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A

HISTÓRIA NEGRA
DOS PAPAS







Brenda Ralph Lewis








O pontificado é o cargo eleito mais
antigo do mundo e a maior parte
dos 265 papas que já o ocuparam
depois de S. Pedro foram cristãos
bons e honestos. No entanto, nem
todos se comportaram de maneira
exemplar.

Este livro aborda os


acontecimentos mais marcantes
de uma história repleta de
corrupção, nepotismo e outras
perversões, assim como os
crimes e atrocidades cometidos
por ordem dos pontífices.

Percorrendo um passado oculto, A
História Negra dos Papas revela
os episódios mais sombrios do
Vaticano, os seus maiores
escândalos e segredos.




Índice


Introdução ……………………..……………………………………………………………………………………………..
… 5

Capítulo I
O sínodo do cadáver, o domínio das rameiras e outros escândalos do Vaticano……….…………9

Capítulo II
O genocídio dos cátaros………………………………………………………………………………………………………29

Capítulo III
Os horrores da Inquisição…………………………………………………………………………………………………. 50

Capítulo IV
Papas e bruxas……………………………………………………………………………………………………….…………..76

Capítulo V
A depravação dos Bórgias…………………………………………………………………………………………………102

Capítulo VI
Perseguição a Galileu….……………………………………………………………………………………………………128

Capítulo VII
As revoluções e a Igreja……………………………………………………………………………………………………146

Capítulo VIII
O prisioneiro do Vaticano………………………………………………………………………………………………..166

Capítulo IX
O papa e os nazis………………..…………………………………………………………………………….…………….182

Vocabulário do Vat icano………………………..…..…….………………………………………..…….……………203





Introdução



O papa ocupa o cargo eleito mais antigo do mundo. Nos quase dois mil anos da sua
existência, o papado contribuiu para determinar o modo como a história da Europa se
desenrolou, além de ter reflectido o melhor e o pior dessa história. Vários papas
conspiraram, assassinaram, corromperam, roubaram e fornicaram, enquanto outros
cometeram atrocidades tão monstruosas que mesmo os seus contemporâneos se sentiram
chocados com elas.
Tudo isto se aplica sobretudo aos tempos mais negros de uma história já de si negra,
em que a cristandade se tornou refém de um medo histérico da feitiçaria ou de qualquer
desvio do caminho da «verdadeira» religião, tal como ela era determinada pelos papas e
pela Igreja Católica. Alguns dos crimes mais horrendos cometidos em nome da religião –
todos eles com sanção papal – ocorreram durante os cinco séculos, aproximadamente,
que durou o combate feroz com que na Europa se procurou eliminar o «erro»: qualquer
crença, prática ou opinião que se desviasse da linha oficial definida pelo papa.
Os cátaros, por exemplo, uma seita ascética espalhada sobretudo no sudoeste de
França que acreditava que Deus e o Diabo partilhavam o mundo entre eles, foram
eliminados no que pode ser praticamente considerado um genocídio. Foi para lidar com
eles que a Inquisição foi introduzida, em 1231. Os inquisidores recorreram a torturas
terríveis, como o famoso potro ou o esmagador de polegares, para extorquir confissões.
Tudo isto acabou muitas vezes com a morte na fogueira. Tal como os hereges, milhares de
supostas bruxas, feiticeiras, videntes e outros «agentes» do Demónio morreram entre
sofrimentos atrozes.
De forma menos selvagem, a Inquisição atirou-se ao astrónomo do século XVII
Galileu Galilei, censurado por apoiar ideias acerca da estrutura do universo contrárias aos
ensinamentos da Igreja. Galileu estava convencido de que a Terra circulava na órbita do
Sol, enquanto a Igreja ensinava que ela estava no centro do universo. O velho cientista
acabou a sua vida prisioneiro na própria casa e foram precisos 350 anos para a Igreja
admitir que afinal ele é que tinha razão.
Mas no Vaticano houve também aqueles que impuseram a si próprios o
encarceramento: os cinco papas que não reconheceram o reino de Itália e que, durante
quase sessenta anos, se recusaram a cruzar as fronteiras impostas ao Vaticano. Por fim,
em 1929, o papa Pio XI percebeu que o isolamento estava a transformar o papado num
anacronismo e assinou os Tratados de Latrão, que permitiram que a Igreja acertasse o
passo com o mundo moderno.
Dez anos mais tarde, em 1939, os perigos deste mundo moderno foram ao encontro
de outro Pio – o papa Pio XII –, que se viu confrontado pelos antagonistas da Segunda
Guerra Mundial, que procuraram ambos a sanção papal dos seus objectivos. Pio XII não a
deu a nenhum, embora, ao escolher o seu próprio caminho, se tenha tornado um herói e
um salvador para alguns, mas um vilão, ou mesmo um criminoso, para outros.






























Capítulo























O cadáver do papa Formoso, já em avançado estado de decomposição,
é sujeito a um julgamento instigado pelo seu sucessor, Estevão VII.
(Bridgeman/ AIO












O SÍNODO DO CADÁVER, O DOMÍNIO DAS


RAMEIRAS
E OUTROS ESCÂNDALOS DO VATICANO

Há mil anos, ou até um pouco antes, a instabilidade política era a regra em Roma. A
imagem do papado era extravagante, bizarra ou até horrenda. Ao seu nome eram
associados todos os tipos de crimes. A corrupção, a sintonia e os estilos de vida mais
dissolutos eram alguns dos seus aspectos, e talvez não os piores.
Durante a chamada «pornocracia papal», no início do século X, os papas foram
manipulados, explorados e dominados com os fins mais nefandos pelas suas amantes, que
os usaram como peões dos seus jogos de poder pessoais. Com certo fundamento, esta
era também ficou conhecida como a do domínio das rameiras.


COMO ENCONTRAR UM PAPA DESAPARECIDO




Houve tantos papas mutilados, envenenados, assassinados ou eliminados de outra
maneira qualquer que, quando um deles em particular desaparecia para nunca mais ser
visto, o mais natural era percorrer-se uma lista de explicações violentas possíveis para
tentar descobrir o que lhe acontecera. A morte por estrangulamento no cárcere era uma
das mais frequentes. O papa desaparecido teria sido horrivelmente desfigurado e por isso
deixara de poder apresentar-se em público? Teria metido o tesouro do papado ao bolso e
desaparecido com ele? Ou seria melhor procurá-lo nos bordéis e noutros lugares de má
nota para ver se andava perdido por aí? Muitas vezes não havia respostas claras e as
explicações eram deixadas a cargo de boatos e rumores.
Os fins violentos dos papas durante o período da pornocracia papal foram de uma
variedade surpreendente. Por exemplo, em 882, um papa, João VIII, não se despachou o
suficiente a morrer para o gosto dos que lhe administraram veneno com o fim de o matar.
Impacientes, os seus assassinos esmagaram-lhe o crânio com martelos para lhe apressar o
fim. Um papa do século X, Estêvão IX, foi horrivelmente mutilado. Cortaram- -lhe os lábios,
a língua e as mãos e arrancaram-lhe os olhos. O mais surpreendente é que o infeliz tenha
sobrevivido, embora nunca mais pudesse mostrar o rosto em público. O papa Bento V
fugiu para Constantinopla em 964 depois de ter seduzido uma jovem, e de caminho levou o
tesouro papal. Era sem dúvida um homem pródigo, visto que gastou o dinheiro antes do
fim do ano e regressou a Roma. Em breve voltou aos maus e velhos hábitos, mas acabou
por ser assassinado por um marido violento, que o esfaqueou mais de cem vezes antes de
atirar o seu corpo para um esgoto.
Um outro papa, Bonifácio VI, foi eleito para o trono de São Pedro embora, enquanto
padre, tenha sido destituído duas vezes por comportamento imoral. Como tantas vezes
sucede com acontecimentos que perduraram na memória em tempo suficiente para se
poderem formar lendas em seu redor, Bonifácio ou morreu de gota ou foi envenenado ou
deposto e exilado para dar lugar a outro papa, Estêvão VII. Em qualquer dos casos,
Bonifácio VI sumiu-se da história com rapidez suspeita: o pontificado durou apenas quinze
dias. Depois do seu desaparecimento, o sucessor, Estêvão, assenhoreou-se dos muitos
poderes e privilégios do papado em benefício dos seus patrocinadores, a poderosa casa de
Spoleto, do centro de Itália, e da castelã que a dominava, a duquesa Agiltrude, a
instigadora do escandaloso sínodo do cadáver, em 897.
Certo é que, por volta do século IX, o papado e os papas tinham-se tornado os
joguetes de famílias nobres como os Spoleto, que dominavam, entre outras, as cidades de
Veneza, Milão, Génova, Pisa, Florença e Siena. Graças à sua riqueza e influência, bem
como às ligações com as milícias armadas, estas famílias formavam o que podemos
descrever como uma aristocracia feudal. Em geral eram gente violenta, que não hesitava
em usar da maior crueldade para se apoderar do cargo mais prestigiado do mundo cristão
e para o dominar. No entanto, depois de adquirido, o seu poder podia ser efémero, porque
os pontificados dos seus protegidos, como todos os da época, eram de muito curta
duração. Entre 872 e 904, por exemplo, houve 24 papas. O pontificado mais longo durou
uma década e os quatro seguintes duraram à volta de um ano. Nos nove anos entre 896 e
904 houve nove papas, tantos como o total de pontífices eleitos ao longo de todo o
século XX. Isto significa, como é óbvio, que a sede do papado, a cidade de Roma, estava
em constante turbulência, uma vez que a luta para dominar o trono de São Pedro
recomeçava constantemente.




A DUQUESA ASSASSINA


Estêvão VII foi um destes papas de curta duração, mas proporcionou à casa de
Spoleto, da Itália central, uma amostra do que podia ser o poder papal, embora esta
primeira experiência tenha acabado por não ultrapassar 15 meses, entre 896 e 897.
Estêvão era quase de certeza louco e a sua insanidade parece ter sido do conhecimento
de toda a gente em Roma. Porém, isto não dissuadiu Agiltrude de promover a sua
ascensão ao trono de São Pedro, em Julho de 896. Ao que tudo indica, a duquesa tinha
um plano especial para o papa Estêvão, de que fazia parte vingar-se do seu velho inimigo,
o falecido papa Formoso.
Como acontece com a maior parte, senão com todas as heroínas encantadoras da
história, Agiltrude tinha a reputação de ser uma mulher muito bela, com um corpo
curvilíneo e longo cabelo louro. Verdade ou não, foi sem dúvida uma personagem
formidável, com uma sede desmedida de vingança. Em 894, a duquesa levou Lamberto,
seu filho ainda criança, a Roma para ser confirmado pelo papa Formoso como sacro
imperador romano, ou pelo menos assim o esperava. Descobriu no entanto que aquele
tinha as suas próprias ideias sobre o assunto e preferia outro candidato ao lugar, Arnulfo
de Caríntia, descendente de Carlos Magno, o primeiro sacro imperador romano. O papa
percebeu que Agiltrude não tencionava ver tranquilamente o seu filho ser preterido e,
conhecedor do mau feitio dos Spoleto, percebeu que em breve teria problemas sérios.
Decidiu por isso pedir ajuda a Arnulfo.
Este, por seu lado, também não tinha qualquer intenção de ceder às pretensões de
um miúdo como Lamberto ou de sua mãe, por implacável que ela fosse. Não tardou a
aparecer com o seu exército e a despachar a duquesa para Spoleto. Foi coroado
imperador do Sacro Império Romano-Germânico a 22 de Fevereiro de 896. O novo
imperador enviou imediatamente um grupo em perseguição de Agiltrude, mas antes de este
chegar a Spoleto, Arnulfo foi acometido de uma doença incapacitante, possivelmente uma
apoplexia.
O papa Formoso morreu seis semanas depois, a 4 de Abril de 896, ao que se diz
envenenado por Agiltrude. De acordo com todos os testemunhos que nos chegaram,
tratou-se de um papa admirável, conhecido pela preocupação com os pobres, pela vida
austera, pela castidade e pela oração, tudo virtudes cristãs dignas de admiração,
particularmente notáveis numa época de decadência, em que sobressaíam os interesses
pessoais e os hábitos bárbaros.
Fossem quais fossem as suas virtudes, Formoso não conseguiu escapar inteiramente
à atmosfera envenenada pela violência e pelas intrigas, caraterística da Igreja do seu
tempo. Faziam-se inimigos com a maior das facilidades e aqueles com quem isso acontecia
ficavam expostos ao ódio e à vingança. Também é possível que Formoso tenha sido
demasiado honesto e frontal para o seu próprio bem. Por exemplo, não foi boa ideia opor-
se à eleição do papa João VIII em 872, em especial se tivermos em conta que ele próprio,
Formoso, estava entre os candidatos ao lugar. Foi igualmente má política fazer amigos
entre os inimigos desse papa, que nunca desistiram de conspirar contra ele. Na realidade,
estavam de tal maneira determinados a destruí-lo que chamaram em seu auxílio tropas
sarracenas, inimigas declaradas da cristandade.
Na época de que falamos, os inimigos dos papas desapareciam habitualmente ou
então apareciam sem vida. Os presságios eram fáceis de interpretar e, quando os
conspiradores seus amigos decidiram fugir da corte papal, Formoso acompanhou-os,
atitude que, como é evidente, o denunciou a ele próprio como conspirador. O resultado de
tudo isto foi ter sido acusado de alguns crimes sórdidos, como pilhar os claustros de Roma
e conspirar contra a Santa Sé.
Formoso foi punido de acordo com a gravidade destas acusações. Em 878 foi
excomungado. No entanto, a pena foi revogada em troca de uma declaração segundo a
qual renunciava a regressar a Roma e a voltar a exercer funções sacerdotais. Além disso,
foi-lhe retirada a diocese de Portus, onde fora feito cardeal, em 864.


TUDO É PERDOADO – DURANTE ALGUM TEMPO




Estas acusações e penas, de que era vítima um homem idoso de probidade e
integridade comprovadas, eram claramente ridículas e tudo indicava serem falsas. Feliz-
mente, acabaram por ser retiradas. Depois da morte de João VIII, em 882, o seu sucessor,
Marinho I, chamou Formoso, na altura refugiado no oeste de França, a Roma para lhe
comunicar que lhe era devolvida a sua diocese, de Portus. Nove anos mais tarde, Formoso
era ele próprio eleito papa. Durante os seus cinco anos no trono cometeu um erro muito
grave, que foi irritar a duquesa Agiltrude e indispor contra ele a casa de Spoleto. A sua
política enquanto papa, que incluiu um esforço para reduzir a influência dos leigos nos
negócios da Igreja, também lhe granjeou inimigos.
Talvez tenha sido por isso que não bastou a Agiltrude a morte de um dos seus
inimigos e a doença de outro. O que a duquesa tinha em mente era muito mais dramático e
repugnante. Com a morte de Bonifácio VI, que sucedeu a Formoso, o caminho ficou aberto
para Estêvão VII, o candidato de Agiltrude e do seu filho Lamberto, igualmente malicioso.


OS MEANDROS SINISTROS DO ÓDIO




Em Janeiro de 897, Estêvão anunciou um julgamento a ter lugar na Basílica de São
João de Latrão, o templo oficial do papa enquanto bispo de Roma. O réu era o papa
Formoso, na altura morto há nove meses, a quem Estêvão dedicava um ódio fanático.
Estêvão VII era um homem inquestionavelmente perverso, mas a raiz do seu ódio não é
conhecida com exactidão: é possível que pertencendo à casa de Spoleto e tendo sido toda
a vida incitado pela temível Agiltrude baste para o explicar. Mesmo assim, por obsessivo
que tenha sido, dificilmente se consegue explicação para os horrores em preparação para
o julgamento póstumo do papa Formoso, que se deu em data incerta no mês de Janeiro de
897.
O papa morto não foi julgado à revelia. Por instigação de Agiltrude, Formoso – ou
antes, o seu cadáver em decomposição, que as vestes penitenciais de tecido grosseiro só
com dificuldade impediam de se desconjuntar – foi desenterrado e transportado para a sala
de audiências, onde foi sentado num trono. Estêvão sentou-se perto dele, a presidir ao
«julgamento» ao lado de outros juízes escolhidos entre o clero. Para assegurar a sua
docilidade, todos eles tinham sido intimidados de maneira tal que assistiram a todo o
processo num estado de nervosismo e pavor extremos. As acusações lançadas pelo papa
João VIII contra Formoso foram ressuscitadas durante o julgamento. Além disso, foram-
lhes acrescentadas outras com a finalidade de demonstrar que Formoso não estava em
condições de exercer as funções de sumo pontífice: cometera perjúrio, dizia Estêvão,
cobiçara o trono de São Pedro e violara a lei da Igreja.

DRAMA NO SÍNODO DO CADÁVER




O comportamento de Estêvão no tribunal foi extravagante. Os clérigos e outras
pessoas presentes tiveram de ouvir as suas tiradas frenéticas, pronunciadas enquanto
troçava do papa morto e lhe lançava insultos grosseiros. Foi concedida a Formoso a
possibilidade de se defender, materializada na pessoa de um diácono de 18 anos de idade.
A função do infeliz era responder por Formoso, mas estava demasiado assustado com os
delírios e os gritos de Estêvão para produzir algum efeito. Fraco, tudo o que o pobre rapaz
conseguiu foi murmurar algumas respostas incoerentes.
Como não podia deixar de ser, no fim do triste espectáculo que ficou conhecido como
o sínodo do cadáver, Formoso foi considerado culpado de tudo aquilo de que o acusavam.
A punição foi imediatamente aplicada. Estêvão começou por declarar que todos os actos e
ordenações do falecido papa eram nulos e sem efeito. Por sua ordem, o cadáver foi
despido dos seus mantos e vestido com roupas vulgares, não religiosas. Os três dedos
que Formoso usara para as bênçãos papais – ou o que restava deles ao fim de nove
meses de decomposição – foram-lhe cortados e entregues a Agiltrude, que assistiu a tudo
aquilo sem disfarçar a sua satisfação. Por fim o papa Estêvão ordenou que Formoso
voltasse a ser enterrado, mas numa vala comum. As ordens foram respeitadas, mas as
coisas não ficaram por aqui. O corpo em breve foi novamente desenterrado, arrastado
pelas ruas de Roma e atirado ao Tibre com pesos amarrados.
Como papa, Formoso fora respeitado por grande parte do clero e era popular entre
os romanos, que, antes da sua eleição, em 891, se tinham amotinado perante a
perspectiva de não ser ele o escolhido. Assim, quando um monge que permanecera fiel à
sua memória pediu a alguns pescadores que o ajudassem a recuperar os restos mortais
muito deteriorados de Formoso, houve muitos a ajudá-lo. Depois disso o papa voltou a ser
enterrado, desta vez numa sepultura vulgar. Tal como o resgate do corpo, o enterro teve
de ser mantido secreto. Se os inimigos de Formoso tivessem sabido – em especial o papa
Estêvão e Agiltrude –, é quase certo que o corpo teria voltado a ser profanado.
O sínodo do cadáver, mais conhecido pela expressiva designação em latim, synodus
horrenda, provocou indignação generalizada na cidade de Roma. Para as mentes
populares mais supersticiosas, o efeito de todo o episódio tornou-se ainda mais poderoso
com o desmoronamento súbito da Basílica de São João de Latrão na altura em que
Agiltrude e o papa saíam no fim do «julgamento». O facto de a basílica ser há muito
considerada pouco segura foi menos convincente do que a ideia de que o
desmoronamento era um sinal da indignação divina. Não foi preciso muito tempo para, na
mesma veia, começarem a correr rumores de que o corpo do papa Formoso tinha feito
milagres, um poder em geral apenas atribuído aos santos.
A repugnância geral pela desumanidade de todo o episódio do julgamento e da
profanação dos restos mortais convenceu muitos religiosos de que, se havia em tudo
aquilo alguém que não era digno de ser papa, era o próprio Estêvão VII. O calculismo
também explica grande parte da vaga de hostilidade desencadeada pelo sínodo, já que
muitos clérigos ordenados por Formoso foram destituídos dos seus cargos quando
Estêvão anulou as ordenações do antecessor.

O PAPA ESTÊVÃO VAI AO ENCONTRO DO CRIADOR




A hostilidade em breve deu lugar à acção. Em Agosto de 897, oito meses depois do
sínodo do cadáver, Estêvão VII foi deposto por um golpe palaciano. Despojado das
magníficas vestes pontifícias, foi atirado para um calabouço onde foi estrangulado. No
entanto, isto não pôs fim aos tempos mais vergonhosos do papado – de modo algum.
Para começar, Agiltrude continuava activa e de saúde e onde ela aparecia os desacatos
eram inevitáveis. A duquesa estava furiosa com a morte do seu protegido, de maneira que
se apressou a restaurar a sua influência, que fora assassinada com Estêvão. Contudo, não
teve sorte com o novo papa, Romano, que ascendeu ao trono pontifício em 897, onde
acabou por só ficar três meses. Romano, ao que parece, conquistou a inimizade de uma
das facções da corte papal, que também se opunha a Agiltrude e à casa de Spoleto.
Depois disso, o desafortunado ex-papa foi «feito monge», um eufemismo da Alta Idade
Média que significava ser deposto.







FORMOSO REABILITADO


O sucessor de Romano, o papa Teodoro II, foi ainda mais desafortunado, mas pelo
menos manteve-se no poder tempo suficiente para fazer justiça a Formoso. Foi Teodoro
que ordenou que o corpo do antecessor fosse sepultado, com vestes pontifícias e com as
homenagens devidas, na Basílica de São Pedro, em Roma. Além disso anulou o sínodo do
cadáver e o veredicto e as decisões do tribunal eclesiástico. Para imenso alívio do clero
prejudicado por Estêvão VII, Teodoro revalidou as nomeações de Formoso para os
cargos. Foi como se o sínodo do cadáver do papa lunático nunca tivesse acontecido.
Infelizmente, esta atitude trouxe poucas ou nenhumas compensações ao papa Teodoro. O
seu pontificado durou apenas vinte dias, em Novembro de 897, depois dos quais morreu
misteriosamente. No ano seguinte, foram proibidos quaisquer julgamentos futuros de
pessoas já mortas, pelo papa João IX, sucessor de Teodoro.
Dez anos mais tarde, Sérgio III, eleito papa em 904, voltou a desenterrar o papa
Formoso e a submetê-lo a julgamento. Sérgio, na altura cardeal, participara no sínodo do
cadáver, em 897, como juiz e ficou furioso quando o veredicto de culpado foi levantado.
Desta vez, Sérgio renovou a condenação e acrescentou alguns toques mórbidos da sua
lavra. Deu ordens de que o cadáver fosse decapitado e mais três dedos cortados e lançou-
o de novo ao rio Tibre. Para sublinhar a sua mensagem, mandou gravar um epitáfio
lisonjeiro no túmulo de Estêvão VII.
Pouco tempo depois destes acontecimentos, o corpo decapitado de Formoso voltou
a emergir, preso na rede de um pescador. Retirado do Tibre uma segunda vez, o antigo
pontífice foi devolvido de novo à Basílica de São Pedro. Com a sua atitude, Sérgio
desobedecera à proibição dos julgamentos póstumos decidida por João IX, por isso as
suas acções não podiam ser consideradas válidas. No entanto, teve de ser feito um
anúncio público da inocência de Formoso e tanto ele como o seu trabalho foram
revalidados uma vez mais.
A grande instigadora do sínodo do cadáver original, Agiltrude, continuava viva quando
Formoso foi exumado pela segunda vez, mas a sua posição – e o seu poder – era
radicalmente diferente, porque, através do comportamento extravagante de Estêvão VII,
triunfara do papa morto em 896. Porém, tinha uma fraqueza. O poder de Agiltrude, embora
considerável, era essencialmente de segunda mão; assentava em marionetas como o papa
Estêvão, que podia ser manipulado de forma a assumir posições conformes aos seus
desejos e a pôr em prática aquilo que lhe convinha. Outro elemento importante do arsenal
de Agiltrude eram as suas relações familiares, asseguradas pelo elevado estatuto do
marido, Guido de Spoleto, e depois dele pelo do filho dos dois, Lamberto. Quando Guido
morreu, a 12 de Dezembro de 894, Agiltrude perdeu a sua posição de duquesa de Spoleto
e Camerino, rainha de Itália e sacra imperatriz romana. A elevação de Lamberto a estas
posições continuaria a trazer-lhe benefícios, mas o filho morreu antes da mãe, em 898, e o
último laço de família da duquesa com o poder quebrou-se.
Agiltrude morreu em 923, altura em que outras duas mulheres já haviam descoberto a
maneira de penetrar nas galerias do poder papal em Roma. Essas mulheres eram Teodora
e a filha Marózia, ambas amantes de papas. Teodora foi descrita como uma «rameira
desavergonhada» e as duas filhas, Marózia e Teodora, mais nova, tinham uma reputação
«que não era muito melhor do que a da mãe».
Nem a Teodora mais velha nem Marózia puseram fim à rotação rápida que se tornara
uma caraterística regular do papado. Quando muito, exacerbaram-na. Nos primeiros anos
do século X, os pontificados curtos, de um ano ou menos, continuaram, bem como as
mortes violentas dos papas, que reflectiam a luta latente pelo poder. Alguns conseguiam
sobreviver um ano ou dois, mas só raramente mais do que isso. De facto, os papas
sucediam-se uns aos outros com tal rapidez que os criados faziam bom negócio com a
venda dos seus móveis e peças de vestuário.

O DOMÍNIO DAS RAMEIRAS




O pequeno roubo não era nada em comparação com a corrupção, a licenciosidade e
a venalidade que caracterizaram este período, conhecido como «pornocracia papal», ou
«domínio das rameiras», por aqueles que, com boas razões para isso, achavam que o
verdadeiro poder estava nas mãos de prostitutas. Tal como as marionetas cujos fios eram
habilmente manipulados por Agiltrude, os papas do tempo da pornocracia foram cúmplices
benevolentes da decadência e da imoralidade que caracterizou uma época despudorada e
vergonhosa.
O bispo e cronista lombardo do século X Liutprand de Cremona opunha-se
violentamente à Igreja romana e ao papa. Há muito de verdade no que escreve na sua
Antapodosis, uma história do papado entre 886 e 950:

Caçavam com cavalos com arreios de ouro, organizavam banquetes
opulentos com dançarinas no fim das caçadas e retiravam-se com as
suas prostitutas para leitos com lençóis de seda e cobertas bordadas a
ouro. Todos os bispos romanos eram casados e as suas mulheres faziam
vestidos de seda das vestes sagradas.

O bispo Liutprand menciona Teodora e Marózia como «duas voluptuosas mulheres
imperiais que governaram o papado no século X». Teodora, assegura, era uma «rameira
desavergonhada [...| a certa altura [...] a verdadeira rainha de Roma e – por vergonhoso
que seja escrevê-lo – exercia o poder como um homem». A segunda filha de Teodora,
Teodora como ela, não escapa à sua censura, já que ela e a irmã, continua Liutprand,
«conseguiam ultrapassar a mãe nos exercícios que Vénus aprecia». Isto parece
exageradamente severo com Teodora, que, ao que tudo indica, levou uma vida
irrepreensível, dedicada às boas obras, mas já a avaliação que Liutprand faz de Marózia
parece mais próxima da realidade. Para começar, esta tinha um estabelecimento na ilha
Tiberina, uma ilhota no meio do Tibre onde a modéstia e a moral eram desconhecidas.
A maior parte dos visitantes do estabelecimento de Marózia na ilha Tiberina, em
Roma, eram jovens aristocratas e clérigos, incluindo bispos, cujo modo de vida estava tão
afastado quanto é possível imaginar do ideal ascético cristão. Tirando o sexo – em grande
escala –, estes homens estavam sobretudo interessados nas caçadas aos ursos ou na
caça com falcões – o passatempo preferido das classes altas na Idade Média – e, embora
frequentassem a missa e outras cerimónias religiosas, faziam-no em geral sem tirar as
esporas e de adaga à cintura. Os seus cavalos ficavam preparados à porta da igreja, à
espera que a missa acabasse para os seus cavaleiros poderem saltar para a sela e partir
para uma longa tarde a perseguir a caça.
A combinar com tudo isto, estes homens viviam na opulência. As suas casas eram a
última palavra em conforto e luxo, com a decoração mais requintada e as tapeçarias e os
veludos mais caros. Era desta vida decadente – e desta companhia decadente – que
Marózia mais gostava.
Voltando a Teodora, Liutprand conta em pormenor como seduziu um jovem sacerdote
muito bem-parecido e obteve para ele o bispado de Bolonha e o arcebispado de Ravena.
Ao que parece, contudo, mais tarde veio a arrepender-se da sua generosidade. Pouco
depois começou a sentir a falta do seu jovem amante e, para o ter mais perto dela, de
maneira que pudesse ser o seu companheiro nocturno, chamou-o de regresso a Roma. Em
914 conseguiu que fosse eleito papa, com o nome de João X. Era provavelmente o pai da
filha mais nova de Teodora.
Teodora já era uma fazedora experiente de papas na altura em que elevou João X ao
trono de São Pedro. A sua preferência ia para os de temperamento pouco firme, mais
manipuláveis, como Bento IV, que reinou sem lhe dar problemas entre 900 e 903. Por outro
lado, também tinha um fraco por parasitas e depravados. Um deles foi Lando I, que foi
papa durante apenas sete meses, entre 913 e 914. Pouco se conhece deste pontífice, mas
o que se sabe não é nada bom. Ao que parece, o convívio prolongado com «mulheres
depravadas» desde muito jovem, diz um cronista medieval, acabou por «consumi-lo».
Trata-se, como é evidente, de uma maneira de referir um castigo vindo do alto.


O PAPA BORRA A ESCRITA




João X, ao que tudo indica, adaptou-se sem dificuldade ao ambiente pornocrático que
encontrou em Roma. Era um chefe militar hábil e combateu em muitas batalhas, que
venceu, contra os sarracenos. No entanto, manchou a sua reputação de forma indelével
com o seu nepotismo, o enriquecimento da família e a sua falta de princípios quase
absoluta. Em vez de ficar agradecido a Teodora por ela ter conseguido elevá-lo ao mais
alto cargo da Igreja, João abandonou-a mal pôs os olhos na encantadora filha mais nova
de Hugo da Provença, futuro rei de Itália.
Marózia, a filha de Teodora, não ficou contente com a eleição – ou antes, com a
manipulação da escolha – de João para o trono de São Pedro e resolveu contrariá-lo
tanto a ele como à mãe dela com o seu próprio candidato, outro João, seu filho e do papa
Sérgio III, nascido por volta de 910. Quando João X chegou a papa, o filho de Marózia
tinha apenas 4 anos, um pouco jovem para o pontificado, mesmo na Alta Idade Média, uma
época em que foram frequentes os papas adolescentes.
Contudo, o tempo de espera permitiu a Marózia amadurecer os seus planos. Vira a
duquesa Agiltrude em acção no sínodo do cadáver e acabou por tomá-la como modelo. Tal
como Agiltrude, Marózia era movida por um ódio cego, pela mesma necessidade de
retribuição, isenta de qualquer remorso, e pelo mesmo desejo de vencer a qualquer preço.
Como acontece com muitas pessoas inclinadas à vingança, tinha uma excelente memória,
daquelas que mantêm as recordações vivas muitos anos a fio.
Aos olhos de Marózia, a morte do seu primeiro marido, o conde Alberico da
Lombardia, com quem casara em 909, clamava por vingança. Alberico era um desordeiro
nato. Nascera numa família que se distinguia da pior forma na intriga, no adultério, na
simonia e em praticamente todas as obscenidades associadas a um modo de vida
decadente. Além disso, os condes da Lombardia tinham muita prática na arte de fazer
papas, tendo conseguido sentar sete membros da família no trono de São Pedro através
da manipulação dos conclaves.
Marózia, ela própria uma boa conhecedora deste tipo de abusos, depressa
reconheceu o potencial do marido e as ambições que esta formação desenvolvera nele.
Começou a incitá-lo a desafiar o papa João X e a marchar sobre Roma com o objectivo de
se apoderar do pontífice e do trono em que se sentava. Por uma vez, Marózia enga- nou-
se nos cálculos. João X não era nenhuma marioneta, como muitos papas durante o
domínio das rameiras, mas sim um líder militar experiente, com uma vitória importante na
sua carreira.
Em 915, João, à cabeça do exército da Liga Cristã, esmagara as forças muçulmanas
numa batalha perto do rio Garigliano, cerca de duzentos quilómetros a sul de Roma. Nove
anos mais tarde, Marózia conseguiu convencer Alberico a tomar Roma e provavelmente a
depor o papa João X. Porém, quando marchou sobre a cidade santa, Alberico, na batalha
de Orte, no Lácio, no centro de Itália, sofreu uma derrota tão retumbante como a dos
mouros. No fim foi morto e o seu corpo mutilado. Para lhe dar uma boa lição, ou por pura
crueldade, o papa vitorioso obrigou Marózia a observar o que sobrara do marido, uma
experiência atroz que ela nunca esqueceu nem perdoou.
Marózia sentiu-se forçada a esperar pelo momento da vingança, já que a mãe,
Teodora, ainda era viva. Talvez por respeito por ela, ou talvez por recear a vingança dos
seus apoiantes, Marózia parece não ter feito nada contra o papa João, pelo menos de
imediato. Entretanto, em 924, o papa João atiçou ainda mais o desejo de vingança da sua
inimiga. Aliou-se a Hugo da Provença, na altura já rei de Itália, pondo em causa o poder de
Marózia em Roma.
Dois anos mais tarde, em 926, Marózia casou pela segunda vez, com um homem
muito influente, Guido, conde e duque de Lucca e governador militar da Toscana. Este
casamento fortaleceu consideravelmente a sua posição, reforçada ainda pela morte de
Teodora, em 928. Correram rumores de que Marózia a envenenara, e não há grandes
dúvidas de que era suficientemente implacável para acabar com a própria mãe. No entanto,
a morte de Teodora facilitou a vingança da filha, já que, sem a antiga protectora, o papa
ficou mais vulnerável. Em conjunto, Marózia e Guido trataram de aumentar ainda mais essa
vulnerabilidade.


ASSASSÍNIO NO PALÁCIO PONTIFÍCIO




Juntos, Marózia e o marido estiveram por detrás do assassínio de Giovanni Pietro,
prefeito de Roma, irmão do papa João X. Pietro recebera do irmão favores e cargos
lucrativos que deixaram muitos nobres romanos em fúria, convencidos de que era a eles
que esses benefícios eram devidos. No entanto, o assassínio de Pietro não foi um caso de
mera vingança. O irmão do papa fora um apoio firme e leal para o irmão e uma ajuda
preciosa no meio das intrigas, da violência e das traições que eram as caraterísticas
principais do papado do século X. Com Giovanni Pietro afastado, as salvaguardas que ele
proporcionava desapareceram e foi fácil prender o papa e aprisioná-lo no Castel
Sant’Angelo. João morreu dentro de pouco tempo, segundo Liutprand sufocado na própria
cama, ou vítima de ansiedade, segundo a versão do cronista francês Flodoard.
Poderia dizer-se que Marózia reinava sem rivais entre os fazedores de papas de
Roma, mas esta impressão revelar-se-ia enganadora, já que tudo aquilo por que Marózia
trabalhara e conspirara estava prestes a desintegrar-se. Marózia conseguiu eleger mais
dois papas-fantoches. O primeiro foi Leão VI, que chegou e partiu num só ano, 928, e de
quem se diz que foi envenenado por Marózia depois de um reinado de apenas sete meses.
O seu sucessor foi Estêvão VIII, que foi um pouco mais longe e reinou de 928 aos
primeiros meses de 931. Tudo isto parecia conforme à sequência habitual de eventos, com
pontificados de curta duração e os papas a sucederem-se rapidamente e a morrerem ou
desaparecerem. No entanto, por detrás desta rotina familiar, Marózia estava apenas a
ganhar tempo até poder sentar o próprio filho no trono de São Pedro. João tinha 21 anos,
mais ou menos o mínimo indispensável para poder ser decentemente feito papa, quando a
mãe por fim alcançou o seu objectivo e fez dele João XI, em 931.
O segundo marido de Marózia morrera em 929. Três anos mais tarde, João XI
arranjou o casamento de sua mãe com o seu velho inimigo, o rei Hugo de Itália, que,
enquanto meio-irmão do falecido Guido, era seu cunhado. Havia dois impedimentos ao
casamento, já que, de acordo com a lei da Igreja, o casamento entre cunhados era ilegal e
incestuoso. Outro obstáculo era Hugo já ter mulher, mas esse foi facilmente ultrapassado
com o divórcio apressado decretado pelo papa. Além disso, o casamento foi celebrado
pelo sumo pontífice, o que lhe deu uma espécie de legitimidade aparente.
João conseguira que a mãe vencesse obstáculos que muitos julgariam
inultrapassáveis, mas a satisfação de Marózia foi de curta duração. Desde o seu triunfo
sobre o falecido papa João X que Marózia ignorava o seu segundo filho, nascido do seu
primeiro casamento, com Alberico, conde da Toscana. O jovem Alberico II, cheio de ciúmes
pela preferência da mãe pelo meio-irmão mais velho, em breve se revelou o herdeiro
legítimo da malvadez dos seus antepassados. O terceiro marido da mãe também não lhe
agradava, e não perdeu tempo a mostrá-lo. A cerimónia de casamento mal tinha acabado,
estavam os convidados à mesa a tomar o pequeno-almoço, quando Alberico insultou de
forma grosseira o rei Hugo. Este respondeu-lhe à letra e a troca de impropérios acabou em
agressão física e numa bofetada do rei a Alberico.
O filho de Marózia ficou transtornado com a humilhação pública e jurou vingança. O
que fez em seguida também pode ter sido motivado pelos rumores de que o rei Hugo
tencionava mandar cegá-lo – na Alta Idade Média um meio comum de incapacitar um rival e
ao mesmo tempo deixá-lo vivo e a sofrer.


MARÓZIA PRESA


Hugo e Marózia estavam casados há apenas alguns meses quando Alberico reuniu
uma turba em armas, que incitou a avançar sobre o Castel Sant’Angelo, onde o casal se
encontrava. Os dois foram acordados pelos amotinados que se agrupavam à frente da
residência papal. Hugo, receando ser linchado, saltou da cama e fugiu. Apenas de camisa
de noite, escondeu-se num cesto e foi levado pelos criados. Desceu as muralhas da cidade
com a ajuda de uma corda e fugiu, deixando Marózia enfrentar sozinha a fúria do filho. A
vingança de Alberico foi verdadeiramente terrível. Encarcerou a mãe na masmorra mais
profunda do Castel Sant’Angelo e é provável que depois disso ela não tenha voltado a ver
a luz do dia. Tinha então 42 anos e era ainda uma mulher de grande beleza, mas foi
condenada a passar os 54 anos seguintes a apodrecer, até que morreu, com uma idade
muito avançada.
Entretanto Alberico prendeu o meio-irmão bastardo, o papa João XI, enquanto ele
próprio consolidava o seu poder. Depois de sentir que o domínio sobre Roma estava
firmemente estabelecido, Alberico tirou João da prisão, embora sem a menor intenção de o
libertar. Em vez disso, prendeu-o na Basílica de São João de Latrão. Foram-lhe retirados
praticamente todos os poderes pontifícios, ficando apenas com o de administrar os
sacramentos. Não era uma experiência nova para o papa João. Tudo o que aconteceu foi
que passou do domínio de Marózia para o de Alberico, que exercia de facto o poder
secular e eclesiástico em Roma.
João suportou a obediência ao meio-irmão durante quatro anos, até que morreu, em
935, deixando Alberico no papel de fazedor de papas que em tempos pertencera à avó e à
mãe. Ao longo dos 22 anos seguintes, até que morreu, com 43 anos, em 954, Alberico
nomeou quatro papas. No seu leito de morte, ainda nomeou o próprio filho ilegítimo,
Octaviano, então com 16 anos, para lhes suceder. Tomou o nome de João Xll e foi uma
verdadeira catástrofe enquanto pontífice.
O papa João Xll era de tal maneira dissoluto que se diz que chegaram a ser rezadas
orações pela sua morte em muitos mosteiros. Parece não ter havido pecado que João Xll
não fosse capaz de cometer. Tinha um bordel na Basílica de São João de Latrão, dirigido
por uma das suas amantes, Márcia. Dormiu com a amante do pai e com a própria mãe.
Ofereceu cibórios de ouro da Basílica de São Pedro às amantes para as recompensar por
noites de paixão. Cegou um cardeal e castrou outro, provocando a sua morte. Os
peregrinos que se dirigiam a Roma corriam o risco de perder as oferendas que faziam à
Igreja porque muitas vezes o papa preferia usá-las para apostar nas noites de jogo.
Nessas ocasiões, invocava muitas vezes deuses e deusas pagãs para que lhe dessem
sorte aos dados. As mulheres tinham medo de se aventurar para os lados de São João de
Latrão ou para qualquer outra vizinhança da cidade frequentada pelo papa, sempre de olho
em novas presas. Ao fim de pouco tempo o povo de Roma ficou de tal maneira exasperado
com o comportamento de João Xll que o papa começou a temer pela sua vida. O melhor
que conseguiu congeminar foi deitar a mão a tudo o que apanhou na Basílica de São
Pedro e fugir para Tivoli, a 27 quilómetros da cidade.
João XII estava a prejudicar de tal maneira o papado, ainda em recuperação dos
crimes e dos pecados dos seus antecessores, que foi convocado um sínodo especial para
lidar com o seu caso. Todos os hispo-italianos e 16 cardeais e outros clérigos (alguns
alemães) reuniram-se para decidir o que fazer com o jovem desagradável que se tornara
seu pontífice. Convocaram testemunhas, ouviram-nas sob juramento e por fim puseram-se
de acordo quanto a uma lista que juntava vários crimes a um longo catálogo já de si
sinistro. Alguns foram enumerados numa missiva enviada a João pelo sacro imperador
romano Otão I da Saxónia.

Todos, tanto clérigos como leigos, vos acusam, Vossa Santidade,
de homicídio, perjúrio, sacrilégio, incesto com os vossos familiares,
incluindo duas das vossas irmãs, e de invocar, como um pagão,
Júpiter, Vénus e outros demónios.

O papa João, que continuava exilado em Tivoli, respondeu a Otão em termos tão
malévolos que Roma estremeceu de medo. Se o sínodo o depusesse, ameaçava João,
excomungaria todos os responsáveis, impedindo-os de celebrar missa ou de ordenar
sacerdotes. Em termos cristãos, esta era a pena mais pesada que um papa podia
determinar. Ser excomungado era ser expulso da Igreja e perder toda a protecção. Além
disso, era a própria alma imortal que ficava em perigo.


A VINGANÇA DE JOÃO XII




Apesar da ameaça de excomunhão, o imperador Otão I depôs o papa João XII e um
novo pontífice, Leão VIII, foi instalado no seu lugar. João, como é óbvio, não estava
disposto a admitir nada disto. Quando por fim regressou a Roma, em 963, a sua vingança
foi muito além das suas ameaças. Depôs o papa Leão, mas, em vez de excomungar,
executou ou mutilou todos os que o haviam julgado no sínodo. Mandou esfolar um bispo,
cortar o nariz e dois dedos a um cardeal, a quem também mandou arrancar a língua, e fez
decapitar 63 membros do clero e da nobreza de Roma.
Mais tarde, na noite de 14 de Maio de 964, as orações de suplica a Deus para que
este interviesse e salvasse Roma do papa-demónio parecem ter sido ouvidas pelo seu
divino destinatário. A cena foi descrita por um bispo chamado João Crescêncio: «Quando
tinha relações ilícitas e pecaminosas com uma matrona romana [o papa João] foi
surpreendido em pleno acto pelo marido desta, que, justamente enfurecido, lhe esmagou o
crânio com um martelo e assim entregou a sua alma a Satã.»


A MORTE DE MARÓZIA


Com isto a Igreja ainda não tinha ajustado contas com a família das meretrizes que
esteve por trás de nove dos papas mais pecadores da história. Em 986, decorridos 22
anos após a morte dramática de João XII, o bispo Crescêncio deslocou-se ao Castel
Sant’Angelo para ver Marózia, na altura com 96 anos. A beleza deslumbrante de Marózia
desvanecera-se e a sua dona era então um saco de pele e ossos vestido de farrapos. O
papa João XV, recentemente eleito, decidira compadecer-se dela, embora a sua
misericórdia tivesse assumido uma forma que apenas uma mente medieval teria
reconhecido como tal.
Crescêncio enumerou várias queixas contra Marózia, incluindo a conspiração contra
os direitos do papado, o envolvimento ilícito com o papa Sérgio III, o modo de vida imoral
e a «conjura» para dominar o mundo. Marózia foi ainda comparada com Jezabel, a arquivilã
da Bíblia, que também «ousou tomar um terceiro marido».
A crença de que a maldade humana podia ser causada pela possessão demoníaca era
comum na Alta Idade Média, de maneira que, só para prevenir a possibilidade de Marózia
estar endemoninhada, foi exorcizada. Pouco depois de absolvida dos seus pecados,
preparada para enfrentar o seu Criador, morreu. Um executor entrou na sua célula e
sufocou-a com uma almofada, «para o seu bem-estar», foi dito, «para o bem da Santa
Igreja e a paz do povo de Roma».


BENTO IX, TRÊS VEZES PAPA





Bento IX nasceu por volta de 1012 numa família favorecida pelo poder – político,
militar e pontifício. Dois dos seus tios precederam-no enquanto papas: Bento VIII e João
XIX, e o pai, Alberico III, conde de Tusculum, foi suficientemente poderoso para lhe
assegurar o trono de São Pedro quando ele tinha cerca de 20 anos. É quase
desnecessário dizer que Bento IX foi um dos papas mais jovens de sempre, mas também
ficou bem classificado entre os mais dissolutos. Acerca dele foi dito que se «regozijava na
imoralidade» e era «um demónio do Inferno disfarçado de sacerdote». Foi também
acusado de «múltiplos e vis adultérios e assassínios». Um papa posterior, Vítor III, acusou-
o de «violações, assassínios e outros actos indizíveis». A vida de Bento, continua o papa
Vítor, foi «tão vil, tão perversa, tão execrável, que arrepia pensar nela». A juntar a tudo
isto, Bento IX foi acusado de homossexualidade e bestialidade.
O que não se pode dizer é que tenha tido grande segurança no lugar de papa. Os
inimigos expulsaram-no de Roma em 1036 e de novo em 1045, altura em que vendeu o
lugar por 680 quilos de ouro ao padrinho, João Graciano, arcipreste de São João de
Latrão, que veio a tornar-se papa com o nome de Gregório VI. O pagamento deixou o
tesouro do Vaticano tão depauperado que durante algum tempo não houve dinheiro para
pagar as contas.
Depois de assim ter assegurado o seu saque, Bento iniciou uma vida de ociosidade e
lazer num dos seus castelos no campo. Tinha planos para casar, mas a senhora envolvida,
uma prima em segundo grau, rejeitou-o. Poucos meses depois Bento estava de regresso a
Roma, a tentar recuperar o trono. Falhou e foi expulso por nobres enfurecidos em 1046.
Depois de uma nova tentativa que enfrentou a mesma resistência, Bento foi expulso de
vez em 1048.
Em 1049, foi acusado de simonia, mas não apareceu no tribunal para responder às
acusações. O seu castigo foi a excomunhão. Depois disso mais ou menos desaparece dos
documentos. A data exacta da sua morte permanece obscura. É possível que tenha
ocorrido em 1056, quando preparava uma nova tentativa para recuperar o trono pontifício.
Também se tem proposto a data de 1065. Ter-se-ia então arrependido dos seus muitos
pecados, acabando possivelmente por morrer penitente na Abadia de Grottaferrata, nos
montes Albanos, a vinte quilómetros de Roma.
Apesar de tudo, o fim da pornocracia e do domínio das rameiras não foi o fim da
devassidão papal nem da exploração da Igreja no interesse das famílias influentes. O
papado teve de percorrer um longo caminho até deixar de poder ser considerado um mero
instrumento de poder e ascensão social, que apenas escondia interesses políticos ou
comerciais de reis ou de nobres. Na realidade, foram precisos mais mil anos, até ao século
XIX, para que o papado se tornasse a influência espiritual que sempre se pretendera que
fosse e para os vigários de Cristo descerem de posição na lista dos maiores vilões da
história.









Capítulo

II






















Cercados em Carcassonne, os hereges cátaros procuram resistir
às forças papais, sem grande sucesso. Seriam expulsos
da cidade apenas com a roupa que levavam no corpo.













O GENOCÍDIO DOS CÁTAROS




A tolerância, hoje considerada uma virtude, era quase uma obscenidade na Europa
medieval. Isto aplica-se em particular ao cristianismo, que se transformou numa via estreita
e bem delimitada de que era perigoso, e muitas vezes até fatal, os fiéis se afastarem.
Um dos papas do século XIII, Inocêncio III, chegou ao ponto de transformar em crime
tolerar a presença de hereges numa comunidade. Esta rigidez de pensamento não resultou
apenas do zelo e do dogmatismo da Igreja medieval. Era também uma defesa contra os
desafios que a cristandade enfrentava. Os inimigos da Igreja eram fortes, determinados e
perigosos. Os muçulmanos, por exemplo, estavam empenhados em levar o islão a todo o
mundo. O paganismo, nas suas muitas formas, monopolizara a fé na Europa, não só em
tempos antigos, e não parecia disposto a prescindir dessa supremacia de ânimo leve.
No interior da Igreja pensava-se que a única forma de vencer estes rivais era ameaçar
com acusações de heresia ou de diabolismo as suas crenças e práticas, ou na realidade
quaisquer dissensões que pudessem lançar a menor dúvida sobre a tradição. As punições
eram terríveis. O objectivo de queimar na fogueira aqueles que se desviavam era purificar o
mundo da sua presença; o da tortura era expulsar o demónio responsável pela possessão
e salvar assim a alma imortal do acusado.
Apesar dos perigos envolvidos, a cristandade continuou a ser confrontada de tempos
a tempos não só por outras religiões, mas também, talvez de forma mais insidiosa, pelas
ideias alternativas dos seus próprios fiéis. Um dos desafios mais ameaçadores veio dos
cátaros, uma seita religiosa que surgiu por volta de 1143 no Languedoc, hoje sudoeste de
França. As doutrinas dos cátaros alcançaram a Espanha, a Bélgica, a Itália e a Alemanha
ocidental e por volta do século XIII a seita já estava firmemente implantada em todos estes
lugares.
Os papas, em Roma, sempre consideraram os cátaros hereges e as suas crenças
perigosamente subversivas. Não admira que tenham ficado tão alarmados. Para começar,
a religião dos cátaros era «dualista», semelhante à de algumas seitas orientais, como o
zoroastrismo, que em tempos existiu na Pérsia, hoje Irão. Os cátaros acreditavam que o
mundo era mau e tinha sido criado por Satanás. Identificavam o Demo com o Deus do
Antigo Testamento, a pior das blasfémias aos olhos dos «verdadeiros» cristãos. Os seres
humanos, defendiam os cátaros, passavam por uma série de reencarnações antes de se
transformarem em espírito puro, que representava a presença do Deus do Amor, descrito
no Novo Testamento pelo Seu mensageiro, Jesus Cristo. Os cátaros opunham-se
totalmente à doutrina católica e consideravam a Igreja de Roma imoral e corrupta, tanto
política como espiritualmente.
Como é compreensível, na Igreja a ideia de trocar Deus por Satanás e de retirar a
Jesus Cristo o primeiro lugar do panteão foi considerada sacrílega. Os cátaros tinham de
ser suprimidos. Em 1147, o papa eleito dois anos antes, Eugênio III, um antigo monge
cisterciense, «simples e inocente», como o seu amigo São Bernardo de Claraval o
descreveu, fez da destruição dos cátaros a sua prioridade.
No entanto, revelou-se demasiado brando para a tarefa. Quando recorreu á simples
tentativa de persuasão para os converter ao catolicismo, percebeu que eles eram
fortemente obstinados e nem sequer lhes passou pela cabeça levar a ideia a sério.
Bernardo de Claraval, mandatado pelo papa Eugênio, conseguiu algumas conversões, mas
nem de longe as suficientes para se aproximar do objectivo de extinguir a seita cátara.
Porém, a certa altura, Raimundo V, conde de Toulouse, lembrou-se de outra maneira,
muito menos paciente, de lidar com este desvio religioso. Em 1177, o conde pediu ajuda ao
Capítulo Geral da Ordem de Cister para enfrentar os cátaros, que assegurava estarem
prestes a amotinar os seus domínios no Languedoc. Os cistercienses convenceram-se de
que tinham encontrado o homem de que precisavam – Henrique de Marcy. Inicialmente um
abade cisterciense, Henrique tinha ideias muito firmes sobre a melhor maneira de esmagar
os hereges e as heresias: a força das armas aplicada durante o tempo que fosse
necessário. Em 1178, os monges cistercienses enviaram-no para o Languedoc à frente de
uma enorme legação papal, que incluía um cardeal, um bispo e dois arcebispos.







DIFICULDADES LOCAIS


Henrique talvez, se tenha convencido de que encontrara uma solução simples e de
aplicação imediata, mas depressa percebeu que a sua tarefa era muito mais complexa do
que imaginara. Os cátaros eram tidos em grande conta no Languedoc e nem o povo nem
os nobres que o governavam ou os bispos residentes ficaram contentes com a
interferência de estranhos. Assim, o primeiro alvo de Henrique tornou--se o círculo de
apoio dos cátaros. No primeiro lugar da lista vinha Roger II de Trencavel, visconde de
Carcassonne, que prendera Guilherme, bispo de Albi, em 1175, por causa de uma disputa
relativa ao senhorio de Albi e, com ele, o domínio de toda a região.
Henrique apressou-se a acusar Roger de heresia e a excomungá-lo. Isto bastou para
persuadir o visconde a libertar o bispo de Albi, mas a questão não ficou por ali. Em 1179,
Roger desencadeou a fúria de Pons d’Arsac, arcebispo de Narbonne, que fizera parte da
legação de Henrique de Marcy, no ano anterior. O arcebispo acusou Roger de não mostrar
entusiasmo suficiente na luta contra a heresia e voltou a excomungá-lo.
Dois anos mais tarde, em 1181, Henrique de Marcy voltou ao Languedoc. Desta vez
ia preparado para atacar o castelo de Lavaur, embora não tenha precisado de combater
para alcançar o seu objectivo, porque a mulher de Roger II, Adelaide, rendeu--se sem
hesitar. Henrique recebeu o bónus de capturar dois perfeitos, os «padres» ascetas da fé
cátara, que faziam votos de pobreza, castidade e celibato.
No entanto, apesar do seu empenho, o êxito de Henrique foi limitado. Os cátaros
estavam a mostrar-se um osso duro de roer, indiferentes a qualquer esforço da Igreja para
os reconduzir ao redil. Em 1204, Inocêncio III, que fora eleito papa em 1198, tinha tal
receio deles que suspeitava que vários bispos de dioceses do Sul de França colaboravam
com a seita. Os bispos suspeitos foram substituídos por defensores da Igreja estabelecida
de maior confiança, incluindo o padre espanhol Domingos de Gusmão (o futuro São
Domingos). Domingos lançou uma campanha de conversão de grande rigor no Languedoc,
mas apesar do seu zelo indiscutível pouco conseguiu. As escassas conversões que
alcançou não foram um resultado muito impressionante para tanto esforço, que incluiu
vários debates muito renhidos entre cátaros e católicos em várias vilas e cidades. Mesmo
assim, os valores básicos dos cátaros mantiveram-se. Por fim, Domingos de Gusmão
percebeu porquê: apenas os católicos que se comparassem com os cátaros pela
santidade, pela humildade e pelo ascetismo conseguiriam mudar as suas ideias acerca da
fé.



A ORDEM DOS FRADES PREGADORES




Para responder a este desafio tremendo, em 1216 Domingos de Gusmão fundou a
Ordem dos Frades Pregadores, mais conhecida como Ordem Dominicana, dedicada a
pregar os Evangelhos e a salvar as almas dos cátaros e de outros hereges. O fundador
dizia aos monges que entravam na ordem:

O zelo tem de ser combatido com o zelo, a humildade com a
humildade, a falsa santidade com a verdadeira santidade e a
pregação de falsidades com a pregação da verdade.

Tal como os cátaros, pensava Domingos de Gusmão, os seus monges deviam ser
indiferentes a todos os benefícios materiais, viver na pobreza, com o mínimo possível,
andar descalços e viver de esmolas. Além disso, deviam manter o celibato e uma castidade
rigorosa. O futuro santo estava convencido de que este modo de vida, centrado na
humildade e no sacrifício, era a melhor maneira de convencer os cátaros a voltar à igreja
de Roma.
Porém, houve quem se tivesse antecipado a ele. Uma pessoa muito mais agressiva e
sedenta de sangue do que ele próprio já aplicara uma solução em que o pacífico Domingos
nunca teria pensado. Ao fim de dez anos de resistência decidida, em que a maior parte dos
cátaros manteve o desprezo pela Igreja Católica e a convicção de que a sua natureza era
profundamente maligna, o papa Inocêncio III por fim perdeu a paciência. Na primavera de
1207 enviou um legado, Pedro de Castelnau, arcediago de Maguelonne, para a Provença,
onde ordenou à nobreza que perseguisse activamente os cátaros, os judeus e quaisquer
outros hereges de que conseguissem lembrar-se.
Castelnau encontrou desde o início uma oposição determinada. O conde Raimundo
VI de Toulouse, filho de Raimundo V e o senhor mais poderoso do Langue- doc, estava
muito ligado aos cátaros e recusou-se a cooperar. Raimundo tinha aliados nobres, amigos
e familiares, que eram adeptos fervorosos das crenças dos cátaros e não escondiam o que
pensavam. Chegou mesmo a viajar com um perfeito cátaro entre o seu séquito. Quando
Castelnau soube da desobediência de Raimundo a uma ordem que vinha do próprio papa,
Inocêncio III, excomungou imediatamente o conde e pronunciou o tradicional anátema:
«Aquele que vos despojar será considerado virtuoso!», fulminou-o o arcediago, «aquele que
vos matar será abençoado!»
Raimundo não era um homem especialmente firme – era melhor a dissimular do que a
desafiar publicamente –, de maneira que, aparentemente assustado, recuou e
comprometeu-se a levar a cabo a perseguição, como lhe era exigido. Tudo indica que
Castelnau acreditou nele. Algumas semanas depois perdoou a Raimundo e devolveu-lhe os
seus direitos de cristão. Devia ter sido mais perspicaz: Raimundo VI era mentiroso por
natureza, disposto a faltar à palavra dada mal tivesse oportunidade para isso.
Dessa vez, contudo, optou por uma nova estratégia: não fez nada.
Foram precisas algumas semanas para esta falta de iniciativa se tornar notada, mas
quando isso aconteceu Pedro de Castelnau reagiu à perfídia de Raimundo com uma fúria
desmedida. O conde era acusado de tolerar a heresia no Languedoc, de roubar
propriedade da Igreja, de ofender bispos e abades e de apoiar os cátaros. No fim desta
tirada, Castelnau voltou a excomungar Raimundo. Este sugeriu conversações para saírem
do impasse, mas estas não levaram a nada e o conde recorreu aos insultos e às ameaças
em frente de várias testemunhas, que mais tarde contaram o que acontecera ao papa
Inocêncio, em Roma.



O ASSASSÍNIO DE PEDRO DE CASTELNAU




A 13 de Janeiro de 1208, o diálogo por fim foi interrompido e Pedro de Castelnau e o
seu séquito regressaram a Roma. Na manhã seguinte, os viajantes chegaram a Arles e
aproximaram-se do cais de embarque para fazer a travessia do Ródano. Castelnau nunca
chegou à outra margem. Antes que o seu séquito pudesse acorrer em seu auxílio, um
estranho cavaleiro aproximou-se sem que ninguém desse por ele e matou-o pelas costas
com uma espada.
Mais tarde correu que o assassino era um cavaleiro a soldo do conde de Toulouse.
Raimundo negou vigorosamente qualquer envolvimento e, em Junho de 1209, chegou a
oferecer-se para se sujeitar a uma flagelação pública como pena pelo sinistro crime.
Quando tudo terminou, o conde, ensanguentado e dorido, foi obrigado a prestar
homenagem ao túmulo de Castelnau, na altura já considerado uma espécie de mártir.
Mesmo assim, Raimundo continuava a ser o principal suspeito e caiu em desgraça de vez.
O assassínio de Castelnau nunca foi realmente desvendado. Contudo, o conde Raimundo
protestou demasiado tarde.
Algumas semanas depois do assassínio, o papa Inocêncio III perdeu a paciência para
a abordagem diplomática e lançou um apelo à cruzada. Foi a chamada cruzada albigense,
que tomou o nome da cidade de Albi, um reduto dos cátaros no Languedoc. Neste apelo
às armas, Raimundo de Toulouse pensou entrever uma forma de convencer o papa da
legitimidade das suas credenciais de católico. Com este fim, proclamou alto e bom som a
sua intenção de perseguir os hereges e de punir todos os que ajudassem ou encorajassem
os cátaros ou os seus sacerdotes. Tudo não passava de teatro; Raimundo estava longe de
se ter arrependido. O único objectivo da sua atitude era parecer fazer causa comum com
os milhares de cavaleiros que estavam a agrupar-se em Lyon, no sudeste de França, cada
um com o seu pequeno exército de infantaria, os seus archeiros, escudeiros e outros
servidores. O seu comandante, escolhido pessoalmente pelo papa, fora o superior de
Castelnau, o bispo Arnaud Amaury, o abade cisterciense de Citeaux. Implacável e vingativo
por natureza, Amaury era perfeito para a tarefa de que o papa o incumbira, que era
exterminar os cátaros de uma vez por todas. Decidiu fazê-lo pelos meios mais brutais ao
seu dispor.
Em conjunto com os routiers, os mercenários que formavam o grosso de quase todos
os exércitos feudais, os cruzados albigenses eram tão numerosos que ao avançarem para
sudoeste, em direcção ao Languedoc, as hostes estendiam-se por mais de seis
quilómetros. Haviam sido prometidas recompensas magníficas a todos os participantes – a
remissão plena dos pecados, o perdão das dívidas e ainda muito dinheiro em recompensas.










«ANTES AFOGAR-NOS»


O exército dos cruzados chegou ao seu primeiro destino, Béziers, uma cidade bem
fortificada junto ao rio Orb, no sudoeste de França, no fim de Julho de 1209. Os
habitantes mostraram-se desafiadores. Nem cátaros nem católicos tinham qualquer
intenção de ceder às exigências dos cruzados. Quando o bispo de Béziers apresentou aos
burgueses da cidade uma lista de 222 perfeitos que teriam de ser entregues
imediatamente, ameaçou que se as suas exigências não fossem satisfeitas seria montado
cerco à cidade no dia seguinte. Os burgueses não pareceram perturbados. Recusaram-se a
entregar cátaros, perfeitos ou quem quer que fosse, e, de acordo com um cronista, teriam
dito ao bispo: «Antes queríamos afogar-nos em água salgada.»
Depois de ouvir esta resposta, o bispo voltou a montar na sua mula e regressou ao
acampamento dos cruzados, a um dia de marcha da cidade. No dia seguinte, 22 de Julho,
deparou-se aos habitantes de Béziers uma visão assustadora. Os cruzados tinham
levantado o acampamento onde se encontravam e durante a noite tinham montado cerco à
cidade. Até onde a vista alcançava, tudo era tendas, cavalos, fogueiras, flâmulas e
pendões, além dos elegantes pavilhões dos senhores da cruzada e das suas máquinas de
guerra.
De súbito, um cruzado isolado surgiu na ponte que atravessava o rio Orb do lado sul
das muralhas de Béziers e pôs-se a insultar as pessoas que o espreitavam do alto das
muralhas. Um grupo de homens jovens, ansiosos por combater, pegou em lanças, chuços
e outras armas improvisadas que tinham à mão, abriu as portas da cidade e desceu a
colina até ao rio. Antes que pudesse fugir, o cruzado foi agarrado, atirado ao chão e
vigorosamente espancado. Por fim, foi atirado à água lamacenta do Orb.
Contudo, na ânsia de se apoderarem do cavaleiro, os jovens de Béziers cometeram o
pior erro possível e deixaram abertas as portas das muralhas. Era um convite irresistível
para os cruzados, que carregaram pela ponte e invadiram as ruas estreitas de Béziers.
Apanhados de surpresa, os defensores da cidade recuaram, talvez com a intenção de se
afastarem o suficiente dos atacantes para se reagruparem e voltarem a atacar. Contudo, já
não tiveram oportunidade de o fazer.
O exército de Amaury foi arrastado por aquilo a que os vikings da Escandinávia
chamavam berserker (loucura da batalha) e esventraram todos os que encontraram ao
alcance das suas espadas. Entraram numa igreja onde se fazia uma vigília e, entre gritos
de sofrimento e terror, abriram caminho a esfaquear e a matar todos os que viam, até que
não restou senão um amontoado de cadáveres nas naves laterais. A seguir dirigiram-se à
Igreja de Santa Maria Madalena e mataram todos os homens, mulheres e crianças –
cátaros e católicos – que se abrigavam no seu interior. Em poucos minutos morreram
cerca de mil pessoas nessa igreja. A cobrir a cena da matança restou apenas um manto
denso de silêncio. Cerca de setecentos anos mais tarde, em 1840, a igreja foi renovada e
os seus ossos foram descobertos debaixo do chão. Eram esqueletos de centenas de
pessoas, amontoados em desordem.
Acabou por não haver sobreviventes. Depois de terem matado todos os habitantes,
os cruzados de Amaury prepararam-se para saquear a cidade e pilhar as casas
desocupadas. Béziers era uma cidade rica, com muitos bens valiosos de todos os tipos. Os
cavaleiros franceses integrados no exército de Amaury estavam convencidos de que lhes
seria dada prioridade no saque, mas, para sua imensa fúria, os servos e os mercenários
chegaram antes deles. O cronista Guilherme de Tudela conta o que se passou a seguir:

Os servos tinham-se instalado nas casas que tinham capturado,
todas elas cheias de riquezas e tesouros, quando os senhores
franceses descobriram e ficaram loucos de raiva e os expulsaram
com paus como a cães.

Mas as coisas não ficaram por aqui e, antes que os cavaleiros conseguissem deitar a
mão a quaisquer riquezas, conta Guilherme de Tudela:

Aqueles miseráveis nojentos e malcheirosos puseram-se todos a
gritar: «Queimem tudo! Queimem tudo!» E ergueram tochas
imensas a arder e deitaram fogo à cidade como se se tratasse de
uma pira funerária.







A DESTRUIÇÃO DE BÉZIERS


As construções de Béziers eram quase todas de madeira. Arderam facilmente e as
chamas consumiram quarteirão após quarteirão. Em pouco tempo, tudo o que restou foi
um inferno de morte e destruição. Para sua raiva e horror, os cavaleiros franceses viram
os tesouros a que queriam deitar a mão arder ou então derreter-se perante os seus olhos.
Diz-se que a Catedral de Saint-Nazaire, construída uns oitenta anos antes, se «abriu a
meio, como uma romã», no meio do incêndio, antes de se desmoronar por completo. Os
que aí se tinham refugiado morreram queimados. Mais tarde a cidade acabou por ser
reconstruída, mas os estragos eram de tal ordem que foram precisos duzentos anos para
completar as obras.
O massacre que teve lugar na cidade de Béziers não foi espontâneo. Foi
meticulosamente preparado em 1208, ainda antes do início da cruzada albigense, quando
Arnaud Amaury, um advogado chamado Milo (que era o notário apostólico de São João de
Latrão) e ainda 12 cardeais se deslocaram a Roma para discutir com o papa como devia
desenrolar-se a cruzada. O plano que elaboraram entre todos era inspirado na estratégia
adoptada pelos cruzados na Terra Santa durante a primeira cruzada, que tivera lugar
pouco mais de cem anos antes, em 1096. Os planos do massacre de Béziers estão
explicados num manuscrito intitulado Canso d’Antioca, que se pensa ter sido escrito por um
cruzado, Gregório Bechada, por volta de 1106 a 1118. Descrevendo o exército do século
XI que era o modelo dos cruzados albigenses, Bechada escreve:

Os senhores de França e de Paris, leigos e clérigos, príncipes e
marqueses, concordam todos eles que em qualquer forte atacado
pelo exército, em qualquer guarnição que se recusasse a render-
se, todos deviam ser massacrados depois de a praça-forte ser
tomada pela força. Nesse momento deixariam de encontrar
qualquer resistência, de tal maneira os homens ficariam aterrados
com o que já acontecera.
Antes da matança, foi dada aos católicos a possibilidade de saírem da cidade e de
escaparem à punição que recairia sobre os cátaros. A maior parte recusou e decidiu
permanecer e partilhar o destino dos concidadãos que não podiam partir, fosse ele qual
fosse. Isto deixou os cruzados perante uma dificuldade. Como poderiam distinguir os
católicos dos cátaros? Diz-se que o bispo Amaury terá ordenado: «Matem-nos a todos!
Deus reconhecerá os Seus.» A sua ordem foi obedecida até à última gota de sangue.
Amaury ficou de tal maneira encantado com o seu bom dia de trabalho que escreveu ao
papa Inocêncio:

As nossas forças não pouparam classes nem sexos ou idades.
Cerca de vinte mil pessoas perderam a vida na ponta da espada. A
destruição do inimigo fez-se numa enorme escala. Toda a cidade
foi saqueada e incendiada. Foi deste modo que a vingança divina
mostrou a sua força.

A notícia das atrocidades de Béziers depressa se espalhou pelo Languedoc e pelo
resto de França. Os senhores e outros proprietários cujos domínios pudessem vir a ser
alvo da raiva de Amaury começaram a repensar as suas lealdades. Um após outro,
deslocaram-se ao acampamento onde os cruzados permaneceram três dias depois do
festim de Béziers, para prestar vassalagem a Amaury e garantir-lhe o seu apoio.
No entanto, um dos senhores mais poderosos da região, Raimundo Roger III de
Trencavel, visconde de Carcassonne, Béziers, Razès e Albi, escolheu uma abordagem
diferente. Raimundo Roger era filho do renegado Roger II de Carcassonne e sobrinho do
esquivo Raimundo VI, conde de Toulouse, mas era mais astuto do que qualquer deles.
Quando Raimundo VI sugeriu que se unissem para enfrentar Amaury e os seus cruzados,
Raimundo Roger, conhecedor da falta de carácter do tio, recusou a proposta. Não podia
correr o risco de, quando as coisas ficassem feias, Raimundo VI recorrer ao seu habitual
plano B, que era esquecer qualquer acordo prévio e submeter-se docilmente ao inimigo.
Se isso acontecesse, Raimundo Roger III tinha demasiado a perder. Para começar,
poderia ficar pessoalmente em risco e até ser obrigado a prescindir dos seus domínios
devido à sua atitude flexível e tolerante com a sociedade multicultural a que presidia.
Consorciar-se com hereges, a forma como os fanáticos da época descreveriam a sua
atitude tolerante, seria tão mau como ser de facto herege, senão pior.



A DIPLOMACIA FRACASSA


Embora Raimundo Roger não fosse cátaro, um grande número dos seus súbditos
pertencia à seita. No seu território também havia uma comunidade de judeus que há muito
administrava Béziers, a sua segunda cidade, a seguir a Carcassonne. Também em
Carcassonne havia uma comunidade judaica importante, que podia estar igualmente em
perigo. O exército de Amaury tê-los-ia sem dúvida matado, já que o massacre de Béziers
constituíra uma indicação horrenda do ponto a que os cruzados estavam dispostos a ir
para mostrar o seu zelo religioso. Por esta razão, Raimundo Roger tomou a precaução de
fazer os judeus saírem da cidade antes da chegada dos cruzados.
Já deslocar toda a comunidade de cátaros, muito maior do que a dos judeus, não era
tão fácil. Por causa deles, bem como por si mesmo, Raimundo Roger começou por
recorrer à diplomacia. Procurou chegar a um acordo com a promessa de perseguir os
cátaros e quaisquer outros hereges no seu território. Terá sido sincero? Seria realmente
sua intenção fazê-lo? Provavelmente não, mas é possível que tenha aprendido com o pai a
importância de dissimular para adiar acontecimentos desagradáveis. Seja como for, as
suas intenções nunca chegaram a ser postas à prova, visto que não houve acordo. Amaury
nem sequer concedeu a Raimundo uma audiência para discutir o assunto. É provável,
contudo, que o chefe dos cruzados tenha percebido que, se assegurasse a segurança de
Carcassonne e das outras cidades de Raimundo Roger, ficaria sem nada para entregar à
avidez de pilhagem dos cruzados.


OS PREPARATIVOS DA GUERRA


O cinismo da resposta de Amaury fez soar o alarme. Raimundo Roger apressou-se a
regressar a Carcassonne e iniciou os preparativos para a guerra. Pôs em prática uma
política de terra queimada, que impedisse os invasores de viverem dos produtos da terra,
como se fazia muito na Idade Média. Deu ordens de que as colheitas e as vinhas fossem
destruídas, os moinhos de vento e as quintas incendiados e o gado morto ou conduzido a
Carcassonne, onde poderia ser protegido pelas imensas muralhas da cidade. Feito isto, as
tropas de Raimundo começaram a organizar a defesa. As armas foram preparadas e a
vigilância montada. O exército de Amaury ficou à vista da cidade a 1 de Agosto, dez dias
depois do massacre de Béziers. Os atacantes depressa perceberam que conquistar a
cidade, com as suas poderosas muralhas e os seus defensores determinados, não seria
fácil. Não havia portas abertas nem pontos fracos. Na realidade, Amaury nem sequer
permitiu que as suas forças montassem o acampamento muito perto das muralhas, não
fossem ficar ao alcance dos temíveis archeiros de Carcassonne. Os cavaleiros montaram
por isso as suas tendas a uma certa distância. A mesma precaução tiveram os soldados,
que acenderam as suas fogueiras e escolheram para dormir lugares fora do alcance dos
archeiros e das armas que lhes estavam apontadas do alto das muralhas.
Os defensores de Carcassonne mostraram-se à altura, mas a verdade é que a
diferença em número de homens era demasiado grande. Em material bélico também
ficavam a perder, já que Amaury dispunha de várias máquinas de guerra próprias para
cercos e muito mais archeiros – a artilharia da Idade Média – do que Raimundo Roger
alguma vez poderia reunir contra ele. O dia seguinte ao da chegada dos cruzados, 2 de
Agosto, foi um domingo, dia em que o papa proibira que se fizesse guerra. As forças de
Amaury tiveram de esperar pela segunda-feira, mas mal rompeu a madrugada atacaram
com os aríetes, apoiaram as escadas às muralhas e os seus soldados, bem armados,
lançaram uma chuva de flechas para o interior da cidade, onde tanto podiam acertar nos
defensores como em qualquer habitante.


0 ATAQUE A CARCASSONNE


O lugar que os cruzados escolheram para atacar foi Bourg, um dos dois bairros da
cidade que ficavam fora das grandes muralhas, embora fortificados. Bourg era o que
estava menos bem protegido e defendido e depois de duas horas de duros combates os
cruzados conseguiram abrir caminho e dispersar soldados e habitantes. Enquanto estes
corriam para a cidade propriamente dita para se refugiarem por detrás das muralhas, os
archeiros ficaram para trás a atirar saraivada atrás de saraivada de flechas e azeite a ferver
sobre os atacantes, mas nada conseguiram. Uma massa de cruzados penetrou em Bourg,
mas dessa vez o seu objectivo mão era a chacina. O que queriam era apoderar-se dos
poços de água junto do rio Aude. Não tardaram a consegui-lo. Ficaram ainda com o
domínio da zona a norte das muralhas.
A perda dos poços foi um golpe rude para a defesa da cidade, mas o povo de
Carcassonne continuou a combater. A 7 de Agosto, quando os atacantes procuraram
apoderar-se de Castellar, o bairro a sul da cidade, foram recebidos com pedras, flechas e
outros projécteis, que os obrigaram a procurar protecção entre as árvores que havia nas
proximidades. Tornou-se claro para os cruzados que dessa vez teriam de recorrer aos
trabucos, às balistas e às catapultas – máquinas de guerra verdadeiramente formidáveis.
Com este equipamento, fizeram cair sobre a cidade uma saraivada de pedras, calhaus,
trapos em fogo e tudo o mais a que conseguiram deitar a mão para usar como projécteis.
Quem andasse a céu aberto sujeitava-se a ser ferido ou morto.


VINGAR BÉZIERS


As muralhas acabaram por ceder e os cruzados entraram como enxames através de
Castellar e a maior parte dos defensores da cidade morreu na luta feroz que se seguiu. Os
cavaleiros deixaram uma pequena guarnição em Castellar e retiraram-se para o
acampamento. A vingança parecia-lhes ao alcance das espadas. Mas entretanto chegaram
vários senhores cujas propriedades ficavam nas terras altas dos Pirenéus, em volta do rio
Ande, que apoiavam Raimundo Roger. Estes homens, ao contrários dos seus compatriotas
mais prudentes das planícies, eram daqueles que preferiam morrer a lutar do que render-se
ao inimigo e, com Raimundo Roger à cabeça, carregaram sobre a guarnição e chacinaram
até ao último homem. Béziers, talvez tenham pensado, fora vingada.
No entanto, esta acção relâmpago deve ter sido observada do campo inimigo e
subitamente uma imensa hoste de cavaleiros armados, muito mais numerosa do que a de
Raimundo Roger, carregou sobre eles. Os homens do visconde bateram rapidamente em
retirada para Carcassonne e as portas da cidade cerraram-se atrás deles. A cidade em si
continuava segura, mas no interior das suas muralhas um drama terrível prosseguia. A falta
de água que resultara da perda dos poços estava a causar a contaminação da pouca que
restava nas cisternas da cidade. No meio do calor terrível do mês de Agosto, jovens e
velhos morriam. A doença e as febres espalharam-se e uma nuvem de moscas começou a
cobrir os corpos dos mortos, que apodreciam nas ruas sem sepultura.


O FIM DE CARCASSONNE


A situação era insustentável. Em meados de Agosto, duas semanas depois de Amaury
ter montado cerco à cidade, chegou um emissário dos cruzados. A sua mensagem era
simples: rendição imediata ou um fim igual ao de Béziers. Raimundo Roger soube
reconhecer que o fim era chegado. Concordou parlamentar e, mediante um salvo-conduto,
cavalgou até ao campo inimigo para discutir com o conde de Nevers, Hervé de Donzy.
Nem a sua família nem os seus homens voltaram a ver Raimundo Roger, visconde de
Trencavel.
Nunca se soube o que aconteceu na privacidade da tenda de Hervé de Donzy. Nem
os cronistas da época, em geral ávidos de pormenores suculentos, revelam o que quer que
seja. Os únicos factos conhecidos são que, para seu imenso alívio e também espanto, os
habitantes de Carcassonne – cátaros, católicos e judeus, sem distinção – foram
autorizados a partir, embora tenham sido obrigados a deixar para trás todos os seus
pertences excepto a roupa que levavam vestida. Antes de partir passaram um a um através
de uma porta sob o olhar atento de guardas que procuravam qualquer sinal de que
estivessem a tentar levar consigo algum dos seus bens.
«Nem sequer o valor de um botão lhes foi permitido que levassem com eles», deixou
registado um cronista. Ou, nas palavras de um outro cronista, os habitantes de
Carcassonne «não levaram com eles nada a não ser os seus pecados». O modo preciso
como Raimundo Roger conseguiu obter a liberdade para o seu povo em Carcassonne
continua um mistério até hoje, embora já tenha sido sugerido que a verdadeira finalidade
do ataque à cidade não foi a destruição dos cátaros, mas a eliminação do perigoso
visconde, um homem que o espírito tolerante levava a preferir consorciar-se com hereges
a seguir a «verdadeira» fé de Cristo. Seja como for, assim que a cidade ficou deserta e os
seus habitantes, agora indigentes, partiram, Raimundo regressou acorrentado ao seu
próprio castelo, o castelo condal, e foi acorrentado à parede de uma masmorra. A 10 de
Novembro de 1209, treze semanas mais tarde, foi encontrado morto. Tinha 24 anos.
Raimundo Roger deixou um filho de cinco anos, Raimundo Roger IV, mas apesar das
suas muitas tentativas, os seus herdeiros nunca recuperaram o património familiar. Pelo
contrário, os domínios de Trencavel passaram para Simão de Monfort IV, pai do mais
famoso barão do mesmo nome, que se tornou o sexto conde de Leicester e foi um dos
promotores do poder parlamentar em Inglaterra, ainda no século XIII. A 15 de Agosto de
1209, o Monfort mais velho foi feito visconde de Béziers, Carcassonne e de todos os
outros domínios em tempos pertencentes à família Trencavel.


SIMÃO DE MONFORT IV


Mais tarde, Monfort, que sucedeu a Amaury como chefe militar da cruzada, atribuiu a
morte de Raimundo Roger à disenteria e acrescentou ainda uma vaga menção ao «castigo
divino» por ter protegido e apoiado os hereges cátaros. A ideia de um castigo directo de
Deus pelos pecados era sedutora para as mentes medievais, por mostrar o envolvimento
divino nos negócios humanos. Mesmo assim, muitos foram os que no Languedoc não
ficaram convencidos e desconfiaram de uma jogada mais sinistra. Nisso não estavam sós,
embora tenham passado seis anos até que alguém se atrevesse a mencionar essa suspeita
em público, no quarto Concílio de Latrão, em 1215. Tratou-se de uma ocasião importante,
já que foi o próprio papa, Inocêncio III, que o convocou. Inocêncio estava presente quando
Raimundo de Roquefeuil, um dos senhores que foram convocados, acusou directamente
Simão de Montfort de assassínio. Roquefeuil foi mais longe e envolveu o próprio papa.
Disse a Inocêncio III:

Depois de os cruzados terem matado o pai e deserdado o filho,
pensais vós, senhor, dar-lhe o seu feudo e manter a dignidade? E
se recusardes dar-lho, que Deus vos faça a graça de acrescentar o
peso dos seus pecados à vossa própria alma!

Poucos se atreveriam a lançar estas palavras desafiadoras a um papa, mas ao que
parece Inocêncio ter-se-á limitado a responder: «O assunto será tratado.» A acusação de
crime não era novidade para o papa Inocêncio, que já dissera a Arnaud Amaury em 1213
que Raimundo Roger fora «vilmente assassinado». Apesar disso, nada foi feito para
devolver os domínios a Raimundo Roger IV e à família Trencavel.
Depois da queda de Carcassonne, a 15 de Agosto de 1209, a cidade, silenciosa e
deserta, foi saqueada e despojada de todas as riquezas. Quando a sórdida tarefa ficou
completa, Amaury e os seus cruzados voltaram para casa, com verdadeiras fortunas em
ouro, prata, joias e outras riquezas de tal valor que o mais pobre entre eles ficou com o
suficiente para viver até ao fim dos seus dias. As poucas semanas que passaram no
Languedoc, pontuadas pela atrocidade e pela pilhagem e manchadas de sangue inocente,
são há muito consideradas um dos episódios mais sórdidos da história do papado e do
cristianismo. No entanto, apesar de terem atingido profundamente os cátaros, que foram
mortos aos milhares, e de terem criado uma vaga de refugiados que foi aumentar a
população de outras cidades do Languedoc, os cruzados não conseguiram destruí-los nem
enfraquecer a sua fé. Também não conseguiram converter cátaros ao catolicismo em
número suficiente para poderem vangloriar-se de um triunfo decisivo sobre a heresia.


O SAQUE, A TERRA E O PODER




Como é evidente, a tarefa de «purificar» a Igreja da heresia ainda não estava
completa, razão pela qual o papa repetia todos os anos o apelo à cruzada. Contudo, a
finalidade por trás dessas cruzadas começou a mudar depois de as notícias do «êxito» de
Béziers e de Carcassonne ter feito novos recrutas em toda a Europa. Não foi preciso
muito tempo para reunir mais alguns milhares de homens. Para um grande número desses
cruzados, o primeiro objectivo não era levar a cabo a missão de Deus e da Igreja, mas
satisfazer os verdadeiros anseios a que respondiam as guerras feudais: o saque e a
aquisição de domínios e poder.
O principal beneficiário deste novo espírito materialista foi Simão de Monfort IV, um
senhor relativamente modesto antes de ter recebido os domínios da família Trencavel no
Languedoc. Antes disso, Monfort tinha poucas terras em França. A sua herança mais
substancial era a sua metade – a outra pertencia à mãe – do condado de Leicester, em
Inglaterra. Porém, isto tornou-se meramente teórico quando, em 1207, João, rei de
Inglaterra, lhe confiscou o condado e as suas rendas. Nestas circunstâncias, Monfort, um
comandante corajoso mas cruel, conhecido por ser «traiçoeiro, duro e falso», teve de
procurar rendimentos por outros modos. O Languedoc ofereceu-lhe essa oportunidade e,
quando passou a chefiar o exército de cruzados, soube aproveitá-la.
Foi preciso algum tempo até Inocêncio III perceber que, mais do que a servir Deus,
Monfort e os seus cruzados estavam a servir-se a si mesmos e, antes de isso acontecer,
mais cidades foram atacadas e pilhadas, mais atrocidades foram cometidas, apesar de as
aparências de cruzada terem sido asseguradas pela matança de algumas centenas de
cátaros. Por fim, em 1213, Inocêncio pôs fim à cruzada contra os hereges do Languedoc.
Os soldados de Cristo, em sua opinião, tinham acções melhores a fazer, como expulsar os
mouros de Espanha ou reconquistar Jerusalém, perdida para os sarracenos em 1187.
A decisão do papa veio tarde de mais. Por volta de 1213, depois de quatro anos de
guerras e perseguições, a cruzada albigense parecia ter ganho vida própria, uma vida em
que a eliminação dos cátaros se misturava com as ambições territoriais de reis e senhores
feudais. No meio de tudo isto, um facto inegável: apesar de todos os prejuízos causados
até então pela cruzada, pela destruição de castelos e cidades, e apesar das muitas vidas
arruinadas, os cátaros, embora enfraquecidos, mantinham intacta a sua fé herética. Não
era o momento ideal para abandonar a empresa, foi dito a Inocêncio por um Amaury
sempre determinado. A luta, em que o bispo já tinha investido tanto tempo e esforço, tinha
de continuar. Inocêncio não teve alternativa e submeteu-se à lógica da situação. Rescindiu
a sua declaração apenas cinco meses depois de ter pronunciado o fim da cruzada
albigense.


O FIM DA CRUZADA


A queda dos cátaros não foi determinada apenas pela acção militar, como Arnaud
Amaury provavelmente queria, ou pela conversão generalizada, como o papa Ino- cêncio
provavelmente esperou. A guerra dos cátaros, como a cruzada albigense também foi
designada, arrastou-se por mais 16 anos e sobreviveu a alguns dos seus protagonistas. O
papa Inocêncio morreu em 1216. Simão de Monfort foi morto em 1218, por uma pedra
lançada por uma catapulta que lhe acertou na cabeça durante o cerco de Toulouse. Arnaud
Amaury morreu em 1225.
Quatro anos mais tarde, a cruzada albigense chegou ao fim, com a derrota de
Raimundo VII de Toulouse, filho de Raimundo VI, pelos franceses. Calcula-se que durante
os vinte anos que durou, cerca de um milhão de pessoas tenham sido mortas em
repetições do horror de Béziers e de Carcassonne. Com o Tratado de Paris assinado a 12
de Abril de 1229, Raimundo VII cedeu os seus castelos e os seus domínios, que por essa
época incluíam o Languedoc, ao rei francês, Luís IX. Pode considerar-se que se tratou de
um triunfo póstumo do avô de Luís, o hábil e traiçoeiro Filipe II, que entrou já tarde na
guerra (em 1215), mas 14 anos depois acabou por ser o grande triunfador, postumamente.
Com isto, os domínios de Raimundo ficaram muito reduzidos, com a cidade de Toulouse
como única possessão de monta.
Mas isto não é tudo. No dia da assinatura do tratado, Raimundo foi sujeito à maior
das humilhações. O início da cruzada, vinte anos antes, fora marcado pela punição pública
do pai de Raimundo, Raimundo VI. Em 1229, o seu fim foi marcado pelo mesmo castigo
aplicado ao filho. Raimundo VII foi flagelado com ramos de bétula na praça em frente da
Catedral de Notre-Dame, em Paris. Em seguida foi atirado para o calabouço. Contudo, o
mais importante foi a promessa que se viu obrigado a fazer, de usar o seu exército na
perseguição dos cátaros.


O REGRESSO DA INQUISIÇÃO


Por essa época, a perseguição aos cátaros e a outros hereges estava a entrar numa
nova fase, muito mais mortífera. Gregório IX, eleito papa em 1227, não se contentou com
apelar à cruzada e deixar o trabalho sujo aos militares. Teve uma ideia muito melhor e mais
arrepiante. Reinventou a Inquisição episcopal, um método introduzido em 1184 para lidar
com os hereges mas que nunca cumprira verdadeira mente os seus objectivos.
Os bispos encarregados de dirigir a Inquisição pareciam pouco inclinados a perseguir
hereges e ainda menos apreciadores dos terríveis castigos que eram responsáveis por
aplicar. Outros tinham um parentesco demasiado próximo com as famílias das suas
dioceses para lhes passar sequer pela cabeça perseguir os seus próprios parentes. Estes
problemas de facto travaram a Inquisição episcopal, já que, como explicou o papa
Inocêncio III em 1215:

Acontece muitas vezes os bispos, devido às suas múltiplas
preocupações, prazeres carnais e inclinações bélicas, e por outras
causas, a menor das quais não é a sua falta de preparação
espiritual e falta de zelo pastoral, não estarem habilitados a
proclamar a palavra de Deus e a governar o povo.

Em alguns lugares, seja como for, o povo era praticamente ingovernável. Muitas
vezes quando um suposto herege era denunciado a multidão tomava conta do assunto e
administrava imediatamente a sua justiça sumária.
A nova Inquisição papal, ou romana, introduzida pelo papa Gregório, tinha não só a
intenção de desencorajar esses abusos, mas também de proporcionar mais organização,
mais eficiência e uma maior dedicação ao negócio de arrebatar almas às garras da heresia,
e de punir – com severidade – quem quer que recusasse vergar-se. Na sua forma mais
retributiva, a Inquisição tornou-se, e manteve-se durante vários séculos, sinónimo de
tortura, terror e sofrimento inimaginável.
























Capítulo

III























Um inquisidor-geral condena à morte uma família acusada de heresia.
Bastava uma denúncia infundada de um vizinho para haver
um julgamento - e os «acusados» eram automaticamente culpados.














OS HORRORES DA INQUISIÇÃO


A Inquisição, introduzida pelo papa Gregório IX em 1231, tinha a finalidade de
combater todas as heresias, onde quer que elas ocorressem, na Europa católica, mas o
seu primeiro alvo foi a variante pouco ortodoxa do cristianismo praticada e pregada pelos
cátaros.
Na raiz do perigo que os cátaros representavam para a Igreja estabelecida estava o
seu vasto número, o apoio de muitos nobres de posição elevada, como Raimundo VI de
Toulouse e o seu filho Raimundo VII, a vastidão do território que dominavam, no sudoeste
de França e no nordeste de Espanha, e a capacidade de resistência e a facilidade com que
se recompuseram, com as suas crenças teimosamente intactas, ao longo dos vinte anos
que durou a cruzada albigense. No entanto, a sequela do Tratado de Paris, que pôs
oficialmente fim à cruzada em 1229, foi ainda mais feroz e durou muito mais. A luta contra a
heresia acabou por se sobrepor à maior parte dos conflitos medievais pela crueldade e
pelo terror usado para alcançar os seus fins.


MEDIDAS EXTREMAS


De acordo com a Igreja da Idade Média, as medidas extremas justificavam-se quando
a heresia sujeitava a cristandade a um perigo mortal. O que estava em causa eram as
próprias fundações da sociedade, já que o livre-pensador herege, que rejeitava a «Igreja
verdadeira» e escolhia as suas próprias crenças e práticas, era uma ameaça fundamental à
fé.
Ao longo dos 25 anos seguintes, os cercos às cidades e aos castelos e o massacre
dos seus habitantes continuaram, mas não como antes. Tudo se tornou infinitamente pior.
A intervenção do papa Gregório tornou a velha Inquisição muito mais atroz, já que os
novos inquisidores exploraram de facto os vastos poderes que ele lhes atribuiu. Mesmo a
descrição das suas funções, inquisitor hereticae pravitatis (inquisidor da depravação
herética), era aterradora, com tonalidades de loucura e uma certa associação à
superstição ligada a demónios, diabos e ao próprio mal.
Os dominicanos, os membros da Ordem dos Frades Pregadores, que viriam a ser os
principais inquisidores papais, eram monges de um tipo especial, preparados pelo seu
fundador espanhol, São Domingos de Gusmão, para serem uma espécie de reflexo do
ascetismo, da pobreza e da piedade dos perfeitos cátaros. Domingos de Gusmão, que viria
a ser canonizado em 1221, apenas 13 anos depois da sua morte, percebeu que o modo de
vida humilde e abnegado dos perfeitos era a verdadeira explicação do seu prestígio entre
os cátaros. Os dominicanos, decidiu, teriam de igualar os perfeitos em matéria de piedade
e espírito de sacrifício se quisessem salvar as almas cátaras e reconduzi-las a Roma.
Teriam de viver no mundo, e não dentro dos limites dos mosteiros, e, tal como os perfeitos
cátaros, teriam de comunicar directamente com os fiéis e evitar o luxo e a vida de prazeres
escolhida por demasiados homens da Igreja.
Infelizmente, São Domingos não teve atenção suficiente à tendência para o fanatismo
inerente aos modos de vida mais estritamente puritanos, nem ao sentimento de
superioridade moral que produzem, contrário à humildade que procurou ensinar aos seus
seguidores. Alem disso, os extremos sempre tenderam a produzir radicalistas, e muitos
fanáticos que hoje seriam considerados psicopatas foram atraídos para a Ordem dos
Frades Pregadores pela oportunidade que a Inquisição lhes oferecia de dar largas à
crueldade disfarçada de zelo apostólico. Não se sabe se o papa percebeu de que tipo de
gente se tratava. Seja como for, acolheu-os nas hostes dos inquisidores e enviou-os para
França e para outros lugares da Europa onde muitos dominicanos se tornaram tristemente
conhecidos pela conduta bárbara, mesmo para os padrões de comportamento brutais da
época. Não admira por isso que os dominicanos tenham acabado por se tornar conhecidos
em muitos sítios como os «frades negros».


GUERRA SEM QUARTEL




Os cátaros estavam plenamente conscientes de que quando os dominicanos
deitassem mãos à obra seriam vítimas de uma guerra sem quartel. Por isso, quando a
Inquisição se instalou no Languedoc, na primavera de 1233, milhares deles fugiram para
lugares mais seguros, como Caudiès-de-Fenouillèdes ou Montségur, ambos do lado
francês dos Pirenéus. Montségur era notável pela sua fortaleza, no alto de uma montanha
coberta de neve. Era fácil sentir segurança num desses refúgios, mas houve outros lugares
onde nem toda a gente conseguiu escapar à Inquisição.
Como não podia deixar de ser, Toulouse e outras cidades do Languedoc acabaram
por ser dominadas pelo medo e pela desconfiança. Ali qualquer um, cátaro ou não, podia
ser denunciado à Inquisição e sofrer castigos terríveis. Supunha-se que a fidelidade à
Igreja e aos seus ensinamentos era o principal móbil por trás da perseguição dos
inquisidores aos hereges. No entanto, havia outros motivos em acção. A piedade era
muitas vezes ultrapassada por uma série de razões pessoais, como a vingança, a
oportunidade de esmagar um rival ou simplesmente a possibilidade de satisfazer
motivações retorcidas de pessoas maldosas ou de misantropos.


O INQUISIDOR CHEGA À CIDADE




A Inquisição papal pouco se preocupava com motivos. Os inquisidores estavam
preparados para apanhar todas as vítimas que lhes eram denunciadas e também para
cerrar quaisquer saídas por onde elas pudessem escapar à sua «justiça». Primeiro o
inquisidor chegava à cidade, falava com o clero local e convocava todos os homens acima
dos 14 anos e todas as mulheres acima dos 12 para que declarassem a sua fidelidade à
ortodoxia católica. Nem vale a pena dizer que quem quer que se recusasse a fazê-lo era
logo classificado como pecador e muito provavelmente herege. O inquisidor dava-lhes uma
semana para pensarem, confessarem os seus pecados e para se denunciarem.
Findo esse período, os que continuassem a recusar-se a cooperar eram convocados
pela Inquisição e tinham de comparecer perante os seus temíveis torcionários.
Apresentavam-se conscientes de que ninguém estava a salvo, nem os moribundos, como
Madame Boursier, nem os doentes ou os loucos, cujos delírios eram considerados provas
dos seus crimes.
Madame Boursier, uma idosa cátara de Toulouse, jazia no leito de morte quando os
inquisidores chegaram a sua casa, que ficava perto da catedral, no dia 5 de Agosto de
1234. Estava prestes a ser vítima de um destino terrível.
Os cátaros de Toulouse tinham-se mantido discretos em relação às suas crenças, na
esperança de evitar perseguições, e até esse dia a velha senhora, moribunda e em delírio,
fora um desses credentes (ou crentes) secretos. Isto até ao dia em que foi denunciada aos
dominicanos por um criado. Um dos monges dominicanos, Guilherme Pelhisson, era um
inquisidor oficial, outro, Raimundo de Fauga, bispo de Toulouse, era um homem com uma
inclinação fora do vulgar para a crueldade. Quando os dois dominicanos entraram em casa
de Madame Boursier e subiram as escadas até ao quarto dela, os familiares ficaram
aterrados: há muito que se sabiam suspeitos de heresia e pensaram que tinham chegado
ao fim da linha. Pelo menos foi o caso de Madame Boursier.
Um dos seus familiares, na esperança de avisar a senhora de que tinha visitantes
perigosos, sussurrou-lhe ao ouvido que o «senhor bispo» tinha chegado. Contudo,
Madame Boursier estava demasiado delirante para o perceber. Imaginou que o perfeito
cátaro Guilhabert de Castres estava junto do seu leito. Raimundo de Fauga deixou-a
acreditar e até se fez passar pelo perfeito, além de a ter encorajado a revelar as suas
crenças: «O medo da morte não deve levar-vos a confessar nada a não ser aquilo em que
acreditais com firmeza com todo o vosso coração.» Para horror dos seus familiares, a
pobre senhora condenou-se a si mesma pela sua própria boca e o bispo, já certo de que
fizera mais uma vítima, revelou a sua verdadeira identidade e pronunciou uma sentença de
morte, a ser executada de imediato.
Numa cena poucas vezes igualada em malevolência mesmo nos anais da Inquisição, a
senhora indefesa foi amarrada à cama, descida pelas escadas e levada pela rua até um
campo fora dos limites da cidade. Ali já existia uma fogueira, em frente da qual se reunira
uma multidão de curiosos. Madame Boursier, ainda atada à cama, foi lançada às chamas.
Praticamente inconsciente, é possível que estivesse demasiado confusa para perceber o
que lhe estava a acontecer, ou para ter sabido que um dos seus criados se sentira tentado
a aceitar o pagamento que a Inquisição oferecia a quem quer que denunciasse um herege.
Enquanto o papa Inocêncio III escolhera a abordagem diplomática e enviara monges
cistercienses aos cátaros para discutir com eles as suas crenças na esperança de os
converter, Gregório IX tinha mais iniciativa. Preferia manipular a situação e explorar os
instintos humanos mais baixos para obter os resultados que pretendia. Como não podia
deixar de ser, onde Inocêncio falhara Gregório obteve resultados. Para os alcançar,
preferiu os dominicanos, adeptos de atemorizar as testemunhas e assim confundi-las até
ficarem num estado em que mal conseguiam pensar.



UM INTERROGATÓRIO INSISTENTE


Conhecia algum herege? Tinha visto algum, com que frequência, onde e quando?
Com quem se encontravam? Quem costumava visitá-los? Tinham visto alguém tratar um
cátaro de forma reverente ou tratava o próprio acusado algum membro da seita com
deferência? Sabia de alguma herança deixada a um herege e, em caso de saber, quem
tinha lavrado o testamento? Perante todos estes rodeios, pensados para fazer as pessoas
cair em armadilhas ou contradizer-se, a maior parte dos interrogados acabava por dizer
fosse o que fosse, o que lhes passasse pela cabeça, para escapar à bateria cerrada a que
eram sujeitos. Lealdade, amor, amizade, eram esquecidos quando as vítimas, pressentindo
o perigo, procuravam proteger-se a todo o custo. Os «acusados», como eram designados
nos manuais da Inquisição, não eram autorizados a saber se haviam sido eles próprios
acusados de heresia. Uma imaginação dominada pelo medo levava-os a divulgar listas de
nomes, proporcionando à Inquisição uma nova leva de suspeitos.
Nem os mortos estavam protegidos desta orgia de denúncias. Os acusados depressa
descobriram – ou pensaram que tinham descoberto – como contornar a necessidade dos
inquisidores de mais e mais achas para a sua fogueira. Quando lhes pediam que dessem
uma lista de nomes, quanto maior melhor, começaram a identificar homens e mulheres já
mortos, que podiam por isso escapar a qualquer punição que os inquisidores imaginassem.
Como se enganavam! Mal davam por isso os inquisidores apresentavam-se no cemitério
para desenterrar corpos. Por mais decompostos que já se encontrassem, eram
transportados num carro para um lugar de «execução» especial- mente escolhido.
Enquanto o carro ia passando pelas ruas, os padres que o acompanhavam iam
entoando: «Quem quer que faça o mesmo sofrerá o mesmo destino!»
Quando chegavam ao lugar designado, os cadáveres eram atados a postes. As
fogueiras eram acesas e os acusados eram simbolicamente queimados. A visão era
macabra, grotesca, mas não ficava por aqui, já que o resto da punição era aplicada como
se os «hereges» continuassem vivos. As suas casas eram demolidas e as famílias perdiam
todos os seus bens. Os familiares podiam ser presos ou então eram obrigados a usar
cruzes amarelas cosidas à roupa para mostrar que estavam indelevelmente manchados
pelos pecados do seu familiar «herético».


0 ATAQUE AOS INQUISIDORES




A queima dos «hereges» mortos e outros excessos dos inquisidores provocaram uma
aversão generalizada e por fim rebeliões sérias e até assassínios. Em 1235, dois anos
depois da chegada da Inquisição ao Languedoc, três inquisidores morreram no fundo de
um poço de trinta metros de profundidade para onde foram atirados. Um outro inquisidor,
Arnold Catalan, com uma esfera de acção centrada em Albi, foi atacado por uma multidão
enfurecida depois de ter condenado e queimado dois hereges e ter feito o mesmo a vários
cadáveres que mandou desenterrar.
Na sua História da Inquisição em Toulouse entre 1230 e 1238, Graham Pelhisson,
dominicano e inquisidor, descreve o que aconteceu em seguida:

O povo de Albi tinha pensado atirá-lo ao rio Tarn, mas, por
insistência de alguns entre eles, libertou-o, depois de espancado,
com a roupa feita em farrapos, o rosto ensanguentado [...]

Esta história não foi um incidente isolado. Pelhisson continuou:

Os principais homens da região, juntamente com os grandes
nobres, os burgueses e outros, protegiam e escondiam os
hereges. Espancavam, feriam e matavam aqueles que os
perseguiam [...] muitas coisas maldosas foram feitas na região à
Igreja e aos fiéis.

Outra das vítimas desta reacção contra a Inquisição foi Konrad de Marburgo. Em
1227, o ano em que foi eleito papa, Gregório IX incumbiu Konrad de exterminar a heresia
na Alemanha, seu país natal. Konrad já tinha reputação de sádico, mas enquanto reinado
de terror a sua passagem pela Alemanha ultrapassou tudo o que ele já «conseguira» e
acabou por levar ao seu assassínio, em 1233.


O ATERRADOR KONRAD DE MARBURGO




Antes de ter sido nomeado inquisidor papal, Konrad de Marburgo fora conselheiro e
confessor de Isabel, viúva do príncipe Luís IV da Turíngia, que morreu de peste em 1227.
Konrad não tardou a dominar a infeliz Isabel. Substituiu as suas damas de companhia
preferidas por duas harpias da sua escolha e punia as suas falhas esbofeteando-a ou
açoitando-a. Este regime excepcionalmente duro, combinado com o estilo de vida ascético
por que optou depois da morte do marido, acabou por matá-la com a idade de 24 anos.
Mais tarde foi canonizada como Santa Isabel e tornou-se para muitos um símbolo de
dominação da mulher.
Aquilo que Isabel sofreu às mãos do brutal Konrad foi apenas um prenúncio do que
viria a ser o seu comportamento mais tarde enquanto inquisidor do papa nas regiões
alemãs do Hesse e da Turíngia. Bastava correr o boato de que ele estava numa região
para lançar o pânico. Segundo algumas narrativas da época, o pânico transformava-se em
verdadeira histeria quando ele aparecia em pessoa, a cavalo, e atravessava uma cidade ou
aldeia acompanhado do seu assistente, um homem de semblante sombrio chamado Dorso,
e uma outra personagem, um tal João, que só tinha um olho e uma mão.
Este terror era justificado. Konrad via hereges por toda a parte e quando não os via
desconfiava que se escondiam dele em castelos, igrejas e até em mosteiros e conventos. A
culpa ou a prova de culpa não tinha grande importância, já que Konrad aceitava
praticamente qualquer indício de heresia a não ser que as pessoas conseguissem provar
que eram inocentes. Isto era mais fácil dizer do que fazer, já que Konrad tinha a soldo uma
verdadeira multidão com a incumbência de encontrar hereges, de lhes extrair confissões e
de os queimar na fogueira se se recusassem a retratar-se. A única possibilidade que as
vítimas tinham de evitar este destino era denunciar mais «hereges», não porque de facto
tivessem algum conhecimento do assunto, mas forjando deliberadamente provas. Centenas
ou talvez milhares de cátaros e de católicos, indiferentemente, foram acusados de heresia
para depois lhes ser dada a possibilidade de salvar a vida se denunciassem outras
pessoas. Quando recusavam, Konrad não era homem para perder tempo enquanto as
suas vítimas se decidiam. Muitos dos seus «hereges» foram queimados no próprio dia em
que foram acusados.
O inquisidor alemão não se limitava ao peixe miúdo. Os alvos da sua perseguição
eram muitas vezes sacerdotes, aristocratas ou outros notáveis com pecados ou falhas que
os qualificassem como candidatos à punição. Uma das suas vítimas foi o preboste de
Goslar, Heinrich Minnike, e outro foi Henrique II, conde de Sayn, condenado por participar
em «orgias satânicas». Minnike morreu na fogueira, mas o conde ripostou e a sua pena foi
revogada pelos bispos do Mainz, que se recusaram a confirmar o veredicto, como exigia
Konrad.
Como não podia deixar de ser, o inquisidor fez inimigos por toda a parte onde passou
e quando saía do Mainz para regressar a Marburgo o inevitável aconteceu. A 30 de Julho
de 1233, quando seguia viagem, vários cavaleiros fizeram uma espera a Konrad, que
mataram, bem como ao seu assistente, Dorso. Suspeitou-se, embora isso nunca tenha
sido provado, que os assassinos estavam a soldo de Henrique II.


A ASTÚCIA DO PAPA GREGÓRIO




O assassínio de um enviado do papa, fossem quais fossem as circunstâncias em que
ocorresse, era em geral motivo de grande escândalo, quase um insulto ao próprio
pontífice. A morte de Konrad de Marburgo, no entanto, levou Gregório IX a reagir com
astúcia. Não é possível que o papa ignorasse o comportamento bárbaro de Konrad, mas
mesmo assim escreveu aos arcebispos de Colónia e de Trier em termos que, de uma forma
subtil, transferia para eles a responsabilidade pelos actos do inquisidor.
«Surpreende-nos», disse Gregório aos dois arcebispos, «que tenhais autorizado que
procedimentos legais desta natureza sem precedentes tenham continuado entre vós sem
que nos tenhais posto a par do que sucedia. É nosso desejo», continua Gregório sem
pudor, «que este tipo de coisas deixe de ser tolerado e declaramos estes processos nulos
e sem efeito. Não podemos aceitar a infelicidade que descreveis.»





O CRIMINOSO ROBERT LE BOUGRE




Gregário teve de ser muito mais directo quando chegou o momento de lidar com
Robert le Bougre, também ele um dos seus inquisidores mais cruéis, que era, ao que
parece, um antigo cátaro que professara na ordem dominicana. O zelo dos conversos pode
ser terrível, uma ideia confirmada pelo comportamento de Robert na luta contra a heresia
na área que lhe foi destinada, a Borgonha. Aí, foi responsável por uma vaga de execuções,
em particular em Charité-sur-Loire, onde ordenou a execução na fogueira de cinquenta
hereges. Isto criou um conflito com os arcebispos de Reims e de Sens, que consideraram
as execuções uma intromissão nos seus direitos. Segundo defendiam, os hereges não
podiam ser condenados sem o seu acordo. Alguns bispos reclamavam o direito de
confirmar as sentenças enquanto outros queriam tribunais inquisitoriais próprios.
O papa Gregório, um mestre na arte da dissimulação, fingiu-se surpreendido com esta
reacção. Ao nomear Robert le Bougre, dizia, tudo o que pretendera fora libertar os bispos
do excesso de trabalho. O que fizera na realidade fora reduzir os seus poderes legítimos.
Gregório acabou por encontrar um meio-termo. Em 1234 suspendeu Robert le Bougre,
pouco mais de um ano depois de o ter nomeado. Porém, Robert não foi despedido. No fim
de um intervalo para que os ânimos se acalmassem, reapareceu com um novo título,
inquisidor-geral do reino de França, e conseguiu que os seus crimes anteriores parecessem
pequenas transgressões.
Ao longo de três anos, entre 1236 e 1239, Robert dirigiu a Inquisição em Châlons--en-
Champagne, Cambrai, Péronne, Douai e Lille, onde levou mais cinquenta vítimas à
fogueira. Regressou à província da Champagne em 1239, onde o cronista cisterciense
Albéric de Trois-Fontaines testemunhou a execução de 183 «hereges» na fogueira. Depois
disso não volta a ouvir-se falar de Robert le Bougre, tirando o rumor de que morreu no
cárcere, onde terá passado muitos anos.
Reinados de terror como os impostos por Konrad de Marburgo ou por Robert le
Bougre eram inevitáveis quando as armas concedidas pelo papa aos seus inquisidores
incluíam as que mais aterravam as mentes medievais. A excomunhão e o interdito, por
exemplo, representavam a exclusão da Igreja e dos seus sacramentos. Outras punições
mais terrenas, como a prisão, o despojamento dos bens, o exílio e mesmo a tortura,
também foram usadas para esmagar os fiéis sob o peso da Igreja e levá-los a cooperar
com a Inquisição. A recusa de o fazer era, como é óbvio, considerada equivalente à heresia
e incorria nas mesmas penas.
Dois dominicanos, Pierre Seila e Guillaume Arnaud, feitos inquisidores pelo papa em
1233, recorreram à quase totalidade dos poderes que o papa pusera à sua disposição no
Languedoc, o principal alvo da Inquisição. Um dos seus métodos era a rapidez, com a
prisão, o julgamento, a condenação e a aplicação da pena a seguirem-se em sucessão
rápida. Foi assim que o perfeito cátaro mais eminente de Toulouse, Vigoros de Baconia, foi
queimado na fogueira antes que os seus amigos e apoiantes tivessem tempo de montar a
sua defesa. Além disso foram muitos os corpos de supostos cátaros que os dois
mandaram desenterrar e queimar. Prenderam dezenas de pessoas, tanto cátaros como
católicos, e impuseram-se às autoridades de Toulouse pondo à sua disposição soldados
armados para participarem na tarefa de prender, julgar e executar os «hereges».
Por fim, passados mais de dois anos, o conde Raimundo VII de Toulouse fartou-se.
Raimundo fora forçado a aceitar a Inquisição e até certa altura colaborou, embora com
relutância, com Seila e Arnaud. As suas razões eram simples: não estava em condições de
aceitar outra guerra como a que quase o arruinara em 1229. No entanto, quando Seila e
Arnaud foram longe de mais, Raimundo denunciou-os ao papa.
Queixou-se de que os dois inquisidores eram «perniciosos» e pareciam «esforçar--se
por conduzir os homens ao erro mais do que à verdade». Raimundo tinha o apoio da rainha
Branca, mãe do rei francês, Luís IX, que disse ao papa Gregório que os seus inquisidores
tinham ultrapassado os limiares da decência.


UM INIMIGO FORMIDÁVEL


O conde e a rainha tiveram a sorte de apanhar o papa num momento difícil. Gregório
andava desavindo com Frederico II, rei da Alemanha e da Sicília e sacro imperador
romano, um soberano de orientação secular cuja finalidade na vida era aumentar a sua
influência em Itália à custa do poder do papado. Segundo Gregório, Frederico era «a besta
que emerge dos mares carregada de nomes blasfemos [...] a boca imensa a ofender o
Santo Nome [...] ameaçando com a sua lança o tabernáculo de Deus e dos Seus Santos no
Céu». Perante inimigo tão formidável, Gregório precisava de todos os aliados que
conseguisse aliciar. Estava até na disposição de arregimentar o herético Languedoc.
Frederico não escondia as suas ambições sobre a Provença, no sudeste de França,
pretexto que Raimundo aproveitou para oferecer auxílio ao papa. O seu preço, contudo,
foi que Seila, Arnaud e todo o aparelho da Inquisição fossem retirados de Toulouse e do
Languedoc.


A RETALIAÇÃO


O papa Gregório não chegou a esse ponto, mas tentou refrear os seus inquisidores e
pressionou-os para que se tornassem mais tolerantes. Chegou a deslocar--se ao
Languedoc, num esforço para conter a indignação causada pelo excesso de zelo dos seus
inquisidores. Encorajado por estas concessões, Raimundo preparou-se para tomar uma
posição mais dura com Seila e Arnaud. A ocasião pareceu ir ao seu encontro quando os
inquisidores deram ordem de prisão a vários dos seus cortesãos com simpatias cátaras.
Raimundo conseguiu libertá-los e pô-los fora do alcance da Inquisição. Deu ordem aos
soldados destacados para levarem a cabo a prisão de que em vez disso escoltassem esses
homens na sua saída de Toulouse e os deixassem em segurança no campo nas
proximidades da cidade. Seila e Arnaud ficaram furiosos e tentaram vingar-se denunciando
vários cônsules ao serviço da cidade. No entanto, não conseguiram ir longe, já que pouco
depois eles próprios foram expulsos de Toulouse sem cerimónias. Na altura, outros
dominicanos, juntamente com o arcebispo de Toulouse, foram atacados por uma multidão
em fúria que os correu à pedrada. Acabaram por se refugiar em Carcassonne. Aí chegados,
os dominicanos excomungaram os seus atacantes e lançaram um interdito sobre a cidade.
Em breve regressaram por ordem de Gregório. Contudo, o papa não podia ser
demasiado rigoroso com Raimundo porque precisava da sua colaboração na luta contra o
imperador Frederico. Por esta razão, o pontífice levantou o interdito sobre Toulouse e
arranjou um cão de guarda que mantivesse em respeito os dominicanos e moderasse a sua
tendência para a brutalidade.




PIOR DO QUE OS DOMINICANOS




Étienne de Saint-Thibéry era um monge franciscano, portanto de uma ordem
conhecida pela moderação e pela diplomacia no trato. Contudo, a sua escolha acabou por
se revelar desastrosa. Em vez de refrear os dominicanos, como esperava o papa Gregório,
o zelo de Étienne na perseguição aos cátaros e à heresia e o seu recurso aos meios mais
cruéis postos à sua disposição superou o dos dominicanos. Os interrogatórios impiedosos
recomeçaram e os mortos voltaram a ser desenterrados para serem queimados a par dos
vivos. Os suspeitos de «heresia» eram forçados a confessar e a denunciar outros
«hereges» para se salvarem.
A pressão dos inquisidores era tal que vergaram dois dos perfeitos cátaros mais
preeminentes de Toulouse, Raymond Gros e Guillaume de Soler, que traíram muitos
companheiros e deram informações acerca das suas famílias, dos seus amigos e das suas
actividades. Como é bom de adivinhar, Raymond Gros e Guillaume de Soler ficaram
marcados e a Inquisição teve de organizar uma protecção que os defendesse da fúria dos
cátaros e de outros que em tempos haviam confiado totalmente neles.


ENGANAR OS INQUISIDORES


Os dois traidores estavam suficientemente protegidos, pois qualquer dos seus
possíveis atacantes seria denunciado como cátaro ou herege. Em vez de os atacar
frontalmente, os cátaros tornaram-se dissimulados e deixaram de se mostrar como eram.
Alguns perfeitos trocaram as suas vestes por roupa comum, mais difícil de identificar. Os
perfeitos, que haviam sido vegetarianos, começaram a comer carne e até o faziam
deliberadamente em público, onde estivessem certos de ser observados.
Provavelmente a mudança mais radical nos seus hábitos foi a que respeitava à
separação entre homens e mulheres perfeitos, que tradicionalmente estavam
rigorosamente separados. A partir de certa altura começaram a andar aos pares, de
maneira que quem os visse, incluindo os dominicanos, partisse do princípio de que eram
casados. Mas a melhor defesa ainda era sair simplesmente das cidades, o que levou muitos
a acolher-se à protecção de Montsegur, embora sem negligenciar os seus seguidores.
Disfarçavam-se para entrar nas cidades, onde as suas visitas apenas eram conhecidas de
alguns. Mal concluíam o que aí tinham ido fazer partiam, rodeados do maior segredo.
A Inquisição sabia que algo de clandestino se passava no Languedoc, mas em geral
não conseguia identificar os infractores. Como é natural, os inquisidores eram
profundamente odiados. Para se protegerem, bem como aos seus servidores e escribas
em Albi e Carcassonne, tinham de andar com guardas armados cedidos pelos franceses.
De outro modo não teriam podido exercer as suas funções. De vez em quando eram
encarcerados e impedidos de entrar em algumas cidades, como Toulouse, mas havia
sempre as regiões circundantes para as suas actividades criminosas, para desencantar
hereges, interrogá-los e puni-los.


UMA NOVA REBELIÃO




Quanto mais o tempo passava mais o ódio crescia, até que, em 1240, surgiu uma
oportunidade a Raimundo Roger IV de Trencavel, filho do malogrado Raimundo Roger III,
morto misteriosamente em Carcassonne em 1209. Na altura com 35 anos, Raimundo
Roger IV vivia no exílio há trinta anos, mas não tinha perdido a esperança de recuperar a
sua herança. Reuniu um exército de exilados em Aragão, no nordeste de Espanha, e
atravessou os Pirenéus em direcção ao Languedoc. Começou com alguns pequenos êxitos
e libertou Eimoux, Alet e Montreal do domínio francês. No entanto, os verdadeiros
problemas surgiram quando Raimundo Roger montou cerco a Carcassonne, onde foi bem
recebido nos subúrbios de Bourg e Castellar. A partir daqui, em menos de cinco semanas,
lançou oito ataques à cidade de Carcassonne propriamente dita. Foi então que a sua série
de êxitos teve um fim abrupto.
Os franceses reagiram com rapidez e enviaram para o Languedoc um exército que
expulsou Raimundo Roger de Carcassonne e o empurrou para Montreal, nas proximidades,
onde o atacante foi ele próprio sitiado. A luta foi de tal forma renhida e mortífera que os
dois lados acabaram por negociar tréguas. Depois destes acontecimentos, Raimundo
Roger foi obrigado a regressar ao seu exílio em Aragão.
Se algum dia esperou ajuda do conde Raimundo VII de Toulouse, ficou desapontado.
Nessa altura o conde foi obrigado a pensar em si mesmo, já que não podia dar-se ao luxo
de ofender o papa Gregório IX. No entanto, por volta de 1242 as coisas já tinham mudado.
O papa Gregório morreu em 1241 e foi sucedido por Celestino IV, que morreu,
provavelmente de velhice, ao fim de um pontificado de apenas 17 dias. O sucessor de
Celestino, Inocêncio IV, envolveu-se numa luta de poder com o velho inimigo de Gregório,
o sacro imperador romano Frederico II. Inocêncio IV sentia-se tão pouco protegido em
Roma que acabou por fugir para Génova, onde permaneceu até à morte de Frederico, em
1250.
A confusão que tudo isto provocou em Roma proporcionou a Raimundo VII a
oportunidade por que esperava há 13 anos. Os seus nobres também ansiavam pela
possibilidade de atacar os detestados franceses e reclamar a restituição dos seus próprios
domínios. Além disso, Raimundo conseguira o apoio dos reis de Inglaterra e em Espanha
dos de Navarra, Castela e Aragão. Por fim, conseguiu dar um passo para libertar os seus
antigos territórios do poder dos franceses e para expulsar os dominicanos, a Inquisição e a
sua aura horrenda de morte e crueldade.
Os primeiros alvos da rebelião de Raimundo, iniciada a 28 de Maio de 1242, não
foram militares, foi a Inquisição. Embora ele próprio não tenha estado presente quando os
factos ocorreram, não há grandes dúvidas de que esteve por trás do assassínio dos
inquisidores e da destruição das suas supostas provas contra os hereges da região.


ASSASSÍNIO EM AVIGNONET


Na manhã de 28 de Maio de 1242, o franciscano Étienne de Saint-Thibéry juntamente
com o dominicano Guillaume Arnaud e oito escribas viajavam através dos campos entre
Toulouse e Carcassonne. Pelo caminho pararam em várias aldeias para ouvir confissões de
hereges acusados e incluir os seus nomes nos registos da Inquisição.
Não havia nisto nada de invulgar, uma vez que a Inquisição parecia estar por toda a
parte no Languedoc e a possibilidade de surgir em qualquer aldeia ou cidade a qualquer
momento para obter informações incriminadoras estava sempre presente. Tudo isto fazia
parte da sua estratégia de espalhar o terror por toda a província. Homens como Étienne
ou Guillaume Arnaud confiavam muitas vezes no poder da intimidação que exerciam por
todo o Languedoc, onde as pessoas tremiam à ideia de ser enviadas para as masmorras
de Carcassonne, para serem mantidas em pequenas células húmidas onde ficavam a
apodrecer, quando sobreviviam, com uma dieta de pão e água.
No entanto, o que não era vulgar nesta época era a falta de uma escolta de homens
armados que garantissem que Étienne, Guillaume e os seus escribas se deslocavam com
segurança entre duas localidades. Dessa vez chegaram ao fim do dia à cidade fortificada
de Avignonet, onde Raymond d’Alfaro (bailio de Raimundo VII e seu cunhado) os aguardava
no seu castelo, onde os recebeu. Tinham sido preparados alojamentos para os dois frades
no castelo, onde deviam jantar nessa noite e onde um dos homens de Alfaro, Guillaume-
Raymond Golairan, falou com eles.
Convencido de que Étienne e Guillaume não desconfiavam de nada, Golairan saiu do
castelo e dirigiu-se ao bosque de Antioche, na realidade pouco mais do que uma pequena
mata, onde se encontrou com Pierre-Roger de Mirepoix, um dos senhores de Montségur,
com o idoso Raymond de Pereille e com o seu grupo de cavaleiros fortemente armados.
Todos eles eram credentes cátaros, que em geral desempenhavam as funções de guardas
em Montségur. Pierre-Roger escolheu uma dezena de cavaleiros, talvez mais, e ao
anoitecer enviou-os a Avignonet, com as armas de guerra à cinta e uma escolta de mais
alguns homens a cavalo. Quando chegaram a Avignonet já era noite cerrada.
Enquanto os cavaleiros cátaros se escondiam num matadouro por detrás das
muralhas da cidade, Golairan regressou ao castelo e verificou que Étienne, Guillaume e os
escribas já se tinham retirado para os seus aposentos. Depois saiu, dirigiu-se às muralhas
da cidade e abriu as portas aos cavaleiros de Pierre-Roger. Em silêncio, os homens
percorreram as ruas de pedra até ao castelo, onde os aguardavam umas três dezenas de
habitantes de Avignonet, armados de bastões e cutelos. Juntos entraram no pátio do
castelo e dirigiram-se à torre de menagem. Subiram as escadas em silêncio e dirigiram-se à
pesada porta de carvalho que protegia os aposentos dos inquisidores. Não havia ninguém
de guarda. Um dos cavaleiros cátaros derrubou-a ruidosamente com um pesado golpe de
machado.







O ATAQUE SANGRENTO


Antes que qualquer dos homens que se encontravam do outro lado percebesse o que
lhes acontecia, dezenas de cavaleiros e habitantes da cidade tinham entrado nos seus
quartos e iniciado a chacina com a ajuda de machados, facas e cutelos. O ataque
continuou até não restarem quaisquer dúvidas de que os inquisidores e os seus homens
haviam morrido, todos eles. Na altura em que se fez silêncio o chão estava vermelho de
sangue. Os assassinos acenderam tochas e pegaram em tudo o que viram: candelabros,
dinheiro e aquilo que realmente procuravam, que era o registo de nomes feito pelos
inquisidores. As páginas foram arrancadas e queimadas uma a uma. Em pouco tempo, as
«provas» da Inquisição transformaram-se num monte de cinzas fumegantes.
Os assassinos saíram de Avignonet sem ser vistos e regressaram ao bosque de
Antioche, onde Pierre-Roger os aguardava. Esperava que lhe fosse entregue uma dádiva
muito particular, o crânio de Guillaume Arnaud, de que queria fazer uma taça de vinho.
Ficou desapontado quando lhe disseram que o crânio não tinha vindo, que fora deixado
para trás desfeito pela fúria dos cátaros, mas a informação teve o mérito de lhe dar uma
ideia clara do ponto a que a empresa fora bem sucedida.


FESTEJOS NO LANGUEDOC


A notícia dos assassínios de Avignonet percorreu o Languedoc como um rastilho.
Tanto católicos como cátaros festejaram este golpe na odiada Inquisição. Um frade
chegou a tocar o sino da sua igreja para celebrar o sucedido e os assassinos foram
recebidos como heróis em Montségur. Mas o ataque de Avignonet fora apenas o prelúdio
de uma série de ataques militares a castelos, a casas dos dominicanos e a palácios de
bispos. Todos eles pareceram alvos legítimos de vingança dos habitantes do Languedoc
contra os franceses e a Inquisição, que aqueles protegiam. Entretanto, por toda a
província, cidades e aldeias mobilizadas pelos acontecimentos de Avignonet ergueram-se e
vingaram-se das atrocidades, das humilhações e das crueldades que a Inquisição levara à
outrora pacífica e próspera região do Languedoc.
Contudo, triste e inevitavelmente, tanto a revolução como os festejos foram de curta
duração. Apesar dos nomes ilustres que apoiaram Raimundo VII – o rei Henrique III de
Inglaterra, Hugo de Lusignan, de cuja família haviam saído cruzados preeminentes, Roger
Bernard, conde de Foix –, todos eles cederam à força das armas francesas. O rei e
Lusignan foram esmagados em combate e o conde, apesar de filho e sobrinho de perfeitos
cátaros, passou-se para o inimigo e usou o seu exército para esmagar Raimundo VII numa
batalha que viria a ser definitiva. Os restantes aliados de Raimundo em Aragão, Castela e
Navarra leram nas entrelinhas e debandaram discretamente. Mais uma vez, em Janeiro de
1243, Raimundo e o rei Luís IX assinaram um tratado que fez regressar o estado das
coisas a 1229, a altura em que o Languedoc ficara sob domínio francês com o Tratado de
Paris.


A INACESSÍVEL MONTSÉGUR


Os assassinos de Avignonet nunca foram apanhados, mas Montségur, a fortaleza
onde a intriga fora concebida, continuou a ser o grande baluarte da resistência dos cátaros
no Languedoc. O clero católico e os inquisidores há muito que chamavam a Montségur a
«sinagoga de Satã» e em sua opinião os acontecimentos mais recentes mostravam que
estava à altura do epíteto. Montségur tinha de ser destruída porque não era apenas mais
uma fortaleza, mas um porto seguro para centenas de cátaros, tanto perfeitos como
simples credentes, que ali haviam procurado o refúgio que apenas as altas montanhas e as
escarpas dos Pirenéus podiam proporcionar-lhes.
Em 1242, cerca de quinhentos refugiados, tanto cátaros como católicos, viviam em
Montségur. Destes, cerca de duzentos eram perfeitos que haviam feito de cabanas e
grutas nas proximidades do castelo a sua residência. Cavaleiros, soldados e as suas
mulheres e amantes, bem como os seus filhos, muitos deles familiares dos perfeitos,
também se tinham mudado para o lugar para beneficiar da protecção que este oferecia.
Havia ainda um fluxo constante de peregrinos que visitavam em segredo o símbolo da fé e
da orientação espiritual cátara e depois regressavam a casa tão discretamente como
haviam partido.
Montségur serviu estes fins durante quase quarenta anos, a partir de 1204, altura em
que o senhor reinante, Raymond de Pereille, percebeu que um dia os cátaros teriam de
enfrentar a Igreja, que os considerara hereges. Para se preparar para esse dia, Pereille
reconstruiu o castelo que sobrelevava a aldeia de Montségur da sua altitude estonteante
de 914 metros, o suficiente para proporcionar uma panorâmica dos bosques e dos vales
que preenchiam a paisagem muitos quilómetros à volta do local. Ao longo dos anos,
Montségur ofereceu protecção a dezenas de perfeitos cátaros que fugiam da Inquisição.
Depois iam voltando, alguns várias vezes, sempre que as perseguições recomeçavam.
Porém, estas crises e os excessos cometidos pela Inquisição eram um prenúncio de algo
mais sério que o futuro ainda reservava, e que foi a «solução final» da questão cátara.
A iminência dessa solução tornou-se visível na primavera de 1243, quando quem
assomou às muralhas do castelo pôde ver a movimentação de tropas nas proximidades. Às
ordens de Hugo de Arcis, senescal do rei Luís IX, cavaleiros, soldados e equipamento
começaram a chegar vindos da Aquitânia, da Gasconha e de outras regiões de França. O
acampamento foi instalado do lado oriental de Montségur.
Um dignitário da Igreja, Pierre Amiel, bispo de Narbonne, montou a sua tenda cheia
de ornamentos elaborados em frente de Montségur. Em breve todo o acampamento
estava rodeado de flâmulas com a flor-de-lis, o símbolo de França, ou a cruz, para
sublinhar a finalidade sagrada do empreendimento.
Os milhares de homens acampados em frente das muralhas ofereciam uma visão
impressionante, embora ainda não se tratasse de um aviso de que estava iminente um
cerco. Para Hugo de Arcis poder sitiar a fortaleza precisaria de forças muito mais
consideráveis do que as que estavam à vista. Mas mesmo com muito mais homens nunca
conseguiria cercar completamente as muralhas. O perímetro de Montségur media mais de
três quilómetros e não era contínuo – havia ravinas e desfiladeiros que podiam oferecer
vias de fuga e que o interrompiam aqui e ali. Era impossível usar máquinas de guerra nas
escarpas dos Pirenéus onde se erguia o reduto dos cátaros.


A DEFESA DE MONTSÉGUR


No interior da fortaleza os problemas eram igualmente grandes, embora diferentes.
Os perfeitos cátaros eram pacifistas, opunham-se completamente à guerra.
Mesmo nesta situação extrema, não queriam lutar. Isto deixou Pierre Roger com
apenas 98 homens para defender o castelo. Até certo ponto, esta desvantagem era
compensada pela desprotecção total dos homens que escalavam as encostas contra os
projécteis dos que se encontravam no alto das muralhas. As forças dos franceses fizeram
várias tentativas de trepar pelos caminhos de cabras cobertos de silvas que conduziam a
Montségur, mas depressa eram repelidos pela saraivada de pedras, setas e outros
projécteis dos homens de Mirepoix. Contudo, os franceses tinham uma maneira de atingir
os defensores da fortaleza sem sequer sair de onde estavam. Quando lançavam setas
quase na vertical sobre Montségur estas acabavam por cair sobre os cátaros. Cerca de
uma dezena de homens foram abatidos desta maneira, e a morte de cada um deles
representava um golpe rude.
Mesmo assim, as frágeis forças de Pierre-Roger de Mirepoix conseguiram manter os
atacantes à distância durante oito meses, até ao Inverno, altura em que o tempo frio e a
falta de mantimentos começou a causar danos de ambos os lados das forças. Alguns dias
antes do Natal, quando a neve cobriu o acampamento dos franceses, Hugo de Arcis
aceitou que ao fim de todo aquele tempo as suas tropas estavam prestes a ficar
completamente desmoralizadas e poderiam começar a desertar. Teria de tomar uma
iniciativa mais drástica e dramática, embora envolvesse riscos consideráveis.


O ATAQUE A ROC DE LA TOUR




Arcis pediu voluntários. Os gascões ofereceram-se. Eram homens com experiência de
montanha numa região próxima dos Pirenéus. As ordens que receberam eram quase
suicidas. Teriam de capturar uma parte da fortificação conhecida como Roc de la Tour
(rochedo da torre), construída no topo de uma rocha na vertente mais inclinada de
Montségur. Quando caiu a noite, os gascões começaram a escalar a rocha às apalpadelas,
centímetro a centímetro, esforçando-se por não fazer rolar pedras que denunciassem a
sua presença aos guardas. Conseguiram chegar ao topo sem percalços. Apanharam o
inimigo completamente de surpresa. Os guardas cátaros, incapazes de responder com
prontidão suficiente, foram mortos no próprio instante pelos atacantes ou atirados do
penhasco.
A queda de Roc de la Tour foi um desastre para os sitiados, sobretudo porque
permitiu que os franceses montassem as suas máquinas de guerra num ponto elevado e
começassem a atacar a fortaleza directamente com projécteis pesados. O castelo foi
atingido por uma saraivada de pedras e os atacantes avançaram inexoravelmente,
arrastando atrás as suas máquinas de guerra. As pedras continuavam a cair e dezenas de
homens foram mortos ou feridos. O avanço francês era imparável. Começaram a circular
rumores: o conde Raimundo VII viria em socorro dos sitiados e o imperador Frederico II ia
mandar tropas para romper o cerco. Porém, todas estas esperanças deram em nada e a 2
de Março de 1244 Pierre-Roger de Mirepoix percebeu que teria de se render.


RETRATAÇÃO OU A FOGUEIRA



Se tivermos presente a maneira selvagem como em tempos medievais se lidava com
crimes e castigos, os termos da rendição impostos por Hugo de Arcis nem podem ser
considerados propriamente draconianos. Os assassínios de Avignonet e quaisquer outros
crimes cometidos no passado foram perdoados e foram concedidas aos habitantes de
Montségur duas semanas para considerar as suas opções: ou se sujeitavam aos
interrogatórios da Inquisição e se retratavam ou morriam na fogueira.
Os perfeitos cátaros de Montségur recusaram-se a pôr de parte as suas crenças e a
obter o perdão do arcebispo Amiel. Prepararam-se por isso para morrer. Distribuíram pelas
famílias e pelos amigos os seus poucos pertences, reconfortaram os mais próximos e
entregaram-se à oração.
Alguns credentes cátaros, que não estavam sujeitos à pena de morte, quiseram
juntar-se aos perfeitos e morreram com eles. No domingo de 13 de Março de 1244, vinte e
u m credentes, incluindo a mulher e a filha de Raymond de Pereille, pediram o
consolamentum, a versão cátara da extrema-unção católica, pela qual se comprometiam a
escolher uma vida casta e ascética. Cada uma dessas vidas viria a ser de três dias.
Nos prados abaixo de Montségur foi preparado um recinto onde se amontoou lenha
cortada nas florestas mais próximas. Foram montadas muitas estacas e reunidas cordas
para atar os cátaros, bem como tochas e escadas para subir às pilhas de madeiros.


AS FOGUEIRAS DE MONTSÉGUR



Na manhã de 16 de Março, muito cedo, uma procissão de 221 homens e mulheres
desceu pelo carreiro que ligava Montségur aos campos ao fundo da colina onde se erguia a
fortaleza. Os chefes cátaros iam descalços, apenas com as suas túnicas grosseiras sobre
o corpo. Quando chegaram ao recinto onde estavam amontoados os madeiros, subiram as
escadas e foram atados às estacas aos pares, costas contra costas. Uns atrás dos
outros, os homens e as mulheres condenados encheram o recinto.
Quando tudo ficou pronto, o arcebispo Amiel deu o sinal de que as tochas acesas
fossem atiradas. O murmúrio suave das preces era audível, abafado apenas pelos estalidos
da madeira a arder. As chamas subiram e os corpos atados às estacas transformaram-se
em tições, até que um fumo espesso e sufocante começou a encher os vales e a
conspurcar a erva, subindo em direcção ao céu.


A ÚLTIMA FORTALEZA CÁTARA




A queda de Montségur não pôs fim à cruzada contra os cátaros. Havia ainda outra
fortaleza, a última, em Quéribus, que foi sitiada e por fim capturada em Agosto de 1255.
No entanto, os cátaros não precisavam de Quéribus para perceber que a espinha dorsal da
sua fé já fora quebrada, em Montségur. Perdera todo o coração. Mesmo Raimundo VII,
que defendera os cátaros durante muito tempo, acabou por abandoná- -los e em 1249
ajudou a Inquisição a organizar mais autos-de-fé em Agen, a noroeste de Toulouse.
Raimundo morreu três meses mais tarde, em Setembro do mesmo ano.
Milhares de credentes, esgotados por anos de vida clandestina, de medo de serem
descobertos, viviam aterrados com a Inquisição e o seu poder de esmagar, condenar e
matar. Retrataram-se para se salvar e para confirmar a sua devoção recente à Igreja.
Quando o faziam traíam vizinhos, amigos e mesmo a família a uma Inquisição incapaz de
mostrar remorsos.
Alguns, poucos, perfeitos cátaros foram persuadidos a renunciar às suas crenças, a
tornar-se católicos e a entregar longas listas de simpatizantes cátaros. Estes acabaram
por também cair nas mãos da Inquisição, cujos poderes foram reforçados em 1252, altura
em que Inocêncio IV, eleito papa em 1243, lhe concedeu autorização para recorrer à
tortura para extorquir a verdade. No entanto, havia limites. Eufemisticamente designada
«interrogatório», a tortura, de acordo com as instruções do papa Inocêncio, não incluía a
amputação de membros, o derramamento de muito sangue ou a morte.


OS CÁTAROS PASSAM À HISTÓRIA




Apesar de tudo isto, os cátaros tardaram em desaparecer. Em vez de serem
esmagados de um dia para o outro, os crentes e as suas crenças foram desgastados por
inquisidores zelosos e muito treinados, apoiados numa verdadeira burocracia de
informadores, algozes, manuais de instrução, registos de suspeitos e, como é evidente, no
terror generalizado que a Inquisição inspirava. Milhares de cátaros sumiram-se nas
masmorras para não voltarem a ser vistos ou, nos casos em que o eram, pareciam
sombras do que haviam sido e estavam demasiado aterrados com a ideia de morrer na
fogueira para dizer o que lhes ia na mente. Por volta do fim do século XIII, poucas
pessoas, se é que algumas, estavam dispostas a pôr em causa a visão medieval do mundo
sancionada pelo papa e pela Igreja. Foi a dois irmãos excêntricos do Languedoc e a um
antigo assassino que coube tocar a rebate pelo fim dos cátaros. Quando tudo acabou a
seita passou por fim à história, o episódio durara 112 anos e vira os pontificados de 19
papas e milhares de mortes violentas às mãos da Igreja de Roma, dos seus cruzados,
inquisidores e esbirros.






OS IRMÃOS AUTIER


Os irmãos Pierre e Guillaume Autier andavam pelos 50 anos, tinham estudos e
algumas posses, mas não eram especialmente devotos. Pierre, que tinha um humor
sarcástico, dizia que o sinal da cruz era um gesto que servia para espantar as moscas.
Depois, em 1296, para surpresa de todos os que os conheciam, de um dia para o outro os
dois tornaram-se devotos e adoptaram uma nova forma de vida, nómada e ascética.
Passaram algum tempo em Itália, mas em 1300 surgem de novo no Languedoc, onde
nasceram. Ali, Pierre começou a pregar a fé cátara. Foi muito bem sucedido. Antes de a
Inquisição o apanhar conseguiu converter cerca de mil famílias. No entanto, em 1305, foi
denunciado e o seu irmão Guillaume foi preso e queimado na fogueira com todos, excepto
um, os perfeitos criados pelo irmão.
O único que escapou chamava-se Sans Mercadier e preferiu suicidar-se a sujeitar--se
a arder na fogueira. Pierre Autier continuou a monte mais quatro anos, mas acabou por ser
apanhado e em Abril de 1310 foi queimado em público à frente da Catedral de Santo
Estêvão, em Toulouse.


O ÚLTIMO DOS CÁTAROS: GUILLAUME BÉLIBASTE




O assassino regenerado convertido pelos cátaros que fechou o livro da heresia
medieval foi Guillaume Bélibaste.
Começou a ganhar a vida como pastor nos planaltos próximos de Corbière, perto do
rio Ande, no Languedoc. Em 1306, Bélibaste matou outro pastor numa disputa e tornou-se
um foragido. Durante as suas andanças, cruzou-se com Philippe d’Alayrac, um dos
perfeitos cátaros convertidos por Pierre Autier que andavam escondidos da Inquisição.
Juntos, o perfeito e o pastor atravessaram os Pirenéus e fugiram para a Catalunha, no
nordeste de Espanha. Antes de ser apanhado pela Inquisição e queimado na fogueira,
Alayrac iniciou Bélibaste na fé cátara. Foi assim que Bélibaste se convenceu não só de que
o mundo era um lugar vil, mas também de que era governado por quatro demónios: Filipe
IV de França, Jacques Fournier, bispo de Palmiers, o papa Bonifácio VIII e Bernard Gui,
um inquisidor impiedoso que exercia a sua actividade em Carcassonne.
Bélibaste não tardou a juntar-se a uma comunidade de credentes que, como ele,
haviam procurado protecção em Espanha. Durante quase cinco anos, este grupo de
cátaros foi deixado em sossego, ou pelo menos assim parecia. O que os seus membros
não sabiam era que em 1317 tinham admitido nas suas hostes um tal Arnaud Sicre, um
agente secreto a soldo do bispo Jacques Fournier. Sicre não denunciou logo Bélibaste à
Inquisição. A sua oportunidade surgiu na primavera de 1321, quando, juntamente com
outros, o acompanhou a França, onde este ia visitar uma tia idosa, Alazais, que financiara
generosamente a pequena comunidade cátara do sobrinho. Dois dias depois do início da
viagem, um grupo de vários homens armados, avisados por Sicre, rebentaram a porta da
casa de Tirvia, do lado espanhol dos Pirenéus, onde Bélibaste e os companheiros estavam
alojados. Foram todos presos. Guillaume Bélibaste completou a sua viagem através das
montanhas acorrentado. Foi julgado por heresia, embora o veredicto nunca tivesse estado
em dúvida. No Outono de 1321 foi conduzido ao átrio do castelo de Villerouge-Termenès,
em Corbières, onde o aguardava uma pilha de lenha com um poste no topo. Uma tocha
acesa foi lançada aos seus pés, as chamas subiram e em poucos minutos o último dos
perfeitos cátaros desapareceu da face da Terra.























Capítulo

IV


As confissões de bruxaria ou de pactos com o Diabo
eram obtidas, as mais das vezes, através de torturas.
(Corbis/ VMI)












PAPAS E BRUXAS



A crença em bruxas e feiticeiros, feitiços, feitiçaria e maldições recua, pelo menos, a
tempos bíblicos. Estas crenças eram uma tentativa de explicar os mistérios e os perigos
que a vida na Terra envolvia. Antes de perceberem o que estava realmente por trás dos
terramotos, das inundações, das trovoadas, das colheitas perdidas, das epidemias e de
outros desastres, os homens acusaram os maus espíritos e as maldições.

Os feitiços já causavam problemas na antiga Babilónia, pelo menos em 1760 a.C.,
altura em que, de acordo com o Código de Hamurabi, podiam merecer uma condenação à
morte. O Deuteronómio, do Antigo Testamento, refere-se à bruxaria como «abominação».
Já o Êxodo manda: «Não deixarás viver a feiticeira.» Segundo Samuel, no fim do século XI
a.C., o rei Saul «expulsou todos os que tinham espíritos e os feiticeiros». As mulheres, em
particular as mais velhas, há muito que são associadas à bruxaria. Mil anos depois de Saul,
no século I, em Ashkelon, na Palestina, uma província do Império Romano, oitenta foram
condenadas à morte.
Nessa época, a feitiçaria e outras «artes negras» eram consideradas pecados ou
crimes que perturbavam a lei e a ordem, espalhavam o medo e a agitação e suscitavam a
cólera de Deus. No entanto, no início da Idade Média, quando a Igreja e os papas se
meteram ao barulho, a sua ideia do assunto era diferente. O cristianismo considerava a
bruxaria uma heresia, juntamente com muitas outras crenças contrárias ao que pregava a
Igreja.


AS VÍTIMAS ILUDIDAS PELO MAL




A prática mais recuada em relação aos que se deixavam enredar nas teias do Diabo
era tratá-los como vítimas do mal, e não como criminosos. Em vez de os acusar, as
autoridades da Igreja recomendavam que fossem instruídos quanto à natureza tresloucada
e falaciosa da feitiçaria. Contudo, para sublinhar a sua posição firme contra o Maligno, as
autoridades da Igreja obedeceram à sentença de Santo Agostinho, bispo de Hipona, na
actual Argélia. Por volta de 400 d.C., Santo Agostinho declarara que quem quer que
acreditasse em feitiçaria era de facto herege. Em 785, esta crença foi especificamente
condenada no Concílio de Paderborn, no oeste da Alemanha. Nesse concílio foi declarado
que os feiticeiros deviam ser reduzidos à condição de servos ou escravos e postos ao
serviço da Igreja. A bruxaria e a magia eram por si mesmas perversas e o seu estudo fazia
perigar as almas.
Combater a magia, a feitiçaria ou a bruxaria não era uma questão meramente
espiritual, com a finalidade de fazer regressar todos os que se diziam cristãos ao redil de
um sistema de crenças universal. Por trás desta batalha estava um objectivo político da
Igreja, que queria expulsar o paganismo da Europa. A feitiçaria pagã e a superstição que
alimentava eram obstáculos à ambição da Igreja de estabelecer um monopólio da fé no
continente. Com esse objectivo, esta manteve uma guerra prolongada contra os pagãos,
que consumiu muitos recursos e que apenas teve fim em 1386, quando o rei Ladislau III da
Lituânia, o último dos estados pagãos, se converteu ao cristianismo, numa dádiva de
casamento à sua noiva-criança, a rainha Jadwiga da Polónia.
No entanto, uma coisa era espalhar o cristianismo entre os que se sentiam
intelectualmente atraídos por ele ou viam algum benefício na conversão (no caso de
Ladislau, um casamento vantajoso) e outra era convencer pessoas com menos cultura e
menos calculistas, dominadas por superstições e práticas com origem no paganismo.


AS CRENÇAS PAGÃS


A tenacidade das crenças pagãs foi notável e alimentou a ideia de que as bruxas
tinham o poder de assumir diferentes formas e de lançar maldições terríveis contra quem
quer que recusasse entregar-lhes a alma. Era natural que pessoas com pouca cultura
concluíssem de experiências de todos os dias, como a morte de uma criança, uma praga
de gafanhotos ou uma má colheita, que estavam nas mãos de poderes ocultos e maléficos.
As provas, pensavam muitos, estavam à sua volta, por todo o lado. Na maior parte
das aldeias medievais havia alguém estranho, mulheres velhas e feias, pessoas
desfiguradas por doenças ou quem tivesse nascido com o que hoje sabemos serem
doenças congénitas, e estas pessoas estavam sempre na primeira linha quando era preciso
atribuir as culpas de alguma coisa que corresse mal. O hábito parece ter-se tornado
comum na Suíça e na Croácia do século XIII, onde os relatos de casos de bruxas e de
bruxaria tomaram proporções quase epidémicas depois de o papa Gregório IX ter criado a
primeira Inquisição, a papal, em 1231.


0 PAPA GREGÓRIO E A PRIMEIRA INQUISIÇÃO




Gregório era o que hoje chamaríamos um homem da linha dura, de tal maneira
determinado a esmagar a heresia em todas as suas formas que foi além do que já de si
eram os limites bastante latos do seu tempo. Encarregou inquisidores zelosos, muitas
vezes até fanáticos, de reunir provas de feitiçaria, bruxaria e actividades semelhantes.
Tanto quanto se sabe, nunca pôs em causa as suas descobertas, embora alguns dos seus
agentes tivessem personalidades claramente sádicas. Um destes homens, um protegido de
Gregório, foi o famoso Konrad de Marburgo, o perseguidor dos cátaros, cujos excessos
acabaram por levar ao seu assassínio, em 1233. Seis anos antes, Konrad fora
encarregado por Gregório de extirpar a heresia da Alemanha, com ordens específicas para
perseguir os satanistas, que, dizia-se, adoravam abertamente o Diabo e seduziam os
cristãos com as suas crenças odiosas. Konrad não tardou a seguir as suas instruções com
a diligência habitual. Descobriu, assegurou, um grande número de covis de «adoradores do
Demónio», entre os quais causou uma enorme mortandade. Uma posição importante ou
uma origem privilegiada não asseguravam protecção a ninguém. Em Estrasburgo foram
condenadas à fogueira como hereges oitenta pessoas, entre homens, mulheres e crianças,
incluindo bispos. Nobres, plebeus, padres – todos os que fossem objecto de suspeita –
eram considerados culpados, a não ser que pudessem provar a sua inocência.





OS HORRORES DA TORTURA


No meio da atmosfera de terror e sofrimento, no meio dos gritos de dor e do cheiro a
carne humana queimada nos campos onde os acusados eram executados, a ânsia de
confessar – ou de fazer o que quer que pusesse fim à tortura – tornou a prova da
inocência quase impossível. Muitas vítimas pareciam enlouquecer quando eram sujeitas
aos instrumentos de tortura, entre os quais se incluíam alguns dos mais terríveis alguma
vez inventados, como os esmagadores de cabeça e de membros, a estrangulação lenta,
ou as garras de gato, que dilaceravam a carne. Todas elas causavam uma dor inimaginável.
Um dos instrumentos de tortura mais diabólicos e mais usados foi o strappado, ou
pêndulo, descrito por Filipe Limboch na sua História da Inquisição, publicada em 1692:

As mãos do prisioneiro eram atadas atrás das costas e aos seus
pés eram atados pesos e depois ele era levantado até a sua
cabeça tocar na roldana. Era mantido nesta posição durante algum
tempo, de maneira que todas as suas articulações e todos os seus
membros ficassem horrivelmente distendidos [...] Depois, de
repente, era largado de um só golpe, soltando a corda, mas sem
deixar que chegasse a tocar com os pés no chão, o que fazia que
todos os seus membros ficassem deslocados.

O pêndulo e outros instrumentos de tortura eram muitas vezes abençoados pelos
padres, em reconhecimento do carácter «sagrado» do trabalho de desmascarar a heresia.
Os delírios das suas vítimas eram considerados verdadeiras confissões de pecados
reais. No entanto, muitas vezes não só não tinham sido cometidos mas nem sequer tinham
sido imaginados. Mesmo assim, a confissão nem sempre os salvava. Muitos inocentes,
depois de terem «limpado» as suas consciências e possivelmente denunciado outros
«hereges», acabaram por morrer na fogueira.


UM PAPA CRÉDULO


O papa Gregório foi cúmplice de tudo isto. Tinha confiança total em Konrad de
Marburgo e nos seus outros inquisidores e aceitou sem questionar quase tudo o que ele
lhe disse. Nisso incluía-se a informação de que Satã aparecia com regularidade nos sabats
das bruxas, onde se transformava num sapo, numa sombra pálida ou num gato preto. Os
gatos pretos tornaram-se um dos alvos da perseguição de Gregório. Na bula Vox in Rama,
de 1233, condena os gatos pretos como encarnações do Demo, devido à sua capacidade
sinistra de «desaparecer» na escuridão e ao papel que supostamente desempenhavam
como «familiares» das bruxas. Os gatos eram muitas vezes metidos em cestos e
queimados na fogueira com os donos, igualmente desafortunados. Ser dono de um gato
preto podia ser considerado «prova» de um laço com Satã. Milhares de animais foram
queimados vivos na fogueira numa tentativa de extinguir a presença do Demo da face da
Terra.


A TORTURA TORNA-SE OFICIAL




O papa Gregório IX morreu em 1241 e Inocêncio IV, eleito dois anos mais tarde,
continuou a sua campanha contra a heresia. Em 1252, Inocêncio IV fez da tortura uma
prática oficial da Igreja, que veio a produzir algumas confissões verdadeiramente
extravagantes. Houve mulheres idosas, cuja fealdade e cujos defeitos físicos criaram uma
imagem das bruxas que continua a prevalecer hoje, que confessaram ter-se relacionado
sexualmente com o Diabo, de quem haviam tido filhos invisíveis. A invisibilidade da prole
não impediu que fossem queimadas na fogueira, nem que deixassem um legado
assustador. Num clima febril de caça às bruxas, o facto de nunca ninguém ter posto os
olhos em cima dos seus descendentes não criou quaisquer dúvidas quanto à sua
existência; apenas as tornou mais sinistras.
Contudo, a certa altura a bruxaria deixou de dizer respeito apenas a mulheres velhas
e perturbadas. Os maridos começaram a suspeitar que as mulheres eram bruxas
disfarçadas, o que significava que os seus filhos eram na verdade rebentos de Satã.
Amigos, familiares, vizinhos, até pessoas que caminhavam descansadamente pelas ruas,
eram questionados pela excentricidade ou pelo seu comportamento «fora do normal».
Pensava-se que as bruxas estavam em toda a parte e ninguém conhecia a sua identidade
ou o que elas faziam. Numa atmosfera de histeria, o mau-olhado da tradição folclórica
parecia renascer, pronto a espalhar a destruição, e que o Anticristo estava prestes a
triunfar e a condenar toda a humanidade ao fogo do Inferno.


O JULGAMENTO DOS TEMPLÁRIOS




Houve uma série de julgamentos públicos de grande notoriedade que materializou
esta percepção horrenda da bruxaria e da heresia. Aconteceu em 1307, quando Clemente
V, eleito papa dois anos antes, concordou investigar heresias e práticas sexuais e
religiosas abomináveis de que eram supostamente responsáveis os Cavaleiros Templários.
Os Templários eram uma ordem militar fundada em 1118, depois da primeira cruzada contra
os sarracenos, com uma folha de serviços à cristandade e aos cruzados na Terra Santa
que estava entre as mais distintas.


A ORDEM DOS CAVALEIROS TEMPLÁRIOS




Os Templários foram a primeira, e acabaram por ser a mais rica e influente, das
ordens militares e religiosas criadas para lidar com a nova situação que surgiu na Terra
Santa com o êxito dos exércitos cristãos e da primeira cruzada, de 1095-1099. As forças
muçulmanas foram decisivamente derrotadas e foram criados reinos cruzados em Trípoli,
Antioquia, Edessa e no mais prestigiado de todos os lugares, Jerusalém. Os territórios
recentemente adquiridos tinham de ser administrados e defendidos. Com esta finalidade
foram criadas várias ordens religiosas de cavalaria pouco tempo depois da conclusão da
cruzada. Além dos Cavaleiros Templários, havia os Cavaleiros Hospita- lários, que
prestavam serviços médicos, e os Cavaleiros do Santo Sepulcro, com a tarefa de defender
Jerusalém, o mais importante dos lugares de culto do cristianismo.
Tal como os Hospitalários, os Templários eram sobretudo cavaleiros francos. A sua
tarefa era escoltar e proteger os peregrinos que empreendiam a longa e dura viagem à
Terra Santa, porque este percurso estava semeado de perigos. Os peregrinos que
viajavam sem protecção eram sujeitos a emboscadas, roubados, mortos ou raptados e até
vendidos como escravos por bandidos experientes em tácticas de ataque rápidas e em
diluir-se na paisagem.
Os primeiros cavaleiros templários a oferecer-se para a tarefa de guardar e proteger
os peregrinos eram apenas nove, mas pareciam feitos para a tarefa. Todos eles eram de
origem nobre, todos estavam relacionados com famílias poderosas e todos tinham treino
militar. Eram cristãos devotos e tinham adoptado os mais elevados ideais e estilos de vida
cristãos. Faziam os votos de pobreza e castidade, obediência e humildade dos monges.
Estavam na disposição de mendigar o seu alimento e de adoptar uma vida pura e exemplar.
O seu nome original, os Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, diz muito
acerca destes homens.
No entanto, ironicamente, e por fim tragicamente, os Pobres Cavaleiros tornaram-se
a mais rica das ordens de cruzados. Isto não resultou da sua vontade, mas dos bens
valiosos que lhes eram doados por admiradores nobres e homens de igreja ricos. Os
jovens de famílias ricas que professavam na ordem e levavam com eles os seus bens
também contribuíram para encher os cofres dos Templários.
Os papas concederam privilégios especiais à ordem, incluindo a isenção da proibição
da usura (ou seja, de emprestar dinheiro), autorizando-os portanto a criar bancos e outras
instituições financeiras. Isto proporcionou-lhes a criação de depósitos seguros, crédito e
aconselhamento e administração de fortunas, bem como cofres- -fortes para joias,
ouro e outros tesouros. Vários príncipes europeus e até alguns sarracenos ricos confiaram
patrimónios substanciais aos Templários.
Com o tempo, os cavaleiros tornaram-se grandes proprietários, com 870 castelos,
escolas e casas. Também construíram de raiz igrejas, moinhos, pontes ou muralhas. Na
Terra Santa construíram vários castelos importantes, em lugares estratégicos como Jafa,
Acre e Sídon. Estas construções eram caraterísticas de uma nova geração de arquitectura
militar. Tinham dimensões e uma sofisticação sem precedentes e entre elas encontram-se
os primeiros castelos concêntricos. Um deles, em Safed, no vale do Jordão, estava
incluído numa correnteza de fortalezas dos Templários com a finalidade de travar incursões
do emirado muçulmano de Damasco. Levou dois anos a construir e teve um custo
calculado em moeda de hoje em cerca de 45 milhões de euros. As suas muralhas tinham
mais de 18 metros de espessura e 52 de altura e as suas sete torres erguiam-se 38 metros
acima das muralhas. Todo o edifício, que exigia uma guarnição de dois mil homens e
custava o equivalente a 2,5 milhões de euros por ano em manutenção, assentava em
rocha.
Porém, isto não bastou para os salvar do escrutínio da Inquisição na sequência das
acusações do rei Filipe IV, o Belo, de França. O poder, a riqueza e a influência dos
Templários acabou por se revelar a causa da sua queda, por ter despertado a cobiça do rei
de França. Filipe IV levou sete anos a destruir os Templários, com calúnias e falsas
acusações, além de quase todos os outros golpes baixos em que se possa pensar.
É possível que o papa Clemente não soubesse, ou não quisesse saber, que as
acusações haviam sido forjadas por Filipe, que receava o poder dos Templários e cobiçava
a sua riqueza, e que as provas apresentadas para as apoiar eram falsas. Clemente era
basicamente um servo do rei Filipe, que o dominava e já fora responsável pela morte de um
dos seus antecessores, o papa Bonifácio VIII, em 1303. Depois disso, nenhum papa se
atreveu a voltar a desafiar qualquer dos grandes reis da Europa, cada vez mais poderosos.
Clemente V fez o que lhe disseram. Disso resultou a tortura, a prisão e a morte na fogueira
de grande número de templários e por fim, em 1312, a dissolução da ordem.
A queda dos Templários foi um choque para a cristandade europeia. Se uma
organização tão rica, poderosa e prestigiada podia ser totalmente arruinada em meia dúzia
de anos, que hipótese teriam as pessoas vulgares, sem os privilégios e a influência dos
Templários? A resposta, como é evidente, era «nenhuma».


A MAGIA BRANCA


Mesmo as boas obras que parecessem obtidas por feitiçaria eram consideradas feitos
do Demónio. Esta lição foi duramente aprendida em França em 1390, quando um homem
chamado Jehan de Ruilly acusou Jehenne de Brigue de bruxaria depois de ela ter recorrido
a um feitiço para o curar de um mau-olhado lançado por Gilette, mãe dos seus dois filhos
ilegítimos. Ao que parece, Ruilly estava às portas da morte. Ninguém lhe dava mais de uma
semana de vida quando Brigue o ensinou a fazer uma boneca de cera a representar
Gilette. O doente recuperou milagrosa mente.
Ao princípio Brigue assegurou que não sabia nada de feitiços, mas no seu julgamento
foi sugerido que afinal sabia lançar feitiços e invocar um demónio chamado Haussibut para
a ajudar nas suas curas. Foi Haussibut que a ajudou a tratar Ruilly revelando a Brigue
como Gilette o enfeitiçara. Apesar da natureza benéfica das suas actividades, Jehenne de
Brigue foi condenada à morte na fogueira. A execução da sentença foi interrompida no
último minuto com a marcação de um novo julgamento para o princípio de 1391. No
entanto, o caso contra Brigue foi-se agravando.
Estava deitada nua no potro pronta a ser torturada quando se pôs a fazer confissões
sensacionais. Admitiu ter ajudado Macette de Ruilly (mulher de Jehan) a preparar um
veneno para matar o marido, de maneira a ficar livre e poder prosseguir o seu caso com
um padre. Macette negou a acusação, mas quando por sua vez foi despida e atada ao
potro mudou de ideias e pôs-se igualmente a confessar. Jehan e Macette de Ruilly foram
ambos condenados por bruxaria e por fazerem pactos com o Diabo. Foram levados para
Châtelet-Les Halles, no centro de Paris, onde foram obrigados a usar a mitra de papel
decorada com figuras de diabos, o símbolo da heresia. A seguir foram expostos aos maus-
tratos e aos insultos dos parisienses. Por fim foram queimados vivos no mercado dos
porcos, a 17 de Agosto de 1391.
Os julgamentos de bruxas continuaram por muito tempo, já no século XV, e tiveram
um carácter ainda mais brutal e sinistro na Suíça. Aqui, em 1428, várias bruxas, que se
dizia que voavam por todo o país e usavam os seus poderes demoníacos para tornar
homens e mulheres estéreis, foram levadas pela tortura a fazer confissões. Dizia--se que
estas bruxas destruíam colheitas, secavam o leite das vacas e matavam e comiam crianças
nas suas festas do sabat. Eram acusadas de participar em danças obscenas, de beijar o
traseiro do Diabo e de participar em orgias em que o Demo por vezes mudava de sexo, o
que lhe permitia gozar dos seus prazeres demoníacos tanto com homens como com
mulheres numa só noite.
Acreditava-se que durante o sabat o Diabo deixava uma marca especial no corpo das
bruxas. A descoberta desta marca equivalia a uma sentença de morte, já que quando o
inquisidor dava com ela sujeitava-a a um teste espetando-a com uma agulha ou outro
instrumento pontiagudo: se a marca não deitasse sangue ou a pessoa não sentisse dor,
qualquer esperança de escapar à condenação desaparecia. Na Suíça foram queimados
assim cerca de duzentos homens e mulheres. Por volta de 1450, em Brian- çon, do lado
francês dos Alpes, 110 mulheres e 57 homens acusados de bruxaria morreram na fogueira.
Na Normandia, no norte de França, os homens também eram perseguidos por
bruxaria. Em Évreux, a Inquisição condenou Guillaume Edeline, prior de Saint-Ger- main-
en-Laye, a prisão perpétua em 1453 por ter tido relações carnais com um súcubo (uma
mulher-diabo que se julgava seduzir os homens durante o sono). A sua sentença incluiu
uma punição por voar numa vassoura e beijar o traseiro de um bode. Robert Olive, de
Falaise, enfrentou uma pena mais severa. Em 1456 foi queimado vivo por ir a sabats de
bruxas a voar.
No entanto, tudo isto foi apenas um prelúdio à verdadeira caça às bruxas que
começou em Arras, no Pas-de-Calais, no nordeste de França, em 1459. Uma das primeiras
vítimas foi Deniselle Grensières, uma mulher com um atraso que foi repetidamente
torturada por Pierre le Broussart, um dominicano que era o chefe dos inquisidores de
Arras. Deniselle acabou por confessar e deu o nome de mais quatro mulheres e do artista
Jehan la Vitte como seus associados. Uma das quatro mulheres, aterrada com a
perspectiva de ser torturada, matou-se para não cair nas mãos de Broussart. Jehan la
Vitte também tomou medidas extremas. Quando foi ameaçado com a tortura, teve medo
de ceder e de dar por sua vez outros nomes. Para evitar que isto acontecesse, tentou
arrancar a própria língua, embora apenas tenha conseguido provocar cortes à volta da
boca. Isto quase o impedia de falar, mas restavam-lhe as mãos e isso foi suficiente para
que o obrigassem a escrever o seu relato de como homens e mulheres eram transportados
para os lugares de encontro com o Diabo. Depois explicou como o Diabo, que assumia
uma forma humana embora o seu rosto permanecesse oculto, obrigava todos os presentes
a beijarem-se o traseiro antes de se sentarem à mesa do banquete na sua companhia. A
seguir todas as luzes eram apagadas, um sinal de que a orgia podia começar. «Cada
homem ou mulher escolhia um parceiro», disse Jehan la Vitte à Inquisição, «e conhecia
carnalmente o outro.» Na primavera de 1460, Jehan la Vitte, Deniselle Grensières e as três
mulheres nomeadas por esta que ainda eram vivas foram considerados hereges e forçados
a usar a mitra do Diabo. Todos eles acabaram por ser queimados vivos.


MAIS VÍTIMAS PARA BROUSSART




Em conjunto, os cinco deixaram uma longa lista de pessoas a Broussart, que, mal os
viu transformados em cinzas, deitou as garras a uma nova rodada de vítimas. Desta vez,
no entanto, a sua lista incluía vários nomes distintos – homens e mulheres de origem
nobre ou elevada posição social, bispos e outros prelados, juízes e outros magistrados
importantes. Alguns conseguiram livrar-se do aperto com subornos, enquanto outros
receberam garantias de que em troca de uma confissão poderiam manter os seus domínios
e as suas riquezas – bem como a vida. Estas garantias acabaram por se revelar inúteis.
Depois de confessarem, foram queimados vivos como os plebeus da lista de Broussart e
os seus bens foram parar às mãos de outros senhores locais ou do bispo da sua diocese.


POR FIM UMA REACÇÃO




Nessa época os excessos da caça às bruxas tinham alcançado tais extremos que
acabaram por levar as pessoas a reagir. Vários homens da Igreja de Arras incentivaram
Broussart a declarar a amnistia dos prisioneiros. Quando ele recusou, os bispos de Arras e
Amiens, em conjunto com o arcebispo de Rheims, decidiram tomar a questão em mãos.
Para começar, anularam todas as acusações de bruxaria que lhes foram apresentadas
para julgamento e pronunciaram os sabats das bruxas meros produtos da histeria e da
imaginação. Nessa altura o parlamento de Paris, em tempos o conselho dos reis de
França, adiantou-se e libertou alguns dos prisioneiros de Broussart. Jean Jouffroy, bispo
de Arras, libertou os restantes.
O parlamento foi ainda mais longe. Os seus membros condenaram Broussart por ter
agido «no erro e contra a ordem e a dignidade da justiça». A Inquisição de Arras também
não escapou à censura. Os inquisidores, era dito, haviam «realizado um falso julgamento e
outro sem o devido processo de lei». A Inquisição, continuava o parlamento, perpetrara
«interrogatórios e torturas desumanos e cruéis [...] como entalar os membros, queimar as
solas dos pés e obrigar os acusados a engolir azeite e vinagre.» Sugeria ainda que deviam
ser ditas orações pelos que haviam morrido.
Foi numa disposição muito diferente que o papa Inocêncio VIII considerou o problema
da bruxaria e da heresia na Alemanha em 1484. Aqui não havia clemência possível, já que,
numa bula do mesmo ano, Inocêncio descrevia uma situação perturbadora. Anunciava:


Chegou recentemente aos nossos ouvidos que em algumas partes
do norte da Alemanha [...] muitas pessoas de ambos os sexos [...]
se entregam a demónios, machos e fêmeas, e com os seus
encantamentos, feitiços e esconjuros, e por outras superstições
abomináveis [...] ofensas, crimes e prevaricações, arruínam e
fazem perecer o fruto do ventre das mulheres, as crias dos
animais e os frutos da terra, as uvas das videiras e os frutos das
árvores, bem como homens e mulheres, gado e bandos de aves e
manadas de animais de todos os tipos, vinhas e pomares, prados,
pastagens, searas, cereais e outros produtos da terra; que afligem
e torturam com grande sofrimento e angústia, tanto interior como
exterior, estes homens, mulheres, gado, aves, manadas, e
animais, e impedem homens e mulheres de se unir e procriar [...]
será autorizado aos inquisidores que exerçam o seu ofício de
Inquisição e procedam à correção, à prisão e à punição das ditas
pessoas pelas suas ofensas e crimes.


IMPEDIR QUALQUER FUGA




Embora isso não tenha sido dito de forma explícita, a nova ofensiva de Inocêncio
contra as bruxas e a heresia fechou uma série de lacunas deixadas em aberto pela prática
anterior e criou a condenação sem esperança de perdão. A simples negação das
acusações de heresia ou bruxaria bastava para provar que essas acusações tinham
fundamento, o que tanto se aplicava a bispos e a teólogos ou a outras eminências da
Igreja como ao mais pobre e indefeso dos servos. Além disso, defender um acusado ou
tentar provar a falsidade de acusações de feitiçaria era também considerado um sinal de
heresia.
O que se seguiu foi praticamente um massacre congeminado por dois dominicanos
especialmente escolhidos pelo papa em pessoa. Estes homens foram Heinrich Kramer e
Jakob Sprenger, também identificado como o Apóstolo do Terço. Em conjunto, os dois
escreveram o Malleus Maleficarum, geralmente conhecido como O Martelo das Bruxas. Foi
publicado por volta de 1486 e em 1600 já tinha sido reeditado 28 vezes. O Martelo das
Bruxas era um manual para identificar e punir bruxas, e incluía a maior parte, senão todas,
as crenças populares do tempo nesta matéria. Foi concebido em primeiro lugar para
instruir juízes e magistrados em técnicas de interrogatório de bruxas que pusessem a nu a
sua culpa. O livro, que conheceu grande divulgação, permitida pela tipografia,
recentemente inventada, era tão popular entre protestantes como entre católicos e
encontrava-se nas salas dos tribunais, onde era consultado com frequência, isto até
meados do século XVIII.
Apesar da sua popularidade, a veracidade do livro foi sempre objecto de dúvida. Afinal
as crenças acerca de bruxaria estavam fortemente ligadas ao medo, a rumores e à
superstição, o que se aplica sobretudo no pico da campanha de caça às bruxas. Em 1487,
Kramer enviou uma cópia do livro para a Faculdade de Teologia da Universidade de
Colónia, na esperança de que o seu trabalho fosse reconhecido, mas ficou muito
desapontado quando, em vez disso, o livro foi considerado imoral e ilegal. Sem se deixar
desencorajar, Kramer forjou uma recomendação da faculdade que incluiu em edições
posteriores da obra.
Além disso, conseguiu contornar a condenação do papa Inocêncio VIII,
aparentemente incomodado com a selvajaria que deixara à solta. Em 1490, Inocêncio
ordenou que O Martelo das Bruxas fosse incluído no Índex de Livros Proibidos. No entanto,
Kramer mandou imprimir uma cópia da bula pontifícia de 1484, juntamente com a
aprovação de outras instituições, no início do livro, dando assim a impressão de que
Inocêncio sancionava o seu conteúdo.


O ÓRGÃO DESAPARECIDO


O cepticismo intelectual acerca das bruxas não tinha força suficiente para fazer frente
às crenças populares, que se agarravam sombriamente a mitos e fantasias, por
extravagantes que parecessem, mesmo que académicos, teólogos – e até papas – os
condenassem. Uma história típica O Martelo das Bruxas prevenia os leitores contra a
habilidade do Demo, que chegou ao ponto de roubar a um homem o seu órgão sexual,
que, ao que parece, desapareceu simplesmente do devido lugar. Felizmente, o dito
reapareceu de forma mágica e o homem em questão conseguiu recuperá-lo quando se
encontrava na posse de uma mulher que tinha embruxado o seu legítimo dono. Outra
história revelava como uma rival conseguiu enfeitiçar uma jovem noiva no dia do seu
casamento. Conta o marido:

No tempo da minha juventude amei uma jovem que me importunou
para que casasse com ela, mas eu recusei e casei com outra [...]
mas querendo, por amizade, agradar- -lhe, convidei-a para o
casamento. Ela veio e [...] levantou a mão e, segundo contaram as
mulheres que estavam perto dela, disse «Vais ter poucos dias com
saúde depois do dia de hoje». [...] Aconteceu precisamente o que
ela disse. Poucos dias depois a minha mulher ficou de tal maneira
embruxada que perdeu o uso de todos os seus órgãos, e ainda
agora, ao fim de dez anos, os efeitos da bruxaria continuam
visíveis no seu corpo.


0 INVULGAR E O NÃO EXPLICADO




As histórias deste tipo despertam a atenção das pessoas comuns, já que o medo do
que é estranho, invulgar, nunca foi explicado ou é enganador tinha raízes profundas no
passado pagão e continuava a prevalecer na época medieval. O mesmo acontecia com o
sexo e a sexualidade entre os homens da Igreja, e não apenas pela sua ligação ao pecado
original. O anseio pelo sexo era um inimigo terrível, já que privava homens e mulheres do
autodomínio e lhes roubava tanto a virtude como a virgindade. Kramer e Sprenger revelam
amplamente este receio no seu livro e Sprenger pelo menos era um misógino radical.
Escreve o seguinte:

Antes queria ter um dragão ou um leão à solta na minha casa do
que uma mulher [...] Fracas de corpo e mente, não é de
surpreender que as mulheres se tornem com tanta frequência
bruxas [...] A mulher é a personificação da luxúria [...] uma mulher
que não consiga arranjar homem é capaz de se unir carnalmente
ao próprio Diabo.

Armados com ideias deste tipo e com uma carta do papa Inocêncio a dar-lhes o poder
de fazer praticamente tudo o que quisessem, Kramer e Sprenger abriram caminho através
da Alemanha com o fim de extirpar a bruxaria e a heresia onde quer que as encontrassem.
A sua expedição não enfrentava restrições de qualquer tipo. Os inquisidores recorriam a
mentiras, maus-tratos e à pressão psicológica, bem como, é claro, à tortura física para
obter as condenações por que ansiavam. Chicoteavam as suas vítimas até fazer escorrer
sangue. Usavam a roda e instrumentos para esmagar dedos, braços e pernas. No entanto,
eram apenas os preliminares.


O TARIFÁRIO DA TORTURA


Os verdadeiros requintes, que vieram mais tarde, estavam enumerados numa lista de
imposições sobre a tortura, elaborada por Hermann IV de Hesse, arcebispo de Colónia.
Uma das opções envolvia arrancar a língua à vítima antes de a fazer engolir metal em
estado líquido. Outra incluía cortar a mão a uma bruxa e pregá-la ao cadafalso,
supostamente antes de a bruxa condenada ser enforcada. No entanto, nada disto era
gratuito. A família da vítima tinha de pagar pelo privilégio concedido e ainda pela festa de
celebração caso a vítima morresse ao ser torturada.
Um cronista alemão deixou uma descrição pormenorizada do sofrimento horrendo
produzido por um instrumento de tortura conhecido como a roda, que, escreveu,
transformava as vítimas...

[...] numa espécie de bonecos que gritavam estridentemente ao
mesmo tempo que derramavam o seu sangue, bonecos com
quatro tentáculos, como monstros marinhos, feitos de carne crua,
viscosa e informe, à mistura com pedaços de ossos esmagados.


Uma mulher, cujo nome não ficou registado, mostrou uma resistência notável, o que
deve ter sido profundamente frustrante para Kramer e Sprenger. Foi torturada nada mais
nada menos que 56 vezes mas nem assim confessou. Isto era muito invulgar, porque a
maior parte das pessoas acabava por dizer fosse o que fosse, fazer fosse o que fosse,
confessar o que pedissem que confessassem ou trair fosse quem fosse para pôr fim á
tortura. Admitiam ter feito pactos com o Diabo à meia-noite, de acordo com os quais
trocavam a própria alma por ouro, ter envenenado poços com maus-olhados e ter lançado
feitiços. Confessavam ter tido comércio carnal com o Diabo e ter criado monstros a quem
davam de alimento bebés recém-nascidos. Contavam como tinham participado em sabats a
meio da noite, em que adoravam o Demónio, ter celebrado missas negras e depois
participado em orgias até o Sol nascer. Havia quem assegurasse que tinha coleccionado
órgãos masculinos, vinte ou trinta de cada vez, que tinha escondido em ninhos de
pássaros, onde eles se moviam por si mesmos e eram alimentados a trigo e aveia.
Por vezes Kramer e Sprenger conseguiam confissões em massa. Conventos inteiros
de freiras revelavam que eram regularmente visitadas pelo Diabo, com quem todas tinham
fornicado. Contudo, os inquisidores depressa descobriram que, apesar da tortura e das
condenações à fogueira, o número de bruxas que descobriam não havia maneira de
diminuir. Pelo contrário, parecia que aumentava, além de que os crimes confessados por
bruxas e hereges se tornavam cada vez mais bizarros e obscenos. Era preciso mudar de
estratégia, e os inquisidores sabiam como.


AS FALSAS OFERTAS DE CLEMÊNCIA




No seu próprio livro, O Martelo das Bruxas, que não excluía nada que pudesse
permitir obter uma confissão, sugeriam que uma das melhores tácticas para vencer o mal
era oferecer punições mais leves. Acontece que em muitos casos a nova estratégia levava
ainda mais «bruxas» a confessar em troca de reduções das penas. Podiam mesmo ser
perdoadas – ou pelo menos prometiam-lhes que o seriam – se denunciassem outras
bruxas. Muitas aproveitaram avidamente a oportunidade e deram outros nomes. Onde esta
estratégia tropeçava era no princípio, igualmente proclamado em O Martelo das Bruxas, de
que os inquisidores podiam mentir às bruxas, enganá-las, maltratá-las e fazer-lhes o que
quer que entendessem impunemente. Muitas mulheres que confessaram ser bruxas
caminharam para a fogueira queixando-se aos gritos de que lhes fora prometida a liberdade
e lhes havia sido assegurado que escapariam ao destino que afinal as aguardava.
Em tudo isto há um mistério. As bruxas eram profundamente temidas, consideradas
inimigos tremendos, capazes de retaliações terríveis. As pessoas acreditavam que elas
eram capazes de lançar feitiços, de desaparecer de repente e de confundir os seus
inimigos com muitos outros truques sobrenaturais. Nesse caso, como se explicava que
fossem tão fáceis de desmascarar? Por que razão não conseguiam resistir à tortura?
Porque faziam confissões tão pormenorizadas, mas especialmente porque não se
vingavam dos que as torturavam? Havia uma convicção generalizada de que as bruxas
tinham o poder de amaldiçoar os seus inquisidores, de cegar os que as torturavam e de se
libertar das chamas sem a menor queimadura. No entanto, ninguém vira qualquer destas
coisas acontecer uma só vez que fosse.
Nem Heinrich Kramer, nem Jakob Sprenger, nem o próprio papa tinham resposta para
este enigma. Tudo o que podiam fazer era acusar, torturar, condenar e queimar cada vez
mais bruxas e esperar que de uma maneira ou de outra o mal que combatiam fosse
vencido. Tragicamente, muitas centenas de pessoas, incluindo dezenas de crianças,
morreram na fogueira de uma só vez sem que o mal tivesse sido extirpado. Um bispo em
Genebra, na Suíça, parece ter conseguido queimar quinhentas pessoas em três meses.
Em Bamburg, no norte da Baviera, outro bispo matou seiscentas pessoas, e em Würzburg,
também na Baviera, novecentas morreram na fogueira. E por aí fora. Em 1586, um século
depois da publicação de O Martelo das Bruxas, 118 homens e mulheres foram queimados
por terem lançado um feitiço que prolongou o Inverno.

O INQUISIDOR-GERAL


Embora os mais zelosos na actividade da caça às bruxas, que incluía queimá-las na
fogueira, tenham sido os bávaros, do sul da Alemanha, dos séculos XV e XVI, houve outras
regiões que se aproximaram. Uma delas tinha o seu centro em Besançon, na província do
Franco Condado. Na altura o Franco Condado era um domínio do Sacro Império Romano-
Germânico, onde, em 1532, o Código Penal Carolíngio decretou que a bruxaria era uma
actividade criminosa punível com a morte na fogueira. Embora o parlamento de Paris tenha
tido capacidade para pôr um travão na caça às bruxas, na França dividida da altura não
tinha jurisdição sobre o Franco Condado. Aqui, em 1529, Jean Boin, o inquisidor-geral de
Besançon, começou a dar atenção aos rumores que corriam na aldeia de Anjeux. O que
ouviu convenceu-o de que Anjeux era um covil de bruxas, no centro do qual se encontrava
uma mulher casada chamada Desle la Mansenée.
Nesta primeira fase não havia quaisquer provas contra ela, mas Boin soube aproveitar
tudo o que tinha. O número de pessoas que a acusavam bastou para o convencer de que
ela não podia ser inocente. O testemunho de um dos acusadores, Antoine Godin, foi típico
das «provas por ouvir dizer», consideradas conclusivas nos casos contra bruxas. Godin,
que tinha à volta de 40 anos, disse recordar que uns trinta anos antes se dizia que
Mansenée era uma bruxa. O filho dela, Mazelin, tinha contado aos amigos que a mãe
participava no sabat das bruxas, para onde ia montada numa vassoura voadora que
andava de trás para a frente. Godin também contou que alguns aldeãos tinham dito que
Desle la Mansenée tinha roubado fios de uma roca que tencionava usar em feitiços.
Quando surgiram mais duas dezenas de aldeãos de Anjeux a confirmar as «provas» de
Godin, Boin decidiu tomar medidas.



CONDENADA PELA MÁ-LÍNGUA




Desle la Mansenée jurou que era inocente, mas mesmo assim foi presa e torturada e
acabou por confessar. A história era a mesma de sempre – copular e fazer um pacto com o
Diabo, participar em sabats e em orgias, renunciar à fé católica e, para concluir, provocar
saraivadas destrutivas e envenenar gado com um pó negro misterioso. Desle la Mansenée
foi condenada à morte por assassínio, heresia e apostasia, mas não por bruxaria. Esta
mercê duvidosa significava que seria enforcada em vez de queimada viva, embora o seu
corpo tenha ardido depois da sua execução, a 18 de Dezembro de 1529, apenas para
assegurar que o mal era realmente eliminado.
Por esta altura, as ideias do Renascimento, mais científicas, começavam a insinuar-se
nas concepções da lei e de como esta devia operar. Os julgamentos deixaram de assentar
em boatos, no diz que disse, na histeria em massa e no excesso de zelo, e passaram a ser
feitos num clima intelectual mais frio, lógico e assente na lei. Esta nova maneira de pensar
prometia uma transformação radical dos procedimentos judiciários e introduzia a ideia de
que a razão era um guia muito superior ao medo ou à fantasia. Fora uma falta de
argumentação inteligente e de prova razoável que suscitara as preocupações do
parlamento de Paris quase setenta anos antes. No entanto, esta abordagem racional, com
as suas exigências de clemência e justiça no tratamento dos acusados, de nada valiam
com gente como Jean Bodin, um jurista, economista e filósofo francês, autor de La
Démonomanie des Sorciers (Acerca da Bruxaria), publicado em Paris em 1580.
Bodin foi um dos mais notáveis teóricos políticos do século XVI e um dos principais
académicos do seu tempo. No entanto, partilhava com camponeses analfabetos e sem
qualquer formação os medos e os preconceitos mais comuns do seu tempo. Para
começar, achava que as leis normais da acusação não se aplicavam nos casos de bruxaria.
Escreveu acerca do assunto:

As provas do mal são de tal maneira obscuras e difíceis que se
seguíssemos os procedimentos normais nem uma bruxa num
milhão seria apanhada.

Bodin defendia por isso o uso de tortura, mesmo em crianças e aleijados, como a
melhor forma de extorquir confissões a suspeitos. Desta maneira, achava ele, era
impossível uma bruxa escapar ao devido castigo. Deste ponto de vista, uma suspeita de
bruxaria valia tanto como uma prova e os boatos também eram válidos, porque, quanto a
ele, os boatos acerca de bruxas eram sempre verdadeiros.
No mundo de Bodin, tudo – fosse o que fosse – era justificado quando se tratava de
desmascarar bruxas e bruxedos. As crianças podiam ser forçadas a denunciar os pais e
depois de feita uma acusação os acusados tinham de ser considerados culpados. Se
alguém não acreditava em bruxaria, Bodin desconfiava logo que era uma bruxa e que os
juízes que se recusavam a condenar um acusado de bruxaria deviam ser eles próprios
executados.
Como juiz, Jean Bodin recomendou que as bruxas fossem marcadas com ferro em
brasa, mas não gostava que fossem queimadas vivas. Do seu ponto de vista, esta morte
era demasiado rápida, já que em apenas meia hora tudo estava acabado. Contudo, Bodin
escondia um segredo que, se tivesse sido conhecido, o podia ter tornado vítima dos seus
próprios princípios. Desde 1567, quando tinha 37 anos, que Bodin estava possuído por um
demónio. Felizmente era um demónio simpático, que lhe tocava na orelha direita quando
fazia coisas erradas e na esquerda quando agia bem. Felizmente para Bodin, nunca foi
apanhado pela Inquisição.



UM PAPA SUPERSTICIOSO


França fora, como é evidente, a primeira coutada da Inquisição, do tempo em que a
caça era aos templários e aos cátaros, no século XIV. Mas as perseguições não se ficaram
por ali. Os esforços dos inquisidores em Toulouse e Narbonne foram encorajados por
papas como João XXII, que promulgou uma série de bulas a incentivar a caça às bruxas, a
tratar a bruxaria como heresia e a punir os condenados da mesma maneira. O papa João
XXII foi um dos pontífices mais supersticiosos de sempre. Estava convencido de que os
seus inimigos recorriam à bruxaria para tentar matá-lo e em 1317 sujeitou-os à tortura para
os obrigar a confessar. Três anos mais tarde, João XXII disse ao inquisidor de
Carcassonne, na região dos cátaros, que perseguisse bruxas e feiticeiros e quem quer que
tentasse invocar diabos ou fizesse imagens de cera com a finalidade de provocar doenças
ou a morte. Em resultado do encorajamento de João XXII, em 1350 foram presos em
Toulouse e em Carcassonne mil suspeitos, seiscentos dos quais foram queimados vivos.
Este tipo de actividades, bem como o ardor que as incentivava, ainda existia no
tempo de Jean Bodin, mais de duzentos anos depois. Bodin morreu em 1596, mas mesmo
depois disso ainda seriam percorridos muitos quilómetros em perseguição de suspeitos
tanto em regiões católicas como protestantes na Europa.
Tudo isso aconteceu apesar de, em 1623, o papa Gregório ter dito a última palavra
do Vaticano acerca do assunto numa bula intitulada Omnipotentis Dei (A Omnipotência de
Deus). Gregório, reformador por natureza, ordenou que as punições sádicas fossem
reduzidas ou até abandonadas e que a pena de morte fosse aplicada apenas quando se
tivesse «provado que os acusados tinham pacto com o Diabo e tinham cometido
assassínios com a sua ajuda».
No entanto, foi preciso muito tempo para o recado chegar aos perseguidores de
bruxas. Foi como se a caça às bruxas e as condenações à fogueira tivessem ganho uma
vida própria a que nem as ordens do papa conseguissem pôr fim. Quando muito, os
parâmetros da culpa foram alargados para além das bruxas a uma nova classe de hereges,
incluindo as videntes, os necromantes, os encantadores e, os mais inquietantes de todos,
os lobisomens.


A INQUISIÇÃO ESPANHOLA E TOMÁS DE


TORQUEMADA


Durante a Inquisição espanhola, uma das últimas a entrar em cena, em 1478, a
execução colectiva de hereges conhecida como auto de fé tornou-se um espectáculo
público, uma cerimónia completa que incluía missa, procissões, a participação de todas as
autoridades civis e religiosas importantes e centenas, por vezes milhares, de espectadores.
As autoridades da Inquisição espanhola gostavam sempre de ver multidões. Do seu ponto
de vista, não havia como um auto de fé para instilar o temor de Deus e o horror ao
Demónio nos fiéis.
O recurso da Inquisição espanhola à tortura e ao terror levou a falta de humanidade a
extremos nunca antes imaginados. No centro de todo este horror esteve Tomás de
Torquemada, inquisidor-geral de Espanha. Torquemada, nascido em 1420, era um sádico.
Cinco séculos depois da sua morte, o seu nome continua a ser sinónimo de excessos e
fanatismo. Torquemada estava disposto a usar quaisquer meios, por mais desonestos ou
bestiais que fossem, para conseguir assar hereges ou desmascarar cristãos-novos, judeus
ou muçulmanos que apenas tivessem fingido converter-se ao cristianismo para escapar às
perseguições.
Torquemada era adepto de queimar livros judeus e muçulmanos e foi um dos
principais apoiantes do Decreto do Alhambra, que decidiu a expulsão em massa dos judeus
de Espanha, em 1492. No entanto, ironicamente, Torquemada tinha antepassados judeus:
dizia-se que a avó fora uma cristã-nova e antes disso, como é evidente, havia mais judeus
na sua árvore genealógica. Apesar disso, o jovem Torquemada mostrou um ódio fanático
pelos judeus e pelo judaísmo e fez tudo o que estava ao seu alcance para se distanciar
destes antepassados inconvenientes.
Ainda jovem, Torquemada professou na ordem dominicana e era conhecido pela
devoção, pelo zelo e pelos costumes ascéticos. Pouco mais se sabe da sua vida até que,
em 1474, com a idade de 54 anos, se tornou prior do Convento de Santa Cruz de Segóvia.
Pouco depois foi nomeado confessor da rainha Isabel de Castela e por fim tornou-se
conselheiro tanto da rainha como do marido, o rei Fernando de Aragão. O casal estava tão
impressionado com o prior que em 1483 este foi nomeado inquisidor- -geral de Espanha.
Torquemada era minucioso e sistemático. Introduziu a regra de que todos os cristãos
de Espanha, incluindo qualquer rapariga a partir dos 12 anos e qualquer rapaz a partir dos
14, tinha de prestar contas à Inquisição da pureza da sua fé. Protegidas pelo anonimato,
as pessoas eram encorajadas a denunciar vizinhos, companheiros e até familiares de
cometer actos de heresia.
Os pecadores podiam ser multados, presos, torturados ou queimados na fogueira ou
ainda sofrer todas estas penas. Quando eram condenadas a morrer na fogueira,
Torquemada oferecia uma escolha às vítimas. Se aceitassem beijar o crucifixo podiam ser
estranguladas, e portanto ser queimadas já mortas. Se pedissem perdão pelos seus crimes
morriam rapidamente, queimadas com lenha seca e que ardesse bem. Já os que teimavam
em dizer-se inocentes ou se retratavam das confissões que lhes haviam sido extorquidas à
força, sofriam uma morte lenta, queimados com lenha verde e que demorava a arder.
Tomás de Torquemada foi inquisidor-geral durante nove anos, até 1492, altura em que
os últimos judeus e os últimos mouros foram expulsos de Espanha. Com isto considerou
que o seu trabalho estava completo e retirou-se para o Mosteiro de São Tomás, em Ávila.
Por essa altura, no entanto, criara uma reputação odiosa, de crueldade e fanatismo, que o
tornava ao mesmo tempo temido e detestado em toda a Espanha. O sentimento contra ele
era de tal maneira intenso que se recusava a deslocar-se onde quer que fosse sem uma
escolta de cinquenta guardas a cavalo e 250 homens armados. Estava convencido de que
os seus inimigos andavam a tentar envenená-lo, de maneira que trazia com ele um
antídoto, pó de corno de unicórnio, que usava sempre que comia. Contudo, estas
precauções foram desnecessárias, já que acabou por morrer de causas naturais, em 1498,
com a idade de 78 anos.
Mesmo assim, o ódio que inspirou foi tão persistente que em 1832, mais de trezentos
anos depois da sua morte, e dois antes de a Inquisição espanhola ser por fim abolida, o
túmulo de Torquemada foi profanado e os seus ossos roubados e queimados.







A CONTINUAÇÃO DA CAÇA ÀS BRUXAS NA


ALEMANHA


Apesar de tudo, as bruxas continuaram a ser a maior parte das vítimas da fogueira e
das masmorras. Na Alemanha, onde o rei Maximiliano I se tornou um entusiasta da caça às
bruxas, depois de subir ao trono da Baviera, em 1597, cerca de duas mil bruxas foram
queimadas na pequena cidade de Riezler e outras tantas em Augsburgo e em Freising. No
estado alemão de Bamburg, seiscentas bruxas arderam na fogueira nos dez anos que
antecederam 1633 e mais de novecentas na cidade vizinha de Wurzburg. Entre estas
últimas, um total de 157 pessoas morreram em 29 execuções colectivas, incluindo dois
rapazes, de 10 e de 12 anos.
As notícias dos excessos sádicos cometidos pelos inquisidores em Espanha (e isto
antes de Tomás de Torquemada) levaram o papa Sisto IV a mudar de ideias em relação à
Inquisição. Em 1482 uma bula pontifícia punha fim à Inquisição em Espanha. Contudo, a
tentativa não vingou. O rei Fernando pressionou o papa, Sisto resistiu e impôs condições,
mas por fim, em 1483, recuou e retirou tanto as exigências como a bula.
Sisto morreu no ano seguinte, mas Fernando assegurou-se de que o papa seguinte,
Inocêncio VIII, recebia e percebia a mesma mensagem. Inocêncio já provara que tinha a
mão pesada a lidar com a bruxaria na Alemanha, mas Fernando queria deixar a própria
marca na sua Inquisição, não queria receber ordens de Roma. Quando o papa Inocêncio
se retirou, a Inquisição espanhola avançou e mais tarde veio a alargar o seu campo de
manobras para se assegurar de que os falsos convertidos e outros hereges que
escapavam para o México, o Perú e as várias colónias espanholas da América eram por
seu turno eliminados.
Acabaram por passar mais 350 anos para um decreto real abolir por fim a Inquisição
espanhola, em 1834. Quando isso aconteceu, mais de dezena e meia de gerações de
inquisidores tinham lidado com 150 mil casos de heresia. Só entre 1560 e 1700, pelo
menos cinco mil acabaram na fogueira. No entanto, os registos são fragmentários e
incompletos, além de que não cobrem todos os períodos, de maneira que o número total
de vítimas pode nunca vir a ser conhecido.




BALANÇO DO PASSADO


Os estudiosos calculam que no total quarenta a cem mil pessoas, entre homens,
mulheres e crianças, para não falar de milhares de gatos pretos e de vários cães, foram
torturados e mortos nos mais de cinco séculos em que a Europa tremeu de medo do Diabo
e das suas artimanhas e os papas e a Inquisição lutaram por escapar às suas garras
odiosas. Entre os julgamentos por bruxaria que se realizaram na Europa, sabe-se que pelo
menos 12 mil acabaram em execuções.
Muitos anos depois de a Europa ter por fim saído desta fase horrenda, historiadores,
estudiosos e psiquiatras encaram este período terrível da história do continente como uma
alucinação gigantesca. Mais do que isso, a caça às bruxas, com as suas torturas e
confissões forçadas, foi um pesadelo ininterrupto, criado pelo medo, pela ignorância, pelo
fanatismo, pela repressão da sexualidade e por uma histeria generalizada. A vergonha
associada a este capítulo da história da Europa manchou por muito tempo o seu passado.























Capítulo
























Lucrécia Bórgia, filha do papa Alexandre VI, desempenhou um papel
importante nas maquinações do pai e dos irmãos cardeais.
Casou-se três vezes para obter vantagens políticas
e económicas para os Estados Papais.










A DEPRAVAÇÃO DOS BÓRGIAS




O poder nas cidades-estado italianas do Renascimento era muitas vezes um assunto
familiar. E as famílias Visconti e Sforza, de Milão, Médici, de Florença, D’Este, de Ferrara,
Boccanegra, de Génova, ou Barberini, Orsini e Della Rovere, mostraram muitas vezes
todos os sintomas característicos da sua raça.
Eram extraordinariamente ávidos de terras, rendas e influência, e não conseguiam
resistir à tentação de enriquecer os seus familiares com títulos importantes e os estilos de
vida opulentos a que aqueles davam direito. Muitas vezes asseguravam o poder através da
violência, do assassínio e da corrupção e eram implacáveis de uma maneira só comparável
com a das famílias envolvidas no crime organizado, séculos mais tarde.
O mais poderoso de todos estes reinos era, como é evidente, o papado. O seu poder
residia na influência que exercia tanto sobre a vida religiosa como sobre a vida secular da
Europa católica. Os papas saíram de várias famílias ricas e influentes, mas os que mais
marcaram a memória da Igreja foram os Bórgias. O primeiro dos dois papas Bórgias foi o já
idoso Calisto III, anteriormente Alonso de Borja, eleito em 1455.


A ASCENSÃO DO PRIMEIRO PAPA BÓRGIA




A família Borja, como o nome se escrevia originalmente, é originária de Torre de
Canais, no sopé das montanhas do sul de Valência, reino de Aragão. Os Borjas receberam
os seus domínios como recompensa pelos serviços prestados no combate aos mouros,
que se encontravam em Espanha desde o século VIII. No entanto, basicamente, eram
aventureiros e oportunistas e ansiavam por se alçar acima da sua condição de pequenos
nobres terra tenentes. Foi Alonso de Borja que concretizou o sonho da família.
Nascido em 1378, Alonso foi um estudante brilhante, o que lhe permitiu entrar na
Universidade de Lérida com apenas 14 anos. Ainda adolescente, tornou-se lente na
universidade e mais tarde entrou ao serviço do rei Afonso V de Aragão como conselheiro e
diplomata. O maior êxito de Borja foi ter posto fim ao chamado Grande Cisma do Ocidente,
em que os papas de Avinhão (hoje parte de França) disputavam o direito à primazia com os
papas de Roma. Alonso de Borja recorreu a uma mescla de promessas, ameaças e
manobras de sedução para levar o anti-papa Clemente VIII a resignar e reconhecer
Martinho V, o papa de Roma, como verdadeiro pontífice. Para o recompensar, o papa
Martinho, profundamente agradecido, nomeou Alonso de Borja para o prestigiado cargo de
bispo de Valência.
Em 1444, Borja foi feito cardeal. Na altura com 66 anos de idade, tinha atrás dele
uma vida de piedade e virtude rigorosas. O seu percurso contrastava fortemente com o de
outros cardeais do seu tempo, que preferiam os prazeres mundanos e a opulência na
companhia das suas amantes e filhos ilegítimos. Em 1455, quando o papa Nicolau V
morreu e chegou o momento de escolher um sucessor, o cardeal Borja era um velho frágil
de 77 anos. Estava debilitado pela gota e passava a maior parte do tempo de cama. Por
tudo isto, quando os cardeais se reuniram em conclave para eleger o novo papa, Borja
nem sequer foi considerado. No entanto, a eleição dos dois candidatos mais evidentes
estava comprometida por se tratar de representantes de duas famílias rivais, Colonna e
Orsini. Para sair do impasse, o conclave viu-se forçado a procurar um terceiro candidato.
A única alternativa à vista era o cardeal Borja, já que tinha uma reputação
irrepreensível e não estava ligado a interesses familiares perigosos. Além disso, era muito
idoso, não se esperava que vivesse muito tempo, e o seu temperamento conciliador
prometia fazer dele um papa maleável.
Acontece que todos os que assim pensavam estavam enganados. É um facto que
Calisto III, o nome por que ficou conhecido Borja, se manteve no trono apenas três anos,
mas aproveitou-os para enlear a Igreja Católica nas malhas da família Bórgia.
Desde o princípio que Calisto III se distinguiu pelo nepotismo. Começou a preencher
todos os postos administrativos do Vaticano com familiares e a colocá-los nos cargos mais
lucrativos da Igreja. Dois dos seus sobrinhos – um deles Rodrigo – tornaram-se cardeais
em 1456. Estes cargos eram em geral ocupados por homens mais velhos e experientes,
mas os dois sobrinhos do papa ainda não tinham sequer chegado aos 30 anos, o que
alarmou e indignou o Colégio dos Cardeais. Tinham concordado com as nomeações com
base num falso pressuposto, a ideia de que Calisto era idoso e não poderia durar muito, o
que não daria tempo aos seus familiares para consolidarem as suas posições nos cargos.
Contrariando as expectativas, Calisto sobreviveu teimosamente até Rodrigo chegar a vice-
chanceler da Igreja, em 1457, um lugar que em importância ficava apenas abaixo do papa.
Além disso, proporcionou a Rodrigo a oportunidade de enriquecer.
Outro dos sobrinhos do papa, irmão de Alexandre e um dos favoritos de Calisto,
Pedro Luís Bórgia, foi nomeado capitão-geral da Igreja, o que o punha à frente do exército
do papado. Além disso, tornou-se governador de 12 cidades. O seu lugar assegurava-lhe
uma posição particularmente poderosa, já que estas cidades dominavam importantes
bastiões na Toscana e nos domínios do papado, o território do papa, no centro de Itália.


CALISTO APELA À CRUZADA




Os meios usados pelo papa Calisto III para financiar a sua cruzada para libertar
Constantinopla do poder dos turcos otomanos – que tinham conquistado a capital do
Império Bizantino em 1453, algo que nenhum papa que se prezasse poderia tolerar – foram
quase tão chocantes como o seu nepotismo. Os otomanos eram muçulmanos e
Constantinopla, a mais cristã das cidades a seguir a Roma, não podia ser deixada nas
mãos dos infiéis. Uma cruzada era provavelmente a expedição mais dispendiosa em que se
poderia pensar, e para a financiar Calisto vendeu tudo o que tinha, incluindo ouro e prata,
obras de arte, livros valiosos, cargos lucrativos e concessões territoriais. Além disso pôs
«indulgências» à venda – taxas pagas pelos católicos para depois da morte serem
perdoados pelos seus pecados.
A grande promoção papal não levou a nada. Os governantes mais poderosos da
Europa, entre os quais os reis da França e da Alemanha, não estavam interessados noutra
guerra santa. Quando se recusaram a contribuir com tropas e armas para a cruzada do
papa, o projecto morreu. A principal consequência dessa recusa foi Constantinopla nunca
ter sido recuperada para a cristandade. Não é de surpreender portanto que o papa Calisto
III se tenha tornado muito impopular em Roma. A situação era de tal maneira grave que,
depois da sua morte, em 1458, os comandantes militares e os administradores que ele
trouxera de Espanha para o Vaticano se sentiram tão seriamente ameaçados que fugiram
da cidade tomados de pânico.


À ESPERA DO TRONO


Rodrigo Bórgia teve de esperar 34 anos, o tempo que duraram os pontificados de
quatro sucessores do tio, até o trono de São Pedro ficar ao seu alcance. Nessa altura já
ele tinha 61 anos e perdera a boa figura e o aspecto atraente da juventude. No entanto, o
que importava era o que conservara. Em jovem, o papa Pio II, o sucessor do seu tio
Calisto, avisara-o de que o seu gosto por orgias era «inconveniente» e incitara-o a
preocupar-se com a sua reputação «de forma mais prudente». Foi uma perda de tempo
papal. Cerca de quarenta anos mais tarde nada mudara. O gosto de Rodrigo pela
devassidão, a que dava a designação eufemística de «festas de jardim», mantinha-se tão
aceso como sempre. Teve oito filhos de três ou quatro amantes – o último tinha ele 61
anos – e, como ele próprio se descreveu um dia, mantinha-se «robusto, com gosto pela
convivência», com «uma habilidade maravilhosa para as coisas de dinheiro». A riqueza que
esta «habilidade maravilhosa» lhe proporcionou tanto antes como depois da eleição foi
assombrosa. Um dos seus contemporâneos escreveu que...

[...] os seus cargos papais, um grande número de abadias em
Itália e Espanha e os seus três bispados, de Valência, de Portus e
de Cartagena, proporcionam-lhe um imenso rendimento e diz-se
que só o cargo de vice-chanceler lhe dá oito mil florins de ouro. A
sua baixela, as suas pérolas, os seus brocados bordados a seda e
ouro e os seus livros de todas as áreas do saber são numerosos
[...] Nem vale a pena mencionar os seus inúmeros dosséis, os
arreios para os cavalos [...] ou o magnífico guarda-roupa, ou o
vasto número de moedas de ouro na sua posse.

Não era homem que parecesse talhado para alcançar o papado pelo caminho da
santidade. Para ele, o papado era um negócio a explorar com vista ao ganho, que não era
pequeno. Esta é pelo menos a opinião de Francesco Guicciardini, cronista contemporâneo
de Rodrigo Bórgia, que escreveu acerca dele:

Havia nele e em todo o seu esplendor todos os vícios tanto da
carne como do espírito [...] Não havia espírito religioso nem
respeito à palavra dada. Prometia liberalmente todas as coisas,
mas não respeitava senão as promessas que envolviam vantagens
para ele próprio. Não tinha qualquer preocupação com a justiça, já
que no seu tempo Roma era um coio de ladrões e assassinos. No
entanto, já que não havia neste mundo castigo para os seus
pecados, foi próspero até ao último dos seus dias. Em poucas
palavras, foi talvez mais perverso e mais beneficiado pela fortuna
do que qualquer outro papa em muitos anos.

Com um carácter destes, não havia limites para a ambição de Rodrigo Bórgia, que
com o avanço da idade não perdeu nada do seu vigor. O novo papa formulou o plano de
criar uma dinastia com tentáculos nos principais pilares do poder político na Europa.
Começou precisamente com a desonestidade com que tencionava continuar, quando o
conclave se reuniu para escolher um sucessor para o papa Inocêncio VIII, que morrera em
1492.
Já antes da morte de Inocêncio as possibilidades de eleição de Bórgia não pareciam
fortes. O cardeal Giuliano della Rovere, que o detestava, começou a inocular o veneno
lembrando ao papa que Bórgia era um «catalão», como os espanhóis eram conhecidos no
Vaticano, e portanto não era de confiança. Rodrigo Bórgia estava lá e ouviu o insulto.
Defendeu-se vigorosamente e com insultos tão inflamados que os dois rivais por pouco
não se envolveram numa luta de socos e tiveram de ser separados com o argumento de
que insultavam o papa agonizante.



A COMPRA DA ELEIÇÃO


Nessa altura, nos bastidores do Vaticano, as engrenagens já estavam a ser oleadas e
as eleições manipuladas, com os cardeais a tentarem enganar-se uns aos outros para
assegurar a eleição do seu candidato. As suas escolhas não tinham sido feitas com base
na compreensão da vontade de Deus ou dos desígnios do Espírito Santo – os critérios
tradicionais nas eleições papais –, mas de acordo com os desejos dos governantes das
cidades-estado de Itália, todas elas preocupadas com eleger um papa favorável aos seus
interesses.
O dinheiro envolvido era imenso. Por exemplo, o rei Ferrante, de Nápoles, ofereceu
uma fortuna em ouro pelos votos dos cardeais dispostos a eleger um pontífice que
protegesse os interesses napolitanos no Vaticano. Recorreu-se a todos os truques baixos.
Por exemplo, foi espalhada propaganda segundo a qual os milaneses estavam a planear
subjugar toda a Itália, tudo isto com o objectivo de reduzir as possibilidades dos
candidatos milaneses ou apoiados pela cidade de Milão.
Rodrigo Bórgia não esteve envolvido em nenhum destes jogos de poder, nem que
fosse por ser espanhol, o que fazia que todos os outros cardeais desconfiassem
profundamente dele. No entanto, isto acabou por constituir uma vantagem para Bórgia
porque significava que não estava contaminado pelos interesses e pelas maquinações
venais em que a maior parte dos outros cardeais que participaram no conclave estava
envolvida. Rodrigo beneficiava ainda de outra vantagem de que poucos mais podiam
vangloriar-se. Era tão rico que podia gastar verdadeiras fortunas em subornos para
comprar votos no conclave em grande escala.
Os seus principais rivais na sucessão eram o cardeal Ascânio Sforza, de Milão, e
cardeal Giuliano della Rovere, este último apoiado por duzentos mil ducados de ouro do rei
Carlos VIII de França. A república de Génova contribuiu com outros cem mil ducados para
a sua campanha. Nas duas primeiras votações, della Rovere e Sforza ficaram muito perto
um do outro, com Rodrigo Bórgia em terceiro lugar. No entanto, não vinha a grande
distância dos outros dois e o impasse nos dois primeiros lugares aumentava as
possibilidades de vitória de Bórgia.
Já convencido de que estava ao seu alcance ultrapassar della Rovere e Sforza e
alcançar o primeiro lugar, Rodrigo cobriu os rivais de propostas que sabia que eles não
conseguiriam recusar. Entre estas ofertas incluíam-se os bispados em Espanha e em Itália,
imensas terras, abadias, castelos e fortalezas, bem como cargos de governador, cargos da
Igreja, ouro, joias e tesouros de todos os tipos.







O MAIOR DOS SUBORNOS




Rodrigo reservou as tentações mais valiosas para o cardeal Ascânio Sforza, o
candidato de Milão, a quem ofereceu o lugar de vice-chanceler e, como tentação adicional,
o seu fabuloso palácio, nas margens do Tibre em frente ao Vaticano. Havia em Roma
muitas mansões magníficas, mas nenhuma que se igualasse a esta.
Criado para Rodrigo Bórgia ao longo de muitos anos pelos principais artistas do
Renascimento e pelos melhores artesãos do seu tempo, entrava-se nele por um pátio
decorado com elegantes colunas toscanas. Não admira que o cardeal Sforza tenha sido
incapaz de resistir a este lugar magnífico quando ele lhe foi oferecido. Escreveu o seguinte:

O palácio está decorado com esplendor. As paredes do enorme
átrio por onde se entra estão cobertas de tapeçarias excelentes;
as carpetes do chão combinam com os móveis, que incluem um
coxim sumptuoso forrado de seda vermelha com um baldaquino e
um guarda-louça onde está uma enorme colecção de baixela de
ouro e prata dourada. Por detrás havia ainda mais dois quartos,
um forrado de seda fina e atapetado e com outro leito de dossel
coberto de veludo de Alexandria e o outro ainda mais
ornamentado, com um coxim com um tecido bordado a fio de ouro.
Neste quarto, a mesa central estava coberta com uma toalha de
veludo de Alexandria e rodeada por cadeiras muito trabalhadas.

Tudo isto representou talvez o principal suborno alguma vez oferecido a um cardeal, e
Ascânio Sforza conseguiu resistir durante cinco dias antes de por fim ceder. Um
contemporâneo registou que, pouco tempo depois, uma caravana de quatro mulas
carregadas de prata saiu do palácio de Rodrigo e atravessou as ruas de Roma em direcção
ao esplêndido mas comparativamente modesto palácio de Sforza.
Com Sforza afastado da corrida, toda a facção pró-milanesa desviou o seu apoio
para Rodrigo Bórgia. O cardeal Della Rovere, que tinha afirmado publicamente que
qualquer um seria preferível a um Bórgia, foi obrigado a engolir as suas palavras e a votar
em Rodrigo, nem que fosse para manter uma dignidade aparente. Os outros cardeais
meteram tranquilamente ao bolso os seus próprios subornos e votaram da mesma
maneira. Diz-se que o último foi um cardeal de 96 anos tão senil que já mal sabia onde
estava ou o que fazia. Apenas cinco cardeais recusaram as ofertas de Bórgia. Os que as
aceitaram foram, como é evidente, muito mais.
A decisão foi por fim tomada, depois de uma sessão que durou uma noite inteira. Foi
pouco antes da aurora de 11 de Agosto de 1492 que Rodrigo Bórgia, o novo papa
Alexandre VI, vestiu a sotaina branca e apareceu na varanda do primeiro andar do Vaticano
perante a multidão reunida na praça para fazer o anúncio habitual: «Sou o papa e o vigário
de Cristo [...] Abençoo a cidade, abençoo a Itália e abençoo o mundo.»
Em Roma era tradição celebrar a eleição de qualquer novo papa com motins e saques
e a eleição do segundo papa Bórgia não foi excepção. Cerca de duzentas pessoas
morreram nos tumultos antes de o resultado ser anunciado e os sinos soarem por toda a
cidade para marcar o evento. O que foi único nesta eleição foi a surpresa, a raiva e o
medo que provocou.
«Agora ficámos nas mãos de um lobo», observou o cardeal Giovanni di Lorenzo de
Médicis, de Florença, ele próprio um futuro papa, com o nome de Leão X, «talvez o mais
rapace que o mundo algum dia viu. E se não fugirmos ele acabará forçosamente por nos
devorar a todos».



A COROAÇÃO DO PAPA ALEXANDRE VI


A coroação de Alexandre, que teve lugar a 26 de Agosto de 1492, foi de uma tal
extravagância que nem os cortejos de triunfo dos imperadores romanos lhe teriam feito
sombra. A procissão teve mais de três quilómetros e participaram nela dez mil cavaleiros,
toda a corte pontifícia, os embaixadores e os cardeais estrangeiros a cavalo, cada um
deles com um séquito de 12 homens. O papa participou protegido, por um dossel, do sol
inclemente de Agosto. Era seguido por toda a guarda e por toda a corte do Vaticano.
A procissão percorreu lentamente as ruas através das multidões que a aguardavam e
passou por baixo de arcos onde estavam inscritos lemas triunfais, alguns dos quais
francamente blasfemos. Entre muitos outros, anunciavam: «Alexandre, o invencível»,
«Alexandre, o mais magnificente», e «Coroação do grande deus Alexandre». No entanto,
nenhum ultrapassava a mensagem escrita a ouro noutro desses arcos: «Roma foi grande
sob o poder de César, mas é maior sob o de Alexandre. O primeiro era mortal, o segundo é
um deus.»
O calor e a pressão da multidão eram tais que Alexandre desmaiou duas vezes,
embora estas manifestações de fraqueza tenham sido momentâneas. Mal as cerimónias
terminaram, o Bórgia deitou mãos à obra de se afirmar no seu papel de administrador.



UMA ELEIÇÃO VICIADA




Foram vários a indignar-se com a obscenidade da escolha – os de Veneza, os de
Ferrara e os de Mântua – e chegou a falar-se de declarar a escolha viciada e portanto
inválida. A corrupção numa escala verdadeiramente descarada não acontecia pela primeira
vez, como é evidente, mas os cardeais comprados pelo novo papa não denunciaram o
negócio e o próprio papa tomara todas as precauções para não deixar provas que
pudessem ser usadas contra ele. O rei Ferrante, de Nápoles, chorou quando soube que
todo o dinheiro que investira no seu próprio candidato fora em vão.
No entanto, nem tudo era tão mau como o pintavam e alguns dos receios
despertados pela eleição de Alexandre VI não se justificavam. Alexandre podia ser
corrupto, imoral e ímpio, mas o segundo papa Bórgia também tinha qualidades que lhe
permitiam lidar com o mundo ávido, materialista e amante do luxo da Itália renascentista,
que teria desconcertado um papa menos mundano e mais tocado pela santidade. Durante
o pontificado do seu tio, o papa Calisto III, e dos quatro papas que se lhe seguiram,
Rodrigo Bórgia tornara-se um mestre da diplomacia e um bom administrador. Além disso
sabia recorrer à amabilidade em vez da autoridade para alcançar os seus fins. Os
cortesãos ficaram muito surpreendidos com a simpatia e o temperamento amável do novo
pontífice. Notaram em particular a predisposição de Alexandre para resolver os problemas
das viúvas pobres.
O mais surpreendente num homem que se rodeara várias décadas de todo o tipo de
luxos foi o rigor que introduziu na administração do orçamento do Vaticano. Não muito
tempo antes, os banquetes de Bórgia no castelo de Rodrigo em Roma eram o falatório da
cidade. Eram de tal maneira sumptuosos que se dizia que ultrapassavam em luxo os de
qualquer imperador da antiga Roma: os manjares mais delicados eram servidos em baixelas
de ouro, acompanhados pelos melhores vinhos, bebidos em taças trabalhadas com
extravagância. Quando chegou ao Vaticano, o novo papa reduziu as ementas dos
banquetes para um prato por refeição. O corte foi de tal maneira radical que os convidados
começaram a procurar desculpas para não comparecer nos jantares do novo papa.


A FAMÍLIA SECRETA DO SUMO PONTÍFICE




Alexandre também procurou maneiras de esconder a sua vida sexual – e os seus
rebentos – das atenções públicas. Percebeu, ou deu a entender que percebia, que os
filhos podiam ser embaraçosos para um homem que se tornara papa, e na sua coroação
prometeu a Giovanni Boccaccio, embaixador do ducado de Ferrara, que os manteria
afastados do Vaticano e de Roma. Isto não era fácil para um homem tão apegado aos
filhos como era o papa Alexandre. No entanto, apesar do grande amor que lhes tinha,
estava determinado a usá-los bem como aos seus outros familiares para consolidar o seu
poder. Isso explica que Alexandre não tenha cumprido a promessa feita a Boccaccio e ao
fim de apenas cinco dias fez o filho mais velho, César Bórgia, arcebispo de Valência. Isto
fez dele, aos 17 anos, primaz de toda a Espanha. O papa ignorou até o facto de o jovem
César não ter sido sequer ordenado sacerdote. Além disso, Alexandre nomeou outro dos
filhos, Jofré, de 11 anos, para a diocese de Maiorca e fez dele arcediago da Catedral de
Valência.
César e Jofré, juntamente com os seus irmãos Lucrécia e João, eram filhos da
primeira amante de Alexandre, Vannozza dei Cattanei, três vezes casada. Além destes,
teve outros dois filhos, Girolamo e Pier Luigi, e outra filha, Isabella, de diferentes mães, e
Laura, a mais jovem, filha da última amante do papa, Giulia Farnese. Em 1492, Giulia ficou
numa posição embaraçosa, bem como o seu amante, o novo papa. Visto ser uma das
celebridades de Roma, todas as suas idas e vindas eram observadas, de maneira que
Alexandre, como é óbvio, deixou de poder continuar a visitar Giulia no Palácio de Monte
Giordano, onde a tinha instalado. Arranjou uma alternativa mais prática, o Palácio de Santa
Maria in Portico, a apenas meia dúzia de passos da Basílica de São Pedro, no Vaticano.
O único inconveniente era um tal cardeal Zenão, que já estava instalado em Santa
Maria in Portico. Tratava-se contudo de uma dificuldade menor, facilmente ultrapassada
persuadindo o cardeal de que ficaria muito melhor se arrendasse o seu palácio ao papa.
Giulia, que estava grávida, mudou-se para a nova casa com a filha do papa Lucrécia e a
ama desta, Adriana de Mila. Mais tarde, ainda em 1492, Giulia deu à luz Laura. Porém, a
discrição que o papa procurava não era possível. A menina, que se parecia muito com ele,
em breve começou a ser objecto de grande falatório por toda a Europa. Os testemunhos
do tempo falam de Giulia como a «concubina de Alexandre» e um satirista chamou-lhe a
«noiva de Cristo», uma designação que, ao que se conta, a divertia muito.
A família de Alexandre VI, incluindo a família alargada, tinha para o papa um valor
particular porque a cidade dos papas parecia-lhe repleta de inimigos. Entre eles estavam os
cardeais que tinha derrotado na eleição de 1492, os seus apoiantes frustrados e as
grandes famílias de Roma, que receavam um homem forte como Alexandre e teriam
preferido um pontífice que pudessem manipular.
Muitos italianos desconfiavam de Alexandre por se tratar de um «catalão», ou seja,
um estrangeiro perverso que, apesar dos seus longos anos ao serviço do Vaticano, não
poderia fazer boa obra no papado.
A resposta ao alcance de Alexandre foi rodear-se dos seus próprios familiares, os
únicos em quem podia realmente confiar. O nepotismo, como é evidente, estava longe de
ser uma novidade no Vaticano. Calisto III, o tio de Alexandre, fora um especialista na
matéria numa época em que muitos outros pontífices haviam encarado o papado como
uma oportunidade única de enriquecer e elevar o estatuto social das suas famílias, a quem
concediam títulos, rendas e outros privilégios que de outro modo nunca estariam ao seu
alcance. Mesmo assim, Alexandre conseguiu ultrapassá-los a todos. Nas suas mãos, os
mecanismos do papado, uma instituição despótica, uma sociedade secreta e de acesso
exclusivo, acabaram por se assemelhar aos da máfia – violento e explorador, quando
necessário, e movido por dinheiro em proporções fabulosas.
A nomeação de César e Jofré, os jovens filhos de Alexandre, foi apenas o começo.
Alexandre encheu o Sacro Colégio de Bórgias e de familiares de Bórgias. O mais
importante dos novos cardeais era César Bórgia, embora Alexandre tenha sido obrigado a
usar de expedientes para contornar a regra segundo a qual apenas os filhos legítimos
podiam ser eleitos cardeais. César Bórgia era, como é evidente, ilegítimo, mas o pai
«legitimou-o» com uma bula papal em que o declarava filho da sua amante Vannozza dei
Cattanei e do seu primeiro marido, o falecido Giannozzo Rignano.
No entanto, uma outra bula, promulgada no mesmo dia, anulou a primeira e
reconheceu a verdade – que o pai de César era o papa Alexandre. Mas mais do que isso o
papa Alexandre insistiu que todos os outros cardeais do Sacro Colégio estivessem
presentes para saudar César quando este fizesse a sua entrada formal em Roma. Esta
exigência não tinha precedentes, mas o papa foi firme. Como era de prever, o cardeal
Giuliano della Rovere foi quem protestou com mais veemência. Declarou que não estaria
presente nem permitiria que o Sacro Colégio fosse «profanado e violado» desta maneira.
No entanto, não teve alternativa e, como os restantes cardeais, foi obrigado a prestar a
César a homenagem exigida pelo papa.
Os cardeais já estavam roxos de raiva com a ideia de admitir o bastardo do papa nas
suas fileiras quando o novo pontífice criou uma segunda controvérsia, semelhante à
primeira: propôs que Alessandro, o irmão mais novo de Giulia Farnese, também fosse feito
cardeal. A manobra foi considerada uma recompensa pelos favores sexuais de Giulia, o que
fez subir ainda mais a temperatura já de si alta no Sacro Colégio. Contudo, mais uma vez,
o papa Alexandre forçou a nomeação, desta vez com a ameaça de substituir todos os
membros do Colégio por outros cardeais nomeados por ele próprio, entre eles Alessandro.
Além disso, o papa alargou a influência dos Bórgias tanto no interior como fora de
Itália, arranjando casamentos vantajosos para os filhos. O casamento de Jofré com
Sancha de Aragão, neta do rei Ferrante, de Nápoles, criou um laço entre o papa e a
família real que governava ao mesmo tempo Nápoles e Aragão. A irmã de Jofré, Lucrécia
Bórgia, a única filha do papa Alexandre e da sua amante Vannozza dei Cattanei, foi mais
uma vítima do mau hábito de usar venenos associada a tantas histórias da família Bórgia.
Ao que parece, o pai adorava-a, mas isso não o impediu de a casar três vezes tendo em
vista os seus próprios objectivos políticos. O seu primeiro marido, Gio- vanni Sforza, que
casou com Lucrécia quando esta tinha 13 anos, em 1493, devia ter reforçado os laços do
papa com Milão. Porém, Giovanni não se revelou uma ligação satisfatória. Tinha os
interesses franceses mais em conta do que os do sogro e recusou- -se insistentemente a
corresponder aos pedidos de ajuda militar de Alexandre.





O DIVÓRCIO DE LUCRÉCIA


Alexandre, ajudado e encorajado por César, decidiu livrar-se de Giovanni. O genro foi
forçado a confessar algo que era manifestamente falso, e profundamente humilhante para
um homem do Renascimento: o seu casamento com Lucrécia nunca fora consumado
devido à sua própria impotência. O facto de na altura Lucrécia estar grávida foi
convenientemente ignorado. O divórcio que se seguiu permitiu que o papa escolhesse um
segundo marido para Lucrécia, o bem-parecido Afonso de Aragão, duque de Bisceglie. Há
muitos anos que Alexandre tinha ambições sobre Nápoles e Afonso, da família aragonesa
que governava a cidade, parecia o meio ideal de as concretizar.
O casamento teve lugar em 1498, mas, tal como antes dele Giovanni Sforza, Afonso
depressa deixou de ser útil. Um ataque das forças francesas e espanholas pôs fim ao
domínio aragonês sobre Nápoles e tornou o jovem inútil. Em Julho de 1500, provavelmente
com a cumplicidade do papa, César Bórgia mandou um grupo de rufias armados atacarem
Afonso quando este passava a pé pela Praça de São Pedro, no Vaticano. Não
conseguiram matá-lo dessa vez, mas César completou o serviço, ao que tudo indica
pessoalmente, e estrangulou o cunhado quando este convalescia. Lucrécia, viúva aos 20
anos, ficou destroçada, porque amara genuinamente Afonso.
Por fim o papa Alexandre conseguiu o que queria de um genro com o terceiro
casamento arranjado para Lucrécia, com outro Afonso, muito melhor do que o primeiro.
Tratava-se de Afonso d’Este, cuja família governava a cidade de Ferrara. Ao princípio
Afonso d’Este recuou perante a ideia de entrar na família Bórgia, o que não é de
surpreender, com tudo o que corria sobre os seus parentes, que incluía assassínios,
incesto, as mais variadas imoralidades e depravações e quase todos os outros crimes que
se pudesse imaginar. Por fim, deixou-se convencer e os dois casaram-se, a 30 de
Dezembro de 1501. Ao contrário dos dois primeiros maridos de Lucrécia, Afonso e os
D’Este dominavam perfeitamente a sua cidade, que fazia fronteira com o papado a norte, e
pôde por isso contribuir com o seu poder e influência para o domínio de Alexandre e dos
pontífices que lhe sucederam até ao fim do século XVI. Depois disso Ferrara foi absorvida
pelo domínio papal.



O FILHO PREFERIDO


Por muito afecto que dedicasse aos seus outros filhos, a parte de leão do seu amor
paterno ia para o favorito, o seu filho João Bórgia. Em 1488, quatro anos antes de
Alexandre se ter tornado papa, o jovem João, então com 11 anos, recebeu como doação o
ducado de Gandia, o domínio da família em Espanha, deixado em testamento pelo seu
meio-irmão Pier Luigi. César, irmão mais velho de João, ficou furioso por se ver preterido
por um irmão mais novo, conhecido no Vaticano como «o menino mimado» (reputação a
que em geral correspondia). A sua fúria foi tal que jurou matar o irmão, embora, na
qualidade de membro do clero, não pudesse vir a beneficiar das honrarias essencialmente
seculares de João. Contudo, na altura o próprio César tinha apenas 13 anos e a ameaça
não foi levada a sério.
O ducado de Gandia não era o único legado que João recebia de Pier Luigi. Herdou
ainda a sua prometida, Maria Enríquez de Luna. Aos 16 anos, em 1493, João partiu para
Espanha e para o seu ducado, num estilo grandioso que teria sido mais adequado a um
imperador. O pai tinha-o provido generosamente de ouro, joias, prata e uma quantidade de
outras riquezas, que exigiram quatro galeras que as transportassem de Itália para
Espanha. Dizia-se que a família estava a preparar-se para mudar os tesouros do Vaticano
para a Península.
«Diz-se que volta daqui a um ano», conta Gian Lúcido Cattaneo, enviado da cidade-
estado de Mântua, «mas vai deixar lá tudo isto e vai regressar para uma nova colheita».


UM REBENTO DA VELHA CEPA DOS BÓRGIAS




O papa Alexandre também deu ao filho preferido as suas instruções sobre como devia
comportar-se. Disse-lhe que fosse «piedoso» e «temente a Deus», que não ficasse a pé
até altas horas, que evitasse o jogo e não pusesse em causa os rendimentos do seu
ducado. No entanto, segundo se dizia, João mostrou que saía aos seus mal se apanhou a
uma distância segura do pai. Passava as noites em tabernas, a beber, a jogar e em
convívio com prostitutas e, o mais grave de tudo, negligenciava a mulher, Maria. Dizia- -se
mesmo que andava tão ocupado com as suas orgias de bebida e depravação que não
arranjou tempo para consumar o matrimónio. Esta parte em breve foi desmentida, uma vez
que Maria Enríquez engravidou pouco tempo depois do casamento, e João, pelo menos,
negou os restantes rumores, que considerou «invenções de pessoas com pouca cabeça
ou em estado de embriaguez».
Porém, não era preciso muito cérebro nem muita bebida para reconhecer que o jovem
duque de Gandia herdara os gostos extravagantes do pai. Uma das coisas relativas a
Espanha que o filho do papa não percebera foi que a opulência e a exibição exagerada não
eram bem-vindas num país com tendências cristãs ascéticas e desdém pelos esplendores e
pelos excessos da Itália renascentista. João, como é evidente, nunca conhecera nada a
não ser o luxo e as suas manifestações mais extravagantes, por isso pareceu-lhe natural
criar um palácio em Gandia com os móveis mais elegantes e a decoração mais
esplendorosa. Quando começaram a chegar aos ouvidos de Alexandre as primeiras queixas
relativas ao comportamento do filho, escreveu-lhe uma carta cheia de fúria onde lhe exigia
que mostrasse mais respeito pela sensibilidade local.
No entanto, um pouco mais tarde, em 1497, tornou-se claro que João criara
inimizades com que seria preciso lidar com meios mais firmes do que uma simples
admoestação. Apesar dos seus protestos, tratava-se de um Bórgia, com um modo de vida
decadente e uma arrogância desmedida. «Um jovem muito perverso», descreveu-o um
contemporâneo, «cheio de falsas ideias de grandeza e maus pensamentos, altivo, cruel e
pouco razoável.»
No fim do verão de 1496, João regressou a Roma, onde o pai o nomeou capitão- -
geral da Igreja. Tratava-se de um lugar de grande prestígio, que fazia dele responsável pelo
exército papal, apesar de não ter experiência militar, treino ou inclinação para as funções.
Havia nobres muito mais qualificados do que ele em Roma, como o famoso condottiere
Guidobaldo da Montefeltre, duque de Urbino, para falar apenas de um. Como é natural,
ficaram furiosos por terem sido preteridos por um jovem mimado e insensato. Além disso,
as suas piores suspeitas em breve se confirmaram. A primeira tarefa de que João foi
incumbido foi esmagar a poderosa mas rebelde família Orsini, apoiada por uma forte
presença francesa. Ao fim de dezenas de tentativas das tropas papais, em que muitos
soldados foram inutilmente sacrificados por incapacidade de João, os Orsini foram por fim
subjugados e os seus apoiantes expulsos.
O herói do momento devia ter sido Gonçalo de Córdova, um aristocrata e um general
de nomeada, que em Espanha, de onde era originário, era conhecido como El Gran
Capitán. Foi Córdova, nominalmente o «lugar-tenente» de João, que congeminou o ataque
final vitorioso das «guerras dos Orsini». No entanto, o papa Alexandre queria que o seu
amado João ficasse com todos os louros e deu-lhe o lugar de honra no banquete de
celebração. Córdova, furioso, recusou o lugar que lhe atribuíram e abandonou o banquete.
O papa, cego por um amor excessivo pelo filho preferido, convenceu-se a si mesmo de que
esta atitude se devia à inveja e congeminou novas honras para João. Uma das suas ideias
era fazer João rei de Nápoles depois da morte do rei Ferrante II, em 1496. Só quando as
ameaças do rei Fernando de Aragão lhe chegaram aos ouvidos Alexandre recuou.


MAIS HONRARIAS PARA JOÃO




Este favorecimento de João ainda não satisfazia todas as ambições de Alexandre
nesta época. Na realidade, planeava usar o filho para expandir o poder dos Bórgias por
toda a Itália. Enquanto papa, Alexandre já controlava os domínios do papado, que
ocupavam uma larga parcela da Itália central. Embora os seus planos para absorver
Nápoles tivessem sido frustrados, conseguiu criar um novo território de dimensões
consideráveis para João com as cidades pertencentes ao papa que ficavam no interior do
território napolitano – Benevento, Terracina e Pontecorvo. Quando esta decisão foi
anunciada, em 1497, Roma foi varrida por uma vaga de protestos. Os inimigos de
Alexandre não tiveram dificuldade em perceber o seu significado. Tratava-se, estavam
convencidos, de um passo preliminar para absorver o reino de Nápoles por meios mais
dissimulados. Havia contudo um método terrível pelo qual se podia pôr fim a esta
expansão, e a quaisquer outras que o papa tivesse em mente, que era o assassínio.


0 ASSASSÍNIO DE JOÃO BÓRGIA




A 14 de Junho de 1497, ao fim do dia, a mãe de João, Vannozza, ofereceu um jantar
especial na sua casa de campo nos arredores de Roma para celebrar as honrarias de que o
seu filho estava a ser objecto. O irmão mais velho de João, César Bórgia, estava presente,
bem como Jofré, a mulher deste, Sancha, e um primo de ambos, o cardeal João Bórgia-
Lanzel. Por vezes, os arredores da cidade à noite eram perigosos para as pessoas ricas,
que podiam ser atacadas por assaltantes de estrada, de maneira que o grupo dividiu-se e
João seguiu na companhia de César e de um grupo de amigos com os seus criados.
Algures a meio do caminho, João separou-se dos outros e seguiu com apenas dois
companheiros em direcção ao Castel Sant’Angelo. João nunca chegou ao palácio e não
voltou a ser visto com vida.
Quando se deu pela sua falta, foram mandados vários grupos de homens, cerca de
trezentos, para o procurar ao longo do caminho por onde seguira. Não descobriram nada.
O papa Alexandre deu ordem aos guardas espanhóis de que passassem a cidade de Roma
a pente fino. Encontraram o criado que o acompanhara, mas tinha sido espancado com tal
violência que estava às portas da morte e não pôde dizer-lhes nada sobre o destino do seu
senhor. Encontraram ainda o cavalo de João, cujos arreios mostravam vestígios de uma
luta violenta. Mas nem assim foram descobertos traços de João, de maneira que os
guardas de Bórgia começaram a intimidar os vizinhos para tentar descobrir pistas sobre o
seu paradeiro. Os membros da família Orsini, recentemente derrotada pelo papa e pelo seu
rebento, perceberam que seriam os principais suspeitos e barricaram-se nas suas casas
para evitar os rufias do papa.


ASSASSINOS A SOLDO


Por fim conseguiram localizar uma testemunha. Giorgio Schiavi, um comerciante de
madeira que descarregava a sua mercadoria numa ilha no meio do rio Tibre, contou que
por volta das duas da manhã vira dois homens atirar furtiva mente um corpo ao rio. Os
homens do papa dragaram o rio toda a noite e toda a manhã do dia seguinte, até que por
volta do meio-dia um corpo vestido com brocados ricos e com a insígnia de capitão-geral
da Igreja acabou por ser descoberto. Era João. Tinha sido brutalmente esfaqueado, pelo
menos oito vezes, e depois fora degolado. Tinha as mãos atadas e uma pedra pesada fora
atada ao seu pescoço para evitar que viesse ao de cima. O crime tinha todas as marcas de
um assassínio por encomenda.
O papa Alexandre ficou de rastos quando soube como o filho fora morto. Diz-se que
deu um grito de animal ferido quando viu o corpo mutilado e enlameado de João. Johann
Burchard, mestre de cerimónias do papa Alexandre, escreveu no seu diário:

O papa, quando ouviu dizer que o duque tinha sido morto e atirado
ao rio como lixo, ficou num paroxismo de sofrimento, e a dor e a
amargura do seu coração levaram- -no a fechar-se no seu quarto e
a chorar amargamente.



ADORE A CULPA


Alexandre recusou a entrada a quem quer que fosse nos seus aposentos durante
várias horas, e não comeu nem bebeu mais de três dias. No meio de tanto sofrimento,
pôs-se a imaginar que João morrera por causa dos seus próprios excessos pecaminosos.
Disse então:

Deus fez isto talvez por causa de algum pecado nosso e não
porque ele merecesse uma morte tão cruel [...] Estamos por isso
determinados a procurar reformar-nos, a nós bem como à Igreja.
Estamos determinados a renunciar completamente ao nepotismo.
Começaremos por isso por nós próprios e continuaremos ao longo
de todos os graus da Igreja até todo o trabalho ter sido
completado.

Era o sofrimento a falar, como é óbvio. Alexandre era um pecador impenitente,
demasiado habituado a todo o tipo de excessos e de prazeres para conseguir converter--
se de um dia para o outro da maneira que parece sugerir. Pelo contrário, regressou aos
seus hábitos de imoralidade e às suas intrigas políticas de sempre. Os seus cardeais e
outros clérigos não se importavam por aí além, já que não tinham muita vontade de
renunciar aos seus próprios prazeres.
João foi sepultado na capela da família algumas horas depois de ter sido encontrado.
O seu cortejo fúnebre foi acompanhado por 120 homens com tochas. Quando a procissão
se aproximava do lugar no rio Tibre onde o corpo fora encontrado, os homens do exército
privado dos Bórgias desembainharam as espadas e juraram vingança contra os
responsáveis pelo assassínio, fossem eles quem fossem. Apesar de ter sido oferecida uma
recompensa generosa, o assassino nunca foi descoberto, embora não tenham faltado
suspeitos. Qualquer das famílias nobres de Roma, privadas por João e pelo pai das honras
que consideravam serem-lhe devidas, podia ter estado por trás do crime. O cardeal
Giuliano della Rovere, o grande inimigo dos Bórgias, com ligações à família Orsini, podia
ter estado por trás desta morte.



A INVESTIGAÇÃO É SUSPENSA


Outro dos possíveis culpados podia estar mais próximo da família da vítima, na
realidade demasiado, para que o mal-estar pudesse ser evitado. O papa Alexandre dera
ordens de que se começasse uma investigação ao sucedido pouco depois do assassínio,
mas esta foi interrompida apenas três semanas depois. Nunca foi reaberta. Tudo isto
alimentou as especulações que rodearam a morte de João. Corria que a investigação já
chegara ao culpado, mas revelara um assassino cujo nome o papa não queria ver
divulgado. O candidato mais provável, de acordo com estes rumores, era o seu filho César,
uma das últimas pessoas a verem João com vida. A jovem viúva de João, Maria Enríquez
de Luna, e a sua família pareciam certos de que fora César que assassinara o irmão.
Estavam convencidos de que, nove anos depois de ter jurado fazê-lo, cumprira a sua
promessa, e tudo indica que havia pistas que confirmavam esta teoria.
Para começar, a natureza implacável e rapace de César, bem como a sua inclinação
para a intriga, já eram bem conhecidas. O assassínio, dizia-se, estava dentro do seu raio
de acção. Além disso, César tinha tudo a ganhar com a morte do irmão. Desde 1488 que
César Bórgia cobiçava o ducado de Gandia e todas as outras honrarias e riquezas que o
pai concedera a João. Com o irmão afastado do caminho, chegara a sua oportunidade,
que começou por ser posta em causa pelos protestos do pai. Alexandre tivera grandes
dificuldades em fazer entrar César no Colégio de Cardeais e estava convencido de que isso
podia ser um trampolim para um dia o filho chegar a papa. No entanto, César era um
homem do seu tempo, e em particular um homem de um Renascimento sensual. Estava
mais interessado em caçar do que em rezar, preferia a riqueza e as mulheres à integridade
espiritual e as terras e os domínios a uma vida de humildade e sacrifício.
Por fim César conseguiu o que queria, nem que fosse por Jofré, o irmão que o papa
Alexandre planeava pôr no lugar de João, ser demasiado fraco e inseguro para poder
enfrentar os desafios que isso envolveria. César Bórgia, um chefe militar inspirador e um
estratego de primeira, era um homem forte e vigoroso, o que era necessário para
concretizar as ambições do pai. Foi por isso que, embora com relutância, Alexandre
autorizou o filho a resignar aos votos, em 1498. Foi o primeiro cardeal que alguma vez o
fez.


CÉSAR SUCEDE A JOÃO




Os objectivos seculares de César estavam por fim ao seu alcance. Foi nomeado
capitão-geral da Igreja, no lugar do irmão, e em 1499 casou-se, com Charlotte d’Albray, de
16 anos, a nora ideal para um papa que aspirava a alargar o seu poder político. Charlotte,
irmã do rei João III de Navarra, pertencia a uma família da Gasconha aparentada com a
família real de França e, de acordo com os enviados italianos à corte francesa, era «de
uma beleza inacreditável».
No entanto, os dois meses de lua de mel que o antigo cardeal e a sua mulher de
beleza inacreditável passaram num castelo no ducado de Valentinois, criado para César em
1498 pelo papa Alexandre, foi todo o tempo que alguma vez passaram juntos. Depois de
Julho de 1499, altura em que César deixou o castelo para partir para a guerra, não voltou
a ver Charlotte ou a filha, Luísa, que nasceu na primavera de 1500. O filho do papa
começou por combater ao lado do seu aliado o rei Luís XII de França, no cerco e na
captura de Milão e depois à cabeça do exército papal contra a rebelião dos senhores
feudais da Romanha, adjacente aos domínios do papado no Nordeste de Itália. O
pagamento do tributo ao papa estava atrasado e Alexandre enviou César para que este
ensinasse uma lição aos senhores.
Ambas as campanhas foram muito bem sucedidas e no ano do Jubileu de 1500 César
e o pai organizaram em Roma a maior celebração de sempre dos Bórgias. Incluiu, para
começar, um espectáculo sanguinolento inspirado nos jogos de gladiadores da antiga
Roma, em que César, resplandecente no seu cavalo, cortou a cabeça a seis touros na
Praça de São Pedro, sob os aplausos da multidão. De acordo com os rumores e as
histórias que então circulavam em Roma, e confirmadas pelos diários de Johann Burchard,
as celebrações prolongaram-se com uma festa de uma depravação que excedeu tudo o
que os Bórgias já haviam feito até ao momento.


ESPECTÁCULO DE CABARÉ


Uma das histórias refere um jantar oferecido por César Bórgia no fim de Outubro de
1501 em que cinquenta cortesãs dançaram nuas com cinquenta criados. Seguiu-se uma
orgia em que quem tinha mais vezes relações com as prostitutas ou mostrava o «melhor
desempenho» recebia prémios. Eram os espectadores, entre os quais se incluíam
Alexandre, César e Lucrécia, que escolhiam os vencedores. Os diplomatas estrangeiros em
Roma, que transmitiam regularmente as histórias mais suculentas dos Bórgias aos seus
empregadores, espalharam a notícia de que os aposentos do papa tinham sido
transformados num bordel privado onde todas as noites pelo menos 25 mulheres
proporcionavam distração em festas frequentadas por Alexandre, César e um grande
número de cardeais. O pontífice tinha aumentado o número de cardeais do Sacro Colégio.
O privilégio de obter cada um destes lugares foi pago por mil ducados.
O dinheiro seguiu directamente para os bolsos do papa e de César, ambos já
suficientemente ricos para fazer o rei Creso da Lídia empalidecer de inveja. É provável que
um dos que mais contribuíram para espalhar rumores sobre os Bórgias tenha sido um dos
seus maiores inimigos, um tal barão Sílvio Savelli, cujos domínios haviam sido confiscados
pelo papa. Savelli odiava Alexandre com um ódio selvagem. Depois de receber uma carta
anónima de Nápoles repleta de pormenores escandalosos sobre o pontífice e a sua família,
mandou-a traduzir em todas as línguas europeias e fê-la circular pelas cortes reais do
continente. Na carta o papa Alexandre era referido como «este monstro» e «esta besta
infame». E continuava:

Quem não ficará chocado ao ouvir as histórias da lascívia
monstruosa abertamente exibida no Vaticano, desafiando Deus e a
decência? Quem não se sente repugnado pela depravação, pelo
incesto, pela obscenidade dos filhos do papa [...] pelas bordas de
cortesãs na Basílica de São Pedro? Não há casa de má fama nem
bordel que não seja mais respeitável!

Embora a carta exagerasse com a finalidade de denegrir ao máximo os Bórgias, estas
acusações impressionaram muitos outros inimigos da família em Roma. Durante anos a fio,
cardeais, clérigos e nobres tinham vivido esmagados pela ambição do papa Alexandre, pelo
seu nepotismo descarado, pela sua avidez de terras e domínios, pela presença no Vaticano
das suas amantes e dos seus bastardos, bem como pelo insulto que o seu comportamento
depravado representava para a Igreja. Mas só em 1503, quando Alexandre morreu,
provavelmente de malária, puderam por fim retribuir. César também contraiu a doença,
espalhada na cidade por verdadeiras nuvens de mosquitos, mas era mais jovem e saudável
e sobreviveu.
Apesar dos esforços dos seus físicos, ou talvez por causa deles, por exemplo do
hábito de sangrarem os doentes com regularidade, o papa morreu ao fim de quase uma
semana, a 18 de Agosto. A notícia foi mantida em segredo durante vários dias. Mesmo
assim, os membros da família Bórgia que continuavam no Vaticano foram dominados pelo
pânico, pois sabiam, tal como César, que sem o papa deixara de haver qualquer garantia
de segurança para eles. Alguns fugiram imediatamente de Roma, outros ficaram para trás
mas apenas o tempo necessário para saquear o tesouro de Alexandre e os aposentos
papais, de onde retiraram todo o ouro, a prata, as joias e as taças de ouro e esmeralda,
uma estátua de ouro de um gato com dois diamantes no lugar dos olhos e o manto de São
Pedro, coberto de pedras preciosas. O produto do saque foi escondido no Castel
Sant’Angelo e só depois a morte do papa foi anunciada. A morte e o tempo quente de
Agosto tinham deformado de tal maneira o corpo de Alexandre que era horrível de se ver.
Johann Burchard conta:

O seu rosto estava alterado, da cor das amoras ou do tecido mais
negro, coberto de pontos de um preto azulado. O nariz estava
inchado, a boca distendida no ponto onde a língua estava dobrada
e os lábios pareciam preencher tudo.

Mesmo depois de o corpo grotescamente inchado ter sido metido à força no caixão,
ninguém quis aproximar-se dele ou tocar-lhe. Correra o rumor de que Alexandre fizera um
pacto com o Diabo para ser eleito papa, em 1492, e que os demónios tinham aparecido no
preciso momento em que ele morreu. Pode ter sido uma das razões por que os padres da
Basílica de São Pedro recusaram o corpo do papa e não quiseram dar- -lhe sepultura.
Outros sentiram repugnância pelo estado do corpo e também pelo mau nome que o Bórgia
dera à Igreja Católica. Foram precisas ameaças sérias para fazer os padres ceder e
cumprir com os seus deveres funerários.



IGREJA NÃO PÕE LUTO




A má reputação dos Bórgias também manteve a maior parte dos prelados do Vaticano
ausentes da missa de réquiem, em geral celebrada em honra dos papas falecidos. Apenas
quatro apareceram. Francesco Piccolomini, que lhe sucedeu como Pio III, proibiu que se
celebrasse outra missa pelo repouso da alma de Alexandre. «É blasfemo», proclamou Pio
III, «rezar pelos condenados.» Alexandre acabou por ser sepultado na igreja espanhola de
Santa Maria di Monserrato, em Roma.
O «império» dos Bórgias, que exigira a Alexandre tantos anos, tantas intrigas e tanto
esforço, desmoronou-se pouco depois da sua morte. Enquanto o pai foi vivo, Lucrécia
gozara de uma certa importância como ligação com o pontífice, usada por embaixadores,
enviados e outros esperançados de obter favores do seu pai. Adriana de Mila, prima de
Alexandre, desempenhava uma função semelhante. Como escreveu um contemporâneo
acerca da casa que as duas partilhavam em Roma, «a maior parte dos que procuram os
favores do papa cruzam aquelas portas». Tudo isso teve um fim abrupto com a morte do
segundo papa Bórgia.


CÉSAR E LUCRÉCIA: O FIM




O poder de César desvaneceu-se com a mesma rapidez. Os seus velhos inimigos – a
família Orsini, Guidobaldo da Montefeltre, o de vez em quando cunhado Giovanni Sforza,
os senhores da Romanha – vieram, todos eles, reclamar os direitos aos domínios que lhes
haviam sido retirados. Em 1503, o maior e mais persistente dos inimigos de Alexandre,
Giuliano della Rovere, tornou-se papa com o nome de Júlio II e deitou imediatamente mãos
à obra de impedir que os Bórgias mantivessem algum poder nos domínios do papado.
Capturado e encarcerado por Gonçalo de Córdova, outro inimigo vingativo com inúmeras
razões para odiar os Bórgias, César conseguiu escapar e acabou a sua vida, em 1507,
como humilde mercenário às ordens do rei João III de Navarra, seu cunhado. Lucrécia, a
irmã, morreu em 1519 de complicações causadas pela sua oitava gravidez.
Com Lucrécia, o último Bórgia com algum poder saiu de cena, mas nem ela nem o pai
ou o irmão foram algum dia esquecidos. O nepotismo, a corrupção, a depravação, o
assassínio e os negócios escuros de quase todos os tipos continuam a ser recordados em
ligação com o seu nome, até hoje sinónimo de infâmia.
































Capítulo

VI





















«E no entanto ela move-se», terá dito Galileu depois de ser obrigado
pela Inquisição a retratar as suas teorias heliocêntricas.
Os seus julgamentos foram revogados 350 anos mais tarde, em 1992.










PERSEGUIÇÃO A GALILEU


O acontecimento mais determinante da vida de Galileu ocorreu 21 anos antes do seu
nascimento em Pisa, em 1564. De Revolutionibus Orbiunt Coelestium (Acerca das
Revoluções das Esferas Celestes), do matemático, astrónomo e clérigo polaco Nicolau
Copérnico, foi publicado em 1543, o ano da morte do seu autor.
Em pouco tempo as implicações do livro deflagraram como dinamite, tanto na história
da ciência como na história da Igreja. O livro de Copérnico contradizia quase tudo aquilo
em que a Igreja acreditava – e ensinava – acerca dos céus e da maneira como a Terra, os
planetas e o Sol se comportavam.
As ideias defendidas pela Igreja derivavam das teorias de dois astrónomos da Grécia
Antiga, Aristóteles, que viveu no século IV a.C., e Ptolomeu, que viveu no século II d.C. Na
Igreja medieval, as suas teorias eram encaradas como verdades imutáveis confirmadas pela
Sagrada Escritura. De acordo com os aristotélicos, como eram conhecidos os seguidores
do filósofo, estas verdades eram inegáveis e desafiá-las era uma heresia. A teoria
geocêntrica da antiguidade defendia que a Terra estava imóvel no centro do universo,
enquanto o Sol girava à sua volta. Uma das «provas» a favor desta teoria geocêntrica
encontrava-se na Bíblia, onde, no Salmo 104, versículo 5, é dito: «Fundaste a terra sobre
bases sólidas, inabaláveis para sempre.»
A teoria heliocêntrica (centrada no Sol) de Copérnico pôs em causa esta afirmação ao
defender que era o Sol que se encontrava no centro do universo, sendo circundado pela
Terra e pelos outros planetas do sistema solar, na altura conhecidos como «estrelas
errantes». O Sol até podia parecer cruzar o céu durante o dia, mas isto, dizia Copérnico,
não passava de uma ilusão óptica: o movimento aparente resultava da deslocação da
Terra ao longo da sua órbita.
Galileu, com grave prejuízo pessoal, tornou-se seguidor de Copérnico, convenceu--se
de que aquilo que o De Revolutionibus dizia era verdade e de que a Igreja não tinha razão.
No tempo de Galileu, pensar estas coisas era muito perigoso. Ao apoiar e mais tarde
divulgar ideias que desafiavam os ensinamentos básicos da Igreja, Copérnico e os seus
adeptos ficavam à mercê das acusações de heresia. A Igreja e o papado podiam ser
implacáveis no seu esforço de suprimir qualquer opinião acerca de qualquer assunto que se
afastasse daquilo que consideravam a verdade. Esta atitude endurecera de forma nítida a
partir de meados do século XVI, quando os dissidentes protestantes confrontaram a Igreja
Católica com a maior ameaça que algum dia tivera de enfrentar.
Pode ter sido esta a razão de Copérnico ter tido a precaução de lisonjear o papa
Paulo III dedicando-lhe a sua obra e de não a ter publicado em vida. A decisão revelou- -se
clarividente. A teoria heliocêntrica escapou à condenação religiosa apenas nos três anos
que se seguiram à morte de Copérnico, até 1546, altura em que um padre dominicano,
Giovanni Maria Tolosani, denunciou as suas ideias e reafirmou com firmeza a verdade
inquestionável das Escrituras. Ao princípio, as críticas não foram muito mais longe, mas
por volta de 1609, quando se deram as primeiras iniciativas oficiais para suprimir o trabalho
de Copérnico, Galileu Galilei foi o primeiro a surgir na linha de fogo.


GALILEU DESAFIA O PAPA




Galileu argumentava contra a linha oficial do papa em matéria científica e astronómica
desde os seus vinte e poucos anos e desde que começou a dar aulas de Matemática em
Bolonha, em 1588. No ano seguinte, mudou-se para a Universidade de Pisa. A matemática
que se supunha que Galileu ensinaria aos alunos era, como é evidente, a que fora
transmitida desde a Antiguidade. Em vez disso, começou a ensinar que as teorias de
Aristóteles e Ptolomeu nem sempre estavam correctas. Para começar, Galileu desafiou as
ideias de Aristóteles acerca da queda dos objectos. Os objectos pesados, dizia, não caíam
mais depressa do que os leves, como defendia o filósofo. Galileu provou que assim era
deixando cair duas balas de canhão de tamanho diferente do alto da Torre de Pisa. As
balas chegaram ao chão quase, embora não exactamente, ao mesmo tempo. Apesar da
pequena discrepância, Galileu insistiu que as ideias de Aristóteles haviam sido desmentidas.
Em Pisa, Galileu era considerado um novato arrogante, por estar empenhado em
demonstrar que os conceitos da ciência aprovados pela Igreja estavam errados. Tornou--
se tão impopular que, em 1592, partiu para outra universidade, a de Pádua, na rica e
poderosa República de Veneza. A mudança de cenário revelou-se benéfica. A República de
Veneza tinha uma atitude muito mais tolerante com os dissidentes do que as outras
cidades-estado italianas e sobretudo muitíssimo mais do que Roma, onde qualquer desvio
era esmagado com métodos policiais. Em Pádua, Galileu convivia com venezianos
importantes, com quem pôde discutir as suas ideias com muito maior liberdade do que a
sua situação em Pisa permitira. Nesta atmosfera intelectual mais saudável, Galileu
explorou a ciência da balística e inventou o termoscópio, uma forma primitiva de
termómetro, e o compasso geométrico, uma espécie de calculadora de bolso.


A SUPERNOVA DO GALILEU


Em 1604, Galileu observou uma supernova, uma estrela que explodira, o que o levou
a pôr em causa a ideia de Aristóteles de que os céus vistos da Terra eram imutáveis. A
existência de uma supernova, pensava Galileu, era uma prova para além de qualquer
dúvida de que esta ideia era falsa. Para começar, mostrava que o tempo de vida das
estrelas era finito.
Uma das razões que podem levar à formação de uma supernova é o núcleo que
alimenta de energia uma estrela envelhecida esgotar-se. Quando isso acontece, essa
estrela transforma-se numa estrela de neutrões ou num buraco negro, aquece até
desencadear uma explosão e aumenta muito de tamanho. Nessa fase pode iluminar todo o
céu com uma radiação tremenda, depois do que permanece visível durante várias semanas
ou meses antes de começar a diluir-se na escuridão circundante.
Galileu teve a felicidade de observar um destes fenómenos espectaculares, que
ocorrem em média duas vezes em cada cem anos, e de estar no lugar certo no momento
certo, já que para observar uma supernova em geral é preciso manter uma vigilância
prolongada dos céus nocturnos.
Um dos aspectos mais curiosos deste acontecimento é que a supernova observada
por Galileu deve ter explodido milhares ou mesmo milhões de anos antes de ter sido vista:
o universo é tão inimaginavelmente vasto que a luz resultante da explosão pode ter levado
todo esse tempo a deslocar-se no espaço até ficar à vista da Terra. Nesse momento,
como é evidente, a própria estrela já estava morta há muito.




A INVENÇÃO DO TELESCÓPIO


Depois, em 1609, Galileu ouviu falar da luneta, mais tarde rebaptizada com o nome de
telescópio, uma invenção recente de um especialista alemão em óptica, Hans Lipperhey.
Galileu reconheceu de imediato no telescópio um passo em frente na óptica que poderia
revolucionar a prática da astronomia. Decidiu construir o seu próprio telescópio, muito
mais poderoso do que o original, de Lipperhey, capaz de aumentar duas ou três vezes
mais. Ainda mais tarde, Galileu veio a construir um aparelho capaz de ampliar 32 vezes os
objectos, que considerava poder mostrar-lhe a verdadeira magnificência dos céus e abrir-
lhe caminho a novas descobertas. Numa noite gelada de Janeiro de 1610, Galileu
envolveu-se num manto grosso e subiu à sala mais alta da sua casa de Pádua, onde se
manteve até ao amanhecer a olhar para o céu. Fez o mesmo na noite seguinte e na outra,
até que ficou com um mês completo de observações. Este registo foi uma verdadeira
revelação. Para quase todos os pontos para onde olhava, Galileu chegava à conclusão de
que o céu era fundamentalmente diferente do que diziam Aristóteles, Ptolomeu e as ideias
populares resultantes das suas teorias. A Lua não era lisa, como Aristóteles ensinara, mas
sim rugosa e salpicada de crateras. A Terra não era o único planeta com satélites: Galileu
observou quatro na órbita do planeta Júpiter. Além disso obteve provas de que Vénus, tal
como a Terra, se deslocava na órbita do Sol.


0 MENSAGEIRO DAS ESTRELAS




Galileu escreveu um pequeno livro, O Mensageiro das Estrelas, acerca de Júpiter e
dos seus satélites recém-descobertos. Foi um êxito imediato. As 550 cópias impressas
esgotaram-se na própria semana em que foram postas à venda, em Março de 1610. O livro
criou uma grande excitação, já que Galileu revelava uma área nova e vasta do
conhecimento e da compreensão do universo. Um dos admiradores do cientista nesta
época era o cardeal Maffeo Barberini, de uma família rica, influente e poderosa de Roma e
Florença. Barberini conheceu pessoalmente Galileu em 1611 e apreciou o seu estilo
vigoroso e a sua capacidade de argumentar. A sua admiração era tal que uma vez escreveu
a Galileu: «Rezo a Deus para que vos proteja, porque homens com o vosso valor merecem
viver vidas longas para bem de todos.»
No entanto, Barberini era um homem do mundo e demasiado astuto para não
perceber que estava perante um dissidente. Além disso, mantinha-se a par da direcção que
a investigação de Galileu estava a seguir. A certa altura, estava certo, teria de o convencer
a não levar as suas descobertas tão longe, e a evitar território onde pudesse encontrar a
Inquisição alerta à sua espera.
Em parte, a cautela do cardeal foi desencadeada por uma mudança de simpatias nos
círculos papais em relação ao valor e à veracidade do De Revolutionibus. A publicação do
livro revolucionário de Copérnico fora favorecida por homens da Igreja menos
conservadores, que haviam pressionado o papa Paulo III para que este aceitasse a
dedicatória do autor. Mais tarde, Paulo III, que foi papa entre 1534 e 1549, e outro
pontífice, Gregório XIII, eleito em 1572, deram a sua aprovação a algumas das doutrinas
incluídas no De Revolutionibus.
No entanto, Paulo III não estava muito satisfeito com a ideia de sancionar as ideias
de Copérnico. Em 1542 reactivou a Inquisição por razões que nada tiveram que ver com o
astrónomo polaco e as suas teorias: o seu objectivo era suprimir os protestantes, que
estavam a dividir a Igreja com a sua concepção revolucionária do cristianismo. Contudo, o
tempo viria a provar que a nova Inquisição romana poderia ser usada para reforçar
quaisquer outras acusações de heresia que os papas, presentes ou futuros, pudessem
querer fazer.
Depois de 1614, a Inquisição foi usada precisamente com essa finalidade quando um
sacerdote, o padre Tommaso Caccini, denunciou Galileu e as suas opiniões «heréticas»
relativas ao movimento da Terra, expressas em O Mensageiro das Estrelas. O alcance do
livro e das observações que ele referia era claro para todos: tinha implícita a ideia de que a
Igreja fora responsável por espalhar erros e, em vez de revelar a verdade divina aos fiéis,
andara a escondê-la.
Por esta altura já Galileu conseguira um certo apoio às suas ideias favoráveis a
Copérnico nas universidades, entre os intelectuais e até na Igreja. Esta popularidade,
combinada com os perigos representados pelo protestantismo, fazia os ensinamentos de
Galileu parecerem ainda mais perigosos.
A posição do físico não foi melhorada pela publicação de um panfleto escrito por um
dos seus conhecidos, o carmelita Paolo Antonio Foscarini, em que defendia Copér- nico e
a teoria heliocêntrica. Foscarini tentou conciliar os dois lados opostos e afirmou que era
possível justificar Copérnico com citações da Bíblia. O cardeal Roberto Bellarmino, jesuíta
e membro do clube restritíssimo dos Doutores da Igreja, em breve notou o expediente de
Foscarini e escreveu-lhe a repreendê-lo em termos severos:

Querer afirmar que na realidade o Sol está no centro do mundo e
apenas gira sobre si próprio, sem se deslocar de oriente para
ocidente, e que a Terra [...] gira com grande velocidade em volta
do Sol [...] é por si mesmo muito perigoso, com grande
probabilidade de irritar todos os filósofos e teólogos escolásticos,
mas também de prejudicar a Santa Fé por desmentir as Sagradas
Escrituras.

O livro de Foscarini foi considerado de tal maneira herético e sedicioso que não
tardou a ser incluído no Índex dos Livros Proibidos. O caso Foscarini, que provocou um
escândalo nos círculos papais, desencadeou um sentimento anti-coperniano de enorme
virulência, que ainda fervia quando Galileu chegou a Roma. Nesta atmosfera não havia
grandes probabilidades de Galileu conseguir que as suas ideias fossem julgadas sem
preconceitos. Apesar disso, ainda recebeu um aviso do seu amigo cardeal Barberini. O
cardeal não falou pessoalmente com Galileu. Mandou-lhe um secretário, Giovanni Ciampoli,
que idolatrava o astrónomo, dizer-lhe:

O senhor cardeal Barberini, que, como sabe por experiência,
sempre admirou as suas qualidades, disse-me ontem à noite que
apreciaria que tivesse mais cuidado nesta questão, que evitasse ir
para além dos argumentos de Ptolomeu ou de Copérnico e por fim
que não fosse além dos limites da física ou da matemática, porque
os teólogos defendem que a interpretação das Escrituras é uma
prerrogativa deles.

O cardeal Roberto Bellarmino, um teólogo eminente, tratou Galileu com menos tacto.
Bellarmino era jesuíta, e portanto membro de uma organização que fazia da lealdade aos
ensinamentos da Igreja Católica a sua primeira regra. O cardeal nunca se desviara por isso
da perspectiva da Igreja, segundo a qual as posições e as funções do Sol e da Terra eram
as que a Bíblia referia. De acordo com o cardeal, todos os académicos que haviam
estudado as Escrituras «concordavam em interpretá-las literalmente como um ensinamento
de que o Sol está nos céus e se move à volta da Terra com imensa velocidade, e a Terra
está muito distante dos céus, no centro do universo, e imóvel. Perceba-se por isso»,
continua Bellarmino, «que a Igreja não pode tolerar que as Escrituras sejam interpretadas
de uma maneira contrária à dos Santos Padres e a todos [...] os comentadores, tanto
latinos como gregos».
Galileu seria incapaz de fazer vacilar uma atitude tão rígida como esta, do mesmo
modo que não conseguia dissuadir os clérigos que olhavam para a Lua através do seu
telescópio e concluíam que, uma vez que se tratava de um instrumento artificial, a
superfície marcada pelas crateras devia ser ela também artificial.

O LIVRO DE COPÉRNICO É PROIBIDO




Tendo tudo isto em conta, não é de surpreender que Bellarmino tenha ido muito mais
longe do que a admoestação de Barberini amavelmente pretendia e tenha comunicado
bruscamente a Galileu que fora promulgado um édito em Fevereiro de 1616 a condenar
totalmente a teoria heliocêntrica por heresia. Um mês mais tarde, a 5 de Março de 1616, o
De Revolutionibus foi incluído no Índex dos Livros Proibidos. A partir de então, quem quer
que procurasse promover, ou até apenas discutir, a teoria de Copérnico do Sol imóvel e da
Terra em movimento passava a ser um herege e, acrescentou Bellarmino, a Inquisição
sabia muito bem como lidar com essa gente.
O aviso de Bellarmino alarmou de facto Galileu, era essa precisamente a intenção do
cardeal. O físico conhecia hem as punições da heresia – interrogatórios, torturas e prisão,
e, para os que eram considerados culpados, a morte na fogueira. Havia, por exemplo, o
precedente de um frade dominicano, Giordano Bruno, morto na fogueira em 1600 por
sugerir, tal como Copérnico e Galileu, que era a Terra que se movia em torno do Sol.
Giordano Bruno agravava a sua heresia com a sugestão de que havia no universo outros
mundos semelhantes à Terra com os seus próprios satélites e o seu próprio Sol. Com um
exemplo tão claro dos perigos extremos que ameaçavam os hereges perante os seus
olhos, Galileu parece ter pensado duas vezes antes de continuar a promover as teorias de
Copérnico com a mesma confiança de antes. De qualquer maneira, na altura Galileu já
tinha 52 anos, uma idade considerada muito avançada no século XVII, e há algum tempo
que tinha problemas de saúde. Pareceu-lhe por isso prudente manter-se discreto durante
algum tempo.


DE REGRESSO A CASA, EM ARCETRI




Depois de regressar de Roma, Galileu foi viver para Arcetri, a sua casa perto de
Florença, aparentemente vergado pelo seu desagradável recontro com Bellarmino e pelas
suas ameaças com a Inquisição. Estudou três cometas que atravessaram, brilhantes, os
céus de Florença, no Outono e no início do Inverno de 1616, e escreveu um livro acerca
das suas descobertas que intitulou Il Saggiatore (O Experimentador), que publicou em
1623. Quanto ao resto, Galileu instalou-se na vida ociosa de um cavalheiro de província.
Dava passeios no campo na sua mula e divertia-se com o seu falcão. Também se ocupava
da pequena vinha que plantou no jardim. Contudo, esta vida recolhida era pouco
estimulante para a mente cheia de vida de Galileu. A situação não podia prolongar-se por
muito tempo.
Em 1623, o cardeal Barberini foi eleito papa com o nome de Urbano VIII. O
acontecimento parecia favorável a Galileu, já que, apesar do episódio de Roma de 1616, os
dois haviam continuado amigos e mantiveram uma correspondência depois dessa época.
Num tributo ao novo papa, Galileu decidiu dedicar-lhe o Il Saggiatore. Urbano VIII ficou tão
impressionado que ordenou que algumas passagens do livro fossem lidas em reuniões
públicas. Além disso convidou o físico para uma visita a Roma, um convite que este só
pôde aceitar na primavera de 1624 devido a problemas de saúde.
O papa recebeu Galileu quando ele chegou a Roma e os dois amigos depressa
compensaram o tempo perdido com encontros regulares – seis, ao longo das cinco
semanas seguintes, juntos passearam pelos jardins do Vaticano, onde passaram muitas
horas a conversar e a trocar ideias, acerca de muitos assuntos, entre os quais a teoria
heliocêntrica de Copérnico. Galileu partiu de Roma a 8 de Junho de 1624, levando consigo
uma carta ao grão-duque Ferdinando II em que o papa Urbano se referia ao amigo como a
«um grande homem, cuja fama brilha nos céus e chega a todos os cantos da Terra». Este
louvor convenceu Galileu de que o debate acerca da teoria heliocêntrica, encerrado de
forma tão selvagem em 1616, podia ser reaberto em segurança.


0 DIÁLOGO DE GALILEU


O astrónomo decidiu escrever um novo livro, o Diálogo Dei Massimi Sistemi (Diálogo
dos Grandes Sistemas), desta vez sob a forma de uma conversa entre três personagens,
duas que defendem as teorias de Copérnico e uma que defende a de Ptolomeu. Através
deste género vindo da Antiguidade em que as personagens pronunciam as suas falas numa
espécie de peça de teatro em que são encenadas ideias, Galileu imaginou que conseguiria
contornar as objecções da Inquisição e da Sagrada Congregação do Índex (a Sagrada
Congregação era um corpo dentro da Igreja que decidia que livros eram heréticos e por
isso não deveriam ser lidos pelos católicos).
Apesar disso, a sua experiência em Roma em 1616 deixara-o atento à possibilidade
de irritar as autoridades pontifícias. Estava ao alcance do poder destas destruir qualquer
ideia com que não concordassem, e fazer o mesmo com qualquer pessoa que a
defendesse ou apoiasse. Galileu tomou a precaução de pôr à prova o conteúdo do Diálogo
com o jurista jesuíta Francesco Ingoli, que em tempos criticara as suas convicções
copernianas. Galileu escreveu-lhe defendendo Copérnico e a teoria heliocêntrica, mas teve
o cuidado de acrescentar: «Não empreendi esta tarefa com a finalidade de defender como
verdadeira uma proposição que já foi declarada suspeita e repugnante.» Em vez disso,
continuou Galileu, o que queria era estabelecer os argumentos a favor e contra Copérnico,
para que estes pudessem ser julgados com justiça.
Ingoli recebeu a carta de Galileu em Roma em Dezembro de 1624. Galileu ficou
ansiosamente a aguardar uma reacção de fúria do papa Urbano, mas não houve réplicas
espalhafatosas nem exigências furiosas de que o astrónomo regressasse imediatamente a
Roma para se explicar ou estrondos com origem na Inquisição. Convencido de que a costa
estava livre, Galileu avançou com o Diálogo. Tratava-se de uma obra monumental, com
mais de quinhentas páginas, que levou seis anos a concluir. Foi um processo doloroso.
Galileu tinha 66 anos na altura em que o livro ficou terminado. Sofria gravemente de artrite,
o que lhe dificultava muito a escrita.
Para escrever o Diálogo, recorreu a um artifício muitas vezes usado pelos cientistas
da Europa católica, que era esconder as informações controversas apresentando as suas
teorias como meros exercícios intelectuais ou dando-lhes forma ficcional.
Os factos já haviam sido disfarçados de ficção, ou, no caso do Diálogo de Galileu, de
discussão imaginária, por Johannes Kepler, o matemático e astrónomo alemão
contemporâneo de Galileu e igualmente adepto da teoria heliocêntrica de Copérnico. O
Somnia (O Sonho) de Kepler é um tratado acerca de deslocações interplanetárias em
forma de viagem fantástica à Lua, e desde então tem sido considerado a primeira obra de
ficção científica. Não havia, é evidente, garantia de que a Inquisição se ia deixar enganar
por este expediente de homens como Galileu ou Kepler, e Somnia teve consequências
alarmantes para a mãe de Kepler, Katherina. Em 1617, foi acusada de bruxaria por causa
do livro do filho. Felizmente, a velha senhora foi absolvida e libertada em 1621, em boa
medida graças aos argumentos vigorosos do filho em sua defesa.
No entanto, o perigo envolvido era demasiado óbvio e Galileu não quis correr riscos.
Decidiu levar pessoalmente o manuscrito completo do seu Diálogo a Roma e acompanhar o
processo de aprovação e impressão. Pediram-lhe que fizesse algumas alterações de pouca
monta – nada muito drástico – e o livro foi por fim publicado em Fevereiro de 1632. Foi um
êxito imediato e esgotou-se pouco tempo depois de ter sido posto à venda.
Galileu ficou compreensivelmente satisfeito quando o Diálogo foi aprovado, mas tinha
passado por alto uma coisa importante. Não percebeu que o papa Urbano nunca entraria
no jogo de muitos autores de usar expedientes verbais para contornar a censura das
autoridades religiosas e divulgar as suas ideias heréticas. Nisto Galileu pode ter avaliado
mal a abertura de Urbano quando ainda não passava de um cardeal: por muito amigos que
fossem, o Urbano papa não podia permitir-lhe uma coisa assim. Isso tornou-se impossível
também porque em 1625 chegou a Roma a notícia de que os protestantes alemães, os
maiores inimigos da Igreja Católica, haviam aceitado a teoria heliocêntrica.
O endurecimento da atitude do papa tornou-se óbvio para Galileu quando ofereceu a
Urbano VIII um exemplar do seu livro. Urbano ficou possesso de raiva quando viu o que
Galileu fizera com a personagem de Simplício, a que representava a perspectiva de
Ptolomeu. Enquanto as outras duas personagens, Salviati, um cientista, e Sagredo, um
intelectual, falavam com lógica quando defendiam Copérnico e as suas teorias, Simplício,
como o seu nome sugere, comportava-se como um pateta e um palhaço. Como disse
Tomás Campanella, amigo e admirador de Galileu:

Simplício parece o bobo desta comédia filosófica, o que mostra a
idiotice da sua seita, as palavras vazias, a instabilidade e a
obstinação e tudo o mais que queira mencionar.

Não só Simplício era ridicularizado ao longo de todo o livro, como Galileu ainda
conseguiu atacar os aristotélicos, de quem diz que lhes «bastava adorar sombras, filosofar
com devida circunspecção mas apenas com base em meia dúzia de princípios mal
compreendidos». Contudo, o pior ainda era a ideia, espalhada por aristotélicos
enfurecidos, de que Simplício era uma caricatura do próprio papa Urbano.


O FIM DE UMA LONGA AMIZADE




Quer fosse essa a intenção de Galileu quer não fosse, ao que parece o papa Urbano
convenceu-se de que era. A mensagem do astrónomo era evidente. Ao apoiar as teorias de
Ptolomeu, como todos os papas antes dele, Urbano estava a repetir como um tolo o que
lhe fora transmitido. Não é por isso surpreendente que o pontífice tenha ficado tão furioso.
Infelizmente, a sua amizade por Galileu morreu naquele momento. É natural que se tenha
sentido traído e, do mesmo modo que podia ser um amigo efusivo, podia ser um inimigo
implacável, como Francesco Niccolini, o embaixador da Toscana em Roma, escreveu
acerca do papa Urbano:

Quando Sua Santidade mete uma coisa na cabeça está tudo
acabado, especialmente se se tratar de alguma coisa que se
oponha a ele, o ameace ou desafie, já que isso o torna duro e o
faz perder o respeito por toda a gente. [...] Esta investigação vai
ser um caso turbulento.

Niccolini tinha razão. Por volta do fim de 1632, Galileu foi chamado a Roma, onde lhe
foi ordenado que comparecesse perante a Inquisição. Galileu tentou desesperadamente
adiar o momento em que isso teria de acontecer, invocando problemas de saúde e um
surto de peste em Florença, que tornaria a sua deslocação perigosa. Contudo, Urbano foi
firme. O astrónomo, na altura com 68 anos, foi avaliado por médicos e considerado apto a
empreender a viagem. Urbano decretou que, se ele fosse de facto considerado gravemente
doente, na realidade, se fosse encontrado a morrer, devia ser preso e imediatamente
levado a Roma à força. Em vez de se sujeitar a essa humilhação às mãos do seu antigo
amigo, Galileu partiu de Florença pelos próprios meios a 20 de Janeiro de 1633. Passou
algum tempo em quarentena em Acquapendente, a 198 quilómetros de Florença, e depois
de ser considerado livre da peste partiu para Roma, onde chegou três semanas mais tarde,
a 13 de Fevereiro. Aí ficou alojado na Vila Médici, como hóspede de Francesco Niccolini,
uma concessão que lhe foi feita, apesar do ódio do papa, devido à sua idade avançada e
ao seu estado de saúde.
Galileu teve de esperar dois meses até ser finalmente interrogado. A razão do
adiamento foi a indecisão da Inquisição em relação à maneira de tratar o seu caso. Urbano
sempre se sentira seguro de que não podia haver provas científicas ou teológicas a favor
da teoria heliocêntrica, mas havia no Santo Ofício quem não estivesse tão seguro disso e
receasse que, se essas provas acabassem por vir ao de cima, isso pudesse resultar na
revelação de que Deus, a Bíblia, o papa e a Igreja Católica tinham cometido um erro
fundamental. Isso teria sido embaraçoso, para não dizer pior, mas o mais grave é que
podia ter consequências negativas para a Santa Sé.
Como se não bastasse, havia ainda o problema de instaurar um processo contra um
homem tão famoso e admirado como Galileu, igualmente autor de um livro, o Diálogo,
aprovado pelo secretário da corte papal do Vaticano. O papa Urbano, ao que parece, não
sabia nada deste assunto e negou ter autorizado a publicação. No entanto, o livro saíra e
fora um grande êxito. Por muito que quisesse vingar-se de um homem que em tempos fora
seu amigo e apresentar o Diálogo em tribunal como prova a favor da acusação, até ele
conseguia ver que não era assim que poderiam desacreditar Galileu.
Ao fim de várias semanas a ponderar estes problemas, o Santo Ofício da Inquisição
acabou por decidir avançar com o julgamento. Galileu foi interrogado a 12 de Abril de 1633.
Quando interrogado, defendeu com firmeza que não infringira a proibição imposta ao De
Revolutionibus ou o parecer contrário á teoria heliocêntrica de Copérnico expressa no édito
de 1616. Além disso, apresentara a teoria coperniciana apenas como hipótese e negou ter
alguma vez afirmado que era verdadeira.



GALILEU EM PERIGO


A estratégia esquiva de defesa de Galileu deixou o Santo Ofício numa posição
duvidosa. Para manter a reputação, e isso era uma das suas prioridades, a Inquisição não
podia permitir que Galileu escapasse sem ser punido. Uma das alternativas era proibir
simplesmente o Diálogo e incluí-lo na lista de livros proibidos, onde já se encontrava o De
Revolutionibus, mas isso equivalia a uma absolvição de Galileu. O papa Urbano, além
disso, opôs-se firmemente a que o livro fosse condenado, mas exigiu que o seu autor o
fosse. Não havia alternativa a processar e condenar Galileu, como era desejo do seu velho
amigo.
Em geral, nesta fase os suspeitos de heresia eram entregues à Inquisição para serem
torturados até confessarem. Os inquisidores davam aos acusados uma última hipótese de
recuar mostrando-lhes os instrumentos de tortura, muitas vezes benzidos por padres antes
de serem usados, já que eram encarados pela Igreja como ferramentas sagradas com as
quais Deus permitia aos inquisidores fazer regressar as ovelhas tresmalhadas à verdadeira
fé.
É muito provável que Galileu tivesse conhecimento destes instrumentos e do
sofrimento que podiam provocar. Não era habitual a Inquisição torturar idosos, mas não
sabemos a que ponto Galileu, em 1633 com quase 70 anos, se sentiria seguro de que
escaparia à tortura devido à idade. No entanto, é possível que a simples ameaça de
tortura tenha bastado para alcançar a única alternativa aberta à Inquisição, que era levar
Galileu, um homem idoso, frágil e amedrontado, gasto pela doença e desgastado pela
ansiedade, a renunciar pelo medo e pelo cansaço.
Quase três semanas depois de ter comparecido pela primeira vez perante a
Inquisição, Galileu voltou ao tribunal, a 30 de Abril, e admitiu o seu erro ao escrever o
Diálogo. Disse o seguinte:

Confesso de minha livre vontade que em vários sítios me parece
que apresento as coisas de forma tal que um leitor ignorante da
minha verdadeira finalidade pode ter razão para supor que os
argumentos do lado errado, que era minha intenção desmentir,
foram expressos de modo que mais parecem pensados para
convencer pela sua força lógica do que para ser rebatidos.



UMA CONFISSÃO HUMILHANTE




Galileu foi ainda mais longe e humilhou-se confessando uma «ambição de glória».
Depois de ser forçado a fazer esta declaração, foi levado para os calabouços do Santo
Ofício, onde passou três semanas antes de voltar a comparecer perante a Inquisição.
Estava ali para renunciar formalmente a Copérnico e à sua teoria e apresentar por escrito
aos inquisidores uma admissão dos seus crimes. Percebera por fim, confessa, que o
Diálogo apoiava «acidentalmente» a visão coperniana dos céus, quando a Igreja já decidira
correctamente que esta estava errada. Mais tarde, por ordem do papa Urbano, a renúncia
de Galileu foi difundida por toda a Europa católica, onde foi lida em voz alta em todas as
igrejas, para que todos os católicos soubessem que o grande Galileu Galilei fora dobrado
pela Inquisição.
Esta submissão humilhante à vingança do papa marcou profundamente Galileu. Ficou
furioso e amargurado com a maneira como foi tratado pela Inquisição e por um homem que
em tempos fora seu amigo e que acabara por forçá-lo a fazer um sacrifício tão doloroso.
No fundo, fora obrigado a negar o trabalho e as convicções de uma vida inteira para
salvaguardar uma teoria que nunca duvidou que estivesse errada. Galileu continuava
desafiador, apesar da sua retratação abjecta. Niccolini, juntamente com outros amigos de
Galileu, teve de fazer um grande esforço para o levar a ser flexível, ou até conciliador, pois
se persistisse o papa Urbano e a Inquisição podiam atiçar contra ele todo o seu arsenal de
punições. Se isso acontecesse, era pouco provável que o velho astrónomo pudesse
escapar uma segunda vez. Niccolini levou algum tempo a fazer-lhe ver a realidade.
Escreveu acerca do assunto:

Dizia ele, mesmo assim, que podia muito bem defender as suas
opiniões, mas eu exortei-o, com o fim de deixar o problema para
trás, a não lhes fazer frente, mas sim a concordar com tudo que
eles [a Inquisição] quisessem que ele acreditasse. [...] Ficou muito
perturbado com isto, e por mim, que vi os problemas que já teve
em resultado disto, tenho grandes dúvidas em relação à segurança
em que se encontra a sua vida.



A CONDENAÇÃO


A 22 de Junho de 1633, Galileu voltou pela última vez à Inquisição, desta vez para
conhecer o seu destino. Vestiu o traje próprio destas ocasiões, as longas vestes brancas
dos que se haviam retratado, e ajoelhou-se perante os juízes para conhecer a sua
sentença. A Inquisição considerou-o culpado de «crimes hediondos» e decidiu que ele seria
«veementemente suspeito de heresia». Galileu respondeu: «Amaldiçoo e abomino os meus
erros e heresias.»
O seu Diálogo foi proibido, e permaneceu quase duzentos anos no Índex dos Livros
Proibidos. O próprio Galileu foi condenado a prisão perpétua. Depois foi levado para as
masmorras por baixo do Tribunal do Santo Ofício, onde poderia ter ficado se não fosse a
intercessão do jovem cardeal Francesco Barberini, sobrinho de Urbano VIII. Barberini era
um grande admirador de Galileu e conseguiu convencer o tio a permitir que o físico
voltasse para a embaixada da Toscana. Niccolini ficou alarmado com o estado em que viu
Galileu. «É terrível», escreveu, «ter de enfrentar a Inquisição. O pobre homem vem mais
morto do que vivo.»
O embaixador começou a manobrar para conseguir que Galileu pudesse regressar a
casa, em Florença. O papa Urbano recusou, mas permitiu que o astrónomo caído em
desgraça se mudasse para casa de Ascânio Piccolomini, arcebispo de Siena, onde teve um
esgotamento. Galileu ficou a recuperar em casa de Piccolomini durante os cinco meses
seguintes. Só no final de 1633 lhe foi permitido regressar a sua casa, em Arcetri. No
entanto, mesmo aí continuou em prisão domiciliária, cativo da Inquisição, proibido de
receber visitas de amigos académicos ou cientistas ou de voltar ao ensino.
No entanto, Galileu podia continuar a escrever e em Arcetri trabalhou num novo livro
que começara quando estava com Piccolomini, intitulado Duas Novas Ciências, as ciências
da mecânica e do movimento. Contudo, a sua posição perante a Inquisição assustava os
impressores. Em Veneza era a Inquisição que o impedia de publicar e na Alemanha os
Jesuítas. Por fim, os amigos de Galileu levaram o manuscrito com eles para lá dos Alpes,
para a Holanda protestante, onde o braço do papa não chegava. O livro acabou por ser
publicado em Junho de 1638. Por esta altura, o autor já arruinara de tal maneira os olhos
com as observações astronómicas que cegara completamente. Nunca pôde ler a versão
impressa do seu último livro.


A MORTE DE GALILEU


Por volta do fim de 1641, a febre que atacava Galileu todos os Invernos voltou mais
uma vez, mas dessa não houve recuperação. Galileu morreu a 8 de Janeiro de 1642,
poucas semanas antes de completar 78 anos de idade. Mesmo na morte, o papa Urbano
continuou vingativo. Recusou autorizar exéquias públicas ao seu amigo de outros tempos e
ignorou os pedidos do matemático Vincenzo Viviani, grande amigo de Galileu, de que lhe
fosse erigido um monumento. A justificação de Urbano era que através dos seus pecados
contra Deus e a Igreja Católica Galileu dera origem ao «maior escândalo da cristandade».
O físico acabou assim por ser sepultado numa campa modesta na Igreja de Santa Crosse,
em Florença.
Quase um século mais tarde, em 1737, o papa Clemente XII ordenou que fosse
construído um monumento fúnebre condigno para Galileu na mesma igreja. Contudo,
teriam de passar mais de 350 anos até o papa João Paulo II, em 1992, ter revogado as
sentenças de 1616 e de 1633 e ter dado razão a Galileu.

















Capítulo

VII


Pio IX começou por ser um papa aberto à modernidade.
No entanto, com a «vaga revolucionária» de 1848,
acabou por se tornar no responsável por várias políticas duras
da Igreja como a instituição do dogma da infalibilidade do papa.











AS REVOLUÇÕES E A IGREJA


O ano de 1848 foi para os monarcas autoritários da Europa o mais aterrador de
sempre. Em Roma, o papa, senhor de um poder absoluto similar sobre os domínios do
papado na Itália central, não ficou alheio ao fenómeno. Na realidade, foi ainda mais
afectado por ele do que os outros déspotas do continente.
Pela primeira vez desde o princípio dos tempos, o poder papal e o seu domínio
absoluto sobre os seus súbditos estavam seriamente ameaçados. A ameaça tinha origem
na vaga de novas ideias liberais como as que eram expressas no lema da Revolução
Francesa, que agitara o continente com grande violência cerca de sessenta anos antes:
liberdade, igualdade, fraternidade. Estes novos conceitos espalharam-se pela Europa nos
anos seguintes, dando a muitos milhares de oprimidos esperança numa vida mais livre.
As revoltas, os motins, as revoluções e o descontentamento popular não eram,
obviamente, novidades nos países europeus, mas os levantamentos que tiveram início em
1848 foram diferentes dos anteriores. As queixas dos revoltosos não eram nem locais nem
particulares: aplicavam-se em toda a parte. Da França (mais uma vez) à Alemanha e aos
estados italianos ou ao Império Austro-Húngaro, à Suíça, à Polónia e à Valáquia, no sul da
Roménia, uma série de manifestações violentas fez tremer a elite governante da Europa.
Os rebeldes exigiam constituições mais liberais, direito ao voto democrático, liberdade de
expressão e outras concessões. Tudo isto representava um novo tipo de desafio à
autoridade estabelecida e marcou o fim da deferência que em tempos mantivera os
poderes despóticos ao abrigo da agitação popular. O princípio do «nós contra eles» surgiu
a uma escala internacional e, como observou o historiador francês Alexis de Tocqueville, «a
sociedade foi dividida em duas. Os que nada tinham estavam unidos numa inveja comum,
os que tinham alguma coisa estavam unidos num terror comum».
O papa Pio IX, eleito dois anos antes, em 1846, parecia uma vítima pouco verosímil
desta «vaga revolucionária», designação dada por alguns historiadores aos
acontecimentos de 1848. O seu predecessor, o ultra-conservador Gregório XVI,
considerava a modernidade, em todas as suas formas, perversa por natureza. Isto
aplicava-se em especial a avanços técnicos como a iluminação pública a gás ou à nova
forma de viajar, mais rápida, introduzida pelos caminhos de ferro, que Gregório considerava
obras do Demónio, contrárias ao que Deus determinara para a boa maneira de viver na
Terra. Pio, quase trinta anos mais jovem do que o seu predecessor, acolheu de boa mente
o progresso e tornou-se um dos poucos governantes europeus de orientação liberal. Entre
as inovações introduzidas por Pio IX quando ascendeu ao trono pontifício estavam
precisamente a iluminação pública e os caminhos de ferro, aqueles que Gregório mais
condenara. Além disso libertou os prisioneiros políticos das cadeias papais e deu início à
reforma da burocracia corrupta e ineficaz do Vaticano. Foram delineados planos para
limitar os poderes da Inquisição e para abolir o Índex dos Livros Proibidos e libertar os
jornais e os livros da dura censura a que eram submetidos. Estavam em cima da mesa as
novas liberdades cívicas e a introdução da democracia. No entanto, o papa Pio nunca as
introduziu de facto e nunca se chegou a saber até que ponto este papa liberal estaria
disposto a ir. Em Janeiro de 1849, precisamente um ano depois das revoluções, Pio IX
abandonara as suas ideias liberais e tornara-se tão reaccionário e autoritário como os seus
pares mais despóticos.


MUDAR SEM HESITAÇÕES




Que aconteceu que possa ter provocado uma mudança tão radical? Para dar uma
resposta simplificada, o impulso revolucionário em direcção à liberdade, à igualdade e à
fraternidade tornou-se tão ousado que prometeu varrer a «velha ordem» e fazê-lo com a
maior violência e sem recuar perante o derramamento de sangue. Nos domínios papais os
motins populares foram tão generalizados que se tornou perigoso andar na rua. A
exigência de uma nova Constituição era de tal maneira vigorosa e audível que o provável
programa político do papa Pio IX – introduzir aos poucos mudanças no sentido liberal,
orientadas por ele próprio – tornou-se impraticável. O clímax de todo este processo deu-
se com o assassínio do braço-direito do papa, o primeiro-ministro Pellegrino Rossi, quando
entrava na chancelaria, a 15 de Novembro de 1848. O assassínio foi testemunhado por
muitos observadores casuais que nada fizeram para o impedir. O assassino nunca foi
apanhado.
A morte de Rossi abalou profundamente o papa. Apesar de nos nove séculos
anteriores não terem sido assassinados papas, Pio receou vir a ser o seguinte. Para evitar
este triste destino, resolveu fugir de Roma vestido como um padre vulgar, com óculos de
sol para ocultar o rosto. Felizmente ninguém reconheceu a figura anónima que entrou na
carruagem do embaixador da Baviera com destino a Gaeta, uma fortaleza na costa norte
de Nápoles, no Reino das Duas Sicílias. Entretanto, os domínios papais eram devastados
pelas revoltas, em Bolonha e a sul de Roma. Em toda esta região, os representantes do
papa, os seus legados, eram depostos e substituídos por comités locais que se
apressaram a decretar o fim do poder pontifício. Isto foi confirmado em Janeiro de 1849,
quando uma assembleia em Roma, eleita por voto popular, introduziu uma nova
Constituição cujo primeiro artigo declarava abolido o poder temporal do papa. A partir
desse momento, proclamava ainda a nova Constituição, o governo dos domínios papais
seria eleito democraticamente.


A GUARDA ARMADA DO PAPA




O papa foi socorrido pela intervenção externa armada, de maneira que o poder da
assembleia liberal não foi longe. A Áustria e a França, ambos países católicos, que tinham
dominado Itália à vez entre 1713 e 1814, enviaram tropas que expulsaram a assembleia e
restituíram ao papa o lugar e os poderes que perdera por um breve período. No entanto,
para o papa, o que se seguiu foi um imbróglio, já que só se manteve no trono com a ajuda
da sua guarda armada. Os austríacos, que ocuparam a Lombardia, a noroeste dos
domínios papais, e o Véneto, no Nordeste, policiavam o território do papa. Estas tropas,
assim como as francesas, que patrulhavam as ruas de Roma, eram tudo o que separava o
papa de um novo desastre.
Pio não foi bem recebido quando voltou ao Vaticano, apesar de o seu
restabelecimento no poder ter dado novo ânimo aos católicos por toda a Europa. Mas o
papa que regressou a Roma já não era o papa que partira da cidade em circunstâncias tão
difíceis. Pio IX ficou profundamente perturbado pelas vigorosas, e em sua opinião
despudoradas, tentativas de o retirar do lugar que Deus destinara a todos os papas – o
poder temporal sobre os domínios pontifícios e o domínio espiritual sobre a Igreja. Pio IX
sentiu que estivera demasiado perto de os perder a ambos, o que o deixou ainda mais
determinado a impor os poderes do papado, desta vez de forma autocrática.


A CONSTITUIÇÃO LIBERAL


Entretanto no resto da Europa havia outros governantes despóticos cujo poderio
fora afectado pelos levantamentos de 1848. Porém, em 1849 já todos haviam recuperado
os seus lugares através da repressão mais brutal. Os liberais foram presos, torturados e
mortos, e os seus seguidores foram ameaçados e perseguidos até se submeterem. As
constituições liberais que os déspotas foram obrigados a subscrever foram sumariamente
anuladas e o poder absoluto voltou a ser introduzido. Mesmo assim, a vida nunca mais foi
a mesma para os autocratas da Europa. O seu sentimento de segurança evaporou-se e
viram-se obrigados a rodear-se de uma protecção sufocante.
Também para o papa Pio IX a vida não voltou ao que fora dantes, mas por razões
diferentes. Embora a Assembleia de Roma, de vida breve, estivesse defunta, a
Constituição liberal a que os seus membros haviam dado força de lei continuava de pé. O
papa não tinha poder para a anular, como outros déspotas haviam feito com as deles, de
maneira que a de Roma foi a única a sobreviver às intervenções militares brutais que
esmagaram os levantamentos de 1848. Ao contrário do que aconteceu noutros lugares da
Europa onde as revoluções falharam, os domínios pontifícios e o resto de Itália tinham os
meios, o poder e as pessoas capazes de tornar realidade os sonhos liberais.
O centro das esperanças liberais – o reino da Sardenha, que, apesar do seu nome,
tinha sede no Piemonte, no noroeste de Itália, com capital em Turim – era o pesadelo do
papa. Do reino faziam parte a região próxima da Ligúria bem como a Sardenha, a segunda
maior ilha do Mediterrâneo, a seguir à Sicília. Sob o poder do seu soberano, o rei Vítor
Emanuel II, da casa de Saboia, o Piemonte-Sardenha usou a sua Constituição para
transformar o que fora em tempos um estado autoritário numa democracia parlamentar. A
Igreja deixou de controlar as escolas, passou a haver liberdade de culto e os Jesuítas, que
se pensava estarem de conluio com o papa numa conspiração contra o reino, foram
expulsos. Isto não prenunciava nada de bom para Pio IX, que acompanhava os
desenvolvimentos no Piemonte-Sardenha com grande apreensão. O pior, pelo menos da
perspectiva do pontífice, era a popularidade de Vítor Emanuel entre os seus súbditos, por
apoiar e encorajar as reformas liberais. Estes, por seu lado, haviam-se afastado da Igreja,
em particular de Roma, enquanto centro de poder.
Como se isto não fosse suficientemente mau para o papa assediado, Vítor Emanuel
era uma personalidade idolatrada, um grande herói patriótico, por ter participado
pessoalmente nas quatro primeiras guerras italianas da independência contra a Áustria, em
1848-1849. A finalidade da guerra fora pôr fim ao domínio austríaco e de outras potências
estrangeiras sobre Itália – o que acabara por provar fora que nenhum dos estados
italianos estava em condições de derrotar os invasores estrangeiros por si só. Apesar de o
reino do Piemonte-Sardenha ter perdido a guerra, o seu jovem rei, de 29 anos, Vítor
Emanuel, tornou-se uma figura inspiradora e um símbolo do Risorgimento, o movimento de
unificação de Itália.
Risorgimento foi o nome dado ao movimento por trás da unificação de Itália. Ao longo
de séculos, o país vivera fragmentado em cidades-estado e pequenos reinos, que
começaram a formar-se depois da queda do Império Romano do Ocidente, por volta de
476. Um desses pequenos reinos, no centro de Itália, pertencia ao papado e era
governado pelo pontífice, em Roma.
Esta situação manteve-se cerca de 1400 anos, com interregnos de vários domínios
estrangeiros, como os dos franceses ou os dos austríacos. O processo de unificação deu-
se gradualmente, entre 1814 e 1870, altura em que as forças italianas ocuparam Roma e
os domínios papais. Depois da Grande Guerra, em 1919, Trentino, o sul do Tirol e Trieste
foram acrescentados à Itália.
Quanto mais o rei guerreiro ascendia em importância e popularidade, maior o perigo
que representava para Pio IX. Ao fim de pouco tempo, o sonho de transformar a colecção
de pequenos estados independentes que era a Itália numa só monarquia começou a
ganhar contornos mais concretos, antes de mais na mente ambiciosa de Vítor Emanuel.
Como é evidente, não haveria grande espaço para um papa, muito menos autocrata, no
esquema das coisas que começava a ser delineado.
A primeira oportunidade de Vítor Emanuel como candidato a um trono para toda a
Itália só surgiu em 1859, quando rebentou uma nova guerra com a Áustria. Desta vez o rei
actuou em parceria com os franceses, que queriam expulsar os austríacos, os seus
grandes inimigos, de Itália. O movimento decisivo nesta nova guerra foi o triunfo de Vítor
Emanuel sobre o exército papal na batalha de Castelfidardo, nos domínios do papado.
Depois o rei perseguiu as forças de Pio IX em direcção ao sudoeste de Roma, a cerca de
duzentos quilómetros da cidade. O início das hostilidades foi acompanhado de revoltas nos
territórios do papado e mais uma vez os legados do papa foram expulsos.
Com isto, os nacionalistas em Nápoles e na Sicília começaram a clamar pela união
com o Piemonte-Sardenha e a 18 de Fevereiro de 1861 foi oficialmente proclamado o reino
de Itália. No entanto, nesta fase inicial, havia ainda duas grandes regiões de Itália que não
faziam parte do novo domínio. Uma ficava no Nordeste, onde o Véneto e a sua capital,
Veneza, continuavam controlados pela Áustria. O outro, o mais significativo, era Roma e
os estados papais, onde o papa se preparava para combater qualquer tentativa de intrusão
no seu domínio sagrado.
Para o conseguir, Pio IX recorreu a uma arma que apenas ele possuía. Numa
encíclica de Janeiro de 1860, excomungou Vítor Emanuel e todos os que estivessem
envolvidos na violação do território papal. Pio IX informou os ofensores de que Deus
estava do lado dele e não dos seus inimigos, e não deixaria decerto de agir contra eles
para vingar a ofensa à Sua igreja e a ele próprio, papa, enquanto Seu representante na
Terra. Seria por isso sensato, preveniu Pio IX, que procedessem à «restituição pura e
simples» dos estados papais ao seu verdadeiro senhor.


A EXCOMUNHÃO DO REI


Muitos séculos antes, em tempos medievais, a excomunhão e as ameaças com a
vingança divina haviam bastado para aterrorizar os inimigos da Igreja, salvo talvez os mais
recalcitrantes, e reconduzi-los à obediência imediata. No entanto, em Itália este efeito há
muito que se diluíra. De facto, em especial nas classes com mais formação, o afastamento
de Roma, senão da própria Igreja, era cada vez mais visível e a ideia da vingança do
Senhor já não fazia ninguém tremer. Neste contexto, Pio IX estava a ficar politicamente
fora de pé. Não era a devotos impressionáveis que se dirigia, mas a homens do mundo,
pouco preocupados com resguardar as suas almas imortais dos castigos do Inferno.
Interessava-lhes mais obter benefícios políticos.
Estavam aqui em causa vários interesses. Vítor Emanuel e o seu governo puseram
temporariamente de parte a captura de Roma e concentraram-se primeiro em expulsar os
austríacos do Véneto. Giuseppe Mazzini e Giuseppe Garibaldi, dois dos três líderes
nacionalistas que combatiam pela unificação (o terceiro era Camillo Benso, conde de
Cavour, antigo primeiro-ministro de Vítor Emanuel), eram de opinião diferente. Para eles, a
captura de Roma era de importância primordial porque o Risorgimento não ficaria completo
sem Roma como capital de Itália. O imperador francês, Napoleão III, uniu-se a Vítor
Emanuel para alcançar os seus próprios fins – não só para expulsar os austríacos de Itália,
mas a longo prazo para assegurar que em vez de uma Itália unificada haveria apenas um
aglomerado de estados fracos que nunca poderiam rivalizar com a França na luta pelo
domínio da Europa.


GARIBALDI CRIA UM PROBLEMA




A curto prazo, surgiu uma rivalidade mais premente entre Vítor Emanuel e o seu
governo e, do outro lado, o grande herói militar do Risorgimento, Garibaldi, que ignorou a
orientação do rei e tentou tomar Roma em 1860 e mais tarde em 1862. Não o conseguiu
em nenhuma das ocasiões, mas Vítor Emanuel não podia permitir que as coisas ficassem
por aqui. Garibaldi não só era republicano, como era uma figura de uma popularidade
imensa entre os nacionalistas italianos. Para eles, Roma era o Santo Graal do
Risorgimento e a ambição de Garibaldi de capturar a cidade parecia-lhes um
empreendimento patriótico de grande amplitude. Além disso, a presença das tropas
francesas em Roma, onde continuavam a guardar o papa, era uma mancha na honra
nacional que tinha de ser limpa.
Nestas circunstâncias, o que estava em causa eram as ambições de Vítor Emanuel
de se tornar rei de Itália. Não podia permitir que o exército privado de maltrapilhos de
Garibaldi «libertasse» Roma e, como Vítor Emanuel pressentia, a declarasse república.
Tinha de tomar a iniciativa e expulsar ele próprio os franceses. Ao que tudo indica, era isto
que pretendia o rei com o seu governo quando a Convenção de Setembro com os
franceses foi assinada em 1864. De acordo com este documento, os franceses
comprometiam-se a abandonar Roma em 1866, deixando com isso o caminho aberto a
Vítor Emanuel para pôr em prática o seu plano clandestino – encontrar um pretexto para
anexar a cidade ao seu reino de Itália e fazer dela a capital de uma monarquia, em vez da
capital de uma república. Para ocultar a sua verdadeira finalidade, o rei fez o que na
ocasião pareceram grandes concessões: o seu governo comprometia-se a transferir a
capital de Turim, no Piemonte, para Florença, na Toscana, a grande distância de Roma, e
a não atacar de novo os domínios papais.





ESPERANÇA PARA O PAPA




Perante estes desenvolvimentos, o papa Pio IX voltou a sentir-se em relativa
segurança. O seu optimismo contagiou os cardeais, tão convencidos como o pontífice de
que o imperador Napoleão III nunca abandonaria Roma deixando Pio IX «indefeso perante
os piemonteses e à mercê dos seus súbditos. Os católicos de França e de todo o mundo»,
achavam os cardeais, «nunca o aceitariam».
Este optimismo no Vaticano também foi encorajado pelos acontecimentos fora de
Itália, que apontavam para uma guerra em que a Prússia ajustava contas com a Áustria e
ambas se opunham a França. Apesar disso, estas três potências estavam unidas na
convicção de que uma Itália unida seria um novo rival para qualquer delas no que
respeitava à influência na Europa. Significava isto que todas fariam o que estivesse ao seu
alcance para impedir a unificação de Itália. Ao Vaticano tudo isto parecia excelente; de
facto, a única coisa que receava era o Risorgimento. Nada deixaria o papa e os cardeais
tão felizes como a promessa de que o estado italiano nascente seria posto no seu lugar,
insignificante.
Em Janeiro de 1865, Odo Russell, o enviado britânico em Roma, comunicou a
Londres uma conversa tida com o cardeal Giacomo Antonelli, o poderoso secretário de
Estado do Vaticano. «Tal como o papa», escreveu Russell, «Antonelli tem esperança de
que uma guerra europeia venha a resolver os problemas da Santa Sé!»


ESPERANÇAS GORADAS


Porém, tal como outras esperanças nascidas da Convenção de Setembro, esta
revelou-se uma quimera. A guerra entre a Áustria e a Prússia, que começou em Junho de
1866, não correu como o Vaticano esperava. O papa estava certo de que a Áustria ia
esmagar a Prússia, que se aliara ao reino de Itália, e de que os austríacos em breve
ocupariam as suas próprias províncias, que haviam perdido.
O que aconteceu foi o contrário. Os prussianos e os seus aliados italianos venceram,
e depressa, uma vez que a guerra terminou em Outubro, ao fim de apenas quatro meses.
O momento não poderia ter sido menos auspicioso. Em Dezembro de 1866, de acordo
com a Convenção de Setembro, os franceses preparavam-se para sair de Roma. Antes de
o ano acabar a sua bandeira já tinha sido arriada do Castel Sant’Angelo e as tropas
francesas embarcaram em Civitavecchia, o porto de Roma, rumo a casa. No Vaticano,
todas as esperanças, o optimismo e a certeza de que os franceses nunca partiriam
embarcaram com eles nesses navios.


PÂNICO NO VATICANO


Quando isto aconteceu, o Vaticano foi dominado por um terror abjeto. Os
conselheiros do papa Pio insistiam com ele para que se pusesse em fuga enquanto isso era
possível e pedisse refúgio na Áustria ou em Espanha. Os seus receios eram exacerbados
pela forte resistência suscitada pelo poder autocrático do papa Pio IX em Roma. O pior
eram os grupos subversivos que minavam a cidade e que, se lhes fosse dada a menor
oportunidade, ficariam encantados por pôr em marcha uma rebelião, com toda a fúria das
multidões e toda a destruição que isso envolvia. O papa, os seus conselheiros não tinham
a menor dúvida, corria perigo de vida, mas a fonte desse perigo não era a que imaginavam.
A grande ameaça a Pio IX não eram os descontentes nem as multidões, mas o
governo italiano de Vítor Emanuel. A retirada dos franceses de Roma tinha-o deixado numa
posição paradoxal. Ao assinar a Convenção de Setembro em 1864 tinha garantido o poder
da Igreja sobre Roma, em conjunto com a segurança dos domínios papais, que se tinha
comprometido a não atacar. Se quisesse manter a imagem de homem de palavra e a
credibilidade como futuro monarca de toda a Itália, Vítor Emanuel não podia renegar
abertamente estes compromissos. O que podia fazer, no entanto, era manobrar nos
bastidores.
Já há algum tempo que o governo de Vítor Emanuel financiava em segredo os grupos
subversivos que se multiplicavam em Roma, na esperança de que estes fomentassem um
levantamento «espontâneo». Giuseppe Garibaldi, um antipapista virulento, aqueceu os
ânimos chamando à Igreja «a mais perniciosa de todas as seitas» e exigindo o fim do
sacerdócio católico, que considerava que só servia para encorajar a ignorância e a
superstição. Acesos os fogos da revolta, Emanuel poderia apresentar-se como o salvador
e fazer as suas tropas entrarem em Roma para a aplacar. Depois, tomar a cidade e o
Vaticano e neutralizar o papa seria uma brincadeira de crianças.

A REVOLUÇÃO QUE NUNCA O FOI




As coisas não aconteceram assim; na realidade, tomaram um rumo imprevisto. Apesar
de todas as tentativas de persuasão, de todo o financiamento e de todo o fervor
revolucionário de Garibaldi, Roma insistia em não se revoltar. Em parte isto pode ter-se
devido à presença na cidade da guarda pessoal do papa Pio IX, a maior parte constituída
por estrangeiros e rufias. Uma outra força, de homens pagos pelo papa mas não
pertencentes a qualquer força regular, patrulhava as ruas da cidade e tinha uma reputação
ainda mais assustadora. O imperador Napoleão III observava estes eventos, ou antes,
não-eventos, de Paris. Ele próprio um homem experiente na intriga política, reconhecendo
as manobras duplas em causa, por volta de finais de 1867 ordenou às tropas francesas
que regressassem a Roma, onde em breve voltaram a patrulhar as ruas.
O papa Pio, os cardeais e o resto do Vaticano, loucos de alegria, sentiram que tinham
sido salvos no momento mais difícil. O enviado britânico em Roma, Odo Russell, teve dos
acontecimentos uma visão mais sombria e realista. A presença das tropas francesas,
escreveu, «tendia a transformar Roma numa cidade fortificada e o papa num déspota
militarista». No entanto, não há dúvida quanto ao ambiente eufórico que se apoderou de
Roma com o regresso dos franceses. Os apoiantes do papa, o partido clerical, continua
Russell:

[...] alegram-se com a actual reviravolta da fortuna e acreditam no
seu triunfo. Rezam com fervor para que uma guerra europeia
generalizada em breve divida e dilacere Itália.

Quando Russell teve uma audiência com o papa na primavera de 1868, o pontífice
disse-lhe que, tendo em conta o seu peso em comparação com a população de Roma, o
exército papal era o maior do mundo e que, se os interesses da Igreja alguma vez viessem
a exigi-lo, «ele próprio empunharia a espada, montaria o cavalo e marcharia à frente das
tropas». Na altura o papa Pio IX tinha 75 anos.
No entanto, os interesses da Igreja de Pio exigiam muito mais do que alardes e
exibições de poder militar. Enquanto governante europeu estava numa posição única, com
o seu ascendente sobre milhões de devotos espalhados por todo o continente e
preparados para seguir as suas ordens e a sua orientação em todas as matérias. Mas
havia além disso católicos caídos no erro e que tinham abraçado a modernidade que o
próprio Pio em tempos acolhera. Essas ovelhas tresmalhadas tinham de ser chamadas ao
redil. Em 1864, Pio já tinha delineado um programa para o conseguir, delimitando para isso
uma via para a salvação mais estrita do que qualquer papa fizera antes dele.


O FIM DA LIBERDADE RELIGIOSA




Os primeiros alvos do papa Pio foram a liberdade religiosa e a igualdade de direitos
para todas as religiões, que rejeitou como «o maior insulto imaginável à única fé
verdadeira, a católica». Esta igualdade, disse o papa ao imperador Francisco José, da
Áustria, numa carta escrita em 1864, «contém o absurdo de confundir verdade e erro, luz e
trevas, encorajando assim o princípio monstruoso e horrendo do relativismo religioso, que
não pode deixar de conduzir ao ateísmo». Estas ideias profundamente reaccionárias e
conservadoras surgem na encíclica Quanta Cura (Condenação dos Erros do Nosso Tempo),
proclamada pelo papa Pio IX a 8 de Dezembro de 1864.
Quanta Cura revela a que ponto o papa se afastara das suas perspectivas anteriores,
liberais, para condenar praticamente todas as ideias progressistas em que ele próprio
acreditara.
A encíclica incluía um catálogo intitulado Syllabus errorum, em que eram enumerados
cerca de oitenta erros que todos os bons católicos deviam evitar. Nenhum devia ser
favorável à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa ou á liberdade religiosa e, tal
como o próprio Pio IX, devia rejeitar a ideia de que «o pontífice romano podia e devia
reconciliar-se com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna». Isto fazia parte de
um programa que tentava fazer regressar os fiéis aos tempos medievais, ao apogeu do
domínio da Igreja sobre as mentes e as convicções dos crentes, aos tempos em que
divergência podia equivaler a morte. Como é natural, os conservadores da Igreja, em
especial os ultrarreacionários Jesuítas, saudaram a encíclica Quanta Cura com entusiasmo.
No entanto, ao distanciar-se de forma tão clara das realidades da vida do fim do século
XIX, que já assimilara muitas das liberdades que o papa condenava, Pio IX estava a
condenar-se a si mesmo e ao papado a tornar-se um anacronismo, senão mesmo um
objecto de troça. Isto deixou muitos católicos, que apesar de leais à Igreja não deixavam
de valorizar o progresso e os seus benefícios, confusos e nalguns casos mesmo
horrorizados.
O enviado Odo Russell foi mais longe. Estava convencido de que a encíclica Quanta
Cura e o Syllabus viriam a revelar-se catastróficos para o papa, o papado e em especial
para o clero católico, que, escreveu, teria de participar numa «vasta conspiração clerical
contra os princípios que governam a sociedade moderna». Se recusassem, ver-se-iam na
posição de «ter de se opor ao vigário de Cristo, a quem deviam obediência». O único
resultado, na opinião de Russell, era um afastamento progressivo entre a Santa Sé e os
países modernos e progressistas da Europa.
A Quanta Cura desencadeou uma cadeia de protestos por toda a Europa católica, de
que o papa pareceu nem sequer se aperceber. Pelo contrário, encenou um grande jubileu
em Roma para reafirmar a sua determinação férrea de desviar a Igreja de uma
modernidade insidiosa. No início de Março de 1866, as ruas de Roma foram percorridas
por longas procissões multicolores. Viram-se cardeais com as suas vestes púrpuras,
seguidos de multidões de monges e frades com imagens sagradas e velas, numa cena que
tinha pelo menos a intenção de inspirar reverência. Estas procissões detiveram-se em
várias igrejas históricas de Roma, onde os padres empilharam e queimaram os livros
incluídos no Índex.
Mas Pio guardou para o fim a melhor revelação, ou, na perspectiva dos opositores, a
pior. O Concílio Vaticano I, realizado com a presença de uma verdadeira multidão de
cardeais e bispos, teve início da Basílica de São Pedro a 8 de Dezembro de 1869. O
concílio tinha duas finalidades: ractificar o Syllabus de 1864 e aprovar um novo princípio da
doutrina da Igreja, a infalibilidade do papa. Este princípio aplicava-se quando o papa falava
oficialmente acerca de questões de fé e moral depois de Deus lhe ter feito as revelações
em causa.




O PAPA INFALÍVEL


A infalibilidade do papa causou mais indignação e furor do que qualquer outra das
suas atitudes até ao momento. Os papas tinham legitimidade para reclamar muitos
privilégios e poderes, mas nada que se comparasse com isto. Desnecessário será dizer que
a infalibilidade do papa polarizou as opiniões.
O influente bispo francês Félix Dupanloup escreveu aprovadoramente ao cardeal
Antonelli: «O concílio vai ser um instrumento poderoso contra o Piemonte [e o governo
italiano]. O nosso argumento mais forte contra Roma capital de Itália é Roma capital do
catolicismo [...] as pretensões dos piemonteses vão tornar-se não só inviáveis, mas
também objecto de ridículo.» Acima de tudo, assegurava Dupanloup, o concílio seria uma
demonstração de força que impossibilitaria os franceses de voltarem a abandonar a
cidade.
Charles-Emile Freppel, bispo de Angers, a sudoeste de Paris, expressou uma opinião
diferente. Encarou a questão da infalibilidade a uma luz mais pessoal e humana. «Estamos
no fim do pontificado de um homem envelhecido e desencorajado, que vê tudo o que o
rodeia à luz dos seus próprios infortúnios», escreve Freppel. «Para ele, tudo o que tem
lugar no mundo moderno é, e tem necessariamente de ser, uma “abominação”.»
Houve outros críticos mais directos, nalguns casos até brutais. Ferdinand
Gregorovius, o historiador e teólogo alemão, escreveu:

Muitos estão seriamente convencidos de que o papa enlouqueceu.
Meteu-se nestas coisas com fanatismo e conseguiu votos para a
sua deificação.

Os governantes católicos autoritários da Europa estavam horrorizados com o
conceito de infalibilidade papal porque ele ameaçava sobrepor-se às suas próprias
posições. Estavam convencidos de que o seu poder, de acordo com o direito divino dos
reis, lhes tinha sido conferido por Deus e só a Ele deviam contas; de repente viam-se
perante um papa que queria passar-lhes por cima indo um pouco mais longe e
proclamando-se a voz de Deus.



APROVADA A INFALIBILIDADE PAPAL




Nem a Quanta Cura nem o Syllabus tinham provocado um choque igual. Tanto críticos
como apoiantes pronunciaram-se de forma firme em relação ao assunto. No entanto, a
opinião que realmente importava era a de Napoleão III. Até então o monarca francês
mostrara-se disposto a apoiar o pontífice, nem que fosse por condescendência com a
sensibilidade católica dos franceses. Porém, o que Sua Santidade propunha era atirar às
urtigas as liberdades cívicas conquistadas nos oitenta anos decorridos desde a Revolução
Francesa e tornar-se o árbitro divino do futuro da Europa. Era de mais. Napoleão III fez
saber que, se a infalibilidade papal fosse aprovada pelo concílio, retirava as tropas
francesas de Roma.
A votação teve lugar a 18 de Julho de 1870. O partido da infalibilidade ganhou com
547 votos a favor e dois contra. No entanto, as coisas não correram inteiramente de
acordo com os desejos do papa Pio. A infalibilidade dos seus poderes não ficou tão
alargada como era seu desejo.
Tinham sido diluídos pela oposição, que conseguiu retirar os princípios básicos da
liberdade civil das condenações da encíclica Quanta Cura e do seu Syllabus. Contudo, foi
significativo que os embaixadores dos principais países católicos da Europa – França,
Áustria, Espanha e Portugal – se tenham feito notar pela ausência no momento da
votação.
O destino reservava uma reviravolta surpreendente tanto ao imperador Napoleão
como ao papa Pio IX. A 27 de Julho de 1870, os franceses anunciaram a intenção de
retirar as suas tropas de Roma, porque, como foi dito, «eram necessárias noutro lugar».
Isto nada teve que ver com a ameaça de Napoleão ou com a infalibilidade papal. O «outro
lugar» ficava algures na fronteira entre a França e a Prússia, o maior e mais poderoso dos
estados alemães. Há algum tempo que as tensões estavam a aumentar e, a 19 de Julho,
no dia que se seguiu á votação em Roma, os franceses declararam guerra.





A GUERRA ENTRE A FRANÇA E A PRÚSSIA




A guerra franco-prussiana, que durou menos de um ano e terminou com uma vitória
decisiva da Prússia a 10 de Maio de 1871, foi desastrosa para a França. As hostilidades
arruinaram Napoleão III, que foi capturado pelos prussianos e mais tarde se exilou em
Inglaterra. Os acontecimentos puseram fim à monarquia em França e, num insulto final a
um adversário vencido, os prussianos declararam a unificação dos estados alemães sob a
sua liderança na fabulosa Sala dos Espelhos de Versalhes, construída por ordem de Luís
XIV cerca de 150 anos antes.
Para o papa Pio IX, a guerra representou um desastre de outro tipo: a derrota do
velho aliado que era a França significava que deixara de haver qualquer obstáculo a impedir
Vítor Emanuel e o governo italiano de tomar Roma e declarar a cidade capital do reino
unificado de Itália. Isto deu origem a rumores de que o papa se preparava para abandonar
Roma e deixar os seus habitantes, já de si apavorados, entregues ao seu destino às mãos
dos terríveis bandos de nacionalistas. Corria que os Jesuítas estavam a instigar o papa a
fugir sem tardar e a pedir protecção aos britânicos na ilha de Malta, sob o seu domínio. A
única esperança parecia ser uma negociação entre o governo de Vítor Emanuel e o papa
que impedisse a ocupação de Roma que se adivinhava. Mesmo o leal cardeal Antonelli
suplicava ao papa que o fizesse. Porém, não houve suplicas nem receios capazes de o
convencer.


O APOIO AO PAPA


O que estava aqui em causa não era apenas a reacção de um velho obstinado isolado
no seu mundo arrogante. Pio IX tinha muito mais – ou pensava que tinha – em que apoiar-
se. Para começar, o papa estava a contar com as promessas do conde Otto von
Bismarck, o Chanceler de Ferro, do rei Guilherme I da Prússia e até do governo italiano, de
que não havia perspectivas de invasão dos territórios do papado. Foi por isso que Pio IX
ficou tão furioso quando nem os oficiais do exército nem a polícia papal pareceram
perceber a mensagem. Por exemplo, quando o comissário da polícia papal lhe pediu
instruções em relação ao modo de proceder com os invasores, o papa, apesar da idade
avançada, saltou do trono furioso e gritou: «Será possível que não tenha percebido?!
Recebi garantias formais de que os italianos não vão pôr os pés em Roma! Quantas vezes
terei de o repetir?!»
No entanto, o que o próprio papa parecia não perceber é que no mundo quotidiano
exterior ao Vaticano todas as garantias se desvaneciam quando as circunstâncias o
propiciavam. Foi o que quase aconteceu um mês depois de os franceses terem saído de
Roma. A 20 de Agosto de 1870, na Câmara dos Deputados, o parlamento italiano, o
governo ganhou um voto de confiança acompanhado de uma importante condição: que os
ministros do rei encontrassem uma maneira de «resolver a questão romana de uma forma
consentânea com as aspirações nacionais».
A mensagem estava em código, mas era fácil perceber o que significava: se as
«aspirações nacionais» fossem correspondidas, a «questão romana» não poderia ser
resolvida a favor do papa. O líder da Igreja Católica em Inglaterra, o cardeal Henry Edward
Manning, apercebeu-se do perigo que a situação envolvia e pediu uma reunião urgente
com o primeiro-ministro inglês, William Gladstone, para preparar a ajuda e, se necessário, o
socorro ao santo padre. Pouco depois o navio inglês Defence partiu rumo a Civitavecchia.
Levava instruções para admitir o papa a bordo se ele entendesse partir.


UMA PERTURBAÇÃO «ESPONTÂNEA»




Era uma precaução perspicaz. Por trás da fachada de garantias de que não haveria
nenhum ataque a Roma, o governo italiano procurava desesperadamente um pretexto que
lhe permitisse tomar a cidade. Apesar de a ideia já ter falhado antes, os italianos
regressaram à perturbação «espontânea» a provocar em Roma com o objectivo de
justificar o seu «dever» de intervir. Poderia haver ataques com armas aos quartéis, que
com sorte conduziriam a um levantamento popular. As tropas do papa, em grande maioria
estrangeiras, podiam ser pagas para provocar distúrbios nas ruas da cidade, a que os
habitantes não deixariam de se juntar.
Poderiam ser disparadas armas durante a noite, ao mesmo tempo que aqui e ali eram
hasteadas bandeiras de Itália. Isto daria a impressão, como disse o primeiro- -
ministro Giovanni Lanza a um grupo de jovens conspiradores, de que «Roma estava
entregue à anarquia e o governo do papa deixara de ter condições de controlar a situação
com as suas próprias forças». Lanza conclui com uma nota de prudência: «Tenham o
cuidado de assegurar que rebentam em Roma tantos distúrbios quanto possível», avisou
os conspiradores, «mas não uma revolução.»
Era uma política arriscada e impetuosa, que obteve a aprovação do ministro dos
Negócios Estrangeiros, Emilio Visconti-Venosta, que teve esperança de que fosse possível
alcançar um compromisso entre o papa e o governo italiano. Não era da natureza de
Visconti correr riscos sérios e até ao último momento esperou que, de uma maneira ou de
outra, «a independência, a liberdade e a autoridade religiosa do pontífice pudessem ser
preservadas».


NÃO HÁ NEGOCIAÇÕES


O grande obstáculo à sua ambição continuava a ser o próprio papa. Pio IX não tinha
qualquer intenção de negociar com o governo italiano, porque isso seria reconhecer a sua
legitimidade, o que ele nunca faria. Nem Visconti, razoável e conciliador, foi capaz de
vencer a resistência papal, nem um plano governamental, revelado em Setembro de 1870,
que incluía deixar ao papa a chamada cidade leonina, uma secção de Roma de que fazia
parte o Vaticano, na margem direita do Tibre.
Como era de prever, o papa Pio rejeitou a ideia. Em sua opinião, as forças de Deus
defrontavam as forças do Demónio no combate pelo domínio de Roma, e o Demónio, na
forma do governo do rei Vítor Emanuel, estava condenado à derrota. Em termos menos
apocalípticos, era quase de certeza esta a opinião generalizada no Vaticano.
Porém, tudo isto aconteceu antes da captura de Napoleão III pelos prussianos, da
abolição da monarquia em França e, por fim, da vitória retumbante da Prússia na guerra de
1870-1871. Embora apanhado de surpresa pelos acontecimentos, em especial pela saída
de cena de Napoleão III, Pio IX insistiu em rejeitar as propostas de última hora para evitar
a guerra. Uma delas, apresentada a 10 de Setembro de 1870 por um nobre do Piemonte, o
conde Panza di San Martino, veio do rei Vítor Emanuel, acompanhada da garantia de que
a independência e o prestígio da Santa Sé seriam protegidos.
O papa leu a missiva do rei, mas recusou responder-lhe directamente. Em vez disso,
enviou uma breve mensagem a Vítor Emanuel. Escreveu-lhe: «O conde Panza di San
Martino entregou-me uma carta que Vossa Majestade me dirigiu, mas que não é digna de
um filho afectuoso que assegura professar a fé católica.» Responder às propostas do rei,
assegurou Pio IX, seria...

[...] renovar o sofrimento que a primeira leitura provocou em mim
[...] Abençoo o Deus que achou por bem permitir que Vossa
Majestade enchesse os meus últimos anos de vida de amargura.
Peço-Lhe que vos dispense a Sua graça, protegendo-vos do perigo
e concedendo-vos a Sua misericórdia de que tanta necessidade
tendes.



PRISIONEIRO DO VATICANO


A mensagem subjacente era, como é evidente, a mesma que antes. Não haveria
cedências ao Demónio e às suas hordas. O papa estava determinado a manter-se firme e,
se necessário, a morrer para não ter de entregar os territórios do papado que pertenciam
legitimamente a Deus. Contudo, Pio IX acabou por não morrer em defesa de Roma. Em
vez disso, a sua posição obstinada transformou-o no que ele próprio descreveu como um
«prisioneiro do Vaticano». Não voltou a deixar o enclave até à sua morte, em 1878, e nos
cinquenta anos seguintes o mesmo aconteceu com três dos quatro papas eleitos depois de
Pio IX.
















Capítulo

VIII


O cardeal Gasparri e o ditador Benito Mussolini assinam
o Tratado de Latrão, em 1929. Depois de sessenta anos de conflito,
a Igreja reconhecia o reino de Itália e era criado o mais pequeno estado
soberano do mundo: a Cidade do Vaticano.
(Corbis/ VMI)










O PRISIONEIRO DO VATICANO


O reino de Itália declarou guerra aos domínios do papado a 10 de Setembro de 1870.
Dois dias mais tarde, as forças militares italianas entraram em território papal. Quatro dias
depois, capturaram o porto de Civitavecchia.
Dali avançaram lentamente em direcção a Roma, a uma distância de cerca de
sessenta quilómetros, na esperança de que fosse alcançado um compromisso que evitasse
a tomada da cidade pela força. Para isso, espalharam cartazes de propaganda pela cidade
com uma mensagem em que expressavam a sua boa vontade e as suas intenções
pacíficas.
Em Roma, as autoridades do Vaticano não tinham fé na propaganda. Pelo contrário,
de acordo com as instruções do papa, estavam seguros de que a intervenção divina
acabaria por salvá-los no último minuto. Não salvou. A 19 de Setembro, os italianos tinham
chegado às Muralhas de Aureliano, uma estrutura de 18 metros de altura e 19 quilómetros
de extensão que rodeava Roma. A cidade ficou literalmente cercada. O mesmo acontecia
com Paris, sitiada pelos prussianos no mesmo dia. Era absurdo esperar ajuda de França,
mas o papa Pio estava esperançado nos austríacos, o estado católico mais poderoso da
Europa.

OS AUSTRÍACOS HESITAM


Os austríacos, contudo, estavam relutantes em tomar uma posição favorável ao
Vaticano, que poderia desencadear uma guerra com os italianos, que o imperador
Francisco José queria evitar a todo o custo. O melhor que os austríacos podiam fazer era
expressar a sua dedicação ao papa Pio e oferecer-lhe protecção em qualquer cidade do
Império Austro-Húngaro no caso de ele decidir abandonar Roma.
Monsenhor Scapinelli, o núncio apostólico em Viena, explodiu de raiva quando
recebeu esta mensagem. «É preciso desplante», disse Scapinelli ao ministro dos Negócios
Estrangeiros austríaco, o conde Friedrich Ferdinand von Beust, «para me convidarem para
me mudar para casa deles ao mesmo tempo que nada fazem para evitar que eu seja
expulso da minha!»
Entretanto, Vítor Emanuel tentava os meios diplomáticos para persuadir o papa a
mudar de ideias e a resolver a «questão romana» por acordo político. Não foi hem
sucedido. Pio IX recusou sujeitar-se a argumentos de cariz humanitário, como o número de
mortos que o uso da força decerto envolveria. Pelo contrário, inverteu os argumentos e
disse aos italianos e ao seu rei que seriam eles, e não ele, papa, os responsáveis por
essas perdas humanas e teriam por isso de carregar o fardo dessa responsabilidade
imensa perante Deus e o tribunal da história.


PROPAGANDA RIVAL


Ambos os rivais da luta por Roma – os nacionalistas italianos e as autoridades do
Vaticano – usaram a propaganda para apresentar a sua causa aos habitantes. Pelo lado
dos nacionalistas houve uma mensagem de Raffaele Cadorna, à frente do exército que
avançou sobre Roma. Mas a oposição do Vaticano antecipou-se e afixou cartazes com
uma mensagem a amedrontar as populações. Dizia o seguinte:

Romanos! Um mal horrendo está a ser tentado! O santo padre, na
posse pacífica do seu capital e das poucas províncias que
escaparam à usurpação dos seus domínios, está a ser ameaçado
sem qualquer razão pelas tropas de um rei católico. Roma está por
isso sitiada.

Os cartazes de Cadorna, batidos aos pontos por este anúncio apocalíptico, eram
mais suaves e incluíam uma farpa para os franceses:

Italianos das províncias romanas! A independência da Santa Sé
continuará inviolável, bem como a liberdade dos cidadãos, embora
mais resguardada do que alguma vez foi sob a protecção de forças
estrangeiras.


O FIM DA LINHA


Ambos os lados chegaram a um impasse. Depois disto só faltava as forças italianas
prepararem a entrada em Roma e o papa fazer uma demonstração pública de fé em Deus.
Com este fim, o papa Pio, então com 78 anos, de joelhos, subiu os 28 degraus da Santa
Escada junto da Basílica de São João de Latrão. Quando chegou ao topo rezou a Deus
implorando-Lhe que protegesse o Seu povo. Muitas das pessoas que observaram a cena
sentiram-se comovidas até às lágrimas.
O ataque do exército italiano foi lançado às cinco da manhã de 20 de Setembro de
1870. Maitland Armstrong, o cônsul americano em Roma, descreveu os acontecimentos:

As velhas muralhas revelaram-se inúteis contra a artilharia pesada.
Em quatro ou cinco horas, nalguns pontos ficaram completamente
destruídas. Junto da Porta Pia a abertura era de 15 metros, por
onde entraram os soldados italianos num número avassalador.
Inundaram literalmente a cidade, ao mesmo tempo que a Porta
San Giovanni era tomada de assalto. Uma bandeira branca foi
hasteada no domo de São Pedro. Depois do fim da canhonada as
tropas papais mal esboçaram uma tentativa de resistência. Em
seguida, aqueles que pouco antes dominavam Roma com punho
de ferro foram quase todos feitos prisioneiros ou refugiaram-se no
Castel Sant’Angelo ou na Praça de São Pedro.

A luta por Roma na realidade não foi tão brutal como na descrição de Armstrong. As
forças papais receberam ordens para resistir apenas o suficiente para mostrar a sua
disposição de defender a Santa Sé e os italianos receberam instruções rigorosas de limitar
tanto quanto possível os estragos provocados, de não atirar sobre civis e de não causar
danos na cidade leonina. Embora o papa Pio tenha rejeitado a sua proposta, o governo
italiano mantinha a intenção de conceder esse território ao papado.
Outro dos factores que podem ter moderado os combates foi o estado de espírito
predominante em Roma. O pontífice tinha os seus devotos, aterrados com a ideia de que
ele ia abandonar a cidade e deixá-los ali, mas muitos outros habitantes parece terem
recebido as tropas invasoras como libertadoras, que os livrariam para sempre do poder
autoritário do papa. O mais alarmante eram as exigências populares de encerramento de
todos os mosteiros e conventos da cidade e de expulsão de todos os religiosos que aí
vivessem.
O observador que em tempos considerara o basso popolo (os romanos de classe
baixa) «selvagens e sedentos de sangue» não exagerou. Se estas pessoas tivessem sido
incentivadas a pôr-se do lado dos italianos, a ocupação de Roma teria sido muito mais
violenta e destrutiva do que foi, por isso era do interesse de ambos os lados que tudo se
fizesse depressa e com limpeza. Levada a cabo a ocupação, os termos da rendição foram
rapidamente negociados e Roma, excluindo a cidade leonina, foi incorporada no reino de
Vítor Emanuel II, primeiro rei de Itália.
Roma estava transformada. Um dos jornais da cidade do dia 23 de Setembro
apresentou a questão em termos entusiásticos, que incluíam uma enumeração das muitas
restrições à vida da cidade que haviam sido impostas pelo poder papal:

Ao fim de 15 séculos de luto, sofrimento e dor, Roma, em tempos
rainha do mundo, voltou a ser a metrópole de um grande estado.
O dia de hoje é para nós, romanos, um dia de júbilo indescritível.
Hoje em Roma a liberdade de pensamento deixou de ser crime e a
liberdade de expressão é visível dentro das suas muralhas, sem
medo da Inquisição, da morte na fogueira ou da condenação às
galés. A luz da liberdade cívica que, nascida em França, iluminou
toda a Europa, brilha hoje também na Cidade Eterna. Em Roma, a
Idade Média só hoje teve fim!

A celebração da modernidade e das liberdades que o papa Pio IX tanto se esforçou
por suprimir generalizou esta atitude e deu-lhe uma base mais firme do que nunca. Os
italianos tentaram ceder a cidade leonina ao papa. Este recusou. Foi sugerida uma oferta
de homenagem, igualmente recusada porque obrigaria o papa a receber um representante
do «rei usurpador», Vítor Emanuel, e ele não estava disposto a isso.




NUNCA CEDER



Por fim, aqueles que tinham esperança numa reconciliação, como Emilio Visconti--
Venosta ou o primeiro-ministro Lanza, convenceram-se de que Pio IX nunca aceitaria uma
proposta, uma oferta ou mesmo uma mera sugestão do governo italiano. Todas as ofertas
que chegaram ao papa vindas do governo de Vítor Emanuel enfrentaram uma muralha de
resistência, o que criou apreensão no governo italiano e envenenou a atmosfera no
Vaticano.
O ambiente tornou-se sombrio. Os cardeais receavam passar nas ruas ou conduzir as
esplêndidas carruagens que os identificavam como servidores do papa. Os padres
procuravam passar despercebidos, obviamente receosos de serem reconhecidos ou
agredidos por bandos violentos. O pior de tudo talvez tenham sido os gritos de «morte ao
papa!» ouvidos do lado de fora dos muros do Vaticano. A liberdade de imprensa permitia a
venda de livros abertamente sediciosos e blasfemos em Roma, o que incitava o ódio ao
papado, que se tornava cada vez mais visível por todo o reino de Itália. De acordo com o
cardeal Antonelli, o incansável secretário de Estado do papa, o governo oferecia
publicamente repetidas garantias de respeito pelo pontífice, de preocupação com o seu
bem-estar e a sua segurança e insistia no desejo de encontrar um compromisso que lhe
permitisse funcionar livremente, mas tudo não passava de um disfarce cínico dos mais
terríveis abusos. Algumas das acusações de Antonelli eram violentas. Denunciou, entre
outras coisas:

[...] a espoliação do chefe da Igreja de todos os seus domínios, de
todos os seus rendimentos, os bombardeamentos da capital do
catolicismo, as impiedades espalhadas entre a população pelos
jornais, os ataques violentos à religião e às ordens monásticas, a
profanação do culto católico, chamado superstição, a recolha de
todas as imagens sagradas das escolas públicas ordenada pelas
autoridades governamentais e o apagamento do nome de Jesus de
cima do portão grande do Colégio Romano.

Era neste pano de fundo de perigo que o cardeal Antonelli se afadigava a encorajar os
núncios papais nas capitais europeias a incitar os governos próximos do papa a passar à
acção. Os seus esforços produziram alguns efeitos positivos, mas não foram suficientes.
Na Alemanha, por exemplo, vários príncipes, nobres e advogados de vários estados
assinaram uma petição a condenar a ocupação de Roma e a destruição do poder secular
do papa nos domínios do papado. Na Bélgica e em mais alguns países, os católicos foram
encorajados a organizar protestos em que declaravam a ocupação de Roma um acto
sacrílego e as ameaças ao papa um equivalente de parricídio. Foram organizadas
procissões e celebradas centenas de missas. Os bispos da Alemanha e da Bélgica
bombardearam Vítor Emanuel e o seu governo com protestos pessoais. O novo cognome
do papa, de «prisioneiro do Vaticano», foi bem aproveitado e foram pronunciadas muitas
denúncias inflamadas dos italianos «heréticos» e muitas ameaças de castigos pelos seus
«crimes».



FRUSTRAÇÃO DE ANTONELLI


O que o cardeal Antonelli mais fervorosamente desejava – uma campanha europeia
concertada dos governos católicos, do clero e das congregações religiosas sufi-
cientemente ruidosa para pressionar realmente os italianos e levá-los a retirar de Roma e
dos domínios do papado para restabelecer o que o papa recebera em herança – não
sucedeu. No seu desejo genuíno de salvar Pio IX de uma situação desesperada, Antonelli
menosprezou um aspecto vital da Europa de fim do século XIX. O continente europeu era
muito diferente do que fora nos tempos em que os seus governantes autocráticos podiam
fazer valer direitos hereditários e esperar uma obediência cega dos seus súbditos. As
revoluções de 1789 e de 1848 haviam destruído a Europa em que essas atitudes
prevaleciam. Isto foi confirmado por um choque posterior – a Comuna de Paris, no início
de 1871 –, em que os trabalhadores, que tanto foram considerados anarquistas como
socialistas, se ergueram contra o governo francês, que acabara de assinar uma paz
humilhante com os prussianos imposta pela força.
As respostas pouco convictas dos austríacos e dos belgas aos incitamentos de
Antonelli eram indicadores da nova situação, que Pio IX e o seu dedicado secretário de
Estado faziam por ignorar. Na realidade, restaurar o poder do papa infalível que dera a
cara publicamente à luta contra o mundo moderno desencadearia desordens inimagináveis.
As populações recentemente libertadas erguer-se-iam em defesa dos seus direitos cívicos
duramente conquistados e da liberdade que os acompanhava. Além disso, Pio IX não
queria saber de protestos, manifestações, promessas ou acordos. Para ele, a única
solução aceitável era o desmantelamento do estado italiano. Vítor Emanuel devia ser
enviado para o Piemonte, de onde viera. Roma e o papado tinham de ser resgatados e,
nas palavras de Antonelli, «o restabelecimento total e absoluto dos domínios e do poder
pontifício» tinha de ser posto em prática.



A MORTE DO REI E DO PAPA




Tudo isto tinha chegado a um impasse quando, em 1878, ambos os protagonistas, o
rei Vítor Emanuel e o papa Pio IX, morreram. Primeiro morreu o rei, a 9 de Janeiro, aos 59
anos, de uma pneumonia, depois de o papa ter acedido ao seu último desejo, que foi
conceder-lhe a extrema-unção. O sumo pontífice foi a seguir, quatro semanas mais tarde,
a 7 de Fevereiro. Tinha 85 anos e até hoje o seu pontificado continua a ser o mais longo
da história da Igreja.
Enquanto o mundo católico fazia o seu luto, outros aproveitavam o falecimento do
papa para expressar a sua fúria contra os seus actos e atitudes. A Igreja e o clero católico
foram perseguidos tanto na Alemanha como na Suíça. Na Áustria, Pio IX foi criticado pela
sua recusa de receber um membro da família imperial que se deslocara a Roma para o
funeral do rei. Um partido secular anti-católico com um ódio violento ao papado governava
a França, em tempos a grande defensora da Santa Sé. Espanha e a Bélgica, embora
fossem países católicos, também não morriam de amores pelo Vaticano.
Neste pano de fundo, o futuro das relações do papado com o estado italiano não
parecia promissor. O que fazia falta eram dois novos protagonistas – rei e papa –
dispostos a negociar um acordo. Acima de tudo, ambos teriam de perceber a necessidade
de sair do impasse em que a morte de Vítor Emanuel e de Pio IX os deixara. Além disso,
ambos eram apoiados por partidários intransigentes, que se opunham de forma tão
virulenta à causa dos seus inimigos que recorriam aos adjectivos mais insultuosos para se
atacarem mutuamente em público.



O PAPA LEÃO XIII E O REI HUMBERTO




Neste contexto, nem Leão XIII, que sucedeu a Pio IX no trono pontifício, nem
Humberto I, que se tornou rei de Itália pela morte do pai, pareciam capazes de produzir o
milagre de alcançar uma solução pacífica para a «questão romana». O papa Leão era um
homem delicado e culto. Era um diplomata e nunca cedia aos espectáculos emotivos do
gosto do seu antecessor. Nunca falava de forma impetuosa nem agia sem reflectir. Ao
contrário de Pio IX, Leão XIII percebia o mundo moderno e tinha apreço pela democracia,
embora de forma comedida. Rejeitava a igualdade e a liberdade incondicional de
pensamento por considerar que não convinham às pessoas vulgares, que, pensava, eram
demasiado imaturas e indisciplinadas para poderem lidar convenientemente com elas.
Contudo, não era possível contornar o facto de que Leão XIII acreditava na sua
infalibilidade enquanto papa e com isso no seu direito inalienável de recuperar e governar
Roma e o papado. Como sempre, o reino de Itália opunha-se de forma incondicional a
estas ideias, bem como o seu soberano, Humberto I, firmemente decidido a que Roma
permanecesse a capital do seu reino. Fosse como fosse, viviam-se tempos demasiado
difíceis para Humberto I tentar sequer um acordo com o papa. Todo o reino de Itália era
percorrido pelas convulsões sociais resultantes das ideias socialistas e pela hostilidade a
várias tentativas de restringir as liberdades civis. Estes distúrbios culminaram no assassínio
do rei Humberto, em 1900, por um anarquista, Caetano Bresci, em Monza, no Norte de
Itália. O papa Leão XIII morreu, três anos mais tarde, aos 93 anos de idade, sempre
prisioneiro do Vaticano. Durante o quarto de século que durou o seu pontificado, Leão
nunca pôs os pés fora do recinto da Santa Sé.
A reconciliação tornou-se ainda menos provável com a eleição do sucessor de Leão
XIII, o cardeal Giuseppe Sarto, que escolheu o nome de Pio X, e com a subida ao trono de
Vítor Emanuel III, que se tornou o terceiro rei de Itália com o assassínio do pai. Há muito
que era tradição os papas escolherem o nome de um predecessor que admirassem
especialmente, e Pio X apresentou as suas credenciais de homem profundamente
conservador quando escolheu o do primeiro «prisioneiro do Vaticano», Pio IX. O décimo
Pio revelou-se um crítico mordaz dos «relativistas» e dos «modernistas», que considerava
perigosos para a fé católica e os seus aderentes. Para sublinhar estas ideias, Pio X criou
um «Juramento contra o Modernismo», que começa de facto com uma posição
intransigente:

Adopto e aceito toda e qualquer definição alguma vez apresentada
e declarada pelos ensinamentos da autoridade infalível da Igreja,
em especial as verdades fundamentais que se opõem
directamente aos erros dos nossos dias.

Os clérigos que se recusaram a fazer o juramento – houve cerca de quarenta
suficientemente corajosos (ou imprudentes) para o fazer – enfrentaram a possibilidade de
ser excomungados, tal como os académicos ou os teólogos que enveredaram por vias
seculares ou modernistas em relação com o seu trabalho. Embora sempre «prisioneiro» no
Vaticano, Pio X não receava punir os chefes de estado estrangeiros que reconheceram o
reino de Itália, e portanto, implicitamente, o «roubo» de Roma e dos domínios do papado.
Esta posição teve por vezes consequências embaraçosas, já que, por exemplo, quando o
presidente de França, Émile Loubet, fez uma visita oficial ao rei Vítor Emanuel III, o papa
Pio X recusou recebê-lo. Os franceses retaliaram cortando relações diplomáticas com o
Vaticano.
O pequeno Vítor Emanuel III não era homem para enfrentar a fúria e a determinação
de Pio X, que o dominava tanto física como intelectualmente. O pequeno e delicado
cardeal Giacomo Della Chiesa, um nobre eleito papa com o nome de Bento XV depois da
morte de Pio X, em 1914, estava mais próximo do rei no que dizia respeito a estatura.
Mesmo a mais pequena das três sotainas que se fazem antes da eleição de um novo papa
era grande de mais para ele. Por essa razão, começou a ser conhecido como Il Piccolito (o
Pequenote), embora nas suas convicções não houvesse nada de moderado.
Bento reafirmou com convicção a posição de Pio X contra a «ocupação» de Roma e
dos domínios do papado por Itália. Além disso opôs-se aos académicos modernistas que
haviam sido excomungados pelo predecessor. O acontecimento histórico que dominou o
seu pontificado foi a Grande Guerra. Referiu-se-lhe como o suicídio da Europa e tentou
desesperadamente, embora sem êxito, impedi-la. Contudo, com o fim da guerra uma nova
preocupação se impôs ao Vaticano, desta vez relacionada com a segurança, e até com a
continuação do papado.
A Revolução Russa de 1917, o assassínio da família Romanov no ano seguinte e a
determinação dos dirigentes comunistas de levar o credo marxista a toda a Europa
espalharam a apreensão e o medo pelo continente. Este medo era ainda maior no
Vaticano, já que o governo comunista era ateu e pouco depois de subir ao poder
empreendeu o desmantelamento da Igreja Ortodoxa na Rússia. O espectro de uma Europa
dominada pelo ateísmo na sequência de uma vitória comunista era demasiado assustador,
mas tinha de ser enfrentado. Em Roma, o perigo assumiu proporções muito maiores do
que as que estavam por trás da luta contra o reino de Itália a propósito da ocupação dos
domínios do papado. Em 1919 anunciava-se para Itália um futuro assustador, com os
militantes socialistas a combaterem os activistas de extrema-direita em confrontos de rua
de grande violência, que quase levaram a Itália à anarquia.



0 COMBATE AO COMUNISMO


Apesar do seu conservadorismo inato, Bento XV teve a capacidade de pressentir as
ameaças sombrias que pairavam no horizonte e a sua intuição abriu a primeira fissura na
armadura da resistência papal ao estado italiano. Em 1919, Bento XV deu um passo que
teria sido anatematizado pelos seus predecessores imediatos e sancionou a criação do
Partido Popular Católico, conduzido por um padre, Luigi Sturzo. Anteriormente, os papas
tinham proibido os católicos de votar sequer nas eleições, e acima de tudo de se
candidatar a cargos políticos. De um dia para o outro, começaram mesmo a fazê-lo de
forma oficial, e na realidade até tiveram bons resultados na sua primeira tentativa, tendo
ficado em segundo lugar, atrás do Partido Socialista Italiano, com 21 por cento dos
sufrágios, contra 32 dos socialistas. O melhor foi que, para grande alívio do papa, o
Partido Popular, em coligação com o governo liberal, excluiu os socialistas do poder. No
entanto, um levantamento muito mais vital estava já em movimento. As greves na indústria
– duas mil só em 1920 –, em conjunto com a agitação e a violência tanto da esquerda
como da direita continuaram sem tréguas até a guerra civil em Itália parecer inevitável.
Nesse momento um salvador inesperado entrou em cena. O movimento fascista,
formado em 1919 e conduzido por um homem que pertencera ao Partido Socialista, Benito
Mussolini, começou a organizar bandos de rufias que percorriam as ruas das cidades e das
vilas com o fim, literalmente, de espancar os seus rivais, socialistas e outros. A polícia, os
militares e a direita liberal, os homens de negócios ricos e quaisquer outros com interesse
em manter a ordem pública para poder continuar as suas actividades, aprovaram ou pelo
menos fingiram ignorar a violência fascista.



A MARCHA SOBRE ROMA




O papa Bento XV, que morreu no início de 1922, acabou por não presenciar o
desfecho destes acontecimentos. Em Outubro desse ano, Mussolini organizou a sua
«Marcha sobre Roma», onde um Vítor Emanuel III intimidado o nomeou primeiro- -
ministro. Mussolini não tardou a alargar os seus poderes. Aboliu todos os outros partidos
políticos e os sindicatos e suprimiu todas as liberdades democráticas. Substituiu-as por um
estado totalitário com ele próprio no topo, na qualidade de Duce, o chefe.
Entretanto, no Vaticano, um novo papa fora eleito para suceder a Bento XV e,
embora não aprovasse as tácticas terroristas a que Mussolini recorrera para ascender ao
poder e para o manter, viu nele um homem com quem poderia negociar. O cardeal Achille
Ratti, arcebispo de Milão, era um homem de vontade firme e convicções fortes. Foi eleito
papa com o nome de Pio XI a 6 de Fevereiro de 1922, ao fim de 14 votações. O seu
primeiro acto como papa – restabelecer a bênção Urbi et Orbi (à Cidade e ao Mundo) –
revelou um pontífice que tinha uma noção mais cosmopolita das coisas do que os
anteriores, que haviam recusado a bênção depois da perda de Roma e dos domínios do
papado, num protesto contra a invasão do chão sagrado do Vaticano pelo mundo secular.


POR FIM UM PAPA MODERNO




Acima de tudo, o papa Pio XI estava consciente de que o mundo do século XX era
movido por novos imperativos depois de os quatro grandes impérios e os seus
governantes, na Alemanha, na Rússia, na Áustria-Hungria e na Turquia otomana terem sido
destronados com a Grande Guerra. Neste contexto, as velhas rivalidades haviam perdido
sentido e tinham de ser postas de lado para enfrentar com eficácia os novos desafios –
comunist as versus democratas, religião versus secularismo. De acordo com esta nova
realidade, Pio XI aceitou que o reino de Itália não ia desaparecer, ao contrário do papado,
que se fora para sempre. Isto queria dizer que o isolamento político da Igreja tinha de
acabar, para que esta pudesse retomar o seu trabalho missionário e voltar a exercer uma
influência global.
Pelo seu lado, Benito Mussolini pouco queria saber da fé católica, do papa ou do que
quer que não tivesse alcance sobre o seu poder pessoal. No entanto, era um oportunista e
sabia muito bem que a sua ditadura condenava Itália a ser considerada um estado pária,
inimigo das liberdades democráticas. Por esta razão, Mussolini valorizou a reconciliação
com o papa e a benevolência com que o seu estado e o seu regime seriam encarados,
sobretudo pelos católicos de todo o mundo, na sequência da assinatura de um eventual
tratado.


O TRATADO DE LATRÃO DE 1929




As negociações levaram muitos anos, mas a 11 de Fevereiro de 1929 o cardeal Pietro
Gaspari, em representação do papa Pio XI, e Benito Mussolini, em representação de Vítor
Emanuel III, rei de Itália, usaram uma caneta de ouro feita propositadamente para assinar
o Tratado de Latrão na sala dos papas do Palácio de São João de Latrão, em Roma. O
tratado criou o estado soberano mais pequeno do mundo, a Cidade do Vaticano, com
apenas 44 hectares. Era o novo papado, muito mais pequeno mas incontestado, com o
papa como senhor reconhecido.
A questão que incompatibilizara o Vaticano e o reino de Itália durante mais de
sessenta anos estava sanada. Os primeiros quatro dos seus 27 artigos estabeleciam os
pontos principais em que ambos os lados se haviam posto de acordo.

Artigo 1: A Itália reconhece e reafirma o princípio estabelecido no
artigo primeiro da Constituição de Itália de 4 de Março de 1848,
de acordo com o qual a religião Católica Apostólica Romana é a
única religião do estado.

Artigo 2: A Itália reconhece a soberania da Santa Sé em questões
internacionais como um atributo inerente em conformidade com as
suas tradições e as exigências da sua missão no mundo.

Artigo 3: A Itália reconhece a posse total, o domínio exclusivo, a
autoridade soberana e a jurisdição da Santa Sé sobre o Vaticano
na sua constituição actual, em conjunto com todos os seus bens
e rendas, criando assim a Cidade do Vaticano.
Artigo 4: A soberania e a jurisdição exclusiva sobre a Cidade do
Vaticano, que a Itália reconhece como domínio da Santa Sé,
exclui qualquer intervenção da parte do governo italiano, ou o
reconhecimento de qualquer autoridade que não a da Santa Sé.

Os sinos da Basílica de São João de Latrão tocaram depois da assinatura do tratado.
Havia muito a celebrar. Com esse acordo, o Vaticano reconhecia a legitimidade do estado
italiano e Roma como sua capital. As escolas de toda a Itália assumiam o compromisso de
proporcionar instrução católica e as imagens religiosas que haviam sido retiradas depois da
proclamação do estado italiano voltaram às paredes das salas de aula. O clero, no
entanto, não ficava autorizado a participar na vida política e o Partido Popular Católico foi
desmantelado.




A IMPRENSA REAGE AO TRATADO




O Tratado de Latrão encheu as manchetes dos jornais. «Mussolini e Gaspari assinam
pacto romano histórico!», declarava o San Francisco Chronicle. «Cena histórica no Palácio
de Latrão!», anunciava o The Catholic Advocate. «Fim de longa divisão em Itália»,
anunciava o Wisconsin Rapids Daily Trihune no dia 7 de Junho de 1929, o dia da ratificação
do tratado. O artigo continuava:

Toda a cidade de Roma exultava com o repicar dos sinos das
igrejas quando o primeiro-ministro Mussolini e o cardeal Gaspari
ratificavam solenemente o histórico Tratado de Latrão. [...] Não
houve discursos e a cerimónia foi breve e simples. Um dos
momentos mais marcantes e simbólicos foi o da abertura dos
portões de bronze que dão para a colunata da Praça de São
Pedro, que durante 59 anos se mantiveram apenas entreabertos.



O ÚLTIMO PRISIONEIRO DO VATICANO




A 25 de Julho de 1929, o papa Pio XI celebrou missa. Depois disso conduziu uma
procissão que saiu da Basílica de São Pedro ao sol desse dia de verão para a praça, onde
uma multidão de cerca de 250 mil pessoas aguardava a sua bênção. O quinto e último
prisioneiro do Vaticano foi por fim libertado do encarceramento auto-imposto e pela
primeira vez em quase sessenta anos conviveu com o mundo exterior.











Capítulo

IX


O papa Pio XII, aqui ainda cardeal e núncio apostólico, sai do palácio presidencial
em Berlim, sob o olhar atento da guarda militar, em 1929.
(Corbis/VMI)











O PAPA E OS NAZIS


A dizer-se de algum papa que ao ser eleito para o trono de São Pedro recebeu um
cálice envenenado, esse papa foi Eugênio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, que se tornou
Pio Xll a 2 de Março de 1939, dia do seu 63.° aniversário. Apenas seis meses mais tarde, a
3 de Setembro, a invasão da Polónia pelas forças da Alemanha nazi iniciava a Segunda
Guerra Mundial, pondo com isso o papa Pio numa posição única e profundamente
desconfortável.
Pio XII era o único governante do seu tempo com um poder de alcance global, o que
levou a que se esperasse dele uma tomada de posição firme em relação a todas as
questões que rodearam a Segunda Guerra Mundial. O conflito não era uma mera luta pelo
poder ou por territórios e influência política. Os britânicos e os seus aliados estavam
convencidos de que combatiam a Alemanha nazi e o seu Führer, Adolf Hitler, para libertar a
Europa e o mundo de uma ditadura racista e expansionista. Os nazis, pelo seu lado,
acreditavam com igual fervor que o «milénio do Reich» que queria estabelecer na Europa –
e talvez no mundo – era o seu destino inelutável.
Os problemas de Pio XII começaram quando os dois lados neste combate o
pressionaram para obter a sua aprovação pública. Ambos ficaram enfurecidos por não
terem conseguido o que queriam. Pio XII escolheu o meio-termo. Adoptou a neutralidade,
que lhe pareceu a postura mais capaz de o ajudar a contribuir para a paz e talvez até a pôr
fim ao conflito. Infelizmente, isto revelou-se um erro grave. Foi objecto de acusações
violentas e condenado por «cobardia» moral e «silêncio» cúmplice.
Acima de tudo, o papa Pio XII foi acusado de ser antissemita por natureza e de ter
abandonado os judeus europeus indefesos perante a perseguição e o extermínio nos
campos de morte dos nazis. Os alemães, pelo seu lado, viam no papa um inimigo
implacável. Um nazi preeminente, um SS Obergruppenführer (um cargo importante na
hierarquia das SS), Reinhardt Heydrich, afirmou que Pio XII era maior inimigo do Terceiro
Reich do que tanto o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, como o presidente dos
Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt.
A controvérsia em relação ao papel de Pio XII continuou depois do fim da Segunda
Guerra Mundial, em 1945. Foram surgindo livros e documentários em torno do assunto,
mas o grande impulso ao debate foi dado por uma peça de teatro sensacionalista estreada
em Berlim a 20 de Fevereiro de 1963. O título era O Vigário: Uma Tragédia Cristã e foi
escrita pelo dramaturgo Rolf Hochhuth, que mais tarde se tornou conhecido como autor de
dramas políticos controversos.
E m O Vigário, Hochhuth acusa Pio XII de negligência e baixeza moral e descreve-o
como um homem de carácter implacável e mesquinho, mais preocupado com as finanças
do Vaticano do que com o destino dos judeus ou das outras vítimas do nazismo, como os
ciganos, os homossexuais, os maçons ou as Testemunhas de Jeová. A peça, a primeira de
Hochhuth, também foi levada à cena em Londres, no Teatro Aldwych, pela Royal
Shakespeare Company, um pouco mais tarde, no mesmo ano de publicação. A Nova
Iorque, à Broadway, chegou em 1964, e depois de novo ao Reino Unido em 1986 e em
2006. A influência desta peça foi imensa. Reavivou a discussão em torno da culpa do
papado e do papa na nazi Solução Final para a Questão Judaica.
No entanto, o retrato do colaborador frio e insensível não corresponde à imagem que
dele tiveram as pessoas que conheceram o papa Pio Xll, com um longo percurso como
diplomata, hábil e sedutor. É um facto que tinha um aspecto de esteta monástico que se
mantinha afastado do mundo, com a sua figura alta e magra, rosto de pergaminho e um
distanciamento com algo de venerável. Contudo, a impressão que deixava nas pessoas
não era essa. James Lees-Milne, escritor e diarista britânico, escreveu:

A sua presença irradiava benignidade, calma e santidade, algo que
nunca encontrei antes dele noutro ser humano. Sorria de uma
forma amável e doce [...] Senti-me tão perturbado pela sua
presença que mal conseguia falar [...]Tive consciência de que as
pernas me tremiam.

Lees-Milne não foi o primeiro a sentir-se perturbado num encontro pessoal com uma
pessoa célebre, mas os governantes e os ministros com quem Eugênio Pacelli se viu
obrigado a negociar durante a sua longa carreira diplomática eram feitos de uma matéria
mais impenetrável.





PACELLI NA BAVIERA


A sua primeira missão importante fora do Vaticano ocorreu em 1917, o terceiro ano
da Primeira Guerra Mundial, altura em que o papa Bento XV o enviou para a Baviera como
núncio papal, ou embaixador. A primeira tarefa de que foi incumbido monsenhor Pacelli foi
delinear o plano do papa Bento XV para o fim da Grande Guerra, perante o rei da Baviera,
Ludwig III, e o agressivo e autocrático Kaiser Guilherme.
Pacelli parece ter deixado uma impressão forte nos dois monarcas e também no
chanceler de Guilherme, Theobald von Bethmann-Hollweg, o suficiente para criar
esperança numa perspectiva próxima de paz. No entanto, o futuro papa ficou
extraordinariamente desiludido e abatido quando os militares alemães iniciaram uma
escalada nos combates com a introdução de uma guerra submarina sem quartel. Contudo,
não tendo sido capaz de alcançar a paz, avançou para a melhor alternativa a seguir a essa
– promover a abordagem humanitária, como esta fora formulada por Bento XV, um papa
conhecido pela impulsividade na caridade com os pobres e os necessitados.
Depois do fim da Primeira Guerra Mundial, a 11 de Novembro de 1918, Pacelli
permaneceu na Baviera quando a maior parte dos outros diplomatas partiu. No entanto,
quem foi prudente foram os outros, já que em Abril de 1919 os chamados revolucionários
espartaquistas tomaram o poder e formaram a República Soviética da Baviera, de curta
vida. A república, inspirada na revolução ateia da Rússia, durou apenas quatro semanas,
mas enquanto durou, Pacelli, na sua qualidade de homem da Igreja e de representante do
papa, ficou numa posição delicada. Foi precisa muita calma e nervos de aço, e o núncio
mostrou que nada disso lhe faltava.
Certo dia, um pequeno grupo de jovens revolucionários irrompeu no edifício ocupado
pela embaixada do Vaticano e tentou roubar o carro de Pacelli. Apesar de o seu físico frágil
e de os seus 43 anos de idade não recomendarem uma luta corpo a corpo com os
intrusos, Pacelli enfrentou-os e exigiu-lhes que saíssem do lugar, tecnicamente território do
Vaticano. Os rebeldes, todos espartaquistas, concordaram sair apenas na condição de
levarem o carro do cardeal. Pacelli sabia que eles não podiam ir longe, uma vez que já
tomara a precaução de sabotar o motor de arranque, além de que recebera uma garantia
do governo bávaro de que o veículo lhe seria imediatamente devolvido. Os espartaquistas
levaram o carro, mas para seu desgosto em breve descobriram que o núncio apostólico os
tinha enganado.
A principal tarefa de Eugênio Pacelli como núncio papal era concluir uma concordata
(um acordo entre a Sé Apostólica e o governo de um país em questões de religião) com
vários governos europeus para assegurar a segurança e a liberdade das igrejas católicas
dos respectivos países. Uma concordata dava à Igreja vários direitos importantes. Um
deles era organizar movimentos de juventude, outro fazer nomeações. A Igreja era além
disso autorizada a organizar as suas próprias escolas, hospitais e instituições de caridade
e a celebrar serviços religiosos. Tudo isto permitia que a Igreja continuasse a funcionar e a
manter a religião cristã católica.
No entanto, para alcançar estes objectivos era preciso vencer uma dificuldade
tremenda, já que no período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial houve uma
possibilidade real de, a seguir à Baviera, serem criados mais sovietes para concretizar o
sonho bolchevique de espalhar o comunismo pelo continente. No entanto, nada deteve
Pacelli. Mal o exército alemão esmagou a República Soviética da Baviera, o núncio assinou
uma concordata, a sua primeira, com a Baviera, que se tornou num dos estados da
República de Weimar.


O REGRESSO A ROMA


Quando deixou a Baviera, Pacelli seguiu para Berlim na qualidade de núncio papal na
Alemanha e depois, em 1925, iniciou negociações com a União Soviética. Ali, oito anos
depois da vitória bolchevique, a perseguição sistemática, organizada e violenta à Igreja
russa já estava em curso. Os padres e os bispos eram encarcerados e muitos eram
assassinados na prisão. Os clérigos e os religiosos laicos eram perseguidos e enviados
para o gulag, em Solowki, no mar Negro. As igrejas eram saqueadas e destruídas. A
religião era denegrida nas escolas e na imprensa. Deus, bem como o ensino de religião,
tornou-se assunto proibido.
Mesmo assim, o cardeal Pacelli estava decidido a seguir as ordens do papa Pio XI,
que eram estabelecer relações diplomáticas entre os comunistas e o Vaticano. Para
facilitar o processo, organizou envios desesperadamente necessários de alimentos para a
Rússia, onde milhares, senão milhões, de pessoas viviam na pobreza total desde o fim da
Primeira Guerra Mundial. No entanto, havia um limite mesmo para o que o núncio Pacelli
podia fazer. Os homens com quem tinha de negociar, por exemplo o ministro dos Negócios
Estrangeiros Georgi Chicherin, impossibilitavam qualquer acordo. Chicherin era um ateu
convicto, que desprezava a educação religiosa e recusava autorizar a ordenação de
padres e bispos. Nesta atmosfera perigosa, Pacelli estava convencido de que era possível
alcançar um acordo secreto, mas ao fim de algum tempo percebeu que não houvera
qualquer progresso nas negociações. Em 1927 o papa Pio XI ordenou-lhe que as
interrompesse.
Depois de vários encontros frustrantes com os soviéticos, Eugênio Pacelli foi
chamado a Roma em 1929, onde, apesar do seu fracasso na Rússia, tanto católicos como
protestantes o saudaram como grande herói da causa cristã. O papa Pio recompensou-o
com o barrete cardinalício e em 1930 Pacelli foi de novo promovido, a cardeal secretário de
Estado. Nesta qualidade, Pacelli assinou concordatas com vários países onde a Igreja
precisava de um bom impulso depois das convulsões da Grande Guerra. Em 1932 foi
assinada uma concordata com o estado alemão de Baden e no ano seguinte com a
Áustria. Em Julho de 1933, seis meses depois de Adolf Hitler ter chegado ao poder como
chanceler, foi assinada a concordata com a Alemanha nazi. Com a Jugoslávia foi assinada
uma concordata em 1935 e com Portugal em 1940.
O mais trágico dos acordos assinados pelo futuro papa foi, como é evidente, a
Reichskonkordat, com a Alemanha. Os nazis tinham consciência de que grande parte do
mundo exterior considerava que haviam alcançado o poder pela intimidação e pela força.
Contudo, um acordo com o papado, a instituição política mais antiga e venerável da
Europa, podia ser a peça em falta no puzzle da sua vitória, capaz de dar respeitabilidade
ao seu regime e de lhe proporcionar uma postura internacional que não poderiam manter
de nenhum outro modo. Além disso, era uma maneira eficaz de silenciar a oposição da
Igreja Católica aos nazis na Alemanha.


O FÜHRER ATEU


Não podemos saber se o cardeal Pacelli percebeu qual era a motivação tenebrosa de
Hitler nestas negociações, mas seria surpreendente que a ideia não tivesse ocorrido a um
diplomata tão inteligente e experiente como o futuro papa. A sua própria finalidade era,
como é evidente, fortalecer a posição da Igreja Católica na Alemanha, proteger as
organizações e assegurar a educação católica, que as escolas católicas se mantivessem a
funcionar e as publicações da Igreja não fossem perseguidas. Foi nisso que o cardeal
Pacelli avaliou mal a situação.
Em 1933, Adolf Hitler ainda não tinha a reputação que veio a adquirir, de fazer
acordos com o fim único de obter vantagens de curto prazo e, quando eles deixavam de as
proporcionar, atirá-los para o lixo. Assim, as negociações prosseguiram e Pacelli, em nome
do papa Pio XI, agiu, pelo seu lado, em boa-fé. Na altura em que os nazis romperam a
Reichskonkordat, os factos eram irreversíveis e o papado viu-se ligado a um parceiro cínico
e de má-fé.
Nos seis anos anteriores a 1939, os nazis cometeram mais de cinquenta violações da
Reichskonkordat, a começar por um ataque violento contra judeus apenas cinco dias
depois da assinatura do acordo. As violações continuaram com a esterilização forçada de
alemães considerados de «vida indigna de ser vivida», entre os quais criminosos,
dissidentes, deficientes mentais, homossexuais, loucos e outros que tinham de ser
impedidos de se reproduzir e assim de transmitir a sua fraqueza às gerações seguintes. O
cardeal Pacelli formalizou os protestos da Igreja, o primeiro dos quais respeitante a outra
infração da Reichskonkordat, um boicote às lojas de judeus. Foi apenas um de 45, a que os
nazis nunca deram resposta. O Vaticano respondeu então à perfídia nazi com uma arma de
que só ele dispunha, uma encíclica. As encíclicas papais eram em geral escritas em latim,
mas dessa vez o cardeal Pacelli pediu a colaboração de vários cardeais alemães para o
ajudarem a redigir Mit Brennender Sorge (Com Preocupação Ardente), inteiramente em
alemão. A encíclica foi proclamada a 10 de Março de 1937, mas, ao contrário do seu
cauteloso núncio, Pio XI não suavizou as palavras. Escreveu o seguinte:

Quem quer que exalte a raça, o povo ou o estado [...] os
depositários do poder ou qualquer outro valor fundamental da
comunidade humana [...] quem quer que eleve estas noções acima
do seu valor real e as divinizar até à idolatria distorce e perverte
uma ordem do mundo planeada e criada por Deus; afasta-se com
isso da verdadeira fé em Deus e do conceito da vida defendido
pela fé.

Pacelli sabia que os alemães iam fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para
impedir que fosse distribuída, de maneira que foram tomadas precauções para assegurar
que ela chegava a todas as igrejas da Alemanha. O texto foi introduzido clandestinamente
no estado nazi, onde foi impresso e distribuído em segredo. Por Fim, a encíclica foi lida em
todas as igrejas católicas na missa do Domingo de Ramos de 14 de Março de 1937.
Quando os nazis perceberam o que acontecera, reagiram com mão pesada. Todas as
cópias da encíclica que encontraram foram apreendidas, os impressores e as pessoas
responsáveis por distribuí-la foram presos e as máquinas de impressão confiscadas. Para
prender e julgar os padres católicos foram forjadas acusações de distribuição de dinheiro
falso.
Adolf Hitler deixou a sua posição brutalmente clara quando expressou a opinião dos
nazis em relação à encíclica papal com a seguinte declaração:

O Terceiro Reich não deseja um modus vivendi com a Igreja
Católica, mas a sua destruição [...] para abrir espaço para uma
Igreja Alemã em que a raça alemã seja glorificada.



AS MALÉVOLAS INTENÇÕES NAZIS


O cardeal Pacelli não ficou surpreendido. Mesmo antes de Hitler e os nazis terem
chegado ao poder, nunca teve dúvidas quanto às suas intenções. Antes de 1933 observara
vários «ensaios» de estado totalitário, em que o racismo e a brutalidade tinham sido
visíveis. Os desordeiros nazis de forças paramilitares como as SA ou as SS foram usados
para impedir reuniões dos comunistas e de outras forças políticas. As manifestações e as
paradas dos nazis eram abertamente militaristas. Tudo isto preparou o ambiente para o
reinado de terror que teve início quando Hitler se tornou chanceler da Alemanha, a 30 de
Janeiro de 1933, com a criação do primeiro campo de concentração nazi, em Dachau, na
Baviera, onde os primeiros prisioneiros – judeus, socialistas, sindicalistas e outros
opositores políticos – foram torturados, intimidados e sofreram violências de todos os
tipos.
Seguiram-se várias sequelas bem conhecidas, como o incêndio do Reichstag de 1933,
as Leis de Nuremberga de 1935/1936, que retiraram os direitos cívicos aos judeus, e a
Kristallnacht (Noite dos Vidros Partidos). Esta última teve lugar a 10 de Novembro de 1938,
com ataques a judeus, às suas sinagogas e bens, em toda a Alemanha e na Áustria. Na
Noite dos Vidros Partidos foram assassinados 91 judeus e presos entre 25 e trinta mil,
todos deportados para campos de concentração.
O cardeal Pacelli teve conhecimento dos pormenores sinistros da Kristallnacht quando
foi contactado pelo núncio em Berlim. Nesse tempo, o papa Pio XI estava às portas da
morte e alguns historiadores têm sugerido que Pacelli o convenceu a não fazer um
protesto oficial. O papa morreu três meses mais tarde, a 10 de Fevereiro de 1939. Pacelli
foi eleito papa em seu lugar. Nessa altura os editores ainda não tinham enviado a última
encíclica do pontificado de Pio XI, Humani Generis Unitas (Acerca da Unidade do Género
Humano), preparada no mês de Setembro anterior, para o Vaticano. Quando por fim
chegou, o papa Pio XI já tinha morrido. Embora Pacelli lhe tenha sucedido, não proclamou
a última encíclica do predecessor, que levantava várias questões controversas, expressas
no habitual estilo directo de Pio XI, a condenar o racismo, o colonialismo e o anti-
semitismo, tudo caraterísticas centrais da política nazi.
A suposta omissão do novo papa, Pio XII, no que diz respeito à condenação pública
dos nazis foi tomada como um primeiro sinal da sua «cobardia» e do seu «silêncio» em
assuntos que pudessem ofender Hitler e o seu regime totalitário na Alemanha. Daí, entre
outras coisas, vem a teoria de que o papa era ele próprio pró-nazi e anti-semita. Esta
teoria, no entanto, não tem em conta, em primeiro lugar, o desagrado dos nazis com a
eleição do cardeal Pacelli para o trono de São Pedro. Um artigo de opinião no Berlin
Morgenpost (Matutino de Berlim) acusava o novo papa de «hostilidade preconceituosa e
falta total de compreensão. Pio XII não é visto com bons olhos na Alemanha porque
sempre se opôs ao nazismo e na prática foi ele que determinou as posições políticas do
Vaticano durante o pontificado do seu predecessor».
«Eugênio Pacelli nunca nos compreendeu; não depositamos grandes esperanças
nele», dizia o Schutzstaffel, nazi, o órgão oficial das SS, o corpo da guarda pessoal de
Hitler. Noutros países, por exemplo no Reino Unido, em França e nos Estados Unidos, a
eleição do novo papa foi acolhida com agrado. A Alemanha nazi foi a única grande potência
que não enviou um representante à entronização do papa.
Outro dos mal-entendidos relativos ao papa Pio XII centra-se no seu estilo pessoal. O
novo papa nunca teve um estilo popular e emotivo. Preferia a diplomacia tradicional,
tranquila, e a persuasão aos gestos dramáticos e às declarações empoladas. Além disso, a
sua experiência diplomática proporcionava-lhe um conhecimento sólido da natureza da
besta nazi. Pio XII sabia perfeitamente que os nazis responderiam a qualquer crítica ou
acto de desafio elevando o seu nível de brutalidade. Na realidade, esta era uma das
principais preocupações dos líderes judeus e dos prisioneiros dos campos de concentração
que conseguiam comunicar com o exterior. Suplicavam constantemente ao papa que
moderasse o tom das condenações públicas das atrocidades nazis.
Como disse uma testemunha ocular nos Julgamentos de Nuremberga dos criminosos
de guerra nazis em 1945-1946:

Quaisquer palavras que Pio XIl tivesse dirigido contra um louco
como Hitler teriam desencadeado uma catástrofe de dimensões
ainda maiores [...] e acelerado o massacre de judeus e sacerdotes.


AS HORRÍVEIS RETALIAÇÕES NAZIS




O horror das retaliações nazis foi uma lição que os judeus começaram a aprender
com grande sofrimento com as violentas sequelas do assassínio na embaixada alemã em
Paris de Ernst vom Rath, um diplomata em princípio de carreira. O culpado foi um jovem
judeu alemão, Herschel Grynszpan, que queria protestar contra a expulsão da sua família
da Alemanha. Este assassínio de uma só pessoa bastou para justificar toda a morte e
destruição provocadas pelos bandos nazis na Noite dos Vidros Partidos.
Mais tarde, já durante a Segunda Guerra Mundial, houve outros exemplos dos
extremos a que podiam chegar as retaliações nazis. Ignoravam infrações menores das
suas leis draconianas, mas qualquer falsa impressão de segurança que isto pudesse
inspirar era insensata. Quando achavam que o desafio era suficientemente grave, os nazis
respondiam em força.
Em 1942, Reinhardt Heydrich, o «protector» do Reich na Boémia-Morávia (no que é
hoje a República Checa) foi assassinado no seu carro com uma bomba da resistência
checa. O sucessor de Heydrich, Karl Hermann Erank, resolveu encenar uma «acção
especial de repressão para dar aos checos uma lição como deve ser». Os camisas negras
das SS aplicaram uma terrível vingança na aldeia de Lidice, na Boémia, onde 172 homens e
rapazes foram fuzilados e as mulheres foram transportadas para o campo de concentração
de Ravensbrüch.
Em 1942, o arcebispo católico de Utrecht escreveu uma pastoral de protesto contra a
perseguição aos judeus na Holanda ocupada pelos nazis. Aquilo a que os nazis chamaram
uma contra-medida chegou cinco dias mais tarde, altura em que um grande número de
judeus holandeses e católicos foram presos e levados para campos de concentração. Aí
serviram de reféns para assegurar o «bom comportamento» do papa, com a ameaça de
que seriam maltratados se e quando Pio XII se pronunciasse contra o poder nazi.
Um caso semelhante ao da aldeia de Lidice teve lugar em 1944, quando as
actividades da resistência francesa travaram a chegada de reforços à frente ocidental,
onde iam tentar impedir o avanço dos Aliados depois da invasão do dia D no Norte de
França. Em Oradour-sur-Glane, uma aldeia no Sudoeste de França, todos os homens
foram fuzilados e as mulheres e as crianças foram metidas à força na igreja da aldeia onde
foram queimadas vivas. A seguir a aldeia foi arrasada. Morreram pelo menos mil habitantes.
Perante um inimigo de carácter implacável, capaz de qualquer crueldade e atrocidade
que a maldade humana pudesse sugerir, o papa Pio XII chegou à conclusão de que a
imparcialidade, ou pelo menos a aparência de imparcialidade, era a única maneira de
assegurar que o Vaticano podia manter-se neutral e portanto com uma liberdade de acção
relativa. Enquanto estado neutral, com caraterísticas que podiam levar mesmo os nazis a
hesitar em atacar, a Cidade do Vaticano, com os seus edifícios e serviços, podia ser usada
para levar a cabo um trabalho clandestino de salvamento ao alcance apenas do papa.


UMA ESTRATÉGIA DIFÍCIL




Esta posição não era de maneira nenhuma fácil de manter. Percebe-se que a
estratégia do papa tinha de ser mantida secreta, mas também é óbvio que o segredo levou
à ideia generalizada de que o papa era um «homem sem coração» e mostrou «indiferença»
perante atrocidades que chocaram profundamente outros com menos necessidade de se
expor, ou antes, de dar a impressão de que o faziam. Já em Setembro de 1940, um ano
depois do início da Segunda Guerra Mundial, a neutralidade do papa e do Vaticano era
invocada na resposta a apelos à acção por vezes expressos de forma muito directa.
Em Outubro de 1941, por exemplo, o delegado americano ao Vaticano, Harold H.
Tittmann, pressionou o papa Pio para que este tomasse publicamente posição contra as
atrocidades cometidas contra os judeus. Foi dito a Tittmann que o papa desejava
permanecer «neutral». Isto, contudo, aconteceu antes da Solução Final da Questão
Judaica, a designação eufemística usada pelos nazis para descrever o extermínio dos
judeus, planeada em pormenor numa conferência com a presença dos nazis mais
responsáveis em Wannsee, nos arredores de Berlim, em Janeiro de 1942.
O efeito da Conferência de Wannsee, e das decisões tomadas posteriormente,
depressa se tornou claro. Em Março de 1942, oitenta mil judeus eslovacos foram
destinados ao transporte para a Polónia. Isto, de acordo com o encarregado de negócios
do Vaticano em Bratislava, a capital da Eslováquia, «condenou muitos deles a uma morte
certa». Um protesto cuidadosamente redigido, em que foram escolhidas palavras muito
gerais, foi enviado do Vaticano, a deplorar «estas medidas que ferem gravemente os
direitos humanos naturais das pessoas, meramente devido à sua raça». Esta mensagem
foi formulada de modo que os nazis não fossem especificamente mencionados. A táctica foi
usada mais de uma vez pelo papa Pio para evitar que os nazis, especialmente a Gestapo, a
temida polícia secreta, interferissem nos assuntos do Vaticano.
Embora os críticos do papa Pio XII encarem o seu silêncio público em relação aos
crimes dos nazis como uma postura cobarde, quando a sua mensagem de Natal de 1941
foi transmitida pela Rádio Vaticano a sua intenção subjacente não deixou de ser entendida.
Em 1941, muitas famílias americanas, católicas e não só, ouviram esta mensagem. Apenas
duas semanas antes, a 7 de Dezembro, uma data que o presidente Roosevelt considerou
que viria a tornar-se sinónimo de infâmia, os americanos haviam sido igualmente obrigados
a entrar na guerra, na sequência do ataque à Esquadra do Pacífico estacionada em Pearl
Harbor, no Havai.
Nesta ocasião, os editores do New York Times avaliaram bem a personalidade de Pio
XII, quando este apelou a «uma nova ordem real» baseada «na liberdade, na justiça e no
amor», e depois excluiu a possibilidade de qualquer acordo entre combatentes «cujas
finalidades e programas pareciam irreconciliáveis». Um artigo no New York Times indicava
que, embora codificada, a mensagem do papa era uma condenação clara da perseguição
dos nazis aos judeus europeus. Dizia o artigo:

A voz de Pio XII é uma voz solitária no silêncio e na escuridão que
envolve a Europa neste Natal [...] Os fins dos nazis também [são]
incompatíveis com a concepção de Pio XII de uma paz cristã.

No Natal de 1942, o papa Pio foi um pouco mais específico, embora mais uma vez
não tenha nomeado de forma directa nenhum dos responsáveis, quando anunciou a sua...

[...] preocupação apaixonada com as centenas de milhares de
pessoas que, sem qualquer culpa, por vezes apenas devido à sua
raça ou nacionalidade, estão condenados à morte ou à extinção
progressiva.

A referência não tinha nada de ambíguo.


EVITAR O ASSUNTO


Por volta do fim de 1942, os massacres de judeus tinham alcançado «proporções e
formas assustadoras», como monsenhor Giovanni Montini, o futuro papa Paulo VI,
informou Pio Xll numa carta que chegou ao Vaticano em Setembro de 1942. As histórias de
horror iniciaram então uma escalada terrível. No mesmo mês, o enviado americano ao
Vaticano, Myron Taylor, disse ao papa que este estava a prejudicar o seu «prestígio moral»
ao manter o silêncio quanto às atrocidades nazis. Houve representantes de vários outros
países, incluindo o Reino Unido, o Brasil, o Uruguai, a Bélgica e a Polónia, que
transmitiram mensagens semelhantes, apenas para ouvirem, como Myron Taylor, que a
veracidade dos rumores acerca do genocídio dos judeus não fora confirmada.
Nesta altura os nazis já pareciam ter uma ideia clara do que o papa andava a fazer e
tinham percebido que isso não lhes era favorável. O Ministério dos Negócios Estrangeiros
da Alemanha analisou a mensagem de Natal de 1942 e interpretou-a correctamente.
Descreveu-a como...

[...] um longo ataque a tudo o que defendemos. Está claramente a
referir-se aos judeus [...] está praticamente a acusar o povo
alemão de injustiça em relação aos judeus e tornou-se o porta-voz
dos criminosos de guerra judeus.



UM PLANO PARA RAPTAR O PAPA




A convicção dos nazis de que o papa Pio XII era cúmplice dos judeus estava de
acordo com a propaganda anti-semita que fora inoculada no povo alemão anos a fio por
Josef Goebbels. Embora o papa em 1943 continuasse a recusar condenar o tratamento
nazi dos judeus, Hitler parecia ter perdido a paciência com o pontífice e ter conge- minado
um plano para o punir. A intenção do Führer era raptar o papa e encarcerá-lo algures na
Alta Saxónia, no leste da Alemanha. Mas isso não é tudo. As actas de uma reunião de 26
de Julho de 1943 revelam que Hitler não estava na disposição de recuar perante nada para
alcançar o objectivo de raptar o papa. Chegou a pensar em invadir o Vaticano e deu
ordens a um chefe das SS em Itália, o general Karl Otto Wolff, para que...

[...] ocupe o mais brevemente possível o Vaticano e a Cidade do
Vaticano, apodere-se dos arquivos e das obras de arte com um
valor único e transfira o papa, juntamente com a cúria [a corte
papal] para sua protecção, de maneira que não possam cair nas
mãos dos Aliados e exercer a sua influência política.
O general Wolff, juntamente com alguns diplomatas e oficiais nazis, muitos deles
católicos, ficou horrorizado quando soube que o Führer estava na disposição de chegar a
estes extremos para deitar a mão ao líder de maior prestígio em todo o mundo. O papa
era bastante mais compreensivo. Em sua opinião, Hitler estava possuído pelo Demónio e
tentou várias vezes exorcizar o Führer e libertá-lo assim da influência perversa do Maligno.
Já Hitler tinha uma visão megalomaníaca do papa como o único ser humano que sempre o
contrariara e nunca lhe obedecera. Estava por isso decidido a eliminar esta nódoa no seu
registo autocrático.
Desafiar o Führer sempre fora perigoso, em geral até mortal, mas o plano para raptar
o papa era uma daquelas situações em que obedecer às ordens e ignorar os ditames da
consciência não tinha grande aplicação. Era preciso coragem, mas havia alemães na
disposição de correr riscos para frustrar os planos do Führer. Um deles era Ernst von
Weizsäcker, o embaixador da Alemanha no Vaticano. Weizsäcker avisou a Santa Sé do
perigo que o papa corria e sugeriu que ele evitasse fazer o que quer que pudesse levar o
Führer a passar à acção. O embaixador nazi na Itália, Rudolf Rahn, em conjunto com
outros diplomatas alemães, também se esforçou por travar o projecto. O mesmo
aconteceu com o general Wolff, que conseguiu convencer Hitler a desistir do seu plano por
volta do fim de 1943.
Ou pelo menos o general pensou que o tinha convencido. De acordo com um
relatório pormenorizado publicado num diário católico, o Auvenire d’Italia (título que
significa aproximadamente O Que Acontece na Itália), em Janeiro de 2005, Wolff percebeu,
para seu horror, que em 1944 o plano do rapto fora recuperado, quando recebeu ordens
nesse sentido de Hitler. A esse tempo, pelo fim de Maio de 1944, Wolff era o comandante
d a s SS em Roma, ocupada pelos nazis. O Quinto Exército dos Aliados, que invadira
território italiano oito meses antes, avançava rapidamente em direcção à cidade e estava a
poucos dias de a tomar. A Wehrmacht estava a preparar-se para retirar, de maneira que
Hitler achou que era um bom momento para pegarem no papa e para o levarem com eles.
Wolff decidiu passar rapidamente à acção e antes do fim de Maio marcou um
encontro secreto com o papa. Compareceu disfarçado, com roupas civis, e não com o
uniforme das SS, e introduziu-se no Vaticano durante a noite, com a ajuda de um padre
que conhecia bem o complexo de edifícios. Wolff começou por assegurar ao papa que não
haveria qualquer rapto, mas avisou-o de que o Führer o considerava um «amigo dos
judeus» e um obstáculo aos seus planos para dominar o mundo. Além de avisar o papa
para que este estivesse preparado, o general Wolff pouco mais podia fazer, e pouco depois
de o exército dos Aliados ter chegado e ocupado a cidade ele próprio partiu de Roma.

A ocupação de Roma pelos Aliados acabou por pôr em causa os planos de Hitler para
raptar o papa. No entanto, o que as forças aliadas descobriram em Roma foi muito
diferente do que se poderia esperar de um papa alvo de tantas acusações de favorecer os
nazis. Havia uma rede extraordinária de «casas-refúgio» e outros abrigos, criada pelo papa
Pio XII, pelos seus cardeais e padres, que serviram de abrigo a milhares de fugitivos. A
maior parte eram judeus italianos, mas entre os refugiados encontravam-se igualmente
prisioneiros de guerra libertados de campos de prisioneiros depois de a Itália
(anteriormente aliada da Alemanha nazi) ter mudado de lado e se ter juntado aos Aliados,
no fim de 1943. Entre eles estavam também muitos membros da resistência italiana que
procuravam proteger-se dos seus perseguidores nazis. Quando o Quinto Exército dos
Aliados entrou em Roma, a 4 de Junho de 1944, estes fugitivos tiveram pela primeira vez
em muito tempo a possibilidade de sair à rua sem receio de ser mortos ou torturados.
Muitos edifícios tanto no interior como fora do Vaticano estavam preparados para
uma missão de socorro em grande escala. Por ordem do papa Pio XII, quase todo o
Comité de Libertação Nacional Italiano, que organizava a actividade de cerca de vinte mil
resistentes em todo o país, estava escondido no Seminário de Roma, em São João de
Latrão, a poucos metros do quartel-general da Gestapo. No edifício do Vaticano estavam
escondidos 477 judeus, enquanto outros 4238 estavam distribuídos pelos 155 conventos e
mosteiros de Roma. Em tempos normais, a separação entre os sexos era rigorosa, e por
isso as freiras nunca receberiam hóspedes do sexo masculino nem os frades ou monges
dariam guarida a pessoas do sexo feminino. No entanto, o papa suspendeu estas
restrições para não separar as famílias acolhidas nesses locais.
Outros fugitivos judeus foram instalados na Universidade Gregoriana Jesuíta, ou
então dormiam na cave do Instituto Pontifício Bíblico. Cerca de três mil foram levados
clandestinamente para Castel Gandolfo, a residência de verão do papa, trinta quilómetros
a sul de Roma. Muitos outros foram engenhosamente escondidos para não serem
encontrados. Cerca de 3700 foram disfarçados com o uniforme dos Guardas Palatinos,
cuja tarefa era proteger a Cidade do Vaticano. Outros foram maquilhados com cosméticos
para parecerem pacientes hospitalizados com doenças de pele no Instituto Dermatológico
da Imaculada Conceição. O Vaticano chegou a produzir um filme em que trezentos dos
figurantes eram verdadeiros fugitivos. Foram distribuídas sotainas em grande número a
judeus para os fazer passar por padres católicos.
Alguns judeus acabaram por se converter ao catolicismo. Para a maior parte, foi
apenas uma decisão temporária e depois do fim da Segunda Guerra Mundial voltaram à
sua verdadeira religião. No entanto, durante o período que durou a guerra estiveram
protegidos pelo acordo com os nazis que assegurava que os judeus baptizados não seriam
perseguidos. Os convertidos recebiam falsos certificados de baptismo, passaportes do
Vaticano e documentos de identificação falsos. No interior da Cidade do Vaticano foram
produzidos milhares de documentos falsos deste tipo. Só a judeus húngaros foram
entregues oitenta mil.


A AJUDA AOS JUDEUS




Os riscos envolvidos na ajuda aos judeus e a outros fugitivos perseguidos pelos nazis
eram enormes e mesmo Pio XII não podia assegurar que os cardeais, os bispos ou os
padres escapavam aos pelotões de fuzilamento se fossem apanhados.
Um padre irlandês, monsenhor Hugh 0’Flaherty, que foi diplomata ao serviço do
Vaticano, expôs-se a mais riscos do que a maior parte. Antes de ter iniciado a actividade de
ajuda aos judeus em Roma já era conhecido dos nazis como visita habitual dos campos de
prisioneiros em Itália, o que tornava o seu reconhecimento especialmente fácil. Nos
campos, 0’Flaherty procurava os prisioneiros que, embora declarados mortos em combate,
pudessem ter sobrevivido. Quando encontrava algum desses homens vivo, 0’Flaherty
transmitia a notícia aos familiares através da Rádio Vaticano. Mesmo para os nazis, que
ocuparam a Itália depois da rendição do país em 1943, tudo isto era relativamente
inocente.



PRISIONEIROS DE GUERRA EM FUGA




Com a mudança de partido de Itália depois da rendição de Setembro de 1943, deixou
de haver razão para os italianos manterem prisioneiros de guerra dos Aliados. Os campos
foram abertos, os guardas fugiram e os prisioneiros puderam partir. Muitos deles
lembravam-se das visitas do padre 0’Flaherty e apesar do risco que representava uma
viagem através do território ainda ocupado pelos nazis dirigiram-se a Roma para lhe pedir
ajuda. Não tardou muito que o padre 0’Flaherty ficasse com cerca de quatro mil
prisioneiros de guerra e judeus nas suas mãos e precisou de uma rede que o auxiliasse.
Para o fazer, recrutou padres, alguns agentes franceses, vários comunistas e um coronel
do exército britânico chamado Samuel Derry.
0’Flaherty e a sua equipa arranjaram uma série de esconderijos, em casas particulares
e apartamentos, conventos e quintas. Uma delas ficava mesmo ao lado do quartel-general
das SS. Escondeu judeus em Castel Gandolfo e no Colégio Alemão, onde ele próprio em
tempos fora estudante. Ao fim de pouco tempo começaram a chamar- -lhe o Pimpernel do
Vaticano, uma alcunha inspirada na personagem de ficção Scarlet Pimpernel, Sir Percy
Blakeney, que salvava aristocratas franceses e outros da guilhotina durante a Revolução
Francesa de 1789.


IMUNIDADE DIPLOMÁTICA


Enquanto permanecia dentro dos limites do Vaticano, para lá da linha branca que
separava o enclave papal do resto da cidade de Roma, a imunidade diplomática protegia-o
da prisão. No entanto, teve de sair várias vezes desses limites para organizar a sua rede,
transportar fugitivos de um lugar para outro e verificar as condições de segurança de
vários abrigos. Durante todo este tempo os SS observaram o esquivo Pimpernel e não foi
preciso muito tempo para descobrirem, em primeiro lugar, que era um padre e em segundo
que se tratava de monsenhor Hugh 0’Flaherty, o velho visitante dos campos de
prisioneiros.
Seguro dentro dos limites do território do Vaticano, 0’Flaherty habituou-se a passear
em frente ao pórtico da Basílica de São Pedro, à espera de ser abordado por judeus,
prisioneiros de guerra ou outros fugitivos. Não se escondia dos soldados alemães que o
vigiavam do outro lado da praça, mas acima de tudo mostrava-se aos que pudessem
precisar da sua ajuda. Quando chegavam, 0’Flaherty acompanhava-os até que
desapareciam do alcance da vista dos alemães, através de um cemitério, de onde
chegavam ao Colégio Alemão.
Um dia um homem judeu aproximou-se do padre 0’Flaherty e entregou-lhe uma
corrente de ouro pesada. Ele e a mulher, explicou-lhe, contavam ser presos e levados para
um campo de concentração a qualquer momento, mas queriam salvar o filho, de sete anos,
da morte nas câmaras de gás. O fio de ouro, explicaram ao padre, destinava- -se a pagar o
sustento do rapaz. O padre 0’Flaherty aceitou-o, localizou o rapaz e escondeu-o. Além
disso, arranjou documentos falsos aos pais, o que lhes permitiu manterem-se em
segurança em Roma. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, 0’Flaherty devolveu o
rapaz aos pais, juntamente com o fio de ouro.


UMA CILADA PARA APANHAR 0’FLAHERTY




Como é natural, os nazis estavam loucos por apanhar o padre irlandês fora do
Vaticano e para o prender ou assassinar. No entanto, não contaram com a sua imensa
habilidade para se disfarçar, e o Pimpernel do Vaticano nunca se aventurava nas ruas da
cidade sem tomar essa precaução. Num dia era um varredor de rua, no dia seguinte um
talhante ou um empregado de entregas. Tudo isto era extraordinariamente frustrante para
o coronel Herbert Kappler, chefe da Gestapo em Roma, um perigoso opositor que dava
regularmente ordens às suas tropas de que torturassem ou executassem membros da
resistência. 0’Flaherty estava a revelar-se um freguês difícil e Kappler ordenou que ficasse
sob vigilância permanente.
O monsenhor irlandês era fácil de identificar. Alto, bem constituído e de ombros
largos, 0’Flaherty era um boxeur amador e o seu aspecto não o desmentia. Um dia Kappler
localizou-o com um grupo de homens da Gestapo preparados para o prender e pensou que
o tinha apanhado, mas 0’Flaherty era rápido e antes que conseguissem deitar-lhe a mão
enfiou-se na Igreja de Santa Maria Maggiore, propriedade da Igreja Católica e onde os
militares não podiam entrar. Noutra ocasião, 0’Flaherty fez uma visita ao palácio do
príncipe Filippo Doria Pamphili, que financiava as suas operações de salvamento, quando o
edifício foi cercado por tropas das SS. 0’Flaherty fugiu para a cave, onde um camião
descarregava a reserva de carvão do príncipe para esse Inverno através de um alçapão.


A FUGA


As SS estavam a um passo de o apanhar, de maneira que teve de agir pronta- mente.
Escondeu o hábito e o chapéu, esfregou-se com carvão até ficar irreconhecível, pôs um
saco de carvão vazio às costas e saiu assim do alçapão. Os SS, à saída, aguardavam o
padre em duas filas, mas recuaram quando viram aquele homem tão alto e tão sujo que se
encaminhava descontraidamente para o camião do carvão que o aguardava às portas do
palácio. O camião deixou-o numa igreja próxima, onde 0’Flaherty se lavou e vestiu o hábito
antes de voltar ao Vaticano. Mais tarde telefonou ao príncipe para saber se ele e a família
se encontravam bem. Encontravam e, contou o príncipe ao monsenhor, o coronel Kappler
estava no meio de um violento ataque de fúria.
Já desesperado, Kappler congeminou um plano para fazer dois gorilas da Gestapo
entrarem no Vaticano para agarrarem 0’Flaherty e para o levarem para algum sítio onde
pudessem assassiná-lo. Felizmente, os colaboradores do padre souberam do plano. Os
candidatos a assassinos de 0’Flaherty foram apanhados e levaram uma sova das antigas
de quatro guardas suíços. Kappler nunca conseguiu apanhar o padre irlandês, que
sobreviveu à Segunda Guerra Mundial. O mesmo aconteceu com o coronel das SS,
embora na prisão de Gaeta, entre Roma e Nápoles, onde foi condenado a permanecer até
ao fim dos seus dias como criminoso de guerra. Uma vez por mês, ano após ano, Kappler
recebia um visitante – monsenhor Hugh 0’Flaherty. Por fim, em 1959, o padre baptizou
Kappler na Igreja Católica Romana. Em 1977, Kappler, que sofria de cancro e pesava
então apenas 48 quilos, fugiu de Gaeta escondido num baú de viagem e foi levado para a
Alemanha pela mulher, Anneliese. Morreu no ano seguinte.
Depois do fim da guerra, em 1945, monsenhor 0’Flaherty recebeu muitos prémios pelo
seu trabalho, incluindo a medalha norte-americana da Liberdade. O rei Jorge VI do Reino
Unido também o fez comandante do Exército Britânico (CBE, na sigla inglesa). O estado
de Israel reconheceu-o como Justo entre as Nações, um título concedido a não judeus que
ajudaram judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Depois de ter sofrido um AVC grave,
em 1960, o padre 0’Flaherty retirou-se para casa da irmã, no condado de Kerry, na Irlanda,
onde morreu, em 1963.
Em Itália, os cardeais também participaram no esforço para salvar a vida dos que
corriam perigo. Por exemplo, o cardeal Pietro Boetto, de Génova, salvou pelo menos
oitocentos refugiados. O bispo Giuseppe Nicolini, de Assis, escondeu à volta de trezentos
judeus durante dois anos. Dois futuros papas, os sucessores de Pio XII, também correram
riscos para ajudar judeus a escapar às garras dos nazis. Um deles foi o cardeal Angelo
Roncalli, futuro João XXIII, o outro foi o cardeal Giovanni Montini (que viria a ser papa com
o nome de Paulo VI). Mais tarde foram oferecidos a ambos prémios de reconhecimento por
este trabalho, que os dois recusaram. Montini explicou porque:

Tudo o que fiz foi cumprir o meu dever. Além disso, limitei--me a
obedecer às ordens de Sua Santidade [o papa Pio XII]. Ninguém
merece receber uma medalha por isso.

Em 1985, outro católico e homem da Igreja, o cardeal Pietro Palazzini, aceitou o
reconhecimento do estado de Israel de Justo entre as Nações pela sua própria
contribuição para o socorro e o salvamento de judeus numa Europa dilacerada pela guerra.
No entanto, sublinhou durante a cerimónia no Yad Vashem, o Monumento ao Holocausto
em Jerusalém, que o mérito coube inteiramente a Pio XII. «Foi ele que nos disse o que
fazer para proteger os judeus da perseguição.» Feitas todas as contas, salvaram-se 860
mil judeus graças às muitas iniciativas do papa Pio XII.
O papel fundamental nesta missão de resgate em grande escala tem sido sublinhado
pelos inúmeros tributos que lhe têm sido prestados pelos líderes da comunidade judaica e
por presidentes, primeiros-ministros, por outros papas e multidões de pessoas
agradecidas, tanto em livros como em artigos acerca do assunto. O esforço de ajuda a
tantos milhares de judeus e outros perseguidos levou Albert Einstein, o conhecido cientista
judeu agnóstico, a mudar de opinião acerca da Igreja Católica e do papado. Passou da
indiferença a «um grande afecto e admiração, porque apenas a Igreja teve a coragem e a
persistência de defender a verdade intelectual e a liberdade moral». No entanto, talvez o
maior cumprimento recebido pelo papa Pio XII tenha vindo de Israel Zolli, o principal rabino
de Roma, que ficou tão impressionado com a compaixão e a coragem do papa que se
tornou católico romano em 1945.


A NÓDOA NÃO DESAPARECEU




Apesar de todas as provas em contrário, e das iniciativas com o fim de o canonizar
feitas nos últimos anos, a lista de acusações contra Pio XII continua a crescer, a pôr em
causa a sua coragem, o seu valor moral e a sua compaixão. Na Internet estas acusações
estão por toda a parte, muitas delas formuladas na linguagem do ódio. Um dos seus
críticos afirma que os «crimes» do papa são de tal maneira hediondos que ele devia ter
sido julgado em Nuremberga com os outros 21 grandes criminosos de guerra. Outro
considera o papa Pio XII tão responsável como Hitler e outros nazis pela chacina de seis
milhões de judeus, quinhentos mil ciganos, três milhões de católicos e inúmeras outras
vítimas. Em 2008, cinquenta anos depois da morte do papa, num novo livro acerca do seu
comportamento durante a Segunda Guerra Mundial, intitulado The Hound of Hitler, é dito
que o pontífice foi demasiado «fraco» para enfrentar o Führer e constituiu «um desastre
para os judeus». A lama continua a ser atirada.
































VOCABULÁRIO DO VATICANO


Simonia
O tráfico de cargos eclesiásticos, a simonia, era um crime grave para a Igreja. A sua
designação deriva do nome de Simão Mago, que tentou subornar os discípulos Pedro e
João. O episódio vem no Novo Testamento:
«Ao ver que o Espírito Santo era dado pela imposição das mãos dos Apóstolos,
Simão ofereceu-lhes dinheiro, dizendo: “Dai-me também a mim esse poder, para que aquele
a quem eu impuser as mãos receba o Espírito Santo.” Mas Pedro replicou: “Vá contigo o
teu dinheiro para a perdição, pois julgaste comprar o Dom de Deus com dinheiro.”»

Nepotismo
«Nepotismo» deriva da palavra latina nepos, que significa sobrinho ou neto e
descreve o favoritismo de muitos papas pelos seus familiares e amigos, a quem concediam
cargos na Igreja que estes não tinham merecido nem pelo mérito nem pela antiguidade. Foi
provavelmente a infração mais comum na Igreja durante a Idade Média. Porém, o
nepotismo é de certa maneira compreensível numa época em que os papas eram
ameaçados por rivais e inimigos e precisavam de se rodear de pessoas que tivessem dado
provas de lealdade.

Excomunhão
Excomungar significa excluir um homem ou uma mulher da comunidade cristã. Era a
pior punição possível, já que impedia quem a sofresse de recorrer à protecção da Igreja e
de participar na vida religiosa. Podia castigar, entre outros crimes, a apostasia (abandono
das crenças da Igreja), a heresia, o cisma (divisão da Igreja), um ataque à personalidade do
papa ou o aborto.
A ordenação sacerdotal de mulheres também era punida com excomunhão.
Em tempos medievais, a Igreja Católica encarava os excomungados ou como vitandus
(a ser evitados) ou toleratus (a quem era permitido manter relações sociais ou comerciais
com católicos). Podiam ir à missa, mas não estavam autorizados a comungar. A cerimónia
da excomunhão era ao mesmo tempo dramática e assustadora. Os sinos dobravam a
finados como se o excomungado tivesse morrido, os Evangelhos eram fechados e uma
vela era apagada. Porém, a excomunhão podia não ser permanente. Se os que haviam
sido considerados culpados se confessassem arrependidos, podiam ser reintegrados na
Igreja com todos os direitos.

Interdito
A excomunhão de uma vila, cidade ou divisão administrativa de outro tipo era
chamada «interdito». Na prática, significava que não podiam ter lugar casamentos, funerais
ou outras cerimónias religiosas enquanto ele se mantivesse, apesar de as populações
abrangidas poderem confessar-se e ser baptizadas. Se um país interditado fosse atacado,
o papa não estava obrigado a acorrer em seu auxílio. Além disso, o interdito libertava os
súbditos do dever de obediência aos governantes culposos, o que os autorizava a
rebelarem-se impunemente, se assim o desejassem.
Reis, imperadores e outros senhores cujo comportamento ofendesse a Igreja Católica
em geral incorriam nesta forma generalizada de excomunhão. O governante em questão
tinha de se arrepender para que o interdito pudesse ser levantado e o país reintegrado na
comunidade católica. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 1207, quando o rei João de
Inglaterra se recusou a aceitar a nomeação do cardeal Stephen Langton, escolhido pelo
papa para arcebispo de Cantuária. João foi excomungado e a Inglaterra interditada até
1212, quando o rei por fim cedeu e concordou com a nomeação. Depois disso o interdito
foi levantado.
Anátema
Anátema era o nome dado a um decreto da Igreja a excomungar uma pessoa ou a
declarar uma doutrina inaceitável. Contudo, como punição, o anátema ia além da
excomunhão. No Novo Testamento, há na Primeira Carta aos Coríntios (16, 22) uma
referência que diz: «Se alguém não ama o Senhor, seja anátema.» Na Carta aos Gálatas
(1, 8), anátema é a designação do castigo por pregar um evangelho rival: «Mas, até
mesmo se nós ou um anjo do céu vos anunciar como Evangelho o contrário daquilo que
vos anunciamos seja anátoma.»
A Segunda Carta de São João (1, 9-11) vai ainda mais longe: «Todo aquele que passa
adiante e não permanece na doutrina de Cristo não tem Deus consigo; Mas aquele que
permanece na doutrina, esse tem em si o Pai e o Filho. Se alguém vier até vós e não traz
essa doutrina, não o recebais em vossa casa nem o saudeis, pois quem o saúda tornar-se
cúmplice das suas más obras.»

Bula pontifícia
Uma bula pontifícia é uma comunicação, um decreto ou outra disposição emanada do
papa, em geral destinada ao público. Os conteúdos da bula podem ir da nomeação de um
bispo à canonização de um santo, passando pelo anúncio de uma excomunhão ou pela
convocação de um concílio. O nome deste documento vem de bulla, o selo aposto ao
documento, em geral metálico, mas que também pode ser feito de chumbo ou, em
ocasiões muito solenes, de ouro.

Índex dos Livros Proibidos
O Index Librorum Prohibitorum, ou Índex dos Livros Proibidos, era uma lista de livros
proibidos aos leitores católicos pela Igreja. Os livros proibidos podiam conter uma série de
«erros», incluindo heresias, imoralidade, sexo explícito ou outros assuntos considerados
contrários aos ensinamentos da Igreja Católica. O primeiro Índex não foi publicado em
Roma mas sim nos Países Baixos, em 1529. As primeiras reimpressões apareceram em
Veneza em 1543 e em Paris em 1551. Em 1571 foi criado um corpo especial na Igreja para
investigar livros que pudessem precisar de ser censurados. Chamado Sagrada
Congregação do Índex, também incluía entre as suas funções actualizar a lista de livros
incluídos no Índex e apontar outros que poderiam ser publicados caso fossem feitas
algumas alterações no seu conteúdo. Estes últimos constituíam a categoria dos donec
corrigatur (proibidos se não corrigidos) ou donec expurgetur (proibidos se não expurgados).
As listas das correções – algumas delas muito longas – foram feitas com a intenção de
ajudar os autores a tornar o seu trabalho mais aceitável.
A congregação foi dissolvida em 1917 e o Índex não voltou a ser publicado depois de
1966.

Indulgências
Uma indulgência era um perdão total ou parcial para remissão da danação eterna por
pecados mortais cometidos em vida. Havia no entanto uma condição prévia importante,
que era primeiro a Igreja perdoar o pecado. Isto queria dizer que a indulgência apenas era
concedida depois de o pecado ter sido confessado e o pecador absolvido. Infelizmente,
com o tempo abusou-se do sistema e as indulgências começaram a ser encaradas como
um pagamento para livrar um pecador pura e simplesmente do seu pecado. Quando o
teólogo e padre católico Martinho Lutero lançou o seu famoso protesto, em 1517 (um
protesto que levou à criação das igrejas protestantes), a indulgência tornou-se um símbolo
dos piores abusos do Vaticano.

A infalibilidade do papa
Segundo o dogma católico da infalibilidade do papa, estabelecido pelo Concílio
Vaticano I, a 18 de Julho de 1870, o Espírito Santo impede activamente o papa de cometer
um erro quando se pronuncia em matérias de fé ou de moral. Estas afirmações resultam da
revelação divina ou pelo menos estão relacionadas com ela.
Para poderem ser considerados infalíveis, os ensinamentos do papa têm de se basear
na tradição sagrada e nas Sagradas Escrituras, ou pelo menos não devem contradizer nem
uma nem outra. Porém, a infalibilidade do papa não sugere que este seja incapaz de pecar
ou de ter um comportamento incorrecto.
Desde que a doutrina foi introduzida, há 142 anos, apenas foi invocada uma vez. Em
1950, o papa Pio XII definiu a Assunção de Maria como artigo de fé na Igreja Católica
Romana. Foi portanto «assumido» que depois da sua morte Maria, mãe de Jesus, foi
transportada ao céu tanto com a alma como com o corpo intacto.
Tirando este uso particular da infalibilidade, a Igreja confia na ideia de que o papa
decide o que será e não será aceite como crença formal na Igreja Romana.

Legado papal
Um legado papal era um representante pessoal do papa, um cargo em geral entregue
a um cardeal. Os legados eram enviados a governos estrangeiros, a monarcas ou a igrejas
fora do Vaticano, com instruções do papa para se encarregarem de eventos católicos
importantes, como um concílio ecuménico, ou para participarem em decisões relacionadas
com questões de fé. Os legados papais também podiam encarregar-se de decisões
relacionadas com heresias, como aconteceu aquando da luta entre o papado e os hereges
cátaros no Languedoc.

Núncio apostólico
A palavra «núncio» deriva da palavra latina nuntius, que significa enviado. Um núncio
papal, conhecido oficialmente como «núncio apostólico», é um embaixador que representa
o Vaticano noutros estados ou em organizações internacionais, como as Nações Unidas.
O núncio tem o mesmo estatuto que um embaixador de outro estado e em geral tem o
cargo de arcebispo durante o tempo que permanece no posto (enquanto a Igreja Católica
continuar a não ordenar mulheres, todos os núncios papais serão homens).




































BRENDA RALPH LEWIS






Mora em Buckingamshire, no centro


de Inglaterra. Estudou Piano e Teoria
Musical no Trinity College of Music
em Londres.
No entanto, a sua paixão é a História
e tem mais de 80 livros no seu
currículo. Entre eles incluem-se Dark
History of the Kings and Queens
of England e Dark History of the
Kings and Queens of Europe.















ASSASSINACTOS E ENVENENAMENTOS,
FILHOS ILEGÍTIMOS E DEVASSIDÃO,
COBIÇA E CORRUPÇÃO: OS MAIORES
ESCÂNDALOS E SEGREDOS DOS PAPAS.


ESTEVÃO VI (896-897) O papa Estevão ordenou que o corpo em
decomposição do seu antecessor, o papa Formoso, fosse desenterrado,
sujeito a um julgamento e atirado ao Tibre – por duas vezes;

JOÃO XII (955-964) Não lhe bastou ter o seu próprio bordel no
Vaticano – ainda cegou um cardeal e castrou outro. Dizia-se também que
brindou ao Diabo na Basílica de S. Pedro até ficar inconsciente com tanto
álcool;

INOCÊNCIO III (1198-12I6) O instigador da cruzada albigense,


contra os hereges cátaros, foi responsável pela morte de cerca de um milhão
de pessoas;

ALEXANDRE VI (1492-1503) O mais famoso dos Bórgias teve oito
filhos de várias amantes. Foi eleito papa graças ao suborno dos outros
cardeais, o que não o impediu de refazer e até aumentar a sua imensa fortuna
uma vez chegado ao poder.

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