uma despesa excepcional ou nova ou uma dívida urgente.
Assim, essa atividade não constitui em regra um complemento habitual à renda,
mas o reflexo de uma necessidade pontual dentro da rotina de hipossuficiência.

“Trabalhava como vendedora já há alguns anos, ganhando em média


300 euros por mês. Precisando de dinheiro para saldar dívidas deixadas por
seu pai falecido [...] Diante de sua situação econômica alegadamente
precária, a ré aceitou a proposta, recebendo as passagens aéreas.”41
“Afirmou a acusada ter problemas financeiros na Venezuela, pois o pai
é hipertenso, a mãe diabética e nenhum dos dois trabalha. Além
disso, se encontrava desempregada há dois meses, sem conseguir
ocupação em sua área (Comunicação Social) e com um avô doente,
necessitando fazer cirurgia.”42

Chama a atenção que além da repetição de relatos sobre a privação do direito


básico à saúde, a falta de acesso à educação também é assunto repetitivo, demons-
trando que se tende a reproduzir o ciclo de pobreza43 ao impedir a qualificação dessa
mão-de-obra pelos meios legais e punir seu acesso a recursos pelos meios ilegais:

“Em seu interrogatório, a ré disse que sabia que estava transportando


cocaína e que aceitou fazê-lo porque estava desempregada e gostaria de
pagar os estudos das filhas.”44

41
GUARULHOS. 2ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0005253-66.2013.4.03.6119. Reg.:
16/12/2013.
42
GUARULHOS. 5ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0002423-30.2013.4.03.6119. Reg.:
04/12/2013.
43
BARATTA, 2002, op. cit . p. 166 – 167.
44
AÇÃO PENAL 0009714-52.2011.4.03.6119, op. cit.

247
“Estaria precisando por ser arrimo de família e também para custear
despesas com a faculdade da irmã caçula, o que daria azo à justificativa
do estado de necessidade.”45
“Tinha algumas dívidas e pretendia concluir meus estudos”.46

3.1. Estratégias do Estado contra


a necessidade
Esses relatos são comumente usados pela defesa das rés para aventar a
existência de estado de necessidade, o que foi, em todos os casos, rechaçado
pelos juristas de primeira e segunda instância. Os discursos têm em comum
o fato de que o magistrado deprecia toda e qualquer situação narrada, consi-
derando-a insuficientemente séria frente ao bem jurídico em apreço.

“As provas acostadas e circunstâncias narradas não demonstram qualquer


situação tão urgente que justificasse medida desesperadora com o intuito de
garantir a integridade física ou até mesmo a vida de parentes. Conforme
ela mesma narrou, havia dívidas datadas de cinco anos, período no qual
a ré poderia ter empreendido esforços para honrá-las de outra maneira.”47
“Dinheiro para a cirurgia cardíaca da filha. [...] Transigir com a prática
de fato criminoso ombreado aos delitos marcados pela hediondez,
sob o argumento de que o autor passava por dificuldades financeiras, vai muito
além da razoabilidade acima mencionada, desautorizando o reconhecimento
da causa excludente de ilicitude. [...] É dizer, em arremate: estado de
pobreza não se confunde com estado de necessidade.”48
“As constrições econômico-financeiras aduzidas pela acusada, desemprego,
dívidas e necessidade de arcar com custos de educação, não se mostram
de tal severidade a ponto de justificar complexo planejamento de crime de
tráfico de drogas.”49

Os requisitos do estado de necessidade são a atualidade do perigo, sua


involuntariedade, inevitabilidade e a inexigibilidade do sacrifício. Menospreza-se
a narrativa das “mulas” para ser possível afirmar categoricamente que é ra-
zoável exigir o sacrifício do bem jurídico por elas defendido, pois o mal a
ser sofrido pela ré não seria importante o suficiente para o reconhecimento
pelo sistema penal.

45
AÇÃO PENAL 0001569-07.2011.4.03.6119, op. cit.
46
AÇÃO PENAL 0003836-78.2013.4.03.6119. op. cit.
47
AÇÃO PENAL 0002423-30.2013.4.03.6119, opt. cit.
48
GUARULHOS. 6ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0010593-30.2009.4.03.6119. Reg.:
13/07/2010
49
TRF-3, ACR: 10593 SP 0010593-30.2009.4.03.6119, Relator: JUIZ CONVOCADO
MÁRCIO MESQUITA, Data de Julgamento: 08/10/2013, PRIMEIRA TURMA.

248
Quanto à atualidade do perigo, os magistrados argumentam que as
dificuldades advindas da pobreza são duradouras, o que significa que não há
perigo iminente que justifique a ação. Entretanto, o fato de que uma pessoa
vive um perigo há muito tempo não o torna menos ameaçador. Uma doen-
ça ser perene não necessariamente significa que ela é pouco perigosa, assim
como passar muito tempo sem ter dinheiro para sair de uma casa em ruínas
não torna menos real o perigo de desabamento.
Assim, o estado de necessidade pode ocorrer em perigos contínuos ou
duradouros, pois aguardar a real ocorrência da agressão antijurídica (como a
ocorrência de um ataque do coração) para então agir “pode ser ineficaz ou
implicar lesão maior na área dos bens jurídicos sacrificados”.50
A inevitabilidade dos riscos trazidos pela pobreza também é questio-
nada, por meio de raciocínios que evidenciam a defesa de privilégios da
classe dominante:

“A apelante poderia ter-se valido de outros meios lícitos para sanar a suposta
dificuldade financeira, que sequer ficou comprovada nos autos. E, ainda que
houvesse essa comprovação, tal fato não seria hábil para justificar a prática de
um ilícito de tamanha gravidade (tráfico internacional de entorpecentes) e
ilidir a responsabilização criminal, já que ingressar no mundo do crime
não é solução acertada, honrosa, digna para resolver problemas econômicos.”51
“Enveredar no mundo do crime não é solução acertada, honrosa, digna para
resolver agruras econômicas, muitas delas vivenciadas por todo o corpo social;
ao contrário, revela desvio de caráter, cupidez e pobreza de princípios.”52

Os magistrados, nesses casos, raciocinam conforme o pressuposto de que


a estrutura social permite a todos a solução de seus problemas a partir dos
meios lícitos disponíveis, de forma que o delito contraria interesses fundamen-
tais universais, devendo-se à escolha individual de determinados indivíduos
desviantes. Defendem a ideologia da defesa social ao naturalizar os valores e
interesses da manutenção da estrutura social como interesses comuns a todos
os cidadãos (princípio do interesse social), de forma que a ação delituosa seria
a expressão de uma atitude interior reprovável (princípio da culpabilidade).53
O mesmo raciocínio é exposto pelo entrevistado quando questionado
sobre as condições existenciais das “mulas”:

50
SANTOS, op. cit., p. 237.
51
TRF-3, ACR: 57588 SP 0002423-30.2013.4.03.6119, Relator: DESEMBARGADOR
JOSÉ LUNARDELLI, Data de Julgamento: 26/08/2014, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA.
52
TRF-3, ACR: 36983 SP 0010389-20.2008.4.03.6119, Relator: DESEMBARGADOR
FEDERAL JOHONSOM DI SALVO, Data de Julgamento: 26/08/2014, DÉCIMA
PRIMEIRA TURMA.
53
BARATTA, 2002, op. cit., p. 41 – 48.

249
- O senhor acha que uma forma de prevenção seria programas sociais...
que dessem um mínimo existencial pra essas pessoas, pra elas não pre-
cisarem traficar?
- Não, eu acho que não resolve. Em qualquer lugar você tem gente
desesperada. Mesmo na Europa você vê que você tem “mulas” de
lá mesmo as pessoas tendo um nível social bem mais alto. Então,
eu não acho que vai acabar as “mulas” se você der um nível social
melhor... Talvez não fossem as mesmas pessoas, mas grande parte
ia continuar... Mesmo nesses casos, porque elas aceitaram fazer isso
para resolver os problemas delas. As pessoas sempre têm uma escolha, tem
os valores, os freios morais, religiosos, que podem impedir ela de tomar essa
decisão, de fazer mal para as outras pessoas. Elas sempre têm a escolha.

Em parcial contraposição, há magistrados que reconhecem que a socie-


dade se reproduz de forma assimétrica, gerando dificuldades para a superação
das vulnerabilidades advindas da pobreza.54
Ao afirmar que a impossibilidade de acesso a uma boa remuneração
não justifica que a ré “enverede para o crime”, recorre-se a um raciocínio
explicável na teoria funcionalista da anomia. Note-se que o magistrado não
nega que a estrutura social produz uma disparidade entre os fins culturalmente
cultuados (de acesso a um nível mínimo de direitos e sucesso econômico) e
os meios institucionalmente permitidos para acessá-los.
Entretanto, não problematiza essa disparidade, ordenando que cabe
à ré conformar-se a continuar a busca dos fins culturais de acordo com os
meios legítimos que lhe estão disponíveis, mesmo que eles não supram
suas metas. 55 Assim, apesar de reconhecer a desigualdade estrutural,
legitima-se a atividade penal orientada ao controle social dos estratos
marginalizados para que não inovem nas estratégias de acesso aos fins
culturais negados, o que é reforçado pelo discurso de que há milhares
de pessoas em situação de pobreza no mundo conformando-se ao seu
papel social marginalizado:

“As dificuldades financeiras poderem ser evitadas por outra maneira,


que não o ingresso no submundo do crime. Milhares e milhares de
pessoas estão na mesma situação de miserabilidade alegada pelo acusado,
mas apenas uma minoria recorre ao crime, o que demonstra ser evitável a
prática delituosa empreendida pelo acusado.”56

54
CAMPINAS. 9ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0004126-72.2012.4.03.6105. Reg.: 05/09/2012
55
BARATTA, 2002, op. cit., p. 59 – 67.
56
AÇÃO PENAL 0006126-66.2013.4.03.6119, op. cit.; GUARULHOS. 5ª Vara, SJSP. AÇÃO
PENAL 0005822-38.2011.4.03.6119. Reg.: 16/03/2012; AÇÃO PENAL 0011753-
85.2012.4.03.6119, op. cit.

250
Ressalta-se que, apesar de alguns juristas argumentarem a falta de evi-
dências das situações aventadas, muitos consideram isso irrelevante, pois a
vulnerabilidade trazida pela pobreza jamais poderia ser aceita como justificante
pelo Direito Penal. Explicam que isso significaria “conceder uma licença para a
prática criminosa” para todos os pobres do mundo, não cabendo à sociedade
suportar este ônus.

“Registre-se, a propósito, que o argumento de que o agente optou pelo


caminho da ilicitude por estar passando por dificuldades financeiras não pode
ser aceito pura e simplesmente [...] sob pena de conceder-se uma licença para
a prática criminosa a todos aqueles no mundo afora que, lamentavelmente,
ainda se encontram abaixo da linha da pobreza, sem as mínimas condições
materiais para proporcionar, a si e aos seus familiares, uma vida digna. Sem
sombra de dúvida, a superação das graves privações econômicas por que muitos
passam, por piores e mais devastadoras que sejam, deve ser buscada - sem-
pre - através de meios lícitos. [...] orientação jurisprudencial pacífica
[...] ‘Com a devida vênia, a pobreza, ainda que em grau extremo,
não justifica a prática do tráfico ilícito de drogas. Ora, dificuldades
financeiras são enfrentadas pela grande maioria da população mundial,
não sendo dado admitir que a opção pela prática de crime seja vista como
única solução ou mesmo como caminho aceitável ou tolerável. [...] A pensar
como o apelante, todo aquele que se visse diante de problemas financeiros
poderia enveredar-se pelo tráfico de drogas, contando com a complacência do
Estado. Isso seria um verdadeiro despropósito, máxime tratando-se de crime
equiparado a hediondo’.”57

“Não cabe à sociedade suportar o ônus econômico-social da delinquência


disseminada pelo tráfico internacional de drogas, sob pena de subversão da paz
social e da pauta de valores éticos que inspiram o nosso ideário de sociedade.”58
A preocupação exposta pelos magistrados é com a própria manutenção
da estrutura social. É necessário rechaçar o comportamento de cada “mula”
para reforçar a vigência dos modelos de comportamento institucionalizados,
pois se houvesse o crescimento demasiado do comportamento desviante,
criar-se-ia uma verdadeira situação de anomia em que todo o sistema de regras
de conduta vigente perde o valor.59 Seus discursos servem, essencialmente, para
reafirmar a legitimidade dos interesses estruturais e evitar o questionamento
sobre a quais grupos estes interesses servem.

57
GUARULHOS. 2ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0011391-83.2012.4.03.6119. Reg.:
16/08/2013; GUARULHOS. 2ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0008453-18.2012.4.03.6119.
Reg.: 19/03/2013.
58
AÇÃO PENAL 0000121-28.2013.4.03.6119. op. cit.
59
BARATTA, 2002, op. cit., p. 59 – 67.

251
A leitura dos magistrados sobre a pobreza continua a influenciar as outras
fases da sentença, de forma menos homogênea que a observada em relação
ao estado de necessidade. Alguns magistrados usam a motivação econômica
do delito para penalizar mais duramente as rés, aumentando a pena-base pela
tentativa de ascensão social baseada em um lucro proibido pela estrutura social.

“Personalidade do agente: mostra-se desabonadora, pois demonstra


má índole na maneira de agir e reagir às dificuldades que a vida lhe reser-
vou e o completo desrespeito à saúde pública; e) Motivos determinantes:
merece uma maior reprovação a conduta da ré, pois os motivos são
antissociais, com a participação no tráfico de entorpecentes, demonstrando
uma cobiça na busca de dinheiro de forma fácil.”60
“Indivíduo que se dispõe a cruzar fronteiras internacionais sem nada saber
sobre o país de destino, desprendendo-se facilmente de sua comunidade
como meio de angariar alguns poucos dinheiros sem esforço ou preocupação
com o mal causado pela prática criminosa, revelando, dessa forma, enorme
desprezo pela vida ordeira em sociedade, frieza no agir e cupidez típica de
um perfeito arrivista.”61

Essa especial reprovabilidade do intento de lucro reforça o dever das rés


de se conformar ao seu estrato social. Esse tipo de reforço proibitivo serve
não apenas para proteger a propriedade como visa reforçar, simbolicamente,
a moral do trabalho, ou seja, aquela que deve disciplinar os homens na esfera
de produção material.62 A posição da segunda instância, no entanto, é a de
frear essa prática punitivista em razão do princípio do bis in idem, pois o lucro
é ínsito ao tipo.
A pobreza ainda é usada como justificativa para suprir a falta de evidên-
cias que embasem maior punição. A redução de pena do artigo 33, §4º da Lei
11.343/06 tem como critério que o agente seja primário (o que ocorreu na
totalidade dos casos estudados), não se dedique a atividades criminosas, nem
integre organização criminosa.
Sabe-se que o conceito de organização criminosa está disposto no artigo
1º, §1º da Lei 12.850/13, o que deveria indicar que é necessária a compro-
vação pelo órgão acusador de que os elementos do tipo foram satisfeitos
para imputar às rés a integração a uma organização criminosa, pois este é um
crime autônomo.

60
GUARULHOS. 6ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0004540-28.2012.4.03.6119. Reg.:
03/05/2013; AÇÃO PENAL 0003836-78.2013.4.03.6119, op. cit.
61
AÇÃO PENAL 0001569-07.2011.4.03.6119, op. cit.
62
BARATTA, Alessandro. O paradigma do género: da questão criminal à questão humana.
In: CAMPOS, Carmen Hein (Org.) Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.
p. 52/p. 19-80.

252
Entretanto, grande parte dos juristas considera suficiente para retirar o
direito à redução de pena a elucubração de que, em razão de sua pobreza, as
rés jamais poderiam ter viajado na vida por outro motivo que não o tráfico.
Nesses casos, ainda, o ônus da prova se inverte, cabendo às rés comprovarem
que suas outras viagens se deram dentro da legalidade.

“Outra entrada e saída do Brasil no ano anterior, por curto período de tempo,
cujas justificativas dadas em interrogatório são inverossímeis e não têm am-
paro probatório algum, indicando dedicação à atividade de transporte
internacional de drogas, como “mula profissional” [...] ela sabe que
jamais viria ao Brasil em condições normais e muito menos viajaria para
o exterior para passar um determinado período sem qualquer outra
justificativa plausível.”63

Por fim, é importante ressaltar que, em raros casos, as vulnerabilidades


demonstradas pela ré foram levadas em consideração pelo magistrado, de
modo a reduzir a pena, aliviando a pressão negativa do sistema punitivo
sobre a pobreza:

“Empregada doméstica, estava desempregada há um ano. [...] Alega


que cometeu o crime em razão de acentuada situação de penúria
financeira, pois paga aluguel e passou por uma cirurgia intestinal,
que comprova e se endividou para pagar a cirurgia, aluguel e re-
médios. Alega que sua família é pobre, vive no campo, não tem com quem
contar e, desempregada há quase um ano, se mantinha por uma espécie de
pensão que a filha de oito anos recebe do pai. Disse que queria que a
filha estudasse apesar da falta de dinheiro para as necessidades básicas,
emociona-se e se declara arrependida “pelo resto da vida”. Reduzo
a pena base em 1/6.”64

Pondera-se, entretanto, que esse esforço despenalizador deveria ser apli-


cado a todos os casos, independentemente do quão emocionada a ré possa
ter ficado ao contar sua história. A postura cavalheiresca do magistrado, no
entanto, será analisada a seguir.

4. O peso de ser mulher


As necessidades econômicas expostas pelas rés estão relacionadas, em
grande parte, a problemas enfrentados por mulheres pobres em todo o mundo
em função da desigualdade de gênero. O peso da maternidade é especial-
mente relevante, unindo-se a responsabilidade solo pelo bem-estar dos filhos
63
AÇÃO PENAL 0007009-47.2012.4.03.6119. op. cit.
64
AÇÃO PENAL 0009714-52.2011.4.03.6119. op. cit.

253
à dificuldade de conseguir emprego pela impossibilidade de um terceiro
cuidar da criança.

“Ficou grávida e saiu da escola. Deu à luz em 12/03/2012. O pai de


seu filho faleceu em 16/06/2012. A ré trabalhava, mas teve de sair do
emprego por causa de uma infecção grave no sangue. Estava desempregada
e com uma criança para sustentar.”65
“Adimplir as suas despesas para com a babá da sua filha [...], segundo
a ré, a sua contratada lhe proferiu ameaças tencionando sequestrar
o seu filho, caso o débito não fosse satisfatoriamente saldado.”66

A responsabilidade das rés sobre o bem-estar da criança é encarada com


naturalidade pelo judiciário, que não se manifesta sobre o assunto. Entretan-
to, o sistema penal pronuncia-se penalizando mais duramente as rés que são
consideradas mães degeneradas:

“A conduta social e personalidade da acusada, no entanto, são


reprováveis, considerando-se que expôs sua filha menor (à época
bebê de colo) ao contato direto com entorpecentes e às conseqüências
policiais de sua empreitada criminosa (flagrante, depoimentos na
polícia, etc.).”67
“Não obstante, a ré demonstrou frieza em responder que a gravidez não
era fato impeditivo das duas viagens feitas no começo de 2013 com o fim
de transportar drogas.”68
“Acusada viajando com a filha de colo. Elevado grau de reprovabilidade
da conduta.”69

No primeiro caso, o flagrante se deu em uma situação pacífica, pois a


ré transportava cocaína e maconha do Paraguai para o Brasil dentro de um
ônibus sem armas ou qualquer outro perigo à criança. Além disso, o juízo
de primeiro grau reconheceu a total inexistência de consequências da ação.
No entanto, no mesmo parágrafo, decidiu pelo aumento da pena-base em
razão da conduta social e personalidade da ré, pois teria exposto a filha à
sua própria prisão. Assim, o mero fato de ser uma mãe presa é considerado
um traço desaprovador de seu caráter em um raciocínio que coloca as mães
65
AÇÃO PENAL 0006126-66.2013.4.03.6119. op. cit.
66
AÇÃO PENAL 0000121-28.2013.4.03.6119, op. cit.
67
PONTA PORA, 1ª Vara, SJMS. AÇÃO PENAL 0003478-38.2011.4.03.6005. Reg.:
13/08/2012.
68
AÇÃO PENAL 0002504-76.2013.4.03.6119. op. cit.
69
TRF-3 - ACR: 53999 MS 0003478-38.2011.4.03.6005, Relator: DESEMBARGADOR
PAULO FONTES, Data de Julgamento: 22/09/2014, QUINTA TURMA.

254
como duplamente criminosas: por cometer o delito e por falhar em seu papel
como mãe.70
A penalização mais rigorosa sobre as mulheres que são mães encontra
ressonância na concepção, já defendida no séc. XVIII por Rousseau, de que do
papel de mãe é o destino biológico inato de toda mulher normal. Segundo o
filósofo, “quando a mulher se queixa a respeito da injusta desigualdade que o
homem impõe, não tem razão; essa desigualdade não é uma instituição humana
ou, pelo menos, obra do preconceito, e sim da razão: cabe a quem a natureza
encarregou do cuidado dos filhos a responsabilidade disso perante o outro”.71
Para Rousseau, a sujeição feminina é uma consequência racional do
pressuposto de que as mulheres não viveriam sem os homens, mas eles po-
deriam delas prescindir.72 O amor feminino, assim, é edificado conforme a
ideia de dedicação da mulher, construindo sua identidade a partir do papel de
cuidadora e mantenedora de relações afetivas com parceiros e com a família.73
Abnegando-se e dedicando todo o amor e cuidados ao outro, a mulher-mãe
torna-se santa.74
Ao mesmo tempo em que a boa mãe é santificada, a mãe má é apresen-
tada como aquela que não alcança o ideal de submissão, sendo julgada como
alguém que não ama o suficiente seus filhos ao ousar se colocar em primeiro
lugar. Como bem expõe Rousseau, ao buscar cumprir seu papel de gênero
a mulher coloca-se à mercê do julgamento dos homens:

Pela própria lei da natureza, as mulheres, tanto por elas como por
seus filhos, estão à mercê do julgamento dos homens: não basta que
sejam estimáveis, cumpre que sejam estimadas; não basta que sejam
belas, é preciso que agradem; não basta que sejam bem-compor-
tadas, é preciso que sejam reconhecidas como tal; sua honra não
está apenas na sua conduta, está na sua reputação, e não é possível
que a que consente em passar por infame seja um dia honesta. O
homem, agindo bem, não depende senão de si e pode desafiar o
juízo público; mas a mulher, agindo bem, só cumpre metade de
sua tarefa, e o que pensam dela lhe importa tanto quanto o que
é efetivamente.75

70
LEMGRUBER, Julita. A mulher e o sistema de justiça criminal: algumas notas. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 36, nov. 2010.
71
ROUSSEAU, Jean-Jaques. Emílio: ou da educação. Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 428-429.
72
Id. Ibidem, p. 432.
73
BARCINSKI, op. cit., p. 1849.
74
Id. Ibidem, 71 - 73.
75
ROUSSEAU, op. cit., p. 432.

255
Dados os termos de tal julgamento, não há como ganhar. As mães que
tentam conciliar a sua entrada no mercado de trabalho com a criação dos
filhos são responsabilizadas por estar deixando de dar total prevalência ao seu
papel de cuidadora. As que se dedicam aos filhos e não trabalham fora são
vistas como aproveitadoras, que não se esforçam para que a sua família tenha
mais condições materiais. Ainda, a delegação da criação dos filhos a terceiros,
entregando-os para adoção ou em razão da prisão da mãe, é encarada como
uma negação da própria essência feminina.76

4.1. Ferramentas de controle


formais e informais
O especial anseio punitivista contra mulheres que “falham” em seus papéis
sociais primários de cuidado dialoga com a tradição criminológica positivista.
A crença na inferioridade biológica das mulheres em relação aos homens,
além de desequilibrar as relações construídas entre os sexos, foi apropriada
pelo positivismo biológico para explicar o caráter atávico do comportamento
criminoso feminino.77 Na teoria Lombrosiana, mulheres “normais” seriam
facilmente influenciadas por terem intelecto menos desenvolvido. Assim, a
maior parte das criminosas femininas não deveriam ser submetidas ao sistema
penal, por ser mera ferramenta nas mãos dos homens.
Embora refinada, a exclusão do controle social formal persiste, podendo
ser ligada à natureza do Direito Penal como “um sistema de controle específico
das relações de trabalho produtivo, e, portanto, das relações de propriedade, da
moral do trabalho, bem como da ordem pública que o garante”,78 ou seja, voltado
a regular as relações da esfera pública produtiva tradicionalmente ocupada por
homens. Já as mulheres pertenceriam à esfera privada reprodutiva, cujo controle
social é feito pelo sistema informal, especialmente pela instituição familiar.
Tal prioridade à esfera privada leva a um tratamento diferencial análogo
à “proteção cavalheiresca” por parte dos julgadores,79 o que pode resultar em
julgamentos mais favoráveis:

“Destaco a personalidade da denunciada e a circunstância do crime,


pois a ré demonstrou personalidade dócil e cooperativa na ocasião de
sua prisão e do interrogatório.”80

76
Id. Ibidem, p. 63 – 64.
77
MEO, Analia Inés.   El delito de las féminas. Delito y Sociedad, n. 2., p. 116, Buenos
Aires, 1992.
78
BARATTA, 1999. p. 45.
79
LOPES, op. cit., p. 25.
80
CAMPINAS. 9ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0014644-58.2011.4.03.6105. Reg.: 12/04/2012

256
“Verossímeis os motivos sociais e familiares que levaram a ré a cometer o
delito, revelados ao final do interrogatório judicial, em pranto ineficazmente
reprimido, bem como a maternidade alegada de três filhos menores, que
ficaram com a avó materna.”81

Por outro lado, como já visto, a outra faceta da posição cavalheiresca é


a punição agravada às mulheres que realmente demonstrem características
degeneradas. A subversão dos papéis femininos inspira a dupla reprovabili-
dade, pois além de infringir regras sancionadas penalmente, essas mulheres
ofenderiam a própria construção do papel de gênero.82 Dessa forma, seriam
“mais intensamente propensas à atividade criminal, e mais perversas em sua
execução que seu correspondente masculino”,83 motivando a intervenção
especialmente severa do controle social penal. Nesse sentido, a fala do delegado
sobre a fiscalização das mulheres é significativa:

- Do ponto de vista da polícia é igualmente suspeito mulher e ho-


mem.Tem gente que fala que mulher é mais fácil de passar porque
a polícia não presta atenção, mas isso não é verdade. Nós paramos
os dois, prendemos os dois. Existe sim uma diferença entre homens e
mulheres, que é o fato que as mulheres são mais dissimuladas, elas se mantêm
calmas com maior facilidade, quando estão conversando com a polícia, mostram
menos sinais que tem algo errado. Eu acredito que isso é uma característica
feminina, porque os homens são biologicamente diferentes.A testosterona faz
com que eles sejam mais agitados, não se controlem com tanta facilidade. A
verdade é que as mulheres são mais dissimuladas mesmo. [...] Elas
parecem menos nervosas na hora da abordagem. Depois que pega a
droga aí não, aí elas choram. Quando vê que não tem o que fazer.

O entrevistado emprega a leitura do positivismo bioantropológico,


entendendo que as características biológicas das mulheres criminosas as tor-
nam mais difíceis de identificar. Sem a testosterona masculina, elas teriam a
capacidade de apresentar comportamentos mais frios e calculistas, por um
lado permanecendo mais calmas que os homens no momento da abordagem
e, por outro, chorando quando pegas, de forma a inspirar compaixão.
Nesse ponto, conclui-se que ainda está muito presente na cultura jurídica
a crença de que a mulher seria de alguma forma geneticamente mais inclina-
da ao mal e menos resistente à tentação. Sua maior malícia, entretanto, seria

81
GUARULHOS. 6ªVara, SJSP.AÇÃO PENAL 000034216.2010.4.03.6119. Reg.: 24/09/2010
82
BARATTA, 1999, op. cit., p. 50
83
LOMBROSO, Cesare; FERRERO, Gugliermo. (). The criminal type in women and its
atavistic origin. In: MUNCIE, John; MCLAUGHLIN, Eugene. Criminological perspectives:
essential readings. 3ª Ed. London: Sage Publication, 1895/1996. p. 49.

257
compensada por uma debilidade maior, que gera a necessidade de tutelá-la
no espaço doméstico.84 Assim, os juízes lidam com o delito feminino ora com
benevolência (por ser a mulher menos capaz), ora com especial punitividade
(por reprovarem a subversão de seu papel de gênero).

4.2. A armadilha do romantismo


A sujeição feminina, que orienta as relações afetivas das mulheres e os
mecanismos de controle social informais, é observada ainda em outro elemento
presente no discurso das “mulas”: o envolvimento no tráfico em razão de seu
companheiro amoroso.
O modelo ideal de amor a partir do qual são construídas as relações
afetivas atuais é fortemente influenciado pelo amor romântico. Desenvolvido
a partir do final do século XVIII, atua enquanto referencial para o isolamento
da mulher do mundo exterior e dedicação total ao marido e ao lar, como
forma de construção de identidade: aquela que era metade torna-se inteira
com o parceiro, como complemento do outro. Esse tipo de relação tem como
pressuposto, a partir do mito do amor incondicional, o sacrifício feminino
em nome do relacionamento afetivo.85
Assim, sendo a dedicação ao parceiro o parâmetro que guia o ideal
de amor feminino, o envolvimento com o tráfico de drogas pode se dar no
contexto de cumprimento de uma prova de amor,86 seja atuando a pedido
do homem amado seja correndo os mesmos riscos que ele para mostrar-se
ao seu lado:

“Sao fizera a pedido de um tal Johnson com quem tinha um relacionamento


amoroso. Esclareceu a ré em Juízo que Johnson simplesmente lhe pediu para
transportar uma mala até o Equador sem mencionar o seu conteúdo, e que
então aceitou realizar o transporte da bagagem, desconhecendo a exis-
tência de droga, apesar de suspeitar da existência de algo ilícito.”87
“O corréu então convidou a corré, NINFA, sua amiga de infância e na-
morada, para acompanha-lo a uma viagem ao exterior para participar de
uma feira de artesanato, dizendo que precisava do dinheiro da feira para
ajudar sua mãe. A corré, que estaria em férias, concordou em acompanha-lo.
Segundo o acusado, a corré nada sabia sobre a droga.”88

84
LOMBROSO; FERRERO. Ibidem. Em uma visão crítica, ZAFFARONI, Raul. 1993. p. 7.
85
COSTA, Elaine Cristina Pimentel. Amor Bandido: as teias afetivas que envolvem a mulher
no tráfico de drogas. Maceió: EdUFAL, 2008. p. 78-89.
86
Id. Ibidem, p. 26.
87
GUARULHOS. 6ª Vara, SJSP. AÇÃO PENAL 0006619-48.2010.4.03.6119. Reg.:
31/03/2011.
88
GUARULHOS. 2ªVara, SJSP.AÇÃO PENAL 001202579.2012.4.03.6119. Reg.: 03/09/2013.

258
Em ambos os casos, as rés relatam aceitar as propostas de seus parceiros
sem questionar suas razões, demonstrando a passividade e dedicação firme-
mente enraizados na defesa filosófica de que a mulher é feita para agradar ao
homem.89 As respostas a esse contexto foram destoantes em primeira instância.
No primeiro caso, o juiz desacreditou tal comportamento, acreditando-o
impossível. Já o segundo caso obteve desfecho distinto:

“Asseverou já ter viajado anteriormente com o co-réu JOSE FRE-


DY (seu ex-namorado) à Milão, na Itália, para acompanha-lo. [...] E
se assim foi, vale dizer, se a co-ré não tinha plena ciência de que havia
cocaína escondida na mochila que transportava, pensando estar
acompanhando seu ex-namorado numa viagem de férias/negócios
à Europa, não há que se falar em dolo na espécie.”90

Não havendo provas do dolo da ré, e em face do depoimento de ambos


os réus de que ela teria meramente acompanhado o namorado na viagem, o
juízo resolveu por absolver a ré em razão do princípio in dubio pro reu. Essa
posição, no entanto, foi reformada no segundo grau:

“Não parece muito verossímil o fato de a apelada, que conhecia o


corréu José Fredy a tantos anos (amiga de infância e namorada), não
ter estranhado o fato de ele lhe bancar toda a viagem. [...] Se ambos os
acusados possuíam uma relação de confiança e se relacionavam por
tantos anos, difícil compreender que o corréu tenha traído a confiança de
sua namorada, entregando-lhe uma mochila com cocaína, sem sua anuência,
para realizar uma viagem internacional.”91

O Tribunal modifica a decisão a partir da depreciação do caráter da ré,


afirmando que, pela sua idade e por já ter sido presa provisoriamente em outro
caso (em que foi absolvida), deveria ser calejada o suficiente para desconfiar
do companheiro. Termina, por fim, afirmando ser difícil compreender que o
companheiro traia a confiança da ré.
Esta decisão culpa a ré por não ter desconfiado do companheiro, mas
confia na improbabilidade de ele trair sua confiança, de forma que, por todos
os ângulos, a ré é culpada. Entretanto, a perplexidade do juízo com a possi-
bilidade de os homens traírem suas companheiras não é acompanhada pela
realidade. É banal que homens “de confiança”, como maridos ou namorados,
desempenhem o papel central no envolvimento das mulheres no tráfico.92
89
ROUSSEAU, op. cit., p. 424.
90
AÇÃO PENAL 001202579.2012.4.03.6119. ibidem.
91
TRF-3 - SP 0012025-79.2012.4.03.6119. Relator: DESEMBARGADOR JOSÉ LU-
NARDELLI, Data de Julgamento: 30/04/2014, PRIMEIRA TURMA.
92
LIMA, op. cit.

259
De acordo com o antropólogo Howard Campbell, que estudou 50
mulheres envolvidas no tráfico de drogas na fronteira entre o México e os
Estados Unidos, as mulheres mais vulneráveis no tráfico são aquelas que não
participam ativamente da atividade, mas estão envolvidas por meio de seus
companheiros, amantes e parentes masculinos. Mesmo as mulheres que acei-
tam trabalhar no nível mais baixo da organização como “mulas” têm algum
potencial de resistência em razão da contrapartida financeira. As mulheres
envolvidas indiretamente, no entanto, podem pagar caro pela ação dos homens
a sua volta, mesmo sem ter nenhum controle sobre a situação.93
O envolvimento emocional com homens traficantes é permeado pela
existência de abuso emocional e físico, e pressupõe forte submissão das mulheres.
Além da possibilidade de serem enganadas para favorecer a ação criminosa, é
comum que sejam coagidas por meio de ameaças: “Quem ameaçou foi meu na-
morado; nunca o denunciou e nem procurou as autoridades policiais, por medo; somente
cometeu esse erro por ter sido ameaçada por meu namorado e por essa organização”.94
O abuso emocional sofrido por qualquer mulher dificilmente é impedido
pela intervenção da justiça. A naturalização do abuso masculino desacredita as
vítimas, dentro e fora do sistema judicial. Como explicado por Mary Susan
Miller, tribunais podem ser tão abusivos quanto os homens:

Eu ouço juízes – como maridos abusivos – repreenderem as mulhe-


res, rirem-se delas e, em alguns casos, chamá-las de estúpidas. Eu vejo
mulheres lutando para conter as lágrimas de humilhação e saírem
do fórum cambaleantes, incrédulas, após serem dispensadas laconica-
mente. Para dar aos juízes o benefício da dúvida, a maioria, suponho,
não está consciente da degradação que reforçam nas mulheres à sua
frente; eles também são homens e mulheres condicionados pela
história e pelos costumes da sociedade. Se o abuso de mulheres é
sistemático, o abuso da justiça é geralmente inconsciente.95

Nesses casos é comum, assim como em relatos de estupro, que o relato da


vítima seja a única prova existente nos autos. Se, mesmo sem o estigma da crimina-
lidade, a mulher é desacreditada rotineiramente pela justiça, a situação se complica
pela pouca probabilidade de um juiz criminal dar crédito à palavra de uma ré.
Por outro lado, o status de “mulher de bandido”96 pode trazer alguma
proteção, poder e conforto às mulheres envolvidas com traficantes. Dentre as

93
CAMPBELL, op. cit., p. 258.
94
AÇÃO PENAL 0004540-28.2012.4.03.6119, op. cit.
95
MILLER, Mary Susan. Feridas invisíveis: abuso não-físico contra mulheres. 2. ed. São Paulo:
Summus, 1999. p. 157.
96
BARCINSKI, op. cit., 1848-1849.

260
opções possíveis, em um contexto de vulnerabilidade econômica e social, a
violência, agressão e infidelidade constante do companheiro pode ser inter-
pretada como um mal necessário, um preço a se pagar em troca das vantagens
oferecidas por ter um homem para si.97

4.3. O comércio do sexo


Outra situação destacada pelo discurso das rés é a prostituição. Nas falas
das “mulas”, o trabalho sexual se mostra como opção para momentos de
necessidade financeira e como forma de aliciamento para o tráfico.
A prostituição é explicada a partir de diferentes paradigmas dentro
da teoria feminista. O paradigma da opressão defende que a prostituição é
opressora simbólica e instrumentalmente.98 A própria existência do comércio
do sexo é enxergada como expressão do domínio sexual patriarcal sobre as
mulheres, reforçando seu papel de objeto sexual, ao mesmo tempo em que
permite sua exploração econômica.99
Em contraposição, o paradigma do empoderamento qualifica o serviço
sexual como trabalho, envolvendo agência das envolvidas e possibilidade de
empoderamento em situações específicas.100 Adota-se para esta análise um
terceiro paradigma, polimórfico,101 que ressalta ser necessário identificar as
condições estruturais tanto de opressão de gênero quanto de empoderamento
subjacentes ao mercado sexual. Dependendo das condições subjetivas do caso,
a prostituição pode ter peso distinto:

“A acusada informou que levava peças para seu namorado em Maputo,


mas não soube explicar que peças se tratavam [...]. A acusada informou
que não sabia que levava drogas. Disse que veio do Recife para São
Paulo, [...] permanecido aqui numa pensão, trabalhando como garota
de programa. Que nesse trabalho conheceu uma pessoa [...] que
lhe tratava muito bem, com quem foi pegando amizade, tal pessoa
lhe pagava diárias de hotéis, dava presentes, levava para a praia e
pagava bem, pagava pelo tempo que passavam juntos. Disse que foi
antes com ele para a mesma cidade, Maputo, em Moçambique, mas
que daquela vez passou duas semanas na casa da família dele, como

97
MILLER, op. cit., p. 123. BARCINSKI, op. cit., 1848-1849.
98
WEITZER, Ronald. Sex work, gender and criminal justice. In: GARTNER, Rosemary;
MCCARTHY, Bill. The Oxford handbook of gender, sex, and crime. New York: Oxford Uni-
versity Press, 2014. p. 509
99
BARRY, Kathleen. Female sexual slavery. Nova Iorque, New York University Press, 1984.
p. 10.
100
WEITZER, op. cit., p. 510.
101
Id. Ibidem, p. 511

261
namorada, fazendo diversos passeios, daquela vez não levou bobinas.
Da segunda vez foi presa, ele foi antes, o encontraria lá. Ele pediu
para que pegasse as bobinas com um amigo dele, para levar consigo
a Maputo. Disse que o fez sem nada em troca e que pretendia de lá ir
para a Espanha, para trabalhar como cabeleireira [...].”102
“A versão apresentada pela acusada [...] de que ela era garota de
programa, estando no Brasil há apenas quinze dias, tendo eles se
conhecido na Praça da República em São Paulo/SP, poucos dias
antes da prisão, não tendo ela conhecimento acerca do fato dele
estar portando consigo o entorpecente. Ademais, pelos depoimen-
tos infere-se que a denunciada teria recebido US$ 200,00 (duzentos
dólares americanos) do acusado para passar alguns dias com ele e receberia
mais R$ 200,00 (duzentos reais) para acompanhá-lo até o aeroporto.”103

Aqui, algumas das facetas do poder patriarcal já vistas se repetem, demons-


trando que a subordinação feminina tem características análogas nos mais diversos
casos. Novamente há aliciamento pelo companheiro, que tem o controle da
situação. Essas rés, assim como no caso das mulheres mais vulneráveis estudadas
por Campbell, veem-se indiretamente envolvidas no tráfico em razão das ati-
vidades de seus clientes. O primeiro caso traz ainda um complicador, em que
a figura do namorado se confunde com a de cliente, vulnerabilizando mais a
“mula” por uma dependência financeira profunda para com seu companheiro,
de cuja boa-vontade depende para sobreviver fora da prostituição.

“Nesta cidade do Paraguai adquiriu R$ 1.250,00 (um mil duzentos e


cinquenta reais) em tabletes de maconha, alega que não sabe informar
quanto pesa toda maconha que foi apreendida em seu poder. Informa
que parte do dinheiro utilizado para adquirir a maconha (R$ 500,00)
foi conquistado com o trabalho de diarista (doméstica) e com programas,
o restante R$750,00 (setecentos e cinquenta reais) foi pago, a pessoa de
quem comprou, com programas, durante três dias. [...] Encontrou-se com
[o contato no tráfico] quando fazia programas [...]. Afirma que todo
entorpecente [...] [é] de sua propriedade. Afirma que seguia de Dourados.
Para São Paulo onde ficaria uns dois ou três dias fazendo programas e depois
seguiria para Itabuna-BA onde venderia no varejo o entorpecente.”104

Esse caso foi o único, dentre os quarenta e seis analisados, em que a


“mula” praticou o transporte em benefício próprio, e não para terceiros. Foi

102
AÇÃO PENAL 0005822-38.2011.4.03.6119, op. cit.
103
TRF-3 - SP 0005985-57.2007.4.03.6119. Relator: DESEMBARGADOR ANTONIO
CEDENHO, Data de Julgamento: 03/04/2014, QUINTA TURMA.
104
DOURADOS. 2ª Vara, SJMS. AÇÃO PENAL 0003790-86.2012.4.03.6002. disp.:
22/03/2013.

262
também o único em que a ré transportava somente maconha, em contraste
com a maioria absoluta de transporte de cocaína e um caso em que ambas
as substâncias foram transportadas. Correspondendo à rota do tráfico pelas
fronteiras terrestres, o transporte de maconha ambientou-se no Mato Grosso
do Sul, e as rés eram brasileiras. Ela pagou a compra da droga com seus serviços
sexuais, planejando vendê-la no varejo. Ou seja, usou a prostituição para ter
uma oportunidade de renda que, de outra forma, não acessaria.
Não se ignora que a prostituição não é uma atividade neutra, mas, por
sua própria natureza de reificação da sexualidade feminina, é ontologicamente
violenta. Assim, não se pode analisar o uso da prostituição como uma “escolha”
sem mediações quando a mulher está submetida a condições que a coagem
a vender sua sexualidade para sobreviver.
Entretanto, em tal condição de marginalidade social que pressupõe es-
tratégia de sobrevivência usando diversas atividades violadoras da dignidade,
a prostituição também pode ser uma forma de a mulher clamar poder sobre
a própria vida, sua independência financeira e mesmo sexual. Nas palavras de
Simone de Beauvoir, a prostituta pode adquirir a independência dos homens
que é negada às outras mulheres:

[...] [A prostituta] não pertence a nenhum homem, mas se empresta


a todos e vive desse comércio, e assim readquire a independência
temível das luxuriosas deusas-mães primitivas e encarna a Femini-
lidade que a sociedade masculina não santificou, que permanece
impregnada de formas maléficas. No ato sexual, o macho não pode
imaginar que a possui, só ele é entregue aos demônios da carne, é
uma humilhação.105

Assim, pode-se dizer que a ré procurou mobilizar seus recursos para sobre-
viver dentre as opções que lhe pareciam possíveis.A exigência social de sujeição
feminina é concomitantemente obedecida e subvertida pelas mulheres nos casos
estudados. Independentemente das razões que as levam a praticar a atividade
criminalizada, todas as rés têm em comum o fato de que ocuparam o espaço
público em uma atividade anteriormente reservada aos homens, ação por si só
modificadora do status quo. O sistema penal, portador da função de sustentação
simbólica da estrutura de poder vigente,106 reage reforçando os papéis de gênero
tanto por meio da benevolência quanto por meio da severidade.
Não obstante, na maior parte dos casos estudados, as mulheres não
possuíam qualquer controle da situação – por não saber que carregavam

105
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
1970. p. 238.
106
ZAFFARONI; PIERANGELI, op. cit., p. 77 – 78.

263
drogas, por estar praticando o ato criminalizado em deferência a um homem
ou por serem dependentes de um relacionamento abusivo. Essa constatação
remete a discussão ao questionamento de até que ponto a atividade da “mula”
é permeada de real consentimento das mulheres envolvidas, questão a ser
tratada à frente.

5. O tráfico das mulheres


Os sentidos construídos a partir dos discursos das “mulas” até o momento
indicam que a “escolha” de transportar drogas é uma ação permeada de um
contexto socio-histórico que limita sua agência. Quando não diretamente
sujeitada a terceiros, como nos casos em que há uma coação implícita ou ex-
plicita de companheiros para o exercício da atividade, é profundamente afetada
por necessidades urgentes de acesso à saúde, à educação e ao sustento familiar.
A essas situações juntam-se aquelas em que aparentemente há o con-
sentimento da “mula”, porém esse consentimento se prova viciado em razão
do engano quanto à atividade acordada:

“Afirmou ter sido contratada para vir ao país levar “roupas” para a África,
em troca de pagamento. Nada obstante, revelou que, ao receber a mala
com as bonecas, já próximo do momento de seu embarque, foi informada
de que ali havia droga.”107
“ Disse que soube que se tratava de drogas quando da volta para Uganda.
Inicialmente lhe disseram que teria de levar xampus e condicionadores para
a África.”108

Em alguns casos, os aliciadores aproveitam-se da situação econômica das


mulheres para enganá-las com propostas de trabalhos legais para posterior-
mente coagi-las a transportar a mercadoria:

“Se encontrava desempregada há dois meses, sem conseguir ocupação


em sua área (Comunicação Social) e com um avô doente, neces-
sitando fazer cirurgia. [...] Até este momento, a ré diz que acreditava
ter viajado para desempenhar trabalho lícito e, somente após cinco dias, a
mesma mulher que a buscara no aeroporto foi ao hotel acompanhada de um
homem, dizendo tratar-se de viagem para transportar drogas. [...] Apesar de
ter ficado receosa em viajar, quase tendo desistido do intento, a acusada
disse não ter procurado as autoridades brasileiras, pois as duas pessoas no
Brasil a ameaçaram.”109

107
AÇÃO PENAL 0008453-18.2012.4.03.6119, op. cit.
108
AÇÃO PENAL 0006126-66.2013.4.03.6119. op. cit.
109
AÇÃO PENAL 0002423-30.2013.4.03.6119. op. cit.

264
“Trabalhava em seu país vendendo cartões telefônicos e que certo
dia um indivíduo chamado Kevin veio ao seu encontro dizendo que
poderia ajudá-la a mudar de vida, propondo-lhe vir ao Brasil onde poderia
obter uma proposta de trabalho. [...] tendo chegado ao país um mês
antes de ser presa, acompanhada por um indivíduo desconhecido,
com todas as despesas custeadas pelo tal Kevin. [...] Afirmou que veio
ao Brasil a trabalho, mas sem que serviço algum lhe fosse concretamente
oferecido, além de ter ficado aqui o tempo todo dentro de um quarto de hotel.
Nesse contexto, se estivesse de boa-fé a ré teria já em seu país se informado
com maiores detalhes sobre que tipo de atividade lhe seria proposta, por
quem, por quanto etc. e, no Brasil, saído de seu quarto e procurado trabalho,
o que sequer afirmou ter feito.”110

Chama a atenção a falta de confiança das mulas em relação à proteção


oferecida pelas autoridades. Essa desconfiança, que é um traço indicativo do
tráfico de pessoas,111 se justifica em razão da atitude das autoridades perante
esses casos. Ao abordar possíveis coações, o entrevistado afirmou:

- Não, se a polícia aborda a “mula” ele [traficante responsável


pela operação] não vai interferir. Eles também não impedem as
“mulas” de irem à polícia se elas desistirem no aeroporto. Eles
vão impedir elas de fugir, de furtar as drogas para elas e vender.
[...] Mesmo na situação que se pudesse comprovar uma ameaça à
família, a gente não tem efetivo suficiente. A gente tem que fazer
escolhas e não é possível tirar os agentes do trabalho aqui para
dar apoio pra pessoas que se arrependem. E em geral as pessoas
ameaçadas estão no país deles. Não podemos proteger ninguém
no país deles. Não tem não. Também não acho que haja arrepen-
dimento eficaz. Mesmo que quando a pessoa se entrega, ela não
tá fazendo o verbo de “transportar”, mas o artigo 33 é claro que
existem outros verbos que ela cometeu. Ela guardou, estocou.
Então mesmo que não tenha o tráfico internacional tem outro
crime. Existem outras posições, inclusive delegados que pensam
diferente. A minha posição é que prende sempre que a pessoa se
entrega. E o juiz decide o que será feito.

Outra situação identificada foi a de arrependimento de mulheres que


sabiam transportar droga. Nesse caso, o tráfico passa a impor a viagem à “mula”
por meio de ameaças e coação financeira. Como a organização normalmente
é quem paga toda a estadia da “mula”, ela apresenta poder total sobre o seu
sustento enquanto estiver no país, o que torna extremamente difícil que haja

110
AÇÃO PENAL 0007009-47.2012.4.03.6119, op. cit.
111
UNODC, Human trafficking indicators.

265
desistência. E mesmo que ela desista, como visto acima, ela corre o risco de
ser presa se pedir ajuda às autoridades.
Esses quadros, juntamente com tantos outros apresentados ao longo
deste estudo, apresentam a enorme vulnerabilidade apresentada pelas mulheres
que exercem o papel de “mula” sob o poder das organizações criminosas.
Em especial as estrangeiras estão sujeitas a ser enganadas sobre o objetivo
da viagem, pois não conhecem o local do destino e nem têm formas de se
manter após aterrissar no Brasil.
Ademais, caso saibam do objetivo da viagem e se recusem a continuá-la,
podem ter suas famílias ameaçadas e coagidas financeiramente ao serem expul-
sas dos hotéis pagos pelo tráfico,112 ficando sozinhas e sem dinheiro em país
estranho, tendo como única oportunidade de retorno a passagem comprada
pela própria organização criminosa.
As situações expostas demonstram a correlação entre as “mulas” e as
vítimas de tráfico de pessoas, nos termos definidos pelo Protocolo Facultativo
à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional
relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial
Mulheres e Crianças.
Os mesmos padrões de aliciamento estudados no caso das “mulas” do tráfi-
co são reproduzidos nos casos mais reportados de tráfico de pessoas – o trabalho
forçado e a exploração sexual. Assim como no caso das “mulas”, a maior parte
dos responsáveis pelo tráfico de pessoas são homens, enquanto as vítimas são
em sua maioria mulheres e estrangeiras. O recrutamento é frequentemente feito
fraudando a percepção das vítimas. De acordo com a UNODC,“A vítima pode
ser enganada sobre as condições de trabalho, como tipo de emprego, o local e a
remuneração. Em outros casos, criminosos enganam fingindo interesse amoroso
e iniciando um relacionamento com a vítima para ganhar sua confiança”.113
As condutas que são identificadas como tráfico de pessoas têm em co-
mum o objetivo de maximizar o lucro e minimizar o custo das operações.
Assim sendo, “quanto maiores os lucros, maior o incentivo econômico para
exercer o crime”.114 Esse incentivo é vivo na economia do tráfico de drogas,
dado que cada fase da logística traz lucros enormes. Um quilo de cocaína na
Colômbia, já no formato de cloridrato de cocaína, vale US$ 1.500,00. Com a
exportação para a Europa, o preço decuplica, passando a ser US$ 15.000,00/
kg.115 Assim, é muito rentável para os traficantes trabalhar com “mulas” que,

112
AÇÃO PENAL 0011753-85.2012.4.03.6119, op. cit.
113
UNODC, Global Report on Trafficking in persons. 2014. p. 32. Tradução nossa.
114
Ibidem, p. 47.
115
COMISIÓN LATINOAMERICANA SOBRE DROGAS Y DEMOCRACIA. Drogas
y democracia: hacia un cambio de paradigma. S/ ano. p. 23.

266
quando pagas, recebem não mais que US$ 5.000,00 para uma viagem em
que transportarão alguns quilos de droga.

5.1. Aplicabilidade do Protocolo de Palermo


Segundo o art. 3º, alínea a, do Protocolo de Palermo, o tráfico de
pessoas possui três elementos constituintes. O primeiro é o “ato”, que
pode ser de recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhi-
mento de pessoas. O segundo, o “meio”, é o método usado para controlar
a vítima, podendo ser ameaça ou uso da força ou outras formas de coação:
rapto, fraude, engano, abuso de autoridade ou situação de vulnerabilidade
ou entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o con-
sentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra. O terceiro
é o “fim” de exploração.
O Protocolo de Palermo não estabelece um conceito de explo-
ração taxativo, sendo possível identificar outras modalidades do tráfico
de pessoas desde que a razão da ação criminosa seja explorar a vítima.
A UNODC reconheceu no Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas
de 2014 a existência de dez outras formas de exploração não descritas
no Protocolo: mendicância, pornografia, casamentos forçados, fraudar
benefícios, venda de bebês, adoções ilegais, conflitos armados, rituais e
cometimento de crime.116
Em relação aos meios, nenhum dos termos está legalmente definido;
e parece que há uma sobreposição entre alguns deles. O termo coerção é
genérico, porém a estrutura textual do Protocolo indica que ele está voltado
ao engano e à fraude, relacionados à natureza do trabalho prometido e às
condições em que o indivíduo deveria trabalhar.117
Já o termo “abuso de situação de vulnerabilidade” suscita a discussão
mais relevante e controversa. O grupo de redatores do anteprojeto do
Protocolo afirma que este meio foi criado com o objetivo de contemplar
a miríade de situações mais sutis de coerção pelas quais as pessoas são
exploradas.118
A vulnerabilidade engloba os fatores inerentes, ambientais ou contextuais
que aumentam a possibilidade de um indivíduo estar sujeito a ser traficado.
É possível indicar fatores já adotados pelos Estados-Nações, como o status
de minoria, doenças, gravidez, deficiência física ou mental e a incerteza do

116
UNODC, 2014, op. cit., p. 34. Tradução Nossa.
117
UNODC, Issue paper on abuse of a position of vulnerability and other means within the definition
of trafficking in persons. Out. 2012. p. 17.
118
Ibidem, p. 18.

267
status residencial,119 mas a vulnerabilidade não é um conjunto de categorias
preestabelecidas, devendo ser avaliada na situação específica.120
A definição recomendada pelas Nações Unidas, por ser considerada
compreensiva, é a presente nas Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das
Pessoas em Condição de Vulnerabilidade, que inclui idade, gênero, estado
físico ou mental, circunstâncias sociais, étnicas ou culturais, a migração etc.,
que geram especial dificuldade de exercitar direitos. Considera ainda que a
vulnerabilidade em cada país dependerá de suas características específicas.121
A UNODC entende que mesmo sendo um indicador de possibilidade
de vitimização, a vulnerabilidade não é suficiente para sozinha caracterizar
um meio do tráfico de pessoas. Para tal, deve ocorrer o abuso da situação,
entendida como “qualquer situação em que a vítima não possua alternativa
real ou aceitável além de se submeter ao abuso envolvido”.122
O conceito, estabelecido de forma propositalmente aberta para conci-
liar diferentes visões dos Estados sobre a prostituição, não deixa claro o que
significaria uma “alternativa real e aceitável”, nem se deve ser levada em con-
sideração a percepção da vítima ou do perpetrador para determinar o abuso.
Após a análise do diálogo das “mulas” com o sistema penal, defende-se
a leitura mais ampla possível do “abuso de vulnerabilidade”, que identifique
que mesmo em situações em que as rés pretensamente têm o controle sobre
a atividade desenvolvida, as privações extremas de sua posição social somente
permitem um grau mínimo de voluntariedade, e, portanto, um consentimento
viciado, que deve ser desconsiderado de acordo com o próprio artigo 7º do
Protocolo.
Posição distinta desembocaria invariavelmente na continua desconsi-
deração da posição vulnerável das mulheres marginalizadas pelo movimento
ideológico reprodutivo de uma realidade social que se baseia na exploração
da maior parte da população para garantia dos privilégios de poucos.

6. Conclusão
Procurou-se demonstrar, com este trabalho, como as escolhas diárias de
pessoas reais dentro do sistema penal constroem sua função institucional de

119
UNODC, Legislative guide for the implementation of the Protocol to Prevent, Supress and
Punish Trafficking in Persons, Especially Women and Children, supplementing the United
Nations Convention againt Transnational Organized Crime, p. 16.
120
UNODC, Out. 2012, op. cit., p. 14.
121
CONFERÊNCIA JUDICIAL IBERO-AMERICANA, 14., 2008, Brasília. Regras de
Brasília sobre acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade. Brasília, 2008.
Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/45322>.
122
UNODC, Issue Paper. 2012, p. 25. Tradução Nossa.

268
sustentação simbólica e material da estrutura de produção da vida social às
expensas das pessoas que pertencem às classes marginalizadas.
As chaves interpretativas a partir das quais este estudo foi feito são as
mais relevantes na discussão entre os atores envolvidos, se destacando dentro
da constituição dos sentidos feita pelos próprios envolvidos. Isso não significa
que essas chaves esgotam o assunto, mas que são essenciais para a compreensão
do fenômeno do encarceramento das “mulas”. Outros discursos reiterativos
encontrados, que mereceriam um aprofundamento maior do que o tempo
permitiu, foram as referências à guerra às drogas e à desumanização que o
processo penal é capaz de performar na relação entre os juízes e as rés.
Percebe-se que as mulheres cujas histórias a pesquisadora analisou são
complexas, podendo ao mesmo tempo apresentar comportamentos consoantes
e contraditórios com seus discursos. Entretanto, procurou-se demonstrar que,
mesmo sendo inúmeras as possibilidades, os objetivos e resultados do controle
social efetivado são os mesmos, ainda que seus interlocutores não o percebam.
Assim, conclui-se que o sistema penal continua a se voltar para a defesa
dos privilégios das classes hegemônicas, e novas tecnologias e técnicas de
investigação cumprem o papel de refinar tal intento, pois os fins aos quais se
dirigem não passam pela modificação da forma de produção da vida social que
resulta em um universo de pessoas sem função na estrutura social, dispostas
a riscos enormes para garantir sua sobrevivência.
Ao mesmo tempo, as doutrinas e medidas despenalizadoras são larga-
mente ignoradas pelos magistrados, que usam do sistema penal de forma
mais ou menos penalizadora de acordo com seu sentimento pessoal de re-
provabilidade, e não de limites racionalizáveis. Dessa forma, não resta outra
possibilidade além de anunciar que a paz social para a qual o sistema penal
trabalha é a conformação à exploração e à opressão, e que o papel de todos
os comprometidos com a causa humana é a resistência.

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270
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_______. World Drug Report 2012 (United Nations publication, Sales No.
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_______. World Drug Report 2014 (United Nations publication, Sales No.
E.14.XI.7).

271
Os (as) Autores (as)

Alessandra de Andrade Rinaldi


Amanda Bessoni Boudoux Salgado
Ana Car la Harmatiuk Matos
Ana Gabriela Braga
Br una Rachel de Paula Diniz
Camilla Marcondes Massaro
D a n i e l a C a r v a l h o Po r t u g a l
Debora Diniz
Julia Somberg
Marcelo Maciel Ramos
Paula Rocha Gouvêa Brener
Sinara Gumieri
Ta n i M a r i a Wu r s t e r
Ta t i a n a T h e o d o r o G a s p a r i n i
Victor Siqueira Serra

273
editora

Este livro foi impresso em papel Off-Set 75g,


com tipografia Bembo Std 11/13.
Mariângela Gama de Magalhães Gomes
C h i a v e l l i Fa c e n d a Fa l a v i g n o
Jéssica da Mata
[Orgs.]

E ss a c o l e ç ã o de a r t i g o s se a p o i a s o b r e o s a c ú -
1. Laços desfeitos, vínculos cons-
mu l o s de u m a pro du ç ã o i n t e l e c t u a l d e a l t a
truídos: um estudo sobre valores
6. Trabalho no cárcere feminino: qu a l i da de , a pre se n t a n do o a t ua l e s t á g i o d e d e -
morais e práticas legais
sentidos e perspectivas nos centros se nvo l v i m e n t o t e ó r i c o s o bre a o r d e m p a t r i a r-
Alessandra de Andrade Rinaldi
de ressocialização paulistas c a l de g ê n e ro e a br i n do a s p o s s i b i l i d a d e s p a r a
Camilla Marcondes Massaro qu e o t e m a s e j a a di a n t e a bo r d a d o c o m a i n d a 2. Abuso sexual nos transpor tes
m a i o r pro f u n di da de , po t e n c i a l i z a n d o a c o m b a - públicos: problematização do direi-
7. Blaming the victim: o compor ta- t i v i da de e a a ss e r t i v i da de n a l u t a a n t i p a t r i a r c a l . to penal sexual sob a per spectiva
mento vitimal à luz da criminolo- de gênero

de
gia feminista
Amanda Bessoni Boudoux Salgado
Daniela Car valho Portugal
3. O patriarcalismo tardio como
8. Violência do gênero no Brasil: causa do superencarceramento de
ambiguidades da política criminal mulheres no Brasil
Debora Diniz; Sinara Gumieri

de
Ana Carla Harmatiuk Matos; Tani
9. Feminicídio, invisibilidade e Maria Wurster
espetacularização: refinamento da 4. O fantasma do macho no corpo
análise típica a par tir dos marca- travesti: violência, reconhecimento e
dores de gênero [orgs.]
poder jurídico
Julia Somberg; Paula Rocha Gouvêa

Jéssica da Mata
C h i a v e l l i F a c e n d a Fa l a v i g n o
Mariângela Gama de Magalhães Gomes
Brener ; Marcelo Maciel Ramos uma abordagem sob a ótica das ciências criminais Ana Gabriela Braga; Victor Siqueira
Serra
10. O tráfico das mulheres: constru- 5. As famílias de presos e os efeitos
ção social da “mula” como vítima do sociais do cárcere: revisão bibliográ-
tráfico de pessoas fica e novos desafios para a produ-
Tatiana Theodoro Gasparini ção futura
Bruna Rachel de Paula Diniz

ISBN 978-85-8425-958-8

editora

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