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Sobre a Profecia
Edição bilíngüe
Volume II
Tradução:
Luiz Astorga
Sobre a Profecia - vol. II, Santo Tomás de Aquino
© Editora Concreta, 2017
Título original:
Quaestiones disputatae de veritate (q. 12)
Ficha Catalográfica
Tomás de Aquino, Santo, 1225?-1274
T655s Sobre a Profecia - vol. II / tradução de Luiz Astorga, edição de Renan Santos. –
Porto Alegre, RS: Concreta, 2017.
112p. :p&b ; 16 x 23cm
ISBN 978-85-68962-05-3
CDD-231.745
www.editoraconcreta.com.br
C OL EÇ ÃO ESC OL Á S T IC A
F
oram características marcantes do período escolástico a elevação da
dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história
da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos,
a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas
demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a
partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica
que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela ra-
zão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da
materia prima a Deus.
O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como
Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha
ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho
metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias
esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios
dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen
Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício feno-
menológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno:
o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em
ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras
obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes.
Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel,
Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgens-
tein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios
filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída.
Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renas-
centista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter
atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar
diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da
desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual
fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a
política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas,
mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto.
Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora
Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico
confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior
deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas
pouco difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande
maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciati-
vas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est
diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens,
para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados.
No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na lon-
gínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes
que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma es-
pécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas
raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigu-
rado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em
tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto
foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a
certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada
terra dos relativismos.
Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com
edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo
de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grossetes-
te, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica.
Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procurare-
mos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será
o de não lhes desfigurar o pensamento.
Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro.
Sidney Silveira
Coordenador da Coleção Escolástica
Sumário
ARTICULUS 7
Septimo quaeritur utrum in revelatione prophetica
imprimantur divinitus in mentem prophetae novae
rerum species, vel solum intellectuale lumen
Et videtur quod solum lumen sine speciebus.
ARTIGO 7
Se na revelação profética se imprimem de modo
divino na mente do profeta novas espécies das coisas,
ou se se imprime apenas a luz intelectual 1
1 Cf. Suma Teológica, II-II, q. 173, a. 2; Comentário a Isaías, c. 1; Comentário a 1 Coríntios, c. 14,
lect. 1. Neste artigo o Aquinate não se refere, evidentemente, à luz intelectual natural que é nossa
própria potência intelectiva inata, mas à luz profética, que, embora também de tipo intelectivo, é
sobrenatural e superveniente à natural. [N. T.]
2 O original latino do Corpus Thomisticum indica “II Cor 14,2”, um lapso tipográfico. [N. T.]
3 Glosa de Pedro Lombardo (PL 192, 81A-B).
4 Cf. Jeremias 1,13.
12 Santo Tomás de Aquino
5. Praeterea, illud quod quis potest propria virtute efficere, non oportet
quod in propheta divina operatione fiat. Sed quilibet potest rerum qua-
rumlibet in mente sua species formare per virtutem imaginativam, quae
componit et dividit imagines a rebus acceptas. Ergo non oportet quod
aliquae rerum species in animam prophetae divinitus imprimantur.
6. Praeterea, natura operatur breviori via qua potest; et multo magis
Deus, qui ordinatius operatur. Sed brevior via est ut a speciebus quae in
anima prophetae sunt, ducatur in rerum aliqualem cognitionem, quam ex
aliis speciebus de novo impressis. Ergo non videtur quod aliquae species
de novo imprimantur.
7. Praeterea, ut dicit Glossa Hieronymi, Amos I, 2: prophetae utuntur
similitudinibus rerum in quibus conversati sunt. Hoc autem non esset,
si eorum visiones fierent per species de novo impressas. Ergo non impri-
muntur aliquae species in animam prophetae de novo, sed solum lumen
propheticum.
Sed contra.
5. Ademais, aquilo que alguém pode realizar por virtude própria não é ne-
cessário que se dê no profeta por operação divina. Mas qualquer pessoa pode,
em sua mente, formar espécies de coisas mediante a potência imaginativa, que
compõe e divide as imagens recebidas delas. Portanto, não é necessário que se
imprimam divinamente certas espécies de coisas na alma do profeta.
6. Ademais, a natureza opera pela via mais breve possível;5 e muito mais o
faz Deus, que opera ainda mais ordenadamente. Mas a via em que o profeta
é conduzido à cognição das coisas a partir das espécies que estão em sua alma
é mais breve que aquela em que tal se faz a partir de novas espécies impressas.
Portanto, não parece que se imprimam novas espécies.
7. Ademais, como diz a Glosa de Jerônimo sobre Amós [1,2]: “os profetas
usam as semelhanças das coisas no meio das quais viveram”.6 Mas isso não seria
assim se suas visões ocorressem por certas espécies impressas novas. Portanto,
não se imprimem novas espécies na alma do profeta, mas apenas a luz profética.
Mas, em sentido contrário:
1. Para conhecer determinado visível, a visão não é determinada pela luz,
mas pelas espécies visíveis. De modo semelhante, para conhecer os inteligíveis
o intelecto possível não é determinado pela luz do intelecto agente, mas pelas
espécies inteligíveis.7 Portanto, dado que a cognição do profeta é determinada
a coisas que não conhecia anteriormente, parece que não basta a infusão da
luz, senão que também é necessário que se imprimam espécies.
2. Ademais, no capítulo I de Sobre a Hierarquia Celeste diz Dionísio que
“é impossível luzir sobre nós o raio divino senão cingido da variedade dos
velames sagrados”.8 Mas ele chama “figuras” aos velames.9 Portanto, não se
infunde nos profetas a luz inteligível senão mediante espécies figurativas.
5 Cf. S. Tomás de Aquino, Comentário às Sentenças, III, d. 23, q. 3, a. 4, qc. 3, sc. 1; IV, d. 2, q. 1,
a. 4, qc. 1, arg. 1.
6 Glossa Ordinaria, ibid.
7 Em resumo, as espécies inteligíveis são o que formalmente atualiza o intelecto agente. Daí o Aqui-
nate preconizar que o intelecto possível se faz inteligente em ato mediante uma espécie inteligível.
“Intellectus autem fit actu intelligens per speciem intelligibilem”. Cf. S. Tomás de Aquino, Super
librum De Causis expositio, Lectio III. Nesta passagem do Artigo 7, o Aquinate está a salientar a cir-
cunstância de que a luz profética se faz acompanhar de espécies – naturais ou infusas – pelas quais o
profeta pode, efetivamente, conhecer o futuro contingente que Deus lhe apresenta. Frise-se apenas
que a profecia não reside nas espécies, mas a interpretação que o profeta faz delas graças à iluminação
divina. [N. C.]
8 Pseudo-Dionísio Areopagita, Sobre a Hierarquia Celeste, c. 1, §2 (PG 3, 121B).
9 Op. cit., c. 1, §3 (PG 3, 124A).
14 Santo Tomás de Aquino
13 O Aquinate introduz sua resposta distinguindo o objeto sobrenatural de cada uma das potências
cognitivas humanas (sensitiva, imaginativa, intelectiva), e qual destas corresponde à profecia em seu
modo mais próprio. Isto não quer dizer que, dando-se estrita atenção ao modo, não se deva qualificar
de “sobrenatural” qualquer infusão divina de conhecimentos que não tenham passado por nossos
sentidos, como o conhecimento sem abstração de uma qüididade qualquer. [N. T.]
18 Santo Tomás de Aquino
solum fit secundum lumen, sed secundum species etiam; quandoque vero
secundum species; quandoque vero secundum lumen tantum.
14 Aqui, dá-se uma divergência entre originais, ante a qual preferimos a Edição Leonina à do Cor-
pus Thomisticum. Nesta última, consta: “e é desta maneira que se deve conceder que ao profeta a
revelação ocorre não só segundo a luz e segundo as espécies, mas algumas vezes apenas segundo as
espécies, e às vezes apenas segundo a luz”. A possibilidade de que a profecia se dê “somente segundo as
espécies” parece carecer de sentido, especialmente pelo que se diz no próprio corpo da resposta: que
a mera recepção de espécies pelo intelecto não caracteriza a profecia, mas antes o juízo das espécies.
A iluminação sobrenatural do intelecto para guiar o juízo é o que se exige sempre, seja com respeito
a espécies preexistentes no profeta, seja com respeito a espécies infundidas simultaneamente à ilumi-
nação. A Leonina, que não contém esta parte, estaria correta. É relevante notar que esta não parece
ser uma diferença entre seleções de manuscritos: nada no aparato crítico leonino indica a existência
da variante em questão. [N. T.]
15 Isto é, são mais acessíveis a nossas capacidades. O lat. proportionatus poderá ser vertido por “pro-
porcional” ou “proporcionado”, mas se terá em mente o mesmo conceito. [N. T.]
20 Santo Tomás de Aquino
quantum eis certitudinem infundit. Sic ergo locutio qua Deus prophetis
locutus esse dicitur in Scripturis, non solum attenditur quantum ad spe-
cies rerum impressas, sed etiam quantum ad lumen inditum, quo mens
prophetae de aliquo certificatur.
5. Ad quintum dicendum, quod ex hoc ipso quod visio intellectualis et
imaginaria dignior est corporali, secundum eas cognoscimus non solum
praesentia, sed etiam absentia, cum visione corporali solummodo prae-
sentia cernantur; et ideo in imaginatione et intellectu reservantur species
rerum, non autem in sensu. Ad hoc ergo quod visio corporalis sit super-
naturalis, semper oportet quod novae formentur species corporales; non
autem hoc requiritur ad hoc quod visio imaginaria vel intellectualis sit
supernaturalis.
Sobre a Profecia · Artigo 7 23
às almas santas na medida em que lhes infunde certeza. Assim, a locução pela
qual se diz que Deus falou aos profetas nas Escrituras não se refere somente às
espécies impressas das coisas, mas também à luz infusa pela qual a mente do
profeta se certifica de algo.
5. Quanto ao quinto, deve-se dizer que, pelo próprio fato de que a visão
intelectual e a imaginária são mais dignas que a corporal, por elas conhece-
mos não só as coisas presentes, mas também as ausentes, ao passo que a visão
corporal tão-somente discerne as coisas presentes. Por isso, na imaginação e
no intelecto se preservam as espécies das coisas, mas não no sentido. Portanto,
para que a visão corporal seja sobrenatural, é sempre necessário que se formem
novas espécies corporais; mas isso não se requer para que sejam sobrenaturais
a visão imaginária ou a intelectual.
24 Santo Tomás de Aquino
ARTICULUS 8
Octavo quaeritur utrum omnis revelatio
prophetica fiat Angelo mediante
Sed contra.
ARTIGO 8
Se toda e qualquer revelação profética
é feita por intermédio de um anjo20
revelatio mediantibus Angelis; unde dicitur Galat. cap. III, 19, quod lex
(...) ordinata est per Angelos in manu mediatoris; et Act., VII, 38, dicit
Stephanus de Moyse: hic est qui fuit in Ecclesia in solitudine cum Angelo,
qui loquebatur ei in monte Sinai, et cum patribus nostris. Ergo multo
fortius omnes alii prophetae mediante Angelo revelationem acceperunt.
2. Praeterea, Dionysius dicit IV cap. caelestis hierarchiae quod divinas
visiones gloriosi patres nostri adepti sunt per medias caelestes virtutes.
3. Praeterea, Augustinus dicit in Lib. de Trinit. quod omnes apparitiones
patribus factae in veteri testamento, fuerunt per Angelos administratae.
lação divina por intermédio de anjos – donde dizer-se em Gálatas [3,19] que
“a lei [...] foi ordenada mediante anjos na mão de um mediador”, enquanto
em Atos [7,38] diz Estêvão acerca de Moisés: “Este é o que ficou na assembléia
no deserto com o anjo, que lhe falava no monte Sinai, e com nossos pais”. Por-
tanto, com muito mais razão todos os outros profetas receberam a revelação
por intermédio de um anjo.
2. Ademais, diz Dionísio no capítulo IV de Sobre a Hierarquia Celeste que
“nossos gloriosos pais compreenderam as visões divinas pelas virtudes celestes
intermédias”.23
3. Ademais, diz Agostinho em Sobre a Trindade que todas as aparições
feitas aos pais no Antigo Testamento foram administradas mediante anjos.24
Respondo. Deve-se dizer que na revelação profética concorrem duas coisas,
a saber: a iluminação da mente e a formação das espécies na potência imaginati-
va. Portanto, a própria luz profética (pela qual é iluminada a mente do profeta)
procede originalmente de Deus; contudo, para sua adequada recepção, a mente
humana é fortalecida pela luz angélica e, de certo modo, por ela preparada. Pois,
dado que a luz divina é a mais simples e a mais universal em sua virtude, não é
proporcionada a ser recebida pela alma humana no estado de via,25 a menos que
de certo modo se contraia e se especifique pela conjunção com a luz angélica, que
é mais contraída e mais proporcionada à mente humana. Mas a própria formação
das espécies na potência imaginativa deve ser precisamente atribuída aos anjos, já
que toda criatura corporal é administrada pela espiritual, como o prova Agostinho
em Sobre a Trindade.26 Ora, a potência imaginativa faz uso de órgão corporal. Por-
tanto, nela a formação de espécies pertence propriamente ao ministério dos anjos.
1. Quanto ao primeiro argumento, portanto, deve-se dizer que – como
afirmado acima27 – aquelas palavras de Agostinho têm de referir-se à visão da
pátria, ou à visão de arrebatamento, não à visão profética.
2. Quanto ao segundo, deve-se dizer que a profecia se conta entre os dons
do Espírito Santo por razão da luz profética, que é infundida por Deus sem
mediação, ainda que o ministério dos anjos coopere para sua adequada recepção.
3. Quanto ao terceiro, deve-se dizer que o que a criatura faz por virtude
própria lhe é de certo modo natural. Já o que a criatura faz não por sua própria
virtude, mas enquanto movida por Deus como certo instrumento da operação
divina, lhe é sobrenatural. Portanto, é uma profecia natural a que se origina do
anjo segundo a cognição natural deste; por outro lado, é uma profecia sobre-
natural a que se origina do anjo na medida em que este recebe uma revelação
de Deus.
4. Quanto ao quarto, deve-se dizer que o anjo não cria a luz no intelecto
humano nem as espécies na potência imaginativa; mas, pela operação do anjo,
a luz natural é fortalecida divinamente para o intelecto humano, e neste sen-
tido se diz que o anjo ilumina o homem. Além disso, porque o anjo é capaz
de mover o órgão da fantasia, pode formar a visão imaginativa segundo o que
compete à profecia.
5. Quanto ao quinto, deve-se dizer que a ação não é atribuída ao instru-
mento, mas ao agente principal; assim como não se diz que o escabelo é efeito
da serra, mas do carpinteiro. E, de modo semelhante, visto que o anjo não é
a causa da revelação profética senão como instrumento divino mediante a re-
velação recebida de Deus, a profecia não se deve chamar “revelação angélica”,
mas “revelação divina”.
6. Quanto ao sexto, deve-se dizer que a sabedoria divina que se transfere
para a alma produz outros efeitos não intermediados por anjos – como a in-
fusão da graça, pela qual alguém é constituído amigo de Deus. Todavia, nada
impede que ela produza alguns outros efeitos mediante o referido ministério.
E assim, transferindo-se para as almas santas, constitui profetas por intermé-
dio dos anjos.
30 Santo Tomás de Aquino
ARTICULUS 9
Nono quaeritur utrum propheta semper quando a
spiritu prophetiae tangitur, a sensibus alienetur
1. Quia dicitur Num., XII, 6: si quis fuerit inter vos propheta domi-
ni, in somnio et visione loquar ad eum. Sed, ut dicit Glossa in principio
Psalterii, tunc fit prophetia per somnia et visiones quando fit per ea quae
videntur dici vel fieri. Cum autem apparent ea quae videntur dici vel fieri,
et non dicuntur vel fiunt, homo est a sensibus abstractus. Ergo visio pro-
phetiae semper est propheta a sensu abstracto.
2. Praeterea, quando una virtus multum intenditur in sua operatione,
oportet aliam a sua operatione abstrahi. Sed in visione prophetiae inte-
riores vires maxime in suis operationibus intenduntur, scilicet intellec-
tus et imaginatio, cum hoc sit perfectissimum ad quod pervenire possunt
secundum statum viae. Ergo in visione prophetica semper propheta ab
operatione exteriorum virium abstrahitur.
3. Praeterea, intellectualis visio est nobilior quam imaginaria, et haec
quam corporalis. Sed permixtio ignobilioris detrahit aliquid de perfec-
tione nobilioris. Ergo visio intellectualis et imaginaria, quando visioni
corporali non permiscentur, sunt perfectiores. Cum igitur in prophetica
visione ad summam perfectionem perveniant secundum statum viae, vi-
detur quod tunc nullo modo corporali visioni permisceantur, ut scilicet
propheta cum eis simul corporali visione utatur.
Sobre a Profecia · Artigo 9 31
ARTIGO 9
Se o profeta sempre se distancia dos sentidos
quanto o toca o espírito da profecia28
Sed contra.
1. Est quod dicitur I Cor., cap. XIV, 32: spiritus prophetarum pro-
phetis subiecti sunt. Hoc autem non esset, si propheta esset a sensibus
alienatus; quia sic non esset sui ipsius compos. Ergo prophetia non fit in
homine alienato a sensibus.
2. Praeterea, secundum visionem prophetiae accipitur certa cognitio
de rebus sine errore. Sed in his qui sunt abstracti a sensibus, vel in somnio,
vel quocumque alio modo, est cognitio permixta errori, et incerta; quia
similitudinibus rerum inhaerent quasi rebus ipsis, ut Augustinus dicit XII
super Gen. ad litteram. Ergo prophetia non fit cum alienatione a sensu.
3. Praeterea, si hoc ponatur, videtur sequi error Montani qui dixit pro-
phetas quasi abreptitios esse locutos, quid dicerent nescientes.
4. Praeterea, prophetia, ut dicitur in Glossa in principio Psalterii, quan-
doque fit per facta et dicta: per facta, sicut per arcam Noe significatur Ec-
clesia; per dicta, sicut ea quae Angeli dixerunt Abrahae. Sed constat quod
Noe arcam constituens, et Abraham Angelis colloquens et eis serviens,
non erant a sensibus abstracti. Ergo prophetia non fit per abstractionem
a sensibus semper.
Denuntiatio autem fit a propheta vel verbis, vel etiam factis, sicut patet
Ierem., cap. XIII, quod lumbare suum iuxta fluvium posuit ad putrescen-
dum. Utrolibet autem modo denuntiatio prophetica fiat, semper fit ab ho-
mine non abstracto a sensibus, quia huiusmodi denuntiatio per signa qua-
edam sensibilia fit. Unde prophetam denuntiantem oportet sensibus uti
ad hoc quod eius denuntiatio sit perfecta; alias denuntiaret quasi arreptus.
Sed quantum ad visionem prophetiae duo concurrunt, ut ex dictis pa-
tet, scilicet iudicium et acceptio propria prophetiae. Quando igitur pro-
pheta inspiratur divinitus, ut sit tantum iudicium eius supernaturale, et
non acceptio, tunc talis inspiratio abstractionem a sensibus non requirit,
quia iudicium intellectus naturaliter est perfectus in utente sensibus quam
in non utente. Acceptio autem supernaturalis propria prophetiae, est se-
cundum imaginariam visionem, ad quam visionem inspiciendam rapitur
mens humana ab aliquo spiritu, et a sensibus abstrahitur, ut Augustinus
dicit XII super Genes. ad litteram. Cuius ratio est, quia vis imaginativa,
dum quis utitur sensibus, principaliter est intenta his quae per sensus acci-
piuntur; unde non potest esse quod intentio eius principaliter transferatur
ad ea quae aliunde accipiuntur, nisi quando homo est a sensu abstractus.
Unde quandocumque fit prophetia secundum imaginariam visionem,
oportet a sensibus abstractum esse prophetam.
Sed haec abstractio dupliciter contingit: uno modo ex causa anima-
li; alio modo ex causa naturali. A causa quidem naturali quando exte-
riores sensus stupescunt vel propter aegritudinem, vel propter vapores
somni ad cerebrum ascendentes, ex quibus contingit organum tactus
immobilitari. Ex causa vero animali, sicut quando homo ex nimia at-
tentione ad intellectualia vel imaginabilia omnino a sensibus exterio-
ribus abstrahitur.
Sobre a Profecia · Artigo 9 35
35 Cf. artigo 7.
36 Ou seja: o espírito de profecia.
37 S. Agostinho, Comentário Literal ao Gênesis, XII, 13 (PL 34, 464).
38 O adjetivo latino animalis poderia trazer confusão se traduzido simplesmente por “animal”. Com
ele o Aquinate se refere a uma causa relacionada não ao natural amainar das funções da alma (ao qual
chamou “causa natural”), mas aos excessos de sua atividade – e isto especialmente nas funções supe-
riores (como dirá em seguida), nas quais a alma, que é forma, tem razão de causa mais próxima que
a matéria. Faz sentido, portanto, que a estas tenha chamado causas da alma, embora aquele amainar
natural das funções (especialmente das vegetativas mencionadas) também se dê, em última instância,
por perfeições essenciais ditadas pela alma. [N. T.]
39 Aristóteles, Sobre os Sonhos, 3 (461a 15).
40 Avicena, Sobre a Alma, IV, 2.
36 Santo Tomás de Aquino
41 Aqui o termo “visão” não significa o mesmo que a referida visão imaginária, mas (assim como o
sonho) a tem por pressuposto. Refere-se a quando, em vigília, os sentidos externos se obscurecem e a
potência imaginativa recebe tal ou qual conteúdo. [N. T.]
42 O autor emprega vis e, em seguida, virtus. Ver nota 11 do vol. I.
43 Nesta frase, não encontramos disparidade em manuscritos que nos permitisse empregar “interior”
em lugar de “superior”, redação talvez mais harmônica com o restante do argumento. De qualquer
modo, basta-nos observar que as virtudes e as potências interiores são também tidas como superiores
às exteriores. [N. T.]
38 Santo Tomás de Aquino
ARTICULUS 10
Decimo quaeritur utrum prophetia convenienter
dividatur in prophetiam praedestinationis,
praescientiae et comminationis
ARTIGO 10
Se a profecia se divide convenientemente em profecia
de predestinação, presciência e cominação44
10. Ademais, diz Isaías profeticamente a Ezequias: “Dispõe para tua casa,
pois morrerás, etc.” [Is 38,1] Ora, esta profecia não é de predestinação, pois é
de todos os modos necessário que se cumpra, mesmo sem nosso arbítrio. Tam-
pouco é de presciência, pois Deus não previa este futuro; caso contrário, à Sua
presciência se teria submetido algo falso. Mais uma vez, tampouco é comina-
tória, pois predizia o futuro sem condição. Portanto, é necessário acrescentar
um quarto tipo de profecia.
11. Poderia dizer-se, porém, que o conteúdo de tal profecia haveria de
ocorrer segundo causas inferiores, e que, assim, era uma profecia cominatória.
Mas, em sentido contrário: as causas inferiores da morte de um homem enfer-
mo podem ser conhecidas pelo homem segundo a arte da medicina. Portanto,
se Isaías não predisse que aquilo só haveria de ocorrer segundo causas inferio-
res, ou não predisse de modo profético, ou a predição profética não difere da
predição de um médico.
12. Ademais, toda profecia versa sobre as coisas ou observando as causas
superiores ou observando as inferiores. Se, portanto, a supracitada profecia
é entendida como condicional por dar-se segundo certas causas (isto é, as
inferiores), então por igual razão toda profecia será condicional; e assim toda
profecia será da mesma razão que a cominatória.
13. Ademais, ainda que a profecia de cominação não se cumpra “segundo
a superfície das palavras, é cumprida pelo significado da inteligência tácita,”
como diz Cassiodoro,49 assim como o que foi dito por Jonas (“Nínive será des-
truída” [Jo 3,4]) se cumpriu, segundo Agostinho em A Cidade de Deus, pois,
“embora Nínive estivesse de pé no que tange a seus muros, desabou em seus
costumes perversos”.50 Mas também na profecia de predestinação e na de pres-
ciência ocorre que não se cumpram segundo a superfície exterior das palavras,
mas segundo o sentido espiritual, como o que foi dito em Isaías [54,11]: “Edi-
ficarei Jerusalém em safiras”, e em Daniel [2,34]: “Pois uma pedra arrancada
do monte sem a intervenção de mãos despedaçou a estátua”; e muitas outras
coisas deste tipo. Portanto, a profecia de cominação não deve ser distinguida
da de presciência e da de predestinação.
14. Ademais, se a alguém são mostradas certas semelhanças das coisas futuras,
este não é chamado profeta a não ser que compreenda as coisas que por elas são
significadas; assim não se chama “profeta” ao Faraó, que viu espigas e bois; “pois
é necessária a inteligência na visão”, como se diz em Daniel [10,1] Ora, aqueles
51 Cf. Glossa Ordinaria sobre Mateus 1,22-23. (A passagem se refere à conhecida profecia de Isaías
7,14).
52 Cf. artigo 3 no vol. I.
53 Cf. Boécio, Consolação da Filosofia, V, 6 (PL 63, 859A).
48 Santo Tomás de Aquino
suas causas; portanto, só assim podem ser previstas por nós. Para que esteja claro
aos que consideram retamente: ao dizermos que antevemos os futuros, temos
mais propriamente a ciência das coisas presentes que das futuras; e assim perma-
nece próprio tão-só de Deus o saber verdadeiramente os futuros. Logo, por vezes
a profecia deriva da presciência divina pela razão da ordem das causas, mas por
vezes também deriva da razão da execução ou do cumprimento de tal ordem.
Quando a revelação da profecia se dá somente segundo a ordem das causas,
diz-se que a profecia é de cominação: pois nela não se revela ao profeta senão
que, segundo aquilo que agora existe, tal coisa está ordenada a esta ou aquela.
Já o cumprimento da ordem das causas ocorre de duas maneiras. Por vezes,
resulta apenas da operação do poder divino, como a ressurreição de Lázaro, a
concepção de Cristo e fatos deste tipo; e segundo isso a profecia é de predes-
tinação, pois, como diz Damasceno, “Deus predestina as coisas que não estão
em nós”;54 daí que a predestinação também seja vista como certa preparação
de Deus. Ora, alguém prepara o que ele próprio haverá de fazer, não o que
será feito por outro. Já certas coisas são cumpridas também pela operação de
outras causas, sejam estas naturais, sejam voluntárias; e estas, na medida em
que são cumpridas por outras causas, não são predestinadas, ainda que sejam
antevistas. E destas se diz que há profecia de presciência.
Todavia, dado que a presciência se dá em razão dos homens, a profecia de
presciência consiste precipuamente nas coisas que ocorrem por intermédio
dos homens, mediante o livre-arbítrio. Daí que, omitindo-se outras causas
criadas, Jerônimo, que assinala a profecia de presciência, faça menção apenas
do livre-arbítrio.
1. Quanto ao primeiro argumento, portanto, deve-se dizer que a divi-
são de três membros exposta por Jerônimo se reduz à divisão de dois, como se
disse, pois que uma considera a ordem das causas, enquanto a outra considera
a execução da ordem – e foi nesta divisão que permaneceu Cassiodoro. Porém
Jerônimo subdividiu outro membro. Por isso, Cassiodoro propôs dois mem-
bros de divisão, enquanto Jerônimo três. Também Cassiodoro compreendeu a
presciência em seu sentido geral, enquanto versa sobre todos os eventos, quer
ocorram pela potência criada, quer ocorram pela incriada. Mas Jerônimo con-
cebeu a presciência segundo certa restrição, na medida em que versa apenas
sobre as coisas de que não há predestinação propriamente falando, ou seja,
sobre as coisas que provêm da potência criada.
58 Cf. Aristóteles, Tópicos, VI, 2 (140a 10). Cf. também S. Tomás de Aquino, Comentário às
Sentenças, I, d. 34, q. 3, a. 1, arg. 2.
59 No sentido literal, a destruição prevista não se realizou, por Nínive haver mudado seus costumes;
o sentido moral desta profecia, porém, revela-nos uma relação causal plenamente válida e verdadeira:
é invariavelmente real que a permanência nos maus costumes teria causado a destruição daquela
cidade. E tal verdade é, de certo modo, também visível no próprio sentido literal não realizado, dado
que a razão que evitou sua realização foi a mudança de costumes. [N. T.]
60 Neste ponto, seguimos a edição Leonina. A edição de Alarcón se ateve à família Phi de manuscri-
tos, em que constava novamente “destruição”. Embora haja certamente razões filológicas que justifi-
quem as duas possibilidades, a segunda parece-nos contrária à concreção do argumento e à própria
narrativa bíblica, na qual a subseqüente conversão da cidade – não prevista por Jonas – previne sua
destruição. [N. T.]
56 Santo Tomás de Aquino
ARTICULUS 11
Undecimo quaeritur utrum in prophetia
inveniatur immobilis veritas
ARTIGO 11
Se na profecia encontra-se verdade imutável 61
Sed contra.
o referido adjetivo no terceiro emprego legítimo que Aristóteles indicava, isto é, o de que algo “não
ocorrerá de outra maneira”, mas sem por isso negar a este algo seu caráter contingente. [N. T.]
65 Aristóteles, Primeiros Analíticos, I, 13 (32a 18). Cf. também S. Tomás de Aquino, Comentário
às Sentenças, I, d. 38, q. 1, a. 5, arg. 3.
66 Aristóteles, Categorias, 5 (4b 8), 12 (14b 21).
67 Glosa de Pedro Lombardo (PL 191, 58B-C).
68 Cf. Glossa Ordinaria sobre Mateus 1,22.
60 Santo Tomás de Aquino
69 Lat. exemplatus. Empregado na Escolástica, o mencionado particípio latino pode traduzir-se li-
vremente por “exemplado”, por referência à ação de tomar a algo como exemplo (neste caso, os
exemplares que são as idéias na mente divina). Preferimos empregar este termo por praticidade, para
salientar tal relação. [N. T.]
70 S. Tomás de Aquino, Sobre a Verdade, q. 2, a. 13.
71 Lit. “na medida em que ele é corrente”, ou seja: realizador da ação de correr. Noutras palavras, a
idéia assim procede: na medida em que se considera apenas o homem, o mover-se cabe-lhe per acci-
dens; já na medida em que consideramos o homem que executa a ação de correr, o mover-se cabe-lhe
per se. [N. T.]
72 Cf. artigo 10, em resposta ao oitavo argumento.
62 Santo Tomás de Aquino
seja esta a ordem que o profeta prediz é necessário, ainda que às vezes o acon-
tecimento não se realize.
3. Quanto ao terceiro, deve-se dizer que “conselho de Deus” se diz da
própria disposição eterna de Deus, que nunca varia; por isso diz Gregório
que Deus nunca muda Seu conselho. Já “sentença” se diz daquilo a que
certas causas estão ordenadas, pois nos juízos as sentenças são proferidas a
partir dos méritos das causas. Ora, por vezes aquilo a que as causas estão
ordenadas foi também disposto por Deus desde a eternidade, e então o
conselho e a justiça de Deus são a mesma coisa. Por vezes, porém, as causas
estão ordenadas a algo que não foi disposto por Deus desde a eternidade, e
então o conselho e a sentença de Deus rumam a pontos diversos. Portanto,
da parte da sentença (que considera as causas inferiores) se encontra a mu-
tabilidade, enquanto da parte do conselho se encontra sempre a imutabili-
dade. Às vezes se revela aos profetas uma sentença conforme ao conselho;
e então a profecia possui verdade imutável também quanto ao evento. Às
vezes, por outro lado, revela-se uma sentença não conforme ao conselho; e
então possui verdade imutável quanto à ordem, mas não quanto ao evento,
como se disse.
4. Quanto ao quarto, deve-se dizer que a imutabilidade da profecia pro-
cede da parte do espelho eterno, não no sentido de que imponha necessidade
às coisas profetizadas, mas porque faz a profecia ser necessária (como ela pró-
pria o é) acerca de coisas contingentes.
5. Quanto ao quinto, deve-se dizer que, uma vez admitido que algo foi
profetizado segundo profecia de presciência, se tem que, embora seja em si
possível que aquele algo não tenha ser, isto não é compossível com o que se
admitiu, isto é, que se diga que ele foi previsto;73 pois, pelo próprio fato de
que o admitimos como previsto, se admite que ele assim ocorrerá, já que a
presciência diz respeito ao próprio acontecimento.
6. Quanto ao sexto, deve-se dizer que a verdade da proposição procede
da condição da coisa apenas quando se origina das coisas a ciência do que
propõe tal verdade. Mas não era este o caso que afirmamos.
7. Quanto ao sétimo, deve-se dizer que, embora a causa próxima da
coisa profetizada seja mutável, é imutável a causa próxima da própria profecia,
como se disse. Portanto, o argumento não procede.
73 Por sua etimologia, praescitum refere-se sobretudo ao profetizado segundo presciência (preascien-
tia). Como já dissemos, equivale literalmente a “pré-conhecido”, que por fluência temos vertido
(salvo quando absolutamente necessário) como “previsto” ou como “antevisto”. [N. T.]
64 Santo Tomás de Aquino
8. Quanto ao oitavo, deve-se dizer que não ocorrer o profetizado tem ju-
ízo similar a não ocorrer o previsto. E de que modo isso deve ser concedido ou
negado é questão já tratada acerca da ciência de Deus.74
74 Cf. S. Tomás de Aquino, Sobre a Verdade, q. 2, a. 13. A referida questão indaga se a ciência de
Deus é ou não é variável. Na resposta, Santo Tomás demonstra que, sendo a ciência algo intermédio
entre o cognoscente e a coisa conhecida (scientia sit media inter cognoscentem et cognitum), uma va-
riação nela pode dar-se de dois modos: da parte do cognoscente e da parte do conhecido. Da parte
do cognoscente, a ciência de Deus, que se identifica com a Sua substância, é absolutamente invariável;
da parte da coisa conhecida, a ciência varia segundo a verdade e a falsidade, já que, se a coisa muda
e o juízo sobre ela permanece, o que antes era verdadeiro se torna falso, o que no caso de Deus não
pode acontecer porque o conhecimento divino é omniabarcante e se refere às coisas enquanto estão
presentes à Sua inteligência. Sendo assim, também as coisas mutáveis estão sujeitas à perfeitíssima visão
divina. Daí que a ciência de Deus não é variável de nenhuma maneira (et sic scientia Dei nullo modo
variabilis est). Sobre as demais características da ciência divina, é fundamental a leitura da questão
XIV da Primeira Parte da Suma Teológica. [N. C.]
66 Santo Tomás de Aquino
ARTICULUS 12
Duodecimo quaeritur utrum prophetia quae est secundum
visionem intellectualem tantum, sit eminentior ea quae habet
visionem intellectualem simul cum imaginaria visione
ARTIGO 12
Se a profecia dada somente segundo a visão
intelectual é mais eminente que aquela com visão
intelectual simultânea à visão imaginária75
praeditus est; sed maxime propheta est qui in utroque praecellit; ergo
idem quod prius.
6. Praeterea, prophetia, ut dicit Rabbi Moyses, inchoatur in intellectu,
et perficitur in imaginatione. Ergo prophetia quae habet visionem imagi-
nariam, est perfectior quam quae habet intellectualem tantum.
7. Praeterea, debilitas intellectualis luminis imperfectionem indicat
prophetiae. Sed ex debilitate intellectualis luminis, videtur contingere
quod visio prophetica non derivetur usque ad imaginationem. Ergo vide-
tur quod illa prophetia, quae habet imaginariam visionem, sit perfectior.
8. Praeterea, maioris perfectionis est cognoscere rem aliquam in se,
et prout est alterius signum, quam cognoscere eam in se tantum. Ergo,
eadem ratione, perfectius est cognoscere aliquam rem ut est significata,
quam cognoscere eam in se tantum. Sed in prophetia quae habet imagina-
riam visionem cum intellectuali, cognoscitur res prophetata non solum in
se, sed etiam prout est imaginibus designata. Ergo prophetia quae habet
imaginariam visionem, est nobilior prophetia quae habet intellectualem
tantum, in qua cognoscuntur res prophetatae in se solummodo, et non
prout sunt signatae.
9. Praeterea, sicut dicit Dionysius, I cap. caelestis hierarchiae, impos-
sibile est nobis aliter superlucere divinum radium nisi varietate sacrorum
velaminum circumvelatum. Velamina autem appellat figuras imaginarias,
quibus puritas intellectualis luminis quasi velatur. Ergo in omni prophetia
oportet esse imaginarias figuras, vel ab homine formatas, vel divinitus im-
missas. Nobiliores autem videntur esse illae quae sunt immissae divinitus
quam quae sunt formatae ab homine. Illa ergo videtur esse nobilissima
prophetia in qua, simul, divinitus infunditur lumen intellectuale et figu-
rae imaginariae.
10. Praeterea, ut dicit Hieronymus in prologo super librum regum,
prophetae contra Agyographas distinguuntur. Sed illi quos ibi prophe-
tas nominat, omnes, aut fere omnes, revelationem acceperunt sub figuris
imaginariis; plures autem eorum quos inter Agyographas nominat, sine
Sobre a Profecia · Artigo 12 69
Sed contra.
figuras. Portanto, são mais propriamente chamados profetas aqueles aos quais
ocorre a revelação segundo a visão intelectual e a imaginária do que aqueles
em que se dá apenas a intelectual.
11. Ademais, no livro II da Metafísica diz o Filósofo que nosso intelecto
está para as primeiras causas das coisas maximamente percebidas na natureza
“do mesmo modo que o olho da coruja está para a luz do sol”.84 Mas o olho da
coruja não pode observar o sol senão em certa escuridão. Portanto, também
nosso intelecto compreende as coisas divinas em certa escuridão e – parece,
portanto – sob certas semelhanças. Assim, a visão intelectual não será mais certa
que a imaginária, já que ambas ocorrem sob semelhanças. Portanto, parece
que a visão imaginária acrescentada à intelectual nada diminuiria da nobreza
desta. Destarte, a profecia que ocorre sob ambas as visões ou é mais digna ou
ao menos igualmente digna.
12. Ademais, assim como o imaginável está para a imaginação, assim tam-
bém o inteligível está para o intelecto. Mas o imaginável não é apreendido pela
imaginação senão mediante uma semelhança. Portanto, tampouco o inteligí-
vel o é pelo intelecto. E assim se conclui o mesmo que antes.
Mas, em sentido contrário:
1. Consta da Glosa no princípio do Saltério: “Outro modo de profecia é
mais digno que os demais, a saber, quando se profetiza apenas a partir da ins-
piração do Espírito Santo, estando removido todo auxílio exterior de feitos ou
de ditos, de visões ou de sonhos”.85 Mas a profecia que tem agregada a visão
imaginária se dá com auxílio de sonho ou de visão. Portanto, é mais nobre a
profecia que ocorre apenas com a visão intelectual.
2. Ademais, tudo que é recebido em algo é recebido nele ao modo do re-
cipiente. Mas o intelecto, no qual algo é recebido em visão intelectual, é mais
nobre que a imaginação, na qual se recebe algo em visão imaginária. Portanto,
é mais nobre a profecia que ocorre segundo a visão intelectual.
3. Ademais, onde há a visão intelectual não pode haver engano, pois o
que se engana não intelige, como diz Agostinho no livro Sobre a Verdadeira
Religião.86 Ora, a visão imaginária possui muita mescla de falsidade, e por isso
90 Isto é, acerca da espécie “fé”, aqui se tem “cognição” como gênero e “enigmática” como diferença.
Sobre esta passagem, cf. Glosa de Pedro Lombardo (PL 191, 1662A). [N. T.]
91 Cf. “procul fans”, na resposta do artigo 1 no vol. I. [N. T.]
92 A passagem remete a I Reis 4,29-34. Quanto à tradução literal “...os quais recebemos de modo
76 Santo Tomás de Aquino
natural”, esta apenas traria confusão à frase, já que S. Tomás não se refere a algo que “nós” façamos
e Salomão não. Ao contrário, a primeira do plural tem aqui sentido inclusivo, e equivale ao “se” in-
determinador. A profecia aqui descrita seria uma em que apenas o juízo é iluminado (sem a recepção
de visões) e julga corretamente (por impulso divino) com respeito às coisas naturalmente presentes
a todos nós. [N. T.]
93 Aqui o autor emprega o lat. infundo, mas sem traçar nenhuma distinção. Cf. nota 107 do vol. I.
94 Embora a conclusão do argumento já fosse previsível, a difícil redação deste parágrafo pode trazer
ao leitor certa confusão que, mesmo com alguma liberdade no uso da paráfrase, não foi possível
extirpar por completo. No presente ponto, diz S. Tomás que, na ordem de dignidade simpliciter,
o primeiro tipo de profecia, menos elevado, consiste apenas na iluminação (por Deus ou por Ele
mediante anjos) do intelecto do homem, o que o permite julgar muito mais agudamente das coisas
ao seu redor; e deu-se como exemplo Salomão. O segundo tipo de profecia contém não só certo
fortalecimento do intelecto (todas o têm; não há profecia sem intelecto capaz de compreender sua
mensagem e emitir juízo sobre ela), mas uma recepção sobrenatural de conteúdo inteligível propria-
mente dito, impressa na imaginação. Já a terceira é cognição de modo mais sublime: não só inclui o
fortalecimento do intelecto para a emissão do juízo, mas seu conteúdo é recebido sobrenaturalmente
no próprio intelecto, e quaisquer formações imaginativas subseqüentes se dão somente enquanto o
intelecto do profeta, cuja natureza é operar no corpo, as emprega para poder expressar-se. O que
aumenta a dificuldade do parágrafo é que a primeira tampouco é evento absolutamente natural, já
que a iluminação recebida para a agudeza do juízo é algo que só obtemos mediante influxo, e que
portanto está de certo modo acima de nossa natureza. Não obstante, tal sobrenaturalidade não é de
mesmo grau que a que figura nas duas outras classes de profecia; seu sutil lugar de profecia no limiar
da sobrenaturalidade foi exposto no Artigo 3 do vol. I. [N. T.]
78 Santo Tomás de Aquino
95 Sobre a necessidade dos fantasmas para que se dê o conhecimento humano, cf. nota 84 do vol. I.
96 Maimônides, Guia dos Perplexos, II, 45.
97 Glosa de Pedro Lombardo (PL 191, 59B).
80 Santo Tomás de Aquino
tenham sido propostas as coisas com respeito às quais deve haver juízo. Por isso,
na profecia em que a luz intelectual é recebida apenas para julgar, tal luz não
produz cognição determinada de algo enquanto não lhe sejam apresentadas al-
gumas coisas que hão de ser objeto de juízo, sejam elas provenientes do próprio
profeta, sejam recebidas de outro; e, desse modo, a visão intelectual se perfaz
mediante a imaginária, assim como o comum é determinado pelo específico.
7. Quanto ao sétimo, deve-se dizer que uma profecia ser apenas segundo
a visão intelectual é algo que nem sempre ocorre por debilidade da luz intelec-
tual; ao contrário, às vezes se deve à pleníssima recepção do intelecto, como se
disse. Portanto, o argumento não procede.
8. Quanto ao oitavo, deve-se dizer que o signo, enquanto tal, é causa
da cognição, ao passo que o significado é o que se dá a conhecer mediante
outro. Ora, assim como o que se dá a conhecer em si e faz conhecer outros é mais
nobremente conhecido que o que só se dá a conhecer por si, assim também,
inversamente, o que se dá a conhecer por si e não por outro é mais nobremente
conhecido que o que se dá a conhecer por outro – o que ocorre, por exemplo,
com os princípios e as conclusões. E esta inversa é o que se dá entre signo e
significado. Portanto, o argumento não procede.98
9. Quanto ao nono, deve-se dizer que, embora as imagens impressas
divinamente sejam mais nobres que as imagens formadas pelo homem, a re-
cepção da cognição que se dá divinamente no intelecto é mais nobre que a
recepção que ocorre mediante formas imaginárias.
10. Quanto ao décimo, deve-se dizer que na supracitada distinção se cha-
mam “profetas” de modo mais especial os que tiveram a profecia segundo as
visões imaginárias, pois neles se encontra mais plenamente a razão de profecia,
também pela razão da diferença [específica]. Por outro lado, chamam-se “ha-
giógrafos” os que de modo sobrenatural tiveram apenas visões intelectuais, seja
quanto ao juízo somente, seja quanto ao juízo e à recepção ao mesmo tempo.
11. Quanto ao décimo primeiro, deve-se dizer que, embora nosso in-
telecto intelija as coisas divinas mediante certas semelhanças, aquelas seme-
98 Como vimos acima, a falácia da objeção correspondente a esta oitava réplica era a de que algo seria
mais nobremente conhecido por sê-lo mediante outro do que por sê-lo apenas em si. O argumento
pretendia “roubar” do signo sua riqueza peculiar – a de dar a conhecer a si e também a outro – e
concedê-la ao outro, isto é, o significado, como se ela fosse em verdade uma nobreza deste: a de ser
conhecido em si e mediante outro. Nesta estrita relação cognitiva, atribuir tal nobreza ao significado é
ilusório, e S. Tomás explica-o nesta resposta, mostrando desde a primeira sentença que, entre signo e
significado, é o signo o que tem razão de causa no “dar a conhecer outro”. Ser conhecido mediante ou-
tro (isto é, ser significado) não acrescenta nenhuma nobreza a ser conhecido. A verdade vai em sentido
inverso: é antes dar a conhecer a si e a outro o que é mais nobre que apenas dar a conhecer a si. [N. T.]
82 Santo Tomás de Aquino
lhanças são mais nobres (em razão de sua imaterialidade) que as semelhanças
imaginárias; donde também a visão intelectual ser mais nobre.
12. Quanto ao décimo segundo, deve-se dizer que é impossível que uma
coisa seja imaginável por sua essência tal como é inteligível por sua essência.
Pois a imaginação não versa senão sobre coisas materiais, e tampouco pode
receber algo senão sem matéria – por isso é sempre necessário que a imagina-
ção seja de algo, não por sua essência, mas por sua semelhança. Já o intelecto
recebe imaterialmente, e por ele são conhecidas não apenas as coisas materiais,
mas também as imateriais; portanto, também certas coisas são conhecidas por
ele por essência, enquanto outras o são por semelhança.
Quanto aos argumentos que se põem em sentido contrário, é facil-
mente patente a resposta, enquanto concluem falsamente.
84 Santo Tomás de Aquino
ARTICULUS 13
Tertiodecimo quaeritur utrum gradus prophetiae
distinguantur secundum visionem imaginariam
1. Nobilior enim est prophetia ubi est nobilior prophetatae rei accep-
tio. Sed quandoque acceptio rei prophetatae est per visionem imaginariam.
Ergo secundum visionem imaginariam possunt gradus prophetiae distingui.
2. Praeterea, perfectius medium cognoscendi facit perfectiorem cogni-
tionem; et exinde est scientia opinione perfectior. Sed similitudines ima-
ginariae sunt medium cognoscendi in prophetia. Ergo ubi est nobilior
imaginaria visio, est altior gradus prophetiae.
3. Praeterea, in omni cognitione quae est per similitudinem, ubi est ex-
pressior similitudo, est perfectior cognitio. Sed figurae imaginatae in pro-
phetia sunt similitudines rerum de quibus fit revelatio prophetiae. Ergo
ubi est perfectior imaginaria visio, est altior gradus prophetiae.
4. Praeterea, cum lumen propheticum descendat ab intellectu in ima-
ginationem; quanto est perfectius lumen in intellectu prophetae, tanto
est perfectior imaginaria visio. Ergo diversi gradus imaginariae visionis
demonstrant diversos gradus intellectualis. Sed ubi est perfectior intel-
lectualis visio, est perfectior prophetia. Ergo et secundum imaginariam
visionem gradus prophetiae distinguuntur.
5. Sed dicebat, quod diversitas visionis imaginariae non distinguit spe-
ciem prophetiae; et ideo nec secundum ipsam gradus prophetiae distin-
guuntur.- Sed contra, omne calidum elementare est eiusdem speciei; et ta-
men apud medicos distinguitur calidum in primo et in secundo aut tertio et
quarto gradu. Ergo distinctio graduum non requirit speciei distinctionem.
6. Praeterea, magis et minus non diversificant speciem. Sed etiam in-
tellectualis visio non distinguitur in prophetis nisi secundum lumen pro-
pheticum perfectius et minus perfecte receptum. Ergo differentia visionis
Sobre a Profecia · Artigo 13 85
ARTIGO 13
Se os graus da profecia se distinguem
segundo a visão imaginária99
Sed contra.
101 A frase refere-se ao quinto argumento imediatamente anterior, no qual o interlocutor antecipa
uma possível resposta de S. Tomás (“Poderia dizer-se, porém...”) e a confronta com uma contrarré-
plica. A possível resposta consiste em alegar que a existência de graus na profecia dependeria forçosa-
mente de uma distinção em espécie. Argumenta o interlocutor, portanto, que, se este é o caso tanto
quanto à visão imaginária como quanto à intelectual (como argüi neste sexto ponto), então não
haveria graus distintos de profecia, o que é inaceitável. [N. T.]
102 Aristóteles, Sobre a Alma, III, 13 (431b 24).
103 Glosa de Pedro Lombardo (PL 191, 58C). A divisão nestes pares já foi mencionada por S. Tomás
nesta obra (cf. artigo 9): a profecia realiza-se por ditos e por feitos e por coisas que parecem ditos e feitos
(isto é, por sonhos e por visões). [N. T.]
88 Santo Tomás de Aquino
profeta”, etc. Portanto, os graus da profecia não devem ser distinguidos segun-
do a visão imaginária mais do que segundo os sinais.
Respondo. Deve-se dizer que, quando duas coisas concorrem para cons-
tituir algo, uma das quais é principal com respeito à outra104 naquilo que é
constituído a partir delas, o grau de comparação pode ser considerado tanto
segundo o que é principal como segundo o que é secundário. Ora, o excesso
do que é principal mostra a eminência simpliciter; já o excesso do que é se-
cundário mostra uma eminência secundum quid e não simpliciter, a não ser na
medida em que o excesso no secundário seja sinal de excesso no principal. Por
exemplo: para o mérito humano, a caridade concorre como o principal e a
obra externa como o secundário; ora, o mérito, falando simpliciter (isto é, com
respeito ao prêmio essencial), é considerado maior enquanto procede de maior
caridade; já a grandeza da obra torna maior o mérito secundum quid (ou seja,
quanto a certo prêmio acidental), mas não simpliciter, a não ser na medida em
que demonstra a grandeza da caridade, como diz Gregório: “Grandes coisas
opera o amor de Deus, se ele está [em nós]”.105
Portanto, como a visão intelectual concorre para a profecia como principal
e a imaginária como secundária, o grau da profecia deve ser considerado mais
eminente simpliciter por ser mais eminente a visão intelectual. Já da eminência
da visão imaginária se mostra grau de profecia mais eminente secundum quid,
não simpliciter, a não ser na medida em que a perfeição da visão imaginária
demonstra a perfeição da intelectual.
Todavia, da parte da visão intelectual não se podem receber graus deter-
minados, pois a plenitude da luz intelectual não se manifesta senão por meio
de certos sinais. Portanto, é necessário distinguir os graus da profecia por tais
sinais. Assim, os graus da profecia podem distinguir-se de quatro modos. Em
primeiro lugar, quanto às coisas que se requerem para a profecia. Pois o ato
da profecia é duplo: consiste na visão e no anúncio. Para a visão se requerem
duas coisas, a saber: o juízo (que é segundo o intelecto) e a recepção (que às
vezes é segundo o intelecto, às vezes segundo a imaginação). Já para o anúncio
se requer algo da parte do anunciante, a saber, certa audácia, para que não se
106 Lat. intensio. O termo é de difícil tradução devido à sua abrangência. Refere-se não apenas ao
foco intencional com que a alma se fixa ao objeto, mas (neste contexto) também à intensidade con-
comitante com que necessariamente operam as suas faculdades. [N. T.]
92 Santo Tomás de Aquino
diuntur tantum, sive sit in somnio, sive sit in visione: quia ex hoc ostendi-
tur quod magis accedit propheta ad cognitionem eius qui revelat. Quando
vero videtur ille qui loquitur, altior gradus prophetiae est quando videtur
in specie Angeli, quam quando videtur in specie hominis; et adhuc emi-
nentior, si videatur in figura Dei, sicut Isa. VI, 1, vidi dominum sedentem
etc.: cum enim prophetiae revelatio a Deo descendat in Angelum, et ab
Angelo in hominem, tanto ostenditur plenior prophetiae receptio, quanto
magis acceditur ad primum principium prophetiae.
Rationes illae quae ostendunt quod gradus prophetiae distinguuntur
secundum imaginariam visionem, concedendae sunt secundum modum
praedictum: nec hoc dicendum est, quod diversitas gradus distinctionem
exigat speciei.
lavras, quer ocorra em sonho, quer ocorra em visão, pois assim se mostra que
o profeta mais se aproxima da cognição daquele que revela. E, quando se vê
quem fala, é mais alto o grau da profecia quando se o vê na forma de um anjo
do que quando se o vê na forma de um homem; e é ainda mais eminente se se
o vê na figura de Deus, como em Isaías [6,1]: “Vi o Senhor sentado”, etc. Pois,
dado que a revelação da profecia desce de Deus para o anjo e do anjo para o
homem, mostra-se que é tanto mais plena a recepção da profecia, quanto mais
se acerca do princípio primeiro desta.
Devem conceder-se, portanto, os argumentos que mostram que os
graus da profecia se distinguem segundo a visão imaginária; mas devem con-
ceder-se segundo o modo que aqui afirmamos. E tampouco se deve dizer que
a diversidade de grau exija distinção de espécie.
Quanto aos argumentos em contrário, porém, devemos responder a
eles ordenadamente.
1. Quanto ao primeiro deles, é patente a resposta a partir do que se disse.
2. Quanto ao segundo, deve-se dizer que, quando algo se distingue segun-
do a espécie, é necessário que haja distinção segundo o que é formal; contudo,
se há distinção de graus numa mesma espécie, também pode dar-se segundo
o que é material, assim como “animal” se distingue em masculino e feminino,
diferenças estas que são materiais, como se diz no livro X da Metafísica.107
3. Quanto ao terceiro, deve-se dizer que, dado que a luz profética não
é algo imanente ao profeta, senão que é como certa paixão transitória, não é
necessário que o profeta sempre se encontre em um mesmo grau de profecia;
pelo contrário: às vezes a revelação lhe é feita segundo um grau, às vezes se-
gundo outro.
4. Quanto ao quarto, deve-se dizer que, já que certas coisas mais nobres
às vezes são menos perfeitamente conhecidas (como quando se tem opinião
acerca das coisas divinas, mas ciência acerca das criaturas), não pode o grau
da profecia tomar-se das coisas profetizadas – sobretudo quando as coisas por
anunciar são reveladas ao profeta segundo o que exige a disposição daqueles
em razão dos quais se dá a profecia. Ou pode ainda dizer-se que segundo as
coisas profetizadas também se distinguem os graus da profecia, mas, por causa
da grande diversidade das coisas reveladas, não se podem segundo este quesito
estabelecer graus determinados de profecia – a não ser talvez genericamente,
forte in genere; ut si dicatur, quod cum revelatur aliquid de Deo, est emi-
nentior gradus quam cum revelatur de creaturis.
5. Ad quintum dicendum, quod dicta et facta quae ibi tanguntur, non
pertinent ad revelationem prophetiae, sed ad denuntiationem, quae fit se-
cundum dispositionem eorum quibus denuntiatur. Unde secundum hoc
non possunt gradus prophetiae distingui.
6. Ad sextum dicendum, quod gratia signorum est differens a prophe-
tia. Potest tamen reduci ad prophetiam secundum hoc quod per signa
veritas prophetae demonstratur; unde et gratia signorum quantum ad hoc
est potior quam prophetia, sicut et scientia quae demonstrat propter quid,
est potior quam scientia quae dicit quia. Et propter hoc I Corinth., XII,
9-10, praemittitur gratia signorum gratiae prophetiae. Unde et ille pro-
pheta est excellentissimus qui etiam signa facit habens revelationem pro-
pheticam. Si autem signa faciat sine revelatione prophetica, etsi forte sit
dignior simpliciter, non tamen est dignior quantum pertinet ad rationem
prophetiae; sed sic computabitur talis in infimo gradu prophetiae, sicut
ille qui habet audaciam tantum ad aliquid faciendum.
Sobre a Profecia · Artigo 13 95
108 A graça dos sinais (gratia signorum) é superior no seguinte aspecto à profecia: esta última só se
manifesta mediante sinais, daí a propriedade da analogia feita por Santo Tomás com as demonstra-
ções propter quid (da causa aos efeitos) e quia (dos efeitos à causa), pois a profecia, quando acompa-
nhada dos sinais por cujo intermédio os homens podem dar testemunho dela, assemelha-se à visão
das causas pelas quais o intelecto, raciocinando retamente, chega à verdade pela via dedutiva. O
mesmo não ocorre quando a profecia não é acompanhada de sinais. [N. C.]
96 Santo Tomás de Aquino
ARTICULUS 14
Quartodecimo quaeritur utrum Moyses
fuerit excellentior aliis prophetis
Sed contra.
ARTIGO 14
Se Moisés foi mais excelente que os outros profetas109
seu cajado,115 não somente para anunciar as palavras do Senhor, mas também
para flagelar o Egito e libertar o povo.
1. Quanto ao primeiro argumento, portanto, deve-se dizer que as palavras
de Gregório devem entender-se com respeito às coisas pertinentes ao mistério da
encarnação, acerca das quais alguns profetas posteriores receberam revelação de
forma mais explícita que Moisés; elas não se devem entender quanto à cognição
da divindade, de que Moisés foi instruído do modo mais pleno.
2. Quanto ao segundo, deve-se dizer que Davi é dito o mais excelente
dos profetas porque profetizou do modo mais explícito acerca de Cristo e sem
nenhuma visão imaginária.
3. Quanto ao terceiro, deve-se dizer que, embora tais milagres fossem
maiores que os de Moisés quanto à substância do feito, os de Moisés foram
maiores quanto ao modo de fazê-los, pois foram feitos para todo o povo, e
para a instituição e a libertação do povo na Nova Lei. Já aqueles foram feitos
para assuntos particulares.
4. Quanto ao quarto, deve-se dizer que a eminência de Elias se observa
principalmente no fato de que foi preservado da morte. Foi também mais
eminente que muitos outros profetas quanto à audácia com que “em seus dias
não temeu os príncipes” e quanto à grandeza dos sinais, como também se
deduz das palavras do Eclesiástico.116
5. Quanto ao quinto, deve-se dizer que, quando se afirma que Moisés é
anteposto aos demais, deve entender-se isto quanto aos demais que houve no
Antigo Testamento. Pois então a profecia se encontrava precipuamente em seu
estado próprio, quando se esperava o Cristo vindouro, a quem toda e qualquer
profecia se ordenava. Já João pertence ao Novo Testamento, razão por que se
lê em Mateus [11,13]: “a Lei e os profetas até João”. Ora, no Novo Testamen-
to se fez mais manifesta a revelação, e por isso se diz em II Coríntios [3,18]:
“Todavia, nós, com o rosto descoberto, [observando] a glória do Senhor”, etc.,
onde o Apóstolo antepõe-se a si próprio e os outros apóstolos a Moisés. Ainda
assim, se ninguém foi maior que João Batista, disto não se segue que ninguém
tenha sido mais excelente no grau da profecia; pois, dado que a profecia não é
o dom da graça santificante, pode ser superior na profecia aquele que é menor
no mérito.
2017
Novembro O Ser e a Inteligência, vol. 1 S. Alberto Magno
Catena Aurea ed. especial (novembro, Ano A) S. Tomás/Diversos
Dezembro O Ser e a Inteligência, vol. 2 S. Alberto Magno
Catena Aurea ed. especial (dezembro, Ano B) S. Tomás/Diversos
2018 '
Janeiro Comentários aos Dez Mandamentos, vol. 1 S. Boaventura
Catena Aurea ed. especial (janeiro, Ano B) S. Tomás/Diversos
Fevereiro Comentários aos Dez Mandamentos, vol. 2 S. Boaventura
Catena Aurea ed. especial (fevereiro, Ano B) S. Tomás/Diversos