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A TEORIA DA CRENÇA VERDADEIRA JUSTIFICADA (CVJ)

Platão, na obra Teeteto, defende que o conhecimento [do tipo proposicional] é uma crença que o sujeito tem
[acredita que], que deve ser verdadeira [sabe que], isto é, a representação mental do objeto, traduzida na
proposição, deve estar de acordo com a realidade, e justificada [a crença está justificada], ou seja, o sujeito
deve ter fundadas razões para aceitar essa proposição.

“a opinião verdadeira acompanhada de razão é ciência, e (…), desprovida de razão, a opinião está fora da
ciência e que as coisas que não é possível explicar são incognoscíveis (…) e as que é possível explicar são
cognoscíveis.”
Platão, Teeteto ou da Ciência, Editorial Inquérito, Lisboa, 2ª Ed, s/d, pp. 159.

Se podemos aceitar facilmente que as crenças falsas não podem originar conhecimento [o que é falso não é
conhecimento], não deixa de ser igualmente claro que, para evitar a adivinhação e/ou sorte, as crenças que são
verdadeiras precisam ainda ser justificadas através de razões que as expliquem e ou sustentem.
Platão, como os demais defensores da teoria tripartida do conhecimento (teoria CVJ), considera a crença, a
verdade, e a justificação condições necessárias e suficientes para que exista conhecimento. Estas 3 condições
devem aplicar-se simultaneamente para podemos ter conhecimento.

A teoria CVJ, como qualquer outra, foi objeto de críticas/objeções. Em 1963, Edmund Gettier apresentou casos
exemplificativos (contra-exemplos) que refutam a tese defendida pela teoria tripartida do conhecimento.
Embora aceite a crença, a verdade e a justificação, como condições necessárias ao conhecimento, considera no
entanto, que são insuficientes.
Como demonstram os casos apresentados por Gettier, não basta ter uma crença verdadeira justificada (CVJ)
para possuir conhecimento. Para Gettier podemos ter crenças que são verdadeiras, para as quais podemos ter
justificadas razões, sem que, no entanto, possamos falar de conhecimento, mas apenas de mera coincidência
ou acaso. Assim, verificamos que nos casos em que temos uma CVJ sem conhecimento a justificação apresenta-
se apenas como credível e não como infalível.
Segundo a conceção de Gettier é, pois, necessário encontrar uma nova condição [extra] que, conjuntamente
com a crença, a verdade, e a justificação, permita determinar o que é o conhecimento.
No âmbito da teoria do conhecimento, deve-se então refletir para procurar uma nova conceção de
conhecimento, isto é, uma conceção quadripartida (crença + verdade + justificação + condição

O que é o conhecimento?
Elliott Sober

Tradução de Paula Mateus


1. Tipos de Conhecimento

No quotidiano falamos de conhecimento, de crenças que estão fortemente apoiadas por


dados, e dizemos que elas têm justificação ou que estão bem fundamentadas. A
epistemologia é a parte da filosofia que tenta entender estes conceitos. Os epistemólogos
tentam avaliar a ideia, própria do senso comum, de que possuímos realmente
conhecimento. Alguns filósofos tentaram apoiar com argumentos esta ideia do senso
comum. Outros fizeram o contrário. Os filósofos que defendem que não temos
conhecimento, ou que as nossas crenças não têm justificação racional, estão a defender
uma versão de cepticismo filosófico.

Antes de discutirmos se temos ou não conhecimento, temos de tornar claro o que é o


conhecimento. Podemos falar de conhecimento em três sentidos diferentes, mas apenas
um nos vai interessar. Considerem-se as seguintes afirmações acerca de um sujeito, ao
qual chamarei S:

1. S sabe andar de bicicleta.


2. S conhece o Presidente dos EUA.
3. S sabe que a Serra da Estrela fica em Portugal.

Chamo conhecimento proposicional ao tipo de conhecimento apresentado em 3. Note-se


que o objeto do verbo em 3 é uma proposição — uma coisa que é verdadeira ou falsa.
Existe uma proposição — a Serra da Estrela fica em Portugal — e S sabe que essa
proposição é verdadeira.

As frases 1 e 2 não têm esta estrutura. O objeto do verbo em 2 não é uma proposição, mas
uma pessoa. O mesmo aconteceria se disséssemos que S conhece Lisboa. Uma frase como
2 diz que S está ou esteve na presença de uma pessoa, de um lugar ou de uma coisa. Por
isso dizemos que 2 corresponde a um caso de conhecimento por contacto.

Existe alguma ligação entre estes dois tipos de conhecimento? Possivelmente, para que S
conheça o Presidente dos Estados Unidos, terá de ter conhecimento proposicional acerca
dele. Mas qual? Para que S conheça o Presidente terá de saber em que Estado ele nasceu?
Isso não parece essencial. E o mesmo parece acontecer relativamente a todos os outros
factos acerca dele: não parece haver qualquer proposição específica que seja necessário
saber para se possa dizer que se conhece o Presidente. Conhecer uma pessoa implica, isso
sim, ter um tipo qualquer de contacto directo com ela.

Chamemos ao tipo de conhecimento exemplificado em 1 conhecimento de aptidões. Que


significa dizer que se sabe fazer alguma coisa? Penso que isto tem pouco a ver com o
conhecimento proposicional. Uma pessoa pode saber andar de bicicleta aos cinco anos, e
para isso não precisa de saber qualquer proposição acerca desse facto. O contrário
também pode acontecer: uma pessoa pode ter muito conhecimento proposicional acerca
de um assunto — de pintura, por exemplo — , e não ter qualquer conhecimento de
aptidões a esse respeito.

Vamos aqui abordar apenas o conhecimento proposicional. Queremos saber o que é


necessário para que um indivíduo S saiba que p, sendo p uma proposição qualquer —
como a de que a Serra da Estrela fica em Portugal. Daqui em diante, quando falarmos de
conhecimento, estaremos sempre a referir-nos ao conhecimento proposicional.
2. Condições Necessárias e Suficientes

Consideremos a definição de solteiro:

Para qualquer S, S é solteiro se e somente se:

1. S é um adulto,
2. S é homem,
3. S não é casado.

Não digo que esta definição capta com precisão o que “solteiro” significa em português
comum. Usamos apenas esta definição como um exemplo de uma proposta de definição.
Uma definição é uma generalização. Diz respeito a qualquer indivíduo que queiramos
considerar. Nesta definição fazemos duas afirmações: a primeira é a de que SE um
indivíduo tem as características 1, 2 e 3, então é solteiro. Por outras palavras, 1, 2 e 3 são,
em conjunto, suficientes para que se seja solteiro. A segunda afirmação é a de que SE um
indivíduo é solteiro, então tem as três características. Por outras palavras, 1, 2 e 3 são,
cada uma delas, condições necessárias para se ser solteiro.

Uma boa definição especifica as condições suficientes e necessárias para o conceito que
queremos definir. Isto significa que existem dois tipos de erros que podem ocorrer numa
definição: as definições podem ser demasiado abrangentes ou demasiado restritivas.

3. Dois Requisitos para o Conhecimento: Crença e Verdade

Devemos fazer notar duas ideias que fazem parte do conceito de conhecimento. Primeiro,
se S sabe que p (que uma proposição é verdadeira), então tem de acreditar que p. Segundo,
se S sabe que p, então p tem de ser verdadeira. O conhecimento requer tanto a crença
quanto a verdade. Comecemos pela segunda ideia. As pessoas às vezes dizem que sabem
coisas que mais tarde se revelam falsas. Mas isto não é saber coisas que são falsas, é
pensar que se sabem coisas que, de facto, são falsas.

O conhecimento tem um lado subjectivo e um lado objectivo. Um facto é objectivo se a


sua verdade não depende de como é a mente das pessoas. É um facto objectivo que a
Serra da Estrela está 2 000 metros acima do nível do mar. Um facto é subjectivo se não é
objectivo. O exemplo mais óbvio de um facto subjectivo é uma descrição do que acontece
na mente de alguém.

Se uma pessoa acredita ou não que a Serra da Estrela está a 2 000 metros acima do nível
do mar é uma questão subjectiva, mas se a montanha tem realmente essa propriedade é
uma questão objectiva. O conhecimento requer tanto um elemento subjectivo como um
elemento objectivo. Para que S conheça p, p tem de ser verdadeira e o sujeito, S, tem de
acreditar que p é verdadeira.

4. Terceiro Requisito: Justificação

Apontei duas condições necessárias para o conhecimento: o conhecimento requer crença


e requer verdade. Mas será que isto é suficiente? Será que estas duas condições não são
apenas separadamente necessárias, mas também conjuntamente suficientes? É a crença
verdadeira suficiente para o conhecimento?

Pensemos num indivíduo, Clyde, que acredita na história do Dia do Porco do Campo.
Clyde pensa que se o Porco do Campo vir a sua própria sombra, a Primavera virá mais
tarde. Suponha-se que Clyde põe este princípio idiota em prática este ano. Ele tem
informações que o fazem pensar que a Primavera virá mais tarde. Suponha-se que Clyde
acaba por ter razão acerca deste facto. Se não existir nenhuma conexão lógica entre o
facto de o porco do campo ter visto a sua própria sombra e o facto de a Primavera vir
mais tarde, então Clayde terá uma crença verdadeira (a Primavera virá tarde), mas não
terá conhecimento.

Que será então necessário, para além da crença verdadeira, para que alguém possua
conhecimento? A sugestão mais natural é a de que o conhecimento requer dados de apoio,
ou uma justificação racional. Note-se que ter uma justificação não é apenas pensar que
se tem uma razão para acreditar em algo.

Que significa dizer que um indivíduo tem uma crença “justificada” na proposição p? Uma
justificação pode ter a forma de um argumento dedutivo, de um argumento indutivo ou
de um argumento abdutivo. Talvez existam outras opções além destas três. Mas, o que
quer que seja que entendemos por “justificação”, parece plausível dizer que as crenças
que são defendidas irracionalmente não são casos de conhecimento (mesmo que elas
sejam verdadeiras).

5. A Teoria CVJ

Suponhamos que o conhecimento requer estas três condições. Será que isto é suficiente?
Será que estas condições não são apenas separadamente necessárias, mas também
conjuntamente suficientes? Chamarei CVJ à teoria que afirma que assim é. Esta teoria diz
que ter conhecimento é a mesma coisa que ter crenças verdadeiras justificadas:

(CVJ) Para que qualquer indivíduo S e para qualquer proposição p, S conhece p se e


somente se

1. S acredita em p
2. p é verdadeira
3. a crença de S em p está justificada

A Teoria CVJ afirma uma generalização. Diz o que é o conhecimento para qualquer
pessoa e para qualquer proposição p. Por exemplo, suponhamos que S és tu e que p = “A
Lua é feita de queijo verde”. A teoria CVJ diz o seguinte: se sabes que a Lua é feita de
queijo verde, então os enunciados 1, 2 e 3 devem ser verdadeiros. E se não sabes que a
Lua é feita de queijo verde, então pelo menos um dos enunciados de 1 a 3 deve ser falso.
Tal como na definição de solteiro discutida antes, a expressão “se, e somente se” diz-nos
que são dadas condições necessárias e suficientes para o conceito definido.

6. Três Contra-Exemplos à Teoria CVJ

Em 1963, o filósofo Edmund Gettier publicou dois contra-exemplos para a teoria CVJ. O
que é um contra-exemplo? É um exemplo que contradiz o que diz uma teoria geral. Um
contra-exemplo contra uma generalização mostra que a generalização é falsa. A teoria
CVJ diz que todos os casos de crença verdadeira justificada são casos de conhecimento.
Gettier pensa que estes dois exemplos mostram que um indivíduo pode ter uma crença
verdadeira justificada mas não ter conhecimento. Se Gettier tiver razão, então as três
condições indicadas pela teoria CVJ não são suficientes.

Eis um dos exemplos de Gettier. Smith trabalha num escritório. Ele sabe que alguém será
promovido em breve. O patrão, que é uma pessoa em quem se pode confiar, diz a Smith
que Jones será promovido. Smith acabou de contar as moedas no bolso de Jones,
encontrando aí 10 moedas. Smith tem então boas informações para acreditar na seguinte
proposição:

a) Jones será promovido e Jones tem 10 moedas no bolso.

Smith deduz, então, deste enunciado o seguinte:

b) O homem que será promovido tem 10 moedas no bolso.

Suponha-se agora que Jones não receberá a promoção, embora Smith não o saiba. Em vez
disso, será o próprio Smith a ser promovido. E suponha-se que Smith também tem dez
moedas dentro do bolso. Smith acredita em b, e b é verdadeira. Gettier afirma também
que Smith acredita justificadamente em b, dado que a deduziu de a. Apesar de a ser falsa,
Smith tem excelentes razões para pensar que é verdadeira. Gettier conclui que Smith tem
uma crença verdadeira justificada em b, mas que Smith não sabe que b é verdadeira.

O outro exemplo de Gettier exibe o mesmo padrão. Um sujeito deduz validamente uma
proposição verdadeira a partir de uma proposição que está muito bem apoiada por
informações, embora esta seja falsa, apesar de o sujeito não o saber. Quero agora
descrever um tipo de contra-exemplo à teoria CVJ na qual o sujeito raciocina não
dedutivamente.

O filósofo e matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970) refere um relógio muito


fiável que está numa praça. Esta manhã olhas para ele para saber que horas são. Como
resultado ficas a saber que são 9.55. Tens justificações para acreditar nisso, baseado na
suposição correcta de que o relógio tem sido muito fiável no passado. Mas supõe que o
relógio parou há exactamente 24 horas, apesar de tu não o saberes. Tens a crença
verdadeira justificada de que são 9.55, mas não sabes que esta é a hora correcta.

7. Que Têm os Contra-Exemplos em Comum?

Em todos estes casos, o sujeito tem dados para acreditar na proposição em causa que são
altamente credíveis, mas não infalíveis. O patrão está geralmente certo sobre quem vai
ser promovido, o relógio está geralmente certo quanto às horas. Mas é claro que
geralmente não é sempre. As fontes da informação que os sujeitos exploraram nestes
exemplos são altamente credíveis, mas não são perfeitamente credíveis. Todas as fontes
de informação eram susceptíveis de erro, pelo menos até certo ponto.

Será que estes exemplos refutam realmente a teoria CVJ? Depende de como entendemos
a ideia de justificação. Se dados altamente credíveis são suficientes para justificar uma
crença, então estes contra-exemplos refutam realmente a teoria CVJ. Mas se a justificação
requer dados perfeitamente infalíveis, então estes exemplos não refutam a teoria.

A minha opinião é de que os dados que justificam uma crença não precisam de ser
infalíveis. Penso que podemos ter crenças racionais bem apoiadas mesmo quando não nos
empenhamos em estar absolutamente certos de que o que acreditamos é verdadeiro.
Assim, concluo que a crença verdadeira justificada não é suficiente para o conhecimento.

Elliott Sober

Retirado do livro Core Questions in Philosophy, de Elliott Sober (Prentice Hall, 2008)
1.1. Estrutura do ato de conhecer

Perspetivada como ato puro, como o fazem os fenomenologistas, e desligada de quaisquer particularidades, a atividade «cognoscitiva» é reduzida ao
acto de conhecer. A análise fenomenológica considera apenas o conhecimento em si mesmo, atendendo apenas à sua estrutura essencial. Assim, todo
o acto de conhecer envolve um sujeito, um objecto e uma imagem: o primeiro é aquele que conhece; o segundo é aquilo que é conhecido; o terceiro é
a representação do objecto na consciência do sujeito. No texto de Hartman, podemos seguir passo a passo a descrição fenomenológica do acto de
conhecer.

a) O fenómeno fundamental da apreensão


1.Em todo o conhecimento, um «cognoscente» e um «conhecido», um sujeito e um objecto encontram-se face a face. A relação que existe entre os dois é o próprio
conhecimento. A oposição dos dois termos não pode ser suprimida; esta oposição significa que os dois termos são originariamente separados um do outro.
2.Os dois termos da relação não podem ser separados dela sem deixar de ser sujeito e objecto. O sujeito só é sujeito em relação a um objecto e o objecto só é
objeto em relação a um sujeito. Cada um deles apenas é o que é pela sua relação com o outro. Estão ligados um ao outro por uma estreita relação; condicionam-
se reciprocamente. A sua relação é uma correlação.
3.A relação constitutiva do conhecimento é dupla, mas não é reversível. O facto de desempenhar o papel de sujeito em relação a um objecto é diferente do facto
de desempenhar o papel de objecto em relação a um sujeito. No interior da correlação, sujeito e objecto não são, portanto, intermutáveis; a sua função é
essencialmente diferente. (...)
4.A função do sujeito consiste em apreender o objecto; a do objecto em poder ser apreendido pelo sujeito e em sê-lo efectivamente.
5.Considerada do lado do sujeito, esta «apreensão» pode ser descrita como uma saída do sujeito para fora da sua própria esfera e como uma incursão na esfera
do objecto, a qual é, para o sujeito, transcendente e heterogénea. O sujeito apreende as determinações do objecto e, ao apreendê-las, introdu-las, fá-las entrar
na sua própria esfera.
6.O sujeito não pode captar as propriedades do objecto senão fora de si mesmo, pois a oposição do sujeito e do objecto não desaparece na união que o acto de
conhecimento estabelece entre eles; antes permanece indestrutível. A consciência desta oposição é um aspecto essencial da consciência do objecto. O objecto,
mesmo quando é apreendido, permanece, para o sujeito, algo de exterior; é sempre «o objectum», quer dizer, o que está diante dele. O sujeito não pode captar
o objecto sem sair de si (sem se transcender); mas não pode ter consciência do que é apreendido, sem reentrar em si, sem se reencontrar na sua própria esfera.
O conhecimento realiza-se, pois, por assim dizer, em três tempos: o sujeito sai de si, está fora de si e regressa finalmente a si.
7.O facto de que o sujeito saia de si para apreender o objecto não muda nada neste. O objecto não se torna por isso imanente. As características do objecto, se
bem que sejam apreendidas e como que introduzidas na esfera do sujeito, não são, contudo, deslocadas. Apreender o objecto não significa fazê-lo entrar no
sujeito, mas sim reproduzir neste as determinações do objecto numa construção que terá um conteúdo idêntico ao do objecto. Esta construção operada no
conhecimento é «a imagem» do objecto. O objecto não é modificado pelo sujeito, mas sim o sujeito pelo objecto. Apenas no sujeito alguma coisa se transforma
pelo acto de conhecimento. No objecto nada de novo é criado; mas no sujeito nasce a consciência do objecto, com o seu conteúdo, a imagem do objecto.
Nicolai Hartmann (1945), Les Príncipes d'une Métaphysique de la Connaissance, vol. 1, Paris, Aubier-Montaigne, pp. 87-88.

O sujeito e o objecto não se confundem, «são originariamente separados um do outro», são transcendentes e estabelecem, entre eles, uma relação de
oposição.
Apesar de opostos, um sem o outro não podem ser considerados sujeito e objecto. Com efeito, «cada um deles apenas é o que é pela sua relação com
o outro», o que significa que a sua relação constitui uma correlação.
Embora correlacionados, não podem trocar de funções. Estabelecem uma relação de irreversibilidade. O papel do sujeito é o de apreender o objecto e o
do objecto é o de poder ser apreendido pelo sujeito e em o ser efectivamente.
Dado que sujeito e objecto têm funções específicas, o resultado do conhecimento não é igual para ambos. De facto, o sujeito, saindo de si para captar o
objecto, e ao regressar a si, com uma representação do objecto, é modificado pelo objecto, ao passo que o objecto em nada é modificado pelo sujeito.
Uma vez que, no processo, o sujeito apreende a imagem do objecto, podemos considerar o conhecimento como a relação entre o sujeito e o objecto,
que se traduz numa representação do objecto por parte do sujeito.

Responder à questão de saber o que é o conhecimento é responder ao problema da origem do conhecimento, da natureza ou essência do
conhecimento, da possibilidade ou valor do conhecimento, das espécies de conhecimento ou formas de conhecer e ao problema dos critérios de
verdade.

O programa de Filosofia apenas propõe que se faça a análise comparativa de duas teorias explicativas do conhecimento. Escolhemos, por indicação
das orientações, a teoria racionalista de Descartes e a teoria empirista de Hume. Porém, para o fazer, teremos de falar das diversas respostas aos
vários problemas do conhecimento embora o façamos a partir das respostas ao problema da possibilidade (valor ou limites) e da origem do
conhecimento.

Conhecimento a posteriori e a priori

Mas antes de avançarmos para a análise comparativa de duas teorias explicativas do conhecimento, vamos distinguir duas espécies de conhecimento
proposicional, para ajudar nessa análise.

O conhecimento a posteriori (ou conhecimento empírico) é aquele que está dependente da experiência, seja ela sensorial ou introspectiva, para aferir
da sua verdade ou falsidade. A experiência sensorial advém dos nossos sentidos (visão, audição, tacto...), os quais nos colocam em contacto com o
mundo exterior, com aquilo que existe fora de nós. A experiência introspectiva advém daquilo que encontramos dentro de nós (sentimentos, emoções,
desejos...).

O conhecimento a posteriori é constituído por crenças que só se podem justificar se recorrermos a dados empíricos, isto é, à informação que nos é
fornecida pelos sentidos ou pela introspecção. O conhecimento facultado pelas Ciências da Natureza e pelas Ciências Humanas é a posteriori e o
mesmo se pode dizer de muito do conhecimento que obtemos todos os dias. As seguintes afirmações ilustram o conhecimento a posteriori:

• A cadeira onde estou sentado é castanha.


• Hoje estou contente.
• A neve é branca.
• O almoço é peixe.

As proposições que estas frases exprimem são a posteriori, pois não podemos saber se são verdadeiras ou falsas sem recorrer aos dados empíricos.

O conhecimento a priori é aquele que não depende da experiência empírica para aferir da sua verdade ou falsidade. O conhecimento a priori é
constituído por crenças que se podem justificar recorrendo unicamente ao pensamento. Apenas as proposições da lógica e da matemática, bem como
quaisquer afirmações que possamos saber que são verdadeiras apenas pelo esclarecimento do seu significado, constituem conhecimento a priori. As
seguintes afirmações ilustram o conhecimento a priori:

• Os corpos são extensos.


• O encarnado é uma cor.
• a + b=b + a
1.2. Análise comparativa de duas teorias explicativas do conhecimento: a teoria racionalista de Descartes e a teoria empirista de D. Hume

A experiência pode ou não ser critério de verdade do conhecimento proposicional? Qual é a origem do conhecimento? A experiência ou a razão? Estas
questões estão na origem da divergência entre dois géneros de filósofos que abordam a problemática da origem do conhecimento: os empiristas e os
racionalistas.

A origem do conhecimento

A. Racionalismo

Os racionalistas, entre os quais se inclui Descartes, geralmente não negam que exista conhecimento a posteriori, mas pensam que, só recorrendo à
razão ou ao pensamento, podemos obter conhecimento verdadeiro. Para os racionalistas, o conhecimento só o é quando é logicamente necessário e
universalmente válido. Por exemplo, muitos racionalistas pensam que podemos saber a priori que Deus existe ou que a mente é distinta do corpo. Os
racionalistas supõem frequentemente que o conhecimento a priori, Descartes chama-lhe inato, por oposição ao conhecimento empírico, assenta em
justificações certas ou infalíveis, porque oriundas da razão. Para os racionalistas, todo o conhecimento verdadeiro [necessário e universal] deriva da
razão e constrói-se com ideias inatas.

B. Empirismo

Os empiristas, entre os quais se inclui David Hume, consideram que o conhecimento a priori se circunscreve à lógica, à matemática e às verdades
meramente linguísticas. Os empiristas declaram que a lógica, a matemática e todas as afirmações que são verdadeiras por definição nada nos dizem
realmente sobre o mundo, são estéreis. Pensam, portanto, que não pode existir conhecimento a priori dos factos do mundo, ou seja, que todo o
conhecimento factual é a posteriori ou empírico. Para os empiristas, todo o conhecimento do mundo deriva da experiência e todas as ideias têm uma
base empírica; não existem ideias inatas, a razão assemelha-se a uma "tábua rasa" onde, antes de qualquer experiência, nada se encontra escrito.

A Possibilidade do conhecimento

Perguntar pela possibilidade do conhecimento é o mesmo que perguntar se o sujeito pode apreender efectivamente o objecto. Poderá o sujeito construir
uma representação em tudo idêntica ao objecto? Será possível conhecer alguma coisa? Estas questões estão na origem da divergência entre dois
géneros de filósofos que abordam a problemática da possibilidade do conhecimento: os cépticos e os dogmáticos.

A. Dogmatismo

Para os dogmáticos, com uma atitude própria do realismo ingénuo [resposta ao problema da natureza do conhecimento], nem sequer se põe o problema
de saber se o sujeito apreende o objecto, não colocam o problema de saber se podemos conhecer. O dogmático não se apercebe que o conhecimento
é, acima de tudo, uma relação entre o sujeito e o objecto, parte, por isso, do pressuposto de que o sujeito apreende efectivamente o objecto. Mas o
dogmatismo absoluto do realismo ingénuo não existe propriamente na filosofia, uma vez que o questionar filosófico começa sempre com a questão do
ser verdadeiro e, deste modo, busca a verdade através de um exame crítico da aparência. Em filosofia entende-se o dogmatismo como uma resposta
ao problema da possibilidade do conhecimento e o filósofo dogmático é aquele que deposita confiança na capacidade da razão em chegar à verdade.
Descartes é um destes filósofos que manifestou uma forte confiança na razão para chegar ao conhecimento e, por isso, foi chamado de dogmático por
Kant.

B. Ceticismo

Ao contrário dos dogmáticos, os cépticos defendem que não é possível ao sujeito apreender, efectivamente, o objecto. Em filosofia entende-se o
cepticismo como uma resposta ao problema da possibilidade do conhecimento e o filósofo céptico é aquele que não deposita confiança na capacidade
da razão em chegar à verdade e, por isso, ao conhecimento e desconfia também que dos sentidos possa surgir algum conhecimento. A atitude céptica
pode ser absoluta ou radical, quando se nega a possibilidade de conhecer, ou mitigada, quando não estabelece a impossibilidade absoluta do
conhecimento. Hume é um filósofo que desconfiou da capacidade cognitiva da razão humana para construir uma imagem fiel do objecto. Mas perante
um problema adoptar uma postura céptica é proceder com a maior prudência, rever velhas soluções e buscar novas. Quando faz parte do espírito
crítico e autónomo, o cepticismo transforma-se num método para a razão.

O cepticismo é considerado uma resposta contraditória ao problema da possibilidade do conhecimento, como nos mostra o professor Johannes Hessen.

É evidente que o cepticismo radical ou absoluto se anula a si próprio. Afirma que o conhecimento é impossível. Mas com isto exprime um conhecimento. Por
consequência, considera o conhecimento como possível de facto e, no entanto, afirma simultaneamente que é impossível. O cepticismo cai, pois, numa
contradição consigo próprio. (...)
Já tomámos também conhecimento com uma forma mitigada do cepticismo. Segundo ela, não há verdade nem certeza, mas apenas probabilidade. Não
podemos nunca ter a pretensão de que os nossos juízos sejam verdadeiros, mas apenas de que sejam prováveis. Mas esta forma de cepticismo acrescenta à
contradição, inerente em princípio à posição céptica, uma nova contradição. O conceito de probabilidade pressupõe o de verdade. Provável é aquilo que se
aproxima do verdadeiro. Quem renuncia ao conceito de verdade tem, pois, de abandonar também o de probabilidade.
J. Hessen (1980), Teoria do Conhecimento, Coimbra, Arménio Amado, pp. 43-44..

A. Descartes (1596-1650) e o racionalismo dogmático

Descartes foi um filósofo racionalista, uma vez que considerava a razão a fonte principal do conhecimento e a única origem para o verdadeiro
conhecimento. Descartes deposita uma grande confiança na razão e, por essa razão, procurou nela os fundamentos metafísicos do conhecimento,
pois só assim, julgava estabelecer os fundamentos de todo o conhecimento.

O método

Uma vez que a razão é a origem do conhecimento verdadeiro (universal e necessário), Descartes inspirou-se na matemática para encontrar um método
adequado à sua empresa, a conquista da verdade; pois sabia que as proposições matemáticas tinham uma origem exclusivamente racional e assumem
um carácter evidente, propriedade que deveriam ter as ideias fundadoras do conhecimento. Vejamos quais são as regras do seu método:
Eu julguei que me bastariam os quatro seguintes, desde que tomasse a firme e constante resolução de não deixar, uma única vez, de os observar.
O primeiro era nunca aceitar coisa alguma por verdadeira, sem que a conhecesse evidentemente como tal: quer dizer, evitar cuidadosamente a precipitação
e a prevenção; e não aceitar nada nos meus juízos, senão o que se me apresentasse tão clara e distintamente ao meu espírito que eu não tivesse nenhuma
ocasião de a colocar em dúvida.
O segundo, dividir cada uma das dificuldades que examinasse, em tantas parcelas quantas fosse possível e quantas fossem necessárias para melhor as resolver.
O terceiro, conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objectos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por
degraus, até ao conhecimento dos mais compostos; e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.
E o último, de fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais, que estivesse seguro de nada omitir.
Descartes (1989), O Discurso do Método, Lisboa, Editora Replicação, pp.35-37.
Estas quatro regras do método (também designadas por regras da evidência, da análise, da síntese e da enumeração, respectivamente) permitirão
guiar a razão (o bom senso), orientando as suas operações fundamentais. Tais operações são:

- a intuição: que é um acto de apreensão directa e imediata de noções simples, evidentes e indubitáveis;

- a dedução: que se refere ao encadeamento das intuições, envolvendo um movimento do pensamento, desde os princípios evidentes até às
consequências necessárias.

Por exemplo, intuímos facilmente que um quadrado é delimitado por quatro linhas e que um triângulo o é apenas por três. A partir destes conhecimentos
evidentes, podemos deduzir consequências que serão logicamente necessárias.

Para Descartes, a necessidade da existência de uma ordem entre os vários pensamentos radica no facto da sabedoria humana permanecer una e
idêntica. A ela se reduzem todas as ciências. Sendo assim, é necessário procurar os fundamentos das ciências e Descartes encontra-os na metafísica
que constitui a raiz da filosofia. É por ela que se deve começar. Assim, obedecendo às regras do método, Descartes procede a uma investigação de
carácter metafísico, a fim de encontrar os princípios fundamentais do conhecimento humano.
A dúvida metódica

Descartes tem o objectivo de encontar as bases de todo o conhecimento e pensa que, se seguir o método, poderá encontrar os princípios fundamentais
e indubitáveis para o conhecimento verdadeiro, isto é, infalivelmente justificado. A Teoria do Conhecimento cartesiana (ou de Descartes) é desenvolvida
em várias obras, das quais destacamos O Discurso do Método (1637) e as Meditações sobre a Filosofia Primeira (1641).

Segundo Descartes, para obtermos conhecimento verdadeiro, temos de encontrar um fundamento inteiramente seguro para ele. Por outras palavras,
temos de encontrar crenças ou convicções que não possam ser colocadas em dúvida e a partir das quais seja possível justificar infalivelmente outras
crenças ou convicções. E como haveremos de encontrar esse fundamento seguro? Recorrendo à dúvida, sugere Descartes. Segundo ele, devemos
começar por examinar as nossas crenças, utilizando a dúvida como método e rejeitar todas as nossas crenças em que possamos imaginar a menor
dúvida - talvez algumas delas até sejam verdadeiras, mas, como não resistem aos argumentos dos cépticos, não podem servir de fundamento para o
conhecimento, pelo que devem ser tratadas como se fossem falsas. É nisto que consiste a dúvida metódica: colocar em dúvida todas as crenças,
rejeitando, provisoriamente, todas aquelas que não sejam inteiramente indubitáveis, que não resistam ao crivo da dúvida. Se, neste processo, se
descobrir que certas crenças resistem a todo e qualquer argumento céptico, poderemos considerá-las certas ou indubitáveis e tomá-las como
fundamento para o conhecimento. O recurso à dúvida é assim um meio para chegar à certeza, ao conhecimento.

Descartes começa por apresentar argumentos para que duvidemos de todas as nossas crenças que se baseiam na experiência empírica. Um desses
argumentos parte da ideia de que os sentidos não são completamente fiáveis. Aliás, os nossos sentidos enganam-nos em algumas ocasiões. Como é
imprudente confiar naqueles que nos enganam nem que seja uma só vez, devemos rejeitar todas as nossas crenças empíricas (conhecimento a
posteriori), pois é possível que sejam falsas.

Apresenta, também, o argumento do sonho.

Nunca podemos distinguir por sinais completamente seguros o sono da vigília. Por vezes estamos a sonhar quando nos julgamos acordados e, deste
modo, talvez tudo aquilo que pensamos estar a observar não passe de uma ilusão, de um sonho.

Estes dois argumentos sugerem que tudo aquilo que julgamos conhecer através dos sentidos é duvidoso e que, portanto, as nossas crenças empíricas
ou a posteriori não podem servir de fundamento para um conhecimento certo. Mas podemos também colocar em dúvida crenças a priori, como as que
temos na área da matemática, que nos parecem completamente certas, pois alguns homens enganam-se nas demonstrações matemáticas. Descartes
pensa, na verdade, que mesmo uma crença como a de que 2+2=4 não é indubitável. Para mostrar que um céptico poderia colocar em questão as
crenças deste género, Descartes introduz o argumento do génio maligno, o qual também nos permite questionar todas as crenças empíricas, tendo
por isso um alcance mais vasto do que os argumentos anteriores.

O génio maligno é uma espécie de deus enganador - um ser extremamente poderoso e malévolo que está empenhado em fazer-nos viver na ilusão.
Sem que o soubéssemos, este ser poderia controlar os nossos pensamentos e fazer-nos cometer os erros de raciocínio mais elementares. Ora, se
existir um génio maligno, mesmo na matemática seremos induzidos sistematicamente em erro, e tudo aquilo que julgamos existir à nossa volta não
passará de uma ilusão. Descartes não está a dizer-nos que existe um génio maligno - está apenas a dizer-nos que não podemos excluir à partida a
possibilidade de esse ser existir, e que, se ele existir, quase tudo aquilo em que acreditamos será falso. Assim, (parece que) tudo aquilo em que
acreditamos admite alguma dúvida.

A dúvida cartesiana é uma suspensão do juízo, liberta o espírito dos erros que o podem perturbar ao longo do processo de indagação da verdade e
apresenta as seguintes características:

- metódica e provisória: é um meio para atingir a certeza, não constituindo um fim em si mesma (esta última atitude seria típica dos filósofos cépticos);
- hiperbólica: é exagerada, rejeita como se fosse falso tudo aquilo em que se note a mínima suspeita de incerteza;
-universal e radical: incide não só sobre o conhecimento em geral, como também sobre os seus fundamentos, as suas raízes.

É necessário que a razão, num processo marcado pela autonomia, alcance princípios evidentes, universais. A dúvida é um exercício voluntário,
permitindo que a razão se liberte de preconceitos e opiniões erróneas, para que possa construir, com fundamentos sólidos, o edifício do saber.

O cogito

Ainda que quase nenhuma das nossas crenças seja indubitável, Descartes pensa que há algo de que não podemos duvidar. Afinal, se estamos a
colocar as nossas crenças em dúvida, estamos a duvidar, e duvidar é uma forma de pensar. E, se estamos a pensar, então existimos. Cada um de nós
pode então afirmar com toda a segurança:

■ Eu penso, logo existo (cogito ergo sum).

Esta realidade, que Descartes admite no final do processo de colocação do conhecimento em causa, é conhecida por cogito e é uma intuição racional,
que surge clara e distintamente no final de um percurso, apesar do seu enunciado parecer uma dedução. [O problema da intuição é um dos problemas
do conhecimento: o das espécies ou formas de conhecer.] Para Descartes, o cogito constitui o fundamento indubitável do conhecimento, pois nem
mesmo um génio maligno, extremamente poderoso e malévolo, poderia enganar-nos no que respeita à nossa própria existência. Repare-se que o
cogito nos assegura apenas da nossa própria existência enquanto seres pensantes. A existência dos outros e a existência do nosso corpo talvez sejam
ilusões. À partida, cada um de nós pode ter apenas a certeza de que é uma "substância" cuja natureza é pensamento.

O cogito proporciona um ponto de partida seguro para o conhecimento. Mas como haveremos de avançar a partir do cogito? Como poderemos chegar
ao conhecimento do mundo exterior e saber que aquilo que nos rodeia não é uma ilusão?
Descartes começa por sugerir uma explicação para a certeza que o cogito exibe. Estamos absolutamente certos de que o eu penso, logo existo é uma
verdade porque compreendemos com toda a clareza e distinção que para pensar é preciso existir. Descartes admite então a seguinte regra geral:

■ É verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente.

Este é o critério das ideias claras e distintas. Se, como no cogito, temos uma percepção intelectual completamente clara e distinta da ideia considerada,
podemos ter a certeza de estar perante uma ideia verdadeira. Mas ainda não afastámos a hipótese do deus enganador. Necessitamos de demonstrar
a existência de um deus que não nos engane, ou seja, de um deus que traga segurança e seja garantia das verdades, afastando de vez qualquer
ameaça do cepticismo.

A existência de Deus

Apesar de evidente, o cogito não é suficiente para fundamentar o edifício do saber. A certeza penso, logo existo é uma certeza subjectiva. Não se
consegue alcançar uma efectiva fundamentação do conhecimento sem se descobrir o que se encontra na base do pensamento e na origem da
existência do sujeito pensante.

Partamos das ideias que estão presentes no sujeito. Elas possuem um conteúdo que representa alguma coisa. Dessas ideias, umas serão adventícias,
ou seja, têm origem na experiência sensível (por exemplo, as ideias de barco, copo, cão); outras, factícias, fabricadas pela imaginação (por exemplo,
as ideias de centauro, dragão, sereia); por fim, há também ideias inatas: são ideias constitutivas da própria razão (por exemplo, as ideias de
pensamento e de existência, assim como as várias ideias matemáticas). As ideias inatas (já o sabemos) são claras e distintas e podem ser
caracterizadas como as sementes do conhecimento.

Para mostrar a existência de Deus, Descartes apresenta diversos argumentos a priori (isto é, sem premissas empíricas, baseadas na experiência). Um
desses argumentos parte da ideia inata que temos de um ser perfeito e que essa ideia tem a sua origem em Deus. Podemos resumi-lo desta forma:

Como duvido, sei que sou imperfeito. Mas tenho a ideia de um ser muito mais perfeito do que eu. Ora, aquilo que é menos perfeito não pode criar
aquilo que é mais perfeito. Por isso, a minha ideia de um ser mais perfeito do que eu não pode ter sido criada por mim - essa ideia tem de ter sido
colocada em mim por um ser mais perfeito do que eu. Na verdade, esse ser tem de possuir todas as perfeições concebíveis, ou seja, tem de ser Deus.

Outro dos argumentos é uma versão do argumento ontológico. O argumento de Santo Anselmo baseia-se na ideia de que a existência é essencial à
perfeição:

Quando examino a ideia de triângulo, compreendo que os seus três ângulos têm de ser iguais a dois ângulos rectos. Do mesmo modo, quando examino
a ideia de um ser perfeito (ou seja, a ideia de Deus), compreendo que este tem de existir. Afinal, a propriedade de existir é algo que um ser perfeito
não pode deixar de ter: se não existir, não será perfeito, pois faltar-lhe-á essa perfeição.

Estabelecida a existência de Deus, a hipótese do génio maligno pode ser afastada. Como Deus não é malévolo, seguramente não pretende enganar-
nos. Dado que as nossas ideias provêm de Deus, declara Descartes, não podem deixar de ser verdadeiras na medida em que forem claras e distintas.

A existência de Deus proporciona assim uma justificação para o critério das ideias claras e distintas. Sabemos que é verdadeiro tudo aquilo que
concebemos clara e distintamente porque as nossas faculdades de conhecimento foram criadas por Deus, que não é um ser enganador. Assim, se
usarmos bem as nossas faculdades, confiando apenas no que compreendemos clara e distintamente, chegaremos de certeza à verdade e evitaremos
o erro. Relativamente ao erro, importa sublinhar que, se é verdade que na formação de juízos o entendimento tem um papel fundamental, o certo é
que a vontade se torna necessária para darmos o consentimento aos juízos que o entendimento formula. Sendo livre, é ela quem decide dar (ou não)
o assentimento aos juízos. Erramos, por isso, quando se verifica uma precipitação da vontade, quando usamos mal a nossa liberdade e damos o
consentimento a juízos que não são evidentes.

Podemos então estar seguros de que aquilo que nos rodeia não é uma ilusão: o mundo exterior, a substância extensa [res extensa], é real, a razão, a
substância pensante [res cogitans] pode conhecê-lo e Deus, substância divina [res divina], é o garante do conhecimento. Dado que Deus existe,
podemos ter realmente conhecimento, e não estar enganados a respeito daquilo que julgamos saber. Deus é, em Descartes, depois da clareza e da
distinção, o critério de verdade do conhecimento.

O círculo cartesiano

Muitos dos críticos de Descartes rejeitam os seus argumentos a favor da existência de Deus. No que respeita ao primeiro argumento, pode-se contestar,
por exemplo, o princípio segundo o qual aquilo que é menos perfeito não pode causar ou criar algo mais perfeito. No que respeita ao argumento
ontológico, pode-se replicar, por exemplo, que a existência nem sequer é uma propriedade, pelo que não faz sentido afirmar que um ser perfeito tenha
necessariamente a propriedade de existir.

Mas a teoria de Descartes, além das críticas aos argumentos que visam provar que Deus existe, está sujeita a uma crítica especialmente poderosa: a
de que envolve uma falácia de circularidade. Esta suposta falácia, que se tornou conhecida por círculo cartesiano, resulta do facto de Descartes aceitar
aparentemente estas duas afirmações:

1. Deus existe porque concebemos clara e distintamente a sua existência, e tudo aquilo que concebemos clara e distintamente é verdadeiro.

2. Tudo aquilo que concebemos clara e distintamente é verdadeiro porque Deus existe.
Ou seja, Descartes tenta provar que Deus existe mostrando, através dos argumentos acima indicados, que a sua existência é uma ideia clara e distinta.
Mas o que nos garante que as ideias claras e distintas são verdadeiras? Como vimos, Descartes diz-nos que podemos confiar nas ideias claras e
distintas porque Deus é o seu autor. Gera-se assim uma circularidade viciosa: tenta-se justificar a proposição de que Deus existe pressupondo o critério
das ideias claras e distintas, e depois tenta-se justificar este critério apelando à existência de Deus.

Depois de ter usado a dúvida como método, Descartes encontra o cogito e só por um artifício mágico, um Deus sumamente bom, pode voltar a colocar
o mundo e o conhecimento que dele podemos ter na existência. Em última análise, sem este artifício estaria condenado a admitir apenas o cógito como
o único existente (solipsismo), deixando por explicar como existe o pensamento, uma vez que ele é os seus conteúdos. Como foram parar os conteúdos
mentais ao cogito? Não nos podemos esquecer que Deus, por não ter sido provada a sua existência, não os poderia ter lá colocado como ideias inatas.
Descartes, um platónico, deixou um problema filosófico aberto, se recusarmos a solução platónica.

B. Hume (1711-1776) e o empirismo cético

David Hume perseguiu o objectivo de desenvolver uma teoria da natureza humana, por meio da qual pretendia explicar o funcionamento da nossa
mente. A sua epistemologia empirista, que é a parte fundamental dessa teoria, encontra-se essencialmente no Livro I do Tratado da Natureza Humana
(1739) e na Investigação sobre o Entendimento Humano (1748), mas ao contrário de Descartes, defende que o cepticismo não pode ser totalmente
refutado e que as nossas pretensões ao conhecimento devem ser bem mais modestas. Hume escreveu na Investigação sobre o Entendimento Humano
que a dúvida radical e universal, recomendada por Descartes, não permite reconstruir o edifício do conhecimento depois de o destruir. Se duvidarmos
das capacidades racionais, como exige a dúvida cartesiana, deixamos de poder recorrer a ela (ao cogito) para deduzir o que quer que seja. Mesmo
que a dúvida permita chegar ao cogito, impede-nos de saber algo mais do que isso, pois para deduzir algo é preciso confiar naquilo de que se desconfia.
Hume considera que a dúvida, recomendada por Descartes e a defendida pelos cépticos, é impraticável. Não podemos viver como se tudo fosse
duvidoso, a vida para ser vivida exige que se acredite em certas coisas.

Impressões e ideias

Hume fala de percepções para se referir aos conteúdos da nossa mente. De acordo com a sua perspectiva, as impressões e as ideias são as duas
únicas espécies de percepções. Estas diferem de uma forma puramente qualitativa: as impressões são mais vívidas e intensas do que as ideias. As
impressões são sentidas e as ideias são pensadas. As impressões abrangem as nossas sensações externas (visuais, auditivas, tácteis, etc), bem
como os nossos sentimentos internos (emoções, desejos, etc). As ideias são as percepções que constituem o nosso pensamento. Por exemplo, se
estamos a ver um objecto azul, estamos a ter uma impressão de azul, ao passo que se estivermos a imaginar ou a recordar um objecto azul, estamos
a ter uma ideia de azul. A ideia de azul é menos intensa e vívida do que a respectiva impressão. Do mesmo modo, o sentimento de alegria é uma
impressão, mas recordar esse sentimento, reflectir sobre ele ou imaginar o que sente alguém que está alegre é ter uma ideia de alegria, a qual nunca
será tão vívida e intensa como a própria impressão.

Para esclarecer a relação que existe entre impressões e ideias, Hume propõe o princípio da cópia:

■ Todas as ideias são cópias das impressões.


Por outras palavras, todas as ideias têm uma origem empírica. Portanto, não existem ideias inatas, ou seja, não existem ideias que o entendimento ou
intelecto não tenha formado a partir da experiência. Segundo Hume, não há ideias que não sejam precedidas de impressões. A experiência empírica
fornece os materiais a partir dos quais se geram todas as ideias, mesmo as mais elaboradas e abstractas.

Uma das razões que Hume apresenta a favor do princípio da cópia é a seguinte: aqueles que estão privados de certas impressões são incapazes de
formar as ideias correspondentes. Por exemplo, uma pessoa que seja cega de nascença não conseguirá formar a ideia de azul, já que nunca teve
qualquer impressão de azul.

O que dizer das ideias que não correspondem a qualquer impressão que tenhamos tido? Por exemplo, podemos ter a ideia de cavalo azul, mas nunca
ter observado um cavalo azul. Hume sugere que os exemplos deste género, na verdade, apoiam o princípio da cópia. Nunca tivemos uma impressão
de um cavalo azul, mas já observámos cavalos e já observámos objectos azuis, pelo que temos a ideia de cavalo e a ideia de azul. A partir destas
ideias, podemos formar a ideia mais complexa de cavalo azul. Assim, ainda que todas as ideias simples sejam cópias directas de impressões, o
pensamento combina imaginativamente essas ideias de modo a formar ideias mais complexas, que no seu todo muitas vezes não correspondem a
nada que se tenha observado ou sentido alguma vez. Também as ideias simples são mais vividas e intensas do que as ideias complexas. Para Hume,
todas as ideias são imagens mentais, cuja origem reside nas impressões, mesmo as mais complexas.

Relações de ideias e questões de facto


Se todas as ideias têm uma origem empírica, então não há conhecimento a priori do mundo. Todo o conhecimento acerca do mundo é a posteriori.
Hume diz-nos que as relações de ideias e as questões de facto são os dois tipos fundamentais de objectos da razão ou da investigação humana.
Consideremos algumas das proposições que Hume apresenta para esclarecer esta distinção:

• O quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos.

• Três vezes cinco é igual à metade de trinta.

• O sol vai nascer amanhã.

• O calor e a luz são efeitos do fogo.

As duas primeiras proposições desta lista exprimem relações de ideias, ao passo que as duas últimas exprimem questões de facto. O que as distingue?
Hume explica a sua diferença essencial nos seguintes termos:

■ A negação de uma proposição que exprime uma relação de ideias implica uma contradição.

■ A negação de uma proposição que exprime uma questão de facto não implica uma contradição.

Assim, se se disser que três vezes cinco não é igual à metade de trinta, cometer-se-á uma contradição, afirmar-se-á algo que é logicamente impossível.
Porém, se se disser que o sol não irá nascer amanhã, estar-se-á a afirmar algo que é logicamente possível, apesar de parecer muitíssimo improvável.
A ideia de o sol não nascer amanhã não envolve qualquer contradição, já que consegue conceber perfeitamente essa hipotética situação.

Podemos dizer, então, que no domínio das relações de ideias conhecemos verdades necessárias, enquanto no domínio das questões de facto
conhecemos apenas verdades contingentes. Por exemplo, é necessariamente verdadeiro que os triângulos têm três lados, pois é impossível que esta
proposição seja falsa. Mas é apenas contingentemente verdadeiro que existem gatos negros. É verdade que existem gatos negros, mas podiam nunca
ter existido - a ideia de não existirem gatos negros é perfeitamente inteligível.

As proposições da Matemática constituem o melhor exemplo de verdades que captam relações de ideias. Mas como se conhecem estas verdades?
Conhecem-se a priori. Algumas delas são intuitivamente certas e outras descobrem-se por meio de demonstrações. O raciocínio pelo qual se fazem
as demonstrações é dedutivo. Assim, como se parte de premissas consideradas verdadeiras e se raciocina dedutivamente a partir dessas premissas,
chega-se sempre a conclusões que são, também, logicamente verdadeiras.

Contudo, se as proposições que exprimem relações de ideias são verdadeiras, isso é assim apenas porque nada nos dizem sobre aquilo que existe
no mundo. Como Hume observa, mesmo que não existisse na Natureza um único círculo ou triângulo, as proposições da geometria não deixariam de
ser verdadeiras. Assim, o conhecimento a priori é de certo modo vazio; no âmbito das relações de ideias, nada se fica a saber sobre o mundo; descobre-
se, apenas, como relacionar coerentemente as ideias.

Para Hume o conhecimento das questões de facto é completamente diferente. Este conhecimento é a posteriori, ou seja, baseia-se naquilo que estamos
a observar ou a sentir, bem como naquilo que nos recordamos de ter observado ou sentido. Além disso, as proposições que exprimem questões de
facto dizem respeito àquilo que se acredita existir efectivamente no mundo e exprimem verdades contingentes, isto é, podiam ter sido falsas. Se o
conhecimento a priori nada nos diz acerca do mundo, o conhecimento a posteriori diz-nos algo sobre o que se supõe existir fora do pensamento.
Mas as proposições sobre questões de facto não se circunscrevem só ao que observamos ou sentimos, muitas vezes, levam-nos além da
experiência. Por exemplo, se encontramos um relógio numa ilha deserta, inferimos, de imediato, algo que não observámos: que esteve alguém naquela
ilha. Vemos um amontoado de cinzas e inferimos que alguém fez uma fogueira, ainda que não tenhamos presenciado esse acontecimento.

Que género de raciocínio subjaz a estas inferências? Hume salienta que não é o raciocínio dedutivo. Não se pode demonstrar que houve uma fogueira
a partir da premissa que descreve a observação das cinzas, pois é possível que essa premissa seja verdadeira e não tenha havido uma fogueira. O
raciocínio relativo às questões de facto é muito diferente do raciocínio demonstrativo dos matemáticos, tem um carácter indutivo e assenta na relação
de causa e efeito - a relação de causalidade. Quando se observa o relógio ou as cinzas, infere-se que estes são efeitos de causas que não observámos.

Causalidade

Por que é que estabelecemos uma relação entre um efeito e uma causa naquilo que observamos? A resposta de Hume é a seguinte:

■ O conhecimento das relações causais baseia-se na experiência.

Por outras palavras, não podemos descobrir a priori, recorrendo unicamente ao pensamento, que certos objectos ou acontecimentos causam outros
objectos ou acontecimentos. Para justificar esta perspectiva, Hume afirma que os objectos ou os acontecimentos entre os quais se verifica uma relação
causal são completamente distintos. Assim, se não tivermos o auxílio da experiência, nunca poderemos descobrir que efeito terá um certo objecto ou
acontecimento, nem que causa o produziu. Suponha-se que arremessamos uma pedra para um vidro. Se não tivermos qualquer conhecimento empírico
acerca do vidro, seremos incapazes de prever que o arremesso terá o efeito de o quebrar. Do mesmo modo, se não nos basearmos na experiência
passada, não conseguiremos inferir que um monte de cinzas foi causado por uma fogueira. Na verdade, se um ser humano chegasse a este mundo
com uma grande capacidade de raciocínio, mas sem qualquer experiência, não conseguiria fazer inferências causais - seria totalmente incapaz de
descobrir as causas e os efeitos daquilo que estivesse a observar.
O que se está a dizer, então, quando se afirma que existe uma relação causal entre certos objectos ou acontecimentos? Hume dá esta resposta:

■ A causalidade consiste apenas numa conjunção constante entre géneros de acontecimentos ou de objectos observáveis.

Consideremos uma relação causal entre dois acontecimentos ou objectos, A e B. Segundo Hume, dizer que A causa B (ou que B é um efeito de A)
corresponde a afirmar que os acontecimentos ou os objectos do género de A estão constantemente conjugados com os objectos ou acontecimentos
do género de B. Por exemplo, se dissermos que o arremesso da pedra causou a quebra do vidro, isto significa que a arremessos similares se seguem
sempre quebras similares. E a afirmação de que a fogueira causou as cinzas significa que aos acontecimentos similares à fogueira se seguem sempre
cinzas similares. Resumindo, as relações causais consistem em meras regularidades observáveis. Em termos gerais, afirmar que A causa B é dizer
que sempre que ocorre ou existe algo do género de A a seguir ocorre ou existe algo do género de B.

Contra a perspectiva de Hume, pode-se objectar que a causalidade não consiste em simples regularidades empíricas, na mera conjunção repetida de
dois géneros de acontecimentos ou de objectos, pois aquilo que é essencial numa relação causal é a existência de uma conexão necessária entre
causa e efeito. Por outras palavras, pode parecer-nos que a causalidade consiste numa ligação entre dois objectos ou acontecimentos, mediante a
qual um deles (a causa) tem a capacidade de produzir necessária ou inevitavelmente o segundo (o efeito).

Em resposta a esta objecção, Hume procede a uma investigação sobre a ideia de conexão necessária. Se esta é uma ideia genuína, isto é, se a
expressão «conexão necessária» significa alguma coisa, então, pelo princípio da cópia, tem a sua origem nas nossas impressões. A investigação de
Hume condu-lo primeiro a uma conclusão negativa:

■ A ideia de conexão necessária não resulta dos nossos sentidos externos.

Observamos uma causa e a seguir observamos o seu efeito. Vemos assim que a causa e o efeito estão conjugados, mas nunca vemos que estão
conectados, isto é, nunca conseguimos observar qualquer força que faça a causa produzir necessariamente o efeito. Como surge, então, a ideia de
que existe uma ligação necessária entre os dois? A conclusão, afirmativa, de Hume é a seguinte:

■ A ideia de conexão necessária resulta de um sentimento interno adquirido pelo hábito.

Retomemos o exemplo da fogueira e da cinza. Em casos particulares, não conseguimos observar qualquer conexão necessária entre estes dois
objectos. Porém, se virmos repetidamente fogueiras e a seguir amontoados de cinza, acontecerá o seguinte: sempre que estivermos diante de uma
fogueira, o hábito conduzir-nos-á à expectativa de observar um amontoado de cinza depois desta se extinguir. A conexão entre os dois objectos é
então algo que sentimos na nossa mente e é este sentimento que produz a ideia de conexão necessária. Deste modo, a conexão necessária entre
causa e efeito não é exterior à nossa mente, não existe nas próprias coisas; é antes algo que existe na nossa mente e que a nossa mente projecta no
mundo, criando a ilusão de que essa conexão se verifica na realidade. Porém, fora de nós não encontramos mais do que regularidades ou conjunções
constantes entre objectos ou acontecimentos.

Críticas ao ceticismo radical

Hume apresenta-se como um defensor de um cepticismo mitigado ou moderado e distingue a sua posição de duas formas de ceticismo radical: o
cartesiano e o pirrónico.

O ceticismo cartesiano é “radical” e metódico. É radical porque recomenda uma dúvida universal, convidando-nos a questionar todas as nossas crenças
e também a fiabilidade das nossas faculdades mentais. É metódico porque surge como uma preparação para a investigação e não como um resultado
da mesma. Como vimos, Descartes não pretende ficar pelo ceticismo, já que o seu objectivo é suplantá-lo definitivamente. Recorre-se à dúvida para
encontrar um primeiro princípio, que Descartes acaba por identificar com o cogito, capaz de, com a garantia divina, fundamentar todo o conhecimento.

A crítica principal de Hume ao ceticismo cartesiano é a de que este é «incurável». Mesmo que encontrássemos um primeiro princípio, não
conseguiríamos ir além dele se não confiássemos nas nossas faculdades. Ora, como Descartes coloca em questão as nossas faculdades, não pode ir
além do cogito. Sem se confiar na faculdade de raciocinar, é-se incapaz de suplantar o cepticismo, pois não poderá confiar em qualquer raciocínio que
permita derivar alguma conclusão ou conhecimento a partir do cogito. O céptico cartesiano está condenado a saber apenas que ele próprio existe
enquanto pensamento e nada mais.

O ceticismo pirrónico, emblematicamente defendido nas obras de Sexto Empírico (fl. C. 200 d. C), é também radical, mas consequente. É consequente
porque se apresenta como o resultado da investigação, do exame das nossas faculdades e opiniões, e não como um momento preliminar da
investigação. É radical, pois o céptico pirrónico é alguém que apresenta argumentos com o objectivo de derrubar todas as nossas pretensões ao
conhecimento e de nos remeter a uma dúvida universal e permanente. O pirrónico é um céptico na acepção mais pura do termo.

A crítica principal de Hume ao ceticismo pirrónico é a de que este é impraticável. Por muito bons que sejam os argumentos filosóficos que visam pôr
em questão as nossas pretensões ao conhecimento, na prática somos incapazes de levá-los a sério durante a maior parte do tempo. Devido à nossa
natureza, não conseguimos deixar de acreditar, por exemplo, que o mundo exterior é real e uniforme. Certas crenças são tão fundamentais e
importantes para a acção que nem o pirrónico consegue colocá-las realmente em dúvida, excepto nos raros momentos em que se entrega à reflexão
filosófica. Ninguém consegue viver como um céptico pirrónico, pelo que esta forma de cepticismo é destituída de sentido.

Duas conclusões céticas de Hume

Hume é um cético, pois sustenta que a investigação filosófica abala profundamente muitas das nossas pretensões ao conhecimento. Duas das suas
conclusões céticas mais importantes são as seguintes:

1. A crença na uniformidade da Natureza é racionalmente injustificada.

2. A crença na realidade do mundo exterior é racionalmente injustificada

No que respeita à crença 1, importa observar que, segundo Hume, a crença na uniformidade da Natureza subjaz a todas as nossas inferências causais.
Inferimos que as cinzas se seguirão à fogueira, ou que o arremesso da pedra fará o vidro quebrar-se, porque acreditamos que a natureza é uniforme,
isto é, porque acreditamos que o seu curso não se vai alterar de um momento para o outro e que as regularidades observadas no passado continuarão
a verificar-se no futuro. Contudo, Hume sugere que não temos qualquer justificação ou razão para acreditar na uniformidade da Natureza. O seu
argumento a favor desta tese será analisado no ponto 2.2. da unidade IV.

A crença na uniformidade da Natureza não é mais do que um fruto do hábito, de um certo «instinto» que nos leva a esperar que a causas semelhantes
se hão-de seguir efeitos semelhantes, uma vez que a causalidade não pode ser directamente observada nem inferida a partir da razão. Deste modo,
as inferências causais parecem ser injustificadas, já que se baseiam numa crença que não está justificada.

Relativamente à crença 2: a crença na realidade do mundo exterior, sendo o mundo exterior tudo o que não faz parte dos nossos conteúdos mentais,
é a crença de que os objectos que nos rodeiam são reais, isto é, existem independentemente das nossas percepções. As percepções são os nossos
pensamentos, ideias, sentimentos, desejos, percepções, etc. Por exemplo, se acreditamos que uma certa mesa que estamos a observar é real, então
acreditamos que esta continuará a existir quando já não estivermos a percepcioná-la, acreditamos que a sua existência é independente da nossa
mente. O realismo é uma resposta ao problema da natureza do conhecimento e para este o mundo exterior é real, isto é, tem uma existência exterior
à mente.

Mas, mesmo que existam o mundo exterior, que relação existirá entre as nossas percepções e os objectos exteriores? Afinal, não podemos confundir
as primeiras com os segundos. Por exemplo, à medida que nos afastamos de uma mesa as nossas percepções vão mudando, vemo-la cada vez mais
pequena, mas pensamos que a própria mesa permanece igual. Por isso, as nossas percepções da mesa não são a própria mesa.

Hume sugere que o realista tem de encarar as percepções como representações dos objectos exteriores. As nossas percepções da mesa representam
a própria mesa, isto é, são causadas por ela e assemelham-se a ela em alguns aspectos. O realista acredita que as percepções dos sentidos são
causadas por objectos exteriores que, embora sejam semelhantes a elas, existem independentemente da nossa mente.

A questão que agora se coloca é a de saber se temos razões para acreditar na hipótese realista. Afinal, existem outras hipóteses: talvez as nossas
percepções sejam causadas por um génio maligno; talvez, à semelhança das alucinações e das imagens dos sonhos, sejam produzidas
involuntariamente pela nossa própria mente. Descartes resolve rapidamente a hipótese céptica do mudo ser uma ilusão provocada pelo génio maligno,
recorrendo a Deus.

Hume afirma que aceitar esta conclusão é seguir um caminho inesperado e que não podemos encontrar razões que apoiem a hipótese realista e nos
permitam afastar as hipóteses cépticas. Afinal, para descobrirmos que as nossas percepções são causadas por objectos exteriores, teríamos de
encontrar uma conjunção constante entre objectos e percepções, pois, como vimos, para Hume a causalidade corresponde apenas a uma conjunção
constante. Porém, é impossível encontrar essa conjunção entre percepções e objectos exteriores, pois só as percepções nos podem surgir
constantemente conjugadas. Logo, não temos razões para crer que as nossas percepções são um efeito de objectos exteriores. Hume (Investigação
sobre o Entendimento Humano, p.p. 164-5) resume assim este argumento: «nada jamais está presente ao espírito senão as percepções, e ele não tem
maneira conseguir qualquer experiência da conexão destas com os objectos. A hipótese dessa conexão não tem, portanto, qualquer fundamento no
raciocínio.» Não podemos confundir a percepção de um objecto com esse objecto.

No que se refere à existência de Deus, Hume entende que não esteja à partida demonstrada a sua existência, pois tanto podemos conceber a sua
existência como, de igual modo, conceber a sua não existência e qualquer prova baseada no princípio da causalidade terá que ser rejeitada. Deus não
é objecto de qualquer impressão.

Cepticismo mitigado

Os resultados cépticos de Hume são muito fortes. Não podemos ter uma crença justificada na uniformidade da Natureza nem na realidade do mundo
exterior. Um céptico pirrónico extrairia daqui a conclusão radical de que devemos deixar de acreditar que a Natureza é uniforme e que o mundo exterior
é real. Hume recusa-se a extrair esta conclusão e é por isso que o seu cepticismo é mitigado ou moderado.

Segundo Hume, não podemos deixar de acreditar que a Natureza é uniforme e que o mundo exterior é real. Estas crenças fazem parte da natureza
humana e na vida quotidiana nós não conseguimos pensar nem agir na sua ausência. Os argumentos cépticos são impotentes para as destruir. No
entanto, Hume sugere que estes têm uma certa importância prática. Como mostram que as nossas capacidades de conhecimento são muito limitadas,
levam-nos a adoptar as seguintes atitudes:
1. Evitar o dogmatismo no pensamento e na tomada de decisões.
2. Evitar investigações demasiado especulativas e seguir muito de perto o que nos diz a experiência.

O céptico moderado caracteriza-se por ter estas atitudes. Dado que está consciente das limitações do entendimento humano, tem uma mente aberta
ao mesmo tempo que rejeita todas as pretensões ao conhecimento em questões demasiado distantes da experiência. A este propósito, escreve Hume
(Investigações sobre o Entendimento Humano, p. 173): «se nem sequer podemos apresentar uma razão satisfatória para acreditar, depois de mil
experiências, que uma pedra vai cair, ou que um fogo vai queimar, como poderíamos nos dar por satisfeitos quanto a qualquer decisão que viéssemos
a tomar sobre a origem dos mundos e a situação da Natureza, desde o início até ao fim da eternidade».

Análise comparativa das teorias de Descartes e Hume

Tomando como referência os problemas da origem e da possibilidade do conhecimento, concluamos este capítulo com uma breve comparação entre
as teorias gnosiológicas de Descartes e de Hume.

a) A origem do conhecimento

Existe alguma fonte prioritária de conhecimento? Reconhecem-se habitualmente duas fontes principais de conhecimento: a experiência e a razão.
Tanto Descartes como Hume admitem estas fontes de conhecimento, mas atribuem-lhes uma prioridade diferente. É esta divergência que nos leva a
caracterizar o primeiro como um racionalista (razão) e o segundo como um empirista (empiria = experiência).

Segundo Descartes, todo o conhecimento genuíno, infalivelmente justificado, encontra o seu fundamento no pensamento ou na razão. É na intuição
racional do cogito que encontramos a primeira certeza, a partir da qual podemos inferir, de uma forma totalmente a priori, os alicerces de todo o
conhecimento.

Hume, pelo contrário, encontra na experiência a fonte prioritária de conhecimento. Só a experiência nos permite resolver questões de facto. Por si
mesmo, o nosso pensamento consegue apenas estabelecer relações de ideias, as quais nada nos dizem acerca do mundo exterior. Todo o
conhecimento dos factos que constituem o mundo é a posteriori.

b) Os limites ou possibilidade do conhecimento

Será que sabemos realmente aquilo que julgamos saber? Será que a nossa pretensão ao conhecimento é possível? Qual é o valor das representações
que temos das coisas? Este, como vimos, é o problema da possibilidade ou do valor do conhecimento.

Descartes diria que, à partida, as nossas pretensões ao conhecimento não são válidas. Mas validá-las é algo que está ao nosso alcance. Recorrendo
à dúvida metódica como método e seguindo critérios de verdade seguros, acabamos por descobrir o cogito e, depois, por provar que Deus existe. A
existência de Deus garante que as nossas faculdades, devidamente utilizadas, proporcionam conhecimento.

Hume, pelo contrário, sugere que muitas das nossas pretensões ao conhecimento são infundadas. Temos conhecimento das nossas próprias
percepções, mas quando vamos além do testemunho dos sentidos e da memória passamos a apoiar-nos em suposições que não conseguimos
justificar, nomeadamente na suposição de que a natureza é uniforme, a qual subjaz a todas as inferências causais, e na suposição de que o mundo
exterior é real. Como muitas das nossas crenças se apoiam nestas suposições e elas não estão justificadas, podemos inferir que também essas
crenças não estão justificadas e que, portanto, não podem constituir conhecimento.

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