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LEMBRANÇA DE ARIOSVALDO DE CAMPOS

PIRES

Hermes Vilchez Guerrero*

Escrever sobre o Professor Ariosvaldo é ao mesmo tempo


fácil e difícil. Fácil, pois, para sorte minha, convivi muito com ele,
e difícil por não ter a capacidade exigida para discorrer sobre sua
extraordinária figura.
Contudo, ao fazê-lo para publicação na Revista da Faculdade de
Direito da UFMG faço-o com muita honra e emoção, principalmente,
na condição de seu aluno.
Seu nome, Ariosvaldo, certamente é incomum, mas, em se
tratando de alguém tão especial não poderia ter mesmo um nome
comum. A primeira vez que ouvi seu nome estava com 15 anos; ele
ia defender uma estudante universitária da minha cidade (Curvelo/
MG), acusada de subversiva pela ditadura militar, e recordo-me de
que seu nome precisamente por ser incomum chamou minha atenção.
Naquela cidade, estudantes de direito e advogados comentavam
suas qualidades de Advogado e manifestavam sua admiração por
aquele que, merecidamente, era conhecido em todo o Estado como
renomado criminalista. Desde aqueles dias ouvi falar dele inúmeras
vezes e sempre de forma favorável.
Passados mais de 30 anos desde então, vejo como ele foi
importante na minha formação pessoal e profissional e na de tantos
outros colegas de foro criminal e de magistério superior.
Lamentavelmente, agora não está mais entre nós fisicamente.
No dia 12 de novembro de 2003, o Direito Penal, a Advocacia, as
Faculdades de Direito, a nossa Casa de Afonso Pena, a Editora Del
Rey, a Academia Mineira de Letras, o Conselho Nacional de Política

*
Professor de Direito na Faculdade de Direito da UFMG.

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 60, p. 573 a 597, jan./jun. 2012 573
LEMBRANÇA DE ARIOSVALDO DE CAMPOS PIRES

Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, sua família e nós,


seus amigos, perdemos o Professor e Advogado Ariosvaldo.
O Professor era, sem exagero algum, uma pessoa iluminada;
em todos os lugares por onde passava sua presença se fazia sentir.
Certa vez, o professor Marcos Afonso de Souza disse-me que
o simples fato de o Professor Ariosvaldo participar de uma banca de
concurso, de uma comissão, de um painel, significava a certeza de que
tudo correria bem. Era isso mesmo, sua autoridade moral e intelectual
não dava espaço a qualquer desvio do rumo traçado.
As palavras do Professor Décio Fulgêncio1 exprimem com
exatidão a leveza de seu caráter:
“Quero me lembrar dele assim; cidadão de uma pátria sentimental
idealizada no sonho dos poetas, que brincam com crianças, fadas e
gnomos. Para esses sonhadores imagino que Deus, lá em cima sorri ...
e abençoa.”.

Talvez isso explique o carinho especial que tinha pelas crianças


e de como elas também gostavam dele. Aliás, o Professor tinha clara
predileção por gente simples e humilde, gente como ele.
Era uma pessoa amena, incapaz de uma crítica ácida ou
deselegante. Sempre enxergava qualidades nas pessoas, buscava
algo nelas para elogiar, acreditava em Deus, no homem, no mundo,
no amor, no afeto, era um otimista. Talvez por isso mesmo possuía
como uma de suas principais características a tolerância e a exercia
em sua plenitude. Era tolerante com seus alunos, com seus clientes,
com a justiça, com seus amigos e com a doença.
No dizer do seu companheiro de escritório Maurício de
Oliveira Campos Júnior:
“Pessoa iluminada, Ariosvaldo preocupava-se em lançar luz à frente do
caminho das pessoas que o procurassem. Defendia ricos e pobres, ouvia
perturbados em longas reuniões, aconselhava colegas em suas defesas,
encaminhava estagiários e indicava clientes para os recém-formados.
Enfim, deixava-se explorar da mais variada forma.”

1
In Quorum, Informativo da Livraria e Editora Del Rey. Ano I, nº 1, abril
2004, p. 22.

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Hermes Vilchez Guerrero

Todos os Promotores e Magistrados que com ele trabalharam


afirmavam que poderia haver um advogado tão ético quanto
Ariosvaldo, porém não mais do que ele.
Ao longo dos anos tive oportunidade de conviver com ele.
Primeiro de longe. Mesmo antes de ingressar na Universidade,
já assistia a suas defesas no Tribunal do Júri em Belo Horizonte.
Na Faculdade de Direito da UFMG chamava a atenção sua figura
austera, elegante e discreta. Era quase um mito para todos os alunos.
É que se existia um nome de um professor sobre o qual todos tinham
ouvido falar, mesmo antes de passar no vestibular, esse nome era o
de Ariosvaldo.
Seu nome não se limitava aos muros da Universidade; além de
famoso advogado criminalista, era conhecido socialmente, respeitado
como cidadão, e como ativo morador da cidade que, carinhosamente,
chamava de “minha amorável Belo Horizonte”.
Ao lado disso, tinha um profundo amor pela Faculdade de
Direito da UFMG, onde se formou em 1959. Viveu plenamente a vida
universitária, foi membro do CAAP (Centro Acadêmico Afonso Pena),
foi presidente da Associação Atlética da Faculdade que hoje leva seu
nome. Foi presidente da Associação de Ex-alunos da Faculdade.
Escreveu incontáveis artigos doutrinários e de interesse
geral, integrou bancas examinadoras de concurso de professor, de
dissertações de mestrado e teses de doutorado por todo o país, às quais
chamava de “festa da Inteligência”.
Tinha plena noção de seu compromisso de professor e do
compromisso do bacharel. Provavelmente o discurso de paraninfo
mais pungente, mais sensível e mais oportuno que já li ou ouvi é o ele
proferiu para a turma de bacharéis em direito da Faculdade de Direito
de Governador Valadares em 1974 e que está publicado no seu livro
Idéias e Vultos do Direito. Por isso, permitam os formandos daquela
turma dividir, ainda que apenas parcialmente, trecho do discurso que
ouviram naquela oportunidade:
“[...]
O tempo correu e o dia chegou...

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E agora, a agora?
Onde estão os sonhos? E os ideais? Alguns se perderam, não é certo?
Ao cursar da marcha na curva da estrada, nos caminhos do tempo.
Mas, restam sonhos, ideais, esperanças. Eles representam a armadura
indispensável, não só ao desempenho profissional, mas ao próprio
“viver”.
O tempo correu e o dia chegou...
Dia ou noite da formatura? Seria dia ou seria noite?
Talvez dia, pela claridade que invade a alma. Pelo transbordamento das
ânsias e emoções. Pela alegria das cores e o bulício das gentes.
Talvez noite. Pela seriedade da sagração. Pelo encantamento do luar.
Alimiando as cumeadas dos morros, desbordando-se pela encosta,
fazendo-se água, tornando-se rio.
Melhor: dia-noite. Metade dia, metade noite. Reunião dos contrários
para o ideal da harmonia.
Certo: dia-noite da formatura. Marcando o compasso da vida. O fim
da caminhada. O marco da chegada. Que não é bem chegada, pois é o
começo do recomeçar. Início de uma nova partida. Para quê? Para onde?
O tempo correu e o dia chegou...
É hora de pensar. De refletir.
Por que todo o esforço e tanta renúncia?
Para chegar aonde? Ao encontro do quê?
Eis as indagações estonteantes que esta formatura impõe. Que a minha
formatura impôs. Que formatura impõe. Porque todas são iguais. A
ansiedade incontida. O tumulto interior. O deslumbramento da festa. A
alegria contagiante. Transcendendo a tudo isso, lá no fundo, o sentido
da responsabilidade maior.
Dormimos estudantes, acordamos profissionais.
E agora? E agora? O que fazer do diploma?
Ah! O diploma. Um pedaço de papel. Poucos gramas dos milhares de
toneladas que cobririam a terra. Mas quanto representou a sua conquista!
Em sacrifícios e renúncias, exigidos de muita gente. Quantos se realizam,
vendo-o: pais, irmãos, filhos, esposos, amigos.
Muitos aqui não estão para o abraço apertado, que lava a alma. Para o
aperto de mão, que é a linguagem universal da solidariedade humana.

A sua posse baliza rumos. Estereotipa atitudes. Impõe compromissos.


Sobretudo, impõe compromissos. De ordem geral, como cidadãos e,
de ordem particular, como profissionais. Ao falarmos deles torna-se
indispensável visualizar problemas e crises, as dúvidas e as incertezas
da hora presente, porque o vosso compromisso não se esgota na busca
da realização profissional. Exige-se que vos transformeis em sementes
de uma nova floração de esperanças, que transmude a realidade atual

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em algo mais humano, mais fraterno e mais justo. Para tanto cumpre
deixar, por momentos, o calor humano que se irradia nesta sala. Cumpre
abandonar o sentido fraterno da reunião. Lá fora o vento ruge e açoita.
Não o vento-natureza, mas o do egoísmo, do apego aos bens materiais,
da guerra fratricida. Lá fora o vento da incompreensão, que machuca os
sentimentos e fere o coração. [...]”

ARIOSVALDO foi um excepcional professor. Lecionou por


mais de 40 anos ininterruptamente. Fui seu aluno na graduação e no
mestrado. Foi meu orientador na elaboração da minha dissertação.
Não foram poucas vezes em que fui até seu escritório, levando meus
escritos. Sabia e percebia que seu tempo era precioso, a demanda de
seu escritório era intensa, e, apesar disso, sempre me dedicou todo
o tempo de que eu necessitava, emprestava-me livros, sugeria-me
mudanças, elogiava tópicos, criticava com educação o que lhe parecia
impróprio, mas sempre me deixava a liberdade de decidir. E assim
era com todos seus orientandos e alunos.
Fomos colegas no Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária do Ministério da Justiça, em Brasília, durante oito anos.
Nesse período quase sempre passava em sua residência de táxi para
irmos ao aeroporto. Os motoristas, ao verem o Professor entrar no
carro, ficavam entusiasmados e rapidamente começavam a comentar
os inúmeros casos em que ele participara, muitos, inclusive, haviam
assistido às suas defesas e ficavam radiantes com o passageiro ilustre.
No CNPCP constatei como era conhecido e respeitado em todo
o País. Em várias ocasiões, em diversas capitais, o vi ser apontado
como o mais completo advogado de júri do Brasil. Quem o viu atuar na
tribuna da defesa no Júri sabe que isso é verdade. Quando começava a
falar, imediatamente fazia-se um silêncio absoluto, não se ouvia nada,
nem um sussurrar, apenas sua voz límpida, segura e contundente.
Era costume, depois de terminado um julgamento, sairmos,
ele e nós, seus alunos, discípulos, amigos, para conversar. Isso acabou
se transformando em um encontro semanal, sempre às sextas-feiras,
no Minas Tênis Clube, onde conversávamos sobre o direito, sobre
a advocacia, sobre a vida. Sempre foi um grande amigo, tratava-
nos como se fôssemos grandes como ele, com afeto, com respeito,

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preocupava-se conosco. Insistia para que não mais o chamássemos de


senhor, o que não conseguiu. Indicou vários de nós para o magistério,
inclusive a mim, encaminhava-nos clientes. Não tinha receio de dar-
nos conselhos, de opinar, quando necessário, sempre com afeto, sobre
nossas vidas pessoais, inclusive.
Na nossa Vetusta Casa de Afonso Pena, era nosso decano,
foi seu Diretor, escreveu livros de doutrina, destacando-se A Coação
Irresistível no Direito Penal, tese de Concurso à Livre Docência;
Compêndio de Direito Penal, em três volumes, Crimes de Trânsito
na Lei 9.503/97, em coautoria com a Professora Sheila Jorge Selim
de Sales e Ideias e Vultos do Direito, dentre outros livros.
Participou de comissões com o fim de elaborar anteprojetos
de leis penais, como a constituída pelo Ministério da Justiça para
elaborar a Revisão do Código de Processo Penal; participou também
da comissão para elaborar anteprojeto de Lei sobre Extradição.
Também no âmbito do Ministério da Justiça, presidiu a Comissão
para elaborar as Diretrizes sobre Política Criminal e Penitenciária
adotada por aquele Ministério.
Aqui em Minas Gerais presidiu a Ordem dos Advogados do
Brasil, foi o advogado mais jovem a assumir sua presidência. Suas
palavras de despedida do comando da instituição dão a noção exata
do amor e da dedicação que lhe dispensou:
“[...]
Estou a deixar a Ordem dos Advogados. Faço-o com a sensação de
estar perdendo um pedaço de mim mesmo. De estar voltando a última
página de um livro que narrou uma história de renúncias e sacrifícios,
mas vivida com extrema gratificação espiritual e sentimental. Procurei
compor a minha vida em função da Ordem. Transformei-a no motivo de
minhas melhores preocupações. A ela ofereci as horas mais importantes
do meu dia-a-dia [...]”.

Presidiu o Conselho Nacional de Política Criminal e


Penitenciária do Ministério da Justiça, depois de haver presidido o
Conselho Penitenciário do Estado de Minas Gerais. A respeito desse
último assim se pronunciou:

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“[...] Não sei por força de qual mistério essa instituição exerce tanta
atração aos que dela se aproximam.

Homens sem tempo arranjam tempo para vestirem a sua camisa dando-se
inteiros ao seu ideário, não importam os sacrifícios para a exercitação
de suas funções.
Pobremente vestida, na sua feição material, ostenta, porém um panache
e um charme (dificilmente encontradiços em instituições congêneres)
que a metamorfoseiam em uma instituição rica e poderosa, sendo ela
– em sede institucional – pobre e desvalida. Se todos a amam, porque
a conhecem, muitos a desamam, porque a desconhecem. Já ouvi, de
homens responsáveis, críticas ao seu desempenho. Uma recente, de um
juiz, no sentido de que os seus só beneficiam os requerentes. Afora o
aspecto legal, desconhecem que o parecer do Colegiado – para além dos
aspectos materiais – busca nas razões do coração a força maior a orientar
as decisões. Nelas há sempre uma palavra de conforto, pois o que ali se
julga não é mais o crime, mas o homem que o praticou. É ele um tribunal
de esperança. É curioso ver-se a paulatina transformação que opera no
comportamento intelectivo de homens que provêm do Ministério Público
e passam a julgadores, fazendo-o de modo menos técnico e formal do
que realista e, portanto, humano. [...]”

Esportista que era, presidiu o Minas Tênis Clube, o clube


que era tão caro aos seus sentimentos. Foi Membro do Conselho
Editorial da Editora Del Rey, Procurador Geral do Município de Belo
Horizonte, integrou a Academia Mineira de Letras, onde foi eleito por
unanimidade, e teria gostado muito de presidir seu time do coração,
o América Mineiro. Como se vê, tinha vocação para a vida pública,
motivo pelo qual durante algum tempo insistimos para que ingressasse
na carreira política, o que não conseguimos.
Das muitas homenagens que recebeu em vida e após seu
falecimento, uma teria aceito contrariado: Seu nome foi dado a um
estabelecimento prisional no nosso Estado. Digo isso porque certa
vez, ao visitarmos o sistema prisional do Estado do Pará, ao entrar
numa penitenciária que tinha o nome do Professor Heleno Cláudio
Fragoso, disse-me, inconformado: “Você já pensou, o Heleno, passou
a vida defendendo gente para não ir para a cadeia, agora virou nome
de penitenciaria”. Disse-lhe rindo que um dia ele também receberia
essa homenagem. A escolha de seu nome para uma penitenciária não

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se deve apenas ao grande advogado que foi, mas, principalmente,


ao humanista dedicado voluntária e desinteressadamente ao sistema
prisional, empenhado em diminuir o sofrimento daqueles que se
encontram privados de sua liberdade. Essa a razão de seu nome
ter sido dado a uma penitenciária. Embora lutasse contra os males
do cárcere e se empenhasse numa profunda reforma do sistema
prisional, reduzindo os grandes estabelecimentos prisionais em favor
da municipalização do sistema permitindo ao preso cumprir sua pena
no local de sua residência.
Também por isso mesmo o Ministério da Justiça, por meio do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, por indicação
do Conselheiro Frederico Guarília, deu seu nome ao VIII Concurso
Nacional de Monografias para universitários no ano 2003, no qual o
tema foi Violência e Mídia: Prevenção e Repressão.
ARIOSVALDO desde sua juventude foi grande e assim
manteve-se por toda sua vida. Permitam recordar agora parte do que
o Professor Washington Albino Peluso de Souza escreveu sobre ele:
“[...] Não muito tempo depois, instaurou-se no País, o regime militar,
com perseguição a professores e alunos da Faculdade. O jovem
advogado afirmou-se como um brilhante, seguro e corajoso defensor dos
elementos visados, especialmente dos estudantes que, na maioria dos
casos, não dispunham de recursos para pagar a defesa. Mesmo quando
já conquistados os espaços da fama e do prestigio, jamais discriminou o
cliente pelo seu poder econômico. Esta continuou sendo a linha seguida
na sua advocacia. [...]”

Na Editora Del Rey foi membro do Conselho Editorial. Aí


também exerceu sua cordialidade, inteligência e prestigio. Graças a ele
a Del Rey publicou trabalhos importantes na área penal. Suas palavras
sábias sempre foram bússola segura para a direção daquela Editora.
A inauguração de um auditório com seu nome e um painel
com fotografias sobre sua pessoa na sede da Livraria Del Rey é o
reconhecimento de sua notável contribuição à cultura jurídica, às
ciências penais, ao esporte, à democracia, aos direitos humanos.
Ao lado de suas qualidades de jurista, advogado e professor,
cultivava inúmeras outras virtudes, especialmente esportistas e

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artísticas; era um apreciador do cinema e das artes em geral. No


esporte foi jogador de futebol do seu querido América Mineiro; mais
tarde, repetidas vezes, campeão de peteca e tênis.
Mas não se limitava a isso, era um cantor afinado, cantava
música italiana, bossa nova e, claro, canções de seresta. Também era
poeta. Como prova, transcrevo um poema de sua autoria por ocasião
do dia dos namorados de 1991:

“POEMA DE AMOR

O amor... Que é o amor?


O amor, ora, é o amor!
O amor não tem lei,
Não tem papel, não tem Rei,
O amor, o que tem,
É a beleza das cores,
É o perfume das flores,
É isso é o que tem.
O amor não tem lei,
Não tem papel, não tem Rei
Quando chega, chega bem,
Quando parte é dor doída, machucada,
No peito demasiada,
Tirando a paz de quem tem.
O amor é como plantinha de entulho,
Que cresce no pedregulho.
É a chuva que cai,
E crescendo, crescendo, vai,
Correr terras, virar rio,
Enfrentar calor e frio.
O amor é como o pingo d’água
Que cai lento, de mansinho,
E quando na rua se empoça,
Recolhe o sol para brincar,
De espelho pro rosto bonito,

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Sempre paz do homem aflito.


Amor, é amor, nada mais do que isso,
Vira a cabeça da gente,
Que não vê nada na frente.
Que faz esquecer dor e mágoa,
A tristeza... a tristeza apaga,
E faz a noite virar dia,
A tempestade... calmaria.
Esse amor, que não tem lei,
Não tem papel, não tem Rei,
Que não tem a beleza das cores,
O perfume das flores,
É o que dá alegria
Aos seres, no dia a dia,
Faz do inverno, verão amado,
De cada dia... dia dos namorados.

B. Hte. 12/06/91.”
Foi um filho dedicado e amoroso. Suas palavras, ao tomar posse
na Cadeira nº 20 da Academia Mineira de Letras, bem demonstram o
carinho, respeito e amor que tinha por sua família:
“Sem desejar escapar do lugar-comum, mas sincero a mais não poder,
confesso que sinto, neste instante, uma grande honra: a de ingressar na
arcádia maior da Cultura de Minas Gerais, a sua Academia de Letras,
presidida por este extraordinário Vivaldi Moreira. Lamento, e como
lamento, não ver presentes no cenário em que estão tantos rostos queridos
(de familiares e de amigos), o do meu pai especialmente, porque foi
ele quem, tendo ouvido de mim a notícia de que eu fora eleito para a
Academia, já em seu leito de morte, revelou-me, de modo quase inaudível,
que era a alegria maior que lhe poderia ser proporcionada naquela quadra
da vida. Parecia ser ele o agraciado.”

Ao lado de Dnª Acyla Mara, formou uma bela família, simples,


harmoniosa, unida e jurídica. Seus três filhos, Ari, Carlos Frederico
e Maria Fernanda, formaram-se em Direito e são o melhor exemplo
das virtudes de seus pais. Sua querida e dedicada esposa é a mais

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precisa personificação de educação, cordialidade, companheirismo,


bom humor e boa espiritualidade.
Ao lado de seus laços familiares tinha verdadeira veneração
pela figura do Professor Lydio Machado Bandeira de Melo, de quem
foi aluno e assistente no magistério superior. Não me lembro de alguma
aula em que não o citasse, de não reclamar pela omissão de seu nome
na elaboração em trabalhos monográficos elaborados por seus alunos.
Ariosvaldo e Lydio nasceram na mesma cidade, e ocuparam a mesma
cátedra na Faculdade de Direito da UFMG. Sem saber, Ariosvaldo
escreveu sobre seu professor algo que também se refere a ele mesmo2:
“O que mais surpreende e encanta nessa extraordinária figura humana,
nascida na interiorana Abaeté, plantada nos altiplanos do além São
Francisco, é que, galgando as cumeadas da realização filosófico-cientíco-
profissional, não deixou a simplicidade e a modéstia, traços impressivos
de seu modo de ser.”

A importância do Professor Lydio na formação de Ariosvaldo


é reconhecida pelo próprio aluno3:
“Não se veja na afirmação as demasias do orador que deve a sua
destinação profissional específicas às notáveis lições do Mestre que,
destruindo Tabus, refazendo conceitos e eliminando esoterismos,
mostrava-nos um Direito Penal brotado da vida, claro e objetivo como
os fatos que fazem o seu dia-a-dia.
[...]
Menos ainda se veja na afirmação o excesso do orador encaminhado ao
magistério superior pelas suas mãos.”

Uma vez li, em seu escritório, um texto de autoria de Roberto


Drumond que comentava um processo passional levado a julgamento
pelo Tribunal do Júri, pedi permissão para publicá-lo, o que foi
recusado polidamente. Insisti, disse que deveria ser republicado,
novamente recusou, mas disse-me, quase brincando, que se um dia,
depois que ele já não estivesse aqui, ainda quisesse fazê-lo, poderia.
É o que faço agora. No entanto, por razões óbvias, e sei que ele me
2
In Idéias e vultos do direito, Belo Horizonte: Del Rey, p. 100/101.
3
Ob. Cit., p. 99.

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pediria isso, omito os nomes dos envolvidos no processo.


“Um drama e seus intérpretes
Roberto Drummond

Ato Primeiro

Ssssssssssssssss, moça, sssssss: o dr. Pedro vai falar,


sssssssss, moça, que daqui a pouco o dr. Pedro vai
falar, sssss.
Abre esses olhos, moça, acorda, acorda moça que
daqui a pouco o dr. Pedro vai falar, não perca o dr.
Pedro falando.
Fico olhando o dr. Pedro, sobrenome Aleixo: a beca
o põe roliço como um frade de óculos, e, calmo, ele
aguarda a hora de falar; ainda agora perguntei a ele:
dr. Pedro, quantos júris o senhor já fez? – ele pensa
um pouco antes de responder, depois diz: não sei,
na verdade não sei.
- Não sei mesmo ...
Estava tranqüilo, na hora. A mão não tremia, nem a
garganta preocupava, afinal, era o dr. Pedro Aleixo;
já o jovem Ariosvaldo de Campos Pires, da nova
geração de advogados, sentia a garganta, tomava
comprimido.
- Estou com medo da garganta pifar ...
Pifar? – Eu pensei, ao ouvir, eis aí uma palavra que
jamais o dr. Pedro falaria – Pifar – É isso mesmo:
Pifar. De qualquer forma, ao ouvir a palavra pifar,
senti que o dr. Pedro e o jovem Ariosvaldo são de
dois mundos diferentes, quer dizer: o meu mundo,
tão acostumado a pifar nisso e naquilo, talvez seja

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muito mais o do jovem Ariosvaldo, esse mesmo


Ariosvaldo que defendeu Julien Beck e Judite
Malina, que eu nunca levaria a júri algum.
- São duas tendências – explicou-me, ainda agora,
um amigo – o Pedro Aleixo treme a voz, comove. O
Ariosvaldo não treme a voz, mas parece esmurrar,
fala como se quisesse nocautear ...
Acho, então, que estarei – que todos estaremos –
diante deu um Orlando Silva cantando aos “Pés da
Cruz” e de um João Gilberto (ou, se vocês quiserem:
Roberto Carlos, Chico Buarque, etc.) cantando
qualquer coisa mais deste mundo.
O dr. Pedro é Orlando Silva.
O jovem Ariosvaldo é João Gilberto (ou Roberto
Carlos, etc., etc.).
Mas será assim mesmo?
Daqui a pouco, vamos saber: por enquanto, lembro
de que, em Ouro Preto, defendendo as irmãs Poni,
o dr. Pedro Aleixo fez a platéia e jurados, fez todos
chorarem. Eu chorei – conta um amigo meu – de
repente eu estava lá, chorando sentindo a maior
pena das irmãs Poni, coitadinhas, e eu seria capaz
de aceitar que elas matassem todas as amantes do
mundo ...
Tudo por causa do dr. Pedro Aleixo.
Ssssssss, moça: levanta-se o dr. Pedro.
Mas quando começa a falar, o dr. Pedro Aleixo
não faz lembrar Orlando Silva e eu penso num ator
muito vivido, muito experimentado, capaz de fazer
todo papel, capaz de ir bem fazendo Brecht.

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LEMBRANÇA DE ARIOSVALDO DE CAMPOS PIRES

Vamos ter lagrimas?


Vamos ter emoção?
Não, não vamos: há um apelo aos arrepios de pele,
mas não é forte, o dr. Pedro está nos convidando a
refletir; numa hora de emoção, numa hora em que
muitos estão querendo tirar deste júri uma lição (ou,
talvez uma ameaça) para todas as mulheres, o dr.
Pedro nos diz que devemos refletir.
Senhores jurados, os senhores não vão chorar: os
senhores vão pensar, pensar, pensar.
Senhores (e senhoras) da platéia: a hora agora é de
pensar, refletir muito, muito.
É hora de entrar na pele de J. (a vítima)
É hora de entrar na pele de J.
Como um refrão de música, assim eu sinto, o dr.
Pedro Aleixo vai conduzindo a acusação. De alguma
forma, dominando esse palco do júri, o dr. Pedro
que nada tem de Orlando Silva, está fazendo uma
espécie de teatro do alemão Brecht: ele foge da
emoção, ele busca um certo distanciamento e quer,
como Brecht quis, que todos reflitam. E agora – e
mais tarde, na réplica – o dr. Pedro Aleixo me dá
impressão de trazer o osso, nada de gordura, e isso é
bom, isso é arte. Dou um pulo no que escrevo, agora
já acabou a réplica, e tenho comigo a impressão de
que o discurso do dr. Pedro alteou, alteou antes de
terminar como certas músicas, não de Orlando Silva,
mas de Edu Lobo ou de Milton Nascimento. Quer
dizer: a técnica é atual.

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Hermes Vilchez Guerrero

- Qual é a técnica do senhor, dr. Pedro Aleixo?


- Primeiro, eu atraio a atenção do jurado, depois
busco levá-lo à reflexão. Se a platéia estivesse a
meu favor, eu tentaria convencer, como não está,
eu conduzia a acusação no sentido de levar todos a
refletir sobre o assassinato de J.
E aquele alteado do discurso? – eu quis saber.
É preciso deixar uma impressão forte com quem
nos ouve...

Intervalo (para fumar, etc.)

Saí por aqui disfarçado de desatento para ouvir o


que pensa essa gente que está aqui, mastigando e
fumando e esperando, então, do que vou escutando,
dá pra sentir: que os homens estão condenando J. e
absolvendo R., por razões típicas dessa mistura de
machismo e medo – os dois costumam andar juntos.
Se esses homens lançassem um manifesto, iam
dizer: mulheres do mundo: se vocês deixarem de
me amar – de nos amar – eu – nós - mato – matamos
vocês; mato-matamos a bala, estão ouvindo?, e
depois, bem, depois, fazemos um júri só de homens,
e apoiados por jornais feitos 99% de homens, nós
seremos absolvidos. Portanto, nunca amem a outro
homem, mulheres só amem a mim – a nós, senão
matamos vocês ... matamos como esse R. matou
essa J. ...

Eu não acho que se deve fuzilar a mulher que muda


de amor

.Eu não acho que o homem deve resolver a bala a


sua situação de abandono.

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LEMBRANÇA DE ARIOSVALDO DE CAMPOS PIRES

Eu não penso nada disso: ser homem para mim, é


saber enfrentar essas situações difíceis, sem armas.
Eu não mataria J. mesmo que pouco (muito pouco)
a conhecesse, eu não a mataria.
Se dependesse de mim, J. estaria viva, mas, sem
querer – cadê minha frieza – vou engolindo os
argumentos do advogado Ariosvaldo de Campos
Pires. Nessa falta de coerência de todo advogado
(melhor: do sistema) Ariosvaldo de Campos Pires
está defendendo não apenas R. defende todos os
preconceitos da TFM, ele, Ariosvaldo de Campos
Pires, que enfrentou esses mesmos preconceitos ao
defender Julien Beck. Sei disso: mesmo assim, às
vezes, um arrepio caminha na minha pele, porque
Ariosvaldo de Campos Pires me faz lembrar
certos atores. Antes de tudo, de arrastar jurados
e assistentes, Ariosvaldo de Campos Pires é um
grande ator.
Se Julien Beck estivesse aqui, certamente diria
a Judite Malina que tinha descoberto um ator,
um ator-advogado Ariosvaldo de Campos Pires e
arranjaria, tenho certeza, um bom papel para ele
numa peça, porque a postura de Ariosvaldo é de um
intérprete, a voz de Ariosvaldo é de um intérprete, o
ritmo de Ariosvaldo é de um intérprete. E as frases
dele cortam, são secas e diretas e cortam, e ele
acentua as frases com inflexões, não da voz, mas
do corpo, a expressão corporal conta muito. É um
ator com um tique: as mãos, suadas, passam pelos
cabelos, largam os cabelos e se agitam, na frente,
a mão direita ergue-se, depois a esquerda é que
sobe; de repente, ao consultar um daqueles livros,
o ator-advogado, grande advogado e grande ator, é

588 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 60, p. 573 a 597, jan./jun. 2012
Hermes Vilchez Guerrero

o informal – está lá à vontade: como se ninguém


o visse.

Então, eu olho em volta: a esta hora, nesta sala do


júri, só duas pessoas não estão presas, enfeitiçadas
pelo jovem Ariosvaldo de Campos Pires: uma delas
é o réu, R. que olha pra longe, a outra, sou eu, que
faço a pesquisa, e descubro nos olhos do mestre
Pedro Aleixo uma grande admiração por aquele
aluno que ali está, falando em cobra, falando em
rastejar, falando em lobisomem.

Esse lobisomem que aí está ...

Imagino R. transformando-se num lobisomem,


guiado pelo advogado Ariosvaldo de Campos Pires
e o sono, o meu sono, o nosso sono, vai desapare-
cendo, o defensor do réu nos acorda, a cada frase ele
nos acorda, e fico achando que, pelo menos, ainda é
bom que o jovem advogado não seja um político ou
coisa parecida, senão, falando desse jeito, ele ia nos
fazer acreditar que a noite é o dia, ainda bem que ele
está aí só para desempenhar o papel de advogado
em todo júri, em cada júri.

- Meu mestre, Pedro Aleixo, defendendo as irmãs


Poni em Ouro Preto ...

A platéia, que ainda tinha indecisos, agora está


quase toda com R. que matou J.. Vem entrando uma
aurora pelos vidros do Fórum Lafaite e Ariosvaldo
de Campos Pires, que comove sem adjetivar, co-
meça a falar nessa madrugada autora e diz esperar
que ela seja, também, para aquele homem que está
sentado ali, qualquer coisa que anuncie o novo dia:
a absolvição.

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LEMBRANÇA DE ARIOSVALDO DE CAMPOS PIRES

O Juiz Rubem Miranda daqui a pouco anunciará o


resultado: 6 a 1, R. está absolvido; a platéia começa
a aplaudir de pé, homens e mulheres aplaudem,
jovens, quase todos na platéia são jovens, e também
aplaudem, aplaudem como se R. fosse um artista,
e os holofotes das tevês e os flashes clareiam R.: a
platéia o vê andando, aumenta nos aplausos como
se esperasse um sinal dele (quem sabe, um ‘v’ da
vitória), cresce mais o aplauso e eu fico olhando esse
homem, R., tropeçando nos fios de microfone e nas
pessoas e olho bem o rosto dele e me parece o rosto
de um homem condenado, não nos júris, não nas
ruas: mas com ele mesmo, lá no fundo dele mesmo.”
Esse texto de autoria do consagrado escritor mineiro, Roberto
Drumond, quando ainda era repórter na Imprensa Mineira, foi
publicado há algumas décadas e dá a dimensão do que o destino havia
reservado para o advogado Ariosvaldo de Campos Pires na tribuna
do júri. Nesse caso, enfrentavam-se o consagrado Pedro Aleixo, que,
ao lado de Pimenta da Veiga, dominara o júri por muitas décadas, e
do outro lado o jovem Ariosvaldo, despontando para ocupar o lugar
de destaque que o júri popular lhe deu por todo o país.
Provavelmente seu principal contendor no Júri foi o notável
advogado e erudito orador, Décio Fulgêncio4, por isso mesmo suas
palavras têm a força de uma testemunha isenta e privilegiada. Em
artigo intitulado “Ariosvaldo e o Júri”, assim se pronunciou:
.”[...] Poderia limitar-me a repetir, para a perpetuidade do texto impresso
que conserva, na palavra escrita, os juízos humanos, o que eu disse ao
Ariosvaldo certa madrugada de silêncio na noite imóvel que nos esperava
fora do 2º Tribunal do Júri e durante a trégua de um pequeno intervalo.
Disse-lhe, sinceramente, que ele jogava limpo, e tanto mais perigoso
como adversário ele o era precisamente por isto, por ser incapaz de uma
lesão, por mínima que fosse, da verdade processual. Com ele trabalhava-
se com absoluta tranqüilidade, porque era incapaz de uma indignidade, de

4
In Quorum, Informativo da Livraria e editora Del Rey. Belo Horizonte, p. 22.

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Hermes Vilchez Guerrero

um ato perverso contra o direito de alguém, contra a moral e a religião.


Criou, para o seu uso, um padrão de rigor e tolerância nos trabalhos
do júri, sem prejuízo de sua indômita garra profissional e o empenho
de ganhar, o que fez dele um vencedor permanente como atestarão as
estatísticas que possam ser levantadas.”

Como se sabe, Ariosvaldo não era somente extraordinário


defensor no Tribunal do Júri, era também excepcional advogado em
todos os ramos da advocacia criminal, inclusive defensor de presos
políticos no período mais duro do regime autoritário. Posso citar um
emblemático exemplo. Em 07 de dezembro de 1968, às vésperas
do AI-5, juntamente com o advogado Gamaliel Erval, o Arcebispo
Metropolitano de Belo Horizonte, Dom João de Resende Costa e o
Bispo Auxiliar, Dom Serafim Fernandes de Araújo, impetraram habeas
corpus no Superior Tribunal Militar em favor dos Padres Michel Marie
Le Vem, Francisco Xavier Berthou, Hervé Cronguennec e do Diácono
José Geraldo da Cruz, presos em Belo Horizonte por determinação
da 4ª Auditoria Militar de Juiz de Fora. A leitura desse documento
comprova a coragem profissional e cívica de Ariosvaldo para defender
a liberdade e lutar contra a tirania estatal. Esse documento pela
sua importância se encontra no Memorial da sede da Ordem dos
Advogados do Brasil em Brasília.
Ao lado de suas inúmeras qualidades profissionais tinha a
exata noção dos conflitos que acompanham a vida do criminalista e
a dimensão de sua importância. Era defensor intransigente da missão
do advogado. Certa vez escreveu sobre o papel do advogado5:
“O que já se viu, numa panorâmica de como vive o advogado,
o seu campo de atuação e a forma como atua – devassando a intimidade
moral dos clientes, detendo-lhes segredos que sequer revelariam no
confessionário, representando quase sempre a esperança derradeira
de solução que restaure a liberdade, que reimprima a confiança,
que resguarde a honra, que salve a fortuna e, quiçá, a vida – basta
para dimensioná-la como um ser de quem se há de exigir muito. No
campo do conhecimento e do talento. Na capacidade de trabalhar

5
Idéias ...,, cit., p. 35.

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LEMBRANÇA DE ARIOSVALDO DE CAMPOS PIRES

horas a fio, vencendo as noites e as madrugadas quando necessário.


Na possibilidade de restaurar as energias consumidas ao longo dessas
vigílias, que pesam menos no corpo do que sobrecarregam o espírito.
Entristecendo a alma e sulcando as faces. Na advocacia criminal
sobretudo.

‘Não sei, diz o notável Juiz Eliezer Rosa, de nenhuma outra forma de
advogar mais dolorosa e pungente que a advocacia criminal. Tudo nela é
dor e desespero. Os próprios triunfos têm o seu tanto de amargor, porque
enquanto pende o processo e se prepara a causa, há sofrimentos que a
vitória não apaga completamente’.

Em outra passagem do necrológio a Romeiro Neto, aduz: Há no semblante


dos grandes advogados criminais uma discreta sombra de amargura que
atesta a convivência diuturna com a angústia alheia, que se imprime como
a verônica inapagável da profissão. Eu lhes vi a muitos a cabeça aureolada
pelo forte esplendor da glória e do saber. Mas, vi também no rosto deles
a morada sem brilho da melancolia sem remédio. Vi o eternamente
torturado semblante de Romeiro; vi o rosto ensombrado dessa tristeza em
Evaristo; vi a face magoada de Bulhões e a grave tristeza no parecer de
Severiano. Eram homens a bem dizer amargos. Não amargos de maldade,
mas amargos de humanidade, de simpatia para com o trágico destino de
certas vidas malferidas e mal vividas, que à sombra deles iam pedir um
pouco de descanso e paz”.

Mas, toda a beleza e fascínio da atividade, as vitórias que proporciona,


a aura de respeito que granjeia e as perspectivas que abre se esmaecem
e ofuscam se o profissional não cultua, como verdade primeira e dogma
fundamental, os valores morais que a informam.”
Como já visto, era um colega leal, ético e elegante, incapaz
de uma ofensa, e se preocupava com isso, daí merecer transcrição
seu pensamento a respeito de como deve o advogado se portar,
principalmente frente a outros colegas ou promotores6:
“Nesta mesma direção está um outro dever do advogado: o tratar
com urbanidade o seu colega ex adverso. Tristes, os espetáculos
proporcionados por colegas que, desconhecendo o dever da elegância
e da nobreza, julgam principiar a bem patrocinar a causa ultrajando o

6
Idéias..., cit., p. 37/38

592 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 60, p. 573 a 597, jan./jun. 2012
Hermes Vilchez Guerrero

colega, ferindo-lhe a honra pessoal e profissional, como a desejarem


mostrar ao cliente o desassombro na defesa dos direitos que lhe foram
confiados. Nada mais equívoco. O recurso a tais expedientes revela,
ao contrário, a fragilidade da posição, a fraqueza dos argumentos, a
insegurança da atuação”.

E ao citar DELLAMELLE, assume seu posicionamento:


‘O defensor que recorre à injúria desconfia da sua causa e desacredita-a.
Usar de tais meios é mais prejudicar do que servir à defesa, porque a
dedicação não pode ir até a injustiça e ao furor. E quanto à coragem, ela
consiste em proteger o fraco contra o forte, o oprimido contra a opressão
do poder, e não em ferir com invectivas aquele que vem sustentar o seu
direito perante a justiça’.

E continua, agora com suas próprias palavras:


“É indispensável estimular a cordialidade, a lealdade e o espírito de
companheirismo. A profissão já é por demais difícil e árida, tal o peso
das responsabilidades, a complexidade da mecânica indiciária, o sentido
de sacrifício e desprendimento que ela impõe. Não a sobrecarreguemos
com os excessos que podem ser evitados.”

Em outra passagem desse mesmo texto manifesta sua preocu-


pação com os honorários e com a forma como devem ser recebidos
e, ainda com a necessidade de todo acusado ter um advogado para o
pleno exercício da justiça7:
“Outro ponto delicado da atuação profissional consiste na fixação de
honorários. Sobretudo aos jovens, a início de carreira, muito preocupa
o problema. O código de Ética estabelece algumas diretrizes que servem
de critério na solução do impasse. Embora vivamos uma época diferente
em tudo e por tudo daquela em que se recebia o pagamento do honorário
– ad honorem – como “prova de gratidão” ou de “reconhecimento” do
cliente, não é menos certo que a questão não pode ser tratada em termos
de comércio. Importa menos até, nesta matéria, o quantum a cobrar, do
que a forma como se cobra. O momento em que se arbitra o honorário
é questão afeta à oportunidade, que não deve nunca ser negligenciada.

Enfatiza o Código de Ética Profissional que se o patrocínio no cível se


condiciona à legalidade, justiça e moralidade da pretensão, o Código a

7
Idéias..., cit., p. 38.

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LEMBRANÇA DE ARIOSVALDO DE CAMPOS PIRES

estabelece como obrigatória em matéria criminal. Pois é sagrado o direito


de defesa. Não importa o coturno do criminoso nem a gravidade de seu
crime. Tudo está na forma como se há de defender. Com os olhos voltados
para os superiores interesses de justiça que são os de, a condenar, faze-lo
com respeito às normas legais. Ninguém melhor do que Ruy Barbosa
traçou as linhas mestras de comportamento em casos semelhantes, em
carta-resposta que dirigiu a Evaristo de Morais, acossado por problemas
de consciência ante o convite para defender determinado criminoso, cujo
tópico final é o seguinte:

‘Tratando-se de defesa criminal de um acusado em matéria criminal, não


há causa em absoluto indigna de defesa.’

Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a


prova: e ainda quando a prova inicial seja definitiva, falta não só apura-la
no cadinho dos debates judiciais, sem ao também vigiar pela regularidade
estrita do processo nas suas mínimas formas”.

Advogado de defesa por vocação, somente aceitava atuar


como assistente de acusação se estivesse plenamente convencido da
pertinência da acusação. Sei de inúmeros casos em que recusou o papel
de acusador por não estar convencido plenamente da procedência da
acusação, dispensando, assim, causas rentáveis financeiramente, mas
que não lhe dariam a tranquilidade de atuar, a qual ele sempre dizia
ser indispensável para o bom exercício da profissão.
Ao lado disso, tinha pela magistratura profundo respeito e
admiração, dizia que, antes de tudo, o juiz, para fazer justiça, deveria
ser bom, que um juiz sem bondade não poderia ser bom magistrado,
no sentido ideal de justiça. A esse respeito escreveu8:
“Por tais razões, a ela não se pode servir como de serve a um serviço
comum. Ao seu serviço é preciso mais do que talento. Cumpre ter
sensibilidade. Mais do que eficiência. È preciso amor. Porque não é ela um
serviço comum. O desenvolver de uma rotina. Não e não. A sua atividade
desenvolve-se para o fim último, sem paralelo em outros desempenhos,
isto é, o sentenciar seres humanos e não expedientes burocráticos. Creio
que não deve julgar quem, julgando, não se emociona, na medida que
está sendo sempre julgada a própria vida e não apenas as leis.
[...]

8
Idéias..., p. 78.

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Hermes Vilchez Guerrero

Como se vê, não é fácil fazer justiça que sequer se confunde com aplicar
bem a lei. Fazer justiça não é fazer exercício de bondade ou de caridade,
mas é também um pouco disso, como dissemos.
E tanto é mais difícil, porque ela depende da contribui,cão de muitos.
É indispensável a participação honrada do magistrado de pé, o RPM.
Necessária a militância vigorosa e presente, mas leal, do advogado,
como garantia do esclarecimento que facilite a solução justa do conflito.
Obrigatória a colaboração dos serventuários, sem a qual ineficazes seriam
os esforços das partes e do julgador.

Mas ser um autor consagrado, um jurista de renome, um


advogado famoso, enfim, um vitorioso, não fez dele um homem
insensível ou alheio aos problemas sociais; ao contrário, sempre
manifestou enorme preocupação social, principalmente com os menos
favorecidos, e não fazia disso apenas um discurso. Ariosvaldo ajudou
inúmeras pessoas e não o fez somente materialmente, mas das mais
diversas maneiras, não deixando, inclusive, muitos desses favorecidos
tomarem conhecimento de seu auxílio.
Para dar apenas um singelo exemplo de seu comportamento
nessa área, seja permitido citar sua preocupação social, humanista e
real que tinha com o ser humano, especialmente com as crianças. Um
dia recebi uma carta pessoal e muito especial do Prof. Ariosvaldo, na
qual isso fica claro. É o texto integral:

“Belo Horizonte, 24 de outubro de 2002.

Prezado amigo Hermes.

Faz alguns anos que participo das atividades e


promoções da Cidade dos Meninos São Vicente
de Paula.
Trata-se de um empreendimento fantástico, que
envolve inumeráveis abnegados, sob o comando
do Jairo Siqueira.
Sua filosofia é dar a adolescentes condições para

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 60, p. 573 a 597, jan./jun. 2012 595
LEMBRANÇA DE ARIOSVALDO DE CAMPOS PIRES

adquirirem uma profissão. Nestes anos de atividades


milhares de menores que nela adquiriram uma
profissão e ingressaram no mercado de trabalho.
Não vou me estender na descrição dessa obra
admirável, pois tenho certeza que o amigo já
ouviu falar dela. Adianto que na primeira semana
de novembro, intensa divulgação será dada ao
movimento, esclarecendo melhor seus meritórios
objetivos. Hoje a ‘Cidade’ dispõe de vaga para mais
700 menores em regime de semi-internato. Há casas
vazias; sobram menores, mas falta o colaborador.
Assumi o compromisso de conseguir 16 padrinhos
para custearmos a manutenção de 16 menores, no
valor de R$200,00 (duzentos reais) ao mês, por
pessoa.
Com isso manteremos uma casa, que está pronta
para receber seus jovens ocupantes, em número de
dezesseis.
Embora com muita dificuldade, e pedindo desculpas
por fazê-lo, tomo a liberdade de convidar o amigo
para, juntamente com outros 15 companheiros,
mantermos uma Casa, que abrigará 16 menores.
Remeto-lhe carta do Presidente da Associação de
Promoção Humana Divina Providência, que alude
à promoção, bem como o quadro ‘Campanha
Reta Final’, que registra os nomes dos que se
comprometeram a apadrinhar 700 menores.
Esperando contar com a colaboração do amigo nesta
obra de promoção profissional de menores carentes,
com o meu antecipado agradecimento, mando-lhe
meu abraço.

596 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 60, p. 573 a 597, jan./jun. 2012
Hermes Vilchez Guerrero

Ariosvaldo de Campos Pires”

Já se disse que o grande desafio do professor é ter ciência de


que ele ensina sem perceber muito além de sua disciplina específica.
Muitas gerações passaram pelas suas mãos. Nós, seus alunos,
aprendemos muito Direito Penal, mas tenho certeza, que de tudo o
que nos ensinou o que menos aprendemos com ele foi Direito Penal.
Das muitas lições que ele nos deixou, hoje sei que sua melhor lição-
exemplo foi que é possível vencer na profissão sendo sério, honesto,
ético e paciente. Ariosvaldo foi um grande amigo, um notável
advogado, um professor excepcional, um homem público correto, um
dedicado pai e esposo. Certamente foi uma das melhores pessoas que
conheci. Nós que convivemos com ele não temos de nos arrepender
de não havermos manifestado claramente nosso amor, admiração,
respeito e gratidão para com ele, sempre o fizemos, algumas vezes
expressamente, outras, silenciosamente. Infelizmente ele não está
mais aqui, mas seu nome, tenho certeza, será ouvido ainda por muitas
décadas pelos corredores do fórum, no tribunal do júri, em salas de
aula e nos corações de todos aqueles que o conheceram e que tiveram
o privilégio de com ele conviver.

OBRIGADO, PROFESSOR.

Belo Horizonte, maio de 2012.

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