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HISTÓRIA NEGRA
DOS PAPAS
Índice
Introdução ……………………..……………………………………………………………………………………………..
… 5
Capítulo I
O sínodo do cadáver, o domínio das rameiras e outros escândalos do Vaticano……….…………9
Capítulo II
O genocídio dos cátaros………………………………………………………………………………………………………29
Capítulo III
Os horrores da Inquisição…………………………………………………………………………………………………. 50
Capítulo IV
Papas e bruxas……………………………………………………………………………………………………….…………..76
Capítulo V
A depravação dos Bórgias…………………………………………………………………………………………………102
Capítulo VI
Perseguição a Galileu….……………………………………………………………………………………………………128
Capítulo VII
As revoluções e a Igreja……………………………………………………………………………………………………146
Capítulo VIII
O prisioneiro do Vaticano………………………………………………………………………………………………..166
Capítulo IX
O papa e os nazis………………..…………………………………………………………………………….…………….182
Vocabulário do Vat icano………………………..…..…….………………………………………..…….……………203
Introdução
O papa ocupa o cargo eleito mais antigo do mundo. Nos quase dois mil anos da sua
existência, o papado contribuiu para determinar o modo como a história da Europa se
desenrolou, além de ter reflectido o melhor e o pior dessa história. Vários papas
conspiraram, assassinaram, corromperam, roubaram e fornicaram, enquanto outros
cometeram atrocidades tão monstruosas que mesmo os seus contemporâneos se sentiram
chocados com elas.
Tudo isto se aplica sobretudo aos tempos mais negros de uma história já de si negra,
em que a cristandade se tornou refém de um medo histérico da feitiçaria ou de qualquer
desvio do caminho da «verdadeira» religião, tal como ela era determinada pelos papas e
pela Igreja Católica. Alguns dos crimes mais horrendos cometidos em nome da religião –
todos eles com sanção papal – ocorreram durante os cinco séculos, aproximadamente,
que durou o combate feroz com que na Europa se procurou eliminar o «erro»: qualquer
crença, prática ou opinião que se desviasse da linha oficial definida pelo papa.
Os cátaros, por exemplo, uma seita ascética espalhada sobretudo no sudoeste de
França que acreditava que Deus e o Diabo partilhavam o mundo entre eles, foram
eliminados no que pode ser praticamente considerado um genocídio. Foi para lidar com
eles que a Inquisição foi introduzida, em 1231. Os inquisidores recorreram a torturas
terríveis, como o famoso potro ou o esmagador de polegares, para extorquir confissões.
Tudo isto acabou muitas vezes com a morte na fogueira. Tal como os hereges, milhares de
supostas bruxas, feiticeiras, videntes e outros «agentes» do Demónio morreram entre
sofrimentos atrozes.
De forma menos selvagem, a Inquisição atirou-se ao astrónomo do século XVII
Galileu Galilei, censurado por apoiar ideias acerca da estrutura do universo contrárias aos
ensinamentos da Igreja. Galileu estava convencido de que a Terra circulava na órbita do
Sol, enquanto a Igreja ensinava que ela estava no centro do universo. O velho cientista
acabou a sua vida prisioneiro na própria casa e foram precisos 350 anos para a Igreja
admitir que afinal ele é que tinha razão.
Mas no Vaticano houve também aqueles que impuseram a si próprios o
encarceramento: os cinco papas que não reconheceram o reino de Itália e que, durante
quase sessenta anos, se recusaram a cruzar as fronteiras impostas ao Vaticano. Por fim,
em 1929, o papa Pio XI percebeu que o isolamento estava a transformar o papado num
anacronismo e assinou os Tratados de Latrão, que permitiram que a Igreja acertasse o
passo com o mundo moderno.
Dez anos mais tarde, em 1939, os perigos deste mundo moderno foram ao encontro
de outro Pio – o papa Pio XII –, que se viu confrontado pelos antagonistas da Segunda
Guerra Mundial, que procuraram ambos a sanção papal dos seus objectivos. Pio XII não a
deu a nenhum, embora, ao escolher o seu próprio caminho, se tenha tornado um herói e
um salvador para alguns, mas um vilão, ou mesmo um criminoso, para outros.
Capítulo
O cadáver do papa Formoso, já em avançado estado de decomposição,
é sujeito a um julgamento instigado pelo seu sucessor, Estevão VII.
(Bridgeman/ AIO
A DUQUESA ASSASSINA
Estêvão VII foi um destes papas de curta duração, mas proporcionou à casa de
Spoleto, da Itália central, uma amostra do que podia ser o poder papal, embora esta
primeira experiência tenha acabado por não ultrapassar 15 meses, entre 896 e 897.
Estêvão era quase de certeza louco e a sua insanidade parece ter sido do conhecimento
de toda a gente em Roma. Porém, isto não dissuadiu Agiltrude de promover a sua
ascensão ao trono de São Pedro, em Julho de 896. Ao que tudo indica, a duquesa tinha
um plano especial para o papa Estêvão, de que fazia parte vingar-se do seu velho inimigo,
o falecido papa Formoso.
Como acontece com a maior parte, senão com todas as heroínas encantadoras da
história, Agiltrude tinha a reputação de ser uma mulher muito bela, com um corpo
curvilíneo e longo cabelo louro. Verdade ou não, foi sem dúvida uma personagem
formidável, com uma sede desmedida de vingança. Em 894, a duquesa levou Lamberto,
seu filho ainda criança, a Roma para ser confirmado pelo papa Formoso como sacro
imperador romano, ou pelo menos assim o esperava. Descobriu no entanto que aquele
tinha as suas próprias ideias sobre o assunto e preferia outro candidato ao lugar, Arnulfo
de Caríntia, descendente de Carlos Magno, o primeiro sacro imperador romano. O papa
percebeu que Agiltrude não tencionava ver tranquilamente o seu filho ser preterido e,
conhecedor do mau feitio dos Spoleto, percebeu que em breve teria problemas sérios.
Decidiu por isso pedir ajuda a Arnulfo.
Este, por seu lado, também não tinha qualquer intenção de ceder às pretensões de
um miúdo como Lamberto ou de sua mãe, por implacável que ela fosse. Não tardou a
aparecer com o seu exército e a despachar a duquesa para Spoleto. Foi coroado
imperador do Sacro Império Romano-Germânico a 22 de Fevereiro de 896. O novo
imperador enviou imediatamente um grupo em perseguição de Agiltrude, mas antes de este
chegar a Spoleto, Arnulfo foi acometido de uma doença incapacitante, possivelmente uma
apoplexia.
O papa Formoso morreu seis semanas depois, a 4 de Abril de 896, ao que se diz
envenenado por Agiltrude. De acordo com todos os testemunhos que nos chegaram,
tratou-se de um papa admirável, conhecido pela preocupação com os pobres, pela vida
austera, pela castidade e pela oração, tudo virtudes cristãs dignas de admiração,
particularmente notáveis numa época de decadência, em que sobressaíam os interesses
pessoais e os hábitos bárbaros.
Fossem quais fossem as suas virtudes, Formoso não conseguiu escapar inteiramente
à atmosfera envenenada pela violência e pelas intrigas, caraterística da Igreja do seu
tempo. Faziam-se inimigos com a maior das facilidades e aqueles com quem isso acontecia
ficavam expostos ao ódio e à vingança. Também é possível que Formoso tenha sido
demasiado honesto e frontal para o seu próprio bem. Por exemplo, não foi boa ideia opor-
se à eleição do papa João VIII em 872, em especial se tivermos em conta que ele próprio,
Formoso, estava entre os candidatos ao lugar. Foi igualmente má política fazer amigos
entre os inimigos desse papa, que nunca desistiram de conspirar contra ele. Na realidade,
estavam de tal maneira determinados a destruí-lo que chamaram em seu auxílio tropas
sarracenas, inimigas declaradas da cristandade.
Na época de que falamos, os inimigos dos papas desapareciam habitualmente ou
então apareciam sem vida. Os presságios eram fáceis de interpretar e, quando os
conspiradores seus amigos decidiram fugir da corte papal, Formoso acompanhou-os,
atitude que, como é evidente, o denunciou a ele próprio como conspirador. O resultado de
tudo isto foi ter sido acusado de alguns crimes sórdidos, como pilhar os claustros de Roma
e conspirar contra a Santa Sé.
Formoso foi punido de acordo com a gravidade destas acusações. Em 878 foi
excomungado. No entanto, a pena foi revogada em troca de uma declaração segundo a
qual renunciava a regressar a Roma e a voltar a exercer funções sacerdotais. Além disso,
foi-lhe retirada a diocese de Portus, onde fora feito cardeal, em 864.
FORMOSO REABILITADO
O sucessor de Romano, o papa Teodoro II, foi ainda mais desafortunado, mas pelo
menos manteve-se no poder tempo suficiente para fazer justiça a Formoso. Foi Teodoro
que ordenou que o corpo do antecessor fosse sepultado, com vestes pontifícias e com as
homenagens devidas, na Basílica de São Pedro, em Roma. Além disso anulou o sínodo do
cadáver e o veredicto e as decisões do tribunal eclesiástico. Para imenso alívio do clero
prejudicado por Estêvão VII, Teodoro revalidou as nomeações de Formoso para os
cargos. Foi como se o sínodo do cadáver do papa lunático nunca tivesse acontecido.
Infelizmente, esta atitude trouxe poucas ou nenhumas compensações ao papa Teodoro. O
seu pontificado durou apenas vinte dias, em Novembro de 897, depois dos quais morreu
misteriosamente. No ano seguinte, foram proibidos quaisquer julgamentos futuros de
pessoas já mortas, pelo papa João IX, sucessor de Teodoro.
Dez anos mais tarde, Sérgio III, eleito papa em 904, voltou a desenterrar o papa
Formoso e a submetê-lo a julgamento. Sérgio, na altura cardeal, participara no sínodo do
cadáver, em 897, como juiz e ficou furioso quando o veredicto de culpado foi levantado.
Desta vez, Sérgio renovou a condenação e acrescentou alguns toques mórbidos da sua
lavra. Deu ordens de que o cadáver fosse decapitado e mais três dedos cortados e lançou-
o de novo ao rio Tibre. Para sublinhar a sua mensagem, mandou gravar um epitáfio
lisonjeiro no túmulo de Estêvão VII.
Pouco tempo depois destes acontecimentos, o corpo decapitado de Formoso voltou
a emergir, preso na rede de um pescador. Retirado do Tibre uma segunda vez, o antigo
pontífice foi devolvido de novo à Basílica de São Pedro. Com a sua atitude, Sérgio
desobedecera à proibição dos julgamentos póstumos decidida por João IX, por isso as
suas acções não podiam ser consideradas válidas. No entanto, teve de ser feito um
anúncio público da inocência de Formoso e tanto ele como o seu trabalho foram
revalidados uma vez mais.
A grande instigadora do sínodo do cadáver original, Agiltrude, continuava viva quando
Formoso foi exumado pela segunda vez, mas a sua posição – e o seu poder – era
radicalmente diferente, porque, através do comportamento extravagante de Estêvão VII,
triunfara do papa morto em 896. Porém, tinha uma fraqueza. O poder de Agiltrude, embora
considerável, era essencialmente de segunda mão; assentava em marionetas como o papa
Estêvão, que podia ser manipulado de forma a assumir posições conformes aos seus
desejos e a pôr em prática aquilo que lhe convinha. Outro elemento importante do arsenal
de Agiltrude eram as suas relações familiares, asseguradas pelo elevado estatuto do
marido, Guido de Spoleto, e depois dele pelo do filho dos dois, Lamberto. Quando Guido
morreu, a 12 de Dezembro de 894, Agiltrude perdeu a sua posição de duquesa de Spoleto
e Camerino, rainha de Itália e sacra imperatriz romana. A elevação de Lamberto a estas
posições continuaria a trazer-lhe benefícios, mas o filho morreu antes da mãe, em 898, e o
último laço de família da duquesa com o poder quebrou-se.
Agiltrude morreu em 923, altura em que outras duas mulheres já haviam descoberto a
maneira de penetrar nas galerias do poder papal em Roma. Essas mulheres eram Teodora
e a filha Marózia, ambas amantes de papas. Teodora foi descrita como uma «rameira
desavergonhada» e as duas filhas, Marózia e Teodora, mais nova, tinham uma reputação
«que não era muito melhor do que a da mãe».
Nem a Teodora mais velha nem Marózia puseram fim à rotação rápida que se tornara
uma caraterística regular do papado. Quando muito, exacerbaram-na. Nos primeiros anos
do século X, os pontificados curtos, de um ano ou menos, continuaram, bem como as
mortes violentas dos papas, que reflectiam a luta latente pelo poder. Alguns conseguiam
sobreviver um ano ou dois, mas só raramente mais do que isso. De facto, os papas
sucediam-se uns aos outros com tal rapidez que os criados faziam bom negócio com a
venda dos seus móveis e peças de vestuário.
MARÓZIA PRESA
Hugo e Marózia estavam casados há apenas alguns meses quando Alberico reuniu
uma turba em armas, que incitou a avançar sobre o Castel Sant’Angelo, onde o casal se
encontrava. Os dois foram acordados pelos amotinados que se agrupavam à frente da
residência papal. Hugo, receando ser linchado, saltou da cama e fugiu. Apenas de camisa
de noite, escondeu-se num cesto e foi levado pelos criados. Desceu as muralhas da cidade
com a ajuda de uma corda e fugiu, deixando Marózia enfrentar sozinha a fúria do filho. A
vingança de Alberico foi verdadeiramente terrível. Encarcerou a mãe na masmorra mais
profunda do Castel Sant’Angelo e é provável que depois disso ela não tenha voltado a ver
a luz do dia. Tinha então 42 anos e era ainda uma mulher de grande beleza, mas foi
condenada a passar os 54 anos seguintes a apodrecer, até que morreu, com uma idade
muito avançada.
Entretanto Alberico prendeu o meio-irmão bastardo, o papa João XI, enquanto ele
próprio consolidava o seu poder. Depois de sentir que o domínio sobre Roma estava
firmemente estabelecido, Alberico tirou João da prisão, embora sem a menor intenção de o
libertar. Em vez disso, prendeu-o na Basílica de São João de Latrão. Foram-lhe retirados
praticamente todos os poderes pontifícios, ficando apenas com o de administrar os
sacramentos. Não era uma experiência nova para o papa João. Tudo o que aconteceu foi
que passou do domínio de Marózia para o de Alberico, que exercia de facto o poder
secular e eclesiástico em Roma.
João suportou a obediência ao meio-irmão durante quatro anos, até que morreu, em
935, deixando Alberico no papel de fazedor de papas que em tempos pertencera à avó e à
mãe. Ao longo dos 22 anos seguintes, até que morreu, com 43 anos, em 954, Alberico
nomeou quatro papas. No seu leito de morte, ainda nomeou o próprio filho ilegítimo,
Octaviano, então com 16 anos, para lhes suceder. Tomou o nome de João Xll e foi uma
verdadeira catástrofe enquanto pontífice.
O papa João Xll era de tal maneira dissoluto que se diz que chegaram a ser rezadas
orações pela sua morte em muitos mosteiros. Parece não ter havido pecado que João Xll
não fosse capaz de cometer. Tinha um bordel na Basílica de São João de Latrão, dirigido
por uma das suas amantes, Márcia. Dormiu com a amante do pai e com a própria mãe.
Ofereceu cibórios de ouro da Basílica de São Pedro às amantes para as recompensar por
noites de paixão. Cegou um cardeal e castrou outro, provocando a sua morte. Os
peregrinos que se dirigiam a Roma corriam o risco de perder as oferendas que faziam à
Igreja porque muitas vezes o papa preferia usá-las para apostar nas noites de jogo.
Nessas ocasiões, invocava muitas vezes deuses e deusas pagãs para que lhe dessem
sorte aos dados. As mulheres tinham medo de se aventurar para os lados de São João de
Latrão ou para qualquer outra vizinhança da cidade frequentada pelo papa, sempre de olho
em novas presas. Ao fim de pouco tempo o povo de Roma ficou de tal maneira exasperado
com o comportamento de João Xll que o papa começou a temer pela sua vida. O melhor
que conseguiu congeminar foi deitar a mão a tudo o que apanhou na Basílica de São
Pedro e fugir para Tivoli, a 27 quilómetros da cidade.
João XII estava a prejudicar de tal maneira o papado, ainda em recuperação dos
crimes e dos pecados dos seus antecessores, que foi convocado um sínodo especial para
lidar com o seu caso. Todos os hispo-italianos e 16 cardeais e outros clérigos (alguns
alemães) reuniram-se para decidir o que fazer com o jovem desagradável que se tornara
seu pontífice. Convocaram testemunhas, ouviram-nas sob juramento e por fim puseram-se
de acordo quanto a uma lista que juntava vários crimes a um longo catálogo já de si
sinistro. Alguns foram enumerados numa missiva enviada a João pelo sacro imperador
romano Otão I da Saxónia.
Todos, tanto clérigos como leigos, vos acusam, Vossa Santidade,
de homicídio, perjúrio, sacrilégio, incesto com os vossos familiares,
incluindo duas das vossas irmãs, e de invocar, como um pagão,
Júpiter, Vénus e outros demónios.
O papa João, que continuava exilado em Tivoli, respondeu a Otão em termos tão
malévolos que Roma estremeceu de medo. Se o sínodo o depusesse, ameaçava João,
excomungaria todos os responsáveis, impedindo-os de celebrar missa ou de ordenar
sacerdotes. Em termos cristãos, esta era a pena mais pesada que um papa podia
determinar. Ser excomungado era ser expulso da Igreja e perder toda a protecção. Além
disso, era a própria alma imortal que ficava em perigo.
A MORTE DE MARÓZIA
Com isto a Igreja ainda não tinha ajustado contas com a família das meretrizes que
esteve por trás de nove dos papas mais pecadores da história. Em 986, decorridos 22
anos após a morte dramática de João XII, o bispo Crescêncio deslocou-se ao Castel
Sant’Angelo para ver Marózia, na altura com 96 anos. A beleza deslumbrante de Marózia
desvanecera-se e a sua dona era então um saco de pele e ossos vestido de farrapos. O
papa João XV, recentemente eleito, decidira compadecer-se dela, embora a sua
misericórdia tivesse assumido uma forma que apenas uma mente medieval teria
reconhecido como tal.
Crescêncio enumerou várias queixas contra Marózia, incluindo a conspiração contra
os direitos do papado, o envolvimento ilícito com o papa Sérgio III, o modo de vida imoral
e a «conjura» para dominar o mundo. Marózia foi ainda comparada com Jezabel, a arquivilã
da Bíblia, que também «ousou tomar um terceiro marido».
A crença de que a maldade humana podia ser causada pela possessão demoníaca era
comum na Alta Idade Média, de maneira que, só para prevenir a possibilidade de Marózia
estar endemoninhada, foi exorcizada. Pouco depois de absolvida dos seus pecados,
preparada para enfrentar o seu Criador, morreu. Um executor entrou na sua célula e
sufocou-a com uma almofada, «para o seu bem-estar», foi dito, «para o bem da Santa
Igreja e a paz do povo de Roma».
Capítulo
II
Cercados em Carcassonne, os hereges cátaros procuram resistir
às forças papais, sem grande sucesso. Seriam expulsos
da cidade apenas com a roupa que levavam no corpo.
DIFICULDADES LOCAIS
Henrique talvez, se tenha convencido de que encontrara uma solução simples e de
aplicação imediata, mas depressa percebeu que a sua tarefa era muito mais complexa do
que imaginara. Os cátaros eram tidos em grande conta no Languedoc e nem o povo nem
os nobres que o governavam ou os bispos residentes ficaram contentes com a
interferência de estranhos. Assim, o primeiro alvo de Henrique tornou--se o círculo de
apoio dos cátaros. No primeiro lugar da lista vinha Roger II de Trencavel, visconde de
Carcassonne, que prendera Guilherme, bispo de Albi, em 1175, por causa de uma disputa
relativa ao senhorio de Albi e, com ele, o domínio de toda a região.
Henrique apressou-se a acusar Roger de heresia e a excomungá-lo. Isto bastou para
persuadir o visconde a libertar o bispo de Albi, mas a questão não ficou por ali. Em 1179,
Roger desencadeou a fúria de Pons d’Arsac, arcebispo de Narbonne, que fizera parte da
legação de Henrique de Marcy, no ano anterior. O arcebispo acusou Roger de não mostrar
entusiasmo suficiente na luta contra a heresia e voltou a excomungá-lo.
Dois anos mais tarde, em 1181, Henrique de Marcy voltou ao Languedoc. Desta vez
ia preparado para atacar o castelo de Lavaur, embora não tenha precisado de combater
para alcançar o seu objectivo, porque a mulher de Roger II, Adelaide, rendeu--se sem
hesitar. Henrique recebeu o bónus de capturar dois perfeitos, os «padres» ascetas da fé
cátara, que faziam votos de pobreza, castidade e celibato.
No entanto, apesar do seu empenho, o êxito de Henrique foi limitado. Os cátaros
estavam a mostrar-se um osso duro de roer, indiferentes a qualquer esforço da Igreja para
os reconduzir ao redil. Em 1204, Inocêncio III, que fora eleito papa em 1198, tinha tal
receio deles que suspeitava que vários bispos de dioceses do Sul de França colaboravam
com a seita. Os bispos suspeitos foram substituídos por defensores da Igreja estabelecida
de maior confiança, incluindo o padre espanhol Domingos de Gusmão (o futuro São
Domingos). Domingos lançou uma campanha de conversão de grande rigor no Languedoc,
mas apesar do seu zelo indiscutível pouco conseguiu. As escassas conversões que
alcançou não foram um resultado muito impressionante para tanto esforço, que incluiu
vários debates muito renhidos entre cátaros e católicos em várias vilas e cidades. Mesmo
assim, os valores básicos dos cátaros mantiveram-se. Por fim, Domingos de Gusmão
percebeu porquê: apenas os católicos que se comparassem com os cátaros pela
santidade, pela humildade e pelo ascetismo conseguiriam mudar as suas ideias acerca da
fé.
«ANTES AFOGAR-NOS»
O exército dos cruzados chegou ao seu primeiro destino, Béziers, uma cidade bem
fortificada junto ao rio Orb, no sudoeste de França, no fim de Julho de 1209. Os
habitantes mostraram-se desafiadores. Nem cátaros nem católicos tinham qualquer
intenção de ceder às exigências dos cruzados. Quando o bispo de Béziers apresentou aos
burgueses da cidade uma lista de 222 perfeitos que teriam de ser entregues
imediatamente, ameaçou que se as suas exigências não fossem satisfeitas seria montado
cerco à cidade no dia seguinte. Os burgueses não pareceram perturbados. Recusaram-se a
entregar cátaros, perfeitos ou quem quer que fosse, e, de acordo com um cronista, teriam
dito ao bispo: «Antes queríamos afogar-nos em água salgada.»
Depois de ouvir esta resposta, o bispo voltou a montar na sua mula e regressou ao
acampamento dos cruzados, a um dia de marcha da cidade. No dia seguinte, 22 de Julho,
deparou-se aos habitantes de Béziers uma visão assustadora. Os cruzados tinham
levantado o acampamento onde se encontravam e durante a noite tinham montado cerco à
cidade. Até onde a vista alcançava, tudo era tendas, cavalos, fogueiras, flâmulas e
pendões, além dos elegantes pavilhões dos senhores da cruzada e das suas máquinas de
guerra.
De súbito, um cruzado isolado surgiu na ponte que atravessava o rio Orb do lado sul
das muralhas de Béziers e pôs-se a insultar as pessoas que o espreitavam do alto das
muralhas. Um grupo de homens jovens, ansiosos por combater, pegou em lanças, chuços
e outras armas improvisadas que tinham à mão, abriu as portas da cidade e desceu a
colina até ao rio. Antes que pudesse fugir, o cruzado foi agarrado, atirado ao chão e
vigorosamente espancado. Por fim, foi atirado à água lamacenta do Orb.
Contudo, na ânsia de se apoderarem do cavaleiro, os jovens de Béziers cometeram o
pior erro possível e deixaram abertas as portas das muralhas. Era um convite irresistível
para os cruzados, que carregaram pela ponte e invadiram as ruas estreitas de Béziers.
Apanhados de surpresa, os defensores da cidade recuaram, talvez com a intenção de se
afastarem o suficiente dos atacantes para se reagruparem e voltarem a atacar. Contudo, já
não tiveram oportunidade de o fazer.
O exército de Amaury foi arrastado por aquilo a que os vikings da Escandinávia
chamavam berserker (loucura da batalha) e esventraram todos os que encontraram ao
alcance das suas espadas. Entraram numa igreja onde se fazia uma vigília e, entre gritos
de sofrimento e terror, abriram caminho a esfaquear e a matar todos os que viam, até que
não restou senão um amontoado de cadáveres nas naves laterais. A seguir dirigiram-se à
Igreja de Santa Maria Madalena e mataram todos os homens, mulheres e crianças –
cátaros e católicos – que se abrigavam no seu interior. Em poucos minutos morreram
cerca de mil pessoas nessa igreja. A cobrir a cena da matança restou apenas um manto
denso de silêncio. Cerca de setecentos anos mais tarde, em 1840, a igreja foi renovada e
os seus ossos foram descobertos debaixo do chão. Eram esqueletos de centenas de
pessoas, amontoados em desordem.
Acabou por não haver sobreviventes. Depois de terem matado todos os habitantes,
os cruzados de Amaury prepararam-se para saquear a cidade e pilhar as casas
desocupadas. Béziers era uma cidade rica, com muitos bens valiosos de todos os tipos. Os
cavaleiros franceses integrados no exército de Amaury estavam convencidos de que lhes
seria dada prioridade no saque, mas, para sua imensa fúria, os servos e os mercenários
chegaram antes deles. O cronista Guilherme de Tudela conta o que se passou a seguir:
Os servos tinham-se instalado nas casas que tinham capturado,
todas elas cheias de riquezas e tesouros, quando os senhores
franceses descobriram e ficaram loucos de raiva e os expulsaram
com paus como a cães.
Mas as coisas não ficaram por aqui e, antes que os cavaleiros conseguissem deitar a
mão a quaisquer riquezas, conta Guilherme de Tudela:
Aqueles miseráveis nojentos e malcheirosos puseram-se todos a
gritar: «Queimem tudo! Queimem tudo!» E ergueram tochas
imensas a arder e deitaram fogo à cidade como se se tratasse de
uma pira funerária.
A DESTRUIÇÃO DE BÉZIERS
As construções de Béziers eram quase todas de madeira. Arderam facilmente e as
chamas consumiram quarteirão após quarteirão. Em pouco tempo, tudo o que restou foi
um inferno de morte e destruição. Para sua raiva e horror, os cavaleiros franceses viram
os tesouros a que queriam deitar a mão arder ou então derreter-se perante os seus olhos.
Diz-se que a Catedral de Saint-Nazaire, construída uns oitenta anos antes, se «abriu a
meio, como uma romã», no meio do incêndio, antes de se desmoronar por completo. Os
que aí se tinham refugiado morreram queimados. Mais tarde a cidade acabou por ser
reconstruída, mas os estragos eram de tal ordem que foram precisos duzentos anos para
completar as obras.
O massacre que teve lugar na cidade de Béziers não foi espontâneo. Foi
meticulosamente preparado em 1208, ainda antes do início da cruzada albigense, quando
Arnaud Amaury, um advogado chamado Milo (que era o notário apostólico de São João de
Latrão) e ainda 12 cardeais se deslocaram a Roma para discutir com o papa como devia
desenrolar-se a cruzada. O plano que elaboraram entre todos era inspirado na estratégia
adoptada pelos cruzados na Terra Santa durante a primeira cruzada, que tivera lugar
pouco mais de cem anos antes, em 1096. Os planos do massacre de Béziers estão
explicados num manuscrito intitulado Canso d’Antioca, que se pensa ter sido escrito por um
cruzado, Gregório Bechada, por volta de 1106 a 1118. Descrevendo o exército do século
XI que era o modelo dos cruzados albigenses, Bechada escreve:
Os senhores de França e de Paris, leigos e clérigos, príncipes e
marqueses, concordam todos eles que em qualquer forte atacado
pelo exército, em qualquer guarnição que se recusasse a render-
se, todos deviam ser massacrados depois de a praça-forte ser
tomada pela força. Nesse momento deixariam de encontrar
qualquer resistência, de tal maneira os homens ficariam aterrados
com o que já acontecera.
Antes da matança, foi dada aos católicos a possibilidade de saírem da cidade e de
escaparem à punição que recairia sobre os cátaros. A maior parte recusou e decidiu
permanecer e partilhar o destino dos concidadãos que não podiam partir, fosse ele qual
fosse. Isto deixou os cruzados perante uma dificuldade. Como poderiam distinguir os
católicos dos cátaros? Diz-se que o bispo Amaury terá ordenado: «Matem-nos a todos!
Deus reconhecerá os Seus.» A sua ordem foi obedecida até à última gota de sangue.
Amaury ficou de tal maneira encantado com o seu bom dia de trabalho que escreveu ao
papa Inocêncio:
As nossas forças não pouparam classes nem sexos ou idades.
Cerca de vinte mil pessoas perderam a vida na ponta da espada. A
destruição do inimigo fez-se numa enorme escala. Toda a cidade
foi saqueada e incendiada. Foi deste modo que a vingança divina
mostrou a sua força.
A notícia das atrocidades de Béziers depressa se espalhou pelo Languedoc e pelo
resto de França. Os senhores e outros proprietários cujos domínios pudessem vir a ser
alvo da raiva de Amaury começaram a repensar as suas lealdades. Um após outro,
deslocaram-se ao acampamento onde os cruzados permaneceram três dias depois do
festim de Béziers, para prestar vassalagem a Amaury e garantir-lhe o seu apoio.
No entanto, um dos senhores mais poderosos da região, Raimundo Roger III de
Trencavel, visconde de Carcassonne, Béziers, Razès e Albi, escolheu uma abordagem
diferente. Raimundo Roger era filho do renegado Roger II de Carcassonne e sobrinho do
esquivo Raimundo VI, conde de Toulouse, mas era mais astuto do que qualquer deles.
Quando Raimundo VI sugeriu que se unissem para enfrentar Amaury e os seus cruzados,
Raimundo Roger, conhecedor da falta de carácter do tio, recusou a proposta. Não podia
correr o risco de, quando as coisas ficassem feias, Raimundo VI recorrer ao seu habitual
plano B, que era esquecer qualquer acordo prévio e submeter-se docilmente ao inimigo.
Se isso acontecesse, Raimundo Roger III tinha demasiado a perder. Para começar,
poderia ficar pessoalmente em risco e até ser obrigado a prescindir dos seus domínios
devido à sua atitude flexível e tolerante com a sociedade multicultural a que presidia.
Consorciar-se com hereges, a forma como os fanáticos da época descreveriam a sua
atitude tolerante, seria tão mau como ser de facto herege, senão pior.
A DIPLOMACIA FRACASSA
Embora Raimundo Roger não fosse cátaro, um grande número dos seus súbditos
pertencia à seita. No seu território também havia uma comunidade de judeus que há muito
administrava Béziers, a sua segunda cidade, a seguir a Carcassonne. Também em
Carcassonne havia uma comunidade judaica importante, que podia estar igualmente em
perigo. O exército de Amaury tê-los-ia sem dúvida matado, já que o massacre de Béziers
constituíra uma indicação horrenda do ponto a que os cruzados estavam dispostos a ir
para mostrar o seu zelo religioso. Por esta razão, Raimundo Roger tomou a precaução de
fazer os judeus saírem da cidade antes da chegada dos cruzados.
Já deslocar toda a comunidade de cátaros, muito maior do que a dos judeus, não era
tão fácil. Por causa deles, bem como por si mesmo, Raimundo Roger começou por
recorrer à diplomacia. Procurou chegar a um acordo com a promessa de perseguir os
cátaros e quaisquer outros hereges no seu território. Terá sido sincero? Seria realmente
sua intenção fazê-lo? Provavelmente não, mas é possível que tenha aprendido com o pai a
importância de dissimular para adiar acontecimentos desagradáveis. Seja como for, as
suas intenções nunca chegaram a ser postas à prova, visto que não houve acordo. Amaury
nem sequer concedeu a Raimundo uma audiência para discutir o assunto. É provável,
contudo, que o chefe dos cruzados tenha percebido que, se assegurasse a segurança de
Carcassonne e das outras cidades de Raimundo Roger, ficaria sem nada para entregar à
avidez de pilhagem dos cruzados.
OS PREPARATIVOS DA GUERRA
O cinismo da resposta de Amaury fez soar o alarme. Raimundo Roger apressou-se a
regressar a Carcassonne e iniciou os preparativos para a guerra. Pôs em prática uma
política de terra queimada, que impedisse os invasores de viverem dos produtos da terra,
como se fazia muito na Idade Média. Deu ordens de que as colheitas e as vinhas fossem
destruídas, os moinhos de vento e as quintas incendiados e o gado morto ou conduzido a
Carcassonne, onde poderia ser protegido pelas imensas muralhas da cidade. Feito isto, as
tropas de Raimundo começaram a organizar a defesa. As armas foram preparadas e a
vigilância montada. O exército de Amaury ficou à vista da cidade a 1 de Agosto, dez dias
depois do massacre de Béziers. Os atacantes depressa perceberam que conquistar a
cidade, com as suas poderosas muralhas e os seus defensores determinados, não seria
fácil. Não havia portas abertas nem pontos fracos. Na realidade, Amaury nem sequer
permitiu que as suas forças montassem o acampamento muito perto das muralhas, não
fossem ficar ao alcance dos temíveis archeiros de Carcassonne. Os cavaleiros montaram
por isso as suas tendas a uma certa distância. A mesma precaução tiveram os soldados,
que acenderam as suas fogueiras e escolheram para dormir lugares fora do alcance dos
archeiros e das armas que lhes estavam apontadas do alto das muralhas.
Os defensores de Carcassonne mostraram-se à altura, mas a verdade é que a
diferença em número de homens era demasiado grande. Em material bélico também
ficavam a perder, já que Amaury dispunha de várias máquinas de guerra próprias para
cercos e muito mais archeiros – a artilharia da Idade Média – do que Raimundo Roger
alguma vez poderia reunir contra ele. O dia seguinte ao da chegada dos cruzados, 2 de
Agosto, foi um domingo, dia em que o papa proibira que se fizesse guerra. As forças de
Amaury tiveram de esperar pela segunda-feira, mas mal rompeu a madrugada atacaram
com os aríetes, apoiaram as escadas às muralhas e os seus soldados, bem armados,
lançaram uma chuva de flechas para o interior da cidade, onde tanto podiam acertar nos
defensores como em qualquer habitante.
0 ATAQUE A CARCASSONNE
O lugar que os cruzados escolheram para atacar foi Bourg, um dos dois bairros da
cidade que ficavam fora das grandes muralhas, embora fortificados. Bourg era o que
estava menos bem protegido e defendido e depois de duas horas de duros combates os
cruzados conseguiram abrir caminho e dispersar soldados e habitantes. Enquanto estes
corriam para a cidade propriamente dita para se refugiarem por detrás das muralhas, os
archeiros ficaram para trás a atirar saraivada atrás de saraivada de flechas e azeite a ferver
sobre os atacantes, mas nada conseguiram. Uma massa de cruzados penetrou em Bourg,
mas dessa vez o seu objectivo mão era a chacina. O que queriam era apoderar-se dos
poços de água junto do rio Aude. Não tardaram a consegui-lo. Ficaram ainda com o
domínio da zona a norte das muralhas.
A perda dos poços foi um golpe rude para a defesa da cidade, mas o povo de
Carcassonne continuou a combater. A 7 de Agosto, quando os atacantes procuraram
apoderar-se de Castellar, o bairro a sul da cidade, foram recebidos com pedras, flechas e
outros projécteis, que os obrigaram a procurar protecção entre as árvores que havia nas
proximidades. Tornou-se claro para os cruzados que dessa vez teriam de recorrer aos
trabucos, às balistas e às catapultas – máquinas de guerra verdadeiramente formidáveis.
Com este equipamento, fizeram cair sobre a cidade uma saraivada de pedras, calhaus,
trapos em fogo e tudo o mais a que conseguiram deitar a mão para usar como projécteis.
Quem andasse a céu aberto sujeitava-se a ser ferido ou morto.
VINGAR BÉZIERS
As muralhas acabaram por ceder e os cruzados entraram como enxames através de
Castellar e a maior parte dos defensores da cidade morreu na luta feroz que se seguiu. Os
cavaleiros deixaram uma pequena guarnição em Castellar e retiraram-se para o
acampamento. A vingança parecia-lhes ao alcance das espadas. Mas entretanto chegaram
vários senhores cujas propriedades ficavam nas terras altas dos Pirenéus, em volta do rio
Ande, que apoiavam Raimundo Roger. Estes homens, ao contrários dos seus compatriotas
mais prudentes das planícies, eram daqueles que preferiam morrer a lutar do que render-se
ao inimigo e, com Raimundo Roger à cabeça, carregaram sobre a guarnição e chacinaram
até ao último homem. Béziers, talvez tenham pensado, fora vingada.
No entanto, esta acção relâmpago deve ter sido observada do campo inimigo e
subitamente uma imensa hoste de cavaleiros armados, muito mais numerosa do que a de
Raimundo Roger, carregou sobre eles. Os homens do visconde bateram rapidamente em
retirada para Carcassonne e as portas da cidade cerraram-se atrás deles. A cidade em si
continuava segura, mas no interior das suas muralhas um drama terrível prosseguia. A falta
de água que resultara da perda dos poços estava a causar a contaminação da pouca que
restava nas cisternas da cidade. No meio do calor terrível do mês de Agosto, jovens e
velhos morriam. A doença e as febres espalharam-se e uma nuvem de moscas começou a
cobrir os corpos dos mortos, que apodreciam nas ruas sem sepultura.
O FIM DE CARCASSONNE
A situação era insustentável. Em meados de Agosto, duas semanas depois de Amaury
ter montado cerco à cidade, chegou um emissário dos cruzados. A sua mensagem era
simples: rendição imediata ou um fim igual ao de Béziers. Raimundo Roger soube
reconhecer que o fim era chegado. Concordou parlamentar e, mediante um salvo-conduto,
cavalgou até ao campo inimigo para discutir com o conde de Nevers, Hervé de Donzy.
Nem a sua família nem os seus homens voltaram a ver Raimundo Roger, visconde de
Trencavel.
Nunca se soube o que aconteceu na privacidade da tenda de Hervé de Donzy. Nem
os cronistas da época, em geral ávidos de pormenores suculentos, revelam o que quer que
seja. Os únicos factos conhecidos são que, para seu imenso alívio e também espanto, os
habitantes de Carcassonne – cátaros, católicos e judeus, sem distinção – foram
autorizados a partir, embora tenham sido obrigados a deixar para trás todos os seus
pertences excepto a roupa que levavam vestida. Antes de partir passaram um a um através
de uma porta sob o olhar atento de guardas que procuravam qualquer sinal de que
estivessem a tentar levar consigo algum dos seus bens.
«Nem sequer o valor de um botão lhes foi permitido que levassem com eles», deixou
registado um cronista. Ou, nas palavras de um outro cronista, os habitantes de
Carcassonne «não levaram com eles nada a não ser os seus pecados». O modo preciso
como Raimundo Roger conseguiu obter a liberdade para o seu povo em Carcassonne
continua um mistério até hoje, embora já tenha sido sugerido que a verdadeira finalidade
do ataque à cidade não foi a destruição dos cátaros, mas a eliminação do perigoso
visconde, um homem que o espírito tolerante levava a preferir consorciar-se com hereges
a seguir a «verdadeira» fé de Cristo. Seja como for, assim que a cidade ficou deserta e os
seus habitantes, agora indigentes, partiram, Raimundo regressou acorrentado ao seu
próprio castelo, o castelo condal, e foi acorrentado à parede de uma masmorra. A 10 de
Novembro de 1209, treze semanas mais tarde, foi encontrado morto. Tinha 24 anos.
Raimundo Roger deixou um filho de cinco anos, Raimundo Roger IV, mas apesar das
suas muitas tentativas, os seus herdeiros nunca recuperaram o património familiar. Pelo
contrário, os domínios de Trencavel passaram para Simão de Monfort IV, pai do mais
famoso barão do mesmo nome, que se tornou o sexto conde de Leicester e foi um dos
promotores do poder parlamentar em Inglaterra, ainda no século XIII. A 15 de Agosto de
1209, o Monfort mais velho foi feito visconde de Béziers, Carcassonne e de todos os
outros domínios em tempos pertencentes à família Trencavel.
SIMÃO DE MONFORT IV
Mais tarde, Monfort, que sucedeu a Amaury como chefe militar da cruzada, atribuiu a
morte de Raimundo Roger à disenteria e acrescentou ainda uma vaga menção ao «castigo
divino» por ter protegido e apoiado os hereges cátaros. A ideia de um castigo directo de
Deus pelos pecados era sedutora para as mentes medievais, por mostrar o envolvimento
divino nos negócios humanos. Mesmo assim, muitos foram os que no Languedoc não
ficaram convencidos e desconfiaram de uma jogada mais sinistra. Nisso não estavam sós,
embora tenham passado seis anos até que alguém se atrevesse a mencionar essa suspeita
em público, no quarto Concílio de Latrão, em 1215. Tratou-se de uma ocasião importante,
já que foi o próprio papa, Inocêncio III, que o convocou. Inocêncio estava presente quando
Raimundo de Roquefeuil, um dos senhores que foram convocados, acusou directamente
Simão de Montfort de assassínio. Roquefeuil foi mais longe e envolveu o próprio papa.
Disse a Inocêncio III:
Depois de os cruzados terem matado o pai e deserdado o filho,
pensais vós, senhor, dar-lhe o seu feudo e manter a dignidade? E
se recusardes dar-lho, que Deus vos faça a graça de acrescentar o
peso dos seus pecados à vossa própria alma!
Poucos se atreveriam a lançar estas palavras desafiadoras a um papa, mas ao que
parece Inocêncio ter-se-á limitado a responder: «O assunto será tratado.» A acusação de
crime não era novidade para o papa Inocêncio, que já dissera a Arnaud Amaury em 1213
que Raimundo Roger fora «vilmente assassinado». Apesar disso, nada foi feito para
devolver os domínios a Raimundo Roger IV e à família Trencavel.
Depois da queda de Carcassonne, a 15 de Agosto de 1209, a cidade, silenciosa e
deserta, foi saqueada e despojada de todas as riquezas. Quando a sórdida tarefa ficou
completa, Amaury e os seus cruzados voltaram para casa, com verdadeiras fortunas em
ouro, prata, joias e outras riquezas de tal valor que o mais pobre entre eles ficou com o
suficiente para viver até ao fim dos seus dias. As poucas semanas que passaram no
Languedoc, pontuadas pela atrocidade e pela pilhagem e manchadas de sangue inocente,
são há muito consideradas um dos episódios mais sórdidos da história do papado e do
cristianismo. No entanto, apesar de terem atingido profundamente os cátaros, que foram
mortos aos milhares, e de terem criado uma vaga de refugiados que foi aumentar a
população de outras cidades do Languedoc, os cruzados não conseguiram destruí-los nem
enfraquecer a sua fé. Também não conseguiram converter cátaros ao catolicismo em
número suficiente para poderem vangloriar-se de um triunfo decisivo sobre a heresia.
O FIM DA CRUZADA
A queda dos cátaros não foi determinada apenas pela acção militar, como Arnaud
Amaury provavelmente queria, ou pela conversão generalizada, como o papa Ino- cêncio
provavelmente esperou. A guerra dos cátaros, como a cruzada albigense também foi
designada, arrastou-se por mais 16 anos e sobreviveu a alguns dos seus protagonistas. O
papa Inocêncio morreu em 1216. Simão de Monfort foi morto em 1218, por uma pedra
lançada por uma catapulta que lhe acertou na cabeça durante o cerco de Toulouse. Arnaud
Amaury morreu em 1225.
Quatro anos mais tarde, a cruzada albigense chegou ao fim, com a derrota de
Raimundo VII de Toulouse, filho de Raimundo VI, pelos franceses. Calcula-se que durante
os vinte anos que durou, cerca de um milhão de pessoas tenham sido mortas em
repetições do horror de Béziers e de Carcassonne. Com o Tratado de Paris assinado a 12
de Abril de 1229, Raimundo VII cedeu os seus castelos e os seus domínios, que por essa
época incluíam o Languedoc, ao rei francês, Luís IX. Pode considerar-se que se tratou de
um triunfo póstumo do avô de Luís, o hábil e traiçoeiro Filipe II, que entrou já tarde na
guerra (em 1215), mas 14 anos depois acabou por ser o grande triunfador, postumamente.
Com isto, os domínios de Raimundo ficaram muito reduzidos, com a cidade de Toulouse
como única possessão de monta.
Mas isto não é tudo. No dia da assinatura do tratado, Raimundo foi sujeito à maior
das humilhações. O início da cruzada, vinte anos antes, fora marcado pela punição pública
do pai de Raimundo, Raimundo VI. Em 1229, o seu fim foi marcado pelo mesmo castigo
aplicado ao filho. Raimundo VII foi flagelado com ramos de bétula na praça em frente da
Catedral de Notre-Dame, em Paris. Em seguida foi atirado para o calabouço. Contudo, o
mais importante foi a promessa que se viu obrigado a fazer, de usar o seu exército na
perseguição dos cátaros.
O REGRESSO DA INQUISIÇÃO
Por essa época, a perseguição aos cátaros e a outros hereges estava a entrar numa
nova fase, muito mais mortífera. Gregório IX, eleito papa em 1227, não se contentou com
apelar à cruzada e deixar o trabalho sujo aos militares. Teve uma ideia muito melhor e mais
arrepiante. Reinventou a Inquisição episcopal, um método introduzido em 1184 para lidar
com os hereges mas que nunca cumprira verdadeira mente os seus objectivos.
Os bispos encarregados de dirigir a Inquisição pareciam pouco inclinados a perseguir
hereges e ainda menos apreciadores dos terríveis castigos que eram responsáveis por
aplicar. Outros tinham um parentesco demasiado próximo com as famílias das suas
dioceses para lhes passar sequer pela cabeça perseguir os seus próprios parentes. Estes
problemas de facto travaram a Inquisição episcopal, já que, como explicou o papa
Inocêncio III em 1215:
Acontece muitas vezes os bispos, devido às suas múltiplas
preocupações, prazeres carnais e inclinações bélicas, e por outras
causas, a menor das quais não é a sua falta de preparação
espiritual e falta de zelo pastoral, não estarem habilitados a
proclamar a palavra de Deus e a governar o povo.
Em alguns lugares, seja como for, o povo era praticamente ingovernável. Muitas
vezes quando um suposto herege era denunciado a multidão tomava conta do assunto e
administrava imediatamente a sua justiça sumária.
A nova Inquisição papal, ou romana, introduzida pelo papa Gregório, tinha não só a
intenção de desencorajar esses abusos, mas também de proporcionar mais organização,
mais eficiência e uma maior dedicação ao negócio de arrebatar almas às garras da heresia,
e de punir – com severidade – quem quer que recusasse vergar-se. Na sua forma mais
retributiva, a Inquisição tornou-se, e manteve-se durante vários séculos, sinónimo de
tortura, terror e sofrimento inimaginável.
Capítulo
III
Um inquisidor-geral condena à morte uma família acusada de heresia.
Bastava uma denúncia infundada de um vizinho para haver
um julgamento - e os «acusados» eram automaticamente culpados.
OS HORRORES DA INQUISIÇÃO
A Inquisição, introduzida pelo papa Gregório IX em 1231, tinha a finalidade de
combater todas as heresias, onde quer que elas ocorressem, na Europa católica, mas o
seu primeiro alvo foi a variante pouco ortodoxa do cristianismo praticada e pregada pelos
cátaros.
Na raiz do perigo que os cátaros representavam para a Igreja estabelecida estava o
seu vasto número, o apoio de muitos nobres de posição elevada, como Raimundo VI de
Toulouse e o seu filho Raimundo VII, a vastidão do território que dominavam, no sudoeste
de França e no nordeste de Espanha, e a capacidade de resistência e a facilidade com que
se recompuseram, com as suas crenças teimosamente intactas, ao longo dos vinte anos
que durou a cruzada albigense. No entanto, a sequela do Tratado de Paris, que pôs
oficialmente fim à cruzada em 1229, foi ainda mais feroz e durou muito mais. A luta contra a
heresia acabou por se sobrepor à maior parte dos conflitos medievais pela crueldade e
pelo terror usado para alcançar os seus fins.
MEDIDAS EXTREMAS
De acordo com a Igreja da Idade Média, as medidas extremas justificavam-se quando
a heresia sujeitava a cristandade a um perigo mortal. O que estava em causa eram as
próprias fundações da sociedade, já que o livre-pensador herege, que rejeitava a «Igreja
verdadeira» e escolhia as suas próprias crenças e práticas, era uma ameaça fundamental à
fé.
Ao longo dos 25 anos seguintes, os cercos às cidades e aos castelos e o massacre
dos seus habitantes continuaram, mas não como antes. Tudo se tornou infinitamente pior.
A intervenção do papa Gregório tornou a velha Inquisição muito mais atroz, já que os
novos inquisidores exploraram de facto os vastos poderes que ele lhes atribuiu. Mesmo a
descrição das suas funções, inquisitor hereticae pravitatis (inquisidor da depravação
herética), era aterradora, com tonalidades de loucura e uma certa associação à
superstição ligada a demónios, diabos e ao próprio mal.
Os dominicanos, os membros da Ordem dos Frades Pregadores, que viriam a ser os
principais inquisidores papais, eram monges de um tipo especial, preparados pelo seu
fundador espanhol, São Domingos de Gusmão, para serem uma espécie de reflexo do
ascetismo, da pobreza e da piedade dos perfeitos cátaros. Domingos de Gusmão, que viria
a ser canonizado em 1221, apenas 13 anos depois da sua morte, percebeu que o modo de
vida humilde e abnegado dos perfeitos era a verdadeira explicação do seu prestígio entre
os cátaros. Os dominicanos, decidiu, teriam de igualar os perfeitos em matéria de piedade
e espírito de sacrifício se quisessem salvar as almas cátaras e reconduzi-las a Roma.
Teriam de viver no mundo, e não dentro dos limites dos mosteiros, e, tal como os perfeitos
cátaros, teriam de comunicar directamente com os fiéis e evitar o luxo e a vida de prazeres
escolhida por demasiados homens da Igreja.
Infelizmente, São Domingos não teve atenção suficiente à tendência para o fanatismo
inerente aos modos de vida mais estritamente puritanos, nem ao sentimento de
superioridade moral que produzem, contrário à humildade que procurou ensinar aos seus
seguidores. Alem disso, os extremos sempre tenderam a produzir radicalistas, e muitos
fanáticos que hoje seriam considerados psicopatas foram atraídos para a Ordem dos
Frades Pregadores pela oportunidade que a Inquisição lhes oferecia de dar largas à
crueldade disfarçada de zelo apostólico. Não se sabe se o papa percebeu de que tipo de
gente se tratava. Seja como for, acolheu-os nas hostes dos inquisidores e enviou-os para
França e para outros lugares da Europa onde muitos dominicanos se tornaram tristemente
conhecidos pela conduta bárbara, mesmo para os padrões de comportamento brutais da
época. Não admira por isso que os dominicanos tenham acabado por se tornar conhecidos
em muitos sítios como os «frades negros».
UM INTERROGATÓRIO INSISTENTE
Conhecia algum herege? Tinha visto algum, com que frequência, onde e quando?
Com quem se encontravam? Quem costumava visitá-los? Tinham visto alguém tratar um
cátaro de forma reverente ou tratava o próprio acusado algum membro da seita com
deferência? Sabia de alguma herança deixada a um herege e, em caso de saber, quem
tinha lavrado o testamento? Perante todos estes rodeios, pensados para fazer as pessoas
cair em armadilhas ou contradizer-se, a maior parte dos interrogados acabava por dizer
fosse o que fosse, o que lhes passasse pela cabeça, para escapar à bateria cerrada a que
eram sujeitos. Lealdade, amor, amizade, eram esquecidos quando as vítimas, pressentindo
o perigo, procuravam proteger-se a todo o custo. Os «acusados», como eram designados
nos manuais da Inquisição, não eram autorizados a saber se haviam sido eles próprios
acusados de heresia. Uma imaginação dominada pelo medo levava-os a divulgar listas de
nomes, proporcionando à Inquisição uma nova leva de suspeitos.
Nem os mortos estavam protegidos desta orgia de denúncias. Os acusados depressa
descobriram – ou pensaram que tinham descoberto – como contornar a necessidade dos
inquisidores de mais e mais achas para a sua fogueira. Quando lhes pediam que dessem
uma lista de nomes, quanto maior melhor, começaram a identificar homens e mulheres já
mortos, que podiam por isso escapar a qualquer punição que os inquisidores imaginassem.
Como se enganavam! Mal davam por isso os inquisidores apresentavam-se no cemitério
para desenterrar corpos. Por mais decompostos que já se encontrassem, eram
transportados num carro para um lugar de «execução» especial- mente escolhido.
Enquanto o carro ia passando pelas ruas, os padres que o acompanhavam iam
entoando: «Quem quer que faça o mesmo sofrerá o mesmo destino!»
Quando chegavam ao lugar designado, os cadáveres eram atados a postes. As
fogueiras eram acesas e os acusados eram simbolicamente queimados. A visão era
macabra, grotesca, mas não ficava por aqui, já que o resto da punição era aplicada como
se os «hereges» continuassem vivos. As suas casas eram demolidas e as famílias perdiam
todos os seus bens. Os familiares podiam ser presos ou então eram obrigados a usar
cruzes amarelas cosidas à roupa para mostrar que estavam indelevelmente manchados
pelos pecados do seu familiar «herético».
UM INIMIGO FORMIDÁVEL
O conde e a rainha tiveram a sorte de apanhar o papa num momento difícil. Gregório
andava desavindo com Frederico II, rei da Alemanha e da Sicília e sacro imperador
romano, um soberano de orientação secular cuja finalidade na vida era aumentar a sua
influência em Itália à custa do poder do papado. Segundo Gregório, Frederico era «a besta
que emerge dos mares carregada de nomes blasfemos [...] a boca imensa a ofender o
Santo Nome [...] ameaçando com a sua lança o tabernáculo de Deus e dos Seus Santos no
Céu». Perante inimigo tão formidável, Gregório precisava de todos os aliados que
conseguisse aliciar. Estava até na disposição de arregimentar o herético Languedoc.
Frederico não escondia as suas ambições sobre a Provença, no sudeste de França,
pretexto que Raimundo aproveitou para oferecer auxílio ao papa. O seu preço, contudo,
foi que Seila, Arnaud e todo o aparelho da Inquisição fossem retirados de Toulouse e do
Languedoc.
A RETALIAÇÃO
O papa Gregório não chegou a esse ponto, mas tentou refrear os seus inquisidores e
pressionou-os para que se tornassem mais tolerantes. Chegou a deslocar--se ao
Languedoc, num esforço para conter a indignação causada pelo excesso de zelo dos seus
inquisidores. Encorajado por estas concessões, Raimundo preparou-se para tomar uma
posição mais dura com Seila e Arnaud. A ocasião pareceu ir ao seu encontro quando os
inquisidores deram ordem de prisão a vários dos seus cortesãos com simpatias cátaras.
Raimundo conseguiu libertá-los e pô-los fora do alcance da Inquisição. Deu ordem aos
soldados destacados para levarem a cabo a prisão de que em vez disso escoltassem esses
homens na sua saída de Toulouse e os deixassem em segurança no campo nas
proximidades da cidade. Seila e Arnaud ficaram furiosos e tentaram vingar-se denunciando
vários cônsules ao serviço da cidade. No entanto, não conseguiram ir longe, já que pouco
depois eles próprios foram expulsos de Toulouse sem cerimónias. Na altura, outros
dominicanos, juntamente com o arcebispo de Toulouse, foram atacados por uma multidão
em fúria que os correu à pedrada. Acabaram por se refugiar em Carcassonne. Aí chegados,
os dominicanos excomungaram os seus atacantes e lançaram um interdito sobre a cidade.
Em breve regressaram por ordem de Gregório. Contudo, o papa não podia ser
demasiado rigoroso com Raimundo porque precisava da sua colaboração na luta contra o
imperador Frederico. Por esta razão, o pontífice levantou o interdito sobre Toulouse e
arranjou um cão de guarda que mantivesse em respeito os dominicanos e moderasse a sua
tendência para a brutalidade.
ENGANAR OS INQUISIDORES
Os dois traidores estavam suficientemente protegidos, pois qualquer dos seus
possíveis atacantes seria denunciado como cátaro ou herege. Em vez de os atacar
frontalmente, os cátaros tornaram-se dissimulados e deixaram de se mostrar como eram.
Alguns perfeitos trocaram as suas vestes por roupa comum, mais difícil de identificar. Os
perfeitos, que haviam sido vegetarianos, começaram a comer carne e até o faziam
deliberadamente em público, onde estivessem certos de ser observados.
Provavelmente a mudança mais radical nos seus hábitos foi a que respeitava à
separação entre homens e mulheres perfeitos, que tradicionalmente estavam
rigorosamente separados. A partir de certa altura começaram a andar aos pares, de
maneira que quem os visse, incluindo os dominicanos, partisse do princípio de que eram
casados. Mas a melhor defesa ainda era sair simplesmente das cidades, o que levou muitos
a acolher-se à protecção de Montsegur, embora sem negligenciar os seus seguidores.
Disfarçavam-se para entrar nas cidades, onde as suas visitas apenas eram conhecidas de
alguns. Mal concluíam o que aí tinham ido fazer partiam, rodeados do maior segredo.
A Inquisição sabia que algo de clandestino se passava no Languedoc, mas em geral
não conseguia identificar os infractores. Como é natural, os inquisidores eram
profundamente odiados. Para se protegerem, bem como aos seus servidores e escribas
em Albi e Carcassonne, tinham de andar com guardas armados cedidos pelos franceses.
De outro modo não teriam podido exercer as suas funções. De vez em quando eram
encarcerados e impedidos de entrar em algumas cidades, como Toulouse, mas havia
sempre as regiões circundantes para as suas actividades criminosas, para desencantar
hereges, interrogá-los e puni-los.
ASSASSÍNIO EM AVIGNONET
Na manhã de 28 de Maio de 1242, o franciscano Étienne de Saint-Thibéry juntamente
com o dominicano Guillaume Arnaud e oito escribas viajavam através dos campos entre
Toulouse e Carcassonne. Pelo caminho pararam em várias aldeias para ouvir confissões de
hereges acusados e incluir os seus nomes nos registos da Inquisição.
Não havia nisto nada de invulgar, uma vez que a Inquisição parecia estar por toda a
parte no Languedoc e a possibilidade de surgir em qualquer aldeia ou cidade a qualquer
momento para obter informações incriminadoras estava sempre presente. Tudo isto fazia
parte da sua estratégia de espalhar o terror por toda a província. Homens como Étienne
ou Guillaume Arnaud confiavam muitas vezes no poder da intimidação que exerciam por
todo o Languedoc, onde as pessoas tremiam à ideia de ser enviadas para as masmorras
de Carcassonne, para serem mantidas em pequenas células húmidas onde ficavam a
apodrecer, quando sobreviviam, com uma dieta de pão e água.
No entanto, o que não era vulgar nesta época era a falta de uma escolta de homens
armados que garantissem que Étienne, Guillaume e os seus escribas se deslocavam com
segurança entre duas localidades. Dessa vez chegaram ao fim do dia à cidade fortificada
de Avignonet, onde Raymond d’Alfaro (bailio de Raimundo VII e seu cunhado) os aguardava
no seu castelo, onde os recebeu. Tinham sido preparados alojamentos para os dois frades
no castelo, onde deviam jantar nessa noite e onde um dos homens de Alfaro, Guillaume-
Raymond Golairan, falou com eles.
Convencido de que Étienne e Guillaume não desconfiavam de nada, Golairan saiu do
castelo e dirigiu-se ao bosque de Antioche, na realidade pouco mais do que uma pequena
mata, onde se encontrou com Pierre-Roger de Mirepoix, um dos senhores de Montségur,
com o idoso Raymond de Pereille e com o seu grupo de cavaleiros fortemente armados.
Todos eles eram credentes cátaros, que em geral desempenhavam as funções de guardas
em Montségur. Pierre-Roger escolheu uma dezena de cavaleiros, talvez mais, e ao
anoitecer enviou-os a Avignonet, com as armas de guerra à cinta e uma escolta de mais
alguns homens a cavalo. Quando chegaram a Avignonet já era noite cerrada.
Enquanto os cavaleiros cátaros se escondiam num matadouro por detrás das
muralhas da cidade, Golairan regressou ao castelo e verificou que Étienne, Guillaume e os
escribas já se tinham retirado para os seus aposentos. Depois saiu, dirigiu-se às muralhas
da cidade e abriu as portas aos cavaleiros de Pierre-Roger. Em silêncio, os homens
percorreram as ruas de pedra até ao castelo, onde os aguardavam umas três dezenas de
habitantes de Avignonet, armados de bastões e cutelos. Juntos entraram no pátio do
castelo e dirigiram-se à torre de menagem. Subiram as escadas em silêncio e dirigiram-se à
pesada porta de carvalho que protegia os aposentos dos inquisidores. Não havia ninguém
de guarda. Um dos cavaleiros cátaros derrubou-a ruidosamente com um pesado golpe de
machado.
O ATAQUE SANGRENTO
Antes que qualquer dos homens que se encontravam do outro lado percebesse o que
lhes acontecia, dezenas de cavaleiros e habitantes da cidade tinham entrado nos seus
quartos e iniciado a chacina com a ajuda de machados, facas e cutelos. O ataque
continuou até não restarem quaisquer dúvidas de que os inquisidores e os seus homens
haviam morrido, todos eles. Na altura em que se fez silêncio o chão estava vermelho de
sangue. Os assassinos acenderam tochas e pegaram em tudo o que viram: candelabros,
dinheiro e aquilo que realmente procuravam, que era o registo de nomes feito pelos
inquisidores. As páginas foram arrancadas e queimadas uma a uma. Em pouco tempo, as
«provas» da Inquisição transformaram-se num monte de cinzas fumegantes.
Os assassinos saíram de Avignonet sem ser vistos e regressaram ao bosque de
Antioche, onde Pierre-Roger os aguardava. Esperava que lhe fosse entregue uma dádiva
muito particular, o crânio de Guillaume Arnaud, de que queria fazer uma taça de vinho.
Ficou desapontado quando lhe disseram que o crânio não tinha vindo, que fora deixado
para trás desfeito pela fúria dos cátaros, mas a informação teve o mérito de lhe dar uma
ideia clara do ponto a que a empresa fora bem sucedida.
FESTEJOS NO LANGUEDOC
A notícia dos assassínios de Avignonet percorreu o Languedoc como um rastilho.
Tanto católicos como cátaros festejaram este golpe na odiada Inquisição. Um frade
chegou a tocar o sino da sua igreja para celebrar o sucedido e os assassinos foram
recebidos como heróis em Montségur. Mas o ataque de Avignonet fora apenas o prelúdio
de uma série de ataques militares a castelos, a casas dos dominicanos e a palácios de
bispos. Todos eles pareceram alvos legítimos de vingança dos habitantes do Languedoc
contra os franceses e a Inquisição, que aqueles protegiam. Entretanto, por toda a
província, cidades e aldeias mobilizadas pelos acontecimentos de Avignonet ergueram-se e
vingaram-se das atrocidades, das humilhações e das crueldades que a Inquisição levara à
outrora pacífica e próspera região do Languedoc.
Contudo, triste e inevitavelmente, tanto a revolução como os festejos foram de curta
duração. Apesar dos nomes ilustres que apoiaram Raimundo VII – o rei Henrique III de
Inglaterra, Hugo de Lusignan, de cuja família haviam saído cruzados preeminentes, Roger
Bernard, conde de Foix –, todos eles cederam à força das armas francesas. O rei e
Lusignan foram esmagados em combate e o conde, apesar de filho e sobrinho de perfeitos
cátaros, passou-se para o inimigo e usou o seu exército para esmagar Raimundo VII numa
batalha que viria a ser definitiva. Os restantes aliados de Raimundo em Aragão, Castela e
Navarra leram nas entrelinhas e debandaram discretamente. Mais uma vez, em Janeiro de
1243, Raimundo e o rei Luís IX assinaram um tratado que fez regressar o estado das
coisas a 1229, a altura em que o Languedoc ficara sob domínio francês com o Tratado de
Paris.
A INACESSÍVEL MONTSÉGUR
Os assassinos de Avignonet nunca foram apanhados, mas Montségur, a fortaleza
onde a intriga fora concebida, continuou a ser o grande baluarte da resistência dos cátaros
no Languedoc. O clero católico e os inquisidores há muito que chamavam a Montségur a
«sinagoga de Satã» e em sua opinião os acontecimentos mais recentes mostravam que
estava à altura do epíteto. Montségur tinha de ser destruída porque não era apenas mais
uma fortaleza, mas um porto seguro para centenas de cátaros, tanto perfeitos como
simples credentes, que ali haviam procurado o refúgio que apenas as altas montanhas e as
escarpas dos Pirenéus podiam proporcionar-lhes.
Em 1242, cerca de quinhentos refugiados, tanto cátaros como católicos, viviam em
Montségur. Destes, cerca de duzentos eram perfeitos que haviam feito de cabanas e
grutas nas proximidades do castelo a sua residência. Cavaleiros, soldados e as suas
mulheres e amantes, bem como os seus filhos, muitos deles familiares dos perfeitos,
também se tinham mudado para o lugar para beneficiar da protecção que este oferecia.
Havia ainda um fluxo constante de peregrinos que visitavam em segredo o símbolo da fé e
da orientação espiritual cátara e depois regressavam a casa tão discretamente como
haviam partido.
Montségur serviu estes fins durante quase quarenta anos, a partir de 1204, altura em
que o senhor reinante, Raymond de Pereille, percebeu que um dia os cátaros teriam de
enfrentar a Igreja, que os considerara hereges. Para se preparar para esse dia, Pereille
reconstruiu o castelo que sobrelevava a aldeia de Montségur da sua altitude estonteante
de 914 metros, o suficiente para proporcionar uma panorâmica dos bosques e dos vales
que preenchiam a paisagem muitos quilómetros à volta do local. Ao longo dos anos,
Montségur ofereceu protecção a dezenas de perfeitos cátaros que fugiam da Inquisição.
Depois iam voltando, alguns várias vezes, sempre que as perseguições recomeçavam.
Porém, estas crises e os excessos cometidos pela Inquisição eram um prenúncio de algo
mais sério que o futuro ainda reservava, e que foi a «solução final» da questão cátara.
A iminência dessa solução tornou-se visível na primavera de 1243, quando quem
assomou às muralhas do castelo pôde ver a movimentação de tropas nas proximidades. Às
ordens de Hugo de Arcis, senescal do rei Luís IX, cavaleiros, soldados e equipamento
começaram a chegar vindos da Aquitânia, da Gasconha e de outras regiões de França. O
acampamento foi instalado do lado oriental de Montségur.
Um dignitário da Igreja, Pierre Amiel, bispo de Narbonne, montou a sua tenda cheia
de ornamentos elaborados em frente de Montségur. Em breve todo o acampamento
estava rodeado de flâmulas com a flor-de-lis, o símbolo de França, ou a cruz, para
sublinhar a finalidade sagrada do empreendimento.
Os milhares de homens acampados em frente das muralhas ofereciam uma visão
impressionante, embora ainda não se tratasse de um aviso de que estava iminente um
cerco. Para Hugo de Arcis poder sitiar a fortaleza precisaria de forças muito mais
consideráveis do que as que estavam à vista. Mas mesmo com muito mais homens nunca
conseguiria cercar completamente as muralhas. O perímetro de Montségur media mais de
três quilómetros e não era contínuo – havia ravinas e desfiladeiros que podiam oferecer
vias de fuga e que o interrompiam aqui e ali. Era impossível usar máquinas de guerra nas
escarpas dos Pirenéus onde se erguia o reduto dos cátaros.
A DEFESA DE MONTSÉGUR
No interior da fortaleza os problemas eram igualmente grandes, embora diferentes.
Os perfeitos cátaros eram pacifistas, opunham-se completamente à guerra.
Mesmo nesta situação extrema, não queriam lutar. Isto deixou Pierre Roger com
apenas 98 homens para defender o castelo. Até certo ponto, esta desvantagem era
compensada pela desprotecção total dos homens que escalavam as encostas contra os
projécteis dos que se encontravam no alto das muralhas. As forças dos franceses fizeram
várias tentativas de trepar pelos caminhos de cabras cobertos de silvas que conduziam a
Montségur, mas depressa eram repelidos pela saraivada de pedras, setas e outros
projécteis dos homens de Mirepoix. Contudo, os franceses tinham uma maneira de atingir
os defensores da fortaleza sem sequer sair de onde estavam. Quando lançavam setas
quase na vertical sobre Montségur estas acabavam por cair sobre os cátaros. Cerca de
uma dezena de homens foram abatidos desta maneira, e a morte de cada um deles
representava um golpe rude.
Mesmo assim, as frágeis forças de Pierre-Roger de Mirepoix conseguiram manter os
atacantes à distância durante oito meses, até ao Inverno, altura em que o tempo frio e a
falta de mantimentos começou a causar danos de ambos os lados das forças. Alguns dias
antes do Natal, quando a neve cobriu o acampamento dos franceses, Hugo de Arcis
aceitou que ao fim de todo aquele tempo as suas tropas estavam prestes a ficar
completamente desmoralizadas e poderiam começar a desertar. Teria de tomar uma
iniciativa mais drástica e dramática, embora envolvesse riscos consideráveis.
RETRATAÇÃO OU A FOGUEIRA
Se tivermos presente a maneira selvagem como em tempos medievais se lidava com
crimes e castigos, os termos da rendição impostos por Hugo de Arcis nem podem ser
considerados propriamente draconianos. Os assassínios de Avignonet e quaisquer outros
crimes cometidos no passado foram perdoados e foram concedidas aos habitantes de
Montségur duas semanas para considerar as suas opções: ou se sujeitavam aos
interrogatórios da Inquisição e se retratavam ou morriam na fogueira.
Os perfeitos cátaros de Montségur recusaram-se a pôr de parte as suas crenças e a
obter o perdão do arcebispo Amiel. Prepararam-se por isso para morrer. Distribuíram pelas
famílias e pelos amigos os seus poucos pertences, reconfortaram os mais próximos e
entregaram-se à oração.
Alguns credentes cátaros, que não estavam sujeitos à pena de morte, quiseram
juntar-se aos perfeitos e morreram com eles. No domingo de 13 de Março de 1244, vinte e
u m credentes, incluindo a mulher e a filha de Raymond de Pereille, pediram o
consolamentum, a versão cátara da extrema-unção católica, pela qual se comprometiam a
escolher uma vida casta e ascética. Cada uma dessas vidas viria a ser de três dias.
Nos prados abaixo de Montségur foi preparado um recinto onde se amontoou lenha
cortada nas florestas mais próximas. Foram montadas muitas estacas e reunidas cordas
para atar os cátaros, bem como tochas e escadas para subir às pilhas de madeiros.
AS FOGUEIRAS DE MONTSÉGUR
Na manhã de 16 de Março, muito cedo, uma procissão de 221 homens e mulheres
desceu pelo carreiro que ligava Montségur aos campos ao fundo da colina onde se erguia a
fortaleza. Os chefes cátaros iam descalços, apenas com as suas túnicas grosseiras sobre
o corpo. Quando chegaram ao recinto onde estavam amontoados os madeiros, subiram as
escadas e foram atados às estacas aos pares, costas contra costas. Uns atrás dos
outros, os homens e as mulheres condenados encheram o recinto.
Quando tudo ficou pronto, o arcebispo Amiel deu o sinal de que as tochas acesas
fossem atiradas. O murmúrio suave das preces era audível, abafado apenas pelos estalidos
da madeira a arder. As chamas subiram e os corpos atados às estacas transformaram-se
em tições, até que um fumo espesso e sufocante começou a encher os vales e a
conspurcar a erva, subindo em direcção ao céu.
OS IRMÃOS AUTIER
Os irmãos Pierre e Guillaume Autier andavam pelos 50 anos, tinham estudos e
algumas posses, mas não eram especialmente devotos. Pierre, que tinha um humor
sarcástico, dizia que o sinal da cruz era um gesto que servia para espantar as moscas.
Depois, em 1296, para surpresa de todos os que os conheciam, de um dia para o outro os
dois tornaram-se devotos e adoptaram uma nova forma de vida, nómada e ascética.
Passaram algum tempo em Itália, mas em 1300 surgem de novo no Languedoc, onde
nasceram. Ali, Pierre começou a pregar a fé cátara. Foi muito bem sucedido. Antes de a
Inquisição o apanhar conseguiu converter cerca de mil famílias. No entanto, em 1305, foi
denunciado e o seu irmão Guillaume foi preso e queimado na fogueira com todos, excepto
um, os perfeitos criados pelo irmão.
O único que escapou chamava-se Sans Mercadier e preferiu suicidar-se a sujeitar--se
a arder na fogueira. Pierre Autier continuou a monte mais quatro anos, mas acabou por ser
apanhado e em Abril de 1310 foi queimado em público à frente da Catedral de Santo
Estêvão, em Toulouse.
Capítulo
IV
As confissões de bruxaria ou de pactos com o Diabo
eram obtidas, as mais das vezes, através de torturas.
(Corbis/ VMI)
PAPAS E BRUXAS
A crença em bruxas e feiticeiros, feitiços, feitiçaria e maldições recua, pelo menos, a
tempos bíblicos. Estas crenças eram uma tentativa de explicar os mistérios e os perigos
que a vida na Terra envolvia. Antes de perceberem o que estava realmente por trás dos
terramotos, das inundações, das trovoadas, das colheitas perdidas, das epidemias e de
outros desastres, os homens acusaram os maus espíritos e as maldições.
Os feitiços já causavam problemas na antiga Babilónia, pelo menos em 1760 a.C.,
altura em que, de acordo com o Código de Hamurabi, podiam merecer uma condenação à
morte. O Deuteronómio, do Antigo Testamento, refere-se à bruxaria como «abominação».
Já o Êxodo manda: «Não deixarás viver a feiticeira.» Segundo Samuel, no fim do século XI
a.C., o rei Saul «expulsou todos os que tinham espíritos e os feiticeiros». As mulheres, em
particular as mais velhas, há muito que são associadas à bruxaria. Mil anos depois de Saul,
no século I, em Ashkelon, na Palestina, uma província do Império Romano, oitenta foram
condenadas à morte.
Nessa época, a feitiçaria e outras «artes negras» eram consideradas pecados ou
crimes que perturbavam a lei e a ordem, espalhavam o medo e a agitação e suscitavam a
cólera de Deus. No entanto, no início da Idade Média, quando a Igreja e os papas se
meteram ao barulho, a sua ideia do assunto era diferente. O cristianismo considerava a
bruxaria uma heresia, juntamente com muitas outras crenças contrárias ao que pregava a
Igreja.
AS CRENÇAS PAGÃS
A tenacidade das crenças pagãs foi notável e alimentou a ideia de que as bruxas
tinham o poder de assumir diferentes formas e de lançar maldições terríveis contra quem
quer que recusasse entregar-lhes a alma. Era natural que pessoas com pouca cultura
concluíssem de experiências de todos os dias, como a morte de uma criança, uma praga
de gafanhotos ou uma má colheita, que estavam nas mãos de poderes ocultos e maléficos.
As provas, pensavam muitos, estavam à sua volta, por todo o lado. Na maior parte
das aldeias medievais havia alguém estranho, mulheres velhas e feias, pessoas
desfiguradas por doenças ou quem tivesse nascido com o que hoje sabemos serem
doenças congénitas, e estas pessoas estavam sempre na primeira linha quando era preciso
atribuir as culpas de alguma coisa que corresse mal. O hábito parece ter-se tornado
comum na Suíça e na Croácia do século XIII, onde os relatos de casos de bruxas e de
bruxaria tomaram proporções quase epidémicas depois de o papa Gregório IX ter criado a
primeira Inquisição, a papal, em 1231.
OS HORRORES DA TORTURA
No meio da atmosfera de terror e sofrimento, no meio dos gritos de dor e do cheiro a
carne humana queimada nos campos onde os acusados eram executados, a ânsia de
confessar – ou de fazer o que quer que pusesse fim à tortura – tornou a prova da
inocência quase impossível. Muitas vítimas pareciam enlouquecer quando eram sujeitas
aos instrumentos de tortura, entre os quais se incluíam alguns dos mais terríveis alguma
vez inventados, como os esmagadores de cabeça e de membros, a estrangulação lenta,
ou as garras de gato, que dilaceravam a carne. Todas elas causavam uma dor inimaginável.
Um dos instrumentos de tortura mais diabólicos e mais usados foi o strappado, ou
pêndulo, descrito por Filipe Limboch na sua História da Inquisição, publicada em 1692:
As mãos do prisioneiro eram atadas atrás das costas e aos seus
pés eram atados pesos e depois ele era levantado até a sua
cabeça tocar na roldana. Era mantido nesta posição durante algum
tempo, de maneira que todas as suas articulações e todos os seus
membros ficassem horrivelmente distendidos [...] Depois, de
repente, era largado de um só golpe, soltando a corda, mas sem
deixar que chegasse a tocar com os pés no chão, o que fazia que
todos os seus membros ficassem deslocados.
O pêndulo e outros instrumentos de tortura eram muitas vezes abençoados pelos
padres, em reconhecimento do carácter «sagrado» do trabalho de desmascarar a heresia.
Os delírios das suas vítimas eram considerados verdadeiras confissões de pecados
reais. No entanto, muitas vezes não só não tinham sido cometidos mas nem sequer tinham
sido imaginados. Mesmo assim, a confissão nem sempre os salvava. Muitos inocentes,
depois de terem «limpado» as suas consciências e possivelmente denunciado outros
«hereges», acabaram por morrer na fogueira.
UM PAPA CRÉDULO
O papa Gregório foi cúmplice de tudo isto. Tinha confiança total em Konrad de
Marburgo e nos seus outros inquisidores e aceitou sem questionar quase tudo o que ele
lhe disse. Nisso incluía-se a informação de que Satã aparecia com regularidade nos sabats
das bruxas, onde se transformava num sapo, numa sombra pálida ou num gato preto. Os
gatos pretos tornaram-se um dos alvos da perseguição de Gregório. Na bula Vox in Rama,
de 1233, condena os gatos pretos como encarnações do Demo, devido à sua capacidade
sinistra de «desaparecer» na escuridão e ao papel que supostamente desempenhavam
como «familiares» das bruxas. Os gatos eram muitas vezes metidos em cestos e
queimados na fogueira com os donos, igualmente desafortunados. Ser dono de um gato
preto podia ser considerado «prova» de um laço com Satã. Milhares de animais foram
queimados vivos na fogueira numa tentativa de extinguir a presença do Demo da face da
Terra.
A MAGIA BRANCA
Mesmo as boas obras que parecessem obtidas por feitiçaria eram consideradas feitos
do Demónio. Esta lição foi duramente aprendida em França em 1390, quando um homem
chamado Jehan de Ruilly acusou Jehenne de Brigue de bruxaria depois de ela ter recorrido
a um feitiço para o curar de um mau-olhado lançado por Gilette, mãe dos seus dois filhos
ilegítimos. Ao que parece, Ruilly estava às portas da morte. Ninguém lhe dava mais de uma
semana de vida quando Brigue o ensinou a fazer uma boneca de cera a representar
Gilette. O doente recuperou milagrosa mente.
Ao princípio Brigue assegurou que não sabia nada de feitiços, mas no seu julgamento
foi sugerido que afinal sabia lançar feitiços e invocar um demónio chamado Haussibut para
a ajudar nas suas curas. Foi Haussibut que a ajudou a tratar Ruilly revelando a Brigue
como Gilette o enfeitiçara. Apesar da natureza benéfica das suas actividades, Jehenne de
Brigue foi condenada à morte na fogueira. A execução da sentença foi interrompida no
último minuto com a marcação de um novo julgamento para o princípio de 1391. No
entanto, o caso contra Brigue foi-se agravando.
Estava deitada nua no potro pronta a ser torturada quando se pôs a fazer confissões
sensacionais. Admitiu ter ajudado Macette de Ruilly (mulher de Jehan) a preparar um
veneno para matar o marido, de maneira a ficar livre e poder prosseguir o seu caso com
um padre. Macette negou a acusação, mas quando por sua vez foi despida e atada ao
potro mudou de ideias e pôs-se igualmente a confessar. Jehan e Macette de Ruilly foram
ambos condenados por bruxaria e por fazerem pactos com o Diabo. Foram levados para
Châtelet-Les Halles, no centro de Paris, onde foram obrigados a usar a mitra de papel
decorada com figuras de diabos, o símbolo da heresia. A seguir foram expostos aos maus-
tratos e aos insultos dos parisienses. Por fim foram queimados vivos no mercado dos
porcos, a 17 de Agosto de 1391.
Os julgamentos de bruxas continuaram por muito tempo, já no século XV, e tiveram
um carácter ainda mais brutal e sinistro na Suíça. Aqui, em 1428, várias bruxas, que se
dizia que voavam por todo o país e usavam os seus poderes demoníacos para tornar
homens e mulheres estéreis, foram levadas pela tortura a fazer confissões. Dizia--se que
estas bruxas destruíam colheitas, secavam o leite das vacas e matavam e comiam crianças
nas suas festas do sabat. Eram acusadas de participar em danças obscenas, de beijar o
traseiro do Diabo e de participar em orgias em que o Demo por vezes mudava de sexo, o
que lhe permitia gozar dos seus prazeres demoníacos tanto com homens como com
mulheres numa só noite.
Acreditava-se que durante o sabat o Diabo deixava uma marca especial no corpo das
bruxas. A descoberta desta marca equivalia a uma sentença de morte, já que quando o
inquisidor dava com ela sujeitava-a a um teste espetando-a com uma agulha ou outro
instrumento pontiagudo: se a marca não deitasse sangue ou a pessoa não sentisse dor,
qualquer esperança de escapar à condenação desaparecia. Na Suíça foram queimados
assim cerca de duzentos homens e mulheres. Por volta de 1450, em Brian- çon, do lado
francês dos Alpes, 110 mulheres e 57 homens acusados de bruxaria morreram na fogueira.
Na Normandia, no norte de França, os homens também eram perseguidos por
bruxaria. Em Évreux, a Inquisição condenou Guillaume Edeline, prior de Saint-Ger- main-
en-Laye, a prisão perpétua em 1453 por ter tido relações carnais com um súcubo (uma
mulher-diabo que se julgava seduzir os homens durante o sono). A sua sentença incluiu
uma punição por voar numa vassoura e beijar o traseiro de um bode. Robert Olive, de
Falaise, enfrentou uma pena mais severa. Em 1456 foi queimado vivo por ir a sabats de
bruxas a voar.
No entanto, tudo isto foi apenas um prelúdio à verdadeira caça às bruxas que
começou em Arras, no Pas-de-Calais, no nordeste de França, em 1459. Uma das primeiras
vítimas foi Deniselle Grensières, uma mulher com um atraso que foi repetidamente
torturada por Pierre le Broussart, um dominicano que era o chefe dos inquisidores de
Arras. Deniselle acabou por confessar e deu o nome de mais quatro mulheres e do artista
Jehan la Vitte como seus associados. Uma das quatro mulheres, aterrada com a
perspectiva de ser torturada, matou-se para não cair nas mãos de Broussart. Jehan la
Vitte também tomou medidas extremas. Quando foi ameaçado com a tortura, teve medo
de ceder e de dar por sua vez outros nomes. Para evitar que isto acontecesse, tentou
arrancar a própria língua, embora apenas tenha conseguido provocar cortes à volta da
boca. Isto quase o impedia de falar, mas restavam-lhe as mãos e isso foi suficiente para
que o obrigassem a escrever o seu relato de como homens e mulheres eram transportados
para os lugares de encontro com o Diabo. Depois explicou como o Diabo, que assumia
uma forma humana embora o seu rosto permanecesse oculto, obrigava todos os presentes
a beijarem-se o traseiro antes de se sentarem à mesa do banquete na sua companhia. A
seguir todas as luzes eram apagadas, um sinal de que a orgia podia começar. «Cada
homem ou mulher escolhia um parceiro», disse Jehan la Vitte à Inquisição, «e conhecia
carnalmente o outro.» Na primavera de 1460, Jehan la Vitte, Deniselle Grensières e as três
mulheres nomeadas por esta que ainda eram vivas foram considerados hereges e forçados
a usar a mitra do Diabo. Todos eles acabaram por ser queimados vivos.
O ÓRGÃO DESAPARECIDO
O cepticismo intelectual acerca das bruxas não tinha força suficiente para fazer frente
às crenças populares, que se agarravam sombriamente a mitos e fantasias, por
extravagantes que parecessem, mesmo que académicos, teólogos – e até papas – os
condenassem. Uma história típica O Martelo das Bruxas prevenia os leitores contra a
habilidade do Demo, que chegou ao ponto de roubar a um homem o seu órgão sexual,
que, ao que parece, desapareceu simplesmente do devido lugar. Felizmente, o dito
reapareceu de forma mágica e o homem em questão conseguiu recuperá-lo quando se
encontrava na posse de uma mulher que tinha embruxado o seu legítimo dono. Outra
história revelava como uma rival conseguiu enfeitiçar uma jovem noiva no dia do seu
casamento. Conta o marido:
No tempo da minha juventude amei uma jovem que me importunou
para que casasse com ela, mas eu recusei e casei com outra [...]
mas querendo, por amizade, agradar- -lhe, convidei-a para o
casamento. Ela veio e [...] levantou a mão e, segundo contaram as
mulheres que estavam perto dela, disse «Vais ter poucos dias com
saúde depois do dia de hoje». [...] Aconteceu precisamente o que
ela disse. Poucos dias depois a minha mulher ficou de tal maneira
embruxada que perdeu o uso de todos os seus órgãos, e ainda
agora, ao fim de dez anos, os efeitos da bruxaria continuam
visíveis no seu corpo.
O TARIFÁRIO DA TORTURA
Os verdadeiros requintes, que vieram mais tarde, estavam enumerados numa lista de
imposições sobre a tortura, elaborada por Hermann IV de Hesse, arcebispo de Colónia.
Uma das opções envolvia arrancar a língua à vítima antes de a fazer engolir metal em
estado líquido. Outra incluía cortar a mão a uma bruxa e pregá-la ao cadafalso,
supostamente antes de a bruxa condenada ser enforcada. No entanto, nada disto era
gratuito. A família da vítima tinha de pagar pelo privilégio concedido e ainda pela festa de
celebração caso a vítima morresse ao ser torturada.
Um cronista alemão deixou uma descrição pormenorizada do sofrimento horrendo
produzido por um instrumento de tortura conhecido como a roda, que, escreveu,
transformava as vítimas...
[...] numa espécie de bonecos que gritavam estridentemente ao
mesmo tempo que derramavam o seu sangue, bonecos com
quatro tentáculos, como monstros marinhos, feitos de carne crua,
viscosa e informe, à mistura com pedaços de ossos esmagados.
Uma mulher, cujo nome não ficou registado, mostrou uma resistência notável, o que
deve ter sido profundamente frustrante para Kramer e Sprenger. Foi torturada nada mais
nada menos que 56 vezes mas nem assim confessou. Isto era muito invulgar, porque a
maior parte das pessoas acabava por dizer fosse o que fosse, fazer fosse o que fosse,
confessar o que pedissem que confessassem ou trair fosse quem fosse para pôr fim á
tortura. Admitiam ter feito pactos com o Diabo à meia-noite, de acordo com os quais
trocavam a própria alma por ouro, ter envenenado poços com maus-olhados e ter lançado
feitiços. Confessavam ter tido comércio carnal com o Diabo e ter criado monstros a quem
davam de alimento bebés recém-nascidos. Contavam como tinham participado em sabats a
meio da noite, em que adoravam o Demónio, ter celebrado missas negras e depois
participado em orgias até o Sol nascer. Havia quem assegurasse que tinha coleccionado
órgãos masculinos, vinte ou trinta de cada vez, que tinha escondido em ninhos de
pássaros, onde eles se moviam por si mesmos e eram alimentados a trigo e aveia.
Por vezes Kramer e Sprenger conseguiam confissões em massa. Conventos inteiros
de freiras revelavam que eram regularmente visitadas pelo Diabo, com quem todas tinham
fornicado. Contudo, os inquisidores depressa descobriram que, apesar da tortura e das
condenações à fogueira, o número de bruxas que descobriam não havia maneira de
diminuir. Pelo contrário, parecia que aumentava, além de que os crimes confessados por
bruxas e hereges se tornavam cada vez mais bizarros e obscenos. Era preciso mudar de
estratégia, e os inquisidores sabiam como.
O INQUISIDOR-GERAL
Embora os mais zelosos na actividade da caça às bruxas, que incluía queimá-las na
fogueira, tenham sido os bávaros, do sul da Alemanha, dos séculos XV e XVI, houve outras
regiões que se aproximaram. Uma delas tinha o seu centro em Besançon, na província do
Franco Condado. Na altura o Franco Condado era um domínio do Sacro Império Romano-
Germânico, onde, em 1532, o Código Penal Carolíngio decretou que a bruxaria era uma
actividade criminosa punível com a morte na fogueira. Embora o parlamento de Paris tenha
tido capacidade para pôr um travão na caça às bruxas, na França dividida da altura não
tinha jurisdição sobre o Franco Condado. Aqui, em 1529, Jean Boin, o inquisidor-geral de
Besançon, começou a dar atenção aos rumores que corriam na aldeia de Anjeux. O que
ouviu convenceu-o de que Anjeux era um covil de bruxas, no centro do qual se encontrava
uma mulher casada chamada Desle la Mansenée.
Nesta primeira fase não havia quaisquer provas contra ela, mas Boin soube aproveitar
tudo o que tinha. O número de pessoas que a acusavam bastou para o convencer de que
ela não podia ser inocente. O testemunho de um dos acusadores, Antoine Godin, foi típico
das «provas por ouvir dizer», consideradas conclusivas nos casos contra bruxas. Godin,
que tinha à volta de 40 anos, disse recordar que uns trinta anos antes se dizia que
Mansenée era uma bruxa. O filho dela, Mazelin, tinha contado aos amigos que a mãe
participava no sabat das bruxas, para onde ia montada numa vassoura voadora que
andava de trás para a frente. Godin também contou que alguns aldeãos tinham dito que
Desle la Mansenée tinha roubado fios de uma roca que tencionava usar em feitiços.
Quando surgiram mais duas dezenas de aldeãos de Anjeux a confirmar as «provas» de
Godin, Boin decidiu tomar medidas.
UM PAPA SUPERSTICIOSO
França fora, como é evidente, a primeira coutada da Inquisição, do tempo em que a
caça era aos templários e aos cátaros, no século XIV. Mas as perseguições não se ficaram
por ali. Os esforços dos inquisidores em Toulouse e Narbonne foram encorajados por
papas como João XXII, que promulgou uma série de bulas a incentivar a caça às bruxas, a
tratar a bruxaria como heresia e a punir os condenados da mesma maneira. O papa João
XXII foi um dos pontífices mais supersticiosos de sempre. Estava convencido de que os
seus inimigos recorriam à bruxaria para tentar matá-lo e em 1317 sujeitou-os à tortura para
os obrigar a confessar. Três anos mais tarde, João XXII disse ao inquisidor de
Carcassonne, na região dos cátaros, que perseguisse bruxas e feiticeiros e quem quer que
tentasse invocar diabos ou fizesse imagens de cera com a finalidade de provocar doenças
ou a morte. Em resultado do encorajamento de João XXII, em 1350 foram presos em
Toulouse e em Carcassonne mil suspeitos, seiscentos dos quais foram queimados vivos.
Este tipo de actividades, bem como o ardor que as incentivava, ainda existia no
tempo de Jean Bodin, mais de duzentos anos depois. Bodin morreu em 1596, mas mesmo
depois disso ainda seriam percorridos muitos quilómetros em perseguição de suspeitos
tanto em regiões católicas como protestantes na Europa.
Tudo isso aconteceu apesar de, em 1623, o papa Gregório ter dito a última palavra
do Vaticano acerca do assunto numa bula intitulada Omnipotentis Dei (A Omnipotência de
Deus). Gregório, reformador por natureza, ordenou que as punições sádicas fossem
reduzidas ou até abandonadas e que a pena de morte fosse aplicada apenas quando se
tivesse «provado que os acusados tinham pacto com o Diabo e tinham cometido
assassínios com a sua ajuda».
No entanto, foi preciso muito tempo para o recado chegar aos perseguidores de
bruxas. Foi como se a caça às bruxas e as condenações à fogueira tivessem ganho uma
vida própria a que nem as ordens do papa conseguissem pôr fim. Quando muito, os
parâmetros da culpa foram alargados para além das bruxas a uma nova classe de hereges,
incluindo as videntes, os necromantes, os encantadores e, os mais inquietantes de todos,
os lobisomens.
BALANÇO DO PASSADO
Os estudiosos calculam que no total quarenta a cem mil pessoas, entre homens,
mulheres e crianças, para não falar de milhares de gatos pretos e de vários cães, foram
torturados e mortos nos mais de cinco séculos em que a Europa tremeu de medo do Diabo
e das suas artimanhas e os papas e a Inquisição lutaram por escapar às suas garras
odiosas. Entre os julgamentos por bruxaria que se realizaram na Europa, sabe-se que pelo
menos 12 mil acabaram em execuções.
Muitos anos depois de a Europa ter por fim saído desta fase horrenda, historiadores,
estudiosos e psiquiatras encaram este período terrível da história do continente como uma
alucinação gigantesca. Mais do que isso, a caça às bruxas, com as suas torturas e
confissões forçadas, foi um pesadelo ininterrupto, criado pelo medo, pela ignorância, pelo
fanatismo, pela repressão da sexualidade e por uma histeria generalizada. A vergonha
associada a este capítulo da história da Europa manchou por muito tempo o seu passado.
Capítulo
Lucrécia Bórgia, filha do papa Alexandre VI, desempenhou um papel
importante nas maquinações do pai e dos irmãos cardeais.
Casou-se três vezes para obter vantagens políticas
e económicas para os Estados Papais.
À ESPERA DO TRONO
Rodrigo Bórgia teve de esperar 34 anos, o tempo que duraram os pontificados de
quatro sucessores do tio, até o trono de São Pedro ficar ao seu alcance. Nessa altura já
ele tinha 61 anos e perdera a boa figura e o aspecto atraente da juventude. No entanto, o
que importava era o que conservara. Em jovem, o papa Pio II, o sucessor do seu tio
Calisto, avisara-o de que o seu gosto por orgias era «inconveniente» e incitara-o a
preocupar-se com a sua reputação «de forma mais prudente». Foi uma perda de tempo
papal. Cerca de quarenta anos mais tarde nada mudara. O gosto de Rodrigo pela
devassidão, a que dava a designação eufemística de «festas de jardim», mantinha-se tão
aceso como sempre. Teve oito filhos de três ou quatro amantes – o último tinha ele 61
anos – e, como ele próprio se descreveu um dia, mantinha-se «robusto, com gosto pela
convivência», com «uma habilidade maravilhosa para as coisas de dinheiro». A riqueza que
esta «habilidade maravilhosa» lhe proporcionou tanto antes como depois da eleição foi
assombrosa. Um dos seus contemporâneos escreveu que...
[...] os seus cargos papais, um grande número de abadias em
Itália e Espanha e os seus três bispados, de Valência, de Portus e
de Cartagena, proporcionam-lhe um imenso rendimento e diz-se
que só o cargo de vice-chanceler lhe dá oito mil florins de ouro. A
sua baixela, as suas pérolas, os seus brocados bordados a seda e
ouro e os seus livros de todas as áreas do saber são numerosos
[...] Nem vale a pena mencionar os seus inúmeros dosséis, os
arreios para os cavalos [...] ou o magnífico guarda-roupa, ou o
vasto número de moedas de ouro na sua posse.
Não era homem que parecesse talhado para alcançar o papado pelo caminho da
santidade. Para ele, o papado era um negócio a explorar com vista ao ganho, que não era
pequeno. Esta é pelo menos a opinião de Francesco Guicciardini, cronista contemporâneo
de Rodrigo Bórgia, que escreveu acerca dele:
Havia nele e em todo o seu esplendor todos os vícios tanto da
carne como do espírito [...] Não havia espírito religioso nem
respeito à palavra dada. Prometia liberalmente todas as coisas,
mas não respeitava senão as promessas que envolviam vantagens
para ele próprio. Não tinha qualquer preocupação com a justiça, já
que no seu tempo Roma era um coio de ladrões e assassinos. No
entanto, já que não havia neste mundo castigo para os seus
pecados, foi próspero até ao último dos seus dias. Em poucas
palavras, foi talvez mais perverso e mais beneficiado pela fortuna
do que qualquer outro papa em muitos anos.
Com um carácter destes, não havia limites para a ambição de Rodrigo Bórgia, que
com o avanço da idade não perdeu nada do seu vigor. O novo papa formulou o plano de
criar uma dinastia com tentáculos nos principais pilares do poder político na Europa.
Começou precisamente com a desonestidade com que tencionava continuar, quando o
conclave se reuniu para escolher um sucessor para o papa Inocêncio VIII, que morrera em
1492.
Já antes da morte de Inocêncio as possibilidades de eleição de Bórgia não pareciam
fortes. O cardeal Giuliano della Rovere, que o detestava, começou a inocular o veneno
lembrando ao papa que Bórgia era um «catalão», como os espanhóis eram conhecidos no
Vaticano, e portanto não era de confiança. Rodrigo Bórgia estava lá e ouviu o insulto.
Defendeu-se vigorosamente e com insultos tão inflamados que os dois rivais por pouco
não se envolveram numa luta de socos e tiveram de ser separados com o argumento de
que insultavam o papa agonizante.
A COMPRA DA ELEIÇÃO
Nessa altura, nos bastidores do Vaticano, as engrenagens já estavam a ser oleadas e
as eleições manipuladas, com os cardeais a tentarem enganar-se uns aos outros para
assegurar a eleição do seu candidato. As suas escolhas não tinham sido feitas com base
na compreensão da vontade de Deus ou dos desígnios do Espírito Santo – os critérios
tradicionais nas eleições papais –, mas de acordo com os desejos dos governantes das
cidades-estado de Itália, todas elas preocupadas com eleger um papa favorável aos seus
interesses.
O dinheiro envolvido era imenso. Por exemplo, o rei Ferrante, de Nápoles, ofereceu
uma fortuna em ouro pelos votos dos cardeais dispostos a eleger um pontífice que
protegesse os interesses napolitanos no Vaticano. Recorreu-se a todos os truques baixos.
Por exemplo, foi espalhada propaganda segundo a qual os milaneses estavam a planear
subjugar toda a Itália, tudo isto com o objectivo de reduzir as possibilidades dos
candidatos milaneses ou apoiados pela cidade de Milão.
Rodrigo Bórgia não esteve envolvido em nenhum destes jogos de poder, nem que
fosse por ser espanhol, o que fazia que todos os outros cardeais desconfiassem
profundamente dele. No entanto, isto acabou por constituir uma vantagem para Bórgia
porque significava que não estava contaminado pelos interesses e pelas maquinações
venais em que a maior parte dos outros cardeais que participaram no conclave estava
envolvida. Rodrigo beneficiava ainda de outra vantagem de que poucos mais podiam
vangloriar-se. Era tão rico que podia gastar verdadeiras fortunas em subornos para
comprar votos no conclave em grande escala.
Os seus principais rivais na sucessão eram o cardeal Ascânio Sforza, de Milão, e
cardeal Giuliano della Rovere, este último apoiado por duzentos mil ducados de ouro do rei
Carlos VIII de França. A república de Génova contribuiu com outros cem mil ducados para
a sua campanha. Nas duas primeiras votações, della Rovere e Sforza ficaram muito perto
um do outro, com Rodrigo Bórgia em terceiro lugar. No entanto, não vinha a grande
distância dos outros dois e o impasse nos dois primeiros lugares aumentava as
possibilidades de vitória de Bórgia.
Já convencido de que estava ao seu alcance ultrapassar della Rovere e Sforza e
alcançar o primeiro lugar, Rodrigo cobriu os rivais de propostas que sabia que eles não
conseguiriam recusar. Entre estas ofertas incluíam-se os bispados em Espanha e em Itália,
imensas terras, abadias, castelos e fortalezas, bem como cargos de governador, cargos da
Igreja, ouro, joias e tesouros de todos os tipos.
O DIVÓRCIO DE LUCRÉCIA
Alexandre, ajudado e encorajado por César, decidiu livrar-se de Giovanni. O genro foi
forçado a confessar algo que era manifestamente falso, e profundamente humilhante para
um homem do Renascimento: o seu casamento com Lucrécia nunca fora consumado
devido à sua própria impotência. O facto de na altura Lucrécia estar grávida foi
convenientemente ignorado. O divórcio que se seguiu permitiu que o papa escolhesse um
segundo marido para Lucrécia, o bem-parecido Afonso de Aragão, duque de Bisceglie. Há
muitos anos que Alexandre tinha ambições sobre Nápoles e Afonso, da família aragonesa
que governava a cidade, parecia o meio ideal de as concretizar.
O casamento teve lugar em 1498, mas, tal como antes dele Giovanni Sforza, Afonso
depressa deixou de ser útil. Um ataque das forças francesas e espanholas pôs fim ao
domínio aragonês sobre Nápoles e tornou o jovem inútil. Em Julho de 1500, provavelmente
com a cumplicidade do papa, César Bórgia mandou um grupo de rufias armados atacarem
Afonso quando este passava a pé pela Praça de São Pedro, no Vaticano. Não
conseguiram matá-lo dessa vez, mas César completou o serviço, ao que tudo indica
pessoalmente, e estrangulou o cunhado quando este convalescia. Lucrécia, viúva aos 20
anos, ficou destroçada, porque amara genuinamente Afonso.
Por fim o papa Alexandre conseguiu o que queria de um genro com o terceiro
casamento arranjado para Lucrécia, com outro Afonso, muito melhor do que o primeiro.
Tratava-se de Afonso d’Este, cuja família governava a cidade de Ferrara. Ao princípio
Afonso d’Este recuou perante a ideia de entrar na família Bórgia, o que não é de
surpreender, com tudo o que corria sobre os seus parentes, que incluía assassínios,
incesto, as mais variadas imoralidades e depravações e quase todos os outros crimes que
se pudesse imaginar. Por fim, deixou-se convencer e os dois casaram-se, a 30 de
Dezembro de 1501. Ao contrário dos dois primeiros maridos de Lucrécia, Afonso e os
D’Este dominavam perfeitamente a sua cidade, que fazia fronteira com o papado a norte, e
pôde por isso contribuir com o seu poder e influência para o domínio de Alexandre e dos
pontífices que lhe sucederam até ao fim do século XVI. Depois disso Ferrara foi absorvida
pelo domínio papal.
O FILHO PREFERIDO
Por muito afecto que dedicasse aos seus outros filhos, a parte de leão do seu amor
paterno ia para o favorito, o seu filho João Bórgia. Em 1488, quatro anos antes de
Alexandre se ter tornado papa, o jovem João, então com 11 anos, recebeu como doação o
ducado de Gandia, o domínio da família em Espanha, deixado em testamento pelo seu
meio-irmão Pier Luigi. César, irmão mais velho de João, ficou furioso por se ver preterido
por um irmão mais novo, conhecido no Vaticano como «o menino mimado» (reputação a
que em geral correspondia). A sua fúria foi tal que jurou matar o irmão, embora, na
qualidade de membro do clero, não pudesse vir a beneficiar das honrarias essencialmente
seculares de João. Contudo, na altura o próprio César tinha apenas 13 anos e a ameaça
não foi levada a sério.
O ducado de Gandia não era o único legado que João recebia de Pier Luigi. Herdou
ainda a sua prometida, Maria Enríquez de Luna. Aos 16 anos, em 1493, João partiu para
Espanha e para o seu ducado, num estilo grandioso que teria sido mais adequado a um
imperador. O pai tinha-o provido generosamente de ouro, joias, prata e uma quantidade de
outras riquezas, que exigiram quatro galeras que as transportassem de Itália para
Espanha. Dizia-se que a família estava a preparar-se para mudar os tesouros do Vaticano
para a Península.
«Diz-se que volta daqui a um ano», conta Gian Lúcido Cattaneo, enviado da cidade-
estado de Mântua, «mas vai deixar lá tudo isto e vai regressar para uma nova colheita».
ASSASSINOS A SOLDO
Por fim conseguiram localizar uma testemunha. Giorgio Schiavi, um comerciante de
madeira que descarregava a sua mercadoria numa ilha no meio do rio Tibre, contou que
por volta das duas da manhã vira dois homens atirar furtiva mente um corpo ao rio. Os
homens do papa dragaram o rio toda a noite e toda a manhã do dia seguinte, até que por
volta do meio-dia um corpo vestido com brocados ricos e com a insígnia de capitão-geral
da Igreja acabou por ser descoberto. Era João. Tinha sido brutalmente esfaqueado, pelo
menos oito vezes, e depois fora degolado. Tinha as mãos atadas e uma pedra pesada fora
atada ao seu pescoço para evitar que viesse ao de cima. O crime tinha todas as marcas de
um assassínio por encomenda.
O papa Alexandre ficou de rastos quando soube como o filho fora morto. Diz-se que
deu um grito de animal ferido quando viu o corpo mutilado e enlameado de João. Johann
Burchard, mestre de cerimónias do papa Alexandre, escreveu no seu diário:
O papa, quando ouviu dizer que o duque tinha sido morto e atirado
ao rio como lixo, ficou num paroxismo de sofrimento, e a dor e a
amargura do seu coração levaram- -no a fechar-se no seu quarto e
a chorar amargamente.
ADORE A CULPA
Alexandre recusou a entrada a quem quer que fosse nos seus aposentos durante
várias horas, e não comeu nem bebeu mais de três dias. No meio de tanto sofrimento,
pôs-se a imaginar que João morrera por causa dos seus próprios excessos pecaminosos.
Disse então:
Deus fez isto talvez por causa de algum pecado nosso e não
porque ele merecesse uma morte tão cruel [...] Estamos por isso
determinados a procurar reformar-nos, a nós bem como à Igreja.
Estamos determinados a renunciar completamente ao nepotismo.
Começaremos por isso por nós próprios e continuaremos ao longo
de todos os graus da Igreja até todo o trabalho ter sido
completado.
Era o sofrimento a falar, como é óbvio. Alexandre era um pecador impenitente,
demasiado habituado a todo o tipo de excessos e de prazeres para conseguir converter--
se de um dia para o outro da maneira que parece sugerir. Pelo contrário, regressou aos
seus hábitos de imoralidade e às suas intrigas políticas de sempre. Os seus cardeais e
outros clérigos não se importavam por aí além, já que não tinham muita vontade de
renunciar aos seus próprios prazeres.
João foi sepultado na capela da família algumas horas depois de ter sido encontrado.
O seu cortejo fúnebre foi acompanhado por 120 homens com tochas. Quando a procissão
se aproximava do lugar no rio Tibre onde o corpo fora encontrado, os homens do exército
privado dos Bórgias desembainharam as espadas e juraram vingança contra os
responsáveis pelo assassínio, fossem eles quem fossem. Apesar de ter sido oferecida uma
recompensa generosa, o assassino nunca foi descoberto, embora não tenham faltado
suspeitos. Qualquer das famílias nobres de Roma, privadas por João e pelo pai das honras
que consideravam serem-lhe devidas, podia ter estado por trás do crime. O cardeal
Giuliano della Rovere, o grande inimigo dos Bórgias, com ligações à família Orsini, podia
ter estado por trás desta morte.
A INVESTIGAÇÃO É SUSPENSA
Outro dos possíveis culpados podia estar mais próximo da família da vítima, na
realidade demasiado, para que o mal-estar pudesse ser evitado. O papa Alexandre dera
ordens de que se começasse uma investigação ao sucedido pouco depois do assassínio,
mas esta foi interrompida apenas três semanas depois. Nunca foi reaberta. Tudo isto
alimentou as especulações que rodearam a morte de João. Corria que a investigação já
chegara ao culpado, mas revelara um assassino cujo nome o papa não queria ver
divulgado. O candidato mais provável, de acordo com estes rumores, era o seu filho César,
uma das últimas pessoas a verem João com vida. A jovem viúva de João, Maria Enríquez
de Luna, e a sua família pareciam certos de que fora César que assassinara o irmão.
Estavam convencidos de que, nove anos depois de ter jurado fazê-lo, cumprira a sua
promessa, e tudo indica que havia pistas que confirmavam esta teoria.
Para começar, a natureza implacável e rapace de César, bem como a sua inclinação
para a intriga, já eram bem conhecidas. O assassínio, dizia-se, estava dentro do seu raio
de acção. Além disso, César tinha tudo a ganhar com a morte do irmão. Desde 1488 que
César Bórgia cobiçava o ducado de Gandia e todas as outras honrarias e riquezas que o
pai concedera a João. Com o irmão afastado do caminho, chegara a sua oportunidade,
que começou por ser posta em causa pelos protestos do pai. Alexandre tivera grandes
dificuldades em fazer entrar César no Colégio de Cardeais e estava convencido de que isso
podia ser um trampolim para um dia o filho chegar a papa. No entanto, César era um
homem do seu tempo, e em particular um homem de um Renascimento sensual. Estava
mais interessado em caçar do que em rezar, preferia a riqueza e as mulheres à integridade
espiritual e as terras e os domínios a uma vida de humildade e sacrifício.
Por fim César conseguiu o que queria, nem que fosse por Jofré, o irmão que o papa
Alexandre planeava pôr no lugar de João, ser demasiado fraco e inseguro para poder
enfrentar os desafios que isso envolveria. César Bórgia, um chefe militar inspirador e um
estratego de primeira, era um homem forte e vigoroso, o que era necessário para
concretizar as ambições do pai. Foi por isso que, embora com relutância, Alexandre
autorizou o filho a resignar aos votos, em 1498. Foi o primeiro cardeal que alguma vez o
fez.
ESPECTÁCULO DE CABARÉ
Uma das histórias refere um jantar oferecido por César Bórgia no fim de Outubro de
1501 em que cinquenta cortesãs dançaram nuas com cinquenta criados. Seguiu-se uma
orgia em que quem tinha mais vezes relações com as prostitutas ou mostrava o «melhor
desempenho» recebia prémios. Eram os espectadores, entre os quais se incluíam
Alexandre, César e Lucrécia, que escolhiam os vencedores. Os diplomatas estrangeiros em
Roma, que transmitiam regularmente as histórias mais suculentas dos Bórgias aos seus
empregadores, espalharam a notícia de que os aposentos do papa tinham sido
transformados num bordel privado onde todas as noites pelo menos 25 mulheres
proporcionavam distração em festas frequentadas por Alexandre, César e um grande
número de cardeais. O pontífice tinha aumentado o número de cardeais do Sacro Colégio.
O privilégio de obter cada um destes lugares foi pago por mil ducados.
O dinheiro seguiu directamente para os bolsos do papa e de César, ambos já
suficientemente ricos para fazer o rei Creso da Lídia empalidecer de inveja. É provável que
um dos que mais contribuíram para espalhar rumores sobre os Bórgias tenha sido um dos
seus maiores inimigos, um tal barão Sílvio Savelli, cujos domínios haviam sido confiscados
pelo papa. Savelli odiava Alexandre com um ódio selvagem. Depois de receber uma carta
anónima de Nápoles repleta de pormenores escandalosos sobre o pontífice e a sua família,
mandou-a traduzir em todas as línguas europeias e fê-la circular pelas cortes reais do
continente. Na carta o papa Alexandre era referido como «este monstro» e «esta besta
infame». E continuava:
Quem não ficará chocado ao ouvir as histórias da lascívia
monstruosa abertamente exibida no Vaticano, desafiando Deus e a
decência? Quem não se sente repugnado pela depravação, pelo
incesto, pela obscenidade dos filhos do papa [...] pelas bordas de
cortesãs na Basílica de São Pedro? Não há casa de má fama nem
bordel que não seja mais respeitável!
Embora a carta exagerasse com a finalidade de denegrir ao máximo os Bórgias, estas
acusações impressionaram muitos outros inimigos da família em Roma. Durante anos a fio,
cardeais, clérigos e nobres tinham vivido esmagados pela ambição do papa Alexandre, pelo
seu nepotismo descarado, pela sua avidez de terras e domínios, pela presença no Vaticano
das suas amantes e dos seus bastardos, bem como pelo insulto que o seu comportamento
depravado representava para a Igreja. Mas só em 1503, quando Alexandre morreu,
provavelmente de malária, puderam por fim retribuir. César também contraiu a doença,
espalhada na cidade por verdadeiras nuvens de mosquitos, mas era mais jovem e saudável
e sobreviveu.
Apesar dos esforços dos seus físicos, ou talvez por causa deles, por exemplo do
hábito de sangrarem os doentes com regularidade, o papa morreu ao fim de quase uma
semana, a 18 de Agosto. A notícia foi mantida em segredo durante vários dias. Mesmo
assim, os membros da família Bórgia que continuavam no Vaticano foram dominados pelo
pânico, pois sabiam, tal como César, que sem o papa deixara de haver qualquer garantia
de segurança para eles. Alguns fugiram imediatamente de Roma, outros ficaram para trás
mas apenas o tempo necessário para saquear o tesouro de Alexandre e os aposentos
papais, de onde retiraram todo o ouro, a prata, as joias e as taças de ouro e esmeralda,
uma estátua de ouro de um gato com dois diamantes no lugar dos olhos e o manto de São
Pedro, coberto de pedras preciosas. O produto do saque foi escondido no Castel
Sant’Angelo e só depois a morte do papa foi anunciada. A morte e o tempo quente de
Agosto tinham deformado de tal maneira o corpo de Alexandre que era horrível de se ver.
Johann Burchard conta:
O seu rosto estava alterado, da cor das amoras ou do tecido mais
negro, coberto de pontos de um preto azulado. O nariz estava
inchado, a boca distendida no ponto onde a língua estava dobrada
e os lábios pareciam preencher tudo.
Mesmo depois de o corpo grotescamente inchado ter sido metido à força no caixão,
ninguém quis aproximar-se dele ou tocar-lhe. Correra o rumor de que Alexandre fizera um
pacto com o Diabo para ser eleito papa, em 1492, e que os demónios tinham aparecido no
preciso momento em que ele morreu. Pode ter sido uma das razões por que os padres da
Basílica de São Pedro recusaram o corpo do papa e não quiseram dar- -lhe sepultura.
Outros sentiram repugnância pelo estado do corpo e também pelo mau nome que o Bórgia
dera à Igreja Católica. Foram precisas ameaças sérias para fazer os padres ceder e
cumprir com os seus deveres funerários.
Capítulo
VI
«E no entanto ela move-se», terá dito Galileu depois de ser obrigado
pela Inquisição a retratar as suas teorias heliocêntricas.
Os seus julgamentos foram revogados 350 anos mais tarde, em 1992.
PERSEGUIÇÃO A GALILEU
O acontecimento mais determinante da vida de Galileu ocorreu 21 anos antes do seu
nascimento em Pisa, em 1564. De Revolutionibus Orbiunt Coelestium (Acerca das
Revoluções das Esferas Celestes), do matemático, astrónomo e clérigo polaco Nicolau
Copérnico, foi publicado em 1543, o ano da morte do seu autor.
Em pouco tempo as implicações do livro deflagraram como dinamite, tanto na história
da ciência como na história da Igreja. O livro de Copérnico contradizia quase tudo aquilo
em que a Igreja acreditava – e ensinava – acerca dos céus e da maneira como a Terra, os
planetas e o Sol se comportavam.
As ideias defendidas pela Igreja derivavam das teorias de dois astrónomos da Grécia
Antiga, Aristóteles, que viveu no século IV a.C., e Ptolomeu, que viveu no século II d.C. Na
Igreja medieval, as suas teorias eram encaradas como verdades imutáveis confirmadas pela
Sagrada Escritura. De acordo com os aristotélicos, como eram conhecidos os seguidores
do filósofo, estas verdades eram inegáveis e desafiá-las era uma heresia. A teoria
geocêntrica da antiguidade defendia que a Terra estava imóvel no centro do universo,
enquanto o Sol girava à sua volta. Uma das «provas» a favor desta teoria geocêntrica
encontrava-se na Bíblia, onde, no Salmo 104, versículo 5, é dito: «Fundaste a terra sobre
bases sólidas, inabaláveis para sempre.»
A teoria heliocêntrica (centrada no Sol) de Copérnico pôs em causa esta afirmação ao
defender que era o Sol que se encontrava no centro do universo, sendo circundado pela
Terra e pelos outros planetas do sistema solar, na altura conhecidos como «estrelas
errantes». O Sol até podia parecer cruzar o céu durante o dia, mas isto, dizia Copérnico,
não passava de uma ilusão óptica: o movimento aparente resultava da deslocação da
Terra ao longo da sua órbita.
Galileu, com grave prejuízo pessoal, tornou-se seguidor de Copérnico, convenceu--se
de que aquilo que o De Revolutionibus dizia era verdade e de que a Igreja não tinha razão.
No tempo de Galileu, pensar estas coisas era muito perigoso. Ao apoiar e mais tarde
divulgar ideias que desafiavam os ensinamentos básicos da Igreja, Copérnico e os seus
adeptos ficavam à mercê das acusações de heresia. A Igreja e o papado podiam ser
implacáveis no seu esforço de suprimir qualquer opinião acerca de qualquer assunto que se
afastasse daquilo que consideravam a verdade. Esta atitude endurecera de forma nítida a
partir de meados do século XVI, quando os dissidentes protestantes confrontaram a Igreja
Católica com a maior ameaça que algum dia tivera de enfrentar.
Pode ter sido esta a razão de Copérnico ter tido a precaução de lisonjear o papa
Paulo III dedicando-lhe a sua obra e de não a ter publicado em vida. A decisão revelou- -se
clarividente. A teoria heliocêntrica escapou à condenação religiosa apenas nos três anos
que se seguiram à morte de Copérnico, até 1546, altura em que um padre dominicano,
Giovanni Maria Tolosani, denunciou as suas ideias e reafirmou com firmeza a verdade
inquestionável das Escrituras. Ao princípio, as críticas não foram muito mais longe, mas
por volta de 1609, quando se deram as primeiras iniciativas oficiais para suprimir o trabalho
de Copérnico, Galileu Galilei foi o primeiro a surgir na linha de fogo.
A SUPERNOVA DO GALILEU
Em 1604, Galileu observou uma supernova, uma estrela que explodira, o que o levou
a pôr em causa a ideia de Aristóteles de que os céus vistos da Terra eram imutáveis. A
existência de uma supernova, pensava Galileu, era uma prova para além de qualquer
dúvida de que esta ideia era falsa. Para começar, mostrava que o tempo de vida das
estrelas era finito.
Uma das razões que podem levar à formação de uma supernova é o núcleo que
alimenta de energia uma estrela envelhecida esgotar-se. Quando isso acontece, essa
estrela transforma-se numa estrela de neutrões ou num buraco negro, aquece até
desencadear uma explosão e aumenta muito de tamanho. Nessa fase pode iluminar todo o
céu com uma radiação tremenda, depois do que permanece visível durante várias semanas
ou meses antes de começar a diluir-se na escuridão circundante.
Galileu teve a felicidade de observar um destes fenómenos espectaculares, que
ocorrem em média duas vezes em cada cem anos, e de estar no lugar certo no momento
certo, já que para observar uma supernova em geral é preciso manter uma vigilância
prolongada dos céus nocturnos.
Um dos aspectos mais curiosos deste acontecimento é que a supernova observada
por Galileu deve ter explodido milhares ou mesmo milhões de anos antes de ter sido vista:
o universo é tão inimaginavelmente vasto que a luz resultante da explosão pode ter levado
todo esse tempo a deslocar-se no espaço até ficar à vista da Terra. Nesse momento,
como é evidente, a própria estrela já estava morta há muito.
A INVENÇÃO DO TELESCÓPIO
Depois, em 1609, Galileu ouviu falar da luneta, mais tarde rebaptizada com o nome de
telescópio, uma invenção recente de um especialista alemão em óptica, Hans Lipperhey.
Galileu reconheceu de imediato no telescópio um passo em frente na óptica que poderia
revolucionar a prática da astronomia. Decidiu construir o seu próprio telescópio, muito
mais poderoso do que o original, de Lipperhey, capaz de aumentar duas ou três vezes
mais. Ainda mais tarde, Galileu veio a construir um aparelho capaz de ampliar 32 vezes os
objectos, que considerava poder mostrar-lhe a verdadeira magnificência dos céus e abrir-
lhe caminho a novas descobertas. Numa noite gelada de Janeiro de 1610, Galileu
envolveu-se num manto grosso e subiu à sala mais alta da sua casa de Pádua, onde se
manteve até ao amanhecer a olhar para o céu. Fez o mesmo na noite seguinte e na outra,
até que ficou com um mês completo de observações. Este registo foi uma verdadeira
revelação. Para quase todos os pontos para onde olhava, Galileu chegava à conclusão de
que o céu era fundamentalmente diferente do que diziam Aristóteles, Ptolomeu e as ideias
populares resultantes das suas teorias. A Lua não era lisa, como Aristóteles ensinara, mas
sim rugosa e salpicada de crateras. A Terra não era o único planeta com satélites: Galileu
observou quatro na órbita do planeta Júpiter. Além disso obteve provas de que Vénus, tal
como a Terra, se deslocava na órbita do Sol.
0 DIÁLOGO DE GALILEU
O astrónomo decidiu escrever um novo livro, o Diálogo Dei Massimi Sistemi (Diálogo
dos Grandes Sistemas), desta vez sob a forma de uma conversa entre três personagens,
duas que defendem as teorias de Copérnico e uma que defende a de Ptolomeu. Através
deste género vindo da Antiguidade em que as personagens pronunciam as suas falas numa
espécie de peça de teatro em que são encenadas ideias, Galileu imaginou que conseguiria
contornar as objecções da Inquisição e da Sagrada Congregação do Índex (a Sagrada
Congregação era um corpo dentro da Igreja que decidia que livros eram heréticos e por
isso não deveriam ser lidos pelos católicos).
Apesar disso, a sua experiência em Roma em 1616 deixara-o atento à possibilidade
de irritar as autoridades pontifícias. Estava ao alcance do poder destas destruir qualquer
ideia com que não concordassem, e fazer o mesmo com qualquer pessoa que a
defendesse ou apoiasse. Galileu tomou a precaução de pôr à prova o conteúdo do Diálogo
com o jurista jesuíta Francesco Ingoli, que em tempos criticara as suas convicções
copernianas. Galileu escreveu-lhe defendendo Copérnico e a teoria heliocêntrica, mas teve
o cuidado de acrescentar: «Não empreendi esta tarefa com a finalidade de defender como
verdadeira uma proposição que já foi declarada suspeita e repugnante.» Em vez disso,
continuou Galileu, o que queria era estabelecer os argumentos a favor e contra Copérnico,
para que estes pudessem ser julgados com justiça.
Ingoli recebeu a carta de Galileu em Roma em Dezembro de 1624. Galileu ficou
ansiosamente a aguardar uma reacção de fúria do papa Urbano, mas não houve réplicas
espalhafatosas nem exigências furiosas de que o astrónomo regressasse imediatamente a
Roma para se explicar ou estrondos com origem na Inquisição. Convencido de que a costa
estava livre, Galileu avançou com o Diálogo. Tratava-se de uma obra monumental, com
mais de quinhentas páginas, que levou seis anos a concluir. Foi um processo doloroso.
Galileu tinha 66 anos na altura em que o livro ficou terminado. Sofria gravemente de artrite,
o que lhe dificultava muito a escrita.
Para escrever o Diálogo, recorreu a um artifício muitas vezes usado pelos cientistas
da Europa católica, que era esconder as informações controversas apresentando as suas
teorias como meros exercícios intelectuais ou dando-lhes forma ficcional.
Os factos já haviam sido disfarçados de ficção, ou, no caso do Diálogo de Galileu, de
discussão imaginária, por Johannes Kepler, o matemático e astrónomo alemão
contemporâneo de Galileu e igualmente adepto da teoria heliocêntrica de Copérnico. O
Somnia (O Sonho) de Kepler é um tratado acerca de deslocações interplanetárias em
forma de viagem fantástica à Lua, e desde então tem sido considerado a primeira obra de
ficção científica. Não havia, é evidente, garantia de que a Inquisição se ia deixar enganar
por este expediente de homens como Galileu ou Kepler, e Somnia teve consequências
alarmantes para a mãe de Kepler, Katherina. Em 1617, foi acusada de bruxaria por causa
do livro do filho. Felizmente, a velha senhora foi absolvida e libertada em 1621, em boa
medida graças aos argumentos vigorosos do filho em sua defesa.
No entanto, o perigo envolvido era demasiado óbvio e Galileu não quis correr riscos.
Decidiu levar pessoalmente o manuscrito completo do seu Diálogo a Roma e acompanhar o
processo de aprovação e impressão. Pediram-lhe que fizesse algumas alterações de pouca
monta – nada muito drástico – e o livro foi por fim publicado em Fevereiro de 1632. Foi um
êxito imediato e esgotou-se pouco tempo depois de ter sido posto à venda.
Galileu ficou compreensivelmente satisfeito quando o Diálogo foi aprovado, mas tinha
passado por alto uma coisa importante. Não percebeu que o papa Urbano nunca entraria
no jogo de muitos autores de usar expedientes verbais para contornar a censura das
autoridades religiosas e divulgar as suas ideias heréticas. Nisto Galileu pode ter avaliado
mal a abertura de Urbano quando ainda não passava de um cardeal: por muito amigos que
fossem, o Urbano papa não podia permitir-lhe uma coisa assim. Isso tornou-se impossível
também porque em 1625 chegou a Roma a notícia de que os protestantes alemães, os
maiores inimigos da Igreja Católica, haviam aceitado a teoria heliocêntrica.
O endurecimento da atitude do papa tornou-se óbvio para Galileu quando ofereceu a
Urbano VIII um exemplar do seu livro. Urbano ficou possesso de raiva quando viu o que
Galileu fizera com a personagem de Simplício, a que representava a perspectiva de
Ptolomeu. Enquanto as outras duas personagens, Salviati, um cientista, e Sagredo, um
intelectual, falavam com lógica quando defendiam Copérnico e as suas teorias, Simplício,
como o seu nome sugere, comportava-se como um pateta e um palhaço. Como disse
Tomás Campanella, amigo e admirador de Galileu:
Simplício parece o bobo desta comédia filosófica, o que mostra a
idiotice da sua seita, as palavras vazias, a instabilidade e a
obstinação e tudo o mais que queira mencionar.
Não só Simplício era ridicularizado ao longo de todo o livro, como Galileu ainda
conseguiu atacar os aristotélicos, de quem diz que lhes «bastava adorar sombras, filosofar
com devida circunspecção mas apenas com base em meia dúzia de princípios mal
compreendidos». Contudo, o pior ainda era a ideia, espalhada por aristotélicos
enfurecidos, de que Simplício era uma caricatura do próprio papa Urbano.
GALILEU EM PERIGO
A estratégia esquiva de defesa de Galileu deixou o Santo Ofício numa posição
duvidosa. Para manter a reputação, e isso era uma das suas prioridades, a Inquisição não
podia permitir que Galileu escapasse sem ser punido. Uma das alternativas era proibir
simplesmente o Diálogo e incluí-lo na lista de livros proibidos, onde já se encontrava o De
Revolutionibus, mas isso equivalia a uma absolvição de Galileu. O papa Urbano, além
disso, opôs-se firmemente a que o livro fosse condenado, mas exigiu que o seu autor o
fosse. Não havia alternativa a processar e condenar Galileu, como era desejo do seu velho
amigo.
Em geral, nesta fase os suspeitos de heresia eram entregues à Inquisição para serem
torturados até confessarem. Os inquisidores davam aos acusados uma última hipótese de
recuar mostrando-lhes os instrumentos de tortura, muitas vezes benzidos por padres antes
de serem usados, já que eram encarados pela Igreja como ferramentas sagradas com as
quais Deus permitia aos inquisidores fazer regressar as ovelhas tresmalhadas à verdadeira
fé.
É muito provável que Galileu tivesse conhecimento destes instrumentos e do
sofrimento que podiam provocar. Não era habitual a Inquisição torturar idosos, mas não
sabemos a que ponto Galileu, em 1633 com quase 70 anos, se sentiria seguro de que
escaparia à tortura devido à idade. No entanto, é possível que a simples ameaça de
tortura tenha bastado para alcançar a única alternativa aberta à Inquisição, que era levar
Galileu, um homem idoso, frágil e amedrontado, gasto pela doença e desgastado pela
ansiedade, a renunciar pelo medo e pelo cansaço.
Quase três semanas depois de ter comparecido pela primeira vez perante a
Inquisição, Galileu voltou ao tribunal, a 30 de Abril, e admitiu o seu erro ao escrever o
Diálogo. Disse o seguinte:
Confesso de minha livre vontade que em vários sítios me parece
que apresento as coisas de forma tal que um leitor ignorante da
minha verdadeira finalidade pode ter razão para supor que os
argumentos do lado errado, que era minha intenção desmentir,
foram expressos de modo que mais parecem pensados para
convencer pela sua força lógica do que para ser rebatidos.
A CONDENAÇÃO
A 22 de Junho de 1633, Galileu voltou pela última vez à Inquisição, desta vez para
conhecer o seu destino. Vestiu o traje próprio destas ocasiões, as longas vestes brancas
dos que se haviam retratado, e ajoelhou-se perante os juízes para conhecer a sua
sentença. A Inquisição considerou-o culpado de «crimes hediondos» e decidiu que ele seria
«veementemente suspeito de heresia». Galileu respondeu: «Amaldiçoo e abomino os meus
erros e heresias.»
O seu Diálogo foi proibido, e permaneceu quase duzentos anos no Índex dos Livros
Proibidos. O próprio Galileu foi condenado a prisão perpétua. Depois foi levado para as
masmorras por baixo do Tribunal do Santo Ofício, onde poderia ter ficado se não fosse a
intercessão do jovem cardeal Francesco Barberini, sobrinho de Urbano VIII. Barberini era
um grande admirador de Galileu e conseguiu convencer o tio a permitir que o físico
voltasse para a embaixada da Toscana. Niccolini ficou alarmado com o estado em que viu
Galileu. «É terrível», escreveu, «ter de enfrentar a Inquisição. O pobre homem vem mais
morto do que vivo.»
O embaixador começou a manobrar para conseguir que Galileu pudesse regressar a
casa, em Florença. O papa Urbano recusou, mas permitiu que o astrónomo caído em
desgraça se mudasse para casa de Ascânio Piccolomini, arcebispo de Siena, onde teve um
esgotamento. Galileu ficou a recuperar em casa de Piccolomini durante os cinco meses
seguintes. Só no final de 1633 lhe foi permitido regressar a sua casa, em Arcetri. No
entanto, mesmo aí continuou em prisão domiciliária, cativo da Inquisição, proibido de
receber visitas de amigos académicos ou cientistas ou de voltar ao ensino.
No entanto, Galileu podia continuar a escrever e em Arcetri trabalhou num novo livro
que começara quando estava com Piccolomini, intitulado Duas Novas Ciências, as ciências
da mecânica e do movimento. Contudo, a sua posição perante a Inquisição assustava os
impressores. Em Veneza era a Inquisição que o impedia de publicar e na Alemanha os
Jesuítas. Por fim, os amigos de Galileu levaram o manuscrito com eles para lá dos Alpes,
para a Holanda protestante, onde o braço do papa não chegava. O livro acabou por ser
publicado em Junho de 1638. Por esta altura, o autor já arruinara de tal maneira os olhos
com as observações astronómicas que cegara completamente. Nunca pôde ler a versão
impressa do seu último livro.
A MORTE DE GALILEU
Por volta do fim de 1641, a febre que atacava Galileu todos os Invernos voltou mais
uma vez, mas dessa não houve recuperação. Galileu morreu a 8 de Janeiro de 1642,
poucas semanas antes de completar 78 anos de idade. Mesmo na morte, o papa Urbano
continuou vingativo. Recusou autorizar exéquias públicas ao seu amigo de outros tempos e
ignorou os pedidos do matemático Vincenzo Viviani, grande amigo de Galileu, de que lhe
fosse erigido um monumento. A justificação de Urbano era que através dos seus pecados
contra Deus e a Igreja Católica Galileu dera origem ao «maior escândalo da cristandade».
O físico acabou assim por ser sepultado numa campa modesta na Igreja de Santa Crosse,
em Florença.
Quase um século mais tarde, em 1737, o papa Clemente XII ordenou que fosse
construído um monumento fúnebre condigno para Galileu na mesma igreja. Contudo,
teriam de passar mais de 350 anos até o papa João Paulo II, em 1992, ter revogado as
sentenças de 1616 e de 1633 e ter dado razão a Galileu.
Capítulo
VII
Pio IX começou por ser um papa aberto à modernidade.
No entanto, com a «vaga revolucionária» de 1848,
acabou por se tornar no responsável por várias políticas duras
da Igreja como a instituição do dogma da infalibilidade do papa.
AS REVOLUÇÕES E A IGREJA
O ano de 1848 foi para os monarcas autoritários da Europa o mais aterrador de
sempre. Em Roma, o papa, senhor de um poder absoluto similar sobre os domínios do
papado na Itália central, não ficou alheio ao fenómeno. Na realidade, foi ainda mais
afectado por ele do que os outros déspotas do continente.
Pela primeira vez desde o princípio dos tempos, o poder papal e o seu domínio
absoluto sobre os seus súbditos estavam seriamente ameaçados. A ameaça tinha origem
na vaga de novas ideias liberais como as que eram expressas no lema da Revolução
Francesa, que agitara o continente com grande violência cerca de sessenta anos antes:
liberdade, igualdade, fraternidade. Estes novos conceitos espalharam-se pela Europa nos
anos seguintes, dando a muitos milhares de oprimidos esperança numa vida mais livre.
As revoltas, os motins, as revoluções e o descontentamento popular não eram,
obviamente, novidades nos países europeus, mas os levantamentos que tiveram início em
1848 foram diferentes dos anteriores. As queixas dos revoltosos não eram nem locais nem
particulares: aplicavam-se em toda a parte. Da França (mais uma vez) à Alemanha e aos
estados italianos ou ao Império Austro-Húngaro, à Suíça, à Polónia e à Valáquia, no sul da
Roménia, uma série de manifestações violentas fez tremer a elite governante da Europa.
Os rebeldes exigiam constituições mais liberais, direito ao voto democrático, liberdade de
expressão e outras concessões. Tudo isto representava um novo tipo de desafio à
autoridade estabelecida e marcou o fim da deferência que em tempos mantivera os
poderes despóticos ao abrigo da agitação popular. O princípio do «nós contra eles» surgiu
a uma escala internacional e, como observou o historiador francês Alexis de Tocqueville, «a
sociedade foi dividida em duas. Os que nada tinham estavam unidos numa inveja comum,
os que tinham alguma coisa estavam unidos num terror comum».
O papa Pio IX, eleito dois anos antes, em 1846, parecia uma vítima pouco verosímil
desta «vaga revolucionária», designação dada por alguns historiadores aos
acontecimentos de 1848. O seu predecessor, o ultra-conservador Gregório XVI,
considerava a modernidade, em todas as suas formas, perversa por natureza. Isto
aplicava-se em especial a avanços técnicos como a iluminação pública a gás ou à nova
forma de viajar, mais rápida, introduzida pelos caminhos de ferro, que Gregório considerava
obras do Demónio, contrárias ao que Deus determinara para a boa maneira de viver na
Terra. Pio, quase trinta anos mais jovem do que o seu predecessor, acolheu de boa mente
o progresso e tornou-se um dos poucos governantes europeus de orientação liberal. Entre
as inovações introduzidas por Pio IX quando ascendeu ao trono pontifício estavam
precisamente a iluminação pública e os caminhos de ferro, aqueles que Gregório mais
condenara. Além disso libertou os prisioneiros políticos das cadeias papais e deu início à
reforma da burocracia corrupta e ineficaz do Vaticano. Foram delineados planos para
limitar os poderes da Inquisição e para abolir o Índex dos Livros Proibidos e libertar os
jornais e os livros da dura censura a que eram submetidos. Estavam em cima da mesa as
novas liberdades cívicas e a introdução da democracia. No entanto, o papa Pio nunca as
introduziu de facto e nunca se chegou a saber até que ponto este papa liberal estaria
disposto a ir. Em Janeiro de 1849, precisamente um ano depois das revoluções, Pio IX
abandonara as suas ideias liberais e tornara-se tão reaccionário e autoritário como os seus
pares mais despóticos.
A CONSTITUIÇÃO LIBERAL
Entretanto no resto da Europa havia outros governantes despóticos cujo poderio
fora afectado pelos levantamentos de 1848. Porém, em 1849 já todos haviam recuperado
os seus lugares através da repressão mais brutal. Os liberais foram presos, torturados e
mortos, e os seus seguidores foram ameaçados e perseguidos até se submeterem. As
constituições liberais que os déspotas foram obrigados a subscrever foram sumariamente
anuladas e o poder absoluto voltou a ser introduzido. Mesmo assim, a vida nunca mais foi
a mesma para os autocratas da Europa. O seu sentimento de segurança evaporou-se e
viram-se obrigados a rodear-se de uma protecção sufocante.
Também para o papa Pio IX a vida não voltou ao que fora dantes, mas por razões
diferentes. Embora a Assembleia de Roma, de vida breve, estivesse defunta, a
Constituição liberal a que os seus membros haviam dado força de lei continuava de pé. O
papa não tinha poder para a anular, como outros déspotas haviam feito com as deles, de
maneira que a de Roma foi a única a sobreviver às intervenções militares brutais que
esmagaram os levantamentos de 1848. Ao contrário do que aconteceu noutros lugares da
Europa onde as revoluções falharam, os domínios pontifícios e o resto de Itália tinham os
meios, o poder e as pessoas capazes de tornar realidade os sonhos liberais.
O centro das esperanças liberais – o reino da Sardenha, que, apesar do seu nome,
tinha sede no Piemonte, no noroeste de Itália, com capital em Turim – era o pesadelo do
papa. Do reino faziam parte a região próxima da Ligúria bem como a Sardenha, a segunda
maior ilha do Mediterrâneo, a seguir à Sicília. Sob o poder do seu soberano, o rei Vítor
Emanuel II, da casa de Saboia, o Piemonte-Sardenha usou a sua Constituição para
transformar o que fora em tempos um estado autoritário numa democracia parlamentar. A
Igreja deixou de controlar as escolas, passou a haver liberdade de culto e os Jesuítas, que
se pensava estarem de conluio com o papa numa conspiração contra o reino, foram
expulsos. Isto não prenunciava nada de bom para Pio IX, que acompanhava os
desenvolvimentos no Piemonte-Sardenha com grande apreensão. O pior, pelo menos da
perspectiva do pontífice, era a popularidade de Vítor Emanuel entre os seus súbditos, por
apoiar e encorajar as reformas liberais. Estes, por seu lado, haviam-se afastado da Igreja,
em particular de Roma, enquanto centro de poder.
Como se isto não fosse suficientemente mau para o papa assediado, Vítor Emanuel
era uma personalidade idolatrada, um grande herói patriótico, por ter participado
pessoalmente nas quatro primeiras guerras italianas da independência contra a Áustria, em
1848-1849. A finalidade da guerra fora pôr fim ao domínio austríaco e de outras potências
estrangeiras sobre Itália – o que acabara por provar fora que nenhum dos estados
italianos estava em condições de derrotar os invasores estrangeiros por si só. Apesar de o
reino do Piemonte-Sardenha ter perdido a guerra, o seu jovem rei, de 29 anos, Vítor
Emanuel, tornou-se uma figura inspiradora e um símbolo do Risorgimento, o movimento de
unificação de Itália.
Risorgimento foi o nome dado ao movimento por trás da unificação de Itália. Ao longo
de séculos, o país vivera fragmentado em cidades-estado e pequenos reinos, que
começaram a formar-se depois da queda do Império Romano do Ocidente, por volta de
476. Um desses pequenos reinos, no centro de Itália, pertencia ao papado e era
governado pelo pontífice, em Roma.
Esta situação manteve-se cerca de 1400 anos, com interregnos de vários domínios
estrangeiros, como os dos franceses ou os dos austríacos. O processo de unificação deu-
se gradualmente, entre 1814 e 1870, altura em que as forças italianas ocuparam Roma e
os domínios papais. Depois da Grande Guerra, em 1919, Trentino, o sul do Tirol e Trieste
foram acrescentados à Itália.
Quanto mais o rei guerreiro ascendia em importância e popularidade, maior o perigo
que representava para Pio IX. Ao fim de pouco tempo, o sonho de transformar a colecção
de pequenos estados independentes que era a Itália numa só monarquia começou a
ganhar contornos mais concretos, antes de mais na mente ambiciosa de Vítor Emanuel.
Como é evidente, não haveria grande espaço para um papa, muito menos autocrata, no
esquema das coisas que começava a ser delineado.
A primeira oportunidade de Vítor Emanuel como candidato a um trono para toda a
Itália só surgiu em 1859, quando rebentou uma nova guerra com a Áustria. Desta vez o rei
actuou em parceria com os franceses, que queriam expulsar os austríacos, os seus
grandes inimigos, de Itália. O movimento decisivo nesta nova guerra foi o triunfo de Vítor
Emanuel sobre o exército papal na batalha de Castelfidardo, nos domínios do papado.
Depois o rei perseguiu as forças de Pio IX em direcção ao sudoeste de Roma, a cerca de
duzentos quilómetros da cidade. O início das hostilidades foi acompanhado de revoltas nos
territórios do papado e mais uma vez os legados do papa foram expulsos.
Com isto, os nacionalistas em Nápoles e na Sicília começaram a clamar pela união
com o Piemonte-Sardenha e a 18 de Fevereiro de 1861 foi oficialmente proclamado o reino
de Itália. No entanto, nesta fase inicial, havia ainda duas grandes regiões de Itália que não
faziam parte do novo domínio. Uma ficava no Nordeste, onde o Véneto e a sua capital,
Veneza, continuavam controlados pela Áustria. O outro, o mais significativo, era Roma e
os estados papais, onde o papa se preparava para combater qualquer tentativa de intrusão
no seu domínio sagrado.
Para o conseguir, Pio IX recorreu a uma arma que apenas ele possuía. Numa
encíclica de Janeiro de 1860, excomungou Vítor Emanuel e todos os que estivessem
envolvidos na violação do território papal. Pio IX informou os ofensores de que Deus
estava do lado dele e não dos seus inimigos, e não deixaria decerto de agir contra eles
para vingar a ofensa à Sua igreja e a ele próprio, papa, enquanto Seu representante na
Terra. Seria por isso sensato, preveniu Pio IX, que procedessem à «restituição pura e
simples» dos estados papais ao seu verdadeiro senhor.
A EXCOMUNHÃO DO REI
Muitos séculos antes, em tempos medievais, a excomunhão e as ameaças com a
vingança divina haviam bastado para aterrorizar os inimigos da Igreja, salvo talvez os mais
recalcitrantes, e reconduzi-los à obediência imediata. No entanto, em Itália este efeito há
muito que se diluíra. De facto, em especial nas classes com mais formação, o afastamento
de Roma, senão da própria Igreja, era cada vez mais visível e a ideia da vingança do
Senhor já não fazia ninguém tremer. Neste contexto, Pio IX estava a ficar politicamente
fora de pé. Não era a devotos impressionáveis que se dirigia, mas a homens do mundo,
pouco preocupados com resguardar as suas almas imortais dos castigos do Inferno.
Interessava-lhes mais obter benefícios políticos.
Estavam aqui em causa vários interesses. Vítor Emanuel e o seu governo puseram
temporariamente de parte a captura de Roma e concentraram-se primeiro em expulsar os
austríacos do Véneto. Giuseppe Mazzini e Giuseppe Garibaldi, dois dos três líderes
nacionalistas que combatiam pela unificação (o terceiro era Camillo Benso, conde de
Cavour, antigo primeiro-ministro de Vítor Emanuel), eram de opinião diferente. Para eles, a
captura de Roma era de importância primordial porque o Risorgimento não ficaria completo
sem Roma como capital de Itália. O imperador francês, Napoleão III, uniu-se a Vítor
Emanuel para alcançar os seus próprios fins – não só para expulsar os austríacos de Itália,
mas a longo prazo para assegurar que em vez de uma Itália unificada haveria apenas um
aglomerado de estados fracos que nunca poderiam rivalizar com a França na luta pelo
domínio da Europa.
ESPERANÇAS GORADAS
Porém, tal como outras esperanças nascidas da Convenção de Setembro, esta
revelou-se uma quimera. A guerra entre a Áustria e a Prússia, que começou em Junho de
1866, não correu como o Vaticano esperava. O papa estava certo de que a Áustria ia
esmagar a Prússia, que se aliara ao reino de Itália, e de que os austríacos em breve
ocupariam as suas próprias províncias, que haviam perdido.
O que aconteceu foi o contrário. Os prussianos e os seus aliados italianos venceram,
e depressa, uma vez que a guerra terminou em Outubro, ao fim de apenas quatro meses.
O momento não poderia ter sido menos auspicioso. Em Dezembro de 1866, de acordo
com a Convenção de Setembro, os franceses preparavam-se para sair de Roma. Antes de
o ano acabar a sua bandeira já tinha sido arriada do Castel Sant’Angelo e as tropas
francesas embarcaram em Civitavecchia, o porto de Roma, rumo a casa. No Vaticano,
todas as esperanças, o optimismo e a certeza de que os franceses nunca partiriam
embarcaram com eles nesses navios.
PÂNICO NO VATICANO
Quando isto aconteceu, o Vaticano foi dominado por um terror abjeto. Os
conselheiros do papa Pio insistiam com ele para que se pusesse em fuga enquanto isso era
possível e pedisse refúgio na Áustria ou em Espanha. Os seus receios eram exacerbados
pela forte resistência suscitada pelo poder autocrático do papa Pio IX em Roma. O pior
eram os grupos subversivos que minavam a cidade e que, se lhes fosse dada a menor
oportunidade, ficariam encantados por pôr em marcha uma rebelião, com toda a fúria das
multidões e toda a destruição que isso envolvia. O papa, os seus conselheiros não tinham
a menor dúvida, corria perigo de vida, mas a fonte desse perigo não era a que imaginavam.
A grande ameaça a Pio IX não eram os descontentes nem as multidões, mas o
governo italiano de Vítor Emanuel. A retirada dos franceses de Roma tinha-o deixado numa
posição paradoxal. Ao assinar a Convenção de Setembro em 1864 tinha garantido o poder
da Igreja sobre Roma, em conjunto com a segurança dos domínios papais, que se tinha
comprometido a não atacar. Se quisesse manter a imagem de homem de palavra e a
credibilidade como futuro monarca de toda a Itália, Vítor Emanuel não podia renegar
abertamente estes compromissos. O que podia fazer, no entanto, era manobrar nos
bastidores.
Já há algum tempo que o governo de Vítor Emanuel financiava em segredo os grupos
subversivos que se multiplicavam em Roma, na esperança de que estes fomentassem um
levantamento «espontâneo». Giuseppe Garibaldi, um antipapista virulento, aqueceu os
ânimos chamando à Igreja «a mais perniciosa de todas as seitas» e exigindo o fim do
sacerdócio católico, que considerava que só servia para encorajar a ignorância e a
superstição. Acesos os fogos da revolta, Emanuel poderia apresentar-se como o salvador
e fazer as suas tropas entrarem em Roma para a aplacar. Depois, tomar a cidade e o
Vaticano e neutralizar o papa seria uma brincadeira de crianças.
O PAPA INFALÍVEL
A infalibilidade do papa causou mais indignação e furor do que qualquer outra das
suas atitudes até ao momento. Os papas tinham legitimidade para reclamar muitos
privilégios e poderes, mas nada que se comparasse com isto. Desnecessário será dizer que
a infalibilidade do papa polarizou as opiniões.
O influente bispo francês Félix Dupanloup escreveu aprovadoramente ao cardeal
Antonelli: «O concílio vai ser um instrumento poderoso contra o Piemonte [e o governo
italiano]. O nosso argumento mais forte contra Roma capital de Itália é Roma capital do
catolicismo [...] as pretensões dos piemonteses vão tornar-se não só inviáveis, mas
também objecto de ridículo.» Acima de tudo, assegurava Dupanloup, o concílio seria uma
demonstração de força que impossibilitaria os franceses de voltarem a abandonar a
cidade.
Charles-Emile Freppel, bispo de Angers, a sudoeste de Paris, expressou uma opinião
diferente. Encarou a questão da infalibilidade a uma luz mais pessoal e humana. «Estamos
no fim do pontificado de um homem envelhecido e desencorajado, que vê tudo o que o
rodeia à luz dos seus próprios infortúnios», escreve Freppel. «Para ele, tudo o que tem
lugar no mundo moderno é, e tem necessariamente de ser, uma “abominação”.»
Houve outros críticos mais directos, nalguns casos até brutais. Ferdinand
Gregorovius, o historiador e teólogo alemão, escreveu:
Muitos estão seriamente convencidos de que o papa enlouqueceu.
Meteu-se nestas coisas com fanatismo e conseguiu votos para a
sua deificação.
Os governantes católicos autoritários da Europa estavam horrorizados com o
conceito de infalibilidade papal porque ele ameaçava sobrepor-se às suas próprias
posições. Estavam convencidos de que o seu poder, de acordo com o direito divino dos
reis, lhes tinha sido conferido por Deus e só a Ele deviam contas; de repente viam-se
perante um papa que queria passar-lhes por cima indo um pouco mais longe e
proclamando-se a voz de Deus.
O APOIO AO PAPA
O que estava aqui em causa não era apenas a reacção de um velho obstinado isolado
no seu mundo arrogante. Pio IX tinha muito mais – ou pensava que tinha – em que apoiar-
se. Para começar, o papa estava a contar com as promessas do conde Otto von
Bismarck, o Chanceler de Ferro, do rei Guilherme I da Prússia e até do governo italiano, de
que não havia perspectivas de invasão dos territórios do papado. Foi por isso que Pio IX
ficou tão furioso quando nem os oficiais do exército nem a polícia papal pareceram
perceber a mensagem. Por exemplo, quando o comissário da polícia papal lhe pediu
instruções em relação ao modo de proceder com os invasores, o papa, apesar da idade
avançada, saltou do trono furioso e gritou: «Será possível que não tenha percebido?!
Recebi garantias formais de que os italianos não vão pôr os pés em Roma! Quantas vezes
terei de o repetir?!»
No entanto, o que o próprio papa parecia não perceber é que no mundo quotidiano
exterior ao Vaticano todas as garantias se desvaneciam quando as circunstâncias o
propiciavam. Foi o que quase aconteceu um mês depois de os franceses terem saído de
Roma. A 20 de Agosto de 1870, na Câmara dos Deputados, o parlamento italiano, o
governo ganhou um voto de confiança acompanhado de uma importante condição: que os
ministros do rei encontrassem uma maneira de «resolver a questão romana de uma forma
consentânea com as aspirações nacionais».
A mensagem estava em código, mas era fácil perceber o que significava: se as
«aspirações nacionais» fossem correspondidas, a «questão romana» não poderia ser
resolvida a favor do papa. O líder da Igreja Católica em Inglaterra, o cardeal Henry Edward
Manning, apercebeu-se do perigo que a situação envolvia e pediu uma reunião urgente
com o primeiro-ministro inglês, William Gladstone, para preparar a ajuda e, se necessário, o
socorro ao santo padre. Pouco depois o navio inglês Defence partiu rumo a Civitavecchia.
Levava instruções para admitir o papa a bordo se ele entendesse partir.
NÃO HÁ NEGOCIAÇÕES
O grande obstáculo à sua ambição continuava a ser o próprio papa. Pio IX não tinha
qualquer intenção de negociar com o governo italiano, porque isso seria reconhecer a sua
legitimidade, o que ele nunca faria. Nem Visconti, razoável e conciliador, foi capaz de
vencer a resistência papal, nem um plano governamental, revelado em Setembro de 1870,
que incluía deixar ao papa a chamada cidade leonina, uma secção de Roma de que fazia
parte o Vaticano, na margem direita do Tibre.
Como era de prever, o papa Pio rejeitou a ideia. Em sua opinião, as forças de Deus
defrontavam as forças do Demónio no combate pelo domínio de Roma, e o Demónio, na
forma do governo do rei Vítor Emanuel, estava condenado à derrota. Em termos menos
apocalípticos, era quase de certeza esta a opinião generalizada no Vaticano.
Porém, tudo isto aconteceu antes da captura de Napoleão III pelos prussianos, da
abolição da monarquia em França e, por fim, da vitória retumbante da Prússia na guerra de
1870-1871. Embora apanhado de surpresa pelos acontecimentos, em especial pela saída
de cena de Napoleão III, Pio IX insistiu em rejeitar as propostas de última hora para evitar
a guerra. Uma delas, apresentada a 10 de Setembro de 1870 por um nobre do Piemonte, o
conde Panza di San Martino, veio do rei Vítor Emanuel, acompanhada da garantia de que
a independência e o prestígio da Santa Sé seriam protegidos.
O papa leu a missiva do rei, mas recusou responder-lhe directamente. Em vez disso,
enviou uma breve mensagem a Vítor Emanuel. Escreveu-lhe: «O conde Panza di San
Martino entregou-me uma carta que Vossa Majestade me dirigiu, mas que não é digna de
um filho afectuoso que assegura professar a fé católica.» Responder às propostas do rei,
assegurou Pio IX, seria...
[...] renovar o sofrimento que a primeira leitura provocou em mim
[...] Abençoo o Deus que achou por bem permitir que Vossa
Majestade enchesse os meus últimos anos de vida de amargura.
Peço-Lhe que vos dispense a Sua graça, protegendo-vos do perigo
e concedendo-vos a Sua misericórdia de que tanta necessidade
tendes.
PRISIONEIRO DO VATICANO
A mensagem subjacente era, como é evidente, a mesma que antes. Não haveria
cedências ao Demónio e às suas hordas. O papa estava determinado a manter-se firme e,
se necessário, a morrer para não ter de entregar os territórios do papado que pertenciam
legitimamente a Deus. Contudo, Pio IX acabou por não morrer em defesa de Roma. Em
vez disso, a sua posição obstinada transformou-o no que ele próprio descreveu como um
«prisioneiro do Vaticano». Não voltou a deixar o enclave até à sua morte, em 1878, e nos
cinquenta anos seguintes o mesmo aconteceu com três dos quatro papas eleitos depois de
Pio IX.
Capítulo
VIII
O cardeal Gasparri e o ditador Benito Mussolini assinam
o Tratado de Latrão, em 1929. Depois de sessenta anos de conflito,
a Igreja reconhecia o reino de Itália e era criado o mais pequeno estado
soberano do mundo: a Cidade do Vaticano.
(Corbis/ VMI)
O PRISIONEIRO DO VATICANO
O reino de Itália declarou guerra aos domínios do papado a 10 de Setembro de 1870.
Dois dias mais tarde, as forças militares italianas entraram em território papal. Quatro dias
depois, capturaram o porto de Civitavecchia.
Dali avançaram lentamente em direcção a Roma, a uma distância de cerca de
sessenta quilómetros, na esperança de que fosse alcançado um compromisso que evitasse
a tomada da cidade pela força. Para isso, espalharam cartazes de propaganda pela cidade
com uma mensagem em que expressavam a sua boa vontade e as suas intenções
pacíficas.
Em Roma, as autoridades do Vaticano não tinham fé na propaganda. Pelo contrário,
de acordo com as instruções do papa, estavam seguros de que a intervenção divina
acabaria por salvá-los no último minuto. Não salvou. A 19 de Setembro, os italianos tinham
chegado às Muralhas de Aureliano, uma estrutura de 18 metros de altura e 19 quilómetros
de extensão que rodeava Roma. A cidade ficou literalmente cercada. O mesmo acontecia
com Paris, sitiada pelos prussianos no mesmo dia. Era absurdo esperar ajuda de França,
mas o papa Pio estava esperançado nos austríacos, o estado católico mais poderoso da
Europa.
OS AUSTRÍACOS HESITAM
Os austríacos, contudo, estavam relutantes em tomar uma posição favorável ao
Vaticano, que poderia desencadear uma guerra com os italianos, que o imperador
Francisco José queria evitar a todo o custo. O melhor que os austríacos podiam fazer era
expressar a sua dedicação ao papa Pio e oferecer-lhe protecção em qualquer cidade do
Império Austro-Húngaro no caso de ele decidir abandonar Roma.
Monsenhor Scapinelli, o núncio apostólico em Viena, explodiu de raiva quando
recebeu esta mensagem. «É preciso desplante», disse Scapinelli ao ministro dos Negócios
Estrangeiros austríaco, o conde Friedrich Ferdinand von Beust, «para me convidarem para
me mudar para casa deles ao mesmo tempo que nada fazem para evitar que eu seja
expulso da minha!»
Entretanto, Vítor Emanuel tentava os meios diplomáticos para persuadir o papa a
mudar de ideias e a resolver a «questão romana» por acordo político. Não foi hem
sucedido. Pio IX recusou sujeitar-se a argumentos de cariz humanitário, como o número de
mortos que o uso da força decerto envolveria. Pelo contrário, inverteu os argumentos e
disse aos italianos e ao seu rei que seriam eles, e não ele, papa, os responsáveis por
essas perdas humanas e teriam por isso de carregar o fardo dessa responsabilidade
imensa perante Deus e o tribunal da história.
PROPAGANDA RIVAL
Ambos os rivais da luta por Roma – os nacionalistas italianos e as autoridades do
Vaticano – usaram a propaganda para apresentar a sua causa aos habitantes. Pelo lado
dos nacionalistas houve uma mensagem de Raffaele Cadorna, à frente do exército que
avançou sobre Roma. Mas a oposição do Vaticano antecipou-se e afixou cartazes com
uma mensagem a amedrontar as populações. Dizia o seguinte:
Romanos! Um mal horrendo está a ser tentado! O santo padre, na
posse pacífica do seu capital e das poucas províncias que
escaparam à usurpação dos seus domínios, está a ser ameaçado
sem qualquer razão pelas tropas de um rei católico. Roma está por
isso sitiada.
Os cartazes de Cadorna, batidos aos pontos por este anúncio apocalíptico, eram
mais suaves e incluíam uma farpa para os franceses:
Italianos das províncias romanas! A independência da Santa Sé
continuará inviolável, bem como a liberdade dos cidadãos, embora
mais resguardada do que alguma vez foi sob a protecção de forças
estrangeiras.
O FIM DA LINHA
Ambos os lados chegaram a um impasse. Depois disto só faltava as forças italianas
prepararem a entrada em Roma e o papa fazer uma demonstração pública de fé em Deus.
Com este fim, o papa Pio, então com 78 anos, de joelhos, subiu os 28 degraus da Santa
Escada junto da Basílica de São João de Latrão. Quando chegou ao topo rezou a Deus
implorando-Lhe que protegesse o Seu povo. Muitas das pessoas que observaram a cena
sentiram-se comovidas até às lágrimas.
O ataque do exército italiano foi lançado às cinco da manhã de 20 de Setembro de
1870. Maitland Armstrong, o cônsul americano em Roma, descreveu os acontecimentos:
As velhas muralhas revelaram-se inúteis contra a artilharia pesada.
Em quatro ou cinco horas, nalguns pontos ficaram completamente
destruídas. Junto da Porta Pia a abertura era de 15 metros, por
onde entraram os soldados italianos num número avassalador.
Inundaram literalmente a cidade, ao mesmo tempo que a Porta
San Giovanni era tomada de assalto. Uma bandeira branca foi
hasteada no domo de São Pedro. Depois do fim da canhonada as
tropas papais mal esboçaram uma tentativa de resistência. Em
seguida, aqueles que pouco antes dominavam Roma com punho
de ferro foram quase todos feitos prisioneiros ou refugiaram-se no
Castel Sant’Angelo ou na Praça de São Pedro.
A luta por Roma na realidade não foi tão brutal como na descrição de Armstrong. As
forças papais receberam ordens para resistir apenas o suficiente para mostrar a sua
disposição de defender a Santa Sé e os italianos receberam instruções rigorosas de limitar
tanto quanto possível os estragos provocados, de não atirar sobre civis e de não causar
danos na cidade leonina. Embora o papa Pio tenha rejeitado a sua proposta, o governo
italiano mantinha a intenção de conceder esse território ao papado.
Outro dos factores que podem ter moderado os combates foi o estado de espírito
predominante em Roma. O pontífice tinha os seus devotos, aterrados com a ideia de que
ele ia abandonar a cidade e deixá-los ali, mas muitos outros habitantes parece terem
recebido as tropas invasoras como libertadoras, que os livrariam para sempre do poder
autoritário do papa. O mais alarmante eram as exigências populares de encerramento de
todos os mosteiros e conventos da cidade e de expulsão de todos os religiosos que aí
vivessem.
O observador que em tempos considerara o basso popolo (os romanos de classe
baixa) «selvagens e sedentos de sangue» não exagerou. Se estas pessoas tivessem sido
incentivadas a pôr-se do lado dos italianos, a ocupação de Roma teria sido muito mais
violenta e destrutiva do que foi, por isso era do interesse de ambos os lados que tudo se
fizesse depressa e com limpeza. Levada a cabo a ocupação, os termos da rendição foram
rapidamente negociados e Roma, excluindo a cidade leonina, foi incorporada no reino de
Vítor Emanuel II, primeiro rei de Itália.
Roma estava transformada. Um dos jornais da cidade do dia 23 de Setembro
apresentou a questão em termos entusiásticos, que incluíam uma enumeração das muitas
restrições à vida da cidade que haviam sido impostas pelo poder papal:
Ao fim de 15 séculos de luto, sofrimento e dor, Roma, em tempos
rainha do mundo, voltou a ser a metrópole de um grande estado.
O dia de hoje é para nós, romanos, um dia de júbilo indescritível.
Hoje em Roma a liberdade de pensamento deixou de ser crime e a
liberdade de expressão é visível dentro das suas muralhas, sem
medo da Inquisição, da morte na fogueira ou da condenação às
galés. A luz da liberdade cívica que, nascida em França, iluminou
toda a Europa, brilha hoje também na Cidade Eterna. Em Roma, a
Idade Média só hoje teve fim!
A celebração da modernidade e das liberdades que o papa Pio IX tanto se esforçou
por suprimir generalizou esta atitude e deu-lhe uma base mais firme do que nunca. Os
italianos tentaram ceder a cidade leonina ao papa. Este recusou. Foi sugerida uma oferta
de homenagem, igualmente recusada porque obrigaria o papa a receber um representante
do «rei usurpador», Vítor Emanuel, e ele não estava disposto a isso.
NUNCA CEDER
Por fim, aqueles que tinham esperança numa reconciliação, como Emilio Visconti--
Venosta ou o primeiro-ministro Lanza, convenceram-se de que Pio IX nunca aceitaria uma
proposta, uma oferta ou mesmo uma mera sugestão do governo italiano. Todas as ofertas
que chegaram ao papa vindas do governo de Vítor Emanuel enfrentaram uma muralha de
resistência, o que criou apreensão no governo italiano e envenenou a atmosfera no
Vaticano.
O ambiente tornou-se sombrio. Os cardeais receavam passar nas ruas ou conduzir as
esplêndidas carruagens que os identificavam como servidores do papa. Os padres
procuravam passar despercebidos, obviamente receosos de serem reconhecidos ou
agredidos por bandos violentos. O pior de tudo talvez tenham sido os gritos de «morte ao
papa!» ouvidos do lado de fora dos muros do Vaticano. A liberdade de imprensa permitia a
venda de livros abertamente sediciosos e blasfemos em Roma, o que incitava o ódio ao
papado, que se tornava cada vez mais visível por todo o reino de Itália. De acordo com o
cardeal Antonelli, o incansável secretário de Estado do papa, o governo oferecia
publicamente repetidas garantias de respeito pelo pontífice, de preocupação com o seu
bem-estar e a sua segurança e insistia no desejo de encontrar um compromisso que lhe
permitisse funcionar livremente, mas tudo não passava de um disfarce cínico dos mais
terríveis abusos. Algumas das acusações de Antonelli eram violentas. Denunciou, entre
outras coisas:
[...] a espoliação do chefe da Igreja de todos os seus domínios, de
todos os seus rendimentos, os bombardeamentos da capital do
catolicismo, as impiedades espalhadas entre a população pelos
jornais, os ataques violentos à religião e às ordens monásticas, a
profanação do culto católico, chamado superstição, a recolha de
todas as imagens sagradas das escolas públicas ordenada pelas
autoridades governamentais e o apagamento do nome de Jesus de
cima do portão grande do Colégio Romano.
Era neste pano de fundo de perigo que o cardeal Antonelli se afadigava a encorajar os
núncios papais nas capitais europeias a incitar os governos próximos do papa a passar à
acção. Os seus esforços produziram alguns efeitos positivos, mas não foram suficientes.
Na Alemanha, por exemplo, vários príncipes, nobres e advogados de vários estados
assinaram uma petição a condenar a ocupação de Roma e a destruição do poder secular
do papa nos domínios do papado. Na Bélgica e em mais alguns países, os católicos foram
encorajados a organizar protestos em que declaravam a ocupação de Roma um acto
sacrílego e as ameaças ao papa um equivalente de parricídio. Foram organizadas
procissões e celebradas centenas de missas. Os bispos da Alemanha e da Bélgica
bombardearam Vítor Emanuel e o seu governo com protestos pessoais. O novo cognome
do papa, de «prisioneiro do Vaticano», foi bem aproveitado e foram pronunciadas muitas
denúncias inflamadas dos italianos «heréticos» e muitas ameaças de castigos pelos seus
«crimes».
FRUSTRAÇÃO DE ANTONELLI
O que o cardeal Antonelli mais fervorosamente desejava – uma campanha europeia
concertada dos governos católicos, do clero e das congregações religiosas sufi-
cientemente ruidosa para pressionar realmente os italianos e levá-los a retirar de Roma e
dos domínios do papado para restabelecer o que o papa recebera em herança – não
sucedeu. No seu desejo genuíno de salvar Pio IX de uma situação desesperada, Antonelli
menosprezou um aspecto vital da Europa de fim do século XIX. O continente europeu era
muito diferente do que fora nos tempos em que os seus governantes autocráticos podiam
fazer valer direitos hereditários e esperar uma obediência cega dos seus súbditos. As
revoluções de 1789 e de 1848 haviam destruído a Europa em que essas atitudes
prevaleciam. Isto foi confirmado por um choque posterior – a Comuna de Paris, no início
de 1871 –, em que os trabalhadores, que tanto foram considerados anarquistas como
socialistas, se ergueram contra o governo francês, que acabara de assinar uma paz
humilhante com os prussianos imposta pela força.
As respostas pouco convictas dos austríacos e dos belgas aos incitamentos de
Antonelli eram indicadores da nova situação, que Pio IX e o seu dedicado secretário de
Estado faziam por ignorar. Na realidade, restaurar o poder do papa infalível que dera a
cara publicamente à luta contra o mundo moderno desencadearia desordens inimagináveis.
As populações recentemente libertadas erguer-se-iam em defesa dos seus direitos cívicos
duramente conquistados e da liberdade que os acompanhava. Além disso, Pio IX não
queria saber de protestos, manifestações, promessas ou acordos. Para ele, a única
solução aceitável era o desmantelamento do estado italiano. Vítor Emanuel devia ser
enviado para o Piemonte, de onde viera. Roma e o papado tinham de ser resgatados e,
nas palavras de Antonelli, «o restabelecimento total e absoluto dos domínios e do poder
pontifício» tinha de ser posto em prática.
0 COMBATE AO COMUNISMO
Apesar do seu conservadorismo inato, Bento XV teve a capacidade de pressentir as
ameaças sombrias que pairavam no horizonte e a sua intuição abriu a primeira fissura na
armadura da resistência papal ao estado italiano. Em 1919, Bento XV deu um passo que
teria sido anatematizado pelos seus predecessores imediatos e sancionou a criação do
Partido Popular Católico, conduzido por um padre, Luigi Sturzo. Anteriormente, os papas
tinham proibido os católicos de votar sequer nas eleições, e acima de tudo de se
candidatar a cargos políticos. De um dia para o outro, começaram mesmo a fazê-lo de
forma oficial, e na realidade até tiveram bons resultados na sua primeira tentativa, tendo
ficado em segundo lugar, atrás do Partido Socialista Italiano, com 21 por cento dos
sufrágios, contra 32 dos socialistas. O melhor foi que, para grande alívio do papa, o
Partido Popular, em coligação com o governo liberal, excluiu os socialistas do poder. No
entanto, um levantamento muito mais vital estava já em movimento. As greves na indústria
– duas mil só em 1920 –, em conjunto com a agitação e a violência tanto da esquerda
como da direita continuaram sem tréguas até a guerra civil em Itália parecer inevitável.
Nesse momento um salvador inesperado entrou em cena. O movimento fascista,
formado em 1919 e conduzido por um homem que pertencera ao Partido Socialista, Benito
Mussolini, começou a organizar bandos de rufias que percorriam as ruas das cidades e das
vilas com o fim, literalmente, de espancar os seus rivais, socialistas e outros. A polícia, os
militares e a direita liberal, os homens de negócios ricos e quaisquer outros com interesse
em manter a ordem pública para poder continuar as suas actividades, aprovaram ou pelo
menos fingiram ignorar a violência fascista.
Capítulo
IX
O papa Pio XII, aqui ainda cardeal e núncio apostólico, sai do palácio presidencial
em Berlim, sob o olhar atento da guarda militar, em 1929.
(Corbis/VMI)
O PAPA E OS NAZIS
A dizer-se de algum papa que ao ser eleito para o trono de São Pedro recebeu um
cálice envenenado, esse papa foi Eugênio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, que se tornou
Pio Xll a 2 de Março de 1939, dia do seu 63.° aniversário. Apenas seis meses mais tarde, a
3 de Setembro, a invasão da Polónia pelas forças da Alemanha nazi iniciava a Segunda
Guerra Mundial, pondo com isso o papa Pio numa posição única e profundamente
desconfortável.
Pio XII era o único governante do seu tempo com um poder de alcance global, o que
levou a que se esperasse dele uma tomada de posição firme em relação a todas as
questões que rodearam a Segunda Guerra Mundial. O conflito não era uma mera luta pelo
poder ou por territórios e influência política. Os britânicos e os seus aliados estavam
convencidos de que combatiam a Alemanha nazi e o seu Führer, Adolf Hitler, para libertar a
Europa e o mundo de uma ditadura racista e expansionista. Os nazis, pelo seu lado,
acreditavam com igual fervor que o «milénio do Reich» que queria estabelecer na Europa –
e talvez no mundo – era o seu destino inelutável.
Os problemas de Pio XII começaram quando os dois lados neste combate o
pressionaram para obter a sua aprovação pública. Ambos ficaram enfurecidos por não
terem conseguido o que queriam. Pio XII escolheu o meio-termo. Adoptou a neutralidade,
que lhe pareceu a postura mais capaz de o ajudar a contribuir para a paz e talvez até a pôr
fim ao conflito. Infelizmente, isto revelou-se um erro grave. Foi objecto de acusações
violentas e condenado por «cobardia» moral e «silêncio» cúmplice.
Acima de tudo, o papa Pio XII foi acusado de ser antissemita por natureza e de ter
abandonado os judeus europeus indefesos perante a perseguição e o extermínio nos
campos de morte dos nazis. Os alemães, pelo seu lado, viam no papa um inimigo
implacável. Um nazi preeminente, um SS Obergruppenführer (um cargo importante na
hierarquia das SS), Reinhardt Heydrich, afirmou que Pio XII era maior inimigo do Terceiro
Reich do que tanto o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, como o presidente dos
Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt.
A controvérsia em relação ao papel de Pio XII continuou depois do fim da Segunda
Guerra Mundial, em 1945. Foram surgindo livros e documentários em torno do assunto,
mas o grande impulso ao debate foi dado por uma peça de teatro sensacionalista estreada
em Berlim a 20 de Fevereiro de 1963. O título era O Vigário: Uma Tragédia Cristã e foi
escrita pelo dramaturgo Rolf Hochhuth, que mais tarde se tornou conhecido como autor de
dramas políticos controversos.
E m O Vigário, Hochhuth acusa Pio XII de negligência e baixeza moral e descreve-o
como um homem de carácter implacável e mesquinho, mais preocupado com as finanças
do Vaticano do que com o destino dos judeus ou das outras vítimas do nazismo, como os
ciganos, os homossexuais, os maçons ou as Testemunhas de Jeová. A peça, a primeira de
Hochhuth, também foi levada à cena em Londres, no Teatro Aldwych, pela Royal
Shakespeare Company, um pouco mais tarde, no mesmo ano de publicação. A Nova
Iorque, à Broadway, chegou em 1964, e depois de novo ao Reino Unido em 1986 e em
2006. A influência desta peça foi imensa. Reavivou a discussão em torno da culpa do
papado e do papa na nazi Solução Final para a Questão Judaica.
No entanto, o retrato do colaborador frio e insensível não corresponde à imagem que
dele tiveram as pessoas que conheceram o papa Pio Xll, com um longo percurso como
diplomata, hábil e sedutor. É um facto que tinha um aspecto de esteta monástico que se
mantinha afastado do mundo, com a sua figura alta e magra, rosto de pergaminho e um
distanciamento com algo de venerável. Contudo, a impressão que deixava nas pessoas
não era essa. James Lees-Milne, escritor e diarista britânico, escreveu:
A sua presença irradiava benignidade, calma e santidade, algo que
nunca encontrei antes dele noutro ser humano. Sorria de uma
forma amável e doce [...] Senti-me tão perturbado pela sua
presença que mal conseguia falar [...]Tive consciência de que as
pernas me tremiam.
Lees-Milne não foi o primeiro a sentir-se perturbado num encontro pessoal com uma
pessoa célebre, mas os governantes e os ministros com quem Eugênio Pacelli se viu
obrigado a negociar durante a sua longa carreira diplomática eram feitos de uma matéria
mais impenetrável.
PACELLI NA BAVIERA
A sua primeira missão importante fora do Vaticano ocorreu em 1917, o terceiro ano
da Primeira Guerra Mundial, altura em que o papa Bento XV o enviou para a Baviera como
núncio papal, ou embaixador. A primeira tarefa de que foi incumbido monsenhor Pacelli foi
delinear o plano do papa Bento XV para o fim da Grande Guerra, perante o rei da Baviera,
Ludwig III, e o agressivo e autocrático Kaiser Guilherme.
Pacelli parece ter deixado uma impressão forte nos dois monarcas e também no
chanceler de Guilherme, Theobald von Bethmann-Hollweg, o suficiente para criar
esperança numa perspectiva próxima de paz. No entanto, o futuro papa ficou
extraordinariamente desiludido e abatido quando os militares alemães iniciaram uma
escalada nos combates com a introdução de uma guerra submarina sem quartel. Contudo,
não tendo sido capaz de alcançar a paz, avançou para a melhor alternativa a seguir a essa
– promover a abordagem humanitária, como esta fora formulada por Bento XV, um papa
conhecido pela impulsividade na caridade com os pobres e os necessitados.
Depois do fim da Primeira Guerra Mundial, a 11 de Novembro de 1918, Pacelli
permaneceu na Baviera quando a maior parte dos outros diplomatas partiu. No entanto,
quem foi prudente foram os outros, já que em Abril de 1919 os chamados revolucionários
espartaquistas tomaram o poder e formaram a República Soviética da Baviera, de curta
vida. A república, inspirada na revolução ateia da Rússia, durou apenas quatro semanas,
mas enquanto durou, Pacelli, na sua qualidade de homem da Igreja e de representante do
papa, ficou numa posição delicada. Foi precisa muita calma e nervos de aço, e o núncio
mostrou que nada disso lhe faltava.
Certo dia, um pequeno grupo de jovens revolucionários irrompeu no edifício ocupado
pela embaixada do Vaticano e tentou roubar o carro de Pacelli. Apesar de o seu físico frágil
e de os seus 43 anos de idade não recomendarem uma luta corpo a corpo com os
intrusos, Pacelli enfrentou-os e exigiu-lhes que saíssem do lugar, tecnicamente território do
Vaticano. Os rebeldes, todos espartaquistas, concordaram sair apenas na condição de
levarem o carro do cardeal. Pacelli sabia que eles não podiam ir longe, uma vez que já
tomara a precaução de sabotar o motor de arranque, além de que recebera uma garantia
do governo bávaro de que o veículo lhe seria imediatamente devolvido. Os espartaquistas
levaram o carro, mas para seu desgosto em breve descobriram que o núncio apostólico os
tinha enganado.
A principal tarefa de Eugênio Pacelli como núncio papal era concluir uma concordata
(um acordo entre a Sé Apostólica e o governo de um país em questões de religião) com
vários governos europeus para assegurar a segurança e a liberdade das igrejas católicas
dos respectivos países. Uma concordata dava à Igreja vários direitos importantes. Um
deles era organizar movimentos de juventude, outro fazer nomeações. A Igreja era além
disso autorizada a organizar as suas próprias escolas, hospitais e instituições de caridade
e a celebrar serviços religiosos. Tudo isto permitia que a Igreja continuasse a funcionar e a
manter a religião cristã católica.
No entanto, para alcançar estes objectivos era preciso vencer uma dificuldade
tremenda, já que no período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial houve uma
possibilidade real de, a seguir à Baviera, serem criados mais sovietes para concretizar o
sonho bolchevique de espalhar o comunismo pelo continente. No entanto, nada deteve
Pacelli. Mal o exército alemão esmagou a República Soviética da Baviera, o núncio assinou
uma concordata, a sua primeira, com a Baviera, que se tornou num dos estados da
República de Weimar.
O REGRESSO A ROMA
Quando deixou a Baviera, Pacelli seguiu para Berlim na qualidade de núncio papal na
Alemanha e depois, em 1925, iniciou negociações com a União Soviética. Ali, oito anos
depois da vitória bolchevique, a perseguição sistemática, organizada e violenta à Igreja
russa já estava em curso. Os padres e os bispos eram encarcerados e muitos eram
assassinados na prisão. Os clérigos e os religiosos laicos eram perseguidos e enviados
para o gulag, em Solowki, no mar Negro. As igrejas eram saqueadas e destruídas. A
religião era denegrida nas escolas e na imprensa. Deus, bem como o ensino de religião,
tornou-se assunto proibido.
Mesmo assim, o cardeal Pacelli estava decidido a seguir as ordens do papa Pio XI,
que eram estabelecer relações diplomáticas entre os comunistas e o Vaticano. Para
facilitar o processo, organizou envios desesperadamente necessários de alimentos para a
Rússia, onde milhares, senão milhões, de pessoas viviam na pobreza total desde o fim da
Primeira Guerra Mundial. No entanto, havia um limite mesmo para o que o núncio Pacelli
podia fazer. Os homens com quem tinha de negociar, por exemplo o ministro dos Negócios
Estrangeiros Georgi Chicherin, impossibilitavam qualquer acordo. Chicherin era um ateu
convicto, que desprezava a educação religiosa e recusava autorizar a ordenação de
padres e bispos. Nesta atmosfera perigosa, Pacelli estava convencido de que era possível
alcançar um acordo secreto, mas ao fim de algum tempo percebeu que não houvera
qualquer progresso nas negociações. Em 1927 o papa Pio XI ordenou-lhe que as
interrompesse.
Depois de vários encontros frustrantes com os soviéticos, Eugênio Pacelli foi
chamado a Roma em 1929, onde, apesar do seu fracasso na Rússia, tanto católicos como
protestantes o saudaram como grande herói da causa cristã. O papa Pio recompensou-o
com o barrete cardinalício e em 1930 Pacelli foi de novo promovido, a cardeal secretário de
Estado. Nesta qualidade, Pacelli assinou concordatas com vários países onde a Igreja
precisava de um bom impulso depois das convulsões da Grande Guerra. Em 1932 foi
assinada uma concordata com o estado alemão de Baden e no ano seguinte com a
Áustria. Em Julho de 1933, seis meses depois de Adolf Hitler ter chegado ao poder como
chanceler, foi assinada a concordata com a Alemanha nazi. Com a Jugoslávia foi assinada
uma concordata em 1935 e com Portugal em 1940.
O mais trágico dos acordos assinados pelo futuro papa foi, como é evidente, a
Reichskonkordat, com a Alemanha. Os nazis tinham consciência de que grande parte do
mundo exterior considerava que haviam alcançado o poder pela intimidação e pela força.
Contudo, um acordo com o papado, a instituição política mais antiga e venerável da
Europa, podia ser a peça em falta no puzzle da sua vitória, capaz de dar respeitabilidade
ao seu regime e de lhe proporcionar uma postura internacional que não poderiam manter
de nenhum outro modo. Além disso, era uma maneira eficaz de silenciar a oposição da
Igreja Católica aos nazis na Alemanha.
O FÜHRER ATEU
Não podemos saber se o cardeal Pacelli percebeu qual era a motivação tenebrosa de
Hitler nestas negociações, mas seria surpreendente que a ideia não tivesse ocorrido a um
diplomata tão inteligente e experiente como o futuro papa. A sua própria finalidade era,
como é evidente, fortalecer a posição da Igreja Católica na Alemanha, proteger as
organizações e assegurar a educação católica, que as escolas católicas se mantivessem a
funcionar e as publicações da Igreja não fossem perseguidas. Foi nisso que o cardeal
Pacelli avaliou mal a situação.
Em 1933, Adolf Hitler ainda não tinha a reputação que veio a adquirir, de fazer
acordos com o fim único de obter vantagens de curto prazo e, quando eles deixavam de as
proporcionar, atirá-los para o lixo. Assim, as negociações prosseguiram e Pacelli, em nome
do papa Pio XI, agiu, pelo seu lado, em boa-fé. Na altura em que os nazis romperam a
Reichskonkordat, os factos eram irreversíveis e o papado viu-se ligado a um parceiro cínico
e de má-fé.
Nos seis anos anteriores a 1939, os nazis cometeram mais de cinquenta violações da
Reichskonkordat, a começar por um ataque violento contra judeus apenas cinco dias
depois da assinatura do acordo. As violações continuaram com a esterilização forçada de
alemães considerados de «vida indigna de ser vivida», entre os quais criminosos,
dissidentes, deficientes mentais, homossexuais, loucos e outros que tinham de ser
impedidos de se reproduzir e assim de transmitir a sua fraqueza às gerações seguintes. O
cardeal Pacelli formalizou os protestos da Igreja, o primeiro dos quais respeitante a outra
infração da Reichskonkordat, um boicote às lojas de judeus. Foi apenas um de 45, a que os
nazis nunca deram resposta. O Vaticano respondeu então à perfídia nazi com uma arma de
que só ele dispunha, uma encíclica. As encíclicas papais eram em geral escritas em latim,
mas dessa vez o cardeal Pacelli pediu a colaboração de vários cardeais alemães para o
ajudarem a redigir Mit Brennender Sorge (Com Preocupação Ardente), inteiramente em
alemão. A encíclica foi proclamada a 10 de Março de 1937, mas, ao contrário do seu
cauteloso núncio, Pio XI não suavizou as palavras. Escreveu o seguinte:
Quem quer que exalte a raça, o povo ou o estado [...] os
depositários do poder ou qualquer outro valor fundamental da
comunidade humana [...] quem quer que eleve estas noções acima
do seu valor real e as divinizar até à idolatria distorce e perverte
uma ordem do mundo planeada e criada por Deus; afasta-se com
isso da verdadeira fé em Deus e do conceito da vida defendido
pela fé.
Pacelli sabia que os alemães iam fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para
impedir que fosse distribuída, de maneira que foram tomadas precauções para assegurar
que ela chegava a todas as igrejas da Alemanha. O texto foi introduzido clandestinamente
no estado nazi, onde foi impresso e distribuído em segredo. Por Fim, a encíclica foi lida em
todas as igrejas católicas na missa do Domingo de Ramos de 14 de Março de 1937.
Quando os nazis perceberam o que acontecera, reagiram com mão pesada. Todas as
cópias da encíclica que encontraram foram apreendidas, os impressores e as pessoas
responsáveis por distribuí-la foram presos e as máquinas de impressão confiscadas. Para
prender e julgar os padres católicos foram forjadas acusações de distribuição de dinheiro
falso.
Adolf Hitler deixou a sua posição brutalmente clara quando expressou a opinião dos
nazis em relação à encíclica papal com a seguinte declaração:
O Terceiro Reich não deseja um modus vivendi com a Igreja
Católica, mas a sua destruição [...] para abrir espaço para uma
Igreja Alemã em que a raça alemã seja glorificada.
AS MALÉVOLAS INTENÇÕES NAZIS
O cardeal Pacelli não ficou surpreendido. Mesmo antes de Hitler e os nazis terem
chegado ao poder, nunca teve dúvidas quanto às suas intenções. Antes de 1933 observara
vários «ensaios» de estado totalitário, em que o racismo e a brutalidade tinham sido
visíveis. Os desordeiros nazis de forças paramilitares como as SA ou as SS foram usados
para impedir reuniões dos comunistas e de outras forças políticas. As manifestações e as
paradas dos nazis eram abertamente militaristas. Tudo isto preparou o ambiente para o
reinado de terror que teve início quando Hitler se tornou chanceler da Alemanha, a 30 de
Janeiro de 1933, com a criação do primeiro campo de concentração nazi, em Dachau, na
Baviera, onde os primeiros prisioneiros – judeus, socialistas, sindicalistas e outros
opositores políticos – foram torturados, intimidados e sofreram violências de todos os
tipos.
Seguiram-se várias sequelas bem conhecidas, como o incêndio do Reichstag de 1933,
as Leis de Nuremberga de 1935/1936, que retiraram os direitos cívicos aos judeus, e a
Kristallnacht (Noite dos Vidros Partidos). Esta última teve lugar a 10 de Novembro de 1938,
com ataques a judeus, às suas sinagogas e bens, em toda a Alemanha e na Áustria. Na
Noite dos Vidros Partidos foram assassinados 91 judeus e presos entre 25 e trinta mil,
todos deportados para campos de concentração.
O cardeal Pacelli teve conhecimento dos pormenores sinistros da Kristallnacht quando
foi contactado pelo núncio em Berlim. Nesse tempo, o papa Pio XI estava às portas da
morte e alguns historiadores têm sugerido que Pacelli o convenceu a não fazer um
protesto oficial. O papa morreu três meses mais tarde, a 10 de Fevereiro de 1939. Pacelli
foi eleito papa em seu lugar. Nessa altura os editores ainda não tinham enviado a última
encíclica do pontificado de Pio XI, Humani Generis Unitas (Acerca da Unidade do Género
Humano), preparada no mês de Setembro anterior, para o Vaticano. Quando por fim
chegou, o papa Pio XI já tinha morrido. Embora Pacelli lhe tenha sucedido, não proclamou
a última encíclica do predecessor, que levantava várias questões controversas, expressas
no habitual estilo directo de Pio XI, a condenar o racismo, o colonialismo e o anti-
semitismo, tudo caraterísticas centrais da política nazi.
A suposta omissão do novo papa, Pio XII, no que diz respeito à condenação pública
dos nazis foi tomada como um primeiro sinal da sua «cobardia» e do seu «silêncio» em
assuntos que pudessem ofender Hitler e o seu regime totalitário na Alemanha. Daí, entre
outras coisas, vem a teoria de que o papa era ele próprio pró-nazi e anti-semita. Esta
teoria, no entanto, não tem em conta, em primeiro lugar, o desagrado dos nazis com a
eleição do cardeal Pacelli para o trono de São Pedro. Um artigo de opinião no Berlin
Morgenpost (Matutino de Berlim) acusava o novo papa de «hostilidade preconceituosa e
falta total de compreensão. Pio XII não é visto com bons olhos na Alemanha porque
sempre se opôs ao nazismo e na prática foi ele que determinou as posições políticas do
Vaticano durante o pontificado do seu predecessor».
«Eugênio Pacelli nunca nos compreendeu; não depositamos grandes esperanças
nele», dizia o Schutzstaffel, nazi, o órgão oficial das SS, o corpo da guarda pessoal de
Hitler. Noutros países, por exemplo no Reino Unido, em França e nos Estados Unidos, a
eleição do novo papa foi acolhida com agrado. A Alemanha nazi foi a única grande potência
que não enviou um representante à entronização do papa.
Outro dos mal-entendidos relativos ao papa Pio XII centra-se no seu estilo pessoal. O
novo papa nunca teve um estilo popular e emotivo. Preferia a diplomacia tradicional,
tranquila, e a persuasão aos gestos dramáticos e às declarações empoladas. Além disso, a
sua experiência diplomática proporcionava-lhe um conhecimento sólido da natureza da
besta nazi. Pio XII sabia perfeitamente que os nazis responderiam a qualquer crítica ou
acto de desafio elevando o seu nível de brutalidade. Na realidade, esta era uma das
principais preocupações dos líderes judeus e dos prisioneiros dos campos de concentração
que conseguiam comunicar com o exterior. Suplicavam constantemente ao papa que
moderasse o tom das condenações públicas das atrocidades nazis.
Como disse uma testemunha ocular nos Julgamentos de Nuremberga dos criminosos
de guerra nazis em 1945-1946:
Quaisquer palavras que Pio XIl tivesse dirigido contra um louco
como Hitler teriam desencadeado uma catástrofe de dimensões
ainda maiores [...] e acelerado o massacre de judeus e sacerdotes.
EVITAR O ASSUNTO
Por volta do fim de 1942, os massacres de judeus tinham alcançado «proporções e
formas assustadoras», como monsenhor Giovanni Montini, o futuro papa Paulo VI,
informou Pio Xll numa carta que chegou ao Vaticano em Setembro de 1942. As histórias de
horror iniciaram então uma escalada terrível. No mesmo mês, o enviado americano ao
Vaticano, Myron Taylor, disse ao papa que este estava a prejudicar o seu «prestígio moral»
ao manter o silêncio quanto às atrocidades nazis. Houve representantes de vários outros
países, incluindo o Reino Unido, o Brasil, o Uruguai, a Bélgica e a Polónia, que
transmitiram mensagens semelhantes, apenas para ouvirem, como Myron Taylor, que a
veracidade dos rumores acerca do genocídio dos judeus não fora confirmada.
Nesta altura os nazis já pareciam ter uma ideia clara do que o papa andava a fazer e
tinham percebido que isso não lhes era favorável. O Ministério dos Negócios Estrangeiros
da Alemanha analisou a mensagem de Natal de 1942 e interpretou-a correctamente.
Descreveu-a como...
[...] um longo ataque a tudo o que defendemos. Está claramente a
referir-se aos judeus [...] está praticamente a acusar o povo
alemão de injustiça em relação aos judeus e tornou-se o porta-voz
dos criminosos de guerra judeus.
IMUNIDADE DIPLOMÁTICA
Enquanto permanecia dentro dos limites do Vaticano, para lá da linha branca que
separava o enclave papal do resto da cidade de Roma, a imunidade diplomática protegia-o
da prisão. No entanto, teve de sair várias vezes desses limites para organizar a sua rede,
transportar fugitivos de um lugar para outro e verificar as condições de segurança de
vários abrigos. Durante todo este tempo os SS observaram o esquivo Pimpernel e não foi
preciso muito tempo para descobrirem, em primeiro lugar, que era um padre e em segundo
que se tratava de monsenhor Hugh 0’Flaherty, o velho visitante dos campos de
prisioneiros.
Seguro dentro dos limites do território do Vaticano, 0’Flaherty habituou-se a passear
em frente ao pórtico da Basílica de São Pedro, à espera de ser abordado por judeus,
prisioneiros de guerra ou outros fugitivos. Não se escondia dos soldados alemães que o
vigiavam do outro lado da praça, mas acima de tudo mostrava-se aos que pudessem
precisar da sua ajuda. Quando chegavam, 0’Flaherty acompanhava-os até que
desapareciam do alcance da vista dos alemães, através de um cemitério, de onde
chegavam ao Colégio Alemão.
Um dia um homem judeu aproximou-se do padre 0’Flaherty e entregou-lhe uma
corrente de ouro pesada. Ele e a mulher, explicou-lhe, contavam ser presos e levados para
um campo de concentração a qualquer momento, mas queriam salvar o filho, de sete anos,
da morte nas câmaras de gás. O fio de ouro, explicaram ao padre, destinava- -se a pagar o
sustento do rapaz. O padre 0’Flaherty aceitou-o, localizou o rapaz e escondeu-o. Além
disso, arranjou documentos falsos aos pais, o que lhes permitiu manterem-se em
segurança em Roma. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, 0’Flaherty devolveu o
rapaz aos pais, juntamente com o fio de ouro.
A FUGA
As SS estavam a um passo de o apanhar, de maneira que teve de agir pronta- mente.
Escondeu o hábito e o chapéu, esfregou-se com carvão até ficar irreconhecível, pôs um
saco de carvão vazio às costas e saiu assim do alçapão. Os SS, à saída, aguardavam o
padre em duas filas, mas recuaram quando viram aquele homem tão alto e tão sujo que se
encaminhava descontraidamente para o camião do carvão que o aguardava às portas do
palácio. O camião deixou-o numa igreja próxima, onde 0’Flaherty se lavou e vestiu o hábito
antes de voltar ao Vaticano. Mais tarde telefonou ao príncipe para saber se ele e a família
se encontravam bem. Encontravam e, contou o príncipe ao monsenhor, o coronel Kappler
estava no meio de um violento ataque de fúria.
Já desesperado, Kappler congeminou um plano para fazer dois gorilas da Gestapo
entrarem no Vaticano para agarrarem 0’Flaherty e para o levarem para algum sítio onde
pudessem assassiná-lo. Felizmente, os colaboradores do padre souberam do plano. Os
candidatos a assassinos de 0’Flaherty foram apanhados e levaram uma sova das antigas
de quatro guardas suíços. Kappler nunca conseguiu apanhar o padre irlandês, que
sobreviveu à Segunda Guerra Mundial. O mesmo aconteceu com o coronel das SS,
embora na prisão de Gaeta, entre Roma e Nápoles, onde foi condenado a permanecer até
ao fim dos seus dias como criminoso de guerra. Uma vez por mês, ano após ano, Kappler
recebia um visitante – monsenhor Hugh 0’Flaherty. Por fim, em 1959, o padre baptizou
Kappler na Igreja Católica Romana. Em 1977, Kappler, que sofria de cancro e pesava
então apenas 48 quilos, fugiu de Gaeta escondido num baú de viagem e foi levado para a
Alemanha pela mulher, Anneliese. Morreu no ano seguinte.
Depois do fim da guerra, em 1945, monsenhor 0’Flaherty recebeu muitos prémios pelo
seu trabalho, incluindo a medalha norte-americana da Liberdade. O rei Jorge VI do Reino
Unido também o fez comandante do Exército Britânico (CBE, na sigla inglesa). O estado
de Israel reconheceu-o como Justo entre as Nações, um título concedido a não judeus que
ajudaram judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Depois de ter sofrido um AVC grave,
em 1960, o padre 0’Flaherty retirou-se para casa da irmã, no condado de Kerry, na Irlanda,
onde morreu, em 1963.
Em Itália, os cardeais também participaram no esforço para salvar a vida dos que
corriam perigo. Por exemplo, o cardeal Pietro Boetto, de Génova, salvou pelo menos
oitocentos refugiados. O bispo Giuseppe Nicolini, de Assis, escondeu à volta de trezentos
judeus durante dois anos. Dois futuros papas, os sucessores de Pio XII, também correram
riscos para ajudar judeus a escapar às garras dos nazis. Um deles foi o cardeal Angelo
Roncalli, futuro João XXIII, o outro foi o cardeal Giovanni Montini (que viria a ser papa com
o nome de Paulo VI). Mais tarde foram oferecidos a ambos prémios de reconhecimento por
este trabalho, que os dois recusaram. Montini explicou porque:
Tudo o que fiz foi cumprir o meu dever. Além disso, limitei--me a
obedecer às ordens de Sua Santidade [o papa Pio XII]. Ninguém
merece receber uma medalha por isso.
Em 1985, outro católico e homem da Igreja, o cardeal Pietro Palazzini, aceitou o
reconhecimento do estado de Israel de Justo entre as Nações pela sua própria
contribuição para o socorro e o salvamento de judeus numa Europa dilacerada pela guerra.
No entanto, sublinhou durante a cerimónia no Yad Vashem, o Monumento ao Holocausto
em Jerusalém, que o mérito coube inteiramente a Pio XII. «Foi ele que nos disse o que
fazer para proteger os judeus da perseguição.» Feitas todas as contas, salvaram-se 860
mil judeus graças às muitas iniciativas do papa Pio XII.
O papel fundamental nesta missão de resgate em grande escala tem sido sublinhado
pelos inúmeros tributos que lhe têm sido prestados pelos líderes da comunidade judaica e
por presidentes, primeiros-ministros, por outros papas e multidões de pessoas
agradecidas, tanto em livros como em artigos acerca do assunto. O esforço de ajuda a
tantos milhares de judeus e outros perseguidos levou Albert Einstein, o conhecido cientista
judeu agnóstico, a mudar de opinião acerca da Igreja Católica e do papado. Passou da
indiferença a «um grande afecto e admiração, porque apenas a Igreja teve a coragem e a
persistência de defender a verdade intelectual e a liberdade moral». No entanto, talvez o
maior cumprimento recebido pelo papa Pio XII tenha vindo de Israel Zolli, o principal rabino
de Roma, que ficou tão impressionado com a compaixão e a coragem do papa que se
tornou católico romano em 1945.
VOCABULÁRIO DO VATICANO
Simonia
O tráfico de cargos eclesiásticos, a simonia, era um crime grave para a Igreja. A sua
designação deriva do nome de Simão Mago, que tentou subornar os discípulos Pedro e
João. O episódio vem no Novo Testamento:
«Ao ver que o Espírito Santo era dado pela imposição das mãos dos Apóstolos,
Simão ofereceu-lhes dinheiro, dizendo: “Dai-me também a mim esse poder, para que aquele
a quem eu impuser as mãos receba o Espírito Santo.” Mas Pedro replicou: “Vá contigo o
teu dinheiro para a perdição, pois julgaste comprar o Dom de Deus com dinheiro.”»
Nepotismo
«Nepotismo» deriva da palavra latina nepos, que significa sobrinho ou neto e
descreve o favoritismo de muitos papas pelos seus familiares e amigos, a quem concediam
cargos na Igreja que estes não tinham merecido nem pelo mérito nem pela antiguidade. Foi
provavelmente a infração mais comum na Igreja durante a Idade Média. Porém, o
nepotismo é de certa maneira compreensível numa época em que os papas eram
ameaçados por rivais e inimigos e precisavam de se rodear de pessoas que tivessem dado
provas de lealdade.
Excomunhão
Excomungar significa excluir um homem ou uma mulher da comunidade cristã. Era a
pior punição possível, já que impedia quem a sofresse de recorrer à protecção da Igreja e
de participar na vida religiosa. Podia castigar, entre outros crimes, a apostasia (abandono
das crenças da Igreja), a heresia, o cisma (divisão da Igreja), um ataque à personalidade do
papa ou o aborto.
A ordenação sacerdotal de mulheres também era punida com excomunhão.
Em tempos medievais, a Igreja Católica encarava os excomungados ou como vitandus
(a ser evitados) ou toleratus (a quem era permitido manter relações sociais ou comerciais
com católicos). Podiam ir à missa, mas não estavam autorizados a comungar. A cerimónia
da excomunhão era ao mesmo tempo dramática e assustadora. Os sinos dobravam a
finados como se o excomungado tivesse morrido, os Evangelhos eram fechados e uma
vela era apagada. Porém, a excomunhão podia não ser permanente. Se os que haviam
sido considerados culpados se confessassem arrependidos, podiam ser reintegrados na
Igreja com todos os direitos.
Interdito
A excomunhão de uma vila, cidade ou divisão administrativa de outro tipo era
chamada «interdito». Na prática, significava que não podiam ter lugar casamentos, funerais
ou outras cerimónias religiosas enquanto ele se mantivesse, apesar de as populações
abrangidas poderem confessar-se e ser baptizadas. Se um país interditado fosse atacado,
o papa não estava obrigado a acorrer em seu auxílio. Além disso, o interdito libertava os
súbditos do dever de obediência aos governantes culposos, o que os autorizava a
rebelarem-se impunemente, se assim o desejassem.
Reis, imperadores e outros senhores cujo comportamento ofendesse a Igreja Católica
em geral incorriam nesta forma generalizada de excomunhão. O governante em questão
tinha de se arrepender para que o interdito pudesse ser levantado e o país reintegrado na
comunidade católica. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 1207, quando o rei João de
Inglaterra se recusou a aceitar a nomeação do cardeal Stephen Langton, escolhido pelo
papa para arcebispo de Cantuária. João foi excomungado e a Inglaterra interditada até
1212, quando o rei por fim cedeu e concordou com a nomeação. Depois disso o interdito
foi levantado.
Anátema
Anátema era o nome dado a um decreto da Igreja a excomungar uma pessoa ou a
declarar uma doutrina inaceitável. Contudo, como punição, o anátema ia além da
excomunhão. No Novo Testamento, há na Primeira Carta aos Coríntios (16, 22) uma
referência que diz: «Se alguém não ama o Senhor, seja anátema.» Na Carta aos Gálatas
(1, 8), anátema é a designação do castigo por pregar um evangelho rival: «Mas, até
mesmo se nós ou um anjo do céu vos anunciar como Evangelho o contrário daquilo que
vos anunciamos seja anátoma.»
A Segunda Carta de São João (1, 9-11) vai ainda mais longe: «Todo aquele que passa
adiante e não permanece na doutrina de Cristo não tem Deus consigo; Mas aquele que
permanece na doutrina, esse tem em si o Pai e o Filho. Se alguém vier até vós e não traz
essa doutrina, não o recebais em vossa casa nem o saudeis, pois quem o saúda tornar-se
cúmplice das suas más obras.»
Bula pontifícia
Uma bula pontifícia é uma comunicação, um decreto ou outra disposição emanada do
papa, em geral destinada ao público. Os conteúdos da bula podem ir da nomeação de um
bispo à canonização de um santo, passando pelo anúncio de uma excomunhão ou pela
convocação de um concílio. O nome deste documento vem de bulla, o selo aposto ao
documento, em geral metálico, mas que também pode ser feito de chumbo ou, em
ocasiões muito solenes, de ouro.
Índex dos Livros Proibidos
O Index Librorum Prohibitorum, ou Índex dos Livros Proibidos, era uma lista de livros
proibidos aos leitores católicos pela Igreja. Os livros proibidos podiam conter uma série de
«erros», incluindo heresias, imoralidade, sexo explícito ou outros assuntos considerados
contrários aos ensinamentos da Igreja Católica. O primeiro Índex não foi publicado em
Roma mas sim nos Países Baixos, em 1529. As primeiras reimpressões apareceram em
Veneza em 1543 e em Paris em 1551. Em 1571 foi criado um corpo especial na Igreja para
investigar livros que pudessem precisar de ser censurados. Chamado Sagrada
Congregação do Índex, também incluía entre as suas funções actualizar a lista de livros
incluídos no Índex e apontar outros que poderiam ser publicados caso fossem feitas
algumas alterações no seu conteúdo. Estes últimos constituíam a categoria dos donec
corrigatur (proibidos se não corrigidos) ou donec expurgetur (proibidos se não expurgados).
As listas das correções – algumas delas muito longas – foram feitas com a intenção de
ajudar os autores a tornar o seu trabalho mais aceitável.
A congregação foi dissolvida em 1917 e o Índex não voltou a ser publicado depois de
1966.
Indulgências
Uma indulgência era um perdão total ou parcial para remissão da danação eterna por
pecados mortais cometidos em vida. Havia no entanto uma condição prévia importante,
que era primeiro a Igreja perdoar o pecado. Isto queria dizer que a indulgência apenas era
concedida depois de o pecado ter sido confessado e o pecador absolvido. Infelizmente,
com o tempo abusou-se do sistema e as indulgências começaram a ser encaradas como
um pagamento para livrar um pecador pura e simplesmente do seu pecado. Quando o
teólogo e padre católico Martinho Lutero lançou o seu famoso protesto, em 1517 (um
protesto que levou à criação das igrejas protestantes), a indulgência tornou-se um símbolo
dos piores abusos do Vaticano.
A infalibilidade do papa
Segundo o dogma católico da infalibilidade do papa, estabelecido pelo Concílio
Vaticano I, a 18 de Julho de 1870, o Espírito Santo impede activamente o papa de cometer
um erro quando se pronuncia em matérias de fé ou de moral. Estas afirmações resultam da
revelação divina ou pelo menos estão relacionadas com ela.
Para poderem ser considerados infalíveis, os ensinamentos do papa têm de se basear
na tradição sagrada e nas Sagradas Escrituras, ou pelo menos não devem contradizer nem
uma nem outra. Porém, a infalibilidade do papa não sugere que este seja incapaz de pecar
ou de ter um comportamento incorrecto.
Desde que a doutrina foi introduzida, há 142 anos, apenas foi invocada uma vez. Em
1950, o papa Pio XII definiu a Assunção de Maria como artigo de fé na Igreja Católica
Romana. Foi portanto «assumido» que depois da sua morte Maria, mãe de Jesus, foi
transportada ao céu tanto com a alma como com o corpo intacto.
Tirando este uso particular da infalibilidade, a Igreja confia na ideia de que o papa
decide o que será e não será aceite como crença formal na Igreja Romana.
Legado papal
Um legado papal era um representante pessoal do papa, um cargo em geral entregue
a um cardeal. Os legados eram enviados a governos estrangeiros, a monarcas ou a igrejas
fora do Vaticano, com instruções do papa para se encarregarem de eventos católicos
importantes, como um concílio ecuménico, ou para participarem em decisões relacionadas
com questões de fé. Os legados papais também podiam encarregar-se de decisões
relacionadas com heresias, como aconteceu aquando da luta entre o papado e os hereges
cátaros no Languedoc.
Núncio apostólico
A palavra «núncio» deriva da palavra latina nuntius, que significa enviado. Um núncio
papal, conhecido oficialmente como «núncio apostólico», é um embaixador que representa
o Vaticano noutros estados ou em organizações internacionais, como as Nações Unidas.
O núncio tem o mesmo estatuto que um embaixador de outro estado e em geral tem o
cargo de arcebispo durante o tempo que permanece no posto (enquanto a Igreja Católica
continuar a não ordenar mulheres, todos os núncios papais serão homens).
ASSASSINACTOS E ENVENENAMENTOS,
FILHOS ILEGÍTIMOS E DEVASSIDÃO,
COBIÇA E CORRUPÇÃO: OS MAIORES
ESCÂNDALOS E SEGREDOS DOS PAPAS.
ESTEVÃO VI (896-897) O papa Estevão ordenou que o corpo em
decomposição do seu antecessor, o papa Formoso, fosse desenterrado,
sujeito a um julgamento e atirado ao Tibre – por duas vezes;
JOÃO XII (955-964) Não lhe bastou ter o seu próprio bordel no
Vaticano – ainda cegou um cardeal e castrou outro. Dizia-se também que
brindou ao Diabo na Basílica de S. Pedro até ficar inconsciente com tanto
álcool;