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O PAPEL DA LINGUAGEM PARA A CONSTRUÇÃO DA VERDADE NO

PROCESSO PENAL
Felipe Martins Pinto

A relatividade da verdade aferida como resultado do exercício da


atividade jurisdicional lhe é imanente, da mesma maneira como ocorre com
a obtenção de qualquer outro tipo de conhecimento.
Vistos a partir do meio da linguagem, o procedi mento
obj etivador do conhecimento da natureza e o conceito do
ser em si, que corresponde à intenção de todo
conheci mento, mostraram não passar de um resultado de
mera abstração. 1

A estabilidade de um sistema jurídico -político jamais pode


depender da satisfação individual da concepção de justiça e de verdade.
Necessário formalizar o conceito de aceitação para se generalizar
o reconhecimento de decisões para que os indivíduos as assu mam como
premissas do próprio comportamento. 2
A construção do conhecimento produzido no processo jurisdicional
não autoriza, ao contrário do que alguns sustentam, a se falar em uma
verdade mais próxima da realidade e outra menos, pois, a verdade advirá
de uma “conversação hermenêutica” 3, em que os participantes através do
“intercâmbio de opiniões” 4 alcançarão uma linguagem e um resultado
comuns.
A mediação pela linguagem impõe, obrigatoriamente, à formação
da verdade no processo uma carga relativismo e de i ncerteza e de
ambiguidade 5, diante da elevada complexidade, variabilidade e inclinação
à contradição dos temas e das premissas de decisão.

1
G AD AME R, Ha n s - Ge o r g. Ve rd a d e e mé to d o I: t ra ço s fu n d a m en t a is d e u ma
h er mêu t ico f ilo só f ica . o p cit . p . 6 1 3 /6 1 4 .
2
LUH M ANN, Ni k la s . o p cit. p . 3 3 .
3
G AD AM E R, H a ns - Geo r g. o p ci t. p . 5 0 2 .
4
Ib d em . P . 5 0 1 .
5
No o ri g i nal, … ca rg a d e rela ti vi smo y d e in c e rt id u mb re y a mb ig ü ed a d … AND R ÉS
IB ÁÑE Z. Ac e rca d e la mo t iva c ió n d e lo s h ech o s en la sen ten c ia p en a l . P . 1 2 4 .
Os agentes interlocutores estabelecerão no processo uma “fusão de
horizontes” 6 a partir de signos pré -definidos segundo a natureza jurídica
do Estado e construirão através da conversação um novo ponto de vista
fruto das visões e percepções de cada um dos interlocutores e que será
algo comum a todos.
Os signos diante da estrutura especulativa da linguagem estão
escancarados para a infinidade de experiências de mundo presentes e
futuras e virão à fala por indeterminadas vezes, convertidos em sentidos
que serão o fruto da fusão dos horizontes do passado do texto escrito e do
presente de cada intérprete.
O movimento de convers ão dos signos em sentidos, mais que a
expressão de uma singela opinião, oportuniza o surgimento de uma
verdade possível e constitui a essência da compreensão, descortinando o
“verdadeiro sentido hermenêutico” 7, uma vez que propulsiona o leitor a
produzir, a introduzir novos pontos de vista carregados de preconceitos e
a defender uma pretensão de verdade própria.
Só assi m os participantes podem ser mot ivados a
tomarem, eles próprios, os riscos da sua ação, a
cooperarem, sob contr ole, na absorção da incerteza e
dessa for ma a contraírem gradual mente um
compromisso. 8

O intérprete, no momento em que compreende um conjunto de


signos, passa a integrar um jogo de compreensão, “um espaço potencial de
criatividade” 9, em que o jogador incorpora à tradição as suas conce pções
pessoais e se insere em um acontecer da verdade.
Assim, “a legitimação pelo procedimento e pela igualdade de
probabilidades de obter decisões satisfatórias substitui os antigos
fundamentos jusnaturalistas ou os métodos variáveis de estabelecimento
do consenso”. 10
Em análises históricas, como é o caso do processo jurisdicional, a
formação do argumento está visceralmente coligada aos conceitos

6
G AD AM E R, H a ns - Geo r g. o p ci t. p . 5 0 3 .
7
Ib d em . p . 5 0 9 .
8
LUH M ANN, Ni k la s. o p cit. p . 6 4 .
9
OST , Fr a nço i, K er c ho ve , Mi c hel va n d e ( Co o rd . ) o p ci t . p . 2 5 9 .
10
LUH M ANN, Ni k la s. o p cit. p . 3 1 .
escolhidos para descrever o objeto investigado e tal seleção guarda
sintonia com a visão de mundo do próprio do intérprete.
Dessa forma, cada um dos sujeitos processuais construirá um
conhecimento a partir da harmonização de dados históricos com as suas
informações, experiências e sentimentos pessoais.
A percepção finita de cada um dos sujeitos processuais avançará
além da limitação interpretativa inicial e individual por meio da linguagem
que propiciará operações hermenêuticas em que se fundirão as
compreensões individuais para a construção da verdade no processo.
Como próxima etapa na evolução do raciocínio, é nece ssário voltar
os olhos para os signos que informam o processo penal e que decorrem da
natureza jurídica do Estado, fruto dos princípios e regras fundamentais
escolhidos como alicerce jurídico do próprio Estado, seus pilares de
soerguimento, para, dessa man eira, identificar -se quais as decorrências
advirão para os jurisdicionados como resultado da proteção à ordem
jurídica.
Nos Estados modernos a Constituição (ou Estatuto ou
Carta fundamental) é o ato legislativo por excelência,
porque nas nor mas das Cartas Constitucionais são
indicadas as diretivas de princípio e os valores que
constituem o caráter e a fisionomia do Estado e que por
isso funcionam como regras de estrutura do ordenamento
j urídico estatal. 11

O Estado brasileiro, após a ruptura com o modelo de corte


ditatorial, reinaugurou um período democrático, consubstanciado na
Constituição da República de 1988 12.
A condição de Estado Democrático de Direito deflagra
decorrências diretas e incisivas para o exercício do Poder Jurisdicional,
primordialmente na esfera criminal, estabelecendo, através de uma

11
No o ri gi n al, N eg l i S ta t i mo d e rn i la Co s ti tu z io n e (o S ta tu to o Ca rta fo n d a men ta le ) è
l’a t to l eg i sla ti vo p e r ec cel len za , p er ch é n el le n o rm e d e ll e Ca rte Co s ti t u zio n a li so n o
in d ica te le d i re tt iv e d i p rin cip io e i va lo ri g u id a ch e a p p u n to ‘co st itu i s co n o ’ Il
ca ra tte re e la f i sio n o mi a d ello S ta to e ch e p e rc i ò fu n z io n a n o co m e r eg o l e d i s t ru tu ra
d ell’o rd in a m en to g iu rid ico s ta ta le .I n , R AM AC CI, Fab ri zio . Co r so d i d ir it to p e na le.
2 . ed . T ur i m: G. G iap p i c he ll i Ed ito r e. p . 7 0 . (T rad u ção li vr e).
12
C R /8 8 , Ar t. 1 º . A Rep ú b lic a Fed e rat i va d o B ra s il, fo r mad a p e la u ni ão i nd i s so l ú vel
d o s Es tad o s e M u ni cíp io s e d o D i str ito Fed er al, c o n st i ui - se e m E s tad o De mo c rát ico d e
Dire ito e te m co mo f u nd a me nto s.. .
epistemologia garantista, os signos através dos quais se construirá a
verdade no processo, signos estes que preconizam a participação equânime
das partes em contraditório na construção do provimento e o
reconhecimento de limites bem definidos para a intervenção nos direitos
das pessoas.

1.1 Estado de Direito

Consequência do incremento das relações sociais, o Estado de


Direito representa uma forma de governo em que as situações vivenciadas
pelas pessoas e as consequências por elas geradas: deveres, obrigações,
direitos, faculdades, prerrogativas e poderes, as chamadas “posições
subjetivas” 13, decorrem privativamente de regras de direito.
A concepção de posição subjetiva em face do dispositivo normativo
supera a ideia de direito subjetivo, concebido como direito sobre a conduta
de outrem, fruto de um inadequado predomínio das “esferas subjetivas do
Direito sobre as objetivas ” 14. Como já afirmado, as diversas posições
subjetivas decorrem única e exclusivamente das previsões normativas e
não da vontade dos sujeitos.
A regra de direito, ao contrário das manifestações individuais,
caracteriza-se por ser geral e abstrata, sobrevivendo indefinidamente após
a sua aplicação a um ou outro caso individual. 15
Assim, organização do Estado a partir de regras de direito
estabelece uma estrutura que confere segurança e previsibilidade às
pessoas que, ao se depararem com a necessidade de fazer uma escolha em
uma determinada situação concreta, não darão um salto no desconhecido,

13
F AZZAL AR I s us te n ta q ue a c ha ma d a p o siç ão s ub j et i va é a p o s ição d o s uj eito e m
fa ce à no r ma , no r ma es t a q ue p o d erá p re ve r u ma f ac u ld ad e, u m d e ver o u u m p o d er . A
p rev i são d e u m p o d er a s se g ur a u ma p o s ição d e p re mê nc ia p ara o s uj ei to q ue p o d e ser
en te nd id a co mo u m d ir ei to s ub j et i vo o u d i reito p o t es ta ti vo . D es sa ma ne ira,
F AZZAL AR I r e c haç a a co n cep ç ão d e d ir ei to s u b j eti vo co mo d irei to d e al g ué m so b re
a co nd u ta d e o ut r e m, p o is o d i r ei to s ub j et i vo é co nc eb id o co mo u ma p o s ição d e
va n ta ge m as se g u r ad a ao s uj e ito , ú ni ca e e xc l u si va me nt e, p el a no r ma. In ,
F AZZAL AR I , El io . Co n o scen za e va lo r i . o p ci t . p . 6 6 -7 1 .
14
T OB EÑ AS, J o se C as ta n. S itu a cio n e s ju rid i ca s su b jet iva s . Mad r id : I n st it u to
Ed ito r ia l Re u s, 1 9 6 3 . p . 7 5 .
15
RO UB I E R, P ab lo . Teo ria g en e ra l Del d er ech o . T rad . J o sé M. C aj ica J r. P ueb l a:
Ed ito r ia l J o s é M. Caj ica J r ., s.d . p . 3 1 .
mas, ao contrário, farão uma opção vidente, com consciência das
decorrências e implicações.
A confiança na poderosa proteção do direito é o
fundamento sobre o qual nos movemos com segurança nos
assuntos da vida cot idiana e nas grandes empreitadas
menos comuns . 16

Paralela e complementarmente à evolução do modelo de Estado de


Direito ocorreu a formação da cidadania moderna que, iniciada no século
XVIII, percorreu um processo histórico de conquistas gradativas e
principiadas com os direitos civis (sec. XVIII), seg uidos dos direitos
políticos (sec. XIX), agregados aos direitos sociais (sec. XX) e,
recentemente, os direitos meta -individuais e o direito ao patrimônio
genético integraram as gerações de direitos que compõe a concepção
contemporânea de cidadania.
Em matéria de teoria política, uma das principais preocupações é a
criação de mecanismos aptos a defender o cidadão frente ao poder do
Estado 17 e, a respeito do exercício do jus puniendi , os direitos civis,
decorrentes das revoluções burguesas contra o absolutism o exercem
especial atribuição na construção de uma estrutura garantista e
democrática para o exercício jurisdicional e “têm como fundamento o
princípio da liberdade negativa, de autodeterminação do pessoa.” 18
Neste aspecto, o Estado de Direito, entendido co mo
sistema de limites substanciais impostos legalmente
aos poderes públicos, visando à garantia dos direitos
fundamentais, contrapõe -se ao estado absoluto seja ele
autocrático ou democrático. Nem sequer por
unanimidade pode o povo decidir – ou consentir qu e
se decida – que um homem morra ou seja privado de
sua liberdade, que pensa ou escreva, que se associe ou
não a outros. 19

16
No o ri gi na l, La co n fia n za en la p o d e ro sa p ro te cció n d e l d er e ch o e s el fu n d a men to
so b re e l cu a l n o s mo vem o s co n seg u rid a d to d o s e n lo s a ss u n to s d e la v id a co tid ia n a y
en la s g ra n d e s e mp r e sa s . I n , HE C K, P hi lip p . El p ro b l ema d e la cr ea c io n d el d er ec ho .
B arcelo n a: Ed i cio ne s Ar iel, 1 9 6 1 . p . 3 7 .
17
B OB B I O, No b er to . A e r a d o s d ir ei to s . Rio d e J a ne iro : C a mp u s, 1 9 9 2 . p . 1 4 3 -1 5 9 .
18
VI LANI , Ma r ia Cr is ti n a Se i xa s. Cid a d a n ia mo d ern a : fu n d a men to s d o u tr in á rio s e
d esd o b ra m en to s h i stó r i co s . I n Card e no d e Ci ê nc ia s So c ia is . B e l o Ho r izo n te:
P UC Mi na s. De z 2 0 0 2 . p . 5 7 .
19
C ADE M ART O RI , Se r gio . E sta d o d e d ir ei to e l eg i ti mid a d e : u ma ab o rd a ge m
gar a nt is ta. 2 . Ed . C a mp i na s : M il le ni u m, 2 0 0 7 . p . 2 0 8 -2 0 9 .
Em um modelo de Estado de Direito, ser titular de um direito
fundamental corresponde a possuir um trunfo em um jogo de cartas, pois
o trunfo prepondera tanto sobre as cartas de maior valor facial, quanto
sobre a maior quantidade de cartas que o outro jogador possa portar.
Direitos são mais bem compreendidos como t runfos que se
sobrepõem a j ustificativas de fundo para deci sões políticas
que estabelecem obj etivos para comunidade em geral. 20

Contemporaneamente, os ordenamentos jurídicos ocidentais, em


regra, reverenciam o pessoa com o fito de imprimir o respeito à dignidade
do ser humano, mas o caráter individualista que reveste o arcabouço
jurídico de Estados como o Brasil apresenta -se despido do fermento
anarquista, próprio do Estado mínimo de corte liberal, em que as estruturas
normativas, incluindo as garantias processuais penais, lastraram -se,
essencialmente, em regras abstratas e ideais, que pressupunham uma
concepção ideal de homem, ignorando as desigualdades sociais e as
características pessoais 21.
Releve-se que a concepção de Estado de Direito avança além
regramento e tutela individual e impõe o exercício dos atos dos Poderes
22
estatais per leges e sub lege, dois vieses amalgamados, porém diversos.
O primeiro deles, o exercício de Poder per leges determina que as
condições para a prática dos atos de Poder Estatal devem estar reguladas
por normas gerais, abstratas e pré -estabelecidas que, consequentemente,
procedimentalizarão o exercício de Poder que somente terá validade se
observado o conjunto de formalidades positivadas.
Em complementação e com igual importância para a segurança
jurídica, é a determinação do exercício de Poder sub lege que propicia uma
subordinação dos agentes públicos a normas superiores, representa uma

20
No o r i gi n al, R ig h t s a re b e s t u n d er s to o d a s t ru mp s o v er so me b a ckg ro u n d
ju s ti fi ca t io n s fo r p o l it ic a l d ec i sio n s th a t sta te s a g o a l fo r th e co mmu n it y a s a wh o le
In , DW OR KI N, Ro na ld . Ri g h t s a s tr u mp s. In : W ALD R ON, J ere m y. Th eo ri es o f Rig h t s.
O x fo rd : O x fo r d U ni v er s it y, 1 9 8 4 , p .1 5 3 -1 6 7 . p . 1 5 3 .
21
P UIG, Sa n tia go Mir . De rech o p en a l – p a r te g en era l . 5 . Ed . B arc elo na : T ec fo to ,
1998. p. 64.
22
O a uto r u ti li za a s e xp r e s sõ e s “go ver no p er leg e ” e “go v er no su b leg e” , ma s ho u v e
a o p ção p ela u ti li zaç ão d e “e xe r cí cio d e P o d er p er leg e ” e “e x ercí cio d e P o d er su b
leg e ”, p o r p r o p ic iar e m u ma co mp re e n são ma i s ex ata d a ir rad i ação d as d eco rrê nc ia s
d as l i mi ta çõ e s le g ai s p ar a to d o s o s P o d ere s co n st it uíd o s. B OB B IO, No b er to . o p ci t. p .
156.
total submissão do Poder estatal, no sentido mais amplo e em todos os
estratos de manifestação, ao direito. Impõe -se uma estrita observância das
previsões normativas, na condição de limites estritos para o exercício de
todos os atos emanados dos órgãos de Poder estatal. A limitação pelas
normas vincula as formas e procedimentos de atuação estatal, mas também
o conteúdo daquilo passível ou não de disposição.
Ambas as noçõe s al udem às exi gências derivadas da
posição i gual de todos frente ao poder polí tico j á que as
pessoas reclamam um tratamento geral e abstrato, como
exigência de i gualdade; em segundo lugar, à defesa frente
à arbitrariedade que suporia a atuação do poder à mar gem
do direito e, por últ imo, ao incremento de segurança
j urídica na relação com o Estado dada a previsibilidade de
suas atuações. 23

1.1.1 Princípio da legalidade

A estruturação, ainda que rudimentar, do Estado de Direito


moderno remonta à promulgação da Magna Charta libertatum (1215), em
que se previa a exigência legalitária. “Mas somente com o pensamento
iluminista-liberal assume decisivamente aquele significado definitivo,
político antes que jurídico, que constitui o conteúdo do princípio da
legalidade.” 24
Precisamente, o marco de seu surgimento do princípio da
legalidade foi o século XVIII, a partir da doutrina da divisão de poderes
do Estado 25, e o mesmo passou a cristalinizar a essência do Estado de
Direito: sob o aspecto político, a tutela da liberdade do pessoa e da
dignidade humana exprime a ideologia liberal garantista e a sua

23
No o ri g i nal , A mb a s n o c io n e s a lu d en a la s ex ig ê n cia s d e r iva d a s d e la p o si ció n ig u a l
d e to d o s fr en t e a l p o d e r p o lít ico ya q u e lo s p e s s o a s r ecla ma n u n t ra ta mi en to g en e ra l
y a b st ra c to , co mo ex ig ê n cia d e ig u a ld a d ; e m se g u n d o lu g a r, a la d e fen sa f ren t e a la
a rb i t ra r ied a d q u e su p o n d ría la a ctu a cio n d el p o d er a l ma rg en d el d e rech o y, p o r
ú lti mo , a l in c re men to d e la seg u rid a d ju r íd i ca en la rela ció n co n el E s ta d o d a d a la
p rev i sib il i d a d d e su s a ctu a c io n e s. In , P E Ñ A, An to n io . La g a ra n tia e m e l e sta d o
co n s ti tu cio n a l d e d e rech o . Mad r i: T ro t ta, 1 9 9 7 . p . 3 8 . (T rad u ção li vr e)
24
No o ri g i nal , Ma so lta n t o co n I l p en s ie ro i llu mi n is ti co - l ib e ra l e a s su me d eci sa m en t e
q u el d e fin ito s ig n i fi ca to , p o lí ti co p ri ma ch e g iu r i d ico , ch e co s ti tu i sc e I l c o n ten u to d el
p rin cip io d i leg a li tà . I n , R AM AC CI , Fab ri zio . O p cit . p . 7 2 . ( T rad u ção li vre ).
25
MO NT ESQ UI E U. O e sp ír ito d a s le is . S ão P a ulo : Ma rti n s Fo n te s, 2 0 0 5 .
positivação no sistema jurídico insere -o como “critério normativo de ação
para os poderes do Estado ” 26, impedindo que o exercício dos atos oficiais
não se transmute em arbítrio e abuso.
Politicamente o Princípio da Legalidade se constitui em uma
alta limitação ao j us puniendi estatal, servindo para
proteger a pessoa humana em face de um possível uso
arbitrário do Direito Penal pelos detent ores do poder
político. 27

Na esfera penal, tanto no direito material quanto no processo, a


legalidade não é uma característica, “senão a sua missão e objetivo.” 28

Do respeito a ele se espera uma estreita suj eição da


j urisprudência à lei, uma maior transparênci a na aplicação
do direito e em sua j us tificação, e deste modo, uma melhor
previsibilidade, e ao mesmo tempo, controle daquilo que
sucede na legislação e na j urisprudência penais. 29

Não se extraia da exposição uma conclusão equivocada de que se


efetua um culto excessivo à literalidade da norma, próprio do positivismo
jurídico que, “se por um lado está na base do princípio da estrita
legalidade, por outro também permite modelos penais absolutistas,
caracterizados pela ausência de limites ao poder normativo do soberano,
ao mesmo tempo em que se mo stra, em todo caso, completamente neutro a
respeito de todas as demais garantias penais e processuais.” 30
Os positivistas, como reação à falta de coerência entre os discursos
teóricos suscessivos à Revolução Francesa e a realidade jurídica, político -
social e econômica, buscaram limitar ao máximo a tarefa do aplicador da
norma positiva, a quem caberia somente empregar o teor gramatical da
regra positivada, não se permitindo extensões em seu conteúdo que
extrapolassem a literalidade do texto.

26
No o r i gi n al, c ri te r io n o rma ti vo d i a zio n e p e r i p o t e ri d el lo S ta to . In , R AM AC C I,
Fab r izio . o p c it . p . 7 2 . ( T r ad ução li v re).
27
B R AN D ÃO, Cl á ud io . I n tro d u çã o a o d i re ito p en a l . Rio d e J a ne iro : Fo re n se, 2 0 0 2 . p .
68.
28
No o r i gi n al, s in o su mi s ió n y o b je ti vo . In , H AS S EME R, W i n fri ed . C rí ti c a a l d e r ech o
p en a l d e h o y . T r ad . P atr i cia S. Zi f fer. Co lô mb i a: U ni ver s id ad E x ter nad o d e Co lo mb i a,
1 9 9 7 . p . 2 2 . ( T r ad ução l iv r e) .
29
No o r i gi n al, D el r esp eto d e e llo se esp era u n a es t rech a su je ció n d e la ju r i sp ru d en c ia
a la le y, u n a ma yo r t ra n sp a ren c ia en la a p li ca c i ó n d el d e re ch o y en su j u st if ica c ió n ,
y d e e s te mo d o , u n a m ejo r p rev is ib i lid a d , y a o mi s mo t ie mp o , co n t ro la b il id a d , d e
a q u ello q u e su ced e en l a leg i s la ció n y en la ju ri sp ru d en c ia p en a le s. I b d em . p . 2 2 .
(T rad ução l i vr e) .
30
FE R R AJ O LI . Lu i g i. D i re ito e ra zã o : t eo ri a d o gar a nt is mo p e na l. o p ci t . p . 3 0 .
Neste cenário, os artigos do código tornaram -se verdades
definitivas, tendo -se infundido nestes artigos o mecanismo do silogismo. 31
Repise-se que a positivação é pressuposto do Estado de Direito,
mas o positivismo jurídico não condiz com o atual modelo jurídico -
político est atal, suportado sobre uma base principiológica, ratio essendi
do sistema posto.

1.2 Estado Democrático

"Quando os nazis levaram os comunistas, eu calei -me,


porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles
prenderam os sociais -democratas, eu calei -me, porque,
afinal, eu não era social -democrata. Quando eles levaram
os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não
era sindicalista. Quando levaram os j udeus, eu não
protestei, porque, afinal, eu não era j udeu. Quando eles me
levaram, não havia ma is quem protestasse" (Pastor Martin
Niemöller).
A palavra democracia, reiteradamente utilizada no cotidiano,
sazonalmente preenche os espaços midiáticos para, de forma panfletária,
motivar o comparecimento dos eleitores às urnas e, diante da banalização
do uso do vocábulo, o seu conceito parece óbvio e, por ser óbvio, presume -
se que a coletividade lhe atribua um mesmo conteúdo, fenômeno este cujo
reflexo prático é um divórcio entre o povo e a nação, através do
esvaziamento do papel do pessoa na estruturação do modelo democrático
de Estado.
Atualmente, a democracia está inserida em uma “sociedade
aberta” 32 e plural, prenhe de diversos grupos sociais com práticas,
relações, valores, tradições e identidades culturais distintos entre si, uma
sociedade multicultural.
O multiculturalismo é a expressão da afir mação e da luta
pelo reconheci mento desta pluralidade de valores e
diversidade cultural no arcabouço institucional do Estado
democrático de direito, mediante o reconhecimento dos
direitos básicos das pessoas enquanto seres humanos e o
reconheci mento das “necessidades particulares” dos

31
AR AÚJ O, Sér g io Lu iz So uza . T ext o d id á tico . B elo Ho rizo n te : U F MG, s .d .
32
H ÄB E R LE, P e ter . H er men êu tica co n s ti tu cio n a l . A so cied ad e ab er ta d o s i nt érp re te s
d a co ns ti t ui ção : co ntr i b ui ção p ar a a i nterp r et a ção p l ura li s ta e “p ro ce d i me nt al ” d a
co n s ti t uiç ão . T r ad . Gi l ma r Fer r e ira Me nd e s. P o rto Ale gr e: S er gio An to n io Frab ri s
Ed ito r, 2 0 0 2 .
pessoas enquanto membr os de grupos culturais
específicos. 33
Sublinhe-se que o conceito de Democracia não pode ser restrito à
concepção de democracia política, relegada à simples legi timidade formal
de um governo e nem tão pouco a participação do povo limitada ao voto.
(...) que a democracia participativa, soube t ranscender a
noção obscura, abstrata e irreal de povo nos sistemas
representativos e transcende, por i gual, os horizontes
j urídicos da clássica separação de poderes.
E o faz sem, contudo dissolvê -la. Em ri gor a vincula, numa
fór mula mais clara, positiva e consistente, ao povo real, o
povo que tem a investidura da soberania sem disfarce. 34

Apesar da multivocidade do vocábulo povo : representativo do povo


ativo, instância de atribuição de legitimidade, ícone, destinatário de
prestações estatais 35, certo é que o povo “(...) não é apenas um referencial
quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere
legitimidade democrática ao processo de decisão ” 36, apesar de, não raro,
orbitar no imaginário popular a ideia de que o político eleito para um
cargo, ainda que descumpra seu projeto para o mandato, permanecerá
praticamente inatacável e somente pelo sufrágio ou pe la Jurisdição,
mudanças poderão ser implementadas.
Ora, o político é eleito em razão das informações que constituem o
seu plano de ação, suas metas para o mandato. Após eleito, ele não poder
mudar aquela que foi a motivação para o eleitor conferir -lhe o voto a ele,
sob pena de fraudar a democracia.
A concretização da democracia implica na remoção de obstáculos
e bloqueios que restrinjam a participação do povo para viabilizar o
exercício de suas prerrogativas de soberania.
O substanti vo da democracia é, port anto, a participação.
Quem di z democraci a di z, do mesmo passo, máxi ma
presença de povo no governo, porque, sem participação
popular, democracia é qui mera, é utopia, é ilusão, é

33
AV RIT ZER , Leo nar d o . DOM I N GUE S, I va n ( Or g.). Teo ria so c ia l e mo d ern id a d e n o
Bra si l. B e lo Ho r izo n te : UF MG, 2 0 0 0 . p . 2 0 7 .
34
B ON AVI DE S, P a u lo . Teo ria co n st itu c io n a l d a d emo c ra c ia p a rt ic ip a t iva : p o r u m
d irei to co n st it u cio na l d e l uta e re si tê nc ia, p o r u ma no v a h er me n ê ut i ca, p o r u ma
rep o li ti zaç ão d a le g it i mi d ad e.2 . ed . São P a u lo : Mal h eiro s, 2 0 0 3 .p . 2 7 .
35
MÜ LLE R , Fr ied r ic h. Q u em é o p o vo ? A q ue s t ão fu nd a me n tal d a d e m o crac ia. São
P au lo : Ma x Li mo nad , 1 9 9 8 .
36
H ÄB E R LE, P e ter . o p ci t . p . 3 7 .
retórica, é promessa sem arri mo na realidade, sem raiz na
história, sem sentido na doutrina, sem conteúdo nas leis. 37

De suma importância ressaltar que os particulares têm a face ampla


da legalidade voltada para si, ou seja, podem fazer tudo que não estiver
em conflito com o ordenamento jurídico, frise -se, em conflito com o
ordenament o jurídico, e não apenas em conflito com a lei.
Tal afirmação tem suporte na possibilidade d a pessoa protestar com
violência, mesmo através de ações ou omissões que, ainda que sejam
típicas e até ilícitas, poderão estar amparadas por alguma excludente de
culpabilidade e, dessa forma, o autor do ilícito penal não sofrerá qualquer
sanção na esfera penal.
A história mundial recente revela situações em que parcelas da
população manifestaram com uso de força física contra atos de Poder e
obtiveram êxito: em març o de 2006, houve uma série de protestos contra
a lei do primeiro emprego na França, em que jovens depredaram veículos
e lojas, enfrentaram a polícia e conseguiram a revogação da lei 38; em
dezembro de 2001, uma rebelião popular na Argentina, após saques,
mortes e agressões, culminou com a renúncia do então presidente Fernando
de la Rúa 39, etc.
A democracia deve estar presente na realização de todos os atos
dos Poderes constituídos do Estado e não há como se delimitar

37
B ON AVI DE S, P a u lo . o p cit .p . 2 8 3 .
38
E m P ar is , a p r i n cip a l p as se ata d e ve te r i n íc io à s 1 4 h3 0 (9 h3 0 d e B ra sí li a). Cer ca d e
4 .0 0 0 p o li cia i s fo r a m mo b il izad o s p a ra e v it ar no vo s a to s d e vio lê n c ia d ura n te o s
p ro te sto s. N a q u i nt a - fe ir a ( 2 3 ) , 2 .0 0 0 j o v e ns q ue mo ra m n o s s ub úrb io s se g ui ra m p ara
P aris e e n fr e ntar a m a p o líc ia. Ve íc ulo s e lo j a s fo ra m d e str u íd a s. Os j o v en s a g red ir a m
vár io s e st ud a nt es em o utr a ma n i fe st ação no ce nt ro da cap ita l.
ht tp : // www1 . fo l ha. uo l.c o m.b r / fo l h a/ mu n d o / ul t9 4 u9 4 1 7 6 . s ht ml , co n s ul ta d o no d ia 0 7
d e fe ver eir o d e 2 0 0 9 , às 0 1 e 3 1 ho ra s.
39
O q u e o co r r e u n a Ar g e nt i na te ve i n gred ie n te s no vo s: u ma reb e li ão e s p o n tâ nea d e
u ma p o p ul ação e mp o b r ecid a e fart a d e s er co b aia d e e xp er iê nc ia s eco nô mi ca s
fra ca s sad a s. A o nd a d e s aq u es i nic iad a no s b a irro s p o b re s d a p eri feri a d e B ue no s Aire s
ala stro u - s e r ap id a me n te p elo p a í s e c u l mi no u co m u ma r u id o sa co n ce ntr ação d e
mi l ha re s d e ma n i fe s ta n te s d ia nt e d a Ca sa Ro sad a na mad r u g ad a d e q u i nt a - fe ira.
En c urra lad o p ela f úr ia d e s e u s co n cid ad ão s e i n c ap az d e ne go ci ar u ma so l uç ão p o lí tic a
co m a o p o s ição , o p r e si d en te F er na nd o d e la R ú a ap re s e nto u s u a re n ú n c ia no fi na l d a
tard e. T e me nd o p el a p r ó p r ia v id a, d e i xo u o p a lác io d e he li có p t ero – l o go el e, q u e
p reza va ta nto o r i t ua l d e r e to r nar a Ol i vo s, a r es id ê nc ia o fi cia l d a p ri me ira - fa mí l ia,
n u m v i sto so co r tej o d e l i mu s i ne s.
O c u sto d a r eb el ião fo i p e sad o : ma is d e u ma ce nt e na d e s up er mer c ad o s, lo j a s e
res id ê nc ia s s aq uead o s, 26 mo rto s e ce nte n as de ferid o s .
ht tp : // v ej a.ab r il. co m.b r / 2 6 1 2 0 1 /p _ 0 2 2 . ht ml , co n s ul ta re al izad a e m 0 7 d e fe ve reiro d e
2 0 0 9 , às 0 2 ho r a s.
previamente, numerus clausus, os meios de participação do povo na
realização dos atos de Poder.
Apesar da pessoa, livremente, poder participar ou interferir na
efetivação dos atos oficiais que bem entender e como bem entender, a
Administração Pública, em todos os seus estratos, é obrigada a oportunizar
a participação daqueles que sofrerão, em suas es feras de direito, as
potenciais consequências de cada ato de Poder, v.g. o proprietário e o
condutor do veículo que for autuado pelos órgãos de fiscalização de
trânsito; a vítima e o acusado em processo criminal, etc.
Diante do raciocínio acima delineado, começa a descortinar o papel
primordial do processo para democracia, uma vez que o processo é o
instrumento indispensável para o Estado sancionar direitos da pessoa.
A partir do pressuposto de que o procedimento é uma seqüência de
“atos previstos e valora dos pelas normas” 40 e de que processo é uma
espécie do gênero procedimento em que a construção do “provimento
final” 41 observa a instrução em contraditório entre as partes, sujeitos que
sofrerão os efeitos da decisão 42, sempre que o ato oficial do Estado impuser
um risco a um interesse da pessoa, ele terá a oportunidade de participar da
construção do ato de Poder, o que se dará através do processo.
Talvez possa causar espécie o fato de que a principal atribuição do
processo não foi vinculada à condição de meio para acesso aos direitos,
mas tal atitude é reflexo da abertura de possibilidades através das quais o
particular pode pleitear os seus interesses, inclusive, mas não
exclusivamente, pelo processo.

40
No o r i gi n al : a t ti, q u a l i p rev is ti e va lu ta t i d a lle n o r me. In , F AZZA L AR I, E lio .
Ist it u zio n i d i d ir it to p r o ces s u ale. o p c it . p . 7 8 .
41
O p ro vi me nto é o a to j u r íd ico me d ia n te o q u al o s ó r gão s d o E st ad o , p ert en ce nt e s ao s
p o d ere s e xec u ti vo , le g is lat i vo o u j ud i ciá rio , e ma na m d i sp o s içõ e s i mp era t iv a s. Ib d em .
p. 7.
42
A co rre n te d o u tr i n ár ia exp o s ta co nte s ta a d i fer en cia ção d e p ro ce sso e p ro ced i me n to
es tab e lec id a so b a é g id e d a r ela ção j uríd ic a, fu nd ad a e m u m cri tério tel eo ló g ico , a
p artir d o q u al o p r o c e ss o d i fer e n cia - s e d o p ro ce d i me nto p o r p o s s ui r fi na lid ad es : me io
d e e xe rcí cio d e p o d er e i n s tr u me n to d e re al iz ação d a j uri sd ição , ao co n trár io d o
p ro ced i me n to q u e co n s is te e m me ra fo r ma e xt rí n sec a p e la q u al s e ma ni fes ta o
p ro ce sso . E m s up er a ção à co n cep ç ão trad icio n a l d a s ep ara ção e ntr e o p ro ce sso e o
p ro ced i me n to , co n ceb e u - se u m ca mi n h o ma is co ere nt e e ló gico , q u e id e nt i fica, a n te s
d a d i fer e nça u ma i n ter a ção e ntr e o s d o i s co nc ei to s, i nt eraç ão e st a d e m es ma n at ur eza
q ue a r ela ção e xi s te nt e e ntr e gê ne ro e e sp éc ie . De s te mo d o , o p ro ce s so d e v e ser
co n ceb id o co mo u ma e s p écie d o gê ne ro p ro ced i me n to .
Trata-se de um rompimento com um discurso de manipulaç ão de
massas que, normalmente empurra a população para lutar por seus direitos
na Jurisdição e, dessa forma, confinadas em regras procedimentais rígidas,
o comportamento domesticado das eventuais vítimas das lesões praticadas
pela máquina estatal permite a manutenção de uma nefasta estrutura
protelatória.

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