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Na segunda afirmação – “A Carlota sabe jogar xadrez”, o tipo de conhecimento presente é um saber
fazer ou um saber como e corresponde a uma
competência, aptidão, habilidade. É um saber prático. É o
tipo de conhecimento que se direciona para a capacidade
de realizar algo, ou seja, está relacionado com as aptidões
que alguém tem sobre algo, assim como saber falar,
escrever, conduzir, etc. Trata-se de aprender a fazer
mediante a prática. É, por isso, um conhecimento prático,
um conhecimento por aptidão, um saber-como ou saber
fazer. Não exige um envolvimento intelectual aprofundado.
Na terceira afirmação – “A Julieta sabe que Garry Kasparov foi um campeão mundial de xadrez”,
temos o tipo de conhecimento saber que ou proposicional, que é um conhecimento de verdades ou
conhecimento factual. É o conhecimento que nos permite falar sobre o que sabemos. Repare-se que o
objeto de conhecimento não é Garry Kasparov, mas o que se sabe acerca dele.
Certamente diremos que sabemos que estamos aqui, que estamos a ler este livro ou que estamos na
aula de filosofia. Mas que garantia temos para dizer que isso é real e que constitui efetivamente uma
verdade?
Afirmar “estamos na aula de filosofia” expressa um tipo de conhecimento proposicional, mas em que
medida sabemos que a proposição “estamos na aula de filosofia” é verdadeira? Que relação existe
entre aquilo que acreditamos ser verdade e aquilo que verdadeiramente o é?
A partir de agora, conhecimento e conhecimento proposicional serão termos equivalentes. Este será,
portanto, o tipo de conhecimento que agora nos interessa estudar.
Esta abordagem ficou conhecida como “definição tripartida do conhecimento”, pois estabelece que
existem três condições simultaneamente necessárias e suficientes para o conhecimento, a saber:
- a crença;
- a verdade;
- a justificação.
TESE ----> Conhecer é ter crenças verdadeiras justificadas.
Para haver conhecimento é necessário não só que uma pessoa acredite em algo, como também que
isso seja verdadeiro, ou seja, esteja de acordo com a realidade. E só as proposições verdadeiras estão
de acordo com a realidade. Portanto, a VERDADE é outra das condições necessárias para haver
conhecimento. O conhecimento é factivo, o que
significa que não podemos saber algo que é falso:
saber algo implica a verdade daquilo que sabemos.
Apesar de a definição de conhecimento como “crença verdadeira justificada” ser ainda hoje
razoavelmente consensual, houve alguns pensadores, entre os quais Bertrand Russel e Edmund
Gettier, no século XX, que levantaram objeções à possibilidade de podermos não estar na posse de um
verdadeiro conhecimento mesmo quando se cumpram as três condições apresentadas.
A maioria das objeções e dos debates em torno desta definição resultaram de um artigo publicado por
Edmund Gettier em 1963.
Nesse artigo, Gettier defende que é possível que, por mera coincidência ou acaso, um sujeito
acredite numa verdade, que ela esteja, portanto, justificada para o sujeito, mas que a justificação
encontrada seja dada por motivos errados. Gettier propõe situações hipotéticas em que as pessoas têm
crenças verdadeiras justificadas e, no entanto, não têm conhecimento. Os contraexemplos de Edmund
Gettier mostram que, apesar de a crença em causa ser verdadeira e estar justificada, a justificação que
o sujeito tem para essa crença não se baseia nos aspetos relevantes da realidade que tornam a sua
crença verdadeira.
Ou seja, é possível termos uma crença verdadeira justificada sem que ela corresponda a
conhecimento. Pode haver crenças justificadas acidentalmente. Nesses casos, a relação de
justificação com a crença verdadeira não é adequada, sendo a verdade da crença apenas o resultado
da sorte, do acaso ou da mera coincidência. Mas, segundo Gettier, acreditar numa verdade justificada
pelas razões erradas não pode ser considerado conhecimento.
TESE ----> Ter uma crença verdadeira justificada é condição necessária, mas não é condição suficiente
para o conhecimento.
Este exemplo mostra que as três condições que até então eram consideradas, no seu conjunto,
suficientes para haver conhecimento se revelavam, agora, insuficientes. Além disso, vem mostrar que
mesmo as nossas crenças, ainda que possam ser verdadeiras e justificadas, apresentam fragilidades.
A crítica de Gettier abriu fendas na definição tradicional. Será necessária uma condição extra, para
além das três propostas por Platão. Resta saber qual, pois, Gettier limitou-se a levantar o problema, a
apresentar contraexemplos, mas não identificou a solução.
Várias têm sido as tentativas de resolução dos problemas colocados pelos casos de Gettier e por
outros contraexemplos similares. Essas tentativas para resolver ou dissolver o problema formulado por
Gettier passam por:
• ou acrescentar uma quarta condição para o conhecimento – Alvin Goldman
• ou por proporem uma teoria epistemológica radicalmente diferente – Timothy Williamson
Já vimos que, tradicionalmente, se considera que para haver conhecimento tem de haver crenças
verdadeiras e boas razões, ou justificações, para as sustentar. O facto de haver diferentes formas de
justificar as crenças que temos como verdadeiras remete-nos para o problema das fontes do
conhecimento. Perguntar pelas fontes equivale, então, a perguntar pelas fontes de justificação das
nossas crenças ou pela justificação que apresentamos para mostrar que as nossas crenças são
verdadeiras.
Como justificamos, então, as nossas crenças?
Os filósofos admitem, de forma bastante consensual, duas fontes de justificação: a razão (ou o
pensamento) e a experiência (ou os sentidos). A estas duas fontes estão associados, respetivamente,
dois modos de conhecimento: o conhecimento a priori (baseado em juízos / proposições a priori) e o
conhecimento a posteriori (baseado em juízos / proposições a posteriori).
A expressão a priori refere-se ao que é independente e anterior à experiência (anterioridade lógica e
não cronológica) e a expressão a posteriori refere-se ao que decorre ou depende da experiência, que
é posterior a ela.
O conhecimento a priori é aquele que podemos adquirir recorrendo apenas ao pensamento e
independentemente da experiência. Neste tipo de conhecimento, a fonte de justificação das
nossas crenças é o pensamento ou a razão, na medida em que é um conhecimento que se pode
obter independentemente dos sentidos.
Não é preciso olhar para o mundo, isto é, recorrer aos sentidos para saber que três mais dois são
cinco, basta pensar nos conceitos aqui envolvidos para saber que estas proposições são verdadeiras,
ou seja, basta-nos usar o raciocínio. A fontes destes conhecimentos é a razão ou o pensamento.
Claro que a experiência desempenha um certo papel na aquisição do conhecimento a priori. Foi
preciso termos alguma experiência para adquirir os conceitos de soma, número, cor, solteiro, casado...
Ou seja, não precisamos de recorrer à experiência para justificar o conhecimento de que um objeto
azul é colorido, no entanto, o conceito de cor e de azul teve de ser, em primeiro lugar, adquirido pela
experiência.
Estas proposições são universais – no sentido em que não admitem qualquer exceção, sendo
verdadeiras sempre e em toda a parte – e necessárias – são verdadeiros em quaisquer circunstâncias,
e negá-las implicaria entrar em contradição.
Uma verdade necessária tem de ser verdadeira em quaisquer circunstâncias ou em todos os mundos
possíveis. “Se os felinos são carnívoros e os gatos são felinos, então os gatos são carnívoros” é
necessariamente verdade.
Uma verdade contingente é verdadeira, tal como as coisas são num dado lugar ou tempo, mas poderia
não o ser. Por exemplo, a afirmação “os dias de inverno são frios” é contingente, pois depende de
circunstâncias muito específicas e variáveis.
RACIONALISMO E EMPIRISMO
A distinção entre conhecimento a priori e conhecimento a posteriori é bastante consensual. Mas há
duas doutrinas filosóficas que valorizam e privilegiam diferentemente cada um desses dois modos de
conhecimento, dando mais importância à razão e ao conhecimento a priori – o racionalismo – ou à
experiência e ao conhecimento a posteriori – o empirismo.
Sob o ponto de vista da origem do conhecimento (génese das nossas crenças) e respetiva justificação
das crenças, os racionalistas defendem que a razão é a principal fonte do conhecimento. Por sua vez,
os empiristas defendem que todos os nossos conhecimentos têm origem, em última instância, na
experiência.
Mas qual delas é a fundamental? É essa a discussão principal que divide racionalistas e empiristas.
Os racionalistas e os empiristas divergem, sobretudo, quando se trata de saber se podemos ter
conhecimentos a priori acerca do mundo, ou seja, se é possível conhecer verdades sobre o mundo
independentemente da experiência.
Por sua vez, as crenças não básicas são aquelas que são justificadas por outras crenças, ou que se
inferem de outras crenças – justificação inferencial -, não sendo autoevidentes e encontram o seu
fundamento em crenças básicas.
As crenças básicas ou fundacionais são as que suportam todo o sistema de saber. E uma vez que estas
proposições em que acreditamos não são inferidas de outras, a justificação envolvida é não-inferencial.
Visto que as crenças básicas não carecem de justificação (elas autojustificam-se), elas podem justificar
as crenças não-básicas, sem que sejam necessárias mais justificações. A metáfora aqui subjacente é a
seguinte: tal como os alicerces (fundações) servem de suporte para a totalidade de um edifício, sem
ser suportados(as) por este, também as crenças básicas representam uma base sólida sobre a qual
podemos edificar as restantes crenças. E é porque as crenças básicas ou fundacionais, que sustêm as
demais crenças (crenças não-básicas), têm de ser irrefutáveis, absolutamente verdadeiras, que
dizemos que o racionalismo e o empirismo defendem uma perspetiva infalibilista.
Teses:
- que todo o nosso conhecimento está fundado em crenças básicas
- e que todas as nossas crenças justificadas estão, em última instância, fundamentadas em crenças
básicas.
Ora, segundo o racionalismo, essas crenças básicas provêm da razão, são crenças que podemos saber
que são verdadeiras através do pensamento; diz-se, por isso, que são conhecidas a priori, isto é,
independentemente da experiência sensível. Mas, segundo o empirismo, essas crenças básicas
provêm da experiência, isto é, são crenças que só podemos saber que são verdadeiras através dos
nossos sentidos; diz-se, por isso, que são conhecidas a posteriori, isto é, só podem ser conhecidas
através da experiência.
Para um fundacionalista, seja racionalista ou empirista, renunciar a esta base significa
inviabilizar a possibilidade de justificar qualquer crença ou conhecimento.
Defende, portanto, a ideia de que o conhecimento é uma estrutura na qual não há fratura entre crenças
básicas (primeiras) e crenças não-básicas: qualquer conhecimento justifica-se através da integração e
conciliação com as restantes crenças. Ou seja, uma crença particular é justificada se se conformar bem
– ou se for “coerente” – com a totalidade do nosso sistema de crenças.
Ou seja, enquanto o fundacionalismo defende que a justificação depende de uma relação de suporte
das crenças básicas para com as crenças não- básicas ou derivadas, a teoria coerentista sustenta que a
justificação de umabcrença depende das relações de suporte mútuo que uma dada crença estabelece
com as restantes crenças de um conjunto coerente de crenças.
O debate que separa estas correntes é, com frequência, ilustrado por duas metáforas. De acordo com o
fundacionalismo, o conhecimento é um edifício que deve ser construído sobre alicerces sólidos e por
meio de método fidedigno. Já para o coerentismo, o conhecimento é um barco, ou um avião, cuja força
e estabilidade advêm das partes que, no seu conjunto, se reforçam mutuamente e formam um todo
consistente.
2. É POSSÍVEL CONHECER?
(O problema da possibilidade do conhecimento)
Será possível ter uma crença não só verdadeira como satisfatória e suficientemente justificada acerca
da realidade? Será que o conhecimento é possível?
O ceticismo é a perspetiva epistemológica que nega total (ceticismo radical/global) ou
parcialmente (ceticismo moderado/localizado) a possibilidade do conhecimento. Mesmo que
algumas das nossas crenças sejam verdadeiras, segundo os céticos, não temos justificações suficientes
para mostrar essa verdade, ou seja, não temos maneira de saber se elas são verdadeiras ou falsas.
O ceticismo pode ser visto como 1) corrente filosófica e, nesse caso, nega a possibilidade de
conhecimento, sendo, portanto, uma “teoria” e, enquanto tal, é autorrefutante, ou como 2) atitude e,
neste caso, é uma atitude de desafio e questionamento, de investigação ou exame.
Se o ceticismo é a perspetiva filosófica que responde negativamente ao problema da possibilidade do
conhecimento, o dogmatismo é a perspetiva filosófica que responde afirmativamente ao problema da
possibilidade do conhecimento. O dogmatismo defende a possibilidade de se alcançar um
conhecimento credível e verdadeiro e deposita confiança na razão humana e em certos princípios
evidentes (dogmas), considerando que é possível chegar à certeza e à verdade.
Tal como Gettier, os defensores do ceticismo não questionam a necessidade das três condições da
definição tradicional de conhecimento. Concordam que para haver conhecimento, tem de existir
crença verdadeira justificada. Temos crenças e algumas delas serão verdadeiras, afirmam. Mas saber
se uma dada crença é ou não conhecimento está fora das nossas possibilidades.
A perspetiva cética pode ser resumida nos seguintes argumentos (que seguem o modus tollens):
1) Se S sabe que P, então não é possível que S esteja enganado acerca de P.
É possível que S esteja enganado acerca de P.
Logo, S não sabe que P.
(P → Q), Q P
Trata-se de argumentos válidos. Mas serão sólidos, ou seja, ambas as premissas serão
verdadeiras?
A primeira premissa é bastante consensual (limita-se a repetir, por outras palavras, que a justificação é
uma condição necessária do conhecimento, o que qualquer defensor da definição tradicional de
conhecimento aceita), já a segunda é francamente discutível e problemática.
Por isso, o cético radical terá de mostrar que a segunda premissa é verdadeira- que “é possível que
S esteja enganado acerca de P” ou que “não temos qualquer crença que esteja justificada” ou que
“nenhuma crença tem justificação apropriada”.
Do ponto de vista dos céticos, uma justificação é apropriada quando não temos razão alguma para
duvidar dela. Uma tal justificação teria, então, de excluir a possibilidade de estarmos enganados. Dado
que nenhuma justificação garante tal coisa, argumentam os céticos, também nenhuma é apropriada.
Segundo o ceticismo, existem muitas razões que nos permitem duvidar da realidade e da forma como a
conhecemos. Por isso, nenhuma crença está devidamente justificada, pelo que não será possível
garantir o conhecimento. Face a este quadro de incerteza, o mais adequado e sensato será duvidar de
tudo e suspender qualquer juízo – epoché -, isto é, não julgar nem adotar qualquer crença, em vez de
supormos que sabemos seja o que for, a um estado de espírito que consiste em abster-se de julgar, ou
seja, em nada afirmar ou negar. Esta seria a única maneira de manter a tranquilidade, aquilo que os
gregos definiam como ataraxia – “tranquilidade” da “alma” ou “ausência de perturbação”.
Existe, então, uma diferença entre aquilo que realmente é e aquilo que é percecionado pelos sujeitos,
permitindo assim a diversidade de opiniões. E é neste ponto que os céticos se apoiam para defender a
ideia de que os objetos imediatos da perceção são os dados dos sentidos e não os dos objetos reais.
Estes dados dos sentidos são estruturas internas que funcionam como mediadoras entre o mundo real
externo e a consciência mental que temos dele, não permitindo representá-lo fidedignamente.
Objetos físicos e reais: Objetos concretos, tal como são. Realidade exterior, independente da
consciência do sujeito
Dados dos sentidos: Perceção imediata do objeto pelo sujeito, passível de erro. Realidade interior,
construída pela consciência do sujeito
O problema surge porque é sempre legítimo pedir uma justificação (ou seja, perguntar "porquê?")
para cada uma das nossas crenças e, uma vez que essa justificação consiste numa outra crença que,
também ela, precisa de ser justificada, rapidamente se instala uma cadeia de justificações. Isto
acontece porque justificamos as nossas crenças com base noutras crenças, mas, para que estas sirvam
de justificação seja para o que for, precisam, também elas, de estar justificadas. Uma vez que novas
crenças serão invocadas para justificar as próprias justificações, caímos num encadeamento de
crenças que se justificam umas às outras.
2. ou volta-se sobre si própria de um modo viciosamente circular - uma das justificações é sustentada
por uma crença situada num qualquer ponto anterior da cadeia: por exemplo, justifica-se a crença A
com base na crença B, e esta justifica-se com base numa crença C que, por sua vez, se justifica com
base em A (ou seja, recuamos nas justificações até voltarmos a alguma crença que já tínhamos usado
antes e, neste caso, ficamos com uma justificação circular)
Rejeitada por Agripa por ser viciosamente circular
nenhuma justificação circular pode ser eficaz, pois aquilo que se pretende justificar está a ser usado na
própria justificação, pelo que falha o intuito de justificar seja que crença for (ou seja, justificar uma
crença evocando outra da mesma cadeia é igualmente implausível);
Considerando que a única forma de justificar as nossas crenças é invocando outras crenças caindo
inevitavelmente numa cadeia de justificações - e uma vez que as cadeias de justificações são incapazes
de justificar seja o que for -, podemos concluir validamente que não temos crenças justificadas.
Assim sendo, estes três argumentos principais dos céticos provam que nenhuma justificação é
adequada ou apropriada para mostrar que não estamos enganados quando julgamos conhecer alguma
coisa.
Objeção ao ceticismo radical
Na medida em que, se um cético defende que não é possível conhecer, por que razão entende que
afinal é possível conhecer com verdade que não é possível conhecer?
Expliquemos este argumento.
O ceticismo pode ser considerado uma teoria autocontraditório e autorefutante, na medida em que
ao defender que não há conhecimento, está a afirmar isso como um conhecimento. Se não fosse
possível saber-se com rigor nenhuma coisa, então também não devia ser possível ao defensor do
ceticismo saber que não é possível conhecer. Saber que o conhecimento é impossível é já saber
alguma coisa e, assim sendo, é possível conhecer. Ou seja, ao afirmar-se que não temos crenças
verdadeiras justificadas, está a afirmar-se a crença verdadeira justificada de que não há crenças
verdadeiras justificadas.
Por outro lado, o ceticismo só é autorefutante se o considerarmos como uma teoria. Se for apenas uma
atitude de desafio, então já não será autorefutante e remeterá apenas para a suspensão do juízo.