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INTRODUÇÃO AO REALISMO FILOSÓFICO – I

– Preâmbulo

Introdução
O mundo anda cada vez intelectualmente corrompido. Isso é evidente. Uma das razões

é, além da própria rejeição das disciplinas tradicionais, e uma dessas disciplinas

rejeitadas é a Lógica. E a Lógica, chamada de a arte das artes e a ciência das ciências

por ser a ciência-arte propedêutica para todas as demais ciências e artes, dá ao homem

a base necessária para alcançar mais facilmente a ciência. Ainda que esse brevíssimo

trabalho se chame Introdução ao Realismo Filosófico, dediquei-me ao mero preâmbulo à

Filosofia, que é a Lógica, pois, como se diz no título, é realmente uma “breve

introdução”.

O objetivo dessa brevíssima introdução é realmente fazer o leitor se interessar pela

filosofia clássica semeada por Sócrates e Platão, desenvolvida por Aristóteles,

aperfeiçoada por Santo Tomás de Aquino e esclarecida de diferentes maneiras por

diversos autores tomistas. Não é o objetivo, porém, aprofundar, porque como sou apenas

um, não poderia em minha vida esgotar uma filosofia tão rica em escritos. Isso coube a

inúmeros autores que comentaram a milagrosa opera omnia tomista.


Com efeito, introduzindo o leitor, se estiver conhecendo agora essa filosofia, espero que o

mesmo crie interesse também de reconhecer outros autores diferentes desse que lhe

escrever, dada a sua total mediocridade, mas que tem a boa fé de expor e divulgar a boa

filosofia. Com efeito, estudando bem a sã filosofia, o seu intelecto ficará, por assim dizer,

“vacinado” contra falsas doutrinas pseudofilosóficas que podem corromper não apenas a

inteligência como também pode levar ao afastamento da fé e a consequente apostasia, ou

ainda, em caso de um leitor não cristão, impedir a adesão à fé. Assim, exponho também

uma finalidade apologética do escrito, que escrevo sempre para maior glória de Deus.

Primeiro conhecido e a verdade

Como escreveu Aristóteles logo em início do seu livro Metafísica,[1] é próprio do

homem ter o desejo de conhecer, não apenas porque o conhecimento tem utilidade,

mas também porque é agradável por si mesmo. Ora, é impossível vivermos sem ter

pelo menos algum tipo de conhecimento, pois, ao contrário dos vegetais e assim como

os animais brutos, precisamos mover-nos, deslocarmos-nos, para buscar o que

precisamos. Por isso, a nossa alma tem o que chamamos de potência sensível.
Santo Tomás de Aquino ao comentar essa mesma obra de Aristóteles observou que as

razões do desejo natural de saber podem ser três[2]: – primeiro, porque toda coisa busca

naturalmente a sua perfeição. O homem com sua potência de conhecer não pode

alcançar sua perfeição senão mediante o conhecimento. – Segundo, porque qualquer

coisa tem uma inclinação natural para sua própria operação. Assim como o fogo tende

a aquecer, o homem é inclinado a conhecer. – Terceiro, porque cada coisa é desejável

para que se una ao seu princípio. O homem naturalmente deseja a sabedoria

justamente porque ele não pode buscar a sua felicidade última senão mediante a

inteligência.
Sabemos que a realidade é real. Algo existe e é real e continuará sendo real

independentemente do que pensamos, percebemos e assim continuará real mesmo

depois que a nossa existência acabe. Isto é, a realidade tal como ela é em toda sua

autonomia deve ser o parâmetro para nós conhecermos as coisas ou simplesmente não

conhecermos nada, indo contra todo o idealismo. Pois, se o conhecimento deve partir

da certeza do ser do indivíduo, fatalmente há de se duvidar do real que lhe é externo,

abrindo assim, margem para o subjetivismo radical que se vê nos séculos XX e XXI.

Ter o Eu como princípio simplesmente, como se verá, não resolve absolutamente

nada. Pelo contrário, apenas mantém ou, pior, complica ainda mais o problema. Pois,

o primeiro conhecido, a primeira coisa que o intelecto conhece é o ente. Se assim não

fosse, não teríamos nem como começar a pensar porque o próprio pensamento já é

algo, já é ente, ainda que ente de razão[3].

Com efeito, o princípio da Filosofia, na verdadeira e boa Filosofia é a realidade tal

qual ela é. Assim, o esquema é o seguinte[4]:

1º A realidade é tal qual ela é em toda sua autonomia;

2º Da mesma realidade, recebemos seus influxos pelos nossos sentidos externos[5] e

com os sentidos internos[6]formamos nossas concepções mentais ou paixões da

alma, como diria Aristóteles[7];

3º Usamos signos verbais[8] (palavras ou vozes) que significam as nossas concepções

mentais desses influxos da realidade;


4º Por fim, usamos signos escritos que significam esses signos verbais, que significam as

nossas concepções mentais desses influxos da realidade.

Com esse processo já temos a formação das palavras faladas e escritas, que é a arte

da Linguagem[9] em si. Sem a Linguagem não há como transmitir a outrem as nossas

concepções mentais. Perceba-se que somente o homem tem a verdadeira arte da

Linguagem. Animais brutos não a tem, senão meros sinais para sinalizar algo como

perigo, aviso de ataque em caso de conflito ou alimento próximo. Nós, seres humanos,

não apenas isso, mas também ensinamos aos nossos semelhantes coisas muito mais

complexas. Os animais podem até saber como é, por exemplo, o homem, mas não o

que é o homem e muito menos transmitir isso a outrem. Para sabermos transmitir isso,

usamos a definição. Porém, não podemos definir se não soubermos como conhecer

antes o que são as palavras e como usá-las.


Palavras, como já se disse, são signos verbais que significam as nossas concepções

mentais. Essas palavras compõem o que chamamos de oração, que é a junção de duas

ou mais palavras[10]. Porém, juntar palavras nem sempre compõem orações que

podemos definir como verdadeira ou falsa. Dizer “cão ave” não diz se é verdadeiro ou

falso, apenas juntou duas palavras. O que fará toda diferença nessa oração é o verbo.

Se acrescentarmos “é” entre essas palavras, veremos que é uma oração falsa, porque

fica “cão é ave”. E assim, entramos numa parte mais espinhosa: as dos predicáveis

(gênero, espécie, diferença, propriedade e acidente) e categorias ou predicamentos

(substância, quantidade, qualidade, relação, quando, ubiquação, posse, ação e paixão).

Os primeiros são de universais unívocos e os segundos são partes dos primeiros, pois

a substância é o gênero supremo que comporta nove acidentes que correspondem às

categorias descobertas por Aristóteles[11]. É com a arte da Lógica, norteada pelos

tratados dos predicáveis e categorias que vamos definir adequadamente as palavras,

encaixando-lhes nos devidos predicáveis e os devidos predicamentos[12]. Uma arte

negligenciada pela educação moderna.

Assim, conclui-se que temos já os princípios basilares de nossa Filosofia e, com isso,

a arte da Linguagem. Temos ainda os predicáveis e os predicamentos. Alguém

perguntará: como sabemos se o que as palavras (os signos verbais ou escritos)

significam são verdadeiros ou falsos, isto é, se incorrem em verdade ou falsidade[13]?


Tomemos a definição de Santo Tomás sobre o que é verdade, apesar de não ser a final:

«A verdade é adequação entre a coisa (realidade) e o intelecto» ou «Veritas est adequatio

rei et intellectu»[14]. Ainda que pareça muito abstrato, não é tão difícil quanto parece.

Então, definamos o que é intelecto. Intelecto é a faculdade que, dentre as criaturas

corpóreas, é exclusivamente humana. E é a faculdade de abstrair, compreender,

apreender, inteligir. E o homem intelige o quê? A coisa. Quando a coisa é inteligida

pelo intelecto, há aqui a verdade. Pois o intelecto apreendeu a coisa tal como ela é. Se,

por exemplo, o intelecto, pelas concepções mentais, reconhecesse a maçã como uma pêra,

podemos dizer que ele incorreu em falsidade. Com isso, há de se concluir que a verdade

se dá no intelecto[15] e assim temos a verdade com relação a ele, que é a adequação do

intelecto à coisa: «adequatio intellectus ad rem». E assim também temos a verdade da

coisa, que é adequação da coisa ao intelecto: «adequatio rei ad intellectum». Ou seja, que

a maçã é maçã e não pêra, porque se adequou ao intelecto do inteligente. Mas, como dito,

o princípio é a realidade: se a maçã na realidade não se adequou ao intelecto, que

concebeu aquilo como pêra, é o intelecto que incorreu em falsidade. Como pode-se ver, a

verdade é, antes de tudo, uma relação[16] entre a coisa e o intelecto.


Assim sendo, conclui-se que: (1) o que chamamos de mentira é a afirmação que a

pessoa faz quando esta mesma afirmação contradiz o que está em seu intelecto, ainda que

tal afirmação esteja acidentalmente adequada à realidade. Tomemos como exemplo

alguém que pergunte a Pedro onde está João, e Pedro, convicto que João não esteja em

casa, diz que João está em casa. Pedro disse uma verdade, mas uma verdade que não está

adequada ao seu intelecto, logo, mesmo dizendo uma verdade, Pedro mentiu. (2) Quando

a afirmação que está adequada ao intelecto da pessoa que a faz, chamamos essa pessoa de

sincera. Ainda que ela acidentalmente incorra em falsidade, pois, se a afirmação está de

acordo com o seu intelecto, ela não teve a intenção de mentir. Se Pedro estiver convicto

que João está em casa e afirma a alguém que está, mas com João já fora de casa, Pedro

ainda que tenha faltado com a verdade, não faltou com a sinceridade. Assim conclui-se

que o discurso é verdadeiro quando ele corresponde ao que está na realidade, e falso,

quando se dá o contrário.

[1] ARISTÓTELES; Metafísica I, 1.

[2] TOMÁS DE AQUINO; Comentário à Metafísica de Aristóteles, I, lec. 1.

[3] Ente é aquilo que tem ser e o ente de razão é aquilo que só existe no intelecto.

[4] TOMÁS DE AQUINO; Comentário ao Sobre a Interpretação, I, lec. 2.


[5] A exemplo disso podemos usar: o pio dos pássaros que percebemos pela audição, o

verde da folhagem das árvores percebemos pela visão, a quentura do fogo que

percebemos pelo tato, o doce da maçã que percebemos pelo paladar e o perfume das

flores que percebemos pelo olfato.

[6] Sobre os sentidos internos se falará mais adiante, quando tratarmos do

conhecimento propriamente dito. Por ora, diga-se que são: sentido

comum, fantasia ou imaginação, memória e cogitativa ou razão inferior (nos animais

brutos é estimativa).

[7] ARISTÓTELES; Sobre a Interpretação I.

[8] As primeiras palavras (ou signos verbais) foram criadas por Adão para comunicar

a Eva. Adão não precisava usar palavras com Deus. Caso algum não cristão seja cético

com relação a essa história, tal crença será defendida e esclarecida no seu devido

momento.

[9] A arte da Linguagem define-se como: a arte de comunicar as nossas concepções

mentais a outrem. Dela, desenvolve-se a Gramática, que é a arte de significar essas

mesmas concepções mentais a outrem que está distante no espaço e no tempo. A

Gramática, como se verá, é uma arte subordinada à Lógica, que é a arte-ciência

propedêutica para todas as demais artes e ciências.

[10] Praticamente tudo o que se dirá aqui basear-se-á em: CARLOS NOUGUÉ; Suma

Gramatical da Língua Portuguesa, É Realizações, 2015.


[11] Sobre os predicáveis: PORFÍRIO; Isagoge. E sobre as categorias ou

predicamentos: ARISTÓTELES; Categorias.

[12] O que são predicáveis e predicamentos será explicado no devido momento.

[13] A noção de falsidade aqui é a mesma de uma coisa que não é verdadeira.

Geralmente, as pessoas usam essa palavra como sinônimo de hipocrisia. O que não é o

caso aqui.

[14] TOMÁS DE AQUINO; S.Th. I, q. 16, a. 1. resp.

[15] TOMÁS DE AQUINO; libd.


[16] Isto é, uma das dez categorias de Aristóteles. Sendo a verdade uma relação entre
a coisa e o intelecto, isso significa que podemos predicar a propriedade verdadeiro da
coisa inteligida se ela for verdadeira. Sendo assim, verdade também é um acidente,
mas um acidente que é próprio ou propriedade, que é o acidente que decorre da essência
como se verá mais adiante.

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